jorge amado e a consciencia discursiva em qbd

Upload: fabiano-diniz

Post on 18-Jul-2015

504 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

MARILANI SOARES VANALLI ROFERO

JORGE AMADO E A CONSCINCIA DISCURSIVA EM A MORTE E A MORTE DE QUINCAS BERRO DGUA

Trabalho apresentado Faculdade de Cincias e Letras de Assis UNESP para a obteno do ttulo de Mestre em Letras Literaturas de Lngua portuguesa.

ORIENTADOR: Dr. Igor Rossoni

ASSIS - SP 2002

Ficha Catalogrfica Elaborada pelo Servio Tcnico de Biblioteca e Documentao FCT/UNESP - Campus de Presidente Prudente

R621u

Rofero, Marilani Soares Vanalli. Jorge Amado e a conscincia discursiva em A morte e a morte de Quincas Berro Dgua / Marilani Soares Vanalli Rofero.- Assis : [s.n.], 2002 147 f. Dissertao (mestrado).- Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Cincias e Letras. Orientador: Igor Rossoni 1. Jorge Amado 2. Enunciao 3. Teoria da Narrativa Conscincia Retrica I. Rofero, Marilani Soares Vanalli. II. Ttulo. CDD (18.ed.) 809.8 4.

2

Agradeo a Deus, acima de todas as coisas... e a todos aqueles que direta ou indiretamente participaram deste processo.

3

Agradeo tambm:

Ao meu orientador Igor Rossoni, pela sabedoria, dedicao e pacincia...

queles que correspondem ao oceano da minha existncia:

Edilson Joo Pedro Mileni

A minha me Maria Antnia, pelo ser humano sensvel que , e pelo incentivo sempre...

queles professores que participando da nossa formao cultural, de modo singular, transformaram a arte potica em um verdadeiro despertar para mundos desconhecidos; para realidades interiores; ultrapassando a opacidade dos concretos...

E a AEPREVE que colaborou financeiramente para a concluso dos estudos...

4

Sumrio

1. Introduo .......................................................................................................................5

2. Jorge Amado: breve percurso .........................................................................................8

3. Plano da Histria e Plano do Discurso: teoria e prtica ...........................................17

4. Personagens Como Vetores de Ideologia: uma questo de excluso social ..........46

5. Uma Dupla Temporalidade: tempo interno e externo ..............................................74

6. Carnavalizao: Personagens na Percepo do Tempo ...........................................90

7. Abrangncia Simblica do Ttulo ...........................................................................103

8. Consideraes Finais ................................................................................................140

9. Bibliografia ...............................................................................................................147

5

INTRODUO

O fundamento bsico desta introduo estabelecer para o receptor do texto um fio condutor que explicite os caminhos pelos quais a pesquisa se direcionar. O propsito deste estudo se alicera na teoria do funcionamento do narrador de Grard Genette. Atravs dessa opo terica, pretende-se demonstrar que na enunciao, pelas manobras articuladas pelo narrador e pelas marcas por ele deixadas ao longo do tecido ficcional, que se pode observar o grau de elaborao discursiva utilizado pelo autor. Fato que o coloca de certo modo frente das prticas convencionais que costumeiramente lhe moldam o percurso ficcional. Qual seja, o de grande contador de histrias. Assim, em A morte e a morte de Quincas Berro Dgua o que se v o trabalho de uma conscincia estruturada aos moldes do exerccio da modernidade tornando o tecido ficcional fragmentrio, pulsantemente interior, silenciosamente irnico: expresso da mais eficaz manifestao literria. Pensando desta forma, o esquema metodolgico adotado foi o de iniciar cada captulo pela fundamentao terica pertinente e, em seguida, a aplicabilidade da mesma, visando aproximar e facilitar o entendimento analtico quando da recepo. Uma vez apresentadas estas consideraes, menciona-se que os captulos assim se constituiro: o primeiro captulo Jorge Amado: breve percurso contextualiza o leitor e permite-lhe de acordo com as informaes inserir o autor bem como a escrita literria entender desta maneira, a forma discursiva por ele empregada atendendo exigncia do momento histrico Plano do discurso e plano da histria tm por premissas bsicas, discutir e evidenciar que a fora deste pequeno (grande) texto literrio est centrada na enunciao.

6

Pretende-se destacar que o enunciado fica relegado a um segundo plano, por servir enunciao como um terreno propcio para o desenvolvimento dos rastros discursivos. J Personagens como vetores de ideologia busca-se evidenciar a minimizao discursiva empregada para estes seres, no intuito de com este recurso embora sutilizando a ideologia ali presente, fazer brilhar o texto pela enunciao. O enunciado serve de apoio para o plano discursivo, pela prpria histria narrada. A ironia associada ao enunciado promovem um texto cmico de qualidade. O captulo destinado ao Tempo faz-se importante na medida em que visa dimensionar o tempo ficcional, uma vez que na verdade sabe-se da prpria dificuldade da inconsistncia do tempo real. Outro sub-item abre-se a partir da. Busca-se nele estudar alguns processos de atuao dos personagens em funo do tempo: Carnavalizao dos Personagens na Percepo do Tempo. Depois de buscar no discurso ficcional argumentos convincentes que justifiquem uma opo em utilizar-se com intensidade os recursos retricos que o trabalho com a linguagem propicia ampliando consistncia artstica do tecido ficcional em foco, voltamos ateno para o estudo do primeiro enunciado visvel da obra: o prprio ttulo. Nele se concentra a primeira pista de ambigidade e jogo desreferencial que a obra de comparao entre coisas cai por terra ao ser implementada uma des-ordem junto ao estatuto modal dos fatos comparados. Assim, desde o princpio um universo de sugestes dribla o receptor, estabelecendo um jogo de encobrimento e esconderes que amplificam o teor contundente da obra. Abrangncia Simblica do Ttulo busca evidenciar que o narrador jorgeano inverte conceitos, prioriza a morte em detrimento da vida, estabelecendo novos conceitos quer seja para a morte no plano humano ou para as mortes existentes no contexto ficcional.

7

O resultado do percurso executado pelo condutor do discurso vem facilitar a justificativa geral desta pesquisa. A proposta principal pauta-se na sugesto de que A morte e a morte de Quincas Berro Dgua se constitui numa obra diferenciada de tantas outras deste autor, classificadas como best sellers. Para tanto o universo ficcional de Berro Dgua abrese reflexo e guarda consigo uma literariedade a ser desvestida, e assinalada.

8

Jorge Amado: breve percurso

1. Fase: Literatura Comprometida

Em 1931 coincidindo com a revoluo liberal o amigo e editor Schmidt publica O pas do carnaval, o primeiro romance de Jorge Amado. O livro exprime a transio entre duas dcadas: a Repblica velha agonizante e o novo governo, o primeiro Modernismo e o neoregionalismo que surge e evidencia o carnaval como a maior festa do pas. possvel perceber, desde ento, pelas marcas do discurso coloquializante, uma tendncia popular. Aos 19 anos j escritor respeitado no rol dos regionalistas, com uma literatura que parece perguntar qual a cara do Brasil um pas com diferenas, um povo miscigenado e com graves problemas sociais. Depois da publicao de O pas do carnaval (1931), Jorge Amado se filia ao partido Comunista. Junto a esta participao e militncia ativas surge no cenrio brasileiro outro romance: Cacau (1933). Ao optar pelo discurso da utopia socialista, o texto revela claramente o intuito de fazer da escrita um gesto poltico. Com a opo de enunciados simples, de colorido popular, Jorge Amado indica um novo rumo para a narrativa: o romance popular. Cacau tem destaque bem maior que o livro anterior no que diz respeito venda: uma edio de 2.000 exemplares esgota-se em 40 dias. O romance fala dos embates na zona cacaueira, em Itabuna. Destaca as leis de explorao a que eram submetidos os trabalhadores naquelas fazendas. O resultado a configurao de um lao mimtico com o real. Deste modo, pela prtica de uma escrita popular, exercita a representao da realidade em diferentes matizes.

9

Sobre este estilo, Fbio Lucas (1989, p. 105) menciona A prosa de Jorge Amado, pontuada de oralidade, constitui um desafio tradio artstica herdada no sculo passado, de feio lusitana, propensa a estilo elevado. Sabe-se da fora da influncia da literatura portuguesa na brasileira pelas condies histricas de colonizao. Jorge Amado, nacionalista extremado, distancia-se do fazer literrio rebuscado. Assim, por valorizar tudo o que nacional, Amado investe numa escrita coloquial, por estar compatvel ao contexto histrico vigente no pas, e elabora a obra de forma coerente para o propsito a que se destina. Em conformidade a tudo isso, observa-se o comentrio de Sussekind (1984, p. 34-5): [...] exigese do literrio que perca suas especificidades, suprima opacidades, ambigidades, conotaes... E linguagem coubesse o papel de simples objetividade, o ser apenas denotao, transparncia e fissura [...]. Outro problema para a literatura parece ser a temtica regionalista denunciativa. Adonias Filho, em seu estudo fundamental para a compreenso da fico erudita brasileira, estabelece a ligao do romance com a matria oral folclrica acentuando que:

[...] Os movimentos temticos que o concretizam, em torno da matria ficcional e das constantes literrias advindas da oralidade, tm suas razes nas prprias razes do complexo cultural brasileiro: o indianismo, o escravismo, o sertanismo, o urbanismo. Esses movimentos temticos, a partir da epopia, embora ultrapassados o indianismo e o escravismo em conseqncia da mudana que atinge o complexo cultural brasileiro caracterizam ainda hoje, atravs do sertanismo e do urbanismo, o nosso romance. Temos que atentar bem nisso: na interferncia da oralidade, fluxo ininterrupto que atua desde o sculo XVI, to flagrante na moderna novelstica sertanista, por exemplo, quanto o fora nos autos e nos contos populares do sculo XVIII. E, se fosse possvel ampliar a afirmao, diramos que a terra no era literariamente virgem no instante da descoberta. Os contos e os autos populares, atravs do sincretismo luso-indgenaafricano e posteriormente brasileiro j denunciavam a vocao documentria do romance brasileiro como suas nicas matrizes e razes autnticas. (FILHO, 1969, p. 210, apud COUTINHO, 1977, p. 270-1).

10

Por sua vez, Afrnio Coutinho revela:[...] A regio nordestina prestava-se maravilha para a valorizao das tradies culturais, da a fora como o movimento regionalista se difundiu por toda a regio, da Bahia ao Cear e mais ao Norte. A frmula era buscar no ambiente social, cultural e geogrfico os elementos temticos, os tipos de problemas, os episdios que seriam transformados em matria de fico. A tcnica era realista, objetiva, os escritores buscando valer-se de uma coleta de material in loco, luz da histria social ou da observao de campo, tornando seus romances verdadeiros documentrios ou painis descritivos da situao histrico-social. No foi difcil, num momento de intensa propaganda de reforma social e mesmo de revoluo, como a dcada de 30, que os livros do grupo constitussem uma literatura engage, de participao poltica, no sentido de expor as mazelas do estado vigente como premissa necessria transformao revolucionria. Muitos desses escritores tornaram-se at militantes polticos, vindo a constituir uma verdadeira literatura de esquerda (COUTINHO, op.cit, p. 278).

