jornalismo parece correr perigo uma ameaça deve ser a...

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Num mundo onde há cada vez mais informação, os cidadãos estão, contradi- toriamente, cada vez menos bem informados ou mesmo mal informados, com uma torrente de notícias que surge literalmente do nada. Com a crise dos meios tra- dicionais de comunicação social e o desenvolvimento das redes sociais, a disse- minação das chamadas notícias falsas (fake news) espalharam-se ao ponto de intervirem directamente em todos os sectores da so- ciedade, nomeadamente, na política, segurança ou saúde. O jornalismo sério e a credibilidade dos jor- nalistas é o último bastião de uma informação verí- dica, sujeita ao contraditório e aos processos de verifi- cação que regem a profissão. Os jornalistas estão cons- cientes de como é difícil, até para eles mesmos, detectar uma notícia falsa ou evitar ser instrumenta- lizados. As notícias falsas podem ser crime, mas ainda não têm castigo. Polarização política no Brasil O investigador Pablo Ortel- lado, professor da Univer- sidade de São Paulo (USP), considera que a situação da desinformação no Brasil resulta da polarização da esfera pública e do extre- mismo dos actores políticos. “A situação das ‘fake news’ no Brasil não é muito diferente das de outros países que estão a sofrer um pro- cesso de polarização da esfera pública, onde as opiniões políticas estão concentradas em dois pólos (…) Isto acon- tece nos Estados Unidos, na Argentina, na Venezuela, no Brasil e também na Europa, como é o caso da França e da Inglaterra”, afirmou. O académico, que desen- volveu projectos de análise do debate político no meio digital nas últimas eleições presidenciais do Brasil, dis- putadas em Outubro do ano passado, considera que a expressão ‘fake news’ não é a mais adequada para classificar o fenómeno da desinformação. “O que acontece neste cenário é que estes dois pólos começam a produzir sites que veiculam opinião na forma de factos noticiosos. Esse excesso de produção de opinião apresentado como se fosse investigação jornalística é a essência do fenómeno no Brasil como noutros países”, frisou. O investigador explicou que informação enviesada tem uma forte presença numa sociedade polarizada como a brasileira, onde as pessoas estão comprometi- das com causas. “É muito difícil saber o que é causa e o que é efeito do fenómeno da desinfor- mação. As pessoas estão polarizadas e, portanto, con- somem notícias muito enga- jadas, que consolidam a sua posição já polarizada. São coisas que se retroalimentam. Isto no Brasil é um senti- mento muito forte, baseado na indignação, no ódio e na não aceitação da posição do adversário”, argumentou. Ortellado salientou ainda que o fenómeno da desin- formação é um desafio muito grande para o jorna- lismo profissional, porque quanto mais bem feito é o trabalho jornalístico, mais dificuldade existe em con- correr com conteúdos que apelam ao sentimento de indignação. “Quando o público está polarizado, ele é muito cha- mado a cumprir um papel de rebaixar o jornalismo”, des- tacou o investigador, consi- derando que os actores po- líticos também não têm inte- resse em melhorar o ecos- sistema mediático. As ‘fake news’, comum- mente conhecidas por notícias falsas, desinformação ou informação propositadamente falsificada com fins políticos ou outros, ganharam impor- tância nas presidenciais dos EUA que elegeram Donald Trump, no referendo sobre o ‘Brexit’ no Reino Unido e nas presidenciais no Brasil, ganhas pelo candidato da extrema- direita, Jair Bolsonaro. O Parlamento Europeu quer tentar travar este fenó- meno nas europeias de Maio e, em 25 de Outubro de 2018, aprovou uma resolução na qual defende medidas para reforçar a protecção dos dados pessoais nas redes sociais e combater a mani- pulação das eleições, após o escândalo do abuso de dados pessoais de milhões de cidadãos europeus. Alemães defendem acção Um estudo conduzido pela universidade alemã de Darms- tadt revela que 81 por cento, num total de 1023 inquiridos, defendem uma resposta rápida das autoridades para lidar com notícias falsas, as cha- madas "fake news". O estudo “Percepção de notícias falsas na Alemanha: Um estudo representativo das atitudes das pessoas e abordagens para combater a desinformação” pretende responder a três perguntas: Que atitude têm as pessoas perante as “fake news”? Já viram ou já lidaram com notícias falsas? Como avaliam possíveis abordagens para as combater? Christian Reuter, coor- denador do estudo, revelou que quase metade dos entre- vistados (48%) já teve con- tacto com notícias