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Cultura Cultura Jornal Angolano de Artes e Letras O ENSINO DA POESIA NO II CICLO Págs. 8 e 9 KITÔMBWA, UM PISTEIRO ABANDONADO Um homem digno, trabalhador, pai de família, foi toda a vida empenhado num trabalho que realizou com esmero e dedicação. Uma figura alta, serena, bem-disposta, sorriden- te, mas pensativa. Tem 45 anos de trabalho e 61 de idade. É Kitômbwa, um antigo Ranger, guarda-florestal, que acumu- lava com a função de pisteiro do Parque Nacional da Kissa- ma, situado na Província de Luanda. Conduziu, durante anos, milhares de turistas nacionais e estrangeiros. É importante perceber o processo da edifi- cação militar no contexto do Estado democráti co e direito porque esta parte representa outra etapa do ponto de vista da história da edifi- cação militar em Angola. A obra A Posição de Angola na Arquitectura Paz e Segurança Africana, da autoria do ten te-coronel Luís Manuel Brás Bernardino, ofi do Exército português, docente universitá investigador, foi publicada agora em líng inglesa, em Lisboa, no dia 31 de Maio 20 data do 26º aniversário da assinatura do Acordos de Bicesse. Com esta publicaçã inglês, os leitores vão perceber o pont vista deste académico português sob das Forças Armadas Angolanas no do segurança nacional e no que respeit rança das regiões geográficas onde se en inserida a República de Angola. Numa palavra esta obra constitui, sem dúvida, mais um contributo à historiografia militar angolana. BARRA DO KWANZA Pág. 15 Dona Capombo estendida no chão da velha varanda, com todas as orações gastas e súplicas, comidas pelas longas horas de espera, pedia a qualquer anjo, a qualquer deus, que milagrasse ao mundo, a vinda de seu filho. INSERÇÃO DA DANÇA NA SOCIEDADE Será que hoje em dia podemos falar de uma definição sobre a dança? Em pleno século XXI as perguntas mais oportunas seriam, Quando é dança? E quais são os modos de apresentação deste fenómeno dança? Págs. 3 e 4 LETRAS GRAFITOS NA ALMA ANGOL Págs. 5 e 7 ARTES Com base numa reflexão à volta do poema “Criar”, de Agostinho Neto, propõe-se a afectividade dos proces- s ação”. Para o efeito, profes sores e alunos devem trabalhar com muita estética e ética. O professor do ensino secundário tem de estar preparado para transformar a sala de aulas num verdadeiro espaço de aprendizagem. ISSUNJE Conto de Ernesto Daniel 10 NA ARQUITECTURA DE PAZ E SEG NÇA AFRICANA O ENSINO LETRAS e 4 3 Págs. HISTÓRIA 10 Pág. NO II CICLO DA POESIA O ENSINO es of , pr o eit a o ef ar . P lação assimi e “ ansmissão tr sos “ es oc tividade dos pr ec a af -se opõe , pr o gostinho Net A , de iar r C olta do poema v xão à efle om base numa r C NO II CICLO DA POESIA - ANGO DE PAZ E es - assimi - -se , de xão à NA ARQU LA ANGO SEG NÇA DE PAZ E ITECTURA NA ARQU LA TECTU EG ITECTURA NÇA endizagem. apr o de o espaç dadeir er num v mar a sala de aulas or ansf tr a ado par epar de estar pr em io t do ensino secundár essor of ética e ética. O pr est om muita abalhar c tr em es e alunos dev sor , pr lação o de o de vista da hist t etapa do pon que esta par o por eit o e dir c cação militar no c c e per t tan É impor AFRIC mar a sala de aulas em essor ia da edifi ór o de vista da hist ta outr esen epr e r t que esta par o do Estado democr t x e t on esso da edifi oc eber o pr c AN RIC C - ia da edifi ta outr á o do Estado democr - NA ti a esse dos de Bic or c A ersár ta do 26º aniv da inglesa, em Lisboa, no dia 31 de M oi publicada agor , f estigador v in tuguês o por cit ér do Ex anuel Br uís M onel L or c - e t ança A egur az e S P osição de A a A P A obr cação militar em A . 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NA SOCIEDADE ÃO DA DANÇA XI as e a dança? Em pleno século X á que hoje em dia podemos falar de uma KITÔMBWA, UM PISTEIRO ABANDONADO , mas pensa e t dedicação vida empenhado num tr Um homem dig GRAFITOS NA AL KITÔMBWA, UM PISTEIRO ABANDONADO 8 e 9 em 45 anos de t Págs. T Te a. tiv , mas pensa ena, bem- a alta, ser . Uma figur dedicação abalho que r vida empenhado num tr , pai de família, f abalhador , tr no Um homem dig MA GRAFITOS NA AL KITÔMBWA, UM PISTEIRO ABANDONADO . É abalho e 61 de idade em 45 anos de tr - iden r disposta, sor ena, bem- o e om esmer ou c ealiz abalho que r oda a oi t , pai de família, f BARRA DO KWANZA enómeno dança? f E quais são os modos de apr tunas ser tas mais opor gun per e a dança? Em pleno século X definição sobr e tação dest esen E quais são os modos de apr uando é dança? iam, Q tunas ser XI as e a dança? Em pleno século X uando é dança? 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Page 1: Jornal Angolano de Artes e Letras - blog.lusofonias.net · tiva. TTem 45 anos de trem 45 anos de tr. Uma ˜gura alta, serena, bem-abalho que r no, trabalhador, pai de família, f

CulturaCulturaJornal Angolano de Artes e Letras

O ENSINODA POESIA NO II CICLO

Págs.8 e 9

KITÔMBWA, UM PISTEIRO ABANDONADOUm homem digno, trabalhador, pai de família, foi toda a vida empenhado num trabalho que realizou com esmero e dedicação. Uma �gura alta, serena, bem-disposta, sorriden-te, mas pensativa. Tem 45 anos de trabalho e 61 de idade. É Kitômbwa, um antigo Ranger, guarda-�orestal, que acumu-lava com a função de pisteiro do Parque Nacional da Kissa-ma, situado na Província de Luanda. Conduziu, durante anos, milhares de turistas nacionais e estrangeiros.

É importante perceber o processo da edi�-cação militar no contexto do Estado democrático e direito porque esta parte representa outra etapa do ponto de vista da história da edi�-cação militar em Angola. A obra A Posição de Angola na Arquitectura Paz e Segurança Africana, da autoria do tente-coronel Luís Manuel Brás Bernardino, o� do Exército português, docente universitá investigador, foi publicada agora em líng inglesa, em Lisboa, no dia 31 de Maio 20 data do 26º aniversário da assinatura do Acordos de Bicesse. Com esta publicaçã inglês, os leitores vão perceber o pont vista deste académico português sob das Forças Armadas Angolanas no do segurança nacional e no que respeit rança das regiões geográ�cas onde se en inserida a República de Angola. Numa palavra esta obra constitui, sem dúvida, mais um contributo à historiogra�a militar angolana.

BARRA DO KWANZA Pág.15

Dona Capombo estendida no chão da velha varanda, com todas as orações gastas e súplicas, comidas pelas longas horas de espera, pedia a qualquer anjo, a qualquer deus, que milagrasse ao mundo, a vinda de seu �lho.

INSERÇÃO DA DANÇA NA SOCIEDADESerá que hoje em dia podemos falar de uma de�nição sobre a dança? Em pleno século XXI as perguntas mais oportunas seriam, Quando é dança? E quais são os modos de apresentação deste fenómeno dança?

Págs.3 e 4 LETRAS HISTÓRIA

GRAFITOS NA ALMA

ANGOL

Págs.5 e 7ARTES

Com base numa re�exão à volta do poema “Criar”, de Agostinho Neto, propõe-se a afectividade dos proces-s ação”. Para o efeito, profes

sores e alunos devem trabalhar com muita estética e ética. O professor do ensino secundário tem de estar preparado para transformar a sala de aulas num verdadeiro espaço de aprendizagem.

ISSUNJEConto de Ernesto Daniel

Pág. 10

NA ARQUITECTURADE PAZ E SEG NÇA AFRICANA

O ENSINOLETRAS e 4 3

Págs.

HISTÓRIA

10Pág.

NO II CICLO DA POESIA O ENSINO

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20 de Junho a 3 de Julho de 2017 | Nº 137 | Ano VI • Director: José Luís Mendonça • Kz 50,00

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2 | ARTE POÉTICA 20 de Junho a 3 de Julho de 2017 | Cultura

Propriedade

Sede: Rua Rainha Ginga, 12 26 | Caixa Postal 1312 Luanda Redacção 222 02 01 74 |Telefone geral (PBX): 222 333 344Fax: 222 336 073 | Telegramas: ProangolaE mail: [email protected]

CulturaJornal Angolano de Artes e LetrasUm jornal comprometido com a dimensão cultural do desenvolvimento

Nº 137/Ano VI/ 20 de Junho a 3 de Julho de 2017E-mail: [email protected]: www.jornalcultura.sapo.aoTelefone e Fax: 222 01 82 84

CONSELHO EDITORIAL

Director e Editor-chefe:José Luís MendonçaEditor:Adriano de MeloSecretária:Ilda RosaAssistente Editorial:Coimbra Adolfo (Matadi Makola)Fotografia:Paulino Damião (Cinquenta)Arte e Paginação:Jorge de SousaAlberto Bumba Sócrates SimónsEdição online: Adão de Sousa

Colaboram neste número:

Angola: Ernesto Daniel, Judite Chavito Sungo, Manuel(D’Angola) de Sousa, Mário Araújo, Mário Pereira, Mi-guel Júnior, Sandra Poulson, Scoth KamboloMoçambique: Amosse Mucavele, Mauro De BritoBrasil: C. Ronald Schmidt, João Cabral de Melo Neto,Paulo Henrique PompermaierPortugal: António Luís MoitaMarrocos: Lahcen EL MOUTAQIFrança: Jules Morot

Normas editoriais

O jornal Cultura aceita para publicação artigos literário-científicos e re-censões bibliográficas. Os manuscritos apresentados devem ser originais.Todos os autores que apresentarem os seus artigos para publicação aojornal Cultura assumem o compromisso de não apresentar esses mesmosartigos a outros órgãos. Após análise do Conselho Editorial, as contribui-ções serão avaliadas e, em caso de não publicação, os pareceres serãocomunicados aos autores.

Os conteúdos publicados, bem como a referência a figuras ou gráficos jápublicados, são da exclusiva responsabilidade dos seus autores.

Os textos devem ser formatados em fonte Times New Roman, corpo 12,e margens não inferiores a 3 cm. Os quadros, gráficos e figuras devem,ainda, ser enviados no formato em que foram elaborados e também numficheiro separado.

Conselho de Administração

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(presidente)

Administradores Executivos

Victor Manuel Branco Silva Carvalho

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Olímpio de Sousa e Silva

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POEMA DE JOÃO CABRAL

DE MELO NETOFábula de um arquitectoA arquitectura como construir portas,de abrir; ou como construir o aberto;construir, não como ilhar e prender,nem construir como fechar secretos;construir portas abertas, em portas;casas exclusivamente portas e tecto.O arquitecto: o que abre para o homem(tudo se sanearia desde casas abertas)portas por-onde, jamais portas-contra;por onde, livres: ar luz razão certa.Até que, tantos livres o amedrontando,renegou dar a viver no claro e aberto.Onde vãos de abrir, ele foi amurandoopacos de fechar; onde vidro, concreto;até refechar o homem: na capela útero,com confortos de matriz, outra vez feto.

in “A educação pela pedra”

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LETRAS | 3Cultura |20 de Junho a 3 de Julho de 2017PROPOSTA METODOLÓGICA PARA O ENSINO

DO TEXTO POÉTICO NO II CICLO

1.º Passo →Disponibilizar o texto

CRIARCriar criarcriar no espírito criar no músculo criar no nervocriar no homem criar na massacriarcriar com olhos secosCriar criarsobre a profanação da florestasobre a fortaleza impudica do chicotecriar sobre o perfume dos troncos serradoscriarcriar com olhos secosCriar criargargalhadas sobre oescárnioda palmatóriacoragem nas pontas das botas dos roceirosforça no esfrangalhado das portas violentasfirmeza no vermelho sangue da insegurançacriarcriar com olhos secosCriar criarEstrelas sobre o camartelo guerreiropaz sobre o choro das criançaspaz sobre o suor sobre a lágrima do contratopaz sobre o ódiocriarcriar com olhos secosCriar criarliberdades nas estradas escravasalgemas de amor nos caminhos paganizados do amorsons festivos sobre o balanceio dos corpos em força simuladasCriarcriar amor com os olhos secos.2.º Passo → ler o texto (declamar) – individualmente, depois de o professor oter feito.3.º Passo → chamar atenção aos discentes que, na análise do texto poético,segundo a Nova Enciclopédia Temática – Literatura e arte (Sd:26), devemosconsiderar a forma, o conteúdo e a expressividade da linguagem.Forma Como está composto o poema?Como se classificam as estrofes quanto ao numero de sílabas?Classifique os versos quanto à sílaba métrica (É aconselhável trabalhar, ini-cialmente, com uma só estrofe).R: O poema em análise está composto por seis estrofes, com número de ver-sos irregulares. A primeira e a quinta estrofes contêm cinco versos, denomi-nam-se quintilha; a segunda possui seis, recebe o nome de sextilha; a terceira e aquarta estão constituídas por sete versos, chamam-se sétima e na sexta, por si-nal, a última, há dois versos – dístico.