Parece que para referir-se s verdadeiras razes, conforme disseram Adonias Filho e Coutinho, necessrio estabelecer na temtica painis descritivos das razes brasileiras com uma linguagem voltada oralidade, porque na temtica que a circulao oral penetra verticalmente na fico, com o intuito de transmitir-lhe o inconsciente popular, costumes, crenas, tradies. Cacau enquadra-se no modelo de romance engajado. A epgrafe diz: Tentei contar neste livro, com um mnimo de literatura para um mximo de honestidade, a vida dos trabalhadores das fazendas de cacau do sul da Bahia. Ser um romance proletrio? (AMADO, 1986, p. 6). Talvez com um misto de sinceridade e ingenuidade esta epgrafe tenha estigmatizado Jorge Amado por toda a vida. O pronunciamento de Assis Duarte referenda que:

[...] o mnimo de literatura foi logo interpretado como desleixo formal e forneceu munio aos adversrios do modernismo, que abriram suas baterias contra a linguagem rude de Cacau, no que foram prontamente imitados pelos literatos de direita, inconformados com o novo rumo da fico amadiana. No entanto, toda a

11

polmica radica na polissemia do termo. Amado pretendeu, efetivamente, utilizarse do sentido baixo vigente poca, pelo qual literatura equivalia a literatice inverossmel e bem escrita, segundo o critrio de perfeio anterior ao

Modernismo. [...] O mnimo de literatura expressa , antes de tudo, oposio retrica da pompa da circunstncia, ao falar difcil caracterstico das classes dominantes e da tradio bacharelesca herdada do imprio. Acoplado ao mximo de honestidade, soa como declarao de guerra tradio ficcional idealizadora da vida do campo e porta-voz da ideologia do latifndio. Uma fico que propagava as imagens do bom senhor e do escravo contente, vivendo num

paraso de fartura e de inocncia, livre de sofrimentos, longe das contradies. O universo de Cacau nada tem desse mundo harmnico, onde pobreza era vista como natural pelo trabalhador subserviente e conformado com seu destino (DUARTE, 1995, p. 57-8).

Desta forma, a linguagem de Cacau aproxima-se o mximo possvel da fala rude do homem do campo e dos erros gramaticais cometidos pela oralidade em relao norma culta. a literatura que d conta da vida do homem simples, do trabalhador explorado, de milhares submetidos a esse regime de escravido. Uma escrita literria naturalista que inclui e oportuniza voz a esses brasileiros marginalizados pelo sistema. Por apresentar todos esses aspectos de tendncia denunciativa, o romance censurado e apreendido pela polcia. Jorge Amado trabalha em jornais e editoras. Torna-se tradutor de importantes autores da Amrica Latina. Mas com a publicao de Jubiab (1935) que se incrementa a ponta mais visvel e menos sutil da pendncia para a literatura de carter populista, libertria e de matiz social, motivada pela transparncia da linguagem neste sentido. O protagonista do romance um valente lder grevista em Salvador, e o primeiro heri negro do romance brasileiro a derrotar o oponente: branco e dominador. importante salientar que na literatura brasileira, especificamente Jorge Amado no se desvia de seus propsitos e fica fora do comentrio apresentado por Sssekind, (1984, p. 36) que declara difcil perceber idntica e ansiosa busca de fidelidade documental paisagem, realidadee ao carter nacionais [...] meio espelho, meio fotografia; numa

12

busca de unidade e de especificidades que possam fundar uma identidade nacional, que se costuma definir a literatura no Brasil. O autor, no perodo, v-se diante da necessidade de representar o pas numa obra literria coerente, movido pela exigncia do contexto. interessante notar a lucidez do escritor com a fidelidade ao pas: desde a seleo de personagens simples at a opo por uma linguagem de predominncia coloquial demonstram a busca ansiosa de retratar uma paisagem verdadeiramente nacional. Pela manuteno e coerente exposio de idias, Jorge Amado trabalha na contramo do que diz Sssekind (1984, p. 36) quanto mais longe a identidade e a nacionalidade que busca, tanto maior a exigncia que se faa da linguagem apenas mediadora invisvel de uma viagem impossvel. Mediadora de uma tal literatura brasileira que procura um Brasil, uma verdade, uma nacionalidade que possa reproduzir de modo fiel. Esta definio no cabe a Jorge Amado. Quem sabe, se na tentativa de ter mantido extrema fidelidade s questes nacionais, o resultado tenha sido o esteretipo de literatura menor. Algum tempo depois, publica um novo romance: Mar morto (1936). E neste ano, preso pela primeira vez por causa da Intentona, tentativa de tomada do poder liderada por Luiz Carlos Prestes. Desde ento, Jorge Amado pode ser considerado um escritor visionrio, que jamais traiu a utopia socialista, sempre guiado pelo desejo de escrever para as grandes massas. Configura-se assim a primeira fase do autor, reconhecida como neo-realista ou neoregionalista:

[...] que compreende os modernos ciclos da fico brasileira: os ciclos da seca, do cangao, do cacau, da cana-de-acar, do caf, do serto, do pampa, etc. O homem dominado pelo quadro, devorado amide por ele, e esse grupo se liga a toda uma tradio que atravs de Gustavo Barroso, Mrio Sette, vai at Jos do Patrocnio, Domingos Olmpio, Rodolfo Tefilo, Flanklin Tvora, Bernardo Guimares e Alencar. Ainda pertencente a essa tendncia, h o grupo do Neonaturalismo socialista, que fundamenta sua viso da realidade em postulados

13

de ideologia poltica, fazendo da fico arma de propaganda e ao revolucionria. o caso entre outras, de parte da obra de Jorge Amado (COUTINHO, 1997, p. 276, grifo nosso).

possvel destacar que no h como considerar essa fase do movimento modernista como algo inovador, com novas tendncias, exploraes temticas e/ou psicolgicas diferentes. As razes do estilo esto plantadas no passado, revisitando estilos literrios e tendo na repetio, a diferena. com esse comportamento de escrita engajada que muitos escritores, em especial Jorge Amado, so duplamente discriminados: primeiro pela opo poltica; e segundo por ser um escritor das massas. Apesar de realizar uma obra literria vasta, coerente, adequada ao contexto social e movida pelos mesmos ideais, a crtica literria o encobre com o manto do silncio. Pensando desta forma, v-se um escritor que tem como objetivo escrever para um grande nmero de leitores e libertar a literatura do domnio das elites. Em 1940, principia o ABC de Castro Alves e em seguida O cavaleiro da esperana, romance biogrfico sobre a vida de Lus Carlos Prestes, um verdadeiro manifesto pela anistia deste lder. Foi publicado na Argentina e vendido clandestinamente e no Brasil atravs de contrabando. Jorge Amado preso novamente e ao ser libertado, escreve: Terras do sem fim (1947). Logo em seguida, edita So Jorge dos Ilhus (1948). Candidata-se a deputado e eleito com votao estrondosa. Darci Ribeiro (1997, p. 27) tece o seguinte comentrio: Jorge o romancista mais frtil do Brasil, entre os bons. o melhor deles, por sua invejvel capacidade de sintonizar seus textos com o gosto das mulheres das classes mdias, que formam a maioria dos leitores brasileiros. O ano de 1948 revela-se sombrio na vida do escritor. A guerra fria e a farsa democrtica que encobrem o pas proporcionam a expulso do Partido Comunista da Cmara

14

Federal. Diante de tal situao, Jorge Amado filiado e militante ativo exila-se em Paris. L convive com personalidades famosas: Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, Pablo Picasso e Camus. Como resultado das presses da Guerra Fria entre Washington e Moscou, sente-se obrigado a mudar para a Tchecoslovquia. No perodo escreve O mundo da paz (1950) conseguindo xito. Posteriormente, resolve escrever uma trilogia sobre a dura tragdia que o Estado Novo: Os speros tempos, Agonia da noite e A luz no tnel sob o ttulo Subterrneos da liberdade (1951). Nesse mesmo ano, recebe o prmio Stalin, o Nobel dos soviticos. Pode-se perceber a valorizao no cenrio internacional, embora desvalorizado e exaustivamente criticado no Brasil. Sai do Partido Comunista em 56, decepcionado com as atrocidades cometidas por Stalin. Prefere, no entanto, evasiva e discretamente comentar o fato Mas na realidade deixei de militar politicamente porque esse engajamento estava me impedindo de ser escritor (AMADO, 1997, p. 51).

2. Fase: Literatura Carnavalizada

Aps muitas viagens ao exterior, quando volta ao Brasil, escreve em 58 Gabriela, cravo e canela. Os 20 mil exemplares do livro esgotam-se em duas semanas e mais de 50 mil em menos de quatro meses. A partir desse romance aparentemente despolitizado, sutilizando a evidncia dos pressupostos ideolgicos, Jorge Amado promove mudana na escritura: iniciase no humor, nos prazeres do corpo e do intelecto. Percebe-se mudana de estilo. Em 59 publica Os velhos marinheiros. Duas novelas compem o livro: As aventuras do comandante Vasco Moroso Arago e A morte e a morte de Quincas Berro Dgua. Nesta ltima, percebe-se um diferenciado trabalho de linguagem, focalizaes variadas,

15

conflitos binrios de vida e morte, inverses axiolgicas, velocidade narrativa proporcionando comentrios positivos, como aparece em:

[...] duas novelas compem o livro. Os velhos marinheiros, que segue o ciclo comeado a traar por Gabriela. Sendo as duas, excelentemente bem realizadas, talvez a primazia caiba a A morte e a morte de Quincas Berro Dgua. H uma evoluo bastante acentuada dos primeiros romances do ento escritor adolescente at a composio de Os Velhos Marinheiros. Naquelas, era um autor desajeitado em lidar com a frase e a fico. Quanto a Os Velhos Marinheiros, em primeiro lugar, uma obra de linguagem, um saber de palavras, tenso e plstico. Como em Gabriela, os personagens no so tirados brutos da matria da vida, mas sim refinados e elaborados segundo uma concepo do homem sadio e herico na sua oposio falsidade da honesta vida burguesa. Quincas Berro Dgua uma figura inimaginvel a no ser na fico. O que no significa que seja irreal. Ele apenas mais rigoroso que a realidade, pois que ela no se concentra em tantas riquezas e capacidade de imprevisto em uma s criatura. Depois de longa trajetria, Jorge Amado entende o papel da fico e o realiza (COUTINHO, 1997, p. 384 - 5).

As palavras de Coutinho, embora conscientes, estigmatizam a figura do autor: ... um autor desajeitado em lidar com a frase e com a fico, um esteretipo que carrega por vinte e oito anos consecutivos. Parece haver sempre depreciao a fazer, como a identificar o nome pecha de best seller ou ainda de subliteratura. Porm, na plenitude da fase em destaque, o quadro de opinies se altera, como se pode observar pelo reconhecimento do prprio crtico:

[...] A novela excelente, reitera, no entanto, os limites de Jorge Amado, posto que, no antigo dilema entre a alegria do baiano e a efetiva misria da sua vida, o autor resolve-se definitivamente ser cantor da primeira, com o que se lhe escapa metade da realidade. Da , que tendo em vista os dois ltimos livros analisados, no seria imprprio traar um paralelo com o Ea de Queirs que de O crime do Padre Amaro chegaria ao bucolismo de A cidade e as serras. O paralelo no perfeito, no entanto a retratao poltica e a superioridade estilstica o tornam vlido [...] (COUTINHO, op. cit, p. 386).

