jornal jÁ paraÍba: quebrando paradigmas no ciclo midiático ... · o preconceito linguístico,...
TRANSCRIPT
Ano VI, n. 09 – Setembro/2010
JORNAL JÁ PARAÍBA:
quebrando paradigmas no ciclo midiático do preconceito linguístico
Juliene Paiva de Araújo Osias1
Resumo
A ideologia do preconceito linguístico baseia-se numa norma linguística culta e de prestígio
social, não levando em consideração que outras manifestações linguísticas – sejam elas orais
ou escritas – podem ser eficientes na interação entre os falantes da língua. A questão é que
esse preconceito extrapola o âmbito da linguagem, atuando também no âmbito social, por
exemplo, sempre amparado e difundido pela Gramática Tradicional, pela prática pedagógica,
pelos livros didáticos e pela mídia, transmissora e cristalizadora de regras do falar bem e do
escrever bem. Neste contexto, entretanto, analisar-se-á (do ponto de vista de alguns aspectos
gramaticais e de níveis de linguagem) uma mídia que rompe com essa tradicional manutenção
da patrulha dos puristas em nome da norma gramatical: o Jornal Já Paraíba, tabloide do
Sistema Correio de Comunicação que circula no estado da Paraíba.
Palavras-chave: Preconceito linguístico. Mídia. Jornal Já Paraíba.
1 INTRODUÇÃO
O preconceito linguístico é uma realidade na nossa sociedade, mas uma realidade
implícita, silenciosa, embora autoritária e manipuladora.
Essa postura sustenta-se por uma ideologia que considera a Gramática Tradicional
como única forma aceitável de interação entre os falantes (por ser de prestígio), relegando os
falares e outras performances da língua como manifestações toscas, inacabadas e, sobretudo,
isentas de qualquer status.
A imposição de uma norma linguística clássica e que reproduz regras e restrições tem
a mídia como fomentadora dessas ideias, papel fundamental para a manutenção de um ciclo
de controle de um saber linguístico oficial e unificado.
A mídia, neste sentido, funciona como um dos Comandos Paragramaticais [CP]
segundo Bagno (2008), e não apenas o meio pelo qual eles se difundem. O conceito dos CP
será um dos alvos de apreciação posteriormente.
1 Mestre em Linguística pela Universidade Federal da Paraíba, professora de Redação e Expressão Oral I e II e
de Leitura e Produção de Texto do Iesp, professora do Colégio Pio XI. E-mail: [email protected]
Ano VI, n. 09 – Setembro/2010
2
O preconceito linguístico, suas causas e consequências e a atuação da mídia nesse
contexto serão discutidos, no entanto, para que se culmine numa análise de um periódico
posicionado na contramão do preconceito linguístico.
Trata-se de um jornal impresso que circula na Paraíba, o Já, tabloide diário do Sistema
Correio de Comunicação. Partir-se-á do entendimento de que o Jornal Já rompe com o papel
mantenedor do círculo midiático do preconceito linguístico, uma vez que não depende da
norma culta vigente e também porque assume que um periódico com tais características não
apenas pode existir, como também pode figurar na mídia de forma a conviver com outras
realidades linguísticas.
2 UMA LÍNGUA OFICIAL E DE PRESTÍGIO SOCIAL
Quando se fala em preconceito linguístico, inclui-se uma série de outros fatores:
inclusão para uns e exclusão para outros no aspecto social, e não apenas linguístico.
Temos, na nossa sociedade, uma ideologia gramatical norteada pela observância plena
(ou, pelo menos, pela exigência dessa observância) aos preceitos de uma norma linguística
oficial, obrigatória e, claro, excludente, a partir da qual todas as práticas linguísticas são
medidas, julgadas e aprovadas ou reprovadas.