falsas. No entanto, apenas um em cada quatro admitiu ter apagado ou reportado notícias falsas e somente 2% revelou ter criado alguma. “As respostas mostram que a grande maioria dos participantes admite os riscos das ‘fake news’. Mais de 80% concordaram que estas representam uma ameaça e que podem ser usadas para manipular a opinião da população. Mas quase o mesmo número de partici- pantes no estudo acredita que os decisores e actores políticos também podem ser manipulados”, revela o pro- fessor e investigador. A maioria dos participantes neste estudo, realizado na Alemanha, concorda com todas as formas sugeridas para lidar com notícias falsas: 80% defendem “reacções rápidas das autoridades” e 72% gos- tariam que fossem estabele- cidos “centros de defesa de segurança informática”. Obrigações por parte dos operadores ou reforço dos regulamentos penais também foram aprovados, “a quanti- dade de respostas neutras varia entre 14% a 21%, enquanto apenas 3 a 7% dos participantes não concordam com as abor- dagens sugeridas”, esclarece Christian Reuter sobre a rea- lidade das ‘fake news’. 68 por cento dos inqui- ridos acreditam que as “fake news” prejudicam a demo- cracia e 84% considera-as perigosas, porque podem manipular as opiniões. Mas o coordenador do estudo revela que não dispõe de dados que associem as notícias falsas aos resultados e efeitos na política, na Alemanha. "Bom jornalismo” deve ser a vacina Nuno Artur Silva, da Produ- ções Fictícias, de Portugal, defendeu que é preciso olhar as 'fake news' como "doença da democracia" que ameaça as populações e recorrer ao "bom e velho jornalismo" como vacina para proteger a sociedade. "A maneira de se olhar para as 'fake news' é como se fosse uma campanha pela saúde. Temos de olhar para este fenó- meno como uma doença da democracia, em que as popu- lações estão ameaçadas por um vírus", afirmou. "Os jornalistas deviam encarar isto como se encara uma epidemia. Tem de haver uma atitude do género 'vacine-se, os vírus estão aí'. E a única maneira de proteger a sociedade é com um sistema de vacinação que é o bom e velho jornalismo", argumen- tou Nuno Artur Silva. "O que chamamos desin- formação é o canário na mina de ouro do digital, um sinal de aviso para o ecossistema informativo das nossas demo- cracias", afirmou, no mesmo sentido, o deputado português José Magalhães. O deputado recordou que antigamente o canário nas minas de carvão servia para alertar para a presença de um gás venenoso, da mesma forma que agora as 'fake news' aler- tam para um perigo iminente. A propósito da necessidade de se recuperar o "bom e velho jornalismo", Luísa Meireles, directora da agência Lusa, frisou que até se costuma dizer que as agências de notí- cias exercem "o jornalismo canónico", "o que não exclui os chamados erros jornalís- ticos, mas que são diferentes de 'fake news'", frisou. A directora da Lusa subli- nhou também a importância que assume a verificação da informação, "o jornalismo que faz o contraditório que vai 'checkar' uma, duas, três fontes para verificar uma notí- cia", algo que "muitos não fazem na corrida para serem os primeiros a dar a notícia". "Às vezes é preciso perder uma notícia para dar uma notícia que é verdadeira", argumentou Luísa Meireles, sublinhando que é preciso "romper" o que considerou ser a "bolha informativa" das 'fake news', através do prin- cípio do contraditório, do ques- tionamento e da verificação. “Vamos contraditar, vamos perguntar, vamos 'checkar'. Se duas fontes dizem a mesma coisa, tem mais força do que só uma o dizer”, frisou. Catarina Carvalho, direc- tora do “Diário de Notícias”, sublinhou, por seu turno, que se o objectivo é “com- bater as 'fake news' é preciso perceber que a informação não é gratuita”, que o trabalho dos jornalistas “tem de ser remunerado e não pode dei- xar de o ser” e que o fenó- meno das 'fake news' começa e acaba no negócio. JORNALISMO PARECE CORRER PERIGO FERNANDO OLIVEIRA | EDIÇÕES NOVEMBRO|BENGUELA 4 DESTAQUE Quinta-feira 21 de Fevereiro de 2019 O que acontece neste cenário é que estes dois pólos começam a produzir sites que veiculam opinião na forma de factos noticiosos. Esse excesso de produção de opinião apresentado como se fosse investigação jornalística é a essência do fenómeno tanto no Brasil como noutros países O que um dia a equipa de Donald Trump chamou "factos alternativos" parece ganhar espaço ao jornalismo sério e à credibilidade dos jornalistas, que são o último bastião de uma informação verídica, sujeita ao contraditório e aos processos de verificação que regem a profissão. Uma ameaça chamada “fake news”