No poema, os versos são longos e curtos. Alguns rimam, porém a rima é melódica.Ex.: Cri/ar/ cri/arcri/ar/ no es/pí/ri/to/ cri/ar/ no/ mús/cu/lo/ cri/ar/ no/ ner/vocri/ar/ no/ ho/mem/ cri/ar /na/ ma/ssacri/arcri/ar/ com/ os o/lhos/ se/cosEsta estrofe, quanto à sílaba métrica, é irregular, ou seja, é assimétrica, por-que os versos não têm os mesmos números de sílabas métricas. Por exemplo, oprimeiro verso contém três sílabas métricas, enquanto o segundo tem 16 sílabas métricas...

SCOTH KAMBOLO|O professor do ensino secundáriotem de estar preparado para trans-formar a sala de aulas num verdadei-ro espaço de aprendizagem, sobretu-do quando o objectivo é ensinar ascaracterísticas do texto poético. Nes-sa etapa de formação, os alunos pre-cisam de conciliar a prática com ateoria, pois eles trazem muitas expe-riências da família, das classes ante-riores, etc. Freire (2010:30) defendeque “ensinar exige respeito aos sabe-res dos educandos”. O professor que

deseja ensinar no/o ensino secundá-rio deve, inquestionavelmente, utili-zar uma didáctica de muita qualida-de, porquanto os alunos não são tá-buas rasas.Por conseguinte, o professor deveser capaz de desenvolver, no aluno,competência linguística – falar, ler eescrever correctamente; competên-cia transdisciplinar – interpretar edominar as outras áreas do saber;competência sócio-afectiva – amar opróximo e o património público. Parao aperfeiçoamento destas competên-cias, o professor tem de fazer que o

aluno se sinta parte do processo deensino-aprendizagem; porquanto,se assim não for, todo o processo deensino falha.ANÁLISE DE TEXTO POÉTICOA nossa reflexão foi feita à volta dotexto poético “Criar”, poema de Agos-tinho Neto. Para que osprocessos“transmissão” e “assimila-ção” se efectivem, professores e alu-nos devem trabalhar com muita esté-tica e ética. Comecemos (professorese alunos) por recordar os conceitosbásicos sobre a versificação: verso,

estrofe, tipos de estrofe, tipos de ri-ma, classificação da rima quanto à ri-queza e à disposição; para tal, pode-mos consultar Álvaro Gomes (2007),Borregana (2003), Castro Pinto(2007), Olga Azeredo et ali (2013).Depois de se confirmar que os doisdos vários intervenientes do proces-so de ensino-aprendizagem domi-nam os conceitos da versificação, pe-dagogicamente, o professor medeia aaula. O docente não pode apoderar-se da mesma, ou seja, não deve ser ocentro das atenções. Eis a nossa estratégia:

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SACO FUNDO E SEM FIM OU PRINCÍPIO VISÍVEL A OLHO NU

Conteúdo No texto, constata-se que o sujeito poético repete, muitas vezes, a palavracriar, tentando mostrar que a luta contra a dominação e exploração colonial édinâmica e faseada. “Criar criarcriar no espíritocriar no músculo criar no nervo(…)”O sujeito poético pede aos seus companheiros, para que acreditem na luta eque o sofrimento não os possa entristecer, pois se deve transformar a dor emalegria.“Criar criargargalhadas sobre o escárnio da palmatória(…)”Expressividade da linguagemA pouca pontuação imprime bastante ritmo ao poema, permitindo uma leitu-ra mais emotiva, própria de cidadãos ávidos pela liberdade. A figura de estiloanáfora reforça a ideia de inovar, lutar para um mundo melhor.

Criar criarsobre a profanação da florestasobre a fortaleza impudica do chicotecriar sobre o perfume dos troncos serradoscriarcriar com olhos secos.A repetição propositada do verso “Criar com os olhos secos” nas três primei-ras estrofes realça à vontade de lutar contra a exploração e dominação colonial,transmitindo, energicamente, que a luta tinha de ser já, mas com muita cautela esem xenofobia. 4.º Passo →o professor debate as repostas com os alunos e propõe outro textodo mesmo autor “CERTEZA”, para os alunos analisarem em casa.Scoth Manuel PiangoCambolo é professor do i ciclo do ensino secundário

e universitário, lecciona as cadeiras de língua portuguesa e introdução aosestudos linguísticos. Apreciador da poesia de Neto.

Não sei se tenho saco para isto tudoOu se ele está furado e eu não seiHá quem diga que eu sou um buracoOutros dizem que sou o próprio furoO que digo ou penso pouco interessa…Sou lobo sem cara e com cara de ovelhaDe tão egoísta que sou quero ser o todoDesejo tudo e mais algumas coisa e o céuO tempo está acabando e sempre iniciandoAndo a reboque nele e sem saber o destinoDou um nó na garganta e no que digoFalo tão à toa e tanto quanto cuspoComo a sopa da pedra e letras todaLeio no meio do líquido amnióticoSoletro em voz alta o nome do próximoNunca tenho tempo e nem relógioAs eras passam por mim como ventoNem sequer me dependuro no arAprecio sim uma bela vista aéreaVejo-me como uma águia humana indo e rindo nua…Dou um tiro de canhão no péFalho o chão e o objectivo em cheioNegoceio o próximo alvo a olhoDe imensamente cego peço esmolasSó obtenho no final côdea e uma poucas migalhas…

Escrito em Luanda, a 5 de Junho de 2017, por Manuel (D’Angola) de Sousa, em memória de todos os Animais e Plantas e Seres da Existência, em alusão ao Dia Mundial do Ambiente.

Em Homenagem ao Animal Símbolo de Angola, a raríssima e imponente Palanca Negra, existente tão-somente neste nosso tão extraordinário País.

4 | LETRAS 20 de Junho a 3 de Julho de 2017 | Cultura

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JUDITE CHAVITO SUNGO|

A dança existe desde as civilizações pri-mitivas, por exemplo na Grécia: dança parao nascimento e a morte, dança nupcial, dan-ça para o banquete, dança para a caça e apesca. Portanto dança para todas ocasiões.Platão disse, que a ordem e o ritmo são ca-racterísticas dos deuses e são também for-mas de dança. Essa rica harmonia de que fa-lava Platão entra num sistema de compor-tamento humano. A partir desta citação, se começará es-ta abordagem com a seguinte questão:Será que hoje em dia podemos falarde uma definição sobre a dança?Empleno século XXI a perguntas maisoportunas seriam, quando é dança? Equais são os modos de apresentaçãodeste fenómeno dança?Esta reflexão, não se centrará, concre-tamente, nestas questões, mas vai alémdesta perspectiva. Se pretende levar oleitor a reflectir sobre as mesmas. Poisna actualidade, o conceito de dança temevoluído muito, que é um tanto quantodifícil chegar a uma única definição damesma, mas a autora tratará de aproxi-mar-se a uma concepção básica que nãoé para nada absoluta.A dança se pode entender como umconjunto de movimentos corporais,executados em um determinado tempoe espaço,motivados por um espíritosubjectivo dotado de emoção, por in-termédio de uma dinâmica rítmicacom finalidades comunicativas.Katzdizia que quando um corpo organiza oseu movimento na forma de um pensa-mento, então ele dança; por outro lado-Laban definia a dança como: Os movi-mentos do corpo que traduzem a for-mas de pensar, agir e sentir, e que o mo-vimento compreendido desta forma,deve assumir um outro nível de impor-tância no desenvolvimento da pessoa ena construção de sua identidade.Essa organização dos movimentosde que fala Katz, não é senão a expe-riência corporal, que engloba a sensi-bilidade e conscientização do corpoem si mesmo, incluindo suas posturas,acções quotidianas, as formas de pen-sar, agir e sentir de que expressa La-ban, por conseguinte como necessida-de de expressar – comunicar – criar-compartilhar.EXPRESSÃOA dança, é uma das mais antigasformas de expressão corporal e ar-tística do homem. Esteve semprepresente, desde a civilização huma-na como uma necessidade cultural esocial do homem, onde se afirma co-mo membro de uma comunidade.Éutilizada como linguagem corporalpara simbolizar alegria, tristeza, ce-lebrar o amor, a vida e morte,a guer-ra e paz, fundamentalmente para ex-pressar sentimentos, emoções, pen-samentos, desejos, inquietudes e in-teresses de uma sociedade.

Esta necessidade que teve o ho-mem primitivo de explicar os fenóme-nos da natureza, e apropriar-se delapara seu próprio beneficio, obrigou-lhe a submeter-se a uma séries de ri-tuais, de formas a atrair as autorida-des espirituais do bem contra os ma-les que lhes assolavam.A dança for-mou parte destes rituais como ummeio de comunicação com os poderesda natureza: danças à terra, ao mar, osol, ao rio, a lua, ao raio, para propi-ciar a chuva etc. Estas se podem clas-sificar como danças de imagem,poisrepresentam simbolicamente os se-res sagrados e sobrenaturais, portan-to se realizam num contexto festivo ecerimonial de carácter mágico reli-gioso; coma finalidade de estimular ofenómeno de reencarnação dos mes-mos sobre outros seres viventes, tam-bém para estabelecer as conexões designificação e comunicação. Além dis-so,obter deles um efeito benéfico epositivo para a comunidade. Acompanha o homem desde asmais antigas civilizações, forma par-te da sua história e da “Cultura Popu-lar Tradicional” (Guanche, 2007) deum povo. Daí a sua grande importân-cia e responsabilidade como propul-sora de identidade cultural de umanação.Existe no ser humano desde oseu nascimento, pois faz parte das

necessidades biológicas do homem eestá sempre presente durante o seuprocesso evolutivo. É uma linguagemnão verbal, de conduta espontâneaque não esta afastada das possibilida-des de qualquer individuo e se reflec-te em qualquer acção quotidiana. Es-tas acções quotidianas vão desenvol-vendo – se, logo adoptando posturasdiferentes à cada individuo, segundo omeio em que cada um estiver inserido,tais como: meio familiar, escolar, so-cial, profissional, religioso entre ou-tros. Esta linguagem corporal envolveo homem numa evolução constanteconsigo mesmo e com a sociedade. REPRESENTAÇÃOA dança pode ser considerada co-mo uma representação artística.Porartístico considera-se aquele que de-senvolve a sensibilidade, a imagina-ção, a criatividade e a comunicaçãohumana. Daí que a dança é fruto danecessidade do homem de se expres-sar e se comunicar de forma livreatravés da linguagem gestual pormeio da mímica facial, gestos ou pan-tomima e a postura entre outros re-cursos, sem precisar,necessariamen-te,recorrer a codificação da palavra. Nesta vertente, ele se apodera dosmovimentos quotidianos reelabora-os para transformá-los num produto

artístico com uma carga emocional eestética. Para manifestar certas ne-cessidades, pensamentos, ideias, frus-trações e emoções e dar respostas acertas inquietações do seu entorno;numa unidade entre corpo, espírito emente, para construir um novo conhe-cimento e contribuir directa ou indi-rectamente para o bem estar da socie-dade em que esta inserido. Desde a Pré – história, a dança éuma forma de comunicação, numasimbiose entre cantos e instrumentosmusicais, que com o passar do tempo,foi sofrendo várias influencias e foiganhando espaço na educação. Per-correu um longo caminho para alcan-çar este nível, ou seja, como um recur-so para a prática pedagógica. Sofreutambém influências tecnológicas enovas condições sociais, fazendo sur-gir novas propostas de arte enquantoforma de educação. Contribui no de-senvolvimento cognitivo do ser hu-mano, na sua socialização e relaciona-mento enquanto pessoa no meio emque esta inserido. O trabalho do corpo desde as pri-meiras idades facilita a coordenaçãomotora, por um lado e, por outro lado,é vantajoso, porque toda carga técni-ca nos movimentos mecânicos de ca-da individuo é benéfico para estimu-lar suas habilidades psico-motoras.