Trata-se de uma forma de controle, que podemos compreender da seguinte forma:
Como sustentam Marx e Engels (1991 [1846]: 72), o domínio de uma classe social
sobre as demais não ocorre apenas no plano material pela detenção dos meios
econômicos de produção, do poder político, das fontes de matéria-prima, dos bens
fundiários etc. É preciso que esse domínio também se dê no plano espiritual, das
ideias. (BAGNO, 2008, p.26)
Vê-se, assim, a relação da língua com um contexto de superiorização não apenas no
plano linguístico. Observemos este ponto de vista:
A língua oficial está enredada com o Estado, tanto em sua gênese como em seus
usos sociais. É no processo de constituição do Estado que se criam as condições de
constituição de um mercado linguístico unificado e dominado pela língua oficial
[...]. (BOURDIEU, 1996, p. 32 apud BAGNO, 2008, p. 28)
Bagno (2008) aponta os gramáticos como os juristas dessa língua de Estado e os
professores como os agentes de imposição. E, assim, funciona uma dinâmica que considera
Ano VI, n. 09 – Setembro/2010
3
todo e qualquer desvio às regras gramaticais como uma ameaça à unidade da língua de
Camões (enveredando até mesmo pela intolerância), tendo a oralidade, inclusive, que se
submeter à escrita, fazendo-se uma dicotomia muito clara do que é certo – escrito e dentro da
norma culta – e errado – oral, variante, espontâneo, funcional.
Dessa forma, o falante que não se enquadra nas regras da Gramática Normativa é
aquele que fala de modo errado e escreve de modo errado, ou seja, comunica-se mal, não
importando se há eficiência na comunicação verbal e na interação desse falante com outros.
Apenas a língua oficial, culta e homogênea
[...] vale para todos os membros da sociedade brasileira como língua legítima e
digna de respeito. Tudo o que escapa do domínio linguístico delimitado pelas
gramáticas normativas é “corruptela”, é “feio”, é “errado”. Não é “língua de gente”
ou, quando muito, é língua de seres humanos degradados, os párias da sociedade.
Por isso Napoleão Mendes de Almeida fala de “língua de cozinheiras” ou de
“infelizes caipiras”, Luiz Antonio Sacconi condena a “língua de jacu” ou de
“asnos”, enquanto Eduardo Martins a atribui a “índios”. (BAGNO, 2008, p. 31)
O aspecto mais contundente disso tudo é que a questão da língua em si extrapola para
outros âmbitos. Em outras palavras, quando se menospreza, deprecia e ridiculariza uma
variedade de língua, isso, na prática, equivale a menosprezar, depreciar e ridicularizar o
próprio usuário dessa variedade. E vale ressaltar que, do ponto de vista do preconceituoso, há
erros mais sérios e outros menos sérios. Há erros mais crassos e outros menos crassos. Isso
depende de quem os comete, de qual posição na sociedade esse falante da língua ocupa.
Ilustra-se esse argumento facilmente a partir da “escala de crassidade”:
Fonte: Bagno, 2009, p. 28.
Ano VI, n. 09 – Setembro/2010
4
Podemos observar na escala acima que a medida de crassidade é inversamente
proporcional ao prestígio social: quanto mais prestígio social estiver em questão, menos erros
serão encontrados e policiados pelos membros da mesma classe privilegiada. E, é claro:
quanto menos prestígio social houver, mais erros serão encontrados, policiados e condenados
pelos puristas em geral.
Leite (2008) também analisa essa questão:
A metalinguagem intolerante (ou preconceituosa) camufla (ou denuncia) outros
preconceitos, de todas as ordens. Isso significa que o preconceito ou a intolerância
não são somente linguísticos, são também de outra ordem (social, política, religiosa,
racial etc.). (LEITE, 2008, p. 14)
Apenas para reiterar e concluir essa etapa do raciocínio, vale retomar aqui duas
situações ocorridas no cenário político brasileiro – ambas no âmbito linguístico – e
mencionadas por Leite (2008).