16

Em A morte e a morte de Quincas Berro Dgua, h um visvel abandono dos heris exemplares por uma scia de malandros, adotando por ideologia o amor vida, a luta contra o preconceito burgus. Portanto, tem-se nesta nova abordagem a carnavalizao no acontecimento textual. Numa atitude de certa premonio, adianta o que se tm por Realismo Fantstico brasileiro. Conforme menciona Candido:

[...] na origem o pcaro ingnuo; a brutalidade da vida que aos poucos o vai tornando esperto e sem escrpulos, quase como defesa [...] o pcaro vai-se movendo, mudando de ambiente, variando a experincia e vendo a sociedade num conjunto [...] um elemento importante da experincia picaresca essa espcie de aprendizagem que amadurece e faz o protagonista recapitular a vida luz de uma filosofia desencantada (CANDIDO, 1970, p. 68-9).

O uso da carnavalizao como estilo vai mostrar um enredo que lida com a dinmica das relaes pessoais. DaMatta aponta que:

[...] a originalidade desta fase de Jorge Amado que, ao srio, ele responde como carnavalesco; ao normativo e ao partidrio ele contrape o pessoal, o singular e o milagroso; ao materialismo formalista e retrico, ele ataca com a informalidade e com a religiosidade; vida definida como frmula econmica, ele apresenta o mundo com uma complicada teia de relaes pessoais que sustenta a esperana nas boas amizades e se celebra a relao pela relao (DAMATTA, 1993, p. 128).

E, na medida do possvel, pela investigao que se inicia.

17

Plano da Histria e Plano do Discurso: teoria e prticaPlano da Histria

Grande parte instigante na constituio do complexo universo diegtico que contempla A morte e a morte de Quincas Berro Dgua (1959) a polmica instaurada no que diz respeito s vrias verses de morte de Quincas e tambm s dvidas que essas verses suscitam em torno da personagem protagonista. a manuteno da dvida e dos mistrios por se desvendar que intensificam o estmulo leitura e incrementam a expectativa do enredo. A histria comea com a ltima frase que Quincas teria dito enquanto estava vivo: Cada qual cuide de seu enterro, impossvel no h (Frase derradeira de Quincas Berro Dgua, segundo Quitria que estava ao seu lado) (AMADO, 1959, IX). Por esta afirmao, pode-se perceber que algo inusitado se anuncia. Quincas Berro Dgua o heri, ou melhor dizendo, o anti-heri protagonista da histria. Como explica Reis ; Lopes:

[...] a peculiaridade do anti-heri decorre da sua configurao psicolgica, moral, social e econmica, normalmente traduzida em termos de desqualificao. Neste aspecto, o estatuto anti-heri estabelece-se a partir de uma desmistificao do heri, [...] banalizando a figura do protagonista e apresentando-o no raro eivado de defeitos e limitaes, constitui tambm um fator de desvalorizao que h de ter em conta (REIS ; LOPES, 2000, p. 192).

O leitor sente o convite prazeroso da leitura quando se v envolto nas possibilidades de mortes que a personagem vivencia. A primeira diferena entre romance e realidade que o narrador tem um olhar totalizador a narrativa acontece por causa da morte. A trajetria s se completaria com a morte, pois a partir dela que se tem a possibilidade de criao de arte. Sem o elemento morte no haveria histria ou, pelo menos, se caso existisse, no

18

concentraria a o teor ficcionalizante. Portanto, o contedo do romance para Lukcs (1920, p. 85) a histria dessa alma que vai pelo mundo para aprender a conhecer-se, procura aventuras para nelas se testar e, por essa prova, atinge a sua medida e descobre a sua prpria essncia. O narrador constri o discurso diegtico instaurando as dvidas com elipses narrativas, pausas descritivas, analepses e prolepses, velocidade mais acelerada e mais lenta de acordo com a necessidade, ordem temporal dos eventos narrados sendo apresentada de forma invertida, trazendo o final para o comeo da narrativa, todos esses elementos e muitos outros mais que instigam a curiosidade do leitor, baseando-se consistentemente nessas incertezas. Em sntese, todo o conflito narrativo fica alicerado em torno das mortes e s depois delas, que passa a existir a criao da obra de arte. A histria principia com a dvida que existe sobre a existncia de verses apresentadas da morte de Quincas: duas por parte da famlia e uma por parte dos amigos de cachaa. Quincas foi por vinte e cinco anos Joaquim Soares da Cunha, funcionrio pblico, bem vestido, de boa ndole, caseiro, totalmente controlado pela mulher e filha e sem liberdade alguma em seu prprio lar. Sempre fora pressionado e manipulado e nunca fez por demonstrar a insatisfao. Cansado de toda aquela situao que o constrangia e incomodava, deu um basta: abandona a casa e a famlia e vai viver livremente a vida nas ruas da Bahia. Logo arranja amigos fiis de botequim e deles no mais se separa. Fica muito afeioado de todos: bbados, prostitutas, da gente simples da cidade baixa. L, sente-se livre. Com vida, por estar longe de qualquer tipo de controle. Por ir e vir, sem horrio algum a obedecer.

19

Transforma-se em Quincas Berro Dgua porque desde o dia em que saiu de casa, nunca mais havia tomado gua, somente aguardente. A famlia (Vanda e Leonardo), envergonhada, decide omitir a informao para os netos de que o av est vivo. Para as demais pessoas vizinhos e outras do mbito familiar embora soubessem que Quincas estava vivo, negavam-se em t-lo como membro e a ele nem sequer faziam meno. Portanto, era conveniente que fosse tido como morto socialmente. Um dia, pela manh, aparece um santeiro na casa de Vanda, para contar em detalhes que Quincas fora encontrado por uma preta-velha, no quarto em que morava, morto. Apresenta todos os detalhes porque acredita haver interesse por parte deles em saber dos momentos finais daquele que pertencera famlia. Com pouca pacincia eles escutam a verso do santeiro. E logo em seguida renem-se para decidir o que fariam e como dividiriam as despesas. Estando morto na cama, quando a filha chegou para comprovar-lhe a morte, deparouse com o cadver do pai sujo, desleixado, dedo saindo pelo furo da meia, e no rosto um sorriso cnico. Isto mesmo: ele parecia sorrir o tempo todo de tudo. Fora arrumado em palet e gravata pela funerria, como se, vestindo-o, a filha estivesse recuperando a dignidade e o controle perdidos. Durante o tempo em que Vanda ficou com ele, sentiu no semblante do pai o riso permanente e at parecia ouvi-lo dizer: jararacas. Uma notcia inesperada corre pelas ruas da Bahia: a morte de Quincas Berro Dgua. Em pouco tempo, quatro amigos so informados do falecimento. Assim que a notcia ganhou repercusso nas ruas da cidade, o entristecimento foi geral. Houve comoo geral. Nos saveiros de velas arriadas, os homens do reino de Iemanj no escondiam a decepcionada surpresa: como pudera acontecer essa morte num Tabuo, como fora o velho marinheiro desencarnar numa cama?

20

Quincas muitas vezes dissera que jamais morreria em terra, e que s um tmulo era digno de sua picardia: o mar banhado de lua, as guas sem fim? Ningum haveria de prendlo em sete palmos de terra, ah! Isso no! Exigiria quando a hora chegasse, a liberdade do mar, as viagens que no fizera em vida, as travessias mais ousadas, os feitos sem exemplo. Assim que, um a um, seus amigos ficaram sabendo da triste notcia da morte de Quincas, iam espalhando para toda a cidade baixa e junto com a notcia, a tristeza. Quitria do Olho Arregalado, sua apaixonada e amante, estava inconsolvel e em luto. Os amigos de Quincas diziam que o encontraram num quarto quente da funerria, todo reformado dentro do caixo, vestido de terno, gravata e sapato, impecavelmente vestido em trajes sociais. Os amigos de Quincas chegam ao local em que ele estava sendo velado. Chegam entristecidos, amargurados com a notcia do falecimento, embora duvidassem da morte. A famlia no agentando aquela condio de velrio se retira, deixando Quincas aos cuidados dos amigos de cachaa e de Eduardo, seu irmo. A narrativa, a partir de ento, caminha para o rumo do realismo fantstico, quando os amigos comeam por tirar a roupa com a qual est vestido. Dividem entre eles, por acreditarem que depois de morto no precisaria mais de uma roupa boa para ser enterrado, e tambm porque no reconhecem o amigo naqueles trajes. Eduardo, dono de um modesto comrcio, fica com a responsabilidade de velar durante toda noite o morto. Cansado tambm, decide ir e pede aos amigos de Quincas para velar por ele. Deixa dinheiro para que comprem cachaa, no intuito de distrarem-se durante a noite. Como ganham o dinheiro, saem para compr-la e ao retornarem oferecem-na ao falecido. Como Quincas no toma outra bebida a no ser aquela, sabem antes mesmo de oferecer que no a recusaria. Levados pela comoo, tentam rezar, porm no sabem nenhuma orao inteira. Um misto de sonho e realidade passa a predominar na histria intensificada pela aguardente que culmina em total embriaguez.

21

Acreditam na possibilidade de Quincas estar vivo e que por motivo at mesmo de zombaria recusava parte da bebida oferecida. Como o quadro de morte parece ter se alterado para vida, decidem comemorar a ressurreio e o levam para a rua, para festejar. A cidade baixa, quando sabe da morte, toma um ar de tristeza e os bares at aumentam o preo da cachaa em homenagem partida. As prostitutas no trabalhariam naquela noite em respeito morte do amigo. O luto impera. Porm, quando os amigos de Quincas aparecem com ele, tudo se modifica. Passeiam pelas ruas da Bahia carregando-o nos ombros. As pessoas que o tm por morto, quando o vem embriagado, decidem comemorar. O festejo geral. Eles, junto com Quincas, fazem aquilo que havia sido combinado antes da notcia da morte: bebem bastante e depois disto comeriam moqueca de arraia com Mestre Manuel, no cais da Bahia. Todas as pessoas na rua, nos bares, as amigas prostitutas recuperam a alegria e mudam de comportamento ao perceber que ali est o velho Quincas e recebem de novo como o grande amigo que em to pouco tempo se tornara. Quando os bbados chegam com Quincas ao cais para comer a moqueca, um temporal se arma. Raios cortam o cu iluminando a bela praia baiana. Eles entram na embarcao e nela navegam. Pouco tempo depois, um raio muito forte, conjuntamente com os balanos do mar provocados pelo temporal, podem ter sido os responsveis por jogar Quincas Berro Dgua nas profundezas do mar. A tempestade e a noite escura atrapalham a viso das pessoas que esto na embarcao. Portanto, muitas dvidas ali pairaram. No se tem certeza se Quincas cai ou se joga no mar. Um grande temporal assusta a todos, raios cortam o cu da Bahia e todos pretendem salvar-se. Diante desta situao, os amigos de Quincas que ali esto tm dificuldade em ouvir o que, possivelmente Quincas tenha

