2JUZES DE TOGA, NOBREZA TOGADA:O JUDICIRIO NAS PRIMEIRAS DCADAS DO IMPRIO

Karine Cristinie da Silva Fontineles Bolsista PIBIC/UESPIProfessor Dr. Marcelo de Sousa Neto - UESPI

Resumo: o presente artigo tem por escopo discutir a respeito da educao piauiense na primeira metade do sculo XIX, com nfase no nvel de instruo dos magistrados da provncia piauiense. A Histria do Direito no Brasil representa rea ainda pouco explorada, visto que ainda so parcos os trabalhos publicados acerca dessa proposta temtica. No caso do Piau, em especial, pesquisas sobre a temtica so ainda mais escassas, o que tem dificultado o desenvolvimento das Cincias Jurdicas, bem como o desenvolvimento da prpria Histria. As dificuldades no acesso ao ensino formal, associadas grande extenso territorial do Imprio corroboraram a deficincia da prtica jurisdicional dos magistrados na provncia piauiense. Entender essa dimenso histrica contribui para entender o desenvolvimento das sociabilidades em dado perodo, uma vez que as decises polticas do Brasil Imprio eram diretamente influenciadas pela formao jurdica dos membros de sua elite. Partindo dessa perspectiva, analisar o surgimento prematuro e desorganizado do judicirio piauiense em meio s tentativas de atender as exigncias de Portugal e, posteriormente, do Imprio Brasileiro o objetivo do presente estudo, bem como entender as disputas por poder e a utilizao da educao formal como elemento diferenciador e legitimador dos detentores desse poder. No que concerne metodologia utilizada na pesquisa, lanou-se mo de uma discusso analtico-interpretativa dos pronunciamentos oficiais do Visconde da Parnaba, Manuel de Sousa Martins poca presidente da provncia, endereados Assemblia Legislativa. Como referenciais tericos para alicerar a pesquisa foram utilizadas as discusses de Bevilaqua (1977), Bonavides (2002), Carvalho (2003) e Moraes (2003), que se debruam sobre a histria do Direito nas esferas nacional e local, alm da anlise da documentao oficial da poca oriunda da Assemblia Legislativa do governo provincial. Considera-se que a formao judiciria dos jovens bacharis, que em geral tiveram sua formao ligada Faculdade de Direito de Recife, teve papel fulcral nos direcionamentos das decises polticas da provncia piauiense.

Palavras-chave: Educao. Histria. Direito

1. Introduo

As pesquisas no ramo das Cincias Jurdicas pouco tm se direcionado para a

Histria do Direito. Temticas relativas a essa rea so ainda escassas, o que proporciona

dificuldades no desenvolvimento das Cincias Jurdicas e, conseqentemente, no

desenvolvimento da prpria Histria, uma vez que a percepo da dimenso histrica

auxilia a compreenso das relaes de sociabilidades em dado perodo. Jos Murilo de

Carvalho endossa esse entendimento quando expe que as decises polticas durante o

Brasil Imprio estavam diretamente associadas formao jurdica de muitos membros de

sua elite.

O Judicirio, como grande parte das instituies no Brasil, surge de forma

prematura e desorganizada, como uma forma de se adequar s exigncias portuguesas e

posteriormente do Imprio brasileiro. Sem pessoal qualificado com formao especfica,

3considerando que o primeiro curso de Cincias Jurdicas do Brasil data do ano de 18271,

nossos primeiros juzes constituram-se, principalmente, de leigos indicados por seus

colgios paroquiais eleitorais, nos quais o poder e prestgio de ricos senhores de terras

terminavam por indicar que conduziriam os caminhos da magistratura.

Esse grupo de juzes, ao assumir importantes atribuies no controle administrativo

da colnia e depois Imprio esculpir os moldes em que se delinear toda a prtica

jurisdicional de que se tem conhecimento no Brasil atualmente, apesar de que ao longo dos

anos, o judicirio sofreu profundas transformaes. Analisar sua histria, destacando a

relao entre o interesse privado e pblico e a autonomia do judicirio permite

aprofundarmos a discusso e o estudo sobre a independncia do Poder Judicirio e a defesa

do interesse pblico, bem como da prpria Histria do Direito, contribuindo para entender

a prpria histria do Brasil.

Na primeira metade do sculo XIX, com a Constituio de 1824 e com o Cdigo de

Processo Criminal2, a esfera de atuao dos magistrados aumenta consideravelmente em

detrimento de grupos polticos que at ento agiam quase de forma absoluta nas provncias.

Certamente que essas disputas entre o poder local gerariam conflitos, como possvel

notar na fala de Manuel de Sousa Martins, presidente da provncia do Piau, segundo o

qual o judicirio piauiense era composto por homens rudssimos, presidido por juzes de

direito no letrados e igualmente ignorantes 3.

A insatisfao quanto influncia da prtica desses magistrados na organizao

poltica do Imprio no se deu isoladamente na provncia piauiense. Referindo-se

provncia de Gois, Eliane Martins de Freitas aponta a freqente insatisfao por parte

dos Presidentes da Provncia com relao atuao do Judicirio, so reclamaes

relativas falta de juzes letrados; benevolncia do jri; falta de conhecimento das leis

por parte dos juzes municipais4, o que instiga o desenvolvimento da pesquisa no intuito

1 BEVILAQUA, Clovis. Histria da Faculdade de Direito do Recife. 2 ed. Braslia, INL, Conselho

Federal de Cultura, 1977. 2

BONAVIDES, Paulo & AMARAL, Roberto. Textos polticos da Histria do Brasil.3.ed. Braslia: Senado Federal, 2002.

3 PIAU. APEP. Oficio da Assemblia Legislativa da Provncia do Piau ao Governo da Provncia, deliberando sobre o numero de alunos nas aulas de Francs na cidade de Oeiras, em 12 de setembro de 1937. Registro de Correspondncia da Assemblia Legislativa, com o Governo da Provncia, 1835-1843.

4 FREITAS, Eliane Martins de. Organizao administrativa do Poder Judicirio no sculo XIX. OPSIS-Revista do NIESC. V. 5, 2005.

4de analisar as ocorrncias desses conflitos nos seus desdobramentos na efetivao da

prtica do direito e conseqncias polticas.

O recorte temporal deste estudo contempla a primeira metade do sculo XIX, perodo

em que o Imprio buscava sua consolidao, utilizando-se da fora do Poder Judicirio

para atingir a unificao territorial e legitimava os magistrados, a partir da Constituio e

do Cdigo Criminal, a atribuies administrativas e polticas, at ento exercidas por

outros grupos da elite.

2. Objetivos

2.1. Objetivo Geral

* Analisar a histria do Poder Judicirio, na primeira metade do sculo XIX, sobretudo no Piau, destacando seu processo de estruturao em um perodo de forte centralizao administrativa, bem como sua relao com o Poder Executivo das provncias, visando a compreender como isso influenciou as alteraes histricas vividas no Brasil nesse perodo histrico.

2.2. Objetivos Especficos

* Analisar a organizao administrativa do judicirio e formao de seu corpo funcional, atravs de um estudo interdisciplinar entre Histria e Direito.

* Discutir a atuao do judicirio e sua independncia em relao aos demais poderes, bem como refletir acerca dos limites do judicirio na primeira metade do sculo XIX.

* Investigar a relao entre o judicirio e os diversos interesses locais exercidos por lideranas polticas provinciais.

3 Metodologia

O projeto aqui apresentado objetiva investigar a histria do judicirio brasileiro da

primeira metade do sculo XIX, especialmente no que concerne s disputas entre juzes e

presidentes de provncias e a respeito da formao acadmica desses magistrados.

Em seu estudo, prope-se a utilizao de fontes bibliogrfica elaborando-se as

anlises a partir da associao destas. As fontes bibliogrficas a serem utilizadas devem

compreender no somente especificamente a temtica de estudo, mas obras especficas

sobre a sociedade brasileira da poca, com o objetivo de perceber sua organizao,

articulando-o com a realidade social, sem, contudo, prender-se exclusivamente a marcos

cronolgicos delimitados pelo recorte temporal a serem utilizados pela pesquisa, como

sugere Eric Hobsbawm (1998).

5Definiu-se como recorte temporal o perodo relativo aos cinqenta primeiros anos do

sculo XIX, no qual o Brasil deixa de ser Colnia e busca efetivar-se como Imprio,

passando o Judicirio a ser grande ferramenta dos interesses imperiais.

de grande relevncia para o projeto seguir a orientao de Lopes (apud COSTA

FILHO, 2000), que sugere aos pesquisadores incorporar os saberes de outras reas do

conhecimento e atenuar a rigidez do uso das fontes tradicionais, com a utilizao de todo e

qual quer documento que guarde correspondncia com o tema. Deve ser lembrado que aqui

se delineia uma proposta de trabalho, no entanto, somente ao longo da pesquisa, com as

respostas obtidas das fontes que se avaliar a necessidade de correo de rota, pois, se

histria processo, sua pesquisa tambm o .

4. Resultados ObtidosJuzes de Paz, Juzes Municipais e de rfos, Juzes de Direito Interino, todos leigos e rsticos, que mal assinam os seus nomes, circunscritos em si mesmos ou guiados pelos travessos e desconceituados escrives, sem ter um advogado ao seu lado, e nem mesmo ao longe da Provncia, a quem possam consultar, como se h de desenvolver com acerto nas complicadas e difceis matrias do foro judicial, que demandam conhecimentos privativos, srios e circunspetos estudos?5.

Durante o perodo colonial foi implantado no Brasil o direito portugus. Esta

modalidade de direito estabelecida na colnia era, tal como na metrpole, uma combinao

do direito consuetudinrio, do direito romano e do direito cannico. A aplicao do sistema

jurdico na colnia sofria pequenas adaptaes s condies locais, quando necessrio. No

entanto, por ser um modelo importado de um pas cuja estrutura scio-cultural divergia

drasticamente, tornava-se muitas vezes ineficiente.

As primeiras leis feitas especificamente para o Brasil foram os regimentos dos

governadores gerais (dentre os quais o mais antigo data de 17 de dezembro de 1548, que

estabelecia as atribuies do governador-geral Tom de Sousa), dos ouvidores gerais e dos

provedores, formando o incio de uma estrutura administrativa prpria da colnia.

5 PIAU. APEP. Fala que recitou o Excelentssimo Senhor Visconde da Parnaba, Presidente desta Provncia

do Piau, na ocasio da abertura da Assemblia Provincial em 7 de julho de 1843. Registro de Correspondncia da Assemblia Legislativa, com o Governo da Provncia. 1835-1843.