Em 1990, o termo “imexível” foi proferido por Rogério Magri (ex-sindicalista e então
ministro do Trabalho do governo Fernando Collor de Mello), referindo-se ao Plano Collor.
Houve, então, toda uma celeuma em torno desse neologismo, a ponto de a mídia explorar o
assunto à exaustão:
O novo adjetivo criado pelo então ministro suscitou quase uma polêmica linguística
porque muita gente se incomodou com a novidade, e os jornalistas se encarregaram
de colher opiniões de professores de português, de gramáticos e de linguistas sobre
a criação linguística. [...] Esse foi um fato muito comentado, motivo de muitas
anedotas e muitas críticas à ignorância do ministro. (LEITE, 2008, p. 47-48)
Por sua vez, Fernando Henrique Cardoso (sociólogo e então Presidente da República),
em 1993, afirmou que a inflação já não era mais “convivível”. Mas, desta vez, um ato
idêntico ao de Magri foi tratado de forma bem mais amena e sem grandes sobressaltos:
A repercussão não foi a mesma do imexível, talvez em razão do prestígio
(intelectual, social, político, econômico etc.) do segundo criador. A sociedade não
se mobilizou tanto para comentar o “convivível” [...]. O convivível mobilizou
minimamente os jornalistas. (LEITE, 2008, p. 48-49)
Ano VI, n. 09 – Setembro/2010
5
Por outro lado, é interessante observar que, apesar de o neologismo criado por
Fernando Henrique Cardoso ter sido recebido com menos impacto e menos rejeição (ou talvez
nenhuma), não foi ele que se dicionarizou. A verdade é que o “imexível” de Magri foi
naturalmente aceito e incorporado pelo falante comum (no sentido de ser um falante
desvinculado de pré-requisitos sociais para ter sua variedade linguística valorizada), e isso é o
suficiente para o termo tornar-se um novo verbete no dicionário.
Podemos vê-lo na referência que faz Leite (2008) ao Dicionário Houaiss:
Imexível
Datação
c. 1990
Acepções
▪ adjetivo de dois gêneros em que não se pode mexer; inalterável
Ex.: um plano de governo i.
Etimologia
in- + mexível; ver misc(i)-
Antônimos
mexível
(HOUAISS apud LEITE, 2008, p. 49)
3 NORMA OU NORMAS?
Bagno (2008), citando Lucchesi (1994), mostra-nos um panorama conceitual de norma:
(1) norma padrão: “Reuniria as formas contidas e prescritas pelas gramáticas
normativas” ;
(2) norma culta: “Conteria as formas efetivamente depreendidas da fala dos
segmentos plenamente escolarizados, ou seja, dos falantes com curso superior
completo” ;
(3) norma vernácula: “Padrões linguísticos das classes mais baixas, não
escolarizadas, que se oporiam de forma nítida aos padrões das classes média e alta,
escolarizadas” . (LUCCHESI, 1994 apud BAGNO, 2008, p. 145)
A problemática que se observa a partir de conceitos como esses é que eles excluem a
realidade do continuum que existe, simplesmente, pelo fato de os falantes migrarem o tempo
todo de uma norma para outra, a depender do meio, do contexto, do gênero em uso, entre
outras condições.
E o agravante é que a norma culta (com predominância da escrita) – número (2) da
citação acima – sempre foi, tradicionalmente, relacionada ao saber linguístico correto e viável,
não se levando em consideração que há modalidades de fala, por exemplo, extremamente
Ano VI, n. 09 – Setembro/2010
6
cultas, enquanto há também modalidades de escrita extremamente informais – em outras
palavras, não há, na prática da língua, essa fronteira tão bem definida que a norma culta quer
impor.