22

dito nos momentos finais antes de ter cado ou se jogado no mar. Para tanto, h verses variadas e uma delas :

[...] No meio da confuso Ouviu-se Quincas dizer: - Me enterro como entender Na hora que resolver. Podem guardar seu caixo Pra melhor ocasio. No vou deixar me prender Em cova rasa no cho. E foi impossvel saber O resto da sua orao. (AMADO, 1959, p. 95-6)

Plano do Discurso O exerccio literrio coloca em ao uma srie de signos motivados, que tem por funo especfica gerar efeitos de sentido polivalentes, traduzindo-se em processo que tende para a afirmao de princpios axiolgicos em recorte ideolgico. Dada a natureza do advento literrio, as marcas produzidas pelo condutor do discurso quando da composio da histria que narra apresentam-se como indicadores das estratgias selecionadas por ele, com o fito de promover a construo de uma determinada seqncia narrativa, que por sua vez, impressiona os sentidos de modos os mais variados. Da concebermos no discurso literrio a necessidade de uma releitura , para se desvendar as marcas estruturantes da linguagem nos significantes simblicos articulados. Deste modo, pode-se observar dada a natureza do advento literrio que so dois os planos que esto em ordem direta com a formulao do advento narrativo: o que se refere ao que se conta (plano da histria) e outro que se abre para o como se conta o que se conta (plano do discurso). Melhor dizendo, que a histria que se narra e a organizao especfica que se opta para contar essa histria mantm entre si dilogo constante, evidenciando prerrogativas adequadas para tal manipulao. Neste sentido, tem-se

23

que a comunicao entre as partes, mantm entre si mais que uma relao, implicando numa correlao. De acordo com Cintra:

[...] Vale dizer: chamamos de enunciado o texto que no faz referncia ao seu aparecimento enquanto produo lingstica; e de enunciao o texto que no seu transcorrer assumido por um emissor especfico em certas circunstncias de carter espacial e temporal [...] (CINTRA, 1981, p. 51).

Um fator relevante a destacar o de que dependendo das condies em que seja efetuada a enunciao, muda-se pragmaticamente o sentido do enunciado. O enunciado pode limitar-se, mas esse sentido pode ser gerado pela enunciao, dependendo do contexto em que se insira. Mas para que tais conexes de compreenso entre enunciao e enunciado sejam estabelecidas, preciso que narrador e narratrio estabeleam entre si o mesmo cdigo. Na observao de Reis ; Lopes tem-se que:

[...] para que a comunicao narrativa integralmente se concretize, necessrio que o elenco de cdigos que estruturam a narrativa seja comum ao narrador e ao narratrio , ou passem a s-lo pela atividade pedaggica do primeiro: pode ocorrer que, dado como adquirido pelo narratrio o conhecimento do cdigo lingstico e dos cdigos narrativos (p. ex., procedimentos de organizao do tempo ou de representao de pontos de vista), o narrador se esforce por impor um cdigo de incidncia semntico-pragmtica como o ideolgico, usando para isto estratgias adequadas, de ndole persuasiva e argumentativa. Tudo isso, como bvio, sob a gide dessa que a aptido basilar de que todo o narrador carece para que a comunicao narrativa se estabelea e se prolongue: a capacidade de seduo do destinatrio, baseada no suscitar do seu interesse e curiosidade, capacidade de um modo geral relacionada com a vertente pragmtica (v.) da comunicao narrativa (REIS ; LOPES, 2000, p. 21-2).

Diante das consideraes apresentadas, tem-se convico de que a premissa bsica seja partilhar de um cdigo comum para que se realize a comunicao entre narrador e narratrio. Mas, s partilhar da interao de um mesmo cdigo no o suficiente para

24

prender o receptor obra. Conhecendo esta realidade a narrativa no cessa de se afirmar como modo de representao literria preferencialmente orientada para a condio histrica do Homem, para o seu devir e para a realidade em que ele se processa, no sentido de sublinhar tal orientao (Reis ; Lopes, 2000, p. 68). Deste modo, pode ser que atravs de um discurso potico dobrado em si mesmo pelas articulaes institudas pelo narrador no terreno textual, associado histria que se comporte como verossmil, so os elementos responsveis por proporcionar a avidez de uma leitura que pode espelhar ou confirmar a vida em plenitude de representao. Percebe-se que, para a construo ficcional, alguns elementos importantes da narrativa so acionados para comporem a estrutura textual. ao conjunto e ao efeito dessa unio que se chega ao texto propriamente dito. A complexidade na instncia narrativa posta em ao para que se configurem aos olhos do leitor uma viso imagtica textual de um quadro mpar. O plano da histria encarrega-se de dar conta da apresentao de cenas conflituosas; da caracterizao dos personagens; da ilustrao de cenrios sociais atravessados pelos discursos dos personagens ou do narrador; os tratamentos temporais que o desenrolar exige; comporta motivos que sugerem uma anlise que ultrapasse o domnio da sucessividade e concatenao dos eventos que a integram. Para que o estudo analtico esteja completo, chega-se ao plano do discurso. Neste, a complexidade vem reforada pelas relaes estruturais possibilitadas pelos recursos retricos da linguagem, no domnio da construo do prprio discurso, como por exemplo: tempo de voz selecionada e junto com ela a focalizao pertinente, as pausas descritivas, sumrio, elipse, etc. Leva-se em considerao tambm que esses elementos acionados no texto servem como marcas enuncivas que o narrador deixa no enunciado, exigindo do leitor para compreenso efetiva do objeto literrio competncia na recepo. Deste modo, a exigncia instaurada de uma competncia comunicativa conjunta: de um lado, o narrador

25

com a ativao de um cdigo veiculador de uma determinada mensagem impregnada de smbolos; e do outro lado o leitor que pretende e necessita entend-la como tal. Neste sentido para Genette:

[...] uma situao narrativa, como qualquer outra, um conjunto complexo no qual a anlise, ou simplesmente a descrio, s pode distinguir retalhando-o num tecido de relaes estreitas entre o ato narrativo e seus protagonistas, as suas determinaes espacio-temporais, a sua relao com as outras situaes narrativas implicadas na mesma narrativa, etc. As necessidades da exposio constrangemnos a essa violncia inevitvel pelo simples fato de o discurso crtico, no mais que qualquer outro, no conseguir dizer tudo ao mesmo tempo. Consideraremos, pois sucessivamente, aqui tambm, elementos de definio cujo real funcionamento simultneo, religando-os no essencial, s categorias do tempo da narrao, do nvel narrativo e da pessoa, ou sejam, as relaes entre o autor e o narrador eventualmente o seu ou os seus narratrios - e a histria que conta (GENETTE, 1972, p. 214).

Os planos da histria e do discurso completam e interpenetram-se na estrutura complexa em que se constitui a narrativa. Desvendar os sentidos fundamentais que neste tecido ficcional se revelam, depende nica e exclusivamente de uma sntese interpretativa consumada pelo narratrio. Portanto, relacionar, mesmo que sem comprovao terica, as implicaes a que esto submetidos todos os elementos que fazem partem da narrativa, exige do leitor uma competncia tal para que se viabilizem as dominantes ideolgicas que o texto pretende veicular. Sabe-se que toda narrativa empenha-se em retratar uma histria de mudanas, que h a necessidade de rupturas quer sejam: espaciais, temporais, de personagens, etc... Essas rupturas podem afetar seres humanos individuais ou coletivos. Para tanto, uma das selees a serem efetuadas dentro da diegese, a escolha adequada de personagens que veiculem o propsito das idias que estaro disposio na instncia textual. Para se chegar aos personagens, h o

26

elemento narrador, que aquele que se incumbir de trabalhar numa manobra fantstica a presena ou ausncia mais acentuada de um ou outro personagem. O narrador tem papel essencial no que diz respeito a esta distribuio geradora de sentidos que permitiro ao leitor a partir de ento constituir a diegese de acordo com as tendncias que ele pretende destacar. Para intermediar este espao existente entre o leitor e a narrativa, aparece em cena a figura do narrador. Para que isso acontea, pressupe-se que todo enunciado necessite de pessoa/voz que exera o domnio da fala na fico: um autor/narrador. O estudo da narrativa evidencia certa polmica acerca dessas figuras. Para Genette, o narrador o responsvel pelo processo da narrao no campo da ficcionalidade, e o autor, aquele ser emprico responsvel pela criao de tudo que faa parte da diegese. O narrador :

[...] de fato uma inveno do autor; responsvel, de um ponto de vista gentico, pelo narrador, o autor pode projetar sobre ele certas atitudes ideolgicas, ticas culturais etc., que perfilha, o que no quer dizer que o faa de forma direta e linear, mas eventualmente cultivando estratgias ajustadas representao artstica dessas atitudes: ironia, aproximao parcial, construo de um alter ego etc [...] (REIS ; LOPES, 2000, p. 62).

Percebe-se, ento, pelas evidncias, a responsabilidade que recai sobre a figura do narrador dentro do mundo da narrativa. A partir dos posicionamentos elencados, acredita-se pairar menos dvidas envolvendo estes termos, e ampliar a certeza de que pertencem a nveis diferentes: o autor, ser verdico e real, e o narrador, ser ficcional instaurado pelo autor para conduzir o advento literrio. A voz, tanto quanto modo e tempos narrativos bem como as implicaes dentro da instncia narrativa, engloba dois protagonistas bsicos: o narrador e o narratrio. Para tanto, explica-se que:

27

[...] a voz tem que ver com um processo e com as circunstncias em que ele se desenrola; o processo o da enunciao narrativa, quer dizer, o ato da narrao de onde decorre o discurso narrativo propriamente dito e a representao diegtica que leva a cabo; as circunstncias so as que envolvem esse processo,

circunstncias de ordem temporal, material, psicolgica, etc. que condicionam o narrador de forma varivel, projetando-se indiretamente sobre o discurso enunciado e afetando mais ou menos o narratrio [...] compreende-se assim que a voz abarque trs domnios fundamentais para a caracterizao da voz narrativa: o tempo em que decorre a narrao, relativamente quele em que ocorre a histria, o nvel narrativo em que se situam os intervenientes no processo narrativo e aquilo sobre o que este versa e a pessoa responsvel pela narrao [...] (GENETTE, 1972, p. 76).

Partindo-se do pressuposto que voz, modo e temporalidade constroem o discurso, possvel descortinarem-se duas situaes essenciais. A primeira, as conexes estreitas que envolvem simultaneamente o plano da histria e o plano do discurso. E a segunda, a relevncia que este domnio detm dado o fato de sua grande complexidade. Em nosso caso especfico de anlise A morte e a morte de Quincas Berro Dgua de Jorge Amado, a inteno da escolha adequada com o tempo da voz posterior, pode ser um elemento facilitador na estratgia de se trabalhar com os rastros narrativos geradores de sentidos no enunciado, a tentativa de se demonstrar que as rupturas no campo textual e as conseqncias por elas trazidas no se constituem numa atitude incua, e sim carregada de significao e conseqencialidade criativas. Isso vai ocorrer uma vez que tradicionalmente este o tempo de voz utilizado pelo tratamento clssico do desempenho literrio. Nesta obra, e pela estratgia praticada, Jorge Amado vai transgredir o sentido tradicional valendo-se dele para gerar um jogo contundente de imagens e performances, que fazem deste pequeno discurso um grande acontecimento artstico e levando-se em conta a histria do autor por que no revolucionrio.