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Page 1: JORNALISMO PARECE CORRER PERIGO Uma ameaça deve ser a ...imgs.sapo.pt/jornaldeangola/img/238202696_fake__news.pdf · “A situação das ‘fake news’ no Brasil não é muito diferente

Num mundo onde há cadavez mais informação, oscidadãos estão, contradi-toriamente, cada vez menosbem informados ou mesmomal informados, com umatorrente de notícias quesurge literalmente do nada.Com a crise dos meios tra-dicionais de comunicaçãosocial e o desenvolvimentodas redes sociais, a disse-minação das chamadasnotícias falsas (fake news)espalharam-se ao ponto deintervirem directamenteem todos os sectores da so-ciedade, nomeadamente,na política, segurança ousaúde. O jornalismo sérioe a credibilidade dos jor-nalistas é o último bastiãode uma informação verí-dica, sujeita ao contraditórioe aos processos de verifi-cação que regem a profissão.Os jornalistas estão cons-cientes de como é difícil,até para e les mesmos ,detectar uma notícia falsaou evitar ser instrumenta-lizados. As notícias falsaspodem ser crime, mas aindanão têm castigo.

Polarização política no BrasilO investigador Pablo Ortel-lado, professor da Univer-sidade de São Paulo (USP),considera que a situação dadesinformação no Brasilresulta da polarização daesfera pública e do extre-mismo dos actores políticos.

“A situação das ‘fakenews’ no Brasil não é muitodiferente das de outros paísesque estão a sofrer um pro-

cesso de polarização da esferapública, onde as opiniõespolíticas estão concentradasem dois pólos (…) Isto acon-tece nos Estados Unidos, naArgentina, na Venezuela, noBrasil e também na Europa,como é o caso da França eda Inglaterra”, afirmou.

O académico, que desen-volveu projectos de análisedo debate político no meiodigital nas últimas eleiçõespresidenciais do Brasil, dis-putadas em Outubro do anopassado, considera que aexpressão ‘fake news’ nãoé a mais adequada paraclassificar o fenómeno dadesinformação.

“O que acontece nestecenário é que estes dois póloscomeçam a produzir sitesque veiculam opinião naforma de factos noticiosos.Esse excesso de produçãode opinião apresentadocomo se fosse investigaçãojornalística é a essência dofenómeno no Brasil comonoutros países”, frisou.

O investigador explicouque informação enviesadatem uma forte presençanuma sociedade polarizadacomo a brasileira, onde aspessoas estão comprometi-das com causas.

“É muito difícil saber oque é causa e o que é efeitodo fenómeno da desinfor-mação. As pessoas estãopolarizadas e, portanto, con-somem notícias muito enga-jadas, que consolidam a suaposição já polarizada. Sãocoisas que se retroalimentam.Isto no Brasil é um senti-mento muito forte, baseado

na indignação, no ódio e nanão aceitação da posição doadversário”, argumentou.

Ortellado salientou aindaque o fenómeno da desin-formação é um desafiomuito grande para o jorna-lismo profissional, porquequanto mais bem feito é otrabalho jornalístico, maisdificuldade existe em con-correr com conteúdos queapelam ao sentimento deindignação.