INSERÇÃO DA DANÇA NA SOCIEDADEARTES | 5Cultura | 20 de Junho a 3 de Julho de 2017

Pintura de Neves e Sousa

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No pré-escolar, as actividades de dan-ça ajudam no desenvolvimento dasensibilidade e o gosto estético, favo-rece a cooperação no grupo, desen-volve a critica e a autocrítica, a imagi-nação e a criatividade bem como otrabalho colectivo que se desenvolvedurante as actividades. Por isso é im-portante a sua aplicação como ferra-menta da educação, pois estimula odesenvolvimento global das crianças,favorecendo todo tipo de aprendiza-do que elas necessitam. A respeitodisso,Ferrari dizia que: a dança temgrande valor pedagógico, possui umaimportante ligação com a educaçãovisto que no universo pedagógico elaauxilia o desenvolvimento do aluno.Sua inserção na infância, é de vitalimportância, pois favorece habilida-des psicomotoras e adaptação social,por conseguinte desenvolve hábitossaudáveis que podem modificar futu-ros aparecimentos de doenças cróni-cas na idade adulta. E tem como objec-tivos: trabalhar as capacidades de ex-pressão, comunicação, criatividade,investigação e a improvisação.

Quem dança tem facilidade de secomunicar porque esta acostumado alidar com o corpo de forma intima. Eum dos objectivos da educação, é odesenvolvimento dos aspectos afecti-vos e sociais. A dança propicia gran-des mudanças internas e externas, noque se refere ao comportamento hu-mano, sua forma de ser, expressar epensar.Portanto, a partir dela o ho-mem pode representardiferentes pa-péis sociais e desempenhar relaçõesdentro de uma sociedade. A inserção da dança nos ProgramasCurriculares, visa encarar a mesma noprocesso de ensino-aprendizagem, co-mo actividade educativa, lúdica e cria-tiva, outrossim propiciar situações pa-ra a construção do conhecimento.Nesta perspectiva, na actualidade-não se pode compreender a dança co-mo uma mera diversão ou passatem-po, pois ela é tão importante quantofalar e cantar. É também portadora deuma riqueza de movimentos que en-volvem corpo, mente e emoções, quedesenvolve a aprendizagem global doindividuo que a pratica, dentro da so-

ciedade em que esta inserido.Esta reflexão didáctico-científica visa convidar a todas entidades de di-reito, a reflectirem sobre a possibili-dade de se criar, um departamento depesquisa das danças nacionais, comoforma de informação, divulgação epreservação da cultura nacional. Poroutro, aos Investigadores, Professo-res e especialistas desta arte cabe asua colaboração, portantodesenvol-vendo um estudo descritivo, explica-tivo e sistematizado das mesmas, ba-seando-se nas suas componentes ét-nico-culturais.Luanda, aos 21 de abril de 2017

BIOGraFIa

Judite Chavito sungo, DocenteUniversitária, Investigadora e Críti-ca da Dança. Mestre em estudosteóricos Da Dança, em Havana - Cu-ba, pela Universidade das artes(Isa), na Faculdade de arte Dançan-te. tem publicado vários trabalhos

científicos em revistas e Jornais,tais como: a Dança como Identida-de Cultural, Classificação das Dan-ças Folclóricas nas suas DistintasManifestações socioculturais, Cor-po criativo, Valorização das DançasFolclóricas angolanas, O Carnavalluandense como identidade cultu-ral nacional, eInserção da Dança nasociedade. e tem realizado tambémvários seminários, Palestras eWorkshops a nível nacional.

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DESAFIOS DO ARTISTA

A cultura do “amor à camisola”ADRIANO DE MELO |

A primeira vez que ouvi falar do“amor à camisola” estava a iniciar nojornalismo. Bons tempos. As coisaseram simples e era exigido qualidadeno trabalho. Algo que não aconteciasó no jornalismo, mas em quase todosos sectores do país. As pessoas davamo seu melhor e trabalhavam com com-promisso e devoção “por amor à ca-misola” e não pelo salário melhor ouuma futura promoção.Hoje, anos depois, se me pergunta-rem o que é “amor à camisola” respon-deria com três palavras: comprometi-mento, dedicação e empenho. Em qual-quer coisa que formos fazer na vida.Regras que fazem muita falta na actualsociedade moderna angolana, onde atéos pequenos ofícios, como sapateiro,ou marceneiro, que antes foram o orgu-lho dos seus fazedores, são feitos hojecom olhos no “rendimento rápido”.O “amor à camisola” já foi muito im-portante e marcou todo um período.

No jornalismo, que por acaso é o ramo(e o único) que melhor conheço, sóconheci este sentimento anos depois.Quando comecei ainda era o tempo doMS-DOS, um sistema operativo decomputador (desconhecido por uns),que já não se usa. Na época o jornalis-ta tinha de saber escrever, e muitobem, porque o programa não faziacorrecção automática ou marcava(com sublinhado a vermelho) as pala-vras erradas. Qualquer profissionaltinha de cumprir o seu trabalho comzelo. Para mim, foi uma época espe-cial. Fizeram-se muitos bons jornalis-tas. Eram tempos difíceis. Mas o“amor à camisola” prevalecia, já queera trabalhar todos os dias para no fi-nal do mês receber dez dólares (oequivalente em kwanzas).Porém, os tempos mudaram. As coi-sas estão diferentes. O “amor à camiso-la” foi esquecido. Bem ... são as mudan-ças do tempo. Mas a nostalgia por umperíodo difícil, onde demos o melhor eajudamos a criar um amanhã, mesmosem as recompensas financeiras e as

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de promoção dos novos tempos, dávontade de recuar e moldar nova-mente mentalidades.Se um desafio de todos, ou ape-nas de alguns, apenas o futuro po-derá dizer. Mas os artistas, estesnossos criadores, que a cada dia,com esforço e dedicação, dão umvislumbre do belo aos angolanos,ainda o fazem por “amor à camiso-la”, pois só assim se entende o seuempenho, mesmo a ganhar tão pou-co e sem muitas perspectivas.Apesar das “inúmeras bocas” quemandam uns sobre: “não vamosmais fazer nada sem apoios”, ou “oEstado precisa fazer mais ...”, a ver-dade é que na altura do “vamos verque é bom” a maioria dá o seu me-lhor para conquistar o público.Não sei se pela fama, ou por deixarum legado à posterioridade. Mas es-tes têm feito um trabalho excelente,com poucos recursos materiais e fi-nanceiros, ao ponto, de até mesmono estrangeiro, estarem a ser reco-nhecidos. Não é algo que se limita sóà música, ou às artes plásticas. Éuma realidade visível em todas asmanifestações artísticas.Claro, dentro do próprio ciclo ar-tístico, como acontece e é bem co-mum, a opinião sobre os trabalhos

apresentados variam, assim como aforma como cada um se esforça parao expor. O mais importante é que opúblico, nacional ou internacional,continua a ter uma amostra, cadamês, destas criações e o nome de An-gola ganha espaço além fronteiras.Se tivermos em conta, como disseo escritor norte-americano OscarWilde, que “a arte começa onde aimitação acaba”, então é preciso en-sinar à nova geração de autores a im-portância de começarem a criarmais, por iniciativa própria e amorao que fazem do que pelo sucesso edinheiro, afinal, tal como defendeuFernando Pessoa “a arte consiste emfazer os outros sentir o que nós sen-timos, em os libertar deles mesmos,propondo-lhes a nossa personalida-de para especial libertação.”Embora muitos não tenham a artecomo profissão e apenas fazem delao seu “hobbie”, muitos outros, ape-sar de terem a responsabilidade desustentarem uma família, sentem ocomprometimento que têm com opúblico, tanto quanto os profissio-nais das artes. São bons exemplos do“amor à camisola”, pois estes, pesan-do-lhes o sustento das suas famílias,poderiam ter desistido há anos. Épreciso reconhecer o seu esforço, as-

sim como de todos os outros: profis-sionais e amadores.Porém, urge fazer uma chamadade atenção. Acredito que, como dis-se uma vez o “pUeta de kimbundu”,seja necessário que este “amor à ca-misola” não tenha muitos corações.A dedicação requer afeição e acredi-to que não seja possível fazer isso,com duas, três ou mais ocupações.Dedicar-se à arte e ter um emprego éo suficiente. Agora, acrescentar “tra-balhos extras” é um exagero. Lembro que este mesmo “pUeta”,hoje já falecido, criticava todos quedesconheciam nomenclaturas e nãodistinguiam os cargos, porque paraestes “um ministro também é o di-rector, o secretário, o chefe de de-partamento ou de sector …”. Ua-nhenga Xitu ia ainda mais longe aoescrever, em “O Ministro”, que pre-tendia “pôr jindungo pisado/ noolho esquerdo daqueles/ que que-rem intrujar …”Nesta época das novas tecnolo-gias, onde o copiar e colar de frasesjá feitas e aos milhões na Internet,num simples “Enter” do Google, oude qualquer outro motor de busca,se tornam uma “regra social”, é pre-ciso valorizar o esforço e o trabalhodo criador, aquele que, com a sua

própria motivação, gasta horas doseu tempo para apresentar um tra-balho.Uma vez o célebre mestre da pin-tura pós-impressionista, Vincentvan Gogh disse: “A sua profissão nãoé aquilo que traz para casa o seu sa-lário. A sua profissão é o que foi colo-cado na Terra para você fazer comtal paixão e tal intensidade que setorna um chamamento espiritual”.Apesar de ser proveniente de umafamília de classe média, o artista ho-landês, que se tornou uma referên-cia das artes, foi um exemplo do em-penho e dedicação que se deve terpelo que fazemos, apesar das difi-culdades financeiras ou materiais.Portanto, o “amor à camisola” éuma forma de combater também es-se conformismo da modernidade,onde a “papinha feita” é a favorita detodos e um jovem não consegue nemmesmo mandar uma mensagem defeliz aniversário para um amigo semcopiar a de outro. O comodismo éum mal que precisa ser “extirpado”num país como Angola, onde bonsprofissionais e amadores com deter-minação são chamados, todos osdias, para ajudar a construir o paísdo futuro.

ARTES | 7Cultura | 20 de Junho a 3 de Julho de 2017

JISABU JA KAKALUNGAPROVÉRBIOS DE KAKALUNGA

1.- Mbe umona nduta ikala ku-kuzukama, eye usanduka dikangadina. 1.- Se vir o suborno aproximar-se de si, afaste-se para bem longe.

2.-Mbe umona kuma eye wala di-kanga anga wandala kuzukama, wi-mana hanji kofele anga uzukamakwenyoko. 2.- Se se aperceber que es-tá distante e quer estar próximo, le-vante-se um pouco e aproxime-se dolugar.

3.-Woso ukala mukwendesamwendexi lusolo, amwendesa we,mwalunga kwenyoko, ni lusololwoso lwatokala. 3.- Quem faz comque um condutor conduza rápido, eletambém é encaminhado par a eterni-dade com a devida rapidez.

4.- Okikalakalu kya katundakyene kyafwamena kukibanga. 4.-O trabalho excelso é o que se preten-de que seja feito.

5.- Kubendujuke kyoso ki ukalamu njila, ki afike kuma wala hanjiwakodiwa. 5.- Não cambaleie na ruapara que não suponham que aindaestá bêbado.

6.- Okukodiwa kwa monanden-ge hanji, iyi yene o ukatelu wamwiji wetu. 6.- A bebedeira de umacriança é a doença da nossa geração.

7.- Kutumbisa mukutu ni kudyakwavulu, iyi yene o ukatelu wakindala mu ngongo mumu mutwala. 7.- Fazer inchar o corpo com acomida, é essa a enfermidade actualdo mundo em que nos encontramos.(os excessos prejudicam).