28

Trabalhar com tais elementos implica em muitos fatores. Para tanto, esta seleo exige clareza e lucidez para demonstrar com pertinncia a carga de valores que a narrativa pretende veicular. Toda e qualquer manobra utilizada pelo narrador precisa ser entendida como um elemento artstico no tecido ficcional que se configure como item de reflexo, pois pode traduzir a articulao dialtica para a fundamentao de vetores ideolgicos. Pensando no tempo vinculado ordenao dos eventos narrados na histria de Quincas Berro Dgua, tem-se uma inverso da ordem, pois pelo final da histria que a intriga principia. O narrador bem articula esta inverso. Utiliza-se de um alcance

considervel, e instaura, a partir da antecipao da concluso da histria, a dvida geradora de todo o conflito. Alcance vem a ser um domnio usado pelo narrador que apresenta ao leitor informaes do futuro (prolepse) ou passado (analepse) que se faam necessrias ao bom entendimento da diegese. Em algumas partes, o narrador sente a necessidade de interromper momentaneamente a histria para se valer deste recurso. Percebe-se na articulao do narrador esta atitude denominada alcance na condio de prolepse externa e interna. Prolepse um domnio que, exerce dentro da narrativa, exerce a funo de antecipar fatos para o leitor, numa atitude quase que preditiva. externa quando ultrapassa, neste futuro, os limites ficcionais da narrativa primeira; e interna quando se proceder o contrrio. Trabalhando de mos dadas, alcance e amplitude de uma anacronia no exemplo a seguir a prolepse externa, vem demonstrar respectivamente a distncia que se projetar no futuro e quanto o narrador vai utilizar de discurso para dar conta deste signo naquilo que deseja falar. Como no exemplo:

29

1. AT HOJE PERMANECE CERTA CONFUSO EM TORNO DA morte de Quincas Berro Dgua. Dvidas por explicar, detalhes absurdos, contradies no depoimento das testemunhas, lacunas diversas. No h clareza sobre hora, local e frase derradeira [...] (AMADO, 1959, p. 1)

[...]

2. (Como escreveria um jovem autor de nosso tempo) (AMADO, op.cit, p. 2)

[...] 3. [...] de agora em diante j no seria a memria de um aposentado funcionrio da Mesa de Rendas Estadual perturbada e arrastada na lama pelos atos inconseqentes do vagabundo em que ele se transformara em vida. Chegara o tempo do merecido descanso. J poderiam falar livremente de Joaquim Soares da Cunha, louvar-lhe a conduta de funcionrio, de esposo e pai, de cidado, apontar suas virtudes s crianas como exemplo, ensin-las a amar a memria do av, sem receio de qualquer perturbao [...] (AMADO, op.cit, p. 7)

Esses dois primeiros exemplos podem ser considerados tpicos de prolepse externa. Mesmo que desconhea esse domnio, o leitor aquele que concretiza, no momento da leitura, a atualizao da manuteno da dvida. possvel perceber a habilidade do narrador que se utiliza do leitor para ampliar cada vez mais o alcance obtido com este efeito. Se o alcance atinge grandes propores de distncia do fato narrado, isto j no acontece, neste exemplo, com a amplitude. Os exemplos mencionados demonstram que o narrador se vale de poucas linhas, ou at mesmo de poucas palavras, para consegui-lo com plenitude. Se a prolepse tem a funo de antecipar para o leitor fatos futuros, a analepse encarrega-se de fazer um movimento temporal retrospectivo, destinado a contar eventos anteriores ao presente da ao (analepse interna), e em alguns casos, num alcance maior, anteriores ao incio da diegese (analepse externa). O exemplo a seguir se constitui em analepse interna:

30

[...] em realidade, num esforo digno de todos os aplausos, a famlia conseguira que assim brilhasse, sem jaa, a memria de Quincas desde alguns anos, ao decret-lo como morto para a sociedade. Dele falavam no passado quando, obrigados pelas circunstncias, a que a ele se referiam. Infelizmente de quando em vez, algum vizinho, um colega qualquer de Leonardo, amiga faladeira de Vanda (a filha envergonhada), encontrava Quincas ou dele sabia por intermdio de terceiros. Era como se um morto se levantasse do tmulo para macular a prpria memria [...] (AMADO, op. cit, p. 6).

Esses signos de incidncia temporal instaurados na rede da intriga so meticulosamente articulados pelo narrador. Explorando ainda os domnios do tempo na narrativa, a anisocronia que se constitui em um discurso, que pode desenvolver-se num tempo mais prolongado do que o da histria, tem sua fora depositada na elipse. Elipse toda forma de expresso de lapsos temporais mais ou menos longos, uma supresso de elementos discursivos suscetveis de serem recuperados pelo contexto em determinado momento da diegese:

[...] cometendo uma injustia, atribuem a esses amigos de Quincas

toda a

responsabilidade da malfadada existncia por ele vivida nos ltimos anos, quando se tornara desgosto e vergonha para a famlia. A ponto de seu nome no ser pronunciado e seus feitos no serem comentados na presena inocente das crianas, para as quais o av Joaquim, de saudosa memria, morrera h muito, decentemente, cercado da estima e do respeito de todos [...] (AMADO, op. cit, p.3, grifo nosso)

[...]

- preciso avisar... -Avisar? A quem? Pra qu? -A tia Marocas e a tio Eduardo ... Aos vizinhos. Convidar para o enterro. -Para que avisar logo aos vizinhos? Depois a gente conta. Seno vai ser um converseiro danado... -Mas tia Marocas... -Falo com ela e com Eduardo...Depois de passar na Repartio. Anda depressa seno esse tal que veio trazer a notcia sai por a espalhando...

31

-Quem diria... Morrer assim, sem ningum... -De quem a culpa?Dele mesmo, maluco... (AMADO, op.cit, p.11)

A parte selecionada em itlico, bem como o dilogo entre Vanda e Leonardo, demonstram as elipses de que se vale o narrador para neste determinado momento reter essas informaes e, para num outro posterior, apresent-los preenchendo a lacuna anteriormente formada. Quando se faz determinada opo, excluem-se outras possveis, e para este texto de Jorge Amado do universo romanesco A morte e a morte de Quincas Berro Dgua, a escolha efetuada foi de um narrador heterodiegtico com voz num tempo de narrativa posterior, que se acredita ser o que melhor atenderia aos propsitos de manipulao ideolgica. Neste caso, o narrador exerce domnio completo, tendo oniscincia do universo diegtico, focalizao zero, e com isso tem poder absoluto sobre todos os personagens. Porm, dissimula em muitos momentos essa posio demirgica promovendo a dvida geradora de todo o conflito na instncia narrativa. Desta unio do tempo de narrao posterior e narrador heterodiegtico verifica-se a oportunidade de desfrutar uma maior facilidade em manipular o discurso, oscilar a narrativa em pontos de vista diferentes, promover aproximao e afastamento dos personagens atravs do discurso, dissimular sua oniscincia e, com isso, proporcionar vises opostas que ora problematizam, ora mascaram os fatos ficcionados. Para Reis ; Lopes (2000, p.19) em narrativas de narrador heterodiegtico ... aflora por vezes um eu quase sempre opinativo que, em termos narratolgicos, deve ser imputado no a um hipottico autor implicado, mas ao narrador heterodiegtico, capaz de inscrever no enunciado tantos juzos subjetivos discretos como um discurso pessoal insusceptvel de pr em causa o seu estatuto semionarrativo. E ainda:

32

[...] pela tentativa no raro assumida pelo narrador de adotar uma atitude neutra perante esse universo; finalmente, o processo narrativo instaura uma dinmica temporal, imposta desde logo pelo devir cronolgico em princpio inerente histria relatada e em segunda instncia perfilhada tambm pelo discurso, uma vez que o prprio ato de contar no s tenta representar essa temporalidade como se inscreve ele prprio no tempo [...] (REIS ; LOPES, op.cit, p. 67).

No se pode negar que com o procedimento de tentativa de neutralidade do narrador esteja privilegiando algumas vises em detrimento de outras possveis num ir e vir constantes. Dando vazo a este comportamento seletivo de eventos narrados, quem sabe, se esta estratgia no esteja ligada ao fato de o narrador tentar persuadir o leitor para o universo de valores que acredita como correto. Um texto com narrador heterodiegtico aquele em que se pode narrar os fatos com imparcialidade. Desta forma, h uma maior possibilidade de no comprometer a narrativa pelo distanciamento existente entre o condutor do discurso e daquilo que ser relatado, assumindo portanto a condio exclusiva de narrar. Algumas vezes isto pode ocorrer, mas em outras este narrador heterodiegtico com voz num tempo de narrao posterior, revela-se intruso, estabelecendo julgamentos de valor, opinando sobre condutas, interferindo no

universo da diegese com a sua sano, fazendo-se onipresente na intriga. O narrador pe em causa o sistema de valores vinculado educao e s caractersticas da personagem, bem como ao meio cultural em que vive. desta maneira que o discurso narrativo se faz em ao, porque por esta via que as intruses do narrador acabam por se projetar sobre o leitor, pretendendo influenci-lo em suas crenas e valores. Como a intruso se constitui numa forma de julgar, parece haver uma contraposio da funo do quadro do narrador, que inicialmente supunha-se servir somente para contar. Conforme diz Reis ; Lopes (2000, p. 260) essas intruses so quase sempre denunciadas no discurso por registros do discurso dotados de diversos graus de incidncia

33

apreciativa e judicativa. o que parece acontecer neste romance de Jorge Amado. O leitor ao julgar o narrador pode perceber a manifestao da subjetividade projetada no enunciado. Para Cintra,

[...] so as marcas do processo da enunciao que permeiam o enunciado. preciso ento perseguir os elementos lingsticos que indicam o ato de enunciao, ou seja, os elementos que, embora pertencendo lngua, no podem prescindir, para o seu sentido, de certos fatores variveis de um ato de enunciao para o outro. So os shifters ou signos diticos, estudados de modo geral pelos lingistas, dentre os quais vale destacar Jakobson e mile Benveniste. Para este, a converso individual da lngua em discurso que caracteriza a enunciao. O ato individual que pe a lngua em funcionamento introduz, de incio, um emissor como parmetro das condies necessrias enunciao (CINTRA, 1981, p. 50).

O narrador heterodiegtico, dentro deste contexto, trabalha deixando marcas discursivas, pistas que precisam ser decodificadas. Se trabalhar com narrador e tempo da narrao j se constitui em dificuldade, a questo se v intensificada no mbito dos nveis que a narrativa pode ter. Para Genette (1972, p. 227) essa diferena de nvel est dizendo que todo acontecimento contado por uma narrativa est num nvel diegtico imediatamente superior quele em que se situa o ato narrativo produtor desta narrativa. Extradiegtico o nvel que o narrador assume para narrar os fatos, quando fora da instncia textual, conforme se demonstra:

[...] OS PATIFES QUE CONTAVAM, PELAS RUAS E LADEIRAS, EM frente ao mercado e na feira de gua dos Meninos, os momentos finais de Quincas (at um folheto com versos de p-quebrado foi composto pelo repentista Cuca de Santo Amaro e vendido largamente) desrespeitavam assim a memria do morto, segundo a famlia (AMADO, 1959, p. 5).