6Eram legitimados a aplicar a ordem jurdica os juzes ordinrios, membros das

Cmaras Municipais, que no tinham formao jurdica e, como requisito, deveriam

obrigatoriamente residir nas comarcas em que possuam jurisdio; e os juzes de fora,

magistrados nomeados pela Coroa; os ouvidores de comarcas e os tribunais da Relao6,

que existia na Bahia e, posteriormente, no Rio de Janeiro e no Maranho. A respeito da

atuao destes tribunais de Relao e da conduta dos juzes em suas esferas jurisdicionais,

o desembargador do Tribunal de Justia do Estado da Bahia, Antonio Pessoa Cardoso,

destaca que:

um historiador da poca comenta que com mais Relao, porm, ou menos Relao, na Bahia ou no Rio de Janeiro, a justia continua irregular e falha, pessoal e feroz, cera que se amolda vontade pessoal do juiz, que quando no arbitrria ignorante e, quando no ignorante venal (Cardoso, 2008)

A denncia quanto parcialidade dos juzes est presente em muitos textos da poca.

Nota-se na fala de pessoa Cardoso, os ecos da insatisfao da populao do perodo diante

dos vcios incrustados no sistema judicirio colonial, uma vez que ao fraco valia sempre

suportar os agravos dos portentosos, perdoando, esquecendo-os a articular qualquer

protesto (Cardoso, 2008). tentador atribuir a culpa das irregularidades e falhas aos

juzes ordinrios, leigos, sem instruo jurdica, cujo conhecimento das leis se dava

exclusivamente por meio da prtica da funo jurisdicional adquirida.

Todavia, os tribunais de Relao eram compostos tambm por juzes de fora,

magistrados e, portanto, detentores do saber jurdico ministrado nos cursos de cincias

jurdicas. Se, de acordo com as crticas da poca, os juzes ordinrios no estavam aptos a

resolver as celeumas geradas em sua jurisdio, tomando atitudes grosseiras para com o

povo que deveriam representar, pode-se inferir que os juzes de fora, apesar de sua

formao acadmica, em muitos casos, tendiam a no resolver satisfatoriamente todas as

querelas provenientes da realidade da Colnia, com nfase quelas decorrentes dos

arbtrios dos juzes ordinrios.

Os magistrados coloniais formavam um grupo de burocratas elitizados, fiis

servidores reais, movidos por generosas promoes e interesses pessoais. O cargo

representava prestgio, dinheiro e status. A magistratura no era apenas um ramo da

6 Tribunais de segunda instncia, responsveis pela fiscalizao dos demais magistrados da colnia.

7burocracia, mas tornava-se um setor social almejado pelas famlias abastadas. Era

sinnimo de distino e abismo entre os grupos sociais.

Nesse cenrio institucional, forjado sob a influncia da matriz lusitana, que o

Brasil torna-se politicamente independente em 1822. De sditos da Coroa portuguesa, os

brasileiros passam a ser cidados do novo Imprio. mister ressaltar que um jugo de mais

de trs sculos no se dissolve to repentinamente, principalmente quando a nova nao

independente traz como imperador um membro da famlia real da ex-metrpole. Alm

disso, como ressalta Bloch (1976), as estruturas polticas e sociais esto condicionadas

pelos laos da mentalidade, ou seja, novas conjunturas erguem-se sobre os alicerces de

suas predecessoras sem destru-las por completo, mas sim, adaptando-as conforme novos

interesses. Da a necessidade de estruturar fundamentos jurdicos ao novo Estado nacional

que emergia.

Em decorrncia de tais transformaes e adaptaes, do ponto de vista da Cincia

Poltica, o Estado visto como uma sociedade poltica juridicamente organizada. Era

necessrio, aps a declarao de independncia, providenciar uma Constituio que

estruturasse o imprio, pois para Alexandre de Moraes, a

Constituio deve ser entendida como a lei fundamental e suprema de um Estado, que contm normas referentes estruturao do Estado, formao dos poderes pblicos, forma de governo e aquisio do poder de governar, distribuio de competncias, direitos, garantias e deveres dos cidados (MORAES, 2003).

Com o intuito de estruturar e regulamentar a formao do Estado brasileiro foi

elaborada a Constituio de 1824. O Brasil recebeu forte influncia dos ideais iluministas,

que se traduziram no mundo jurdico pela idia de uma Constituio que resguardasse os

direitos civis e polticos e organizasse o estado com base na lei. Predominou nesse

momento o constitucionalismo francs, embora houvesse tambm influncias da

Constituio norte-americana.

Quanto repartio dos poderes, a Constituio do Imprio merece destaque pela

implantao do Poder Moderador. O quarto poder seria exercido pela figura do imperador,

cujas atribuies seriam velar sobre a manuteno da independncia, pelo equilbrio e

pela harmonia7 dos demais poderes. De acordo com o texto constitucional, estabeleceu-se

7 Constituio Poltica do Imprio.

8que o Executivo competia ao imperador e ao conjunto de ministros por ele nomeados. O

Legislativo era representado pela Assemblia Geral, formada pela Cmara de Deputados e

pelo Senado, nomeados por D. Pedro I. O Poder Judicirio era formado pelo Supremo

Tribunal de Justia, com magistrados escolhidos pelo imperador. Quando o monarca no

era o representante direto de um dos poderes, fazia-se representar por seus nomeados.

Aps a outorga da primeira constituio brasileira, em 1824, procurou-se ordenar a

vida jurdica brasileira em funo da nova realidade poltica e jurdica. Iniciava ento a

busca por um ordenamento penal e processual penal prprio. A conscincia nacional,

inspirada pelas dificuldades sociais e econmicas e ainda por ideais humanistas

revolucionrios vindos da Europa e da Amrica do Norte, estava em livre trmite nos

meios intelectuais e de polticos no Brasil.

Como forma de buscar a homogeneidade social, buscava-se nos primeiros anos de

Imprio, uma estrutura institucional que articulasse a unidade e a consolidao nacional.

Nesse sentido, a magistratura preenchia as aspiraes do governo. No dizer de Jos Murilo

de Carvalho

Partimos da suposio que o emprego pblico seria a ocupao que mais favorecia uma orientao estatista e que melhor treinava para as tarefas de construo do Estado na fase inicial de acumulao do poder. A suposio era particularmente vlida em se tratando dos magistrados que apresentavam a mais perfeita combinao de elementos intelectuais, ideolgicos e prticos favorveis ao estatismo (2003, p.99).

Os artigos referentes ao poder judicirio da carta constitucional de 1824 esto

contidos no Ttulo IV Do Poder Judicial, mais especificamente do artigo 151 ao 164. As

bases jurdicas e institucionais do pas so alteradas pelas inovaes constitucionais que,

em sua maioria, favorecem a descentralizao do poder e o fortalecimento das provncias.

Quanto s inovaes trazidas pela Lei Maior de 1824, observa-se a abolio, para os

considerados cidados, de penas de aoites, torturas, marcas de ferro quente ou qualquer

pena cruel. Aos escravos, entretanto, a regra geral que, se no fosse cominada a pena de

morte, seriam comutadas penas como aoites ou grilhes.

Como estipulado em disposio constitucional que previa a elaborao de um cdigo

que disciplinasse questes penais, em 29 de novembro de 1830 aprovado o Cdigo do

Processo Criminal, que altera a organizao do Poder Judicirio. A figura do juiz ordinrio,

de acordo com os novos dispositivos legais, substituda pela do juiz de paz,

9permanecendo o critrio de eleio de juzes leigos no mbito municipal. Os juzes de paz,

eleitos diretamente sob o controle dos senhores locais, passam a acumular amplos poderes

nas localidades sob sua jurisdio.

Nesse sentido, insta observar o quo importantes eram essas eleies para juzes de

paz, tambm chamados juzes municipais, posto que galgar um cargo de magistrado

implicava tambm status, poder e uma srie de vantagens polticas e administrativas em

mbito local, como bem explana Graham:

Vencer as eleies era tambm a melhor maneira de garantir ou conservar cargos. Um juiz municipal, um dos chefes mais influentes, compreendeu isso claramente, desejando vencer uma eleio porque, como dizia, uma eleio o melhor meio para alcanar uma vara de Direito.

Martins Pena (1997), dramaturgo contemporneo aprovao e vigncia do Cdigo

do Processo Criminal, infligiu sua viso crtica e bem humorada a respeito da atuao das

autoridades pblicas na comdia de costumes O juiz de paz na roa, de 1838. Na obra, o

juiz de paz, valendo-se de sua posio de destaque e da inocncia da populao roceira,

comete inmeros abusos de poder durante a resoluo dos casos. Apesar da pincelada de

comicidade, interessante ressaltar que por ser uma comdia de costumes, Martins Pena

utilizou a realidade da aplicao da justia nas provncias mais remotas e, portanto, mais

distantes da fiscalizao do Imprio para desenvolver o enredo de sua obra. No trecho a

seguir, Martins Pena retrata, em certa medida, o cotidiano do gerenciamento da carta

constitucional:

Manuel Andr: Mas, Sr. Juiz, ele tambm est ocupado com uma plantao.Juiz: Voc replica? Olha que o mando pra cadeia.Manuel Andr: Vossa Senhoria no pode prender-me toa; a Constituio no manda.Juiz: A Constituio!...Est bem!...Eu, o juiz de paz, hei por bem derrogar a Constituio! Sr. escrivo, tome termo que a Constituio est derrogada, e mande prender-me este homem (1997, p.11).

As crticas tecidas ao Judicirio da poca apontam um corpo de magistrados

detentores de amplos poderes no mbito burocrtico. No entanto, em funo de seu carter

de destaque na hierarquia do Estado, eram responsveis por cometer deslizes durante o

10

exerccio jurisdicional. A literatura da poca pe em evidncia tais prticas, permitindo a

ntima relao entre Histria, Literatura e o Direito.

No trecho supracitado da obra de Martins Pena, o juiz de paz, mesmo em face de

uma alegao de prtica inconstitucional, considera-se em posio to superior que ignora

os preceitos da Constituio vigente. Logicamente que a falta de conhecimento da lei por

parte do povo corroborava no sentido de que as decises judiciais fossem pouco

contestadas.

H que se observar que os juzes gozavam de uma vitaliciedade e no eram

beneficiados pelo princpio hoje aceito da inamovibilidade, o que pode ser observado no

artigo 153, da Constituio de 1824, Os juzes de direito sero perptuos, o que todavia

se no entende que no possam ser mudados de uns para outros lugares pelo tempo, e

maneira, que a lei determinar8. Isso talvez explique muitas das crticas atribudas a

desmandos desses magistrados. Todavia, isso no significa ausncia de controle do Estado

em relao sua atuao.

A Constituio do Imprio no foi omissa quanto orientao da atividade dos

magistrados, chegando inclusive a prever punies e suspenses em casos de desvios da

conduta profissional adequada, restringindo ou pretendendo restringir arbitrariedades neste

campo.