“Quando o público estápolarizado, ele é muito cha-mado a cumprir um papel derebaixar o jornalismo”, des-tacou o investigador, consi-derando que os actores po-líticos também não têm inte-resse em melhorar o ecos-sistema mediático.

As ‘fake news’, comum-mente conhecidas por notíciasfalsas, desinformação ouinformação propositadamentefalsificada com fins políticosou outros, ganharam impor-tância nas presidenciais dosEUA que elegeram DonaldTrump, no referendo sobre o‘Brexit’ no Reino Unido e naspresidenciais no Brasil, ganhaspelo candidato da extrema-direita, Jair Bolsonaro.

O Parlamento Europeuquer tentar travar este fenó-meno nas europeias de Maioe, em 25 de Outubro de 2018,aprovou uma resolução naqual defende medidas parareforçar a protecção dosdados pessoais nas redessociais e combater a mani-pulação das eleições, apóso escândalo do abuso dedados pessoais de milhõesde cidadãos europeus.

Alemães defendem acção Um estudo conduzido pelauniversidade alemã de Darms-tadt revela que 81 por cento,num total de 1023 inquiridos,defendem uma resposta rápidadas autoridades para lidarcom notícias falsas, as cha-madas "fake news".

O estudo “Percepção denotícias falsas na Alemanha:Um estudo representativodas atitudes das pessoas eabordagens para combatera desinformação” pretenderesponder a três perguntas:Que atitude têm as pessoasperante as “fake news”? Jáviram ou já lidaram comnotícias falsas? Como avaliampossíveis abordagens paraas combater?

Christian Reuter, coor-denador do estudo, revelouque quase metade dos entre-vistados (48%) já teve con-tacto com notícias falsas. Noentanto, apenas um em cadaquatro admitiu ter apagadoou reportado notícias falsase somente 2% revelou tercriado alguma.

“As respostas mostramque a grande maioria dosparticipantes admite os riscosdas ‘fake news’. Mais de 80%concordaram que estasrepresentam uma ameaça eque podem ser usadas paramanipular a opinião dapopulação. Mas quase omesmo número de partici-pantes no estudo acreditaque os decisores e actorespolíticos também podem sermanipulados”, revela o pro-fessor e investigador.

A maioria dos participantesneste estudo, realizado naAlemanha, concorda comtodas as formas sugeridas paralidar com notícias falsas: 80%defendem “reacções rápidasdas autoridades” e 72% gos-tariam que fossem estabele-cidos “centros de defesa desegurança informática”.

Obrigações por parte dosoperadores ou reforço dosregulamentos penais tambémforam aprovados, “a quanti-dade de respostas neutras variaentre 14% a 21%, enquantoapenas 3 a 7% dos participantesnão concordam com as abor-dagens sugeridas”, esclareceChristian Reuter sobre a rea-lidade das ‘fake news’.

68 por cento dos inqui-ridos acreditam que as “fakenews” prejudicam a demo-

cracia e 84% considera-asperigosas, porque podemmanipular as opiniões. Maso coordenador do estudorevela que não dispõe dedados que associem as notíciasfalsas aos resultados e efeitosna política, na Alemanha.

"Bom jornalismo” deve ser a vacina Nuno Artur Silva, da Produ-ções Fictícias, de Portugal,defendeu que é preciso olharas 'fake news' como "doençada democracia" que ameaçaas populações e recorrer ao"bom e velho jornalismo"como vacina para protegera sociedade.

"A maneira de se olhar paraas 'fake news' é como se fosseuma campanha pela saúde.Temos de olhar para este fenó-meno como uma doença dademocracia, em que as popu-lações estão ameaçadas porum vírus", afirmou.

"Os jornalistas deviamencarar isto como se encarauma epidemia. Tem de haveruma at i tude do género'vacine-se, os vírus estão aí'.E a única maneira de protegera sociedade é com um sistemade vacinação que é o bom evelho jornalismo", argumen-tou Nuno Artur Silva.

"O que chamamos desin-formação é o canário na minade ouro do digital, um sinalde aviso para o ecossistemainformativo das nossas demo-cracias", afirmou, no mesmosentido, o deputado portuguêsJosé Magalhães.