34

Pertencente a este nvel, o condutor do discurso narra os fatos tentando manter um distanciamento aparentemente neutro, colocando-se num nvel diferente em que se encontram os personagens. Assumindo um nvel externo ao da narrativa, trabalha com mais conforto para contar aquilo que j sabe, mas que finge no saber, e com isso, responsabiliza-se por gerar efeitos de sentido com a dosagem de informaes que oferece ao leitor. De posse desta condio demirgica esquiva-se dissimulando a oniscincia, quando no registro do discurso em dois momentos diz os patifes que contavam numa suposta condio que ele, narrador, est contando algo que soube atravs dos patifes; e tambm quando fala segundo a famlia. Nesta situao, o narrador obscurece o domnio do conhecimento que tem da narrativa para propositalmente apresentar os fatos como se ele estivesse narrando somente aquilo que lhe fora contado. Com esta estratgia discursiva em ao presume-se para a economia narrativa que este seja um procedimento premeditado de se estabelecer um dilogo ameno com o leitor, visando atingir a posturas ideolgicas de aproximao e de afastamento, e fazendo meno de conduzi-lo pelos meandros da histria. Insinuando-se discreta e dissimuladamente, as relaes dialgicas entre narrador e narratrio se constituem numa pista importante, porque embora o narrador parea no querer se envolver, ele o faz. Pode nesta posio exercer uma sano sobre determinadas aes dos personagens. O narrador adota uma conduta de aproximao e simpatia pelos amigos bbados de Quincas quando no os atinge com nenhum julgamento depreciativo. Mas aos parentes de Quincas, o condutor do discurso exerce uma postura de repulsa e tece comentrios avaliativos negativos. Em A morte e a morte de Quincas Berro Dgua, o narrador opera a passagem de elementos de um nvel narrativo para outro, trabalhando num jogo oscilante de extra e intradiegese.

35

Pensando assim Genette referenda que:

[...] toda a intruso do narrador ou do narratrio extradiegtico no universo diegtico (ou de personagens diegticas num universo metadiegtico, etc.) ou inversamente, como em Cortazar, produz um efeito de extravagncia quer burlesco (quando apresentada, como fazem Sterne ou Diderot, em tom de gracejo), quer fantstico [...] (GENETTE, op.cit, p. 244).

o que parece ocorrer justamente em:[...] O que nos leva a constatar ter havido uma primeira morte, seno fsica pelo menos moral, datada de anos antes, somando um total de trs, fazendo de Quincas um recordista de morte, um campeo do falecimento, dando-nos o direito de pensar terem sido os acontecimentos posteriores a partir do atestado de bito at seu mergulho no mar [...] (AMADO, op.cit, p. 3, grifo nosso). [...]

[...] e, apesar disso, h quem negue [...] ou no mar da Bahia para nunca mais voltar. Assim o mundo, povoado de cticos e negativistas, amarrados, como bois na canga, ordem e lei, aos procedimentos habituais, ao papel selado. Exibem eles, vitoriosamente, o atestado de bito assinado pelo mdico quase ao meio-dia e com esse simples papel s porque contm letras impressas e estampilhas tentam apagar as horas intensamente vividas por Quincas Berro Dgua at sua partida, por livre e espontnea vontade, como declarou em alto e bom som, aos amigos e outras pessoas presentes (AMADO, op.cit, p. 2, grifo nosso).

Intradiegtico quando o narrador um personagem, conta a histria da forma como entende e percebe os acontecimentos. Por isso, situa-se numa posio de contar, um pouco mais limitada, pois sendo um dos personagens, geralmente tem uma viso parcial, e na maioria das vezes, quase que obrigado a trabalhar com a prerrogativa das hipteses. uma condio diferente da citada anteriormente (extradiegese). Ou ainda pode oferecer duas possibilidades. Primeira: quando o narrador heterodiegtico/extradiegtico momentaneamente invade o universo ficcional das personagens e junta-se a eles para estabelecer juzo de valor

36

(intruso do narrador), recebe a classificao temporria de intradiegtico na proporo da intruso;

[...] E memria de morto, como se sabe, no para estar na boca pouco limpa de cachaceiros, jogadores e contrabandistas de maconha [...] (AMADO, op. cit, p. 5).

E a segunda possibilidade, quando o narrador heterodiegtico/extradiegtico se vale do olhar de uma personagem, num domnio de focalizao interna, para atravs dela, emitir julgamentos como em:

[...] (Vanda ficou imvel), olhando o rosto de barba por fazer, as mos sujas, o dedo grande do p saindo da meia furada [...] era um morto pouco apresentvel, cadver de vagabundo falecido ao azar, sem decncia na morte, sem respeito, rindo-se cinicamente, rindo-se dela, com certeza de Leonardo, do resto da famlia. Cadver para necrotrio, para ir ao rabeco da polcia servir depois aos alunos da Faculdade de Medicina nas aulas prticas, ser finalmente enterrado em cova rasa, sem cruz e sem inscrio. Era o cadver de Quincas Berro Dgua, cachaceiro, debochado e jogador, sem famlia, sem lar, sem flores e sem rezas. No era Joaquim Soares da Cunha, correto funcionrio da Mesa de Rendas Estadual, aposentado aps vinte e cinco anos de bons leais servios, esposo modelar, a quem todos tiravam o chapu e apertavam a mo. Como pode um homem, aos cinqenta anos, abandonar a famlia, a casa, os hbitos de toda uma vida, os conhecidos antigos, para vagabundear pelas ruas, beber nos botequins baratos, freqentar o meretrcio, viver sujo e barbeado, morar em infame pocilga, dormir em um catre miservel? [...] (AMADO, op. cit, p. 13-5).

Parece haver por parte do narrador a inteno de apresentar-se retoricamente distante da famlia e com ela induzir o leitor a adotar o mesmo comportamento. O narrador, em muitos momentos, quando a focalizada Vanda, serve-se do expediente de trabalhar com uma focalizao interna. Ao optar por essa focalizao, simultaneamente ocorre uma pausa narrativa, ou melhor, h uma interrupo momentnea da histria, quando ele desvenda os pensamentos de Vanda para o leitor. Com este procedimento expe a desumanidade, a raiva, o

37

descontrole, o desejo de vingana revelados na filha por no conseguir exercer o domnio de manipulao sobre o pai. No universo social de valores, Vanda se configuraria um personagem que poderia ser representante do eixo da falsidade: no sendo boa, precisa aparentar s-lo. Para fazer isto, o narrador lana mo de uma grande quantidade de informaes sobre a personagem, na inteno de que o leitor conhea os seus pensamentos mais sombrios e entre em conflito ao se deparar com as normas sociais estabelecidas onde cada um deva cumprir o seu papel. Mas, quando se faz prximo aos amigos de Quincas, ratifica o depoimento por eles narrado. Ele se faz onipresente quando se posiciona no mesmo nvel pertencente ao dos personagens, para a introduzir mais uma voz annima. No exemplo j citado o que nos leva a constatar ter havido uma primeira morte, seno fsica pelo menos moral, datada de anos antes, somando um total de trs, fazendo de Quincas um recordista da morte, dando-nos o direito de pensar... (AMADO, op.cit, p. 3) alm da mudana de nvel, o narrador dialoga e inclui junto ao seu discurso o narratrio, num procedimento de tentativa de persuaso para o mundo de valores que ele julga correto. Estabelece, nesta conduta de incluso, um engajamento afetivo com aquela gente simples. De posse desta conduta, trabalha tambm na mesma tentativa com o narratrio. Assumindo esta posio, externa uma simpatia particular por Quincas e os amigos bbados, porque na instncia narrativa no se verificam registros avaliativos negativos para com estes personagens. A diegese muda de percurso e ganha um tom irnico, quando o narrador, nos nveis extradiegtico e intradiegtico, tece comentrios depreciativos sobre o comportamento familiar e ainda abre possibilidades de situ-los fora da condio humana. Parece que a conduta desumana ocupada pela famlia no universo romanesco tem a funo de provocar repulsa no leitor.

38

No tecido ficcional, as verses das mortes apresentadas, geradoras de polmica, aparecem acompanhadas de tempos verbais que se alternam: para o relato supostamente executado pelos amigos de Quincas tempo verbal no passado, estabelecendo uma distncia temporal maior dos fatos. Pode ser chamado de presente histrico ou narrativo que tem um valor temporal de pretrito perfeito, que surge para atualizar um evento passado, dando-lhe maior vivacidade. colocado de maneira tal pelo narrador que permite entre eles uma grande afinidade identificada pelos registros do discurso de como so veiculadas essas idias. J para a famlia tempo verbal no presente estabelecendo, talvez, uma idia de convico impositiva ao descrever os fatos, e um contar que desfila um ar autoritrio aos olhos do receptor do texto, promovendo um afastamento pela maneira como este discurso dado a conhecer e pelo comportamento por eles adotado. Abrangendo ainda a instncia voz, com relao ao modo narrativo, uma variao possvel que confere narrativa maior ganho de efeitos discursivos. Para Genette, essa configurao subdivide-se em distncia e perspectiva. No primeiro, a atuao do narrador trabalha em duas situaes distintas como se fosse uma cmera: prxima ou distante. Estando prxima, apresenta uma grande quantidade de detalhes (cena), porm compromete a viso do todo, perde-se o referencial. Na Cena, o domnio da velocidade imprimida no relato pode se constituir numa tentativa mais aproximada de imitar atravs do discurso a durao da histria (isocronia). Portanto, ao utilizar-se da cena o narrador parece respeitar as falas e a ordem no seu desenvolvimento. No segundo, a atuao do narrador trabalha promovendo um distanciamento maior, ganhando uma viso panormica, porm perdendo em relao aos detalhes (sumrio). No sumrio h uma predominncia de uma atitude fortemente intrusiva do narrador que subverte o regime durativo da histria. Constitui-se num signo temporal que representa esse desajustamento de durao entre o tempo da histria e o tempo do discurso.

39

Esses dois modos de representao fazem-se presentes nas obras literrias mas, de acordo com os propsitos que o narrador queira alcanar, pode privilegiar um em detrimento do outro, ou at mesmo intercalando os dois, instaurando assim a situao pretendida e os efeitos de retrica dentro da distncia viabilizada. A seleo da manifestao lingstica adequada para Sumrio quando atravs dele ocorre uma sntese das idias oferecidas ao leitor e com isto mostrar somente aquilo que lhe convier. o que parece acontecer em Berro Dgua. A distncia entre o narrador e o amigos bbados parece inexistir. Como eles no tm voz no universo diegtico, o narrador minimiza a distncia que os separa, quando se nivela aos personagens contando tudo por eles e estabelece nesta condio julgamentos, posturas, num propsito de pela unio de foras oportunizar uma fala mais contundente, dando-lhes a oportunidade merecida: a de pelo menos existir. Aproxima, atravs da afetividade, ou at mesmo de um pretenso discurso neutro, uma idia de afastamento temporal discursivo no intuito de poder haver, pela distncia dos fatos narrados, algum equvoco de julgamentos precipitados. Como em:

[...] O santeiro, velho e magro, de carapinha branca, estendia-se em detalhes: uma negra, vendedora de mingau, acaraj, abar e outras comilanas, tinha um importante assunto a tratar com Quincas naquela manh [...] (AMADO, op. cit, p.7, grifo nosso).