8.- Kuzula kwene kwazele, uxi-sa muxima wazele we. 8.- Despirem lugar limpo, deixa a alma limpa,também.

9.- Kujize kutula mwalunga lu-solo, nda ukale hanji ni mwenyu,benyaba. 9.- Não insista pousar ra-pidamente na eternidade, para queainda tenha vida, aqui.

10.- Lenguluka kukala hanji nimwenyu, ki usange okizukamenukya kufwa kwe. 10.- Apressa-te emestares ainda com vida, para que nãoencontres a proximidade da tuamorte.

MÁRIO PEREIRA

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SANDRA POULSON|Apaz das armas estána puberdade. Foi há 15 anos que o trovar dos ca-nhões se calou, permitindo outra forma de viver, mais calma e com espe-rança de dias melhores e anos mais prósperos. Ao longo destes 15 anos de Paz e Reconciliação Nacional, construímos muitoem betão e investimos pouco no homem, mas havemos de lá chegar. A melhor forma que encontramos de comemorar o dia 4 de Abril de 2017 foisolidarizarmo-nos com uma vítima da não Paz social. Um homem digno, traba-lhador, pai de família, foi toda a vida empenhado num trabalho que realizou comesmero e dedicação.Uma figura alta, serena, bem-disposta, sorridente, mas pensativa. Ficou doen-te e imobilizadoe, à boa maneira angolana foi dispensado pelo empregador semalgum apoio, subsídio, mensalidade,reforma, uma qualquer forma que lhe per-mitisse a si e há sua família subsistir.Tem 45 anos de trabalho e 61 de idade.É Kitômbwa, um antigo Ranger, guarda-florestal, que acumulava com a fun-ção de pisteiro do Parque Nacional da Kissama, situado na Província de Luanda.Conduziu, durante anos, milhares de turistas nacionais e estrangeiros. Em conversa disse-nos:- Estou aqui desde 10 de Maio de 1972, ainda isto era do Serviço Veterináriode Angola, depois da Independência é que passou para a Fundação Kissama. - Naquele tempo, antes da Independência, tinha muitos animais, depois os ca-çadores furtivos foram abatendo os animais e pouco restou. Foi quando a Fun-dação Kissama mandou vir animais do Botswana e da África do Sul, para se re-produzirem aqui dentro. - E como eu já era pisteiro aqui, requisitaram-me. E trabalhei para a FundaçãoKissama. - Depois veio a empresa Kurika que passou a gerir o Parque e eu fiquei a tra-balhar para a Kurika.Recordando o tempo antigo, continua: - Antigamente, o primeiro acampa-mento chamava-se Kawa, era no Bom Jesus. Povoação a 44 quilómetros de Luanda, onde era a Açucareira com o mesmonome, que se situa a caminho de Catete, terra do nosso Manguxi, primeiro Presi-dente de Angola, Dr. Agostinho Neto. - A entrada do Parque Nacional da Kissama era aí no Bom Jesus, e quando de-cidiram fazer outra entrada na estrada Nacional numero 100, que liga Luandaao Sul de Angola, a primeira passou a chamar-se Kawa 1, e esta Kawa 2. - Antes de mim, o primeiro pisteiro daqui foi o Machado, e foi a ele que manda-ram fazer um acampamento, no Kawa 2, para receberem turistas. Que é este aqui.Fala-nos também no meio de transporte usado.- Atravessava-se o Rio Kwanza de Jangada, automóveis e pessoas do Kawa 1 atéaqui Kawa2.- Da Cabala podemos vir até aqui à Aldeia do Kawa por esta picada. Indicando-nos a picada, em terra vermelha. - Como vivem aqui com os ani-mais tão perto, sem alguma vedação, não têm medo? - Pergunto eu.

- Não, não temos. Os animais não fazem mal a ninguém, eles não atacam, só seestiver ferido ou for provocado pelo homem.- Eu aqui sentado, eles chegam mesmo aqui, a dois metros de mim. Vêm cum-primentar-me.- Os animais não incomodam o homem.- E os leões? - Pergunto eu.- Aqui já não tem leões. Em 1972, antes da Independência de Angola, tinha mui-tos.- Os elefantes estão um pouco afastados daqui, eles arrancam as mandioquei-ras e comem tudo, não deixam nada.Entretanto, chega até nós a dona Antonieta, sua esposa.Mulher alta, de bom porte e bom andar. Tez clara, lábios sorridentes, massempre emocionada. Todo o tempo que falou connosco, os seus olhos lacrimeja-vam das amarguras da vida. - Estou aqui desde 1975 e só juntei com ele nessa altura. Tive a primeira filhaem 1980, tive outra em 1982 e a caçula em 1988.Agora só temos duas filhas e oi-to netos.Eu nasci em Casebo, aqui mesmo na Kissama. A água que consumimos édo Rio Kwanza. A motobomba puxa e sai nas torneiras. Aqui não tem escola. Osmiúdos, para estudar, têm que ir na família e ficar lá em Luanda.- Aqui tem Hospital (penso que é um posto médico), mas o enfermeiro não fi-ca aqui. Quando você está doente tem de telefonar ao enfermeiro para ele vir, epor vezes ele não vem. Temos que ir sempre a Luanda.Do acampamento do Kawa 2 onde estivemos e onde vive Kitômbwa até aoHospital mais próximo, o antigo Hospital Maria Pia, hoje Josina Machel, sãoquarenta quilómetros de picada dentro do Parque Nacional da Kissama, mais72 quilómetros até à entrada de Luanda. Trajecto que demora horas a percor-rer sem trânsito. A acrescentar que não há meios de transporte e eles não tem automóvel.- Há um ano, eu estava aqui, e vieram chamar-me. Foi um turista, que veio.Disse-me, o teu marido caiu.- Caiu como? Ele foi agora no Campo.Quando fui lá, pensei ele já não estavabom. (Ou seja tinha falecido.)Levei-o a Luanda ao Hospital. Usou descartáveisdurante 8 meses. Mas graças a Deus já consegue falar um pouco. Vai melhorar. Omeu marido é caçula da mãe dele, ela só tem dois rapazes e uma menina. A mãeestá sempre a chorar pelo filho, ela vive a 30 quilómetros daqui, lá na Kissama. Para os autóctones deste acampamento, a Kissama é mais perto do rio, a estazona chamam Aldeia do Kawa.O caçulaé o filho ou irmão mais novo. A palavra provem da língua Quimbun-do, Kusuluka, que significa ficar livre, estar despachado. O filho mais novo é aquele que mais faz lembrar a maternidade, as dores departo, as noites mal dormidas, os afectos mais intensos, as brincadeiras mais ac-tivas, sozinho ou entre os irmãos. Ele junta as suas traquinices às dos irmãosmais velhos, e por cansaço ou por deixa-andar, os progenitores desculpam-nomais, pois o seu cordão umbilical foi o último a ser cortado.Na tradição angolana frisa-se muito o facto de ser mais novo, mesmo que porvezes se diga, é o caçula mas não é o último, ou seja, que o progenitor poderá vira ter mais filhos. Os filhos são a nossa riqueza, e da acumulação da riqueza nuncase fecha a porta.- Estamos há um ano desde que saímos do hospital com o velho (Kitômbwa).Nunca mais lhe mediram a tensão, para lhe medir a tensão temos que ir longedaqui, a Kalumbo.

8 | GRAFITOS NA ALMA 20 de Junho a 3 de Julho de 2017 | Cultura

KITÔMBWA,UM PISTEIROABANDONADO

Entrada do Parque Nacional da Kissama

O pisteiro Kitômbwa

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Igreja da Muxima vista do Forte

GRAFITOS NA ALMA | 9Cultura | 20 de Junho a 3 de Julho de 2017- Para lhe dar os medicamentos, eu não sei como fazer. Eu não sei ler.Acresce dizer que nós levamos medicamentos, de um doador, que vieram deLisboa. E connosco foi uma voluntária, médica farmacêutica, Dra. Maria do Ro-sário Boavida, que deu os conselhos necessários e explicou como se tomam osmedicamentos. Aconselhando-o também que embora o grupo tivesse muitoprazer em ter-lhe oferecido a cadeira de rodas, ele devia tentar andar com o an-darilho, para fortalecer os músculos das pernas.- Antigamente isto foi bonito, tínhamos loja, não precisávamos de ir fazercompras aCalumbo. Nós aqui não podemos cultivar, os animais vêm e comemtudo. A mangueira que aqui está, não conseguimos comer as mangas, as gungassobem e comem tudo.- Lembra-se de alguma estória de animais para nos contar? Por exemplo dejacaré, ou de dikunji?- De jacaré e de dikunji eu não sei, o povo do Kwanza é que sabe essas estórias.Reparem que estamos perto do Rio Kwanza, embora não à beira.- Eu só sei estória de seixa, de bâmbi, e de gunga, mas agora não me lembro.- Nós aqui temos muitas gungas, pacaças, javalis, veados, elefantes.As girafase as zebras não nos ligam mesmo. Passam mesmo ao pé de nós. É como se fos-sem família. As gungas, os veados e os gnus estão sempre aqui connosco. Osmiúdos quando estão aqui nas férias, as gungas vêm mesmo aqui à porta, comoeles não estão muito habituados fogem. Mas elas não fazem mal.Enquanto lá estivemos a conversar com a família de Kitômbwa, e com ele pró-prio, não veio nenhum indivíduo de quatro patas visitar-nos, o que foi pena, sómais tarde,quando estávamos a almoçar num jango ao pé do Miradouro, a ver osmangais, os tons de verde, e a sentir os cheiros da natureza, do capim, da terravermelha, da bosta, é que vieram os macaquitos roubar-nos a nossa comida. Fa-ço aqui lembrar que os caixotes de lixo são abertos e mesmo que nós amarre-mos bemos sacos, os macaquitos abrem-nos e espalham o lixo.A dona Antonieta, enquanto chorava, dizia-nos:- Eu agradeci muito pela vossa visita. Eu até nem sei como agradecer, só mes-mo Deus. Se não fosse Deus, este meu marido já não existia. De regresso estávamos mais leves, mais animados. O nosso contentamen-to era de tal forma que subimos ao pedestal, que estána entrada principal, ados turistas, pintado de ondas verdes, sobre um fundo branco da Paz igual àsnossas camisolas. A nossa missão de solidariedade estava cumprida, fomos intermediários deuma doação de uma cadeira de rodas, que antes de a dar, fomos benzê-la ao San-tuário de Nossa Senhora da Muxima, em que o Padre Sérgio, de origem argenti-na,fez connoscoorações. Oremos para chegar à Paz adulta, maior e vacinada, mais fraternos, mais ge-nerosos, mais bondosos, dignificando e respeitando o outro. E como o acto solidário é espontâneo, ninguém pode ser obrigado a exercê-lo,faço minhas as palavras de dois voluntários do grupo: “Solidariedade não é dar o que sobra, é dar o que falta. A capacidade de se co-locar no lugar do outro é uma das funções mais importantes da inteligência. De-monstra o grau de maturidade do ser humano. Boa viagem ou melhor dizerboas viagens, bons momentos, boas companhias, boas risadas, bons dias e que onovo se faça presente em nossas vidas de uma forma especial. Meus amigos,mais uma missão de solidariedade cumprida. Obrigada a todos por este mo-mento, sejam felizes.” (José Manuel Carneiro)“Quero agradecer a todos o facto de ter feito parte deste grupo que leva a pa-lavra solidariedade tal como deve ser entendida. Bem hajam. Passeios e diverti-

mentos sempre presentes. Um beijo a todos”. (Xarito Boavida)- Qualquer tipo de animal não faz mal, o animal habitua a pessoa, -dizia-nosKitombwa. Somos nós os humanos que fazemos mal uns aos outros. Luanda, Abril de 2017

Montagem da Cadeira de rodas

Paisagem da Kissama, vista do Miradouro do Parque

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10 | HISTÓRIA 20 de Junho a 3 de Julho de 2017 | Cultura