Bagno (2008) concorda com o conceito de número (1), norma padrão, mas questiona
os de norma culta e norma vernácula assim, no singular, optando por referir-se a elas como
normas cultas e normas vernáculas. Vejamos o porquê:
A dificuldade [...] começa quando o autor usa a palavra “norma” no singular para
referir-se às entidades descritas em (2) e (3). Uma proposta sociolinguística de
classificação não pode admitir a existência de uma norma culta e de uma norma
vernácula. [...] A heterogeneidade e variabilidade desses dois “subsistemas”
obrigaria a falar de normas cultas e normas vernáculas sempre no plural. (BAGNO,
2008, p. 145)
Esta última abordagem aponta para a prioridade que se dá neste artigo ao uso
democrático da língua e ao não patrulhamento linguístico diante dessa liberdade.
4 O PAPEL DA MÍDIA NO CICLO DO PRECONCEITO LINGUÍSTICO
4.1 TRÊS ELEMENTOS DE DIFUSÃO E SUSTENTAÇÃO
Basicamente, Bagno (2008) aponta três elementos que reproduzem a ideologia do
policiamento gramatiqueiro e, consequentemente, do preconceito linguístico e atuam como
sustentáculos dela (funcionando como Comandos Paragramaticais): a Gramática Tradicional,
a prática pedagógica tradicional e os livros didáticos.
Com esse aparato, gera-se um círculo vicioso:
[...] a Gramática Tradicional inspira a prática pedagógica convencional, que por sua
vez gera e nutre o mercado editorial do livro didático, cujos autores, fechando o
círculo, recorrem à GT como fonte máxima de concepção de língua. (BAGNO,
2008, p. 96)
Bagno (2008), no entanto, identifica a consistente atuação de um quarto elemento, a
mídia, entendida pelo autor como um dos Comandos Paragramaticais (CP).
4.2 OS COMANDOS PARAGRAMATICAIS (CP)
Ano VI, n. 09 – Setembro/2010
7
Os comandos paragramaticais (CP) são, em sua forma “clássica”, livros destinados
ao público em geral (portanto, livros não-didáticos [...] ), escritos por
autoproclamados “defensores da língua portuguesa” que investem contra os “erros
comuns”, a “invasão de estrangeirismos”, a “ruína do idioma de Camões”, a
“pobreza da língua na atual geração” [...]. [...] Em sua forma mais “moderna”, os
CP servem-se tanto dos meios de comunicação mais difundidos ao longo do século
XX – jornal, revista, rádio, televisão, telefone – quanto das inovações mais recentes
no campo da produção e difusão de informações – o CD-ROM e a Internet.
(BAGNO, 2008, p. 97)
Os comandos paragramaticais funcionam como formadores de opinião e consistem
num meio pelo qual se eterniza a ideologia do preconceito linguístico. Professores de
português tornam-se conhecidos e respeitados, difundindo as regras ao pé da letra em colunas,
como a de Pasquale Cipro Neto, no Diário do Grande ABC, em “Ao pé da letra”, e Inculta e
Bela, na Folha de S. Paulo.
A patrulha gramatiqueira amplia seu domínio na mídia, que cumpre muito bem seu
papel de difundir a ideia de norma única aceitável, fomentando o preconceito e cristalizando
essa postura.
5 O JORNAL JÁ ROMPENDO COM O PAPEL DA MÍDIA
O Jornal Já Paraíba, em formato de tabloide, surgiu no Sistema Correio de
Comunicação no ano de 2009. Circula no Estado da Paraíba sendo vendido ao preço de
R$ 0,25 (vinte e cinco centavos).
Pelo valor, já se percebe que ele aponta para um público de menor poder aquisitivo,
pertencente a classes sociais menos favorecidas.
E não é apenas o valor que condiz com a possível classe social do leitor-alvo. A
própria linguagem – não comprometida com a norma linguística vinculada à classe social de
maior prestígio – é um indício claro da proposta do jornal: ser acessível a um público menos
favorecido, levando informações numa linguagem que faz parte do universo linguístico desse
público, ou seja, sem preciosismos gramaticais e sem dependência de uma norma culta
exigida, exigente, imposta e excludente.