O pretrito imperfeito promove uma distncia temporal maior, e os fatos narrados com esta distncia ficam associados ao fato de que o contar se far baseado em uma recuperao pela memria. possvel ento que no sumrio os fatores de aproximao e de afastamento temporais evidenciam benefcios e tenham por finalidade promover a carncia afetiva, conjuntamente com aproximao, no ato da leitura. Com a utilizao deste recurso e por ele no oferecer grande detalhamento e pormenorizao ao leitor tem-se, por assim dizer, uma omisso de informaes. Essa elipse narrativa permite apresentar controladamente s

40

aquilo que a focalizao do narrador deseja mostrar, pois so essas informaes adjacentes ao texto que garantiriam uma melhor anlise destes personagens. Se a cena proporciona um detalhamento tal e aproximao intensa do objeto descrito que permitir ao receptor do texto conhecer muito da personagem a ponto de estabelecer juzo de valor, o sumrio se constitui num domnio onde o narrador conta os fatos pelo personagem, de forma sucinta, rpida com poucos detalhes. Com estes dispositivos acionados, o narrador vai dar a conhecer ao leitor, somente aquilo que lhe convier. O mais interessante perceber que o imbricamento surte o efeito desejado. A mistura destes dois elementos discursivos trabalhando em harmonia traz a conseqncia na focalizao apresentada em:

[...] Mas agora sentia-se contente: olhando o cadver no caixo quase luxuoso, de roupa negra e mos cruzadas no peito, numa atitude de devota compuno. As chamas das velas elevavam-se, faziam brilhar os sapatos novos. Tudo decente, menos o quarto, claro. Um consolo para quem tanto se amofinara e sofrera. Vanda pensou que Otaclia sentir-se-ia feliz no distante crculo do um universo onde se encontrasse. Porque se impunha finalmente sua vontade, a filha devotada restaurara Joaquim Soares da Cunha, aquele bom, tmido e obediente esposo e pai: bastava levantar a voz e fechar o rosto para t-lo cordato e conciliador. Ali estava de mos cruzadas sobre o peito. Para sempre desaparecera o vagabundo, o rei da gafieira, o patriarca da zona do baixo meretrcio. (AMADO, op.cit, p. 32, grifo do autor).

Trabalhar com a predominncia do sumrio neste texto, garante ao narrador selecionar detalhes, ocultar outros que sero oferecidos ao leitor. No exemplo acima, disponibiliza este trecho com predomnio da cena atravs da focalizao interna de Vanda. Permite com isto o leitor poder recriar pela descrio pormenorizada duas imagens: a imagem do quarto pelo detalhamento oferecido atravs de Vanda, e a possibilidade de se imaginar a vontade de controle exercido pela filha de Quincas, numa postura de autoritarismo. Usando a personagem como sendo momentaneamente a detentora da focalizao, faculta do elemento focalizado uma imagem particular e passa de objetiva para uma relao subjetiva dessa imagem. Esse

41

conjunto de marcas textuais impostas pela viso limitada e gradual da personagem da histria, bem como a subjetividade, so em princpio respeitadas pelo narrador que, ocultando momentaneamente os valores que acredita, expe no enunciado as dominantes ideolgicoafetivas da personagem focalizada. Mas, logo em seguida, ao recuperar a voz com uma narrao demirgica, controla soberanamente na economia da narrativa as personagens, a apreciao que far de cada uma delas, o tempo em que se movem, os cenrios em que se situam etc. A seleo lingstica efetuada do universo das palavras j marca subjetiva explcita do narrador. Como em:

[...] A famlia, apoiada por vizinhos e conhecidos, mantm-se intransigente na verso da tranqila morte matinal, sem testemunhas, sem aparato, sem frase, acontecida quase vinte horas antes daquela outra propalada e comentada morte na agonia da noite, quando a lua se desfez sobre o mar e aconteceram mistrios na orla do cais da Bahia... A famlia do morto sua respeitvel filha e seu formalizado genro, funcionrio pblico de promissora carreira; tia Marocas e seu irmo mais moo, comerciante com modesto crdito num banco afirma no passar de grossa intrujice, inveno de bbados inveterados, patifes margem da lei e da sociedade, velhacos cuja paisagem devera ser as grades da cadeia e no a liberdade das ruas, o porto da Bahia, as praias de areia branca, a noite intensa [...] (AMADO, op. cit, p. 1-3, grifo nosso).

Com esta aproximao discursiva imposta pela apresentao do narrador, verifica-se pela seleo das palavras, pelos tempos verbais no presente uma presentificao do posicionamento temporal, pessoas presas s classes sociais a que pertencem, na tentativa de atravs deste conjunto, demonstrar a imutabilidade de pensamentos, de atitudes. Pode-se pensar, at pelo comportamento dos familiares, na manuteno de conceitos estabelecidos como corretos durante uma vida inteira e o firme propsito de imposio dos mesmos s pessoas de convvio mais prximo. Essa condio oscilante de privilegiar ora cena, e ora sumrio traz um ganho de efeitos que permitem ampla reflexo e uma leitura mais apurada para sentir a verdadeira

42

inteno deste narrar. Ao mesmo tempo que aproxima/afasta, h

partes da narrativa

resumidos e outros detalhados demais, tudo depende de quem e como e quanto se quer falar da personagem. Com tal aproximao, possvel ficar mais fcil para o leitor estabelecer um comportamento de repulsa ao desnudar a verdadeira forma de pensar dos personagens. Sentese que a persuaso, o discurso convicto, toda imposio de idias fazem parte do universo familiar numa conduta rgida que pretende a manuteno de que s uma verso seja tida como verdadeira. Viabilizando outras posturas possveis, at mesmo o narrador onisciente no d uma verso de morte como nica e verdadeira. Como poderia ento a famlia faz-lo? No texto diz: No sei se esse mistrio da morte (ou das sucessivas mortes) de Quincas Berro Dgua pode ser completamente decifrado. Mas eu o tentarei, como ele prprio aconselhava, pois o importante tentar, mesmo o impossvel (AMADO, op.cit, p. 4). Neste trecho, pode-se perceber claramente a presena do eu narrador, fazendo parte momentaneamente do universo diegtico das personagens num nvel intradiegtico,

apresentando um discurso avaliativo. Assume uma voz aparentemente neutra dentro da narrativa juntando-se as demais j existentes no campo ficcional. O discurso avaliativo recoberto de adjetivos mais uma forma de intruso estabelecida pelo narrador.

[...] Na sala, o santeiro admirava um colorido retrato de Quincas, antigo, de uns quinze anos, senhor bem-posto, colarinho alto, gravata negra, bigodes de ponta, cabelo lustroso e faces rseas. Ao lado, em moldura idntica, o olhar acusador e a boca dura, dona Otaclia, num vestido preto, de rendas. O santeiro estudou a fisionomia azeda: -No tem cara de quem engana marido... Em compensao, devia ser um osso duro de roer... Santa mulher? No acredito...(AMADO, op. cit, p. 11).

Todas essas suposies so feitas pelo santeiro mediante a observao que ele faz do quadro de famlia. Aquele quadro estava ali cumprindo o papel de demonstrar quem mantinha

43

o equilbrio e a ordem na famlia, e jamais como uma decorao. Pode-se chegar a pensar que o narrador tenha se valido do olhar do santeiro para a fotografia, trabalhando com cena e estabelecendo juzos valorativos sobre Otaclia. Em alguns momentos, ele parece somente descrever os fatos e, em outros, parece fazer inferncias havendo, portanto, uma disparidade no falar: a Distncia Cognitiva: momentos de proximidade e momentos de afastamento. E atravs desta distncia imposta pelo narrador que o leitor chegar distncia afetiva: o leitor sentir pelo personagem tal uma identificao conquistada pela distncia afetiva. importante esclarecer que essa afetividade atingida pela vertente subjetiva proporcionada pelo narrador, que seleciona o que vai relatar e qual a velocidade do relato e que tambm interpreta do mesmo modo que formula juzos axiolgicos. Neste texto, em que ocorre a predominncia do sumrio, conseqentemente se traduzir numa narrativa de velocidade do discurso, em certo sentido mais rpido do que tenha ocorrido a histria. Para tanto, o narrador escolhe os eventos a reter bem como aqueles que quer detalhar. O que vale a pena destacar que a anlise da narrativa ter que dar conta de explicar as oscilaes rtmicas que a caracterizam atravs das velocidades responsveis por estas oscilaes. Perspectiva pode ser entendida como o mbito em que tambm se determina a quantidade de informao diegtica veiculada. Existem diferentes domnios e nveis que podem ser articulados no texto: focalizao onisciente, focalizao externa e focalizao interna. Um destaque importante a ser ressaltado alm das possibilidades j apresentadas sobre a dissimulao de oniscincia que o narrador apresenta em alguns momentos da diegese. possvel perceber a dissimulao da oniscincia desde o princpio romanesco, quando nesta condio ele se vale da condio da dvida para iniciar o romance quando diz

44

AT HOJE PERMENECE CERTA CONFUSO EM TORNO DA morte de Quincas Berro Dgua. Dvidas por explicar, detalhes absurdos, contradio no depoimento das testemunhas, lacunas diversas (AMADO, op.cit, p. 1). Se a posio de onisciente lhe confere poder absoluto de domnio sobre a histria, como esclarecer a presentificao at hoje permanece e ainda menciona contradies no depoimento das testemunhas. Depoimento de testemunhas s se faz imprescindvel quando da necessidade de se confirmar uma histria atravs de algum que supostamente tenha observado ou dela participado. Se o narrador onisciente fica clara sua dissimulao, delegando a outros personagens a deteno de um saber que s ele possui. Estes rastros encontram-se fora da superfcie textual, colocando-se neste texto na condio de mais uma voz: a mais oculta e inserida entre as demais vozes dos personagens. Uma voz a mais que opina, gera reflexo, instaura a dvida, trabalha com a inverso de valores, salta o texto aos olhos do leitor. Como no exemplo:

[...] OS PATIFES QUE CONTAVAM, PELAS RUAS E LADEIRAS, EM frente ao Mercado e na feira de gua dos Meninos, os momentos finais de Quincas (at um folheto com versos de p-quebrado foi composto por repentista Cuca de Santo Amaro e vendido largamente), desrespeitavam assim a memria do morto, segundo a famlia [...] (AMADO, op. cit, p.5).