ANGOLA NA ARQUITECTURA DE PAZ E SEGURANÇA AFRICANA

(Análise da Função Estratégica das Forças Armadas Angolanas)MIGUEL JÚNIOR|A obra A Posição de Angola na Ar-quitectura de Paz e Segurança Africa-na (Análise da Função Estratégica dasForças Armadas Angolanas) é da auto-ria do tenente-coronel Luís ManuelBrás Bernardino, oficial do Exércitoportuguês, docente universitário e in-vestigador. O autor publicou este tra-balho em Março de 2013 (Editora Al-medina). Por isso, a obra está disponí-vel, desde essa data, aos leitores dalíngua portuguesa. Entretanto, o autordecidiu publicar agora a presenteobra em língua inglesa, com a chance-la da Mercado de Letras Editores, aquina Sociedade de Geografia de Lisboa,sociedade científica, cuja missão, des-de 1875, é auxiliar o estudo de maté-rias científicas e contribuir para o pro-gresso das ciências geográficas e cor-relativas em Portugal.Esta publicação em inglês é uma ini-ciativa louvável na medida em que osleitores da língua de Shakespeare, eoutros, terão assim a oportunidade deler mais uma obra que retrata o per-curso das Forças Armadas Angolanasdesde o momento da sua criação(1992). Além do mais, com esta publi-cação em inglês, os demais leitoresvão perceber o ponto de vista desteacadémico português sobre o papeldas Forças Armadas Angolanas no do-mínio da segurança nacional e no querespeita à segurança das regiões geo-gráficas onde se encontra inserida aRepública de Angola. Tecendo outras considerações so-bre esta edição em língua inglesa, de-vemos salientar que ela difere, emcerta medida, da versão em portu-guês porque o autor excluiu a parteconceptual. Isto é, o aparelho episte-mológico. De resto, esta parte consti-tuiu o suporte teórico e a base de en-quadramento da sua tese de doutora-mento e ela consta da publicação emlíngua portuguesa. Esta parte con-densa, nada mais, nada menos, que osaspectos teóricos e conceptuais noâmbito da História, Estratégia, Ciên-cia Política, Geopolítica, Geoestraté-gia, Diplomacia, Segurança, Desen-volvimento, Defesa e Relações Inter-nacionais, associados ao fenómenoda guerra e à questão da paz nos con-textos internacional, continental, re-gional e nacional. Os aspectos teóricos e conceptuaissão essenciais para uma obra destaenvergadura, mas a sua omissão nãodescaracteriza a obra. Muito pelo con-trário, ela confere a mesma outra elas-ticidade. De resto, no miolo da obra há

incursões teóricas que colmatam aparte que foi retirada. A obra preserva,assim, a sua clareza e o seu propósito. Esta obra insere-se, entretanto, noâmbito dos estudos de defesa e segu-rança e na perspectiva dos estudosteorico-militares já que o seu autorprestou atenção aos aspectos da edi-ficação militar do Estado angolano de1992 em diante. A edificação militar ésempre conceptualizada com basenas políticas de defesa, mas atenden-do a situações de segurança nacional,a envolvente e desafios regionais,continentais e internacionais. De fac-to, é importante perceber o processoda edificação militar no contexto doEstado democrático e direito porqueesta parte representa outra etapa doponto de vista da história da edifica-ção militar em Angola. Outro aspecto que caracteriza estaobra é o facto de que o seu autor fezuma introspecção a história militar deAngola. O passado militar angolano évasto e é composto por vários momen-tos. Momentos distintos, mas todoseles ricos, os quais devem ser valoriza-dos em trabalhos desta envergadura.Desta maneira, este trabalho tambémpossui elementos historico-militaresno seu corpo e que estão bem enqua-drados devido à metodologia e à es-trutura adoptadas pelo autor. Numapalavra esta obra constitui, sem dúvi-da, mais um contributo à historiogra-fia militar angolana.Outrossim, esta versão em línguainglesa está a ser lançada hoje, dia 31de Maio 2017, data do 26º aniversárioda assinatura dos Acordos de Bicesseem 1991. Na verdade, estamos diantede um dia histórico porquanto as For-ças Armadas Angolanas são uma ema-nação desses acordos e elas represen-tam o pilar da segurança nacional esão um instrumento da política exter-na da República de Angola.Desta maneira, nunca é de mais re-visitar o percurso das Forças Arma-das Angolanas. De facto, estas ForçasArmadas constituíram-se com basenum conjunto de directrizes à luz dosAcordos de Bicesse e tendo em contatambém os pressupostos históricos epolíticos. Assim a herança militar doEstado, oriunda das Forças ArmadasPopulares de Libertação de Angola(1975-1991), mais os subsídios ar-mados de base guerrilheira, decor-rentes das Forças Armadas de Liber-tação de Angola (1975-1991), mere-ceram o tratamento que se impunhano contexto da formação do novoExército nacional. Estas foram as bases que permiti-

ram edificar o novo Exército nacionale dar continuidade ao processo de edi-ficação militar do Estado angolano. Dajunção do Exército regular (FAPLA)mais a Organização armada (FALA)nasceram as Forças Armadas Angola-nas. Mas, desde 1991 até ao momen-to, as Forças Armadas Angolanas pas-saram por várias etapas. Elas cresce-ram de forma rápida, a fim de travar aguerra que se tinha instalado no paíslogo após as eleições de 1992. Para oefeito, o recurso foi aproveitar osmeios das FAPLA e incorporar muitosdos seus efectivos e outros das FALA.Nestas condições, e com base em vá-rias mudanças que se operaram nasForças Armadas Angolanas, foi possí-vel fazer a guerra e contribuir para apaz em Angola. Quando as Forças Armadas Angola-nas estavam a fazer a guerra em Ango-la, elas intervieram na África Central(República do Congo Brazzaville e naRepública do Zaíre). Essas interven-ções militares, em parceria com a Na-míbia e o Zimbabwe, contribuíram pa-ra estabilização política da África Cen-tral e elas foram a prova da disponibi-lidade do Estado angolano em relaçãoà paz e à segurança desta região emconcreto. E isto constituiu, de maneirainequívoca, a demonstração de que oEstado angolano mais as suas ForçasArmadas estão disponíveis a empres-tar o seu melhor do ponto de vista dapaz e segurança regionais, quer noâmbito da União Africana, quer dasOrganizações Regionais (África Cen-tral e África Austral). Aliás, no pre-sente, esforços têm sido congrega-dos no sentido de se garantir à paz e àsegurança. No entanto, a arquitectu-

ra de um sistema de segurança e pazimplica olhar para duas direcções:segurança nacional e segurança re-gional. Fica difícil contribuir para se-gurança regional, quando não se va-loriza a segurança nacional. Mas a paz e a segurança no continen-te africano têm também que desembo-car em contributos à paz e à segurançamundiais. De resto, Kofi Annan, antigoSecretário-Geral das Nações Unidas,teceu considerações em 2016 sobreAfrica and Global Security Architeturee destacou que os desafios de África e oseu papel na segurança global impli-cam ter em conta o papel de África noConselho de Segurança das NaçõesUnidas, o papel da União Africana e dasOrganizações sub-regionais, o enqua-dramento da massa juvenil nas econo-mias nacionais e o aproveitamento dejovens talentosos e futuros líderes, oestabelecimento de sistemas eleitoraiscredíveis e o reforço dos sistemas de-mocráticos e “a qualidade das forçasde segurança” (in Tana Hign Level Fo-rum on Security in Africa, 16 April2016, Remarks by Kofi Annan).Estas palavras atestam que os Esta-dos nacionais em África têm que arti-cular a segurança e a paz de formaabrangente e valorizando o papel e olugar das Forças Armadas no contextoda segurança nacional. Finalmente,em vinte cinco anos de existência, asForças Armadas Angolanas crescerame continuam a crescer. Elas têm feitomuito para alcançar outros patamaresde organização. O crescimento é indis-pensável porque facilita o cumpri-mento das missões constitucionais eajuda a garantir à paz e à segurança nocontinente africano.

Miguel Júnior (ao centro)r, embaixador Luís de Almeida, Manuel Kassapa e outros

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HisTóRiA | 11Cultura | 20 de Junho a 3 de Julho de 2017

PAULO HENRIQUE POMPERMAIER|DA CULTCom o “modesto” objectivo de apre-sentar as principais linhas de pensa-mento de autores africanos, o livro Opensamento africano no século XX reú-ne textos de dezasseis especialistasbrasileiros que apresentam um pano-rama geral da intelectualidade africanado século 20.“Conforme apontaram estudiososeminentes, o conhecimento produzidopelo Ocidente sobre a África corres-pondeu a formas de predação em di-versos níveis, e a restituição da autono-mia plena implica na devolução aosafricanos de sua capacidade de resol-ver seus próprios problemas, de gerirsuas riquezas, de conhecer o seu passa-do, discutir o seu presente e esboçar aslinhas de seu futuro”, afirma o organi-zador da obra, o professor da Universi-dade Federal do Rio Grande do Sul(UFRGS) José Rivair Macedo.O anti-colonialismo, a descoloniza-ção e o pós-colonialismo da África sãoalguns dos temas essenciais tratadospor esses pensadores africanos, que,participando dos movimentos de liber-tação do continente, foram chefes deEstado, filósofos, escritores, historia-dores e cientistas sociais. Entre eles, es-tão nomes como Léopold Sédar Seng-hor, Joseph Ki-Zerbo, Frantz Fanon,Achille Mbembe e Paulin Hountondji.Em entrevista à CULT, o professorfalou sobre as raízes e a importânciado movimento.CULT – A África é um continente

com mais de 50 países. Dentro dessadiversidade cultural, religiosa, polí-tica e social, como você definiria umpensamento africano?

José Rivair Macedo – É muito difícilformular uma definição precisa do queseria o “pensamento africano”. As con-ceituações são forçosamente limitadase quase sempre restringem as possibi-lidades de apreensão da complexidadedo real. Em última instância, não existeum “pensamento africano”, como tam-bém não existem um “pensamento eu-ropeu”, um “pensamento ocidental” ouum “pensamento brasileiro”. Entretan-to, se a diversidade é o que prevalece nabase das experiências locais e na origi-nalidade das vivências compartilhadaspelas dezenas de organizações estataise pelos inumeráveis grupos etnolin-guísticos espalhados pelo continente,nos últimos séculos o processo de uni-ficação planetária promovido pelo ca-pitalismo ocidental classificou, hierar-quizou e criou formas de domínio de

carácter económico, político e culturale forçou a aproximação entre pessoas,grupos e instituições originalmentedistintas, gerando pautas de reivindi-cação comuns. Então, embora a ideiade um “pensamento africano” guardeem si uma parcela de artificialidade, elapassou a existir gradualmente a partirdo momento em que pessoas nascidasem diferentes partes da África – e mes-mo fora dela, na Diáspora negra – pas-saram a reivindicar para si uma identi-dade ancestral comum.Quando isso começou?É muito provável que isso tenhaacontecido pela primeira vez no princí-pio do século 16, quando o eruditoafro-muçulmano de origem marroqui-na chamado Hassan al-Wazzan (c.1486- c. 1535) foi levado prisioneiropara as cortes da actual Itália, onde setornou secretário do papa Leão X e,com o nome católico de “João Leão oAfricano” escreveu a primeira obra decarácter enciclopédico sobre o conti-nente, a Description de l’Afrique(1530), que até o século 18 seria umareferência obrigatória de leitura sobreo Magreb e a África subsaariana pelosletrados europeus. Séculos depois, naprimeira metade do século 18, no mes-mo contexto em que adeptos do ideárioiluminista viam os nativos do continen-te africano como seres desprovidos deplena humanidade, relegando-os a es-tágios inferiores na escala evolutiva ounegando-lhes a capacidade de gerir demodo autónomo sua existência, um ho-mem nascido na antiga região da Costado Ouro (actual república de Ghana),chamado Anton Whilelm Amo (1703-1753), formou-se em Filosofia e leccio-nou em universidades germânicas deHalle, Wittemberg e Iena, adoptandopara si o nome de Amo Guinea Afer, istoé, “Amo guineense, o africano”. Vê-seentão que, nesses casos, o genitivo ob-jetivo “africano” resulta de pertenci-mentos construídos, reivindicados.Tendo isso em mente, e em conformi-dade com os argumentos do filósofomarfinense Paulin Hountondji, um dosintelectuais enfocados em nosso livro,defino como “pensamento africano”um conjunto de textos escritos por in-telectuais que se afirmam como africa-nos, elaborados com a finalidade de ex-pressar ou interpretar a posição deseus congéneres em relação ao mundo.Este se distingue dos saberes inerentesaos sistemas religiosos tradicionais, cal-cados na oralidade e na ancestralidade;do pensamento negro diaspórico, comque parcialmente se identifica; e do pen-samento de tipo eurocêntrico, difundi-