É relevante valorizar tal proposta, uma vez que a mídia, de uma forma geral, utiliza-se
do espaço que tem para reiterar críticas ácidas aos usos linguísticos que não seguem à risca as
rígidas regras gramaticais. A existência de um jornal como o Já Paraíba mostra-nos que
modalidades linguísticas diversas podem coexistir, sem que isso represente a morte da língua
portuguesa.
Ano VI, n. 09 – Setembro/2010
8
Esse tipo de mídia, felizmente, tem tido aumento de circulação, o que nos leva a
constatar que mais pessoas de classes menos favorecidas estão tendo acesso à leitura, à
informação, não importando se a linguagem utilizada neles é culta ou não, mas importando a
funcionalidade dessa leitura.
Em outros Estados do Brasil, jornais semelhantes têm conquistado espaço igual, como
podemos ver na citação abaixo2:
Os jornais populares se tornaram um fenômeno no Brasil. Entretanto, ninguém
esperava que a venda desses periódicos se tornasse tão explosiva, desbancando os
grandes veículos de comunicação que estão há anos no topo das tiragens. Esses
novos dados foram divulgados pelo Instituto Verificador de Circulação (IVC),
revelando que o tabloide mineiro Super Notícia, de Belo Horizonte, alcançava o
primeiro lugar do ranking no mês de agosto, com aproximadamente 300 mil
exemplares diários vendidos, desbancando a Folha de S.Paulo [...].
Na lista dos dez maiores jornais do país, o Super Notícia não é o único que segue a
linha editorial popular. Outros títulos voltados, principalmente, às classes C e D
também obtiveram destaque, como o Extra, do Rio de Janeiro, que ficou à frente do
Estado de S.Paulo, e o Diário Gaúcho, do Rio Grande do Sul, que atingiu 152 mil
exemplares.
Preços baixos, muitas cores e imagens, linguagem curta e objetiva e excesso de
publicidade são imprescindíveis para o sucesso das publicações, é o que dizem os
especialistas. [...]
É interessante observar essa postura quando há colunistas de jornais brasileiros que se
comportam como fiscais do bom português (sob o ponto de vista unicamente da patrulha
gramatiqueira, é claro). É o que podemos observar no comentário de Dora Kramer3, em sua
coluna no jornal O Estado de S. Paulo, citado por Leite (2008):
Há de haver uma explicação para o empenho do governo em geral e do presidente
Luiz Inácio da Silva em particular na consolidação do pensamento banal, da palavra
tosca e do ato irrelevante como valores representativos do caráter nacional.
Seria de se esperar que, uma vez eleito, Lula fizesse um esforço – aproveitando as
condições objetivas oferecidas pelo cargo – para superar suas deficiências de
formação e tornar-se de fato um exemplo de ascensão social, política, educacional,
cultural, e sobretudo pessoal.
A conjugação de argumentos irrelevantes – [...] –, raciocínios triviais – [...]–, com
um português ofensivo à nacionalidade – [...] – não combina com os atributos até
congênitos de alguém que foi capaz de chegar à Presidência da República. [...]
Considerando que o presidente sabe falar normalmente (sem preciosismos, mas no
limite do linguajar aceitável) quando quer, qual a necessidade de discursar aos
carteiros agredindo o português [...]? (LEITE, 2008, p. 59-60)
2 DIAS, Marina. Jornais populares explodem em vendas; São Paulo está fora da rota. In: Portal Imprensa, 28 de
novembro de 2007. Disponível em <http://www.direitoacomunicacao.org.br> Acesso em 17 de julho de 2010. 3 KRAMER, Dora. Em nome da lei do pior esforço. In: O Estado de S. Paulo, 26 jan. 2005.