Art.154 O Imperador poder suspend-los por queixas contra eles feitas, precedendo audincia dos mesmos juzes, informao necessria, e ouvido o Conselho de Estado. Os papis, que lhes so concernentes, sero remetidos relao do respectivo distrito, para proceder na forma da lei.(...)Art. 156. Todos os juzes de direito e os oficiais de justia so responsveis pelos abusos de poder e prevaricaes que cometerem no exerccio de seus empregos; esta responsabilidade se far efetiva por lei regulamentar.9

Um dos fatores que dificultava a aplicao desses artigos era a distncia entre as

provncias e os respectivos tribunais a que eram subordinadas. Desde o fim do perodo

colonial havia quatro Tribunais de Relao que visavam fiscalizao da atividade

jurisdicional. De acordo com o texto constitucional, para julgar as causas em segunda e

ltima instncia, haveria nas provncias do imprio as relaes que fossem necessrias

8 Constituio Poltica do Imprio.9 Constituio Poltica do Imprio do Brasil. 1824.

11

para a comodidade dos povos. Acontece que durante o Primeiro Imprio, nenhum outro

Tribunal de Relao foi criado, o que dificultava a atividade de fiscalizao, tendo em vista

a quantidade de provncias sob a jurisdio de cada Relao e a distncia entre cada uma

delas.

Nesse sentido, tinha-se que o Tribunal do Rio de Janeiro abrangia as provncias do

Rio de Janeiro, So Paulo, Minas Gerais, Santa Catarina, Paran, Rio Grande do Sul, Gois

e Mato Grosso. O Tribunal de Salvador tinha sob sua jurisdio Bahia e Sergipe. As

provncias do Maranho, Piau, Amazonas e Par eram subordinadas ao Tribunal de So

Lus do Maranho. Por fim, o Tribunal de Recife compreendia as provncias de

Pernambuco, Alagoas, Cear e Rio Grande do Norte.

A provncia do Piau teve sua primeira comarca criada por ordem da Carta-rgia de

18 de maro de 1722. At ento os julgamentos da populao piauiense eram feitos em

Pernambuco. O povoado da Mocha, que futuramente se tornaria a cidade Oeiras, primeira

capital do Piau, tornou-se sede da comarca. No ano seguinte Carta-rgia, foi designado o

primeiro magistrado do Piau, Vicente Leite Ripado.

Enquanto na Bahia, desde 1609, havia um Tribunal de Relao, somente no ano de

1773, mais se um sculo depois, a provncia do Piau ganha seu primeiro magistrado. O

desenvolvimento da estrutura judicial no Brasil Colnia no se deu de maneira uniforme,

no se pode, portanto, esperar que os magistrados da Bahia, com uma maior tradio

jurisdicional, atuassem do mesmo modo que os juzes do Piau, cuja histria da

magistratura dava ainda seus primeiros passos para consolidar-se.

Com a Independncia do Brasil, vlido destacar que a magistratura no Piau, assim

como nas demais provncias, no foi unnime quanto aceitao da emancipao poltica.

Segundo Antonio Carlos Wolkmer,

a Independncia do pas no encontrou adeso integral da antiga magistratura, pois enquanto alguns apoiavam a ruptura, muitos outros permaneceram fiis monarquia lusitana [...]no fcil demarcar o nmero de juzes que, por lealdade, abandonaram o pas e regressaram a Portugal, bem como os que, por convenincia, comprometeram-se com as novas condies polticas que se implantaram.

A provncia do Piau, em especial, reflete essa dvida quanto adeso ao novo

regime. Por sua localizao territorial, fazia parte do plano engendrado por Portugal para

manter o norte da ex-colnia sob seu domnio. A populao piauiense ficou dividida

12

quanto a apoiar a emancipao, com sua nova forma de governo; ou manter-se fiel

metrpole, sob pena de retaliaes.

Na disputa contra a interveno metropolitana, a magistratura ligada ao Imprio teve

desempenho importante. Eliane Martins de Freitas defende a tese de que a estruturao

das comarcas no Norte tem a funo de fazer sentir a presena do Estado e garantir a

defesa de seus interesses, bem como a unidade territorial (2005, p.127).

Manuel de Sousa Martins teve papel preponderante na luta para tornar a Provncia do

Piau livre das investidas portuguesas. Foi Presidente da Junta Governativa Piauiense de

1823 a 1824 e presidente da provncia em trs oportunidades posteriores: de 1824 a 1828;

em breve perodo em 1829 e por fim, de 1831 a 1843. Neste ltimo governo, Martins teceu

severas crticas ao Judicirio piauiense do sculo XIX, como na ocasio de instalao da

Assemblia Legislativa do Piau em 1834, dizendo que

Pelo que toca a Administrao da Justia, dessa mola principal da tranqilidade publica, tenho a revelar-vos que se acha inteiramente montada sobre o seu grande eixo Constitucional em conformidade do novo Cdigo, e que como no rigorosa, e ativa sua marcha, poucos so os rus que chegam a ser julgados no competente Tribunal do Jri, e que poucos so os Processos que no envolvam defeitos e nulidades que induzem regularmente a isentar os malvados das penas, que merecem pelas suas execraes [...]10

Para Manuel de Sousa Martins, poca Baro da Parnaba, os vcios de

procedimento da magistratura piauiense eram responsveis pela inaplicabilidade do

castigo e severidade legal previstos na Constituio e no cdigo Criminal. Quando no

omissos, os magistrados incorriam em erros que culminariam em processos desprovidos

das formalidades prescritas pela lei e, portanto, ineficazes justa sano dos delitos

cometidos.

Segundo ele, era impossvel garantir a tranqilidade de to vasta provncia, aberta

por todos os lados sem um comportamento mais enrgico por parte da Justia. Desde

1833, a Provncia do Piau passou a ter quatro comarcas: Oeiras, Parnaba, Marvo e

Parnagu.

Prossegue o pronunciamento atribuindo os possveis motivos das eventuais

perturbaes ordem provincial, pois seriam 10 PIAU. APEP. Fala, que dirigiu a Assemblia Legislativa no ato de sua instalao, o Presidente da

Provncia no dia 5 de maio de 1834. Registro de Correspondncia da Assemblia Legislativa, com o Governo da Provncia, 1835-1843.

13

males estes provenientes da absoluta falta de Cadeias e Casas de Correo em todos os Municpios e Distritos do Piau, onde possam ser seguros, e da pouca inteligncia dos Magistrados leigos, que privados de consultarem pessoas versadas em as matrias do Foro, se deixam levar pelas insinuaes dos seus prprios Escrives, que de certo no acreditam muito o contencioso.11

Pelo exposto no trecho citado, a Provncia do Piau era desprovida de

estabelecimentos de detenes destinadas ao abrigo de infratores das leis vigentes. Ainda

que o Judicirio chegasse efetivamente a punir os praticantes dos delitos, conclui-se que

grande seria a demanda de rus capturados que evadiriam para outras localidades tendo em

vista a falta de infra-estrutura necessria para recolh-los com a devida segurana.

Quanto instruo dos juzes piauienses, tem-se que em 1834 a magistratura era

composta exclusivamente por juzes leigos, caracterstica comum aos juzes de paz de todo

o Imprio. Devido falta de conhecimento especfico das leis, cometiam deslizes no

exerccio da prtica jurdica. A ignorncia quanto aos procedimentos adequados, levavam

muitos desses juzes a se guiarem por mtodos imprecisos. Por tal declarao do Baro da

Parnaba depreende-se que at aquela data os juzes letrados, com formao acadmica,

ainda no exerciam atividade jurisdicional no Piau.

No rol de comentrios tecidos magistratura e ao sistema judicirio da provncia do

Piau por Manuel de Sousa Martins, so recorrentes suas crticas quanto falta de

advogados nas extenses provinciais, ocasionando maior morosidade ao ritmo da Justia.

No dizer do Visconde da Parnaba, argumentando mais uma vez sobre o excesso de

atribuies que deixavam os juzes abarrotados de processos estagnados:

Por desgraa nossa, em toda a Provncia, no h um advogado que os possa guiar no confuso labirinto das controvrsias judiciais. [...] Deveis ponderar, senhores, que um s magistrado hoje no pode arrastar os encargos que lhe so atribudos12.

O discurso do Visconde da Parnaba, datado do ano 1837, evidencia a ausncia de

profissionais habilitados a exercer a advocacia na provncia. Diante de tal comentrio,

percebe-se que passados exatos dez anos desde a fundao das primeiras faculdades de 11 Ser mantida a escrita de poca dos documentos consultados.12 PAU. APEP. Fala com que o Excelentssimo Presidente da Provncia abriu a Sesso Ordinria da

Assemblia Provincial em 13 de julho de 1837. Registro de Correspondncia da Assemblia Legislativa, com o Governo da Provncia, 1835-1843.

14

Direito em So Paulo e em Recife, pelo menos uma provncia do Imprio estava

desprovida da atividade deste profissional do Direito.

Em relao ao ensino acadmico de matrias jurdicas, deve-se levar em conta que

at a criao das faculdades de Direito no ano de 1827 (tardiamente se comparado com as

primeiras universidades do Mxico e do Peru datadas de 1551), os advogados e bacharis

brasileiros recebiam formao prioritariamente na Universidade de Coimbra, na qual a

disciplina Cnones e Leis sempre apresentou o maior nmero de matrculas ofertadas.

Fora das classes privilegiadas, poucos conseguem diploma de doutor. Por

conseguinte, poucos membros pertencentes a outras classes alcanam os degraus mais altos

da carreira poltica. A formao mais freqente, decerto tambm por influncia das

tradies ibricas, a jurdica.

Partindo do fato de que salvo raras excees apenas os estudantes abastados das

capitanias e provncias poderiam custear os gastos oriundos de uma educao superior na

Europa, tem-se como conseqncia que isso contribuiu para uma unificao ideolgica

entre os representantes da elite imperial, como bem explana Jos Murilo de Carvalho:

A concentrao temtica e geogrfica promovia contatos pessoais entre estudantes das vrias capitanias e provncias e incutia neles uma ideologia homognea dentro do estrito controle a que as escolas superiores eram submetidas pelos governos tanto de Portugal como do Brasil (2003, p. 65).

poca da independncia, tal unificao ideolgica serviu como propagadora dos

ideais separatistas, posto que em contato com pensamentos liberais na Europa, essa elite

tratou de difundi-los na Colnia, adaptando-os aos seus interesses.

Quanto participao dos estudantes piauienses nos quadros discentes de Coimbra,

Carvalho aponta que entre os anos de 1772 a 1872 h registros de que apenas 0,08% dos

alunos eram oriundos do Piau, o que correspondia a uma parcela de 2,84% da populao.