do no continente no período de domina-ção colonial, ao qual, aliás, muitas vezesse opõe ao oferecer alternativas endó-genas de explicação dos fenómenos so-ciais, políticos, económicos e culturais.Há um elemento, além da geogra-

fia, que une os pensadores trabalha-dos no livro, uma temática que vocêpercebe como o centro das preocu-pações desses intelectuais?Ao contrário do que ocorreu nos sé-culos anteriores da longuíssima histó-ria da África, quando os africanos eramplenamente senhores de seu destino,no século 20 seus povos viveram du-rante décadas sob dominação colonial,lutaram pela autodeterminação e fo-ram forçados a reconstituir sua exis-tência no contexto da descolonização eda reorganização político-social do pe-ríodo pós-colonial. A fractura colonial eseu duplo, o racismo, produziram apro-ximações potencialmente inovadorasentre africanos e afro-americanos, emovimentos de valorização cultural e

de afirmação político-social lastreadosna ideia de uma solidariedade trans-continental entre os povos negros – emprimeiro lugar o Pan-africanismo, e osconceitos de “personalidade africana”e “negritude”. Alguns intelectuais estu-dados no livro participaram activa-mente da história política, liderandomovimentos de libertação e ajudando acriar nações (Frantz Fanon, AmilcarCabral), certos deles alcançaram a po-sição de chefes de Estado (Léopold Sé-dar Senghor, Kwame Nkrumah). Ou-tros são filósofos (Marcien Towa, Pau-lin Hountondji, V. Y.Mudimbe, SeverinoNgoenha), historiadores (Joseph Ki-Zerbo), escritores (Wole Soyinka) oucientistas sociais (Cheikh Anta Diop,Achille Mbembe) que ganharam noto-riedade ao propor explicações sobre acondição dos africanos no cenário in-ternacional, sobre as alternativas en-contradas por eles para criar institui-ções políticas e sociais modernas,rompendo ou não com as formas tra-dicionais de organização vigentes emtodo o continente.

O PENSAMENTO AFRICANO NO SÉCULO XXLivro reúne ideias dos principais pensadores africanos do século 20

Para o professor José Rivar Macedo, organizador da obra, todo o co-nhecimento produzido pelo Ocidente sobre a África corresponde a ‘for-mas de predação em diversos níveis’

Benin, se�culo XX. Cobre e ferro,105 cm. L'art royal africain, 1997

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Não há o perigo de homogeneizaressa diversidade ao se falar em ‘pen-samento africano’?Em face do dilema diante da escolhaentre a unidade e a diversidade, segui-mos a posição do eminente cientistasocial Elikia Mbokolo, da École dêsHautes Études en Sciences Sociales, pa-ra quem, na África como em todo lugar,a história é marcada por processos di-nâmicos, com continuidades, adapta-ções e rupturas. Alguns desses proces-sos aproximam povos e sociedades, ou-tros produzem identidades locais, in-tercâmbios e intensa circulação de esti-los de vida, crenças e ideias, modelosde organização sócio-política. Unidadee diversidade são elementos intercam-biáveis para a explicação do real africa-no, e a escala que melhor convém esco-lher para interpretá-lo – única, da Áfri-ca, ou múltipla, das Áfricas -, dependedos objectivos pretendidos. Quantomais o foco se deslocar do exterior parao interior do continente, mais prevale-cerá a diversidade, a singularidade e aespecificidade étnicolinguística, reli-giosa, cultural, regional. Mas convémnão esquecer que, no período contem-porâneo, essas dinâmicas locais são, atodo o instante, afectadas em virtudede processos de unificação económicae políticas exteriores a que estão liga-dos fenómenos de extroversão desen-volvidos pelas elites africanas associa-das ao capital internacional. De modoque, seja qual for a escala de análise, asformas de expressão do ser africanosão eminentemente periféricas, subal-ternas, enquadradas segundo critériosde distinção étnico-racial impostos defora para dentro. Entendo que o perigoda homogeneização ronda as interpre-tações generalizantes, globalizantes,pouco propensas a considerar a com-plexidade e o papel dos contextos re-gionais e locais, mas o acento na diver-sidade guarda também seus riscos, e

num ensaio famoso Kwame Nkrumahdenunciou o perigo da balcanização docontinente como o mais perverso efei-to do neocolonialismo. Gosto particu-larmente da posição defendida pelo es-critor Chinua Achebe, citada em epí-grafe num dos capítulos do livro deAnthony Kwame Appiah intitulado Nacasa de meu pai (1997), quando o ro-mancista diz: “Sou um escritor ibo, por-que essa é minha cultura básica; nige-riano, africano e escritor… Não, primei-ro negro, depois escritor. Cada umadessas identidades efectivamente in-voca certo tipo de compromisso de mi-nha parte. Devo enxergar o que é sernegro – e isso significa ser suficiente-mente inteligente para saber como girao mundo e como se saem os negros nomundo. É isso que significa ser negro.Ou africano – dá no mesmo: que signifi-ca a África para o mundo? Quando se vêum africano, que significa isso para ohomem branco?”O livro ajuda a colocar os povos

africanos como protagonistas dahistória?Espero que sim. Já se tornou lugarcomum considerar a África como o“berço da humanidade”. Poucos hoje sedão conta que há sessenta anos tal as-sertiva seria tomada como um dispara-te, um absurdo. As publicações deCheikh Anta Diop, a começar por Na-ções negras e cultura (1954) inovaramao introduzir o debate sobre a anterio-ridade africana na História da Humani-dade e ao reivindicar o vínculo matri-cial entre o Egipto e a África negra. En-voltas em polêmica e seguidas de in-tenso debate, as ideias diopianas exer-ceram forte influência na tendência in-terpretativa conhecida como afrocen-trismo, que, por sua vez, foi e continua aser fundamental como base de susten-tação teórico-conceitual dos movimen-tos negros americanos. Independente

do quanto tenham, ou não, lastro emdados empíricos, do quanto compor-tem mais de ideologia do que de conhe-cimento cientificamente comprovado –e aqui a definição de “ciência” esbarraem pressupostos que não são consen-suais -, a recepção e difusão do ideárioafrocentrista reveste-se de grande efi-cácia simbólica, cultural, social. Porem,se a defesa da anterioridade, especifici-dade ou autenticidade africana corremo perigo de recair em essencialismos eem contra-discursos, o reconhecimen-to das dinâmicas africanas de longa du-ração defendidas nos anos 1960-1970por Joseph Ki-Zerbo abriram outraspossibilidades ao reconhecimento doprotagonismo dos povos africanos nahistória. Os ritmos, temporalidades,circularidade e entrecruzamentos quedão sentido às diversas experiênciashistóricas do continente provam a au-tonomia de suas instituições originá-rias e sua enorme capacidade de adap-tação e resistência. Uma das marcasdistintivas dos africanos no mundotem sido sua propensão para lidar comdiferentes signos, conferindo-lhes sen-tidos reconfigurados, recompondo-osde acordo com o contexto e com a situa-ção em que se vêem inseridos, dentro efora do continente.Normalmente a Grécia antiga é

colocada como o berço da filosofia.Produções intelectuais, contempo-râneas aos filósofos antigos, de ou-tras partes da África, como do Egip-to, muitas vezes são ignoradosquando se fala do surgimento da fi-losofia porque não carregam o ra-cionalismo ocidental. Você acha queainda há esse processo de desvalori-zação da produção intelectual nãoeurocêntrica?Seria preciso problematizar nossaideia de “normalidade” e admitir oquanto nosso desconhecimento de ou-tras culturas e formas de pensamentodecorre de limitações inerentes a nos-

sa condição subalterna. Desde o títulode uma de suas obras, o filósofo PaulinHountondji formula a questão que emminha opinião deveria ser central: Larationalité, une ou plurielle? (A racio-nalidade, una ou plural?) (2007). O quetem sido colocado em discussão é aeleição da filosofia e do logos helênicoressignificado em ambiente judaico-cristão como paradigma universal deconhecimento. Para o filósofo e filólogoV. Y. Mudimbe, da Universidade de Du-ke, a gnoseafricana resulta de sucessi-vas interações entre tradições, formasde conhecimento nutridos pela tradi-ção oral, e o saber formal de tipo oci-dental. Também Hountondji tem de-senvolvido diversos seminários eorientado projectos de investigação so-bre o que ele denomina de “conheci-mentos endógenos”, em que o saberformal e o saber-fazer, o escrito e o oral,a tradição ancestral e a ciência não sãocolocados em confronto, e sim em inte-racção. O importante é ter em menteque os processos de aquisição, acumu-lação e transmissão de conhecimentonão são isolados, mas se encontram emconstante circulação, sendo apropria-dos e utilizados de acordo com diferen-tes interesses e finalidades.Qual é a importância deste livro?A elaboração de uma obra como aque aqui se discute assume de imedia-to uma posição em face do etnocentris-mo e reveste-se de carácter anti-racis-ta. Não quer dizer que apenas pessoasoriginárias da África devam ter exclu-sividade nas interpretações formula-das sobre sua realidade, mas que é im-portante garantir a elas espaço deenunciação, de modo a conhecermosdirectamente sua palavra, seus pontosde vista. Conforme apontaram estu-diosos eminentes, entre os quais o his-toriador nigeriano Toyn Falola, o co-nhecimento produzido pelo Ocidentesobre a África corresponde a formasde predação em diversos níveis, e arestituição da autonomia plena impli-ca na devolução aos africanos de suacapacidade de resolver seus própriosproblemas, de gerir suas riquezas, deconhecer o seu passado, discutir o seupresente e esboçar as linhas de seu fu-turo, enfim, implica em lhes conferir“poder de definição”. Nosso livro nãopretende atingir o público académico,menos ainda os especialistas em Estu-dos Africanos, para quem a maiorparte dos assuntos tratados é fami-liar. Alguns intelectuais aqui estuda-dos (Léopold Senghor, Joseph Ki-Zer-bo,Frantz Fanon, Amílcar Cabral, Se-verino Ngoenha) tem sido mais oumenos estudados em dissertações eteses, enquanto outros (Kwame Nkru-mah, Marcien Towa, Cheikh Anta Diop,Paulin Hountondji, V. Y. Mudimbe,Achille Mbembe) carecem de estudosespecializados em nosso país. O livrotem o objectivo modesto de apresen-tar as principais linhas de rumo daobra desses autores, cujos textos sãoessenciais para a compreensão do co-lonialismo, anti-colonialismo e pós-colonialismo na África.

Frantz Fanon

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PAULO HENRIQUE POMPERMAIER|DA CULT

SINOPSE“Durante os períodos da coloni-zação europeia, descolonização ereorganização das sociedades afri-canas, ao longo dos séculos XIX/XX,diversos intelectuais nascidos naÁfrica apropriaram-se de um vastoconjunto de referenciais teóricos,conceituais e metodológicos, em-pregando-os para expressar a posi-ção de seus coetâneos em relaçãoao mundo. Paralelamente aos sabe-res orais tradicionais, e à experiên-cia vivida que orientavam as for-mas de organização socioculturaldos povos anteriores ao período depredomínio europeu, ganhou corpoum novo tipo de saberes, eruditos,fundados em pressupostos acadé-micos, científicos, que deu susten-tação ao que se tem denominado depensamento africano moderno.Constituído por autores com per-fil intelectual, social e político varia-do, e orientado por pautas e ques-tões por vezes complementares epor vezes divergentes, tal pensa-mento é atravessado pela reivindi-cação de uma interpretação endó-gena das questões atinentes ao seucontinente. Entre os temas recor-rentes, encontram-se a negritude eo pan-africanismo, o nacionalismo,a revolução e o socialismo africano,as identidades étnico-raciais, a de-pendência e o desenvolvimento.Este livro é uma modesta contribui-ção para a introdução aos debates de-senvolvidos por intelectuais consa-grados na luta pela autodeterminaçãodos povos africanos, no combate aoetnocentrismo e ao racismo, na pro-posição de alternativas para a cons-trução da justiça social e da democra-cia em seus respectivos países. Deleparticipam jovens pesquisadores afri-canos e brasileiros, docentes e pesqui-sadores universitários interessadospelos dilemas e desafios que se apre-sentaram aos intérpretes sociais, cul-turais e políticos do continente no de-curso de sua inserção no sistema in-ternacional contemporâneo.A concepção da obra baseia-sena ideia de que uma perspectiva li-bertária supõe a descolonizaçãomental, que, por sua vez, implicaem conhecer diretamente os sujei-tos mantidos em condição de su-balternidade, garantindo-lhes o di-reito à expressão, à enunciação desua palavra. O sentido profundodesse posicionamento encontra-senum antigo provérbio em línguabambara cuja tradução é: ‘verdade