Ano VI, n. 09 – Setembro/2010
9
No artigo “O linguajar de Lula”4, de Gilberto de Mello Kujawski, temos uma postura
semelhante à de Dora Kramer:
Então, o que faz Lula? Ele [...] se limita a maltratar a língua, engolindo os esses,
violentando a sintaxe, forçando erros de concordância, como se isso bastasse para
„falar gostoso o português do Brasil‟. Em suma, Lula forja um arremedo de língua
popular, distante tanto dos padrões da linguagem formal, como dos usos legítimos
da fala popular [...]. O discurso de Lula degenera num Frankenstein assustador: „A
gente tem que ser gentis‟, soltou outro dia.
Fica evidente o tom de reprovação às modalidades populares da língua. Usam-se
termos como “linguajar aceitável”, “degenera”, “agredindo o português”, “maltratar a língua”,
“violentando a sintaxe”, “português ofensivo à nacionalidade”, entre outros. Ainda por cima,
um dos textos refere-se aos “padrões da linguagem formal” – como se houvesse apenas um
padrão absoluto, quando, na prática, a língua tem uma miríade de possibilidades e de
realizações, e não um único padrão.
A mídia é incansável na sua atuação de reprimir os falares que fujam da norma culta
usada por uma elite autoritária (e cobrada por ela), usando de ironias e de comentários
impiedosos, como vemos na citação a seguir5:
O presidente Lula às vezes é glorificado, às vezes ridicularizado por sua linguagem
metafórica nem sempre afinada. A glorificação é cada vez menor, convém admitir.
Mas ele não gosta apenas de metáforas. Seu linguajar colorido, quando improvisado
e solto, vem ornado por várias figuras de palavras, ou tropos, como comparações,
catacreses, metonímias e outras. Num desses sobrevoos, concitou os patrícios a
tirarem "o traseiro da cadeira" para procurar juros mais baixos em outros bancos,
que não os em que são presentemente enforcados. O rompante indica que não tem
nenhuma intimidade com bancos, não precisa de crédito nem se preocupa
pessoalmente com bufunfa. Beleza.Traseiro, já se sabe, significa "situado detrás,
que fica na parte posterior", lembra o Dicionário Houaiss, que classifica o termo
como "de uso informal", quando relacionado com seres humanos. No mínimo. No
máximo, chulo, bem chulo, sinônimo de palavra monossilábica e deselegante.
Este artigo não tem o direcionamento de explorar especificamente a performance
linguística do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e sim a do Jornal Já Paraíba, mas
consideramos importante ilustrar nossos argumentos com tais comentários sobre Lula, uma
vez que são sistemáticos, sintomáticos de um preconceito linguístico voraz e ocorrem na
4 KUJAWSKI, Gilberto de Mello. O linguajar de Lula. In: O Estado de S. Paulo, 18 de fev. 2005. 5 “Lula e suas metáforas – Presidente foge do compromisso com as palavras ao abusar das figuras de linguagem
em seus discursos” Disponível em <http://revistalingua.uol.com.br/textos> Acesso em 18 de julho de 2010.
Ano VI, n. 09 – Setembro/2010
10
mídia impressa, online e televisiva, demonstrando perfeitamente qual é o papel que a mídia
desempenha quando o assunto é língua.
O Jornal Já Paraíba foge desse padrão e aponta para uma prioridade: a eficiência da
comunicação verbal frente ao público-alvo em questão, e não a observância rígida a um
padrão linguístico pouco (ou nada) frequente no contexto social desse público.
Vejamos a análise de algumas notícias ou apenas manchetes desse jornal.
Fonte: Jornal Já Paraíba - 22 de maio de 2010 - Ano II, nº 11, página 4
A manchete optou pela forma “papa figo”, como é conhecida no folclore brasileiro, em
detrimento da forma composta “papa-fígado”, de acordo com a norma culta. Também soa
jocoso o modo de abordar a questão ao se usar “engaiolado”, numa alusão à gaiola do
passarinho oferecido à criança e a “gaiola” onde o estudante se encontra desde a descoberta da
violência contra a criança em questão, ao invés de termos como encarcerado ou mesmo preso.