O deputado recordou queantigamente o canário nasminas de carvão servia paraalertar para a presença de umgás venenoso, da mesma formaque agora as 'fake news' aler-tam para um perigo iminente.

A propósito da necessidadede se recuperar o "bom e velhojornalismo", Luísa Meireles,directora da agência Lusa,frisou que até se costumadizer que as agências de notí-cias exercem "o jornalismocanónico", "o que não excluios chamados erros jornalís-ticos, mas que são diferentesde 'fake news'", frisou.

A directora da Lusa subli-nhou também a importânciaque assume a verificação dainformação, "o jornalismoque faz o contraditório quevai 'checkar' uma, duas, trêsfontes para verificar uma notí-cia", algo que "muitos nãofazem na corrida para seremos primeiros a dar a notícia".

"Às vezes é preciso perderuma notícia para dar umanotícia que é verdadeira",argumentou Luísa Meireles,sublinhando que é preciso"romper" o que considerouser a "bolha informativa" das'fake news', através do prin-cípio do contraditório, do ques-tionamento e da verificação.

“Vamos contraditar, vamosperguntar, vamos 'checkar'.Se duas fontes dizem a mesmacoisa, tem mais força do quesó uma o dizer”, frisou.

Catarina Carvalho, direc-tora do “Diário de Notícias”,sublinhou, por seu turno,que se o objectivo é “com-bater as 'fake news' é precisoperceber que a informaçãonão é gratuita”, que o trabalhodos jornalistas “tem de serremunerado e não pode dei-xar de o ser” e que o fenó-meno das 'fake news' começae acaba no negócio.

JORNALISMO PARECE CORRER PERIGO

FERNANDO OLIVEIRA | EDIÇÕES NOVEMBRO|BENGUELA

4 DESTAQUE Quinta-feira21 de Fevereiro de 2019

O que aconteceneste cenário é que

estes dois póloscomeçam a

produzir sites queveiculam opinião na

forma de factosnoticiosos. Esse

excesso deprodução de

opinião apresentadocomo se fosseinvestigação

jornalística é aessência do

fenómeno tanto no Brasil comonoutros países

O que um dia a equipa de DonaldTrump chamou "factos alternativos"parece ganhar espaço ao jornalismosério e à credibilidade dos jornalistas,que são o último bastião de umainformação verídica, sujeita aocontraditório e aos processos deverificação que regem a profissão.

Uma ameaçachamada

“fake news”

Page 2: JORNALISMO PARECE CORRER PERIGO Uma ameaça deve ser a ...imgs.sapo.pt/jornaldeangola/img/238202696_fake__news.pdf · “A situação das ‘fake news’ no Brasil não é muito diferente

Os jornalistas tambémcometem erros, mas "umacoisa é o erro jornalístico,outra coisa é uma mentira",distingue o director da rádioTSF, reconhecendo que "aspessoas não têm capacidade,ainda, para as distinguir".

"Hoje é frequente ouviras pessoas dizerem 'não, não,é verdade, porque eu ouvina net', que é uma coisamuito difícil de desmontar.As pessoas acreditam pia-mente naquilo, não perce-bendo que ler na 'net' no siteda TSF ou ler na 'net' num'post' de Facebook são rea-lidades completamente dife-rentes", realça Arsénio Reis.

"O grande problema éque, de facto, as pessoas nãotêm capacidade, ainda, paraas distinguir", lamenta, assi-nalando a "iliteracia" mediá-tica dos cidadãos.

O responsável editorialda rádio privada detida peloGlobal Media Group diz quea discussão sobre o assunto"é diária" na redacção, mastal não significa que asempresas e os jornalistas setenham sabido proteger de"um problema muito com-plicado de resolver".

Recuando ao passado,Arsénio Reis não tem dúvidasem dizer que o jornalismoperdeu crédito e que os pró-prios jornalistas têm nissoalguma responsabilidade."Devíamos ter-nos preocu-pado há mais tempo", admite.

Arsénio Reis assume queprefere falar em "intoxicação"do que em "fake news" sim-plesmente, porque é o maisutilizado, mas que não deveser traduzido como "notíciasfalsas", porque uma notícianão pode, por natureza, serfalsa, mas como "notíciasfalsificadas", o que já pres-supõe uma intenção dedesinformar ou manipular.