não cabe numa só boca’.”(José Ri-vair Macedo)SOBRE OS AUTORES“A obra conta com a participaçãode integrantes locais do Grupo deEstudos Africanos (Adriano Miglia-vacca, Anselmo Chizenga, FredericoCabral, José Rivair Macedo) e cola-boradores da Rede Multidisciplinar(Eduardo Buanaissa, José Carlos dosAnjos). Outros autores foram convi-dados a apresentar contribuições ouporque sabíamos se tratar de assun-tos de seu interesse de pesquisa, ouporque sabíamos terem simpatiapelos problemas atinentes à África eaos africanos”. (José Rivair Macedo)Adriano Moraes Migliavacca é mes-tre em Literaturas Estrangeiras Mo-dernas da UFRGS, com pesquisa de

doutorado sobre Wole Soyinka noGrupo de Estudos Africanos do Ilea.Anselmo Panse Chizenga é docen-te na Universidade Pedagógica deMoçambique, com estudos de dou-torado em Sociologia na UFRGS doGrupo de Estudos Africanos do Ilea.Eduardo Felisberto Buanaissa é do-cene de Filosofia da Universidade Pe-dagógica de Moçambique, pesquisa-dor da Universidade de Magdeburg,Alemanha, e colaborador do Grupo deEstudos Africanos do Ilea, UFRGS.Frederico Matos Alves Cabral édocente na Universidade Lusófona,em Bissau, colabora com pesquisasna Universidade Amílcar Cabral, egraduado em Sociologia pela UFRGSe estudos sobre a mobilidade socialdos estudantes africanos no ensinosuperior brasileiro, pesquisadordoInstituto Nacional de Estudos e

Pesquisa da Guiné Bissau (Inep) evice-coordenador do Grupo de Es-tudos Africanos do Ilea.Gabriel Ambrósio é graduado emLetras e membro do Programa deEstudos em Extensão Afro-brasi-leiros pela PUC/GO, colaboradordo site Por dentro da África.Guilherme Machado Botelho ébacharel em História pela PUC/SPe pesquisador do Núcleo de Estu-dos de África da USP.Gustavo de Andrade Durão é gra-duado em História pela PUC/RJ, comestudos do mestrado sobre o Movi-mento Négritude na Unicamp e estu-dos do doutorado com estudos com-parativos entre o pensamento de Léo-pold Senghor e Frantz Fanon na UFRJ.Gustavo Koszeniewski Rolim ébacharel em História pela UFRGS,mestrando em História Social.

O pensamento africano no século XX(Livraria da Editora Expressão Popular, Rua Abolição, 201 – Bela Vista – SP)

Cheikh Anta Diopfoi um historiador eantropólogo senegalês

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A questão do desenvolvimentoconstitui sem exagero uma das ques-tões que preocupam todos os políti-cos e os estrategistas, de modo que aquestão da Renascença do início doséculo XIX, tornou-se o termo da dis-cussão: Por que o Ocidente se desen-volveu e o Oriente não? O que se ob-serva em todo o mundo árabe-islâ-mico. Talvez o que acontece no mun-do árabe de movimentação multi-di-mensional, levando a refazer a per-gunta novamente: Como podemos al-cançar o renascimento e o desenvol-vimento inspirado?Se os árabes e os muçulmanosprestaram atenção a algumas expe-riências do desenvolvimento nopassado, como o caso japonês, tendo

em vista o que ele alcançou em ter-mos do progresso em várias domí-nios, as transformações globais quese operam no nosso mundo, espe-cialmente com o surgimento de for-ças novas do Desenvolvimento Eco-nómico e das potências como a Chi-na, a Índia e o Brasil, formarão umaconsciência crítica árabe-islâmicade todas essas experiências, comvista a tirar proveito delas e a posi-cionar-se diante dos modelos inte-lectuais e culturais, que servem detrampolim para o pensamento es-tratégico a longo prazo. Neste contexto de muita reflexão,esta leitura envolve um dos princi-pais modelos de desenvolvimento,fazendo referência a um Estado si-tuado na América Latina (Brasil),distinguido por sua experiência eparadoxa posição, com os seus pésno caminho dos Estados poderosose no clube dos "fortes", contudo so-frendo ainda um atraso nos níveisdo desenvolvimento humano, bemcomo nas áreas da educação e comaltas taxas de pobreza.Talvez esta experiência do Brasilpareça um modelo diferente ex-

presso na literatura do desenvolvi-mento humano, mas parece difícilentender sob o prisma dos famososmodelos do desenvolvimento in-ternacionais, o porquê de uma sé-rie de experiências desenvolvidasa nível mundial.Esta experiência não apresentaportanto uma fórmula mágica parao problema do desenvolvimento nomundo árabe, mas sim dá uma espe-rança para que a mudança estejapossível, o subdesenvolvimento nãoé inevitável, e o desenvolvimentonão pode dar uma definição geral eabrangente em torno da questão,porque cada país tem o seu própriopadrão de desenvolvimento. A reflexão que se pretende é a ex-periência do desenvolvimento bra-sileiro que envolve uma série de ca-racterísticas demográficas e natu-rais e geoestratégicas que muitospaíses árabes aspiram. Uma abertu-ra para esta experiência constituiuma das prioridades dos pesquisa-dores e dos pensadores que se posi-cionam à luz das questões dos de-senvolvimentos regionais e globaisdo mudo de hoje.

AMOSSE MUCAVELE|

“Descobrir o desconhecido não é umaespecialidade de Simbad, de Érico, o Ver-melho, ou de Copérnico. Não há um únicohomem que não seja um descobridor. Co-meça descobrindo o amargo, o salgado, ocôncavo, o liso, o áspero, as sete cores doarco e as vinte e tantas letras do alfabeto;passa pelos rostos, pelos mapas, pelosanimais e pelos astros; conclui pela dúvi-da ou pela fé e pela certeza quase absolu-ta de sua própria ignorância.”Jorge Luis BORGES. Atlas [1984], p. 7.Quando me pedem para falar daViagem e em específico "A Fronteira",este espaço invisível, de pensamento,de entoação de trajectórias, herançaviva da palavra em acção, eterno uten-sílio para a multiplicação do diálogointercultural, o que mais me seduzneste lugar de metamorfoses e con-frontos, circulações, ressonâncias, re-presentações é a questão transnacio-nal e a capacidade dos descobrimen-tos do “outro”. Podemos olhar "A Fronteira" nostermos do makeitnewpoundiano, co-mo um espaço incrível de prazer, um“entrelugar” de revisão do passado,que teima em “ser absolutamentesempre o novo”,Curiosamente apesar da distância,da proximidade e da Volta ao Dia em 80Mundos (Júlio Cortázar) ou A volta aoMundo em 80 Dias (Júlio Verne), todasvanguardas da viagem são imagináveis,

mágicas, quando “impassível,/aguardopela/Próxima estação” (Armando Ar-tur), Inalcançáveis quando produzirum (pensamento fronteiriço) deixa deconstruir ilusões, apenas amplia a no-ção da peregrinação de forma siste-mática para além do que ela assumeou seja, a invenção das configuraçõesé dependente da reinvenção apaixo-nada do espaço, este nobre acto de“descobrir o desconhecido”.Para o poeta, tal como nos asseveraEduardo White (Na verdade julgo voar; Uma asa tem sempre/ por meta, / porcasa / o inabitável infinito ) ou“todos os destinos me são possíveisporque me foram precedentes em al-gum momento, me são autênticos emqualquer movimento.”Não é por acaso que "A Fronteira" ca-racteriza-se prioritariamente por seruma cartografia de trânsito dividida si-multaneamente entre a tradição e a rup-tura, isto é, na construção do novo a par-tir da destruição do antigo, onde pulsa anostalgia do “escuro anterior”, com assuas luzes de negação e ao negar-se,afirma a sua pertença, Walter Benjamin,entendia que ao “associar o saber dasterras distantes, trazidos para casa pe-los migrantes, com o saber do passado,recolhido pelo trabalhador sedentário”.Portanto, Na fronteira refaz-se a dinâmi-ca hierarquizante, sistematizadora dasordens do tempo e do espaço, ao recep-cionar “outros tendões de memória” eao imprimir “um ardente envolvimentocom o Presente”.

Vale referir que a importância daexperiência daquele que viajou, con-tudo, só se transforma em sabedoriaquando cessada a viagem. “O narra-dor retira da experiência o que eleconta: sua própria experiência ou arelatada pelos outros”, complementaWalter Benjamin. Carlos Drummond de Andrade,poeta de Itabira em homenagem aopoeta Murilo Mendes, este que encenavárias atitudes de rompimento do cer-co geográfico e estético de Minas Ge-rais, em favor de um percurso oceâni-co ou universalista.Murilo Mendes insere os “pontoscintilantes”, quando diz: “obscura, di-fícil Minas de pedra que me fazia doero peito por falta de mar” ou “um trechode terra cercado de pianos por todosos lados”, Drummond apresenta umpoema afectivo, que localiza o Murilo,viajante por terras europeias:Peregrino europeu de Juiz de Fora, Telemissor de murilogramas e gra-fitos,Instaura na palavra o seu império. (A palavra Nasce-meFere-meMata-me Coisa-meRessuscita-me.) Quem viaja tem muito que contar,é por isso que a CarmenSecco já podiaobservar na poesia de White , a ver-são poética da imagem de Moçambi-

que como varanda sobre o Índico lu-gar fronteiriço, espaço limite abertopara o mar, lugar de hibridização deetnias, idiomas, culturas. Este “entre-lugar”, que separa e une ao mesmotempo, tem a grande potencialidadede ser um espaço aberto de interco-municação, é uma via de escape parao imaginário moçambicano, uma úni-ca via de fuga onírica e concreta emdirecção a outras cultura e identida-des que não são outras, porque já fa-zem parte da cultura moçambicanahá muito tempo.

14 | DIÁLOGO INTERCULTURAL 20 de Junho a 3 de Julho de 2017 | Cultura

“A FRONTEIRA”