Outro aspecto gramatical que merece destaque é o uso da vírgula – ou a falta dela em
alguns casos.
Ano VI, n. 09 – Setembro/2010
11
A Gramática Tradicional estabelece a presença de vírgula após “dentre eles” e a
ausência dela nos trechos destacados em “[...] a Polícia Militar prendeu o estudante e o
encaminhou para o Conselho Tutelar da cidade.” e “O estudante está preso na Cadeia Pública
de Sousa e está à disposição da Justiça.”.
Fonte: Jornal Já Paraíba - 28 de maio de 2010 - Ano II, nº 16, página 2
A manchete dá o tom: “tá” e “pro” são situações impossíveis para a Gramática
Tradicional, além da expressão “não tá nem aí” – típica da modalidade oral.
Fonte: Jornal Já Paraíba - 28 de maio de 2010 - Ano II, nº 16, página 8
Além da nada ortodoxa expressão “amasso” (sob o ponto de vista dos puristas),
observa-se a não-observância à concordância verbal no trecho “[...] as imagens só vai
começar a circular [...]”.
Ano VI, n. 09 – Setembro/2010
12
Fonte: Jornal Já Paraíba - 28 de maio de 2010 - Ano II, nº 16, página 10
A não-observância, desta vez, foi quanto à regência verbal. Em “[...] provou ter um
bom conhecimento ao responder as perguntas [...]”, o verbo “responder” não teve a sua
regência obedecida (pois é um verbo transitivo indireto, o que exigiria a ocorrência de crase),
se analisarmos segundo as exigências gramaticais.
Fonte: Jornal Já Paraíba – 10 de julho de 2010 - Ano II, nº 53, página 12
O termo “prá”, típico da modalidade oral e muito comum na performance linguística
do brasileiro, foi usado nesta manchete em contraposição ao “para”, termo aceito pelos
parâmetros gramaticais aceitáveis.
A seguir, algumas manchetes que se utilizam igualmente de gírias, sem que se trate de
um jornal voltado a um segmento específico, como aqueles voltados ao público adolescente,
por exemplo, em que é muito comum esse tipo de linguagem.
Fonte: Jornal Já Paraíba – 12 de julho de 2010 - Ano II, nº 54, página 3
Ano VI, n. 09 – Setembro/2010
13
Fonte: Jornal Já Paraíba – 12 de julho de 2010 - Ano II, nº 54, página 4
Fonte: Jornal Já Paraíba – 14 de julho de 2010 - Ano II, nº 56, página 4
Fonte: Jornal Já Paraíba – 12 de julho de 2010 - Ano II, nº 54, página 6
Fonte: Jornal Já Paraíba – 14 de julho de 2010 - Ano II, nº 56, página 3
Neste caso abaixo, o verbo “levar”, conjugado na 2ª pessoa do singular (tu), foi aqui
registrado como “leva”, ao invés do “levas”, recomendado pela Gramática Tradicional. A
opção também do uso de “leva bala”, ao invés de “tu serás alvejado” ou “tu serás baleado”
leva-nos a retificar que o registro da língua que é feito nesse jornal não tem compromisso com
Ano VI, n. 09 – Setembro/2010
14
as imposições gramaticais do “bem falar” e do “bem escrever”, como os puristas
compreendem.
Fonte: Jornal Já Paraíba - 14 de julho de 2010 - Ano II, nº 56, página 1
Fonte: Jornal Já Paraíba – 17 de julho de 2010 - Ano II, nº 59, página 7
O termo “pêia” é um registro regional absolutamente fora dos padrões gramaticais.