"Não há notícias menti-rosas, as notícias mentirosassão mentiras. Nem sequeraceito o conceito e acho queninguém na profissão odeveria aceitar", contesta odirector da TSF.

As "notícias mentirosas"são "perigosas", porque "põemtodos os dias em causa" o tra-balho dos jornalistas e dasempresas de informação,reconhece.

Porém, importa assinalarque todos cometemos erros,incluindo os jornalistas. "Masuma coisa é o erro jornalísticoe outra coisa é uma mentiraou uma 'fake news'", dis-tingue. No primeiro caso,

quem "for atingido ou lesado"pelo erro jornalístico tem aoseu dispor instrumentos parase defender, como direito deresposta, entidades regula-doras, tribunais.

"As pessoas hoje con-fundem, de alguma forma,aquilo que é a produção detrabalho jornalístico comalgumas das informaçõesque circulam livremente esem cumprirem qualquercritério jornalístico, no mun-do 'online', em particularnas redes sociais, como sabe-mos, mas também nalgunssites, e em alguns delibe-radamente", aponta.

Perante isto, só há umasolução: "voltar aos princí-pios básicos", identifica."Não é verdade que tenha-mos mudado (os procedi-mentos internos). Admitoque tenhamos hoje mais cui-dado com o contraditório doque tínhamos. Admito quetenhamos hoje mais atençãoa algum tipo de 'notícias'menos 'normais', prevendoa possibilidade de elas serem,efectivamente, uma anor-malidade. Mas a prática quetemos, jornalística, nãomudou. E, aliás, acho queum dos segredos da profissãoé voltar aos princípios bási-cos. Se conseguirmos res-peitar esses, correremosmenos riscos”, defende.

“O contraditório é, paramim, a grande missão do jor-nalismo. Nós não defendemoscausas, ou raramente defen-demos causas, mas devemosfornecer às pessoas as armaspara que elas possam tomaras suas decisões. Isso implicaouvir versões opostas, ouvirvárias opiniões e depois per-mitir que as pessoas possam,efectivamente, retirar as suasconclusões”, sustenta.

Por outro lado, é hoje maisdifícil para os órgãos de infor-mação "ter os meios essen-ciais para, em cada um doscasos, (...) apurar a veraci-dade de uma determinadainformação", admite.

Código de conduta O fundador do Expresso,Francisco Pinto Balsemão,considerou que as 'fake news'são uma ameaça global e nãoapenas para os 'media' edefendeu um código de con-duta para os jornalistas nasredes sociais.

Questionado sobre se as'fake news' ameaçam osmedia, o presidente do Con-selho de Administração daImpresa afirmou: "Eu acho

que não é apenas para onegócio da informação, aameaça é muito mais global,a ameaça é para a sociedadeonde vivemos e essa ameaçahoje em dia está organizada".

E explicou: "Há 'hackers'(piratas informáticos) pro-fissionais que são contra-tados e bem pagos, quer paraatacarem pessoas, empresase instituições e tentaremdestruí-las, quer para esta-rem ao serviço de políticasde grandes países".

Para o patrão da SIC e doExpresso, as 'fake news' são"uma ameaça global" e uma"ameaça para o jornalismo,porque é uma concorrênciacompletamente desleal".

"Essa é, portanto, umagrande ameaça para o jor-nalismo e também umagrande oportunidade deseparar o trigo do joio e comoo joio é cada vez mais volu-moso, mais mal cheiroso,está por toda a parte, é piorque as ilhas de plástico aserem encontradas cada vezmaior número nos oceanos",apontou, salientando que "ojoio é cada mais pestilento"e cresce em Estados que têmo poder e utilizam as novastecnologias em campanhas.

Deu o exemplo da Repú-blica Democrática do Congo,que cortou o acesso à Internetpara controlar o sistema polí-tico e social, ou "como é ocaso da China, que faz issoquase abertamente", paraexplicar que a evolução tec-nológica, que até inclui reco-nhecimento facial, permitecondicionar a actividadepolítica, a liberdade das pes-soas, a liberdade de opiniãoe até o acesso à informação.