O narrador disfara sua oniscincia delegando famlia a responsabilidade desta fala. A velocidade narrativa com que o narrador fala da famlia ou por ela, obedece a um ritmo mais lento, apresenta aes conflituosas, a impresso de um arrastamento temporal mais demorado atingindo o mbito das digresses. A digresso, em princpio, corresponde a uma suspenso momentnea da velocidade. Desta forma:

45

[...] a digresso reflexiva traduz o mais direto e explcito processo de afirmao de princpios axiolgicos e afirmaes de recorte ideolgico [...] compreende-se que a digresso caiba uma importante funo de representao, no-vinculados a uma concepo da narrativa como discurso transparente e radicalmente puro [...] (REIS ; LOPES, op. cit, p. 238).

possvel que ainda existam dvidas sobre a morte de Quincas, como tambm existe a possibilidade de o narrador estar desde aquele perodo inconformado pelas contradies no depoimento das testemunhas, por serem recheados de lacunas diversas. Existe uma convico na afirmao pautada na dvida No h clareza sobre hora, local e frase derradeira. Mesmo depois de tantas verses terem sido dadas a respeito desta morte, elas parecem no convencer. Este procedimento de manuteno da dvida sugere que esta polmica das mortes s ganha vida e fora na inconsistncia das informaes. Toda mediao lingstica executada pelo narrador, ou seja, essa regulagem mxima de oniscincia estabelecida neste momento para cont-lo em outra ocasio, pode ser relativizada ou diminuda, para atender aos propsitos de efeitos da retrica por ele pretendida. O interessante notar como essas focalizaes se articulam como representao no discurso narrativo. Para tanto, um narrador precisa ser operante, no sentido de fazer um acontecimento fluir aos olhos do leitor, sem que este perceba que aquele quem est contando. O discurso assim se constitui e se estrutura, evidenciando competncia na criao de um dado universo especial.

46

Personagens Como Vetores de Ideologia: uma questo de excluso socialA narrativa moderna tem como premissas bsicas tendncias particulares que a colocam numa condio cada vez mais inovadora e diferente da tradio narrativa mimtica aristotlica. Pensar a questo da personagem significa que quase impossvel iniciar uma reflexo terica e no voltar o olhar para a Grcia antiga e conseqentemente para os pensadores que principiaram e impulsionaram o saber. Dos tericos conhecidos, Aristteles o primeiro a tocar neste problema da personagem de fico: o comeo de uma tradio voltada para o conhecimento e reflexo dessa instncia narrativa. Para Aristteles, a personagem adquire uma fisionomia duplicada: ressalta as relaes de semelhana que existem entre a personagem e o ser humano (mimesis); e tambm da condio de uma personagem como construo, cuja existncia obedece s leis particulares que regem o texto. O fazer literrio das geraes seguintes foi influenciado por este legado oscilante e dual e serviu de modelo at meados do sculo XVIII. At ento, esses conceitos existentes na Potica no haviam sido questionados. A partir da, neste percurso, situa-se Horcio, poeta latino, que em Ars poetica divulga as idias aristotlicas e reitera suas proposies.

Segundo Horcio, associa no que diz respeito personagem, o aspecto de entretenimento, contido pela literatura, funo pedaggica, e consegue com isso enfatizar o aspecto moral desses seres fictcios. E a personagem no apenas como uma reproduo dos seres vivos, mas como modelos a serem imitados, identificando personagem-homem e virtude e advogando para esses seres o estatuto moralidade humana que supe imitao. Rosenfeld (1987, p. 21) define que a personagem que com mais nitidez torna patente a fico, e atravs dela a camada imaginria se adensa e se cristaliza. E ainda:

47

[...] no cabe narrativa potica reproduzir o que existe, mas compor as suas possibilidades. Assim sendo, parece razovel estender essas concepes ao conceito de personagem; ente composto pelo poeta a partir de uma seleo do que a realidade lhe oferece, cuja natureza e unidade s podem ser conseguidas a partir dos recursos utilizados para a criao (BRAIT, 1985, p. 31).

A concepo de personagem elaborada por Aristteles e reiterada pelo filsofo latino Horcio permanece um longo perodo histrico sem ser questionada. S vem sofrer alterao e ser substituda por uma viso psicologizante, na segunda metade do sculo XVIII. De acordo com essa nova tendncia, final do sculo XVIII e todo o XIX, acredita-se na personagem como representao do universo psicolgico de seu criador. Fazendo uma reflexo das concepes acima mencionadas, tm-se, na primeira, uma preocupao em detalhar e esculpir a personagem com base na verossimilhana; e, na segunda, uma nova forma de caracterizar a personagem desvinculada desta preocupao em retratar o mais fielmente o real, mas sim em diferenci-la deste padro uniforme: uma personagem que demonstra pelo perfil do universo psicolgico ter acompanhado a evoluo dos tempos no que diz respeito complexidade do ser humano. Nos sculos XVIII e XIX, o sistema de valores da esttica clssica sofre declnio e simultaneamente a este fato acontece o desenvolvimento do romance, que se afirma com a aceitao do novo pblico: a burguesia. Estabelecendo uma relao do romance com a concepo de mundo burgus, Lukcs (1920 apud. SEGOLIN, 1978, p. 23) afirma ser a forma romanesca a epopia de um tempo em que a totalidade extensiva no j dada de maneira imediata, de um tempo em que o homem e as estruturas por ele criadas se alienam mutuamente. Pode-se pensar que no romance que se defrontam o heri romanesco e o heri problemtico, porque ambos esto procura de valores autnticos. O primeiro situa-se num mundo de conformismo e conveno e o segundo num mundo de todo alheio s exigncias de autenticidade do heri. Assemelha-se a

48

Lukcs, a forma de pensar de Frateschi (1974 apud. SEGOLIN, 1978, p. 50) que afirma a possibilidade de, no romance, o protagonista ser ao mesmo tempo heri e traidor, vencedor e vencido, covarde e corajoso. Com a evoluo consolidada do homem e conseqentemente da narrativa, o universo da diegese muda: ao se pensar em enredo, estabelece-se uma ligao automtica com os personagens que nele habitam. A personagem pode ser considerada como a reproduo do ser humano melhor do que , uma vez que o mundo ficcionalizado pelo poeta, pode ser considerado como melhor do que o real. Para tanto, hoje se supe que na construo de uma narrativa sejam os personagens elementos cruciais, aos quais devam ser dispensados grande parte da ateno do narrador. Assim o sendo:

[...] a personagem antes de ser a representao do ser humano, a personagem , na verdade, uma metfora epistemolgica do homem e do mundo, uma vez que se trata no de um ser semelhante ao homem, mas de um ser semelhante ao universo tal como se nos apresenta a partir de um especfico comportamento cognitivo [...] (SEGOLIN, 1978, p. 114).

O enredo existe atravs das personagens, portanto, elas vivem no enredo. Por isso, deve-se reconhecer que, de maneira geral, que s h:

[...] um tipo eficaz de personagem: a inventada; mas que esta inveno mantm vnculos necessrios com uma realidade matriz, seja a realidade individual do romancista, seja a do mundo que o cerca; e que a realidade bsica pode aparecer mais ou menos elaborada, transformada, modificada, segundo a concepo do escritor, a sua tendncia esttica, as suas possibilidades criadoras. Alm disso, convm notar que por vezes ilusria a declarao de um criador a respeito de sua criao. Ele pode pensar que copiou quando inventou; que exprimiu a si mesmo, quando se deformou; ou que se deformou quando se confessou. [...] (CANDIDO, 1987, p. 69).

49

Desta maneira, os estudos desenvolvidos nada mais fazem do que tentar reproduzir por prismas diversos a viso antropomrfica da personagem. Desta forma,[...] as personagens tm maior coerncia do que as pessoas reais (e mesmo quando incoerentes mostram pelo menos nisto coerncia); maior exemplaridade [...]; maior significao; e paradoxalmente, tambm maior riqueza no por serem mais ricas do que as pessoas reais, e sim em virtude da concentrao, seleo, densidade e estilizao do contexto imaginrio, que rene os fios dispersos e esfarrapados da realidade num padro firme e consistente. Antes de tudo porm, a fico o nico lugar em termos epistemolgicos em que os seres humanos se tornam transparentes nossa viso, por se tratar de seres puramente intencionais, sem referncia a seres autnomos; de seres totalmente projetados por oraes [...] precisamente o modo pelo qual o autor dirige o nosso olhar, atravs de aspectos selecionados de certas situaes, da aparncia fsica e dos comportamentos sintomticos de certos estados ou processos psquicos ou diretamente atravs de aspectos da intimidade das personagens tudo isso de tal modo que tambm as zonas indeterminadas comeam a funcionar precisamente atravs de todos esses e outros recursos que o autor torna a personagem at certo ponto de novo inesgotvel e insondvel [...] ( ROSENFELD, 1987, p. 35-6).

Partindo destes pressupostos bsicos, tem-se a explicao atravs de alguns pontos de vista que a personagem um dos elementos fundamentais para a construo ficcional e que o romance o palco dessas representaes. Lukcs (1920 apud. SEGOLIN, 1978, p. 170) parte do princpio de que o homem ocupa um lugar na natureza, considerada no como uma entidade abstrata, mas como a base de formas sociais peculiares, portanto de estruturas que implicando-se umas s outras , s podem ser definidas no seu conjunto. Diante de tais perspectivas relativas personagem e ao romance, tem-se que ela entendida no como uma tentativa de reproduo mimtica do homem, atravs da imitao de suas aes e/ ou paixes e sentimentos, mas como uma atividade tendente a explicitar sua situao no mundo (LUKCS, op. cit, p. 23).

50

O enfoque principal fica direcionado para a convergncia dos pontos que estabelecem semelhanas e diferenas entre o mundo real e o ficcional. Por alargar horizontes acerca desses dois universos distintos, pela manuteno da coeso e coerncia internas das caractersticas das personagens, pelo espao que ocupam, pelo estilo de narrar lenta ou rapidamente e outros domnios que estruturam o texto de fico percebe-se, aps uma anlise terica mais apurada, ser o mundo da fico, um espao mais apertado. Esta afirmao pode ser explicada porque exige do autor uma grande habilidade em trabalhar com esses elementos tericos narrativos, para proporcionar atravs da palavra um universo ficcional instigante. Seguindo essa mesma linha de raciocnio, qual outro signo de maior competncia que daria conta de explorar com eficcia o terreno ficcionalizante a no ser a palavra? Como diz Brait (1985, p. 9) que outra natureza reveste esses seres de fico, esses edifcios de palavras que, por obra e graa da vida ficcional, espelham a vida e fingem to completamente a ponto de conquistar a imortalidade?. Para que a fico se sustente como tal, esse signo palavra acionado e usado como elemento imprescindvel para a construo do enredo. A palavra, portanto, carrega junto a si uma fora ideolgica particular. Tudo que ideolgico possui um significado especial, e por assim o ser, remete a algo situado fora de si mesmo. Pensando em outros termos, tudo que ideolgico signo. Sem esses signos no existe ideologia. Partindo dessas premissas bsicas, a palavra o primeiro e o mais importante signo constituinte do universo ficcional. Se a personagem um ser elaborado atravs de palavras, ela traz a complexidade e fora ideolgica que a palavra carrega em si. Percebe-se, desta maneira, a quase impossibilidade de externar pensamentos sem se valer de pala