Nmero expressivo, se considerada a distncia e as dificuldades de acesso ao ensino

primrio e secundrio na provncia. Numa abordagem sobre a Instruo Pblica do Piau,

Marcelo de Sousa Neto destaca que:

Vale ressaltar que em 1824 os gastos com a Instruo Pblica no Piau foram irrisrios, considerando ainda que todas as atenes se voltavam para as Lutas de Independncia e seu desenrolar na Provncia. Existiam, ento, apenas trs escolas de Primeiras Letras, instaladas nas cidades de Oeiras, Campo Maior e Parnaba, e duas Cadeiras Secundrias de latim, em Oeiras. Assim, a Instruo Pblica no Piau

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continuava esbarrando em dois entraves j citados: falta de recursos financeiros e de pessoas qualificadas para o magistrio.

Pelo exposto por Sousa, os obstculos ao alcance de uma formao superior se

davam no s pela inexistncia de universidades em solo ptrio, como tambm pela difcil

tarefa de se conseguir formao bsica que tornasse os estudantes piauienses aptos a

pleitear vaga em Coimbra.

Os dados referentes s matrculas de piauienses na universidade portuguesa suscitam

o questionamento a respeito do que acontecia com os bacharis piauienses formados em

Coimbra. Pelo j exposto por esta pesquisa, no que concerne magistratura havia a figura

do juiz de fora, magistrado nomeado pela Coroa, com formao acadmica.

Nesse sentido, constata-se que o efetivo de alunos egressos de Coimbra dificilmente

passava a exercer prtica jurisdicional em terras piauienses. Como exemplo dessa

tendncia de evaso de bacharis para outras provncias pode-se citar Ovdio Saraiva de

Carvalho e Silva, nascido na Vila de So Joo da Parnaba. Aps formao jurdica em

Portugal, foi nomeado juiz de fora em Mariana, em Minas Gerais (1812), posteriormente

exerceu o cargo de segundo juiz de fora em Nossa Senhora do Desterro, em Santa Catarina

(1816 a 1819).

Havia ainda os profissionais que exerciam a carreira jurdica com vistas a ingressar

na poltica, algo que no necessariamente se dava em terra natal, posto que a visibilidade

poltica fosse mais eficaz nas terras com maior tradicional jurisdicional. Evidenciam-se

tambm os advogados que exerciam simultaneamente a carreira de jornalista.

A esse respeito, discutindo a atuao dos jornalistas piauienses no sculo XIX,

Lavina Ribeiro Prado descreve que a maioria dos jornalistas do perodo imperial (os quais

posteriormente seguem carreiras polticas) e dos polticos que se lanam no mundo do

jornalismo so formados em direito. Mais um relato de que apesar de o Piau no contar

com advogados em seu territrio, havia um razovel nmero de piauienses exercendo a

advocacia em outras provncias.

Prado prossegue sua explanao a respeito do efetivo de advogados-jornalistas

piauienses do sculo XIX e a utilizao da profisso como vitrine poltica:

No jornalismo piauiense [...] exercem advocacia e tm o jornalismo como fonte secundria de sustentao, assumindo-o como profisso paralela a de advogado, encontrando-se, assim, aptos tanto a concorrerem a posies junto burocracia estatal e ao Parlamento

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quanto a opinarem sobre suas deliberaes, seja a partir do instituto partidrio ou do jornalstico (Prado, 2009).

Nesse sentido, pode-se observar que os profissionais que exerciam a advocacia e o

jornalismo ansiavam por conseguir prestgio poltico tanto por deter o conhecimento

tcnico das leis, quanto pela legitimidade conferida a eles para propagar as notcias que,

dependendo dos interesses polticos e econmicos dos grupos a que essas notcias

pertenciam, poderiam render-lhes vultosa evidncia.

Em relao ao ensino de Cincias Jurdicas em territrio brasileiro, tm-se as duas

primeiras faculdades do Brasil Imprio, criadas por meio da Carta de lei de 11 de agosto de

1827, cujo teor institua taxativamente a implantao de cursos jurdicos nas cidades de

So Paulo, com instalao em 01 de maio de 1828 e de Olinda, instalado em 15 de maio do

mesmo ano.

Pela proximidade com a provncia do Piau, a maioria dos estudantes que daqui

migraram em busca de estudos acadmicos destinava-se a Faculdade de Olinda. A respeito

da importncia dessa faculdade para a propagao do ensino jurdico, Bevilqua reflete que

a instituio:

Enviou, aos recantos mais distantes do pas, as idias e doutrinas, que assimilou ou produziu, sendo assim fator poderoso do levantamento do nvel intelectual do pas. Contribuiu, consideravelmente, para dar ao povo brasileiro a conscincia da sua unidade, porque no somente estabeleceu vnculos espirituais entre as populaes dispersas.

Reproduz-se em Olinda/Recife o que durante muito tempo se configurou em

Coimbra: por ser destino de formao acadmica de muitos jovens destitudos de ensino

superior em seu prprio territrio, tornou-se centro de homogeneidade ideolgica e de

propagao de tendncias culturais, sociais e polticas.

Em consonncia com o que explicita Clovis Bevilaqua, entre os piauienses que

ocuparam as cadeiras da Faculdade de Direito de Olinda vindo a se formar juristas, pode-se

listar Francisco de Sousa Martins (em 1832), Casimiro Jos de Morais Sarmento, Marcos

Antnio de Macedo (ambos em 1836), Antonio Borges Leal Castelo Branco (em 1838). No

ano seguinte, Antonio Francisco de Sales e Joaquim Augusto de Holanda Costa Freire.

O rol de filhos do Piau pertencentes ao corpo discente da Faculdade de Olinda e

posteriormente da Faculdade de Recife imenso, list-los na ntegra no objetivo desta

pesquisa, o que se pretende a partir de agora seguir o rastro da atuao desses nomes em

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territrio nacional, principalmente no que concerne a pratica jurisdicional em territrio

piauiense nos anos referentes ao recorte de 1835 a 1843, ampliando-o, caso os registros

apontem para fatos que suscitem explanao mais especfica.

mister enfatizar que os juzes de paz, que ganharam amplos poderes com as

reformas constitucionais, no eram muito bem quistos pelos polticos mais conservadores,

que viam na autonomia da magistratura e na descentralizao do poder uma ameaa ao

controle social do vasto Imprio. Portanto, possvel que o Baro da Parnaba, criticasse o

Judicirio no apenas pelas impercias cometidas durante a prxis jurdica, mas porque a

magistratura poderia representar perigo ao desenvolvimento de seu governo,

marcadamente fiel s aspiraes imperiais.

No decorrer dos anos, o anseio do Baro da Parnaba pela resoluo dos casos de

desordem tranqilidade pblica da provncia continua a ir de encontro atividade da

magistratura. A esse respeito alertava os deputados provinciais

Acerca da Administrao da Justia continua a ser irregular e pouco profcua, como vos anunciei no meu Relatrio passado por existir ainda as mesmas coisas que produzem tais defeitos: o Jri, esse grande conselho, donde depende a sorte, e o destino dos Rus, que parece dever sustentar no equilbrio reto o fiel da balana para seus julgamentos, por isso mesmo que composto por homens rudssimos presididos por Juzes de Direito no Letrados, e igualmente ignorantes, calcados pela maior parte das vezes as precisas circunstancias das Leis, deixando impunes os mais execrandos criminosos, que na fora de todas as luzes ousaram cometer os seus delitos em agravo das mesmas Leis da Razo, e da Natureza13.

O relato contido na mensagem do presidente da provncia Assemblia deixa claro

sua insatisfao quanto inrcia do Poder Judicirio, composto por juzes e pelo tribunal

do jri, diante das resolues das contendas. E mais uma vez evidencia a falta de formao

de ensino superior por parte dos magistrados piauienses, que aliada ignorncia dos

jurados fomentava a impunidade nos territrios da provncia.

Essa exgua formao no se restringia ao Piau, pois no Brasil da poca era muito

reduzida a escolaridade formal, sobretudo em nvel superior, o que credencia Jos Murilo

de Carvalho a afirmar que o Brasil era uma ilha de letrados em um mar de analfabetos

13 PIAU. APEP. Fala com que o Excelentssimo Senhor Presidente da Provncia abriu a Sesso Ordinria da

Assemblia Provincial de 1836. Registro de Correspondncia da Assemblia Legislativa, com o Governo da Provncia, 1835-1843.

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(2003, p.65). No campo jurdico, a maioria abastada seguia para Portugal, para obter

formao em Coimbra ou dirigia-se a Pernambuco ou a So Paulo, que abrigavam as

nicas faculdades de Direito do pas.

As reclamaes do Baro da Parnaba no eram as nicas entre os presidentes das

provncias. Ao falar da estrutura judiciria de Gois no sculo XIX, Eliane Martins de

Freitas aponta:

No que tange propriamente s questes relativas Justia, a documentao apresenta uma freqente insatisfao por parte dos Presidentes da Provncia com relao atuao do Judicirio, so reclamaes relativas falta de juzes letrados; benevolncia do jri; falta de conhecimento das leis por parte dos juzes municipais; polcia desaparelhada e em nmero insuficiente; a pouca ou nenhuma segurana das cadeias; dentre outros. (2005, p.128)

Sob o ponto de vista dos presidentes das provncias do Piau e de Gois, como

conseqncia direta dessas falhas no sistema judicirio, possvel elencar um aumento no

ndice de criminalidade, favorecido em grande parte pela vastido territorial, uma vez que

a vigilncia permanente e integral das fronteiras era uma tarefa impossvel, o que

proporcionava rotas de entrada e evaso dos possveis desordeiros.

As crticas tecidas pelos governadores de provncias so dirigidas principalmente

formao leiga dos magistrados. Havia previso legal para o exerccio jurisdicional pelos

juzes de paz, que eram eleitos pela populao local. A lei de 15 de outubro de 1827

estabeleceu a criao dos juizados de paz, cujas atribuies eram judiciais, polticas e

administrativas. No dizer de Evandro de Andrade Vellasco

O juiz de paz, eleito, acumulava amplos poderes, at ento distribudos por diferentes autoridades (juzes ordinrios, almotacs, juzes de vintena) ou reservados aos juzes letrados (tais como julgamentos de pequenas contendas, feitura do corpo de delito, formao de culpa, priso, etc.). (2003, p. 4)

Importante observar que a atividade do juiz de paz abrangia reas de atuao

anteriormente exercidas por cargos j arraigados na burocracia colonial e do recente

Imprio, portanto, o que suscitou descontentamentos, principalmente das partes que foram

preteridas face nova organizao judiciria proposta pela lei de criao dos juizados de

paz.

Por fim, em meio aos questionamentos suscitados ao longo desta pesquisa, pode-se

concluir que a organizao da estrutura administrativa do Judicirio durante o Brasil, no

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sculo XIX, esteve articulada defesa da unidade territorial, ao monoplio poltico e,

sobretudo, para incutir na populao a idia de um Estado forte cujo poder era perceptvel

atravs da atuao dos juzes. Tal articulao deve ser compreendida, a nosso ver, dentro

do processo de construo do Estado imperial e das exigncias desse processo de expanso

da capacidade reguladora do Estado por meio da ao dos mais variados agentes

administrativos.

5. Consideraes Finais

A crtica quanto formao leiga dos magistrados e seus desvios ao longo da

atividade jurisdicional encontram respaldo uma vez que estes julgadores eram legitimados

por uma legislao que permitia cargos de juzes no versados nas Cincias Jurdicas,

sobretudo pela dificuldade de acesso ao ensino formal e universitrio, ainda mais quando

se considera como opes a Universidade de Coimbra e, s tardiamente, a criao de

Faculdades de Direito no Brasil

No entanto, a constncia e homogeneidade dessas crticas, tecidas em sua maioria

pelos presidentes das Provncias tambm encontram arrimo numa disputa pelo poder

interno, uma vez que esses magistrados faziam parte da elite poltica local, assim como os

presidentes, o que, ocasionalmente gerava atritos quando os interesses destes colidiam com

as atividades daqueles. tambm o entendimento de Carvalho (2003, p. 138) ao citar que

a tarefa do juiz era importante para o controle da mo-de-obra e para a competio com

fazendeiros rivais. Ser capaz de oprimir ou proteger os prprios trabalhadores ou de

perseguir os trabalhadores dos rivais, fazendo uso da poltica, era um trunfo importante na

luta econmica.

A presente pesquisa, essencialmente bibliogrfica, conseguiu tambm catalogar

alguns documentos inditos nos estudos acerca do Judicirio no perodo imperial. Foram

feitos estudos bibliogrficos de obras de referncia nacionais do funcionamento do

judicirio no recorte contemplado pela pesquisa, alm de ter encontrado preciosas fontes,

que ainda necessitam de mais anlises uma vez que nenhuma pesquisa basta a si mesma

nem jamais encerra o leque de possibilidades de se estudar um assunto. Para tanto, faz-se

um convite a todos que queiram enveredar por este recorte histrico e abordar a temtica

da estruturao do Judicirio brasileiro.

6. Referncias Bibliogrficas

20

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PIAU, APEP. Fala que dirigiu a Assemblia Legislativa no ato de sua instalao, o Presidente da Provncia no dia 5 de maio de 1834. Registro de correspondncia da Assemblia Legislativa, com o Governo da Provncia, 1835-1843.

PIAU. APEP. Fala que o Excelentssimo Senhor Presidente desta Provncia abriu a sesso ordinria Assemblia Provincial em 13 de julho de 1837. Registro de Correspondncia da Assemblia Legislativa, com o Governo da Provncia, 1835-1843.

PIAU. APEP. Fala que recitou o Excelentssimo Senhor Visconde da Parnaba, Presidente desta Provncia do Piau, na ocasio da abertura da Assemblia Provincial em 7 de julho de 1843. Registro de Correspondncia da Assemblia Legislativa, com o Governo da Provncia. 1835-1843.

PIAU. APEP. Fala, que recitou o Excelentssimo Senhor Baro da Parnaba, Presidente da Provncia do Piau, na ocasio da abertura da Assemblia Legislativa Provincial, no 9 de julho do corrente ano de 1838. Registro de Correspondncia da Assemblia Legislativa, com o Governo da Provncia, 1835-1843.

PIAU. APEP. Oficio da Assemblia Legislativa da Provncia do Piau ao Governo da Provncia, deliberando sobre o numero de alunos nas aulas de Francs na cidade de Oeiras, em 12 de setembro de 1937. Registro de Correspondncia da Assemblia Legislativa, com o Governo da Provncia, 1835-1843.

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WOLKMER, Antonio Carlos. A magistratura brasileira no sculo XIX. Disponvel em: acesso em 03 mar. 2008.

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JUZES DE TOGA, NOBREZA TOGADA:

O JUDICIRIO NAS PRIMEIRAS DCADAS DO IMPRIO

Karine Cristinie da Silva Fontineles Bolsista PIBIC/UESPI

Professor Dr. Marcelo de Sousa Neto - UESPI

Resumo: o presente artigo tem por escopo discutir a respeito da educao piauiense na primeira metade do sculo XIX, com nfase no nvel de instruo dos magistrados da provncia piauiense. A Histria do Direito no Brasil representa rea ainda pouco explorada, visto que ainda so parcos os trabalhos publicados acerca dessa proposta temtica. No caso do Piau, em especial, pesquisas sobre a temtica so ainda mais escassas, o que tem dificultado o desenvolvimento das Cincias Jurdicas, bem como o desenvolvimento da prpria Histria. As dificuldades no acesso ao ensino formal, associadas grande extenso territorial do Imprio corroboraram a deficincia da prtica jurisdicional dos magistrados na provncia piauiense. Entender essa dimenso histrica contribui para entender o desenvolvimento das sociabilidades em dado perodo, uma vez que as decises polticas do Brasil Imprio eram diretamente influenciadas pela formao jurdica dos membros de sua elite. Partindo dessa perspectiva, analisar o surgimento prematuro e desorganizado do judicirio piauiense em meio s tentativas de atender as exigncias de Portugal e, posteriormente, do Imprio Brasileiro o objetivo do presente estudo, bem como entender as disputas por poder e a utilizao da educao formal como elemento diferenciador e legitimador dos detentores desse poder. No que concerne metodologia utilizada na pesquisa, lanou-se mo de uma discusso analtico-interpretativa dos pronunciamentos oficiais do Visconde da Parnaba, Manuel de Sousa Martins poca presidente da provncia, endereados Assemblia Legislativa. Como referenciais tericos para alicerar a pesquisa foram utilizadas as discusses de Bevilaqua (1977), Bonavides (2002), Carvalho (2003) e Moraes (2003), que se debruam sobre a histria do Direito nas esferas nacional e local, alm da anlise da documentao oficial da poca oriunda da Assemblia Legislativa do governo provincial. Considera-se que a formao judiciria dos jovens bacharis, que em geral tiveram sua formao ligada Faculdade de Direito de Recife, teve papel fulcral nos direcionamentos das decises polticas da provncia piauiense.

Palavras-chave: Educao. Histria. Direito

1. Introduo

As pesquisas no ramo das Cincias Jurdicas pouco tm se direcionado para a Histria do Direito. Temticas relativas a essa rea so ainda escassas, o que proporciona dificuldades no desenvolvimento das Cincias Jurdicas e, conseqentemente, no desenvolvimento da prpria Histria, uma vez que a percepo da dimenso histrica auxilia a compreenso das relaes de sociabilidades em dado perodo. Jos Murilo de Carvalho endossa esse entendimento quando expe que as decises polticas durante o Brasil Imprio estavam diretamente associadas formao jurdica de muitos membros de sua elite.

O Judicirio, como grande parte das instituies no Brasil, surge de forma prematura e desorganizada, como uma forma de se adequar s exigncias portuguesas e posteriormente do Imprio brasileiro. Sem pessoal qualificado com formao especfica, considerando que o primeiro curso de Cincias Jurdicas do Brasil data do ano de 1827, nossos primeiros juzes constituram-se, principalmente, de leigos indicados por seus colgios paroquiais eleitorais, nos quais o poder e prestgio de ricos senhores de terras terminavam por indicar que conduziriam os caminhos da magistratura.

Esse grupo de juzes, ao assumir importantes atribuies no controle administrativo da colnia e depois Imprio esculpir os moldes em que se delinear toda a prtica jurisdicional de que se tem conhecimento no Brasil atualmente, apesar de que ao longo dos anos, o judicirio sofreu profundas transformaes. Analisar sua histria, destacando a relao entre o interesse privado e pblico e a autonomia do judicirio permite aprofundarmos a discusso e o estudo sobre a independncia do Poder Judicirio e a defesa do interesse pblico, bem como da prpria Histria do Direito, contribuindo para entender a prpria histria do Brasil.

Na primeira metade do sculo XIX, com a Constituio de 1824 e com o Cdigo de Processo Criminal, a esfera de atuao dos magistrados aumenta consideravelmente em detrimento de grupos polticos que at ento agiam quase de forma absoluta nas provncias. Certamente que essas disputas entre o poder local gerariam conflitos, como possvel notar na fala de Manuel de Sousa Martins, presidente da provncia do Piau, segundo o qual o judicirio piauiense era composto por homens rudssimos, presidido por juzes de direito no letrados e igualmente ignorantes .

A insatisfao quanto influncia da prtica desses magistrados na organizao poltica do Imprio no se deu isoladamente na provncia piauiense. Referindo-se provncia de Gois, Eliane Martins de Freitas aponta a freqente insatisfao por parte dos Presidentes da Provncia com relao atuao do Judicirio, so reclamaes relativas falta de juzes letrados; benevolncia do jri; falta de conhecimento das leis por parte dos juzes municipais, o que instiga o desenvolvimento da pesquisa no intuito de analisar as ocorrncias desses conflitos nos seus desdobramentos na efetivao da prtica do direito e conseqncias polticas.

O recorte temporal deste estudo contempla a primeira metade do sculo XIX, perodo em que o Imprio buscava sua consolidao, utilizando-se da fora do Poder Judicirio para atingir a unificao territorial e legitimava os magistrados, a partir da Constituio e do Cdigo Criminal, a atribuies administrativas e polticas, at ento exercidas por outros grupos da elite.

2. Objetivos

2.1. Objetivo Geral

* Analisar a histria do Poder Judicirio, na primeira metade do sculo XIX, sobretudo no Piau, destacando seu processo de estruturao em um perodo de forte centralizao administrativa, bem como sua relao com o Poder Executivo das provncias, visando a compreender como isso influenciou as alteraes histricas vividas no Brasil nesse perodo histrico.

2.2. Objetivos Especficos

* Analisar a organizao administrativa do judicirio e formao de seu corpo funcional, atravs de um estudo interdisciplinar entre Histria e Direito.

* Discutir a atuao do judicirio e sua independncia em relao aos demais poderes, bem como refletir acerca dos limites do judicirio na primeira metade do sculo XIX.

* Investigar a relao entre o judicirio e os diversos interesses locais exercidos por lideranas polticas provinciais.

3 Metodologia

O projeto aqui apresentado objetiva investigar a histria do judicirio brasileiro da primeira metade do sculo XIX, especialmente no que concerne s disputas entre juzes e presidentes de provncias e a respeito da formao acadmica desses magistrados.

Em seu estudo, prope-se a utilizao de fontes bibliogrfica elaborando-se as anlises a partir da associao destas. As fontes bibliogrficas a serem utilizadas devem compreender no somente especificamente a temtica de estudo, mas obras especficas sobre a sociedade brasileira da poca, com o objetivo de perceber sua organizao, articulando-o com a realidade social, sem, contudo, prender-se exclusivamente a marcos cronolgicos delimitados pelo recorte temporal a serem utilizados pela pesquisa, como sugere Eric Hobsbawm (1998).

Definiu-se como recorte temporal o perodo relativo aos cinqenta primeiros anos do sculo XIX, no qual o Brasil deixa de ser Colnia e busca efetivar-se como Imprio, passando o Judicirio a ser grande ferramenta dos interesses imperiais.

de grande relevncia para o projeto seguir a orientao de Lopes (apud COSTA FILHO, 2000), que sugere aos pesquisadores incorporar os saberes de outras reas do conhecimento e atenuar a rigidez do uso das fontes tradicionais, com a utilizao de todo e qual quer documento que guarde correspondncia com o tema. Deve ser lembrado que aqui se delineia uma proposta de trabalho, no entanto, somente ao longo da pesquisa, com as respostas obtidas das fontes que se avaliar a necessidade de correo de rota, pois, se histria processo, sua pesquisa tambm o .

4. Resultados Obtidos

Juzes de Paz, Juzes Municipais e de rfos, Juzes de Direito Interino, todos leigos e rsticos, que mal assinam os seus nomes, circunscritos em si mesmos ou guiados pelos travessos e desconceituados escrives, sem ter um advogado ao seu lado, e nem mesmo ao longe da Provncia, a quem possam consultar, como se h de desenvolver com acerto nas complicadas e difceis matrias do foro judicial, que demandam conhecimentos privativos, srios e circunspetos estudos?.

Durante operodocolonial foi implantado no Brasil o direito portugus. Esta modalidade de direito estabelecida na colnia era, tal como na metrpole, uma combinao do direito consuetudinrio, do direito romano e do direito cannico. A aplicao do sistema jurdico na colnia sofria pequenas adaptaes s condies locais, quando necessrio. No entanto, por ser um modelo importado de um pas cuja estrutura scio-cultural divergia drasticamente, tornava-se muitas vezes ineficiente.

As primeiras leis feitas especificamente para o Brasil foram os regimentos dos governadores gerais (dentre os quais o mais antigo data de 17 de dezembro de 1548, que estabelecia as atribuies do governador-geral Tom de Sousa), dos ouvidores gerais e dos provedores, formando o incio de uma estrutura administrativa prpria da colnia.

Eram legitimados a aplicar a ordem jurdica os juzes ordinrios, membros das Cmaras Municipais, que no tinham formao jurdica e, como requisito, deveriam obrigatoriamente residir nas comarcas em que possuam jurisdio; e os juzes de fora, magistrados nomeados pela Coroa; os ouvidores de comarcas e os tribunais da Relao, que existia na Bahia e, posteriormente, no Rio de Janeiro e no Maranho. A respeito da atuao destes tribunais de Relao e da conduta dos juzes em suas esferas jurisdicionais, o desembargador do Tribunal de Justia do Estado da Bahia, Antonio Pessoa Cardoso, destaca que:

um historiador da poca comenta que com mais Relao, porm, ou menos Relao, na Bahia ou no Rio de Janeiro, a justia continua irregular e falha, pessoal e feroz, cera que se amolda vontade pessoal do juiz, que quando no arbitrria ignorante e, quando no ignorante venal (Cardoso, 2008)

A denncia quanto parcialidade dos juzes est presente em muitos textos da poca. Nota-se na fala de pessoa Cardoso, os ecos da insatisfao da populao do perodo diante dos vcios incrustados no sistema judicirio colonial, uma vez que ao fraco valia sempre suportar os agravos dos portentosos, perdoando, esquecendo-os a articular qualquer protesto (Cardoso, 2008). tentador atribuir a culpa das irregularidades e falhas aos juzes ordinrios, leigos, sem instruo jurdica, cujo conhecimento das leis se dava exclusivamente por meio da prtica da funo jurisdicional adquirida.

Todavia, os tribunais de Relao eram compostos tambm por juzes de fora, magistrados e, portanto, detentores do saber jurdico ministrado nos cursos de cincias jurdicas. Se, de acordo com as crticas da poca, os juzes ordinrios no estavam aptos a resolver as celeumas geradas em sua jurisdio, tomando atitudes grosseiras para com o povo que deveriam representar, pode-se inferir que os juzes de fora, apesar de sua formao acadmica, em muitos casos, tendiam a no resolver satisfatoriamente todas as querelas provenientes da realidade da Colnia, com nfase quelas decorrentes dos arbtrios dos juzes ordinrios.

Os magistrados coloniais formavam um grupo de burocratas elitizados, fiis servidores reais, movidos por generosas promoes e interesses pessoais. O cargo representava prestgio, dinheiro e status. A magistratura no era apenas um ramo da burocracia, mas tornava-se um setor social almejado pelas famlias abastadas. Era sinnimo de distino e abismo entre os grupos sociais.

Nesse cenrio institucional, forjado sob a influncia da matriz lusitana, que o Brasil torna-se politicamente independente em 1822. De sditos da Coroa portuguesa, os brasileiros passam a ser cidados do novo Imprio. mister ressaltar que um jugo de mais de trs sculos no se dissolve to repentinamente, principalmente quando a nova nao independente traz como imperador um membro da famlia real da ex-metrpole. Alm disso, como ressalta Bloch (1976), as estruturas polticas e sociais esto condicionadas pelos laos da mentalidade, ou seja, novas conjunturas erguem-se sobre os alicerces de suas predecessoras sem destru-las por completo, mas sim, adaptando-as conforme novos interesses. Da a necessidade de estruturar fundamentos jurdicos ao novo Estado nacional que emergia.

Em decorrncia de tais transformaes e adaptaes, do ponto de vista da Cincia Poltica, o Estado visto como uma sociedade poltica juridicamente organizada. Era necessrio, aps a declarao de independncia, providenciar uma Constituio que estruturasse o imprio, pois para Alexandre de Moraes, a

Constituio deve ser entendida como a lei fundamental e suprema de um Estado, que contm normas referentes estruturao do Estado, formao dos poderes pblicos, forma de governo e aquisio do poder de governar, distribuio de competncias, direitos, garantias e deveres dos cidados (MORAES, 2003).

Com o intuito de estruturar e regulamentar a formao do Estado brasileiro foi elaborada a Constituio de 1824. O Brasil recebeu forte influncia dos ideais iluministas, que se traduziram no mundo jurdico pela idia de uma Constituio que resguardasse os direitos civis e polticos e organizasse o estado com base na lei. Predominou nesse momento o constitucionalismo francs, embora houvesse tambm influncias da Constituio norte-americana.

Quanto repartio dos poderes, a Constituio do Imprio merece destaque pela implantao do Poder Moderador. O quarto poder seria exercido pela figura do imperador, cujas atribuies seriam velar sobre a manuteno da independncia, pelo equilbrio e pela harmonia dos demais poderes. De acordo com o texto constitucional, estabeleceu-se que o Executivo competia ao imperador e ao conjunto de ministros por ele nomeados. O Legislativo era representado pela Assemblia Geral, formada pela Cmara de Deputados e pelo Senado, nomeados por D. Pedro I. O Poder Judicirio era formado pelo Supremo Tribunal de Justia, com magistrados escolhidos pelo imperador. Quando o monarca no era o representante direto de um dos poderes, fazia-se representar por seus nomeados.

Aps a outorga da primeira constituio brasileira, em 1824, procurou-se ordenar a vida jurdica brasileira em funo da nova realidade poltica e jurdica. Iniciava ento a busca por um ordenamento penal e processual penal prprio. A conscincia nacional, inspirada pelas dificuldades sociais e econmicas e ainda por ideais humanistas revolucionrios vindos da Europa e da Amrica do Norte, estava em livre trmite nos meios intelectuais e de polticos no Brasil.

Como forma de buscar a homogeneidade social, buscava-se nos primeiros anos de Imprio, uma estrutura institucional que articulasse a unidade e a consolidao nacional. Nesse sentido, a magistratura preenchia as aspiraes do governo. No dizer de Jos Murilo de Carvalho

Partimos da suposio que o emprego pblico seria a ocupao que mais favorecia uma orientao estatista e que melhor treinava para as tarefas de construo do Estado na fase inicial de acumulao do poder. A suposio era particularmente vlida em se tratando dos magistrados que apresentavam a mais perfeita combinao de elementos intelectuais, ideolgicos e prticos favorveis ao estatismo (2003, p.99).

Os artigos referentes ao poder judicirio da carta constitucional de 1824 esto contidos no Ttulo IV Do Poder Judicial, mais especificamente do artigo 151 ao 164. As bases jurdicas e institucionais do pas so alteradas pelas inovaes constitucionais que, em sua maioria, favorecem a descentralizao do poder e o fortalecimento das provncias.

Quanto s inovaes trazidas pela Lei Maior de 1824, observa-se a abolio, para os considerados cidados, de penas de aoites, torturas, marcas de ferro quente ou qualquer pena cruel. Aos escravos, entretanto, a regra geral que, se no fosse cominada a pena de morte, seriam comutadas penas como aoites ou grilhes.

Como estipulado em disposio constitucional que previa a elaborao de um cdigo que disciplinasse questes penais, em 29 de novembro de 1830 aprovado o Cdigo do Processo Criminal, que altera a organizao do Poder Judicirio. A figura do juiz ordinrio, de acordo com os novos dispositivos legais, substituda pela do juiz de paz, permanecendo o critrio de eleio de juzes leigos no mbito municipal. Os juzes de paz, eleitos diretamente sob o controle dos senhores locais, passam a acumular amplos poderes nas localidades sob sua jurisdio.

Nesse sentido, insta observar o quo importantes eram essas eleies para juzes de paz, tambm chamados juzes municipais, posto que galgar um cargo de magistrado implicava tambm status, poder e uma srie de vantagens polticas e administrativas em mbito local, como bem explana Graham:

Vencer as eleies era tambm a melhor maneira de garantir ou conservar cargos. Um juiz municipal, um dos chefes mais influentes, compreendeu isso claramente, desejando vencer uma eleio porque, como dizia, uma eleio o melhor meio para alcanar uma vara de Direito.

Martins Pena (1997), dramaturgo contemporneo aprovao e vigncia do Cdigo do Processo Criminal, infligiu sua viso crtica e bem humorada a respeito da atuao das autoridades pblicas na comdia de costumes O juiz de paz na roa, de 1838. Na obra, o juiz de paz, valendo-se de sua posio de destaque e da inocncia da populao roceira, comete inmeros abusos de poder durante a resoluo dos casos. Apesar da pincelada de comicidade, interessante ressaltar que por ser uma comdia de costumes, Martins Pena utilizou a realidade da aplicao da justia nas provncias mais remotas e, portanto, mais distantes da fiscalizao do Imprio para desenvolver o enredo de sua obra. No trecho a seguir, Martins Pena retrata, em certa medida, o cotidiano do gerenciamento da carta constitucional:

Manuel Andr: Mas, Sr. Juiz, ele tambm est ocupado com uma plantao.

Juiz: Voc replica? Olha que o mando pra cadeia.

Manuel Andr: Vossa Senhoria no pode prender-me toa; a Constituio no manda.

Juiz: A Constituio!...Est bem!...Eu, o juiz de paz, hei por bem derrogar a Constituio! Sr. escrivo, tome termo que a Constituio est derrogada, e mande prender-me este homem (1997, p.11).

As crticas tecidas ao Judicirio da poca apontam um corpo de magistrados detentores de amplos poderes no mbito burocrtico. No entanto, em funo de seu carter de destaque na hierarquia do Estado, eram responsveis por cometer deslizes durante o exerccio jurisdicional. A literatura da poca pe em evidncia tais prticas, permitindo a ntima relao entre Histria, Literatura e o Direito.

No trecho supracitado da obra de Martins Pena, o juiz de paz, mesmo em face de uma alegao de prtica inconstitucional, considera-se em posio to superior que ignora os preceitos da Constituio vigente. Logicamente que a falta de conhecimento da lei por parte do povo corroborava no sentido de que as decises judiciais fossem pouco contestadas.

H que se observar que os juzes gozavam de uma vitaliciedade e no eram beneficiados pelo princpio hoje aceito da inamovibilidade, o que pode ser observado no artigo 153, da Constituio de 1824,Os juzes de direito sero perptuos, o que todavia se no entende que no possam ser mudados de uns para outros lugares pelo tempo, e maneira, que a lei determinar. Isso talvez explique muitas das crticas atribudas a desmandos desses magistrados. Todavia, isso no significa ausncia de controle do Estado em relao sua atuao.

A Constituio do Imprio no foi omissa quanto orientao da atividade dos magistrados, chegando inclusive a prever punies e suspenses em casos de desvios da conduta profissional adequada, restringindo ou pretendendo restringir arbitrariedades neste campo.

Art.154 O Imperador poder suspend-los por queixas contra eles feitas, precedendo audincia dos mesmos juzes, informao necessria, e ouvido o Conselho de Estado. Os papis, que lhes so concernentes, sero remetidos relao do respectivo distrito, para proceder na forma da lei.

(...)

Art. 156. Todos os juzes de direito e os oficiais de justia so responsveis pelos abusos de poder e prevaricaes que cometerem no exerccio de seus empregos; esta responsabilidade se far efetiva por lei regulamentar.

Um dos fatores que dificultava a aplicao desses artigos era a distncia entre as provncias e os respectivos tribunais a que eram subordinadas. Desde o fim do perodo colonial havia quatro Tribunais de Relao que visavam fiscalizao da atividade jurisdicional. De acordo com o texto constitucional, para julgar as causas em segunda e ltima instncia, haveria nas provncias do imprio as relaes que fossem necessrias para a comodidade dos povos. Acontece que durante o Primeiro Imprio, nenhum outro Tribunal de Relao foi criado, o que dificultava a atividade de fiscalizao, tendo em vista a quantidade de provncias sob a jurisdio de cada Relao e a distncia entre cada uma delas.

Nesse sentido, tinha-se que o Tribunal do Rio de Janeiro abrangia as provncias do Rio de Janeiro, So Paulo, Minas Gerais, Santa Catarina, Paran, Rio Grande do Sul, Gois e Mato Grosso. O Tribunal de Salvador tinha sob sua jurisdio Bahia e Sergipe. As provncias do Maranho, Piau, Amazonas e Par eram subordinadas ao Tribunal de So Lus do Maranho. Por fim, o Tribunal de Recife compreendia as provncias de Pernambuco, Alagoas, Cear e Rio Grande do Norte.

A provncia do Piau teve sua primeira comarca criada por ordem da Carta-rgia de 18 de maro de 1722. At ento os julgamentos da populao piauiense eram feitos em Pernambuco. O povoado da Mocha, que futuramente se tornaria a cidade Oeiras, primeira capital do Piau, tornou-se sede da comarca. No ano seguinte Carta-rgia, foi designado o primeiro magistrado do Piau, Vicente Leite Ripado.

Enquanto na Bahia, desde 1609, havia um Tribunal de Relao, somente no ano de 1773, mais se um sculo depois, a provncia do Piau ganha seu primeiro magistrado. O desenvolvimento da estrutura judicial no Brasil Colnia no se deu de maneira uniforme, no se pode, portanto, esperar que os magistrados da Bahia, com uma maior tradio jurisdicional, atuassem do mesmo modo que os juzes do Piau, cuja histria da magistratura dava ainda seus primeiros passos para consolidar-se.

Com a Independncia do Brasil, vlido destacar que a magistratura no Piau, assim como nas demais provncias, no foi unnime quanto aceitao da emancipao poltica. Segundo Antonio Carlos Wolkmer,

a Independncia do pas no encontrou adeso integral da antiga magistratura, pois enquanto alguns apoiavam a ruptura, muitos outros permaneceram fiis monarquia lusitana [...]no fcil demarcar o nmero de juzes que, por lealdade, abandonaram o pas e regressaram a Portugal, bem como os que, por convenincia, comprometeram-se com as novas condies polticas que se implantaram.

A provncia do Piau, em especial, reflete essa dvida quanto adeso ao novo regime. Por sua localizao territorial, fazia parte do plano engendrado por Portugal para manter o norte da ex-colnia sob seu domnio. A populao piauiense ficou dividida quanto a apoiar a emancipao, com sua nova forma de governo; ou manter-se fiel metrpole, sob pena de retaliaes.

Na disputa contra a interveno metropolitana, a magistratura ligada ao Imprio teve desempenho importante. Eliane Martins de Freitas defende a tese de que a estruturao das comarcas no Norte tem a funo de fazer sentir a presena do Estado e garantir a defesa de seus interesses, bem como a unidade territorial (2005, p.127).

Manuel de Sousa Martins teve papel preponderante na luta para tornar a Provncia do Piau livre das investidas portuguesas. Foi Presidente da Junta Governativa Piauiense de 1823 a 1824 e presidente da provncia em trs oportunidades posteriores: de 1824 a 1828; em breve perodo em 1829 e por fim, de 1831 a 1843. Neste ltimo governo, Martins teceu severas crticas ao Judicirio piauiense do sculo XIX, como na ocasio de instalao da Assemblia Legislativa do Piau em 1834, dizendo que

Pelo que toca a Administrao da Justia, dessa mola principal da tranqilidade publica, tenho a revelar-vos que se acha inteiramente montada sobre o seu grande eixo Constitucional em conformidade do novo Cdigo, e que como no rigorosa, e ativa sua marcha, poucos so os rus que chegam a ser julgados no competente Tribunal do Jri, e que poucos so os Processos que no envolvam defeitos e nulidades que induzem regularmente a isentar os malvados das penas, que merecem pelas suas execraes [...]

Para Manuel de Sousa Martins, poca Baro da Parnaba, os vcios de procedimento da magistratura piauiense eram responsveis pela inaplicabilidade do castigo e severidade legal previstos na Constituio e no cdigo Criminal. Quando no omissos, os magistrados incorriam em erros que culminariam em processos desprovidos das formalidades prescritas pela lei e, portanto, ineficazes justa sano dos delitos cometidos.

Segundo ele, era impossvel garantir a tranqilidade de to vasta provncia, aberta por todos os lados sem um comportamento mais enrgico por parte da Justia. Desde 1833, a Provncia do Piau passou a ter quatro comarcas: Oeiras, Parnaba, Marvo e Parnagu.

Prossegue o pronunciamento atribuindo os possveis motivos das eventuais perturbaes ordem provincial, pois seriam

males estes provenientes da absoluta falta de Cadeias e Casas de Correo em todos os Municpios e Distritos do Piau, onde possam ser seguros, e da pouca inteligncia dos Magistrados leigos, que privados de consultarem pessoas versadas em as matrias do Foro, se deixam levar pelas insinuaes dos seus prprios Escrives, que de certo no acreditam muito o contencioso.

Pelo exposto no trecho citado, a Provncia do Piau era desprovida de estabelecimentos de detenes destinadas ao abrigo de infratores das leis vigentes. Ainda que o Judicirio chegasse efetivamente a punir os praticantes dos delitos, conclui-se que grande seria a demanda de rus capturados que evadiriam para outras localidades tendo em vista a falta de infra-estrutura necessria para recolh-los com a devida segurana.

Quanto instruo dos juzes piauienses, tem-se que em 1834 a magistratura era composta exclusivamente por juzes leigos, caracterstica comum aos juzes de paz de todo o Imprio. Devido falta de conhecimento especfico das leis, cometiam deslizes no exerccio da prtica jurdica. A ignorncia quanto aos procedimentos adequados, levavam muitos desses juzes a se guiarem por mtodos imprecisos. Por tal declarao do Baro da Parnaba depreende-se que at aquela data os juzes letrados, com formao acadmica, ainda no exerciam atividade jurisdicional no Piau.

No rol de comentrios tecidos magistratura e ao sistema judicirio da provncia do Piau por Manuel de Sousa Martins, so recorrentes suas crticas quanto falta de advogados nas extenses provinciais, ocasionando maior morosidade ao ritmo da Justia.

No dizer do Visconde da Parnaba, argumentando mais uma vez sobre o excesso de atribuies que deixavam os juzes abarrotados de processos estagnados:

Por desgraa nossa, em toda a Provncia, no h um advogado que os possa guiar no confuso labirinto das controvrsias judiciais. [...] Deveis ponderar, senhores, que um s magistrado hoje no pode arrastar os encargos que lhe so atribudos.

O discurso do Visconde da Parnaba, datado do ano 1837, evidencia a ausncia de profissionais habilitados a exercer a advocacia na provncia. Diante de tal comentrio, percebe-se que passados exatos dez anos desde a fundao das primeiras faculdades de Direito em So Paulo e em Recife, pelo menos uma provncia do Imprio estava desprovida da atividade deste profissional do Direito.

Em relao ao ensino acadmico de matrias jurdicas, deve-se levar em conta que at a criao das faculdades de Direito no ano de 1827 (tardiamente se comparado com as primeiras universidades do Mxico e do Peru datadas de 1551), os advogados e bacharis brasileiros recebiam formao prioritariamente na Universidade de Coimbra, na qual a disciplina Cnones e Leis sempre apresentou o maior nmero de matrculas ofertadas.

Fora das classes privilegiadas, poucos conseguem diploma de doutor. Por conseguinte, poucos membros pertencentes a outras classes alcanam os degraus mais altos da carreira poltica. A formao mais freqente, decerto tambm por influncia das tradies ibricas, a jurdica.

Partindo do fato de que salvo raras excees apenas os estudantes abastados das capitanias e provncias poderiam custear os gastos oriundos de uma educao superior na Europa, tem-se como conseqncia que isso contribuiu para uma unificao ideolgica entre os representantes da elite imperial, como bem explana Jos Murilo de Carvalho:

A concentrao temtica e geogrfica promovia contatos pessoais entre estudantes das vrias capitanias e provncias e incutia neles uma ideologia homognea dentro do estrito controle a que as escolas superiores eram submetidas pelos governos tanto de Portugal como do Brasil (2003, p. 65).

poca da independncia, tal unificao ideolgica serviu como propagadora dos ideais separatistas, posto que em contato com pensamentos liberais na Europa, essa elite tratou de difundi-los na Colnia, adaptando-os aos seus interesses.

Quanto participao dos estudantes piauienses nos quadros discentes de Coimbra, Carvalho aponta que entre os anos de 1772 a 1872 h registros de que apenas 0,08% dos alunos eram oriundos do Piau, o que correspondia a uma parcela de 2,84% da populao. Nmero expressivo, se considerada a distncia e as dificuldades de acesso ao ensino primrio e secundrio na provncia. Numa abordagem sobre a Instruo Pblica do Piau, Marcelo de Sousa Neto destaca que:

Vale ressaltar que em 1824 os gastos com a Instruo Pblica no Piau foram irrisrios, considerando ainda que todas as atenes se voltavam para as Lutas de Independncia e seu desenrolar na Provncia. Existiam, ento, apenas trs escolas de Primeiras Letras, instaladas nas cidades de Oeiras, Campo Maior e Parnaba, e duas Cadeiras Secundrias de latim, em Oeiras. Assim, a Instruo Pblica no Piau continuava esbarrando em dois entraves j citados: falta de recursos financeiros e de pessoas qualificadas para o magistrio.

Pelo exposto por Sousa, os obstculos ao alcance de uma formao superior se davam no s pela inexistncia de universidades em solo ptrio, como tambm pela difcil tarefa de se conseguir formao bsica que tornasse os estudantes piauienses aptos a pleitear vaga em Coimbra.

Os dados referentes s matrculas de piauienses na universidade portuguesa suscitam o questionamento a respeito do que acontecia com os bacharis piauienses formados em Coimbra. Pelo j exposto por esta pesquisa, no que concerne magistratura havia a figura do juiz de fora, magistrado nomeado pela Coroa, com formao acadmica.

Nesse sentido, constata-se que o efetivo de alunos egressos de Coimbra dificilmente passava a exercer prtica jurisdicional em terras piauienses. Como exemplo dessa tendncia de evaso de bacharis para outras provncias pode-se citar Ovdio Saraiva de Carvalho e Silva, nascido na Vila de So Joo da Parnaba. Aps formao jurdica em Portugal, foi nomeado juiz de fora em Mariana, em Minas Gerais (1812), posteriormente exerceu o cargo de segundo juiz de fora em Nossa Senhora do Desterro, em Santa Catarina (1816 a 1819).

Havia ainda os profissionais que exerciam a carreira jurdica com vistas a ingressar na poltica, algo que no necessariamente se dava em terra natal, posto que a visibilidade poltica fosse mais eficaz nas terras com maior tradicional jurisdicional. Evidenciam-se tambm os advogados que exerciam simultaneamente a carreira de jornalista.

A esse respeito, discutindo a atuao dos jornalistas piauienses no sculo XIX, Lavina Ribeiro Prado descreve que a maioria dos jornalistas do perodo imperial (os quais posteriormente seguem carreiras polticas) e dos polticos que se lanam no mundo do jornalismo so formados em direito. Mais um relato de que apesar de o Piau no contar com advogados em seu territrio, havia um razovel nmero de piauienses exercendo a advocacia em outras provncias.

Prado prossegue sua explanao a respeito do efetivo de advogados-jornalistas piauienses do sculo XIX e a utilizao da profisso como vitrine poltica:

No jornalismo piauiense [...] exercem advocacia e tm o jornalismo como fonte secundria de sustentao, assumindo-o como profisso paralela a de advogado, encontrando-se, assim, aptos tanto a concorrerem a posies junto burocracia estatal e ao Parlamento quanto a opinarem sobre suas deliberaes, seja a partir do instituto partidrio ou do jornalstico (Prado, 2009).

Nesse sentido, pode-se observar que os profissionais que exerciam a advocacia e o jornalismo ansiavam por conseguir prestgio poltico tanto por deter o conhecimento tcnico das leis, quanto pela legitimidade conferida a eles para propagar as notcias que, dependendo dos interesses polticos e econmicos dos grupos a que essas notcias pertenciam, poderiam render-lhes vultosa evidncia.

Em relao ao ensino de Cincias Jurdicas em territrio brasileiro, tm-se as duas primeiras faculdades do Brasil Imprio, criadas por meio da Carta de lei de 11 de agosto de 1827, cujo teor institua taxativamente a implantao de cursos jurdicos nas cidades de So Paulo, com instalao em 01 de maio de 1828 e de Olinda, instalado em 15 de maio do mesmo ano.

Pela proximidade com a provncia do Piau, a maioria dos estudantes que daqui migraram em busca de estudos acadmicos destinava-se a Faculdade de Olinda. A respeito da importncia dessa faculdade para a propagao do ensino jurdico, Bevilqua reflete que a instituio:

Enviou, aos recantos mais distantes do pas, as idias e doutrinas, que assimilou ou produziu, sendo assim fator poderoso do levantamento do nvel intelectual do pas. Contribuiu, consideravelmente, para dar ao povo brasileiro a conscincia da sua unidade, porque no somente estabeleceu vnculos espirituais entre as populaes dispersas.

Reproduz-se em Olinda/Recife o que durante muito tempo se configurou em Coimbra: por ser destino de formao acadmica de muitos jovens destitudos de ensino superior em seu prprio territrio, tornou-se centro de homogeneidade ideolgica e de propagao de tendncias culturais, sociais e polticas.

Em consonncia com o que explicita Clovis Bevilaqua, entre os piauienses que ocuparam as cadeiras da Faculdade de Direito de Olinda vindo a se formar juristas, pode-se listar Francisco de Sousa Martins (em 1832), Casimiro Jos de Morais Sarmento, Marcos Antnio de Macedo (ambos em 1836), Antonio Borges Leal Castelo Branco (em 1838). No ano seguinte, Antonio Francisco de Sales e Joaquim Augusto de Holanda Costa Freire.

O rol de filhos do Piau pertencentes ao corpo discente da Faculdade de Olinda e posteriormente da Faculdade de Recife imenso, list-los na ntegra no objetivo desta pesquisa, o que se pretende a partir de agora seguir o rastro da atuao desses nomes em territrio nacional, principalmente no que concerne a pratica jurisdicional em territrio piauiense nos anos referentes ao recorte de 1835 a 1843, ampliando-o, caso os registros apontem para fatos que suscitem explanao mais especfica.

mister enfatizar que os juzes de paz, que ganharam amplos poderes com as reformas constitucionais, no eram muito bem quistos pelos polticos mais conservadores, que viam na autonomia da magistratura e na descentralizao do poder uma ameaa ao controle social do vasto Imprio. Portanto, possvel que o Baro da Parnaba, criticasse o Judicirio no apenas pelas impercias cometidas durante a prxis jurdica, mas porque a magistratura poderia representar perigo ao desenvolvimento de seu governo, marcadamente fiel s aspiraes imperiais.

No decorrer dos anos, o anseio do Baro da Parnaba pela resoluo dos casos de desordem tranqilidade pblica da provncia continua a ir de encontro atividade da magistratura. A esse respeito alertava os deputados provinciais

Acerca da Administrao da Justia continua a ser irregular e pouco profcua, como vos anunciei no meu Relatrio passado por existir ainda as mesmas coisas que produzem tais defeitos: o Jri, esse grande conselho, donde depende a sorte, e o destino dos Rus, que parece dever sustentar no equilbrio reto o fiel da balana para seus julgamentos, por isso mesmo que composto por homens rudssimos presididos por Juzes de Direito no Letrados, e igualmente ignorantes, calcados pela maior parte das vezes as precisas circunstancias das Leis, deixando impunes os mais execrandos criminosos, que na fora de todas as luzes ousaram cometer os seus delitos em agravo das mesmas Leis da Razo, e da Natureza.

O relato contido na mensagem do presidente da provncia Assemblia deixa claro sua insatisfao quanto inrcia do Poder Judicirio, composto por juzes e pelo tribunal do jri, diante das resolues das contendas. E mais uma vez evidencia a falta de formao de ensino superior por parte dos magistrados piauienses, que aliada ignorncia dos jurados fomentava a impunidade nos territrios da provncia.

Essa exgua formao no se restringia ao Piau, pois no Brasil da poca era muito reduzida a escolaridade formal, sobretudo em nvel superior, o que credencia Jos Murilo de Carvalho a afirmar que o Brasil era uma ilha de letrados em um mar de analfabetos (2003, p.65). No campo jurdico, a maioria abastada seguia para Portugal, para obter formao em Coimbra ou dirigia-se a Pernambuco ou a So Paulo, que abrigavam as nicas faculdades de Direito do pas.

As reclamaes do Baro da Parnaba no eram as nicas entre os presidentes das provncias. Ao falar da estrutura judiciria de Gois no sculo XIX, Eliane Martins de Freitas aponta:

No que tange propriamente s questes relativas Justia, a documentao apresenta uma freqente insatisfao por parte dos Presidentes da Provncia com relao atuao do Judicirio, so reclamaes relativas falta de juzes letrados; benevolncia do jri; falta de conhecimento das leis por parte dos juzes municipais; polcia desaparelhada e em nmero insuficiente; a pouca ou nenhuma segurana das cadeias; dentre outros. (2005, p.128)

Sob o ponto de vista dos presidentes das provncias do Piau e de Gois, como conseqncia direta dessas falhas no sistema judicirio, possvel elencar um aumento no ndice de criminalidade, favorecido em grande parte pela vastido territorial, uma vez que a vigilncia permanente e integral das fronteiras era uma tarefa impossvel, o que proporcionava rotas de entrada e evaso dos possveis desordeiros.

As crticas tecidas pelos governadores de provncias so dirigidas principalmente formao leiga dos magistrados. Havia previso legal para o exerccio jurisdicional pelos juzes de paz, que eram eleitos pela populao local. A lei de 15 de outubro de 1827 estabeleceu a criao dos juizados de paz, cujas atribuies eram judiciais, polticas e administrativas. No dizer de Evandro de Andrade Vellasco

O juiz de paz, eleito, acumulava amplos poderes, at ento distribudos por diferentes autoridades (juzes ordinrios, almotacs, juzes de vintena) ou reservados aos juzes letrados (tais como julgamentos de pequenas contendas, feitura do corpo de delito, formao de culpa, priso, etc.). (2003, p. 4)

Importante observar que a atividade do juiz