No combate às 'fake news',o presidente da Impresa teceuainda críticas ao comporta-mento dos jornalistas nasredes sociais.

"Os jornalistas têm deter um comportamento tal-vez um pouco diferente edeixar de se apresentaremconstantemente nas redessociais, como se aquilo fosseuma espécie de clube deamigos", considerou.

Questionado se consi-derava necessár io umcódigo de conduta, Fran-cisco Pinto Balsemão afir-mou: "Penso que sim, cadavez mais acho que os jor-nalistas não devem intervirnas redes sociais, muitomenos acerca de assuntosque eles próprios tratamnas redacções. Acho que sedevem coibir disso".

"As 'fake news' começama existir por uma questãocomercial e enquanto os jor-nais estiverem na situaçãopericlitante em que estão,as notícias gratuitas podemser falsas ou verdadeiras ea rapidez pode ser falsa ouverdadeira", alertou.

"Não sermos os primeirosa dar a notícia é sinónimode perder os cliques e é per-der a publicidade e é perdera liberdade e o rigor", lamen-tou Catarina Carvalho.

O deputado José Maga-lhães, por sua vez, referiuque estamos perante "umproblema intrincadíssimo",sublinhando que "o pro-blema da desinformação ésó o pico do iceberg", quetem por trás, nomeadamente,"problemas de erosão da con-fiança nos media", a perdade rendimentos para os medianoticiosos, a crise dos ser-viços públicos, entre outros.

Neste sentido, Luísa Mei-reles referiu que na "luta das'fake news' e no combate àsnotícias falsas ou falseadasos jornalistas estão na pri-meira linha como alvos aabater e como vítimas".

E a directora da Lusa co-mentou também que consi-dera "uma contradição otermo 'fake news', porque seé falsa não é notícia", masreconheceu o termo inter-nacional como identificativo.

Fernando Esteves, directordo Polígrafo, comentou, porsua vez, que o cérebro huma-no está feito para acreditar,mesmo quando sabe que nãoé verdade, antecipando que"a dificuldade de distinguira realidade da ficção, que sevai massificar no futuro, vaidificultar a tomada de deci-sões informadas".

Para o director do Polí-grafo, cabe às redes sociaisintervir para evitar a escaladado fenómeno e as suas con-sequências negativas, mastambém aos cidadãos, quedevem ser "mais responsáveise não podem partilhar con-teúdos de qualquer forma".

"Partilhar acriticamenteé mais uma machadada nademocracia", considerouFernando Esteves, acres-centando que os jornalistas,por seu turno, "têm de sercorajosos e continuar a publi-car o que os outros não que-rem que se publique".

Investigador Pablo Ortellado

ARÃO MARTINS| EDIÇÕES NOVEMBRO

MOTA AMBRÓSIO| EDIÇÕES NOVEMBRO

DR

O erro jornalístico e a mentira

Quinta-feira21 de Fevereiro de 2019 5DESTAQUE

"As chamadas 'fake news' sãoum fenómeno e um problemaa que Angola, obviamente,não poderia estar imune.Nenhum país escapa hoje aessa realidade, que na verdadesempre existiu, na históriada humanidade, mas hoje éelevada à potência éne porforça das incríveis alteraçõestecnológicas em curso, emespecial a Internet. A verdadeé que as novas tecnologiasde comunicação, se, como sediz, permitem que o conhe-cimento esteja hoje ao alcancede um clique, também fazemcom que as falsas informaçõescirculem planetária e instan-taneamente. Recordo aquiUmberto Eco, quando disseque 'patetices' sempre houve,mas, agora, contam com umaaudiência global.

A crença nas 'fake news'e em todas as 'patetices',invencionices e perversõesque circulam no mundo vir-tual é tanto maior quantomais fechada e menos edu-cada for uma sociedade. Onosso país está a viver umperíodo de abertura infor-mativa, inaugurado com aeleição do Presidente JoãoLourenço em Agosto de 2017,

que, por ser recente, explicaa ingenuidade de muita gente,que "acredita em tudo o quevê nas redes". O défice de edu-cação da sociedade tambémnão ajuda. Temos, pois, muitotrabalho a fazer para usar cor-rectamente as novas tecno-logias de comunicação.

Concordo com aquelesque dizem que a melhor res-posta às 'fake news' é o bomjornalismo. O problema é que,no mundo inteiro, o jornalismotradicional ou não sabe comoenfrentar as redes ou, piorainda, está a reboque delas.A tentação de concorrer coma velocidade das redes nãodá certo. Hoje não basta noti-ciar os factos, pois todo o mun-do, até diletantes e mesmoverdadeiros criminosos o fa-zem, sejam eles verdadeirosou falsos. Basta, para isso, terum telemóvel na mão. Hoje,o bom jornalismo implica apu-rar melhor, não ignorar o con-traditório, enquadrar e explicarcorrectamente os aconteci-mentos. A sociedade temtempo para isso ou quer viverem permanente estado deeuforia e excitação social?"

*Ministro da ComunicaçãoSocial

“Hoje, o bom jornalismoimplica apurar melhor”

A ERCA (Entidade Reguladorada Comunicação Social Ango-lana) faz nota que o seu Con-selho Directivo entrou emfunções num período em quese observam novos desafiosna Comunicação Social, coma proeminência da imprensaonlinee do activismo nas RedesSociais, nem sempre coerentecom os princípios éticos e deon-tológicos que devem reger acomunicação social.

Por isso, vemos que é umexercício desafiador para aERCA, enquanto entidadereguladora que tem que fazera supervisão e a regulação

da comunicação no contextodeste fenómeno novo das'fake news'.

Divisamos a necessidade deum trabalho transversal e pro-fundo que englobe de formacomum todos os sujeitos activose passivos do trabalho da Comu-nicação Social na salvaguardado respeito escrupuloso e defesados direitos de personalidade,nomeadamente o bom nome,a honra, a imagem e intimidadeda vida privada, protegidosconstitucionalmente e na legis-lação ordinária.

Em suma, torna-se neces-sário a aplicação dos instru-

mentos legais vigentes e aadopção de legislação ade-quada ao enfrentamento dofenómeno (fake news) .

Tendo em vista contribuirpara o conhecimento real dofenómeno 'fake news', miti-gando os seus efeitos com aliteracia mediática do cidadãocomum, a ERCA programoupara este ano um colóquiosobre a matéria, em que par-ticiparão actores angolanose dos países membros da Pla-taforma das Entidades Regu-ladoras da ComunicaçãoSocial dos Países de LínguaPortuguesa.

ERCA, enfrentar o fenómeno é um exercício desafiador

Teixeira Cândido, secretário-geral do Sindicato dos Jorna-listas Angolanos (SJA) começapor recordar que, antes de tudo,“as fake news não são notíciasjornalísticas, mas informaçõesdiversas, disponibilizadas pelosmais diversos cidadãos, movi-dos pelos mais diversos inte-resses. É, por assim dizer, umademarcação necessária”.

Por outro lado, acrescenta,"o espaço no qual mais cir-culam as 'fake news' não sãoórgãos de comunicação social(imprensa no sentido lato),mas as redes sociais e outrasplataformas digitais”. Comoterceiro elemento TeixeiraCândido avança que "a notí-cia jornalística tem caracte-rísticas próprias, que nãopodem nem devem ser con-fundidas com as 'fake news'.

Quarto à intensidade das“fake news”, o responsável sin-dical acredita ser uma conse-quência da necessidade demaior transparência dos actosde gestão dos Estados. “Por

fim, no actual contexto domi-nado pelas “fake news”, aimprensa tradicional tem campopara reforçar a sua utilidade eservir de 'espelho corrector'das informações disponíveisnas redes sociais”.

Acrescenta que o jorna-lismo não devia concorrercom as redes sociais, arris-cando por isso o seu capital.“É necessário dar a consumirao cidadão uma informaçãojornalística, quer dizer, devi-damente tratada, observandoos cânones deontológicos”.

Fake News não é jornalismoTEIXEIRA CÂNDIDO

JOÃO MELO *

Jornalista pede mais rigor