A QUESTÃO DO DESENVOLVIMENTO DO POVO ÁRABE

LAHCEN EL MOUTAQI

Amosse Mucavele em Alpedrinha, no Funda�o

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Há nomes que são fogos pendurados na pata da gente. Queimam-nos a cadapasso que marcamos. É uma praga, um carma, um estigma no corpo, como osseios siameses dum texto que li.Os dedos do relógio infringem de dor a empanturrada barriga de Capom-bo. É o sufoco da idade quarenta a torturar-lhe de cansaço o corpo, os gemi-dos de parto da gravidez de quinze meses e o bebé preso na jaula do ventre anegar-lhe o mundo, que a enlouquecem cada vez mais. Toda a calamidadedo universo nos lábios de Capombo, rugindo feroz como uma leoa ferida, esoltando estridentes gritos na boca da rua como uma criança faminta. Umrio dágua quente invade de preocupações o rosto do bairro. Uma corda mis-teriosa prende a lua. O tempo é uma bicicleta sem rodas, estagnada no meioda noite. Tudo é medo, susto, assombros, fugidelas, como bagre astuto queescapa do anzol sufocante da morte. Nem a Kimbandeira Guida, de marcaancestral, bisneta da avó Umba, conseguia trazer ao mundo o misterioso be-bé escondido no palácio umbilical da mãe. Parece que conhecia de perto, pe-los sentidos, os martelos do mundo, a caírem a dois metros de cólera no es-ferovite corpo da humanidade. Dona Capombo estendida no chão da velha varanda, com todas as ora-ções gastas e súplicas, comidas pelas longas horas de espera, pedia a qual-quer anjo, a qualquer deus, que milagrasse ao mundo, a vinda de seu filho.Don Carvalho por sua vez, prometia a todos os santos e estátuas que, se suaesposa nascesse, daria quinteto de sua riqueza aos mais favorecidos e, comopior dos sacrifícios, cortaria um pé de suas pernas e daria de comer aos fa-mintos porcos da vizinha Albertina.De repente, o bebé chutou os dedos das mãos para fora, e a pequena vizi-nhança que acompanhava de ouvidos o desfile dos acontecimentos, qual ca-chorros vadios, puseram-se a correr para destinos incertos. Alguns vizi-nhos até abandonaram o bairro para se escapar da ineditagem.- Isso é praga! Qual é o crime que ela crimou? – Indagou a velha Ingo.Nunca nos olhos de Issunje ou da humanidade sob jugo de uma colónia,um bebé juntaria todas as ferramentas de guerra e mudasse o curso da his-tória, proclamando a independência da nascença. É uma ruptura, um novorótulo de nascença, um bebé a nascer com os dedos das mãos?Velha Ingo, parteira de várias estacões, com 53 sóis a morrem como praganos seus chineses olhos, pediu que as curiosas jovens com idades de chamasacesas no labirinto das pernas, abandonassem o local. Mal as suas pegadasforam cobertas pela areia arrastada pelo vento, os dedos das mãos no for-mato de uma asa saíam para fora. Aliás, afinal não eram dedos das mãos,nem formatos de uma asa. Como as luzes incendiavam de escuridão, quaseque nada se via. Viu-se depois, quando no enraivecido expulso de Capombo,uma coisa meio estranha foi parar às mãos da velha Ingo: Cabeça humana,tronco meio peixe, meio humano. Na verdade, era um bebé peixe, um peixebebé ou bepeixe a pedir água apontando as barbatanas das mãos para o ros-to do pai. Com espanto e admiração, Don Carvalho desmaiou e levantou. Ca-pombo, com o corpo no embalo da fadiga gritou-lhe:- Ché Carvalho, caralho! Acorda, porra! Porquê que você desmaiou? Foieu que nasci, ouviste? O bebé pediu água quando tomou logo consciência, e gritou: - ham! - O bebé pediu água.- Qual bebé? O nosso? Ai meu deus! - Desmaiou e acordou com os olhos desentimentos distorcidos.Era mesmo um bepeixe falante a chorar e a questionar se os filhos eramobras da natureza ou de Deus afinal? Os vizinhos, com os olhos apontados na curiosidade, num piscar de lá-bios, já tinham espalhado a notícia pela rua afora. Velha Ingo, com as expe-riências no dorso do tempo, manteve a situação calma e controlada, mascom a agulha do medo profundamente a picar-lhe o coração. Devolveu o be-bé à mãe e, com desculpas para se desfazer da ensanguentada roupa, desa-pareceu a vapor, esquecendo-se da crise da idade e, depois, a noite correucomo uma lebre na meta do amanhecer.Tão logo os olhos do sol espreitavam no morro do amanhecer, um mar sal-gado de tumultos invadia a boca do bairro, num mistério que o comandava.Os conselheiros de Issunje decidiram estender sobre a esteira da mesa o

problema da família Carvalho. Afinal, Issunje não era qualquer local. Erauma cidade, embora no interior do país, tivesse a cabeça erguida na Europa.São 24 casas com suas fazendas, estábulos, armazéns e celeiros deixadospelos portugueses em meados de 74. Tinha mesmo classe, uma classe eu-ropeizada que até quase não se falava a nativa língua. Todos foram arras-tados pelas correntes linguísticas do português, a não ser a palavra isunji(azar), em memória da morte do pastor Kalupeteka. Um devoto cristão epercursor de Issunje, que foi engolido por um camaleão. Narra-se que opastor Kalupeteka ofendera um camaleão que imitara a cor preta da suaBíblia e o camaleão, enfurecido com o palavrão, engoliu-o e depois abriuas asas e voou. Dizem que nunca mais apareceu. Era um camaleão voadorda terra dos meninos gigantes. Um reino algures entre Marte e alguma coi-sa, habitado por camaleões de todas as espécies, desde camaleões meni-nos a camaleões gigantes. Com a permissão da família Carvalho, tinham de livrar a cidade de umapraga vindoura. Entretanto, o conselho decidiu pôr fim à estranha e sofrívelvida do bebé. Qual espanto a invadir o quarto para o premeditado acto. O be-bé, qual remoinho, evaporou da cama. Um pânico dominou a área. O bairro ajoelhou-se em perdão rezando doismil Pais Nossos e quinhentas Ave-Marias. Vizinha Albertinha com a despen-sa roída pela miséria, foi cobrar do Don Carvalho a sua perna para alimentaros porcos. Afinal, a promessa é uma corda de sisal pendurada no pescoço.Para cumprir a cadeia da promessa e não perder a perna, Don Carvalhodoou terras à vizinha Albertina para que cultivasse.O relógio é uma carruagem. Puxou o tempo para vinte e três anos mais tar-de, quando Issunje é atacada pelos camaleões da terra dos meninos gigantespela força da seca e da fome. Famintos e sedentos disparavam acesas línguase destruíam com o peso dos seus corpos as casas, as coisas, como quem qui-sesse deixar em cinzas uma aldeia no tempo da guerra. Carregavam no estô-mago uma fome antiga e o povo, com o fôlego da morte na ponta do coração,clamava por socorro, metendo-se em fuga para escapar da morte. Como Cristo a ressuscitar dos mortos com uma manta branca a cobrir-lhe ocorpo, vinha confusa entre o céu e a terra, uma bela jovem de cabelos lisos abanhar-lhe as costas, com uma metralhadora de águas entre as mãos. Era abepeixe, agora moçapeixe a entornar os rios dágua fria e a congelar os cama-leões voadores. Com o golpe de um rio, afugentou com o seu tempestuoso so-pro os gigantes camaleões, e com as suas poderosas mãos reuniu o vento elançou-o para a vulcânica montanha na margem esquerda de Issunje. Capom-bo reconheceu pelas mãos de barbatanas já adultas e pelos olhos de nuvensque era sua filha, à qual reservara o nome de Dália antes da nascença. A cidade ajoelhou-se diante de Dália, pedindo bué de perdão à rainha do rioKusonhi: rio mais fundo que o rio Kwanza e mais largo que a Praia-dos-Gene-rais. Dália, de pé, entre as águas que trazia consigo, beijou os pais num vulto edesapareceu, deixando nas memórias que todos os filhos são importantes.

ISSUNJE

BARRA DO KWANZA|15Cultura | 20 de Junho a 3 de Julho de 2017

ERNESTO DANIEL(POETA E PROSADOR AFECTO AO MOVIMENTO LITERRAGRIS

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16 | NAVEGAÇÕES 20 de Junho a 3 de Julho de 2017 | Cultura

TRÊS AUTORES, TRÊS POEMAS

CRÓNICA

VOU VERVou ver a minha velha mãe. Quanto tempo,meu deus, não a vejo. Lembro o silêncioda casa quando nela eu estava. A condutado ser inexplicável, não contradiz, entretantoessa coisa parecida à turbulência do filho.Agora diante daqueles retratos…Haja coisapara se aprender na falta de luz. O ventopassa os dedos na fachada da casa. Eu meadmiro de estar dentro de um corpo frio,ultrapassado. Sobe da terra a consciênciae põe as mãos nessa casa de fotografias.

O LUTO A ALEGRIAOs amigos que estãono seu pé de páginacomo em caixão floridopelos tempos futurostêm de nós o gesto mais perfeito -um sorriso transido mas mesmo assimverdadeiroe muitas mãos para afagar lembrançase muitos dentes luzindo para criar o verãoe muitos olhos em repouso para dizerque é tardee muitos gritos para dizer que é cedoe que é a hora de acordar

e de dormir porventurae de bailar entre as árvorese de correr entre as sombrase a luz que elas provocame de sofrer um poucoum pouco aindacomo crianças sem remorso sem dorsem amargurade novo em viagemsem efígie sonhada e já desaparecida.Jules Morotin “Le mardi gras”

Um do Brasil, outro (inédito) de Portugal e, o terceiro, da França - irma-nando-se os três na naturalidade que lhe vem da qualidade que possuem.

Tudo começa com um passo, a grande caminhada da vida, o grande salto paraos céus, os sonhos, a magia com que convivemos e amamos, são outras formasde movimento, de navegar, de sentir a presença no outro. Passos de Magia ao Solpara entoar uma serenata, uma cancão, uma revisitação aos espaços, lugares ememórias, por outro lado, alargar o tempo passado, os pensamentos, encantara saudade de tudo e de todos, do que foi mas ainda é, do que tem alma e que ain-da respira, pois tudo vale quando ainda é capaz de nos tocar e comover. Mora-mos em lugares, casas, em corações e memórias, viajantes que todos somos,partimos com histórias nas mãos, com os sabores nos beiços, com a casa nosrascunhos de histórias à volta da fogueira, mas a casa de que vos falo agora cha-ma-se saudade, com brilho e frescura, como um poço com agua para alimentara alma, ela é como uma erva que mesmo após uma chuva miúda, cresce silencio-sa e amorosamente e ensaia os seus passos no chão aromatizado pelos infinitosseres. A saudade é maior casa em que alguém pode habitar ou morar, mas altoai, não é com urgência que sobre ela devemos caminhar, são necessários passosmágicos de quem não conhece o tempo, de quem não diz adeus, de quem segurapela mão o amor universal, essa lei de aprendizagem e aplicação diária.Nem sempre tudo é o que parece ser, ou é o que é, podemos ser enganados ounos deixar enganar, mas ai temos um papel importante, apenas nós é que pode-mos permiti-lo, por acaso alguém nos atrai a pensar nas nuvens, a saborear a

noite de luar, a escutar o vento acariciar as ervas e o chão? Com um pouco detempo e magia tudo pode mudar conforme o nosso contexto, conforme trata-mos o nosso passado, pode desfazer-se em vapores com aromas dos mais diver-sos gostos, visão, loucura ou disposição, porque para pensar fora do normal,basta apenas deixar de se conformar, deixar maravilhar-se, deixar cair-se nafantasia da vida e das relações que nos ligam, esse é o verdadeiro exercício. Nem os lugares, nem coisas nem as pessoas o são fixamente paisagens imó-veis: olhar, ver, observar, contemplar, analisar, tudo isto faz parte do pensa-mento. Quanto mais sabemos, mais não sabemos, mais incompletos e inquie-tos ficamos, esse resultado não nos pode assustar, pelo contrário devemos nosalegrar, pois mais nos alimentamos, mais comunicamos, mais expandimos,mais gravitamos, este é o exercício que sugiro a fazer, com Passos de magia aoSol, não um, nem dois, ou três, não os passos, não pelas estradas, passeios,montanhas, pela savana ou pelas pontes que nos ligam, ou em árvores para daifrutas arrancar, mas simplesmente passos, ontem, hoje, amanha, sempre quehouver luz, sempre que acordamos para um novo dia. Renovar com os abraços,o amor, a amizade, o gosto pelos detalhes simples da vida, a cor dos dias, a geo-grafia dos lugares, o cheiro da chuva quando chega, a consciência de ser e estar;sempre que aqui estivermos de corpo ou de alma, pois os lugares não tem do-no, não tem marca. É tudo magia.

DE MAURO DE BRITO

MONÓLOGO DO ELEITORAcabaram-se as Direitas?Dissiparam-se no Centro?Serão as Direitas feitasde esquerdino movimento?Sendo as Esquerdas sujeitasao mesmo vaivém do vento,vão, com as nuvens, direitasà parte esquerda do Centro?E o Centro? O que é o Centro?Em que centro se situa?No centro do Centro-CentroDe um satélite da Lua?É um Centro direitistaPara a Esquerda cor-de-rosa?Ou a tendência SinistraDa Dextra silenciosa?Que Centro é esse? Um sinalde não comprometimento?Ou, ao contrário, um inventomanobra do Capital?Será o Centro a Direita?Fascismo com meiga fala?Medo? Angústia? Um olho à espreitacom raiva de não ser bala?E a Esquerda? O que é a Esquerda?Para a Direita, agonia?Para o Centro, mesmo Esquerda?Para a Esquerda mais esquerdaetrocesso à burguesia?

E a esquerda Extrema-Esquerda- a que tudo desagrega – o que será quando vemos que a Direita se lhe pega?Será mesmo Extrema-Esquerdaa pedir terra queimada?Ou um braço que a DireitaManipula encapuçada?Será cravo de purezaou goivo de de gula grada?Lirismo? Farsa? Utopia?Concreta antropofagia?Fim do dia ou alvorada?Ou nem sequer há Direitasnem Esquerdas, nem mesmo Centro,sendo isto estreitas ideiasem que aprendiz me concentro?Serei eu, nascido outroraquando só Direita havia,que ga-ga-gaguejo a Históriada De-de-Democracia?António Luís Moitain “Poemas Temporais”