Fonte: Jornal Já Paraíba – 16 de julho de 2010 - Ano II, nº 58, página 1
Ano VI, n. 09 – Setembro/2010
15
Fonte: Jornal Já Paraíba – 16 de julho de 2010 - Ano II, nº 58, página 4
“Busão” é um termo criativo, formado por derivação sufixal, em que se acrescentou o
sufixo “ão” ao termo da língua inglesa “bus” – outra gíria muito difundida. Além desse termo,
vê-se a opção pelos termos “despenca”, “espremido” e “chega pra lá” – igualmente populares,
descomprometidos com a performance formal.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Um dos argumentos mais conhecidos para uma manutenção de uma exigência a uma
obediência rígida às regras gramaticais deve-se a um temor que os puristas revelam de que a
língua portuguesa morra ou se descaracterize irreversivelmente diante do mau uso (“mau uso”
na análise preconceituosa deles), dos maus tratos, dos desvios às regras, enfim, do desrespeito,
como se costuma pensar.
A questão é que a língua não morre, mas também não fica imóvel nem presa a uma
série de imposições gramaticais clássicas. A norma culta é uma referência, não deixa de ser,
nem é nossa intenção insinuar que não seja. Mas não é a única referência. Outras modalidades
existem, e isso é inegável. O povo tem performances várias no uso que faz da língua, isso não
pode ser simplesmente ignorado – e a língua está sempre se reinventando. A Gramática
Tradicional não está rigidamente presente na realidade linguística de cada falante – não há
como ocultar isso. Não se pode usar o argumento da obrigatoriedade da obediência à norma
culta como uma das condições para a aceitação social. Menos aceitável ainda é a
sedimentação do preconceito linguístico, realidade de segregação no tocante ao que cada um
tem de mais identitário: sua língua.
E a mídia é uma das responsáveis por essa sedimentação, muitas vezes, sistematizando
um comportamento de verdadeira patrulha em nome do “bom” uso da língua.
O Jornal Já Paraíba, periódico de circulação no Estado da Paraíba, é um exemplo
contrário a essa patrulha e uma confirmação de que há público para todas as modalidades da
Ano VI, n. 09 – Setembro/2010
16
língua – oral formal, oral informal, escrita com influência de oralidade, escrita formal, escrita
com presença de gírias, oral com presença de gírias, entre outras possibilidades. Ele chega ao
público usando uma linguagem condizente com a condição social, com a classe social e com a
realidade linguística do leitor – um leitor que escolhe essa leitura porque se identifica com ela.
E é nessa identificação que está a funcionalidade dessa leitura, a eficiência comunicativa – é
isso que interessa.
Nenhuma modalidade da língua está morrendo ou sendo desrespeitada – apenas há
modalidades diversas e geradas por diversos contextos e situações, e todas podem coexistir.
Sem preconceito, sem restrições e levando-se em consideração que elas existem e não podem,
simplesmente, ser ignoradas, ou condenadas, ou relegadas à condição de chulas ou grosseiras,
quando são, na verdade, formas eficientes de comunicação.
REFERÊNCIAS
BAGNO, Marcos. A norma oculta – língua & poder na sociedade brasileira. São Paulo:
Parábola, 2009.
______. Dramática da língua portuguesa – tradição gramatical, mídia & exclusão social.
São Paulo: Edições Loyola, 2008.
DIAS, Marina. Jornais populares explodem em vendas; São Paulo está fora da rota. In:
Portal Imprensa, 28 de novembro de 2007. Disponível em:
<http://www.direitoacomunicacao.org.br> Acesso em 17 de julho de 2010.
LEITE, Marli Quadros. Preconceito e intolerância na linguagem. São Paulo: Contexto,
2008.
LULA e suas metáforas – Presidente foge do compromisso com as palavras ao abusar das
figuras de linguagem em seus discursos. Disponível em:
<http://revistalingua.uol.com.br/textos> Acesso em 18 de julho de 2010.
KUJAWSKI, Gilberto de Mello. O linguajar de Lula. In: O Estado de S. Paulo, 18 de fev.
2005. Disponível em: <http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos> Acesso em 17 de
julho de 2010.
SCHERRE, Maria Marta Pereira. Doa-se lindos filhotes de poodle – variação linguística,
mídia e preconceito. São Paulo: Parábola, 2008.