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WILHELM WUSTROW (1854-1941)
(Jefferson André de Jesus Corredor)
2012
Julius Bravermann - Um conto sobre o trabalho dos mateiros
e a vida na colônia rio-grandense*
Wilhelm Wustrow
Quem alguma vez precisou visitar a colônia do Rio Grande do Sul nos meses de
inverno sabe exatamente que, durante alguns dias, pode ser forçado ao descanso
obrigatório pela chuva constante ou pelas cheias de rios, aqui e ali. Numa situação
destas, só ficará bem quem conseguir uma guarida aconchegante, onde homem e animal
sejam igualmente bem cuidados. Tais paragens são conhecidas em toda parte pelos
viajantes e são procuradas sempre que possível.
Minha viagem estava quase no fim e esperava estar junto aos meus em quinze
dias. Mas de repente, depois de alguma geada, começou um tempo chuvoso. Em alguns
pontos despencavam grandes tempestades de granizo. O granizo logo diminuiu, e do
céu começaram a desabar verdadeiras torrentes de água sobre a terra, já totalmente
encharcada.
A colheita já havia sido recolhida. O milho estava empilhado no depósito. As
batatas também. Os campos ainda não haviam sido semeados com os grãos. O
camponês observava o tempo com paz de espírito, na segurança de seu casebre
assentado sobre quatro estacas.
Comigo dava-se outra coisa. Eu ansiava por uma parada aprazível e por isso,
tinha que aguentar algumas léguas de caminhos intransitáveis debaixo de um aguaceiro
ininterrupto.
Então, finalmente, consegui chegar ao destino da minha excursão aquática pela
região. Logo pude sentar-me seco e confortável na hospedaria do “Goldener Gans”, nas
margens do arroio Quilombo, ao lado do velho Peter Schultes, na Picada da Batuíra.
O rio transbordara e havia chegado a uma altura não vista há muitos anos. Um
lago havia se formado em todo o terreno em ambas as margens do “Passo Schultes”,
* Tradução de Jefferson Corredor; revisão de Celeste Ribeiro de Sousa. Wustrow, Wilhelm. Julius
Bravermann – Eine Erzählung aus dem riograndenser Kolonie- und Waldläuferleben. In: Koseritz-
Kalender, Porto Alegre, 1929, p. 101-111.
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onde só as moitas da margem indicavam o curso do rio. Não havia nada de natureza
atraente e tempo bom para se ver ali. A chuva e a névoa mal permitiam avistar a
propriedade vizinha.
Um contínuo trovejar, rugir, ramalhar e bramir, vindo da mata distante,
anunciava a precipitação da monstruosa massa de água que se formaria na cachoeira, à
qual, de modo lamentável, ninguém pôde se aproximar, para observar o poderoso
espetáculo da natureza.
Tinha diante de mim alguns dias de descanso.
A estadia nas instalações do “Goldener Gans” não era desagradável,
especialmente quando, como eu, se conhecia o lugar há anos, e se mantinha contato
amigável com o honesto dono da estalagem, que tinha uma venda bem respeitada ao
lado de sua hospedaria. Os preços eram quase os da cidade, e ali também se desfrutava
de abrigo confortável acompanhado de uma ótima refeição, e – o mais importante – as
montarias eram bem cuidadas.
A maioria das vezes eu me hospedava lá para passar a noite, e sendo assim sabia
de todos os pontos fracos e fortes do tio Schultes. E junto a ele encontrava um
acolhimento duplamente caloroso, quer entre os velhos, quer entre os jovens. Eu não era
tratado como forasteiro e tinha o privilégio de não apenas sentar-me à mesa da família,
como também de ser admitido no círculo familiar.
Enquanto, na região, era hábito os estalajadeiros ouvirem notícias e histórias dos
viajantes, aqui acontecia o contrário. Aqui, fui eu quem escutou falar de todos os
acontecimentos ocorridos desde minha última estadia, não só do próprio estalajadeiro,
mas também de sua corajosa esposa, a quem tinha caído nas graças.
Portanto, mais uma vez eu tinha sido bem sucedido na viagem e, como de
costume, também fora bem recebido e acomodado.
Lá fora a chuva desabava a cântaros, batendo nos vidros das janelas altas. O
estrondo da queda da água ressoava por todo lado. As galinhas-d’água gritavam e,
através do ar úmido, ouvia-se o coaxar de um bando de sapos vindo das poças e valas.
Anoitecia. As luzes foram acesas e o jantar, degustado. O aquecedor irradiava
calor. Oh, como era agradável estar sentado ali naquele cômodo aquecido, batendo um
papo e tomando um copo de cerveja espumante da Picada, depois do campeio
encharcado e gélido. Além disso, nós fumávamos o primoroso fumo de Santa Cruz em
longos cachimbos. O conforto crescia em direção ao perfeito aconchego do inverno,
quando meus olhos caíram sobre uma pintura, que eu não havia visto ali nas minhas
viagens anteriores.
“Mas, tio Schultes, como é que esse famoso fidalgo e inabalável fanfarrão
chegou até aqui à selva e ficou pendurado sobre a sua cabeça?” perguntei eu, apontando
para a pintura. “E se ele tivesse dado o nó errado na corda de sisal, quando desceu da
lua, e caísse direto sobre sua cabeça?”
“Não estou preocupado com isso agora”, riu Schultes, “eu vou-lhe contar como
o quadro chegou até mim. Foi o Altmann, da Mendes, Barbosa & Cia, de Basilia, quem
me deu de presente. Eu nunca havia ouvido nada a respeito desse homem, conhecido em
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todo mundo. Como você sabe, eu vim pra cá com meus pais ainda criança. Eles eram
pobres. Da mais tenra infância em diante eu precisei trabalhar e trabalhar, até ganhar o
suficiente para comprar este pedaço de terra na colônia, depois que a picada foi aberta, e
poder casar com minha velha. Mais tarde, quando eu abri o negócio, não tive tempo
para ocupar-me com leitura.
Para aprender a respeito das técnicas usadas na região e dos processos agrícolas,
deixei de lado os jornais em alemão e os na língua da terra, assim como todos os
almanaques. Eu escutava atentamente o que os viajantes daqui e dali contavam. Verdade
e ficção passaram pelos meus ouvidos. Eu conseguia distinguir bem entre as duas.
Contudo, ninguém me tinha falado do Münchhausen.
Aí, um dia, o Altmann estava justamente aqui, quis o destino que o Julius
Bravermann, um mateiro meio agrimensor, pernoitasse na estalagem. Tinha participado
de expedições para medir quase todos os cantos do nosso estado. Ele é conhecido tanto
na mata como no campo, tanto nos povoados como nas vilas e nas cidadezinhas. É
sempre bem recebido e bem acolhido na casa das pessoas. “Julio” é um hóspede bem-
vindo, quer na casa do mais rico estancieiro, quer no mais humilde rancho. E se ele
chega como total desconhecido, basta apenas seu nome, para lhe garantir o melhor lugar
junto ao fogo.
Mas, mas, ele não é muito exigente em relação à verdade em suas histórias.
Assim que ele começa a falar sobre suas experiências na mata, geralmente perde a
noção da realidade.
E foi assim que o Altmann conheceu o Julio aqui, onde ele sempre se hospeda,
quando vem à região, e dele arrancou várias histórias naturalmente verdadeiras.
Mas, na manhã seguinte, não voltaram a se encontrar, pois Julius costuma partir
com o nascer do sol. E o Altmann ainda lhe dissera ao se despedir: “Dê meus
cumprimentos ao ‘Münchhausen Ressuscitado’, caso o veja. Mas, para o senhor, vou
mandar algo como recordação desta noite deliciosa.”
Já me tinha esquecido do assunto há muito tempo, quando, um dia, encontrei
num amontoado de coisas o quadro que está ali pendurado e um livro sobre ele que
continha “as verdadeiras aventuras do Barão de Münchhausen”.
Diverti-me um bocado, quando li o livro. Desde então, Julius não voltou mais
aqui. Deve andar ocupado com a medição dos terrenos do falecido Coronel Pinto
Carvalho, na região da Vila Paulina.”
“Pena que o senhor Julius não esteja hoje presente. Esta é, com certeza, uma
noite para uma boa conversa. Lá fora, está um tempo de cão e, aqui dentro, um calor
agradável. Mas o senhor não poderia contar uma das histórias desse Münchhausen
ressuscitado?”
“Disso eu não sou capaz. - Quem sabe contar histórias à sua maneira é o próprio
Julius. Porém, no que se refere ao livro, estou firmemente convencido de que ele
cessaria de fazê-lo, se eu lhe apresentasse o mesmo, pois com isso ele perceberia que
nós não acreditamos nele.”
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“Ó, é uma pena que o senhor não queira contar-me nada. Uma lástima. Um
tempo assim tão bom para histórias como o de hoje.”
“Eu queria muito também poder chamar agora o Julius, do mesmo modo como
Kasper chama Samiel em O franco-atirador, no qual eu me transformaria:
‘Julius, Julius, apareça!
Vivinho da silva na picada da cerveja!’”
“Ô dono da casa!” ecoou num tom cavo e fundo, diante da janela do cômodo
onde estávamos naquele instante e um cavaleiro apeou-se.
Com franqueza, naquele momento eu me senti estranho; e Schultes, olhando-me
fixamente, um pouco pálido, disse: “Tem alguma coisa errada. Mal o senhor falou nele,
eis que ele aparece. Esse é o Julius.” - “Entre, meu amigo! – Seja bem-vindo ao
‘Goldener Gans’”, assim o dono da estalagem saudou o hóspede que entrava, e de cujo
poncho de inverno escorria água.
“Deus o abençoe, Peter! – Será que eu encontro abrigo aqui? – Boa noite, senhor
– Está um tempo ruim lá fora.”
“É pra já, certamente, que pergunta. – Faz tempo que não vem aqui, não Julius?”
– Então, ele gritou para dentro da casa: “Bebida! - Au-gust! Rápido, o Julius está aqui!
– Levem sua mula para um lugar está seco! Tratem bem dela. – Agora tire a capa
molhada, e pronto”, ele encheu um copo de aguardente, “aqueça seu interior com este
legítimo ‘conhaque’. – Mas, homem, Julius, de onde você vem agora à noite? –
Imaginava que estivesse na mata, para além da Vila Paulina. Você já terminou lá?” –
Durante a conversa que se seguiu eu tive tempo suficiente para examinar o
recém-chegado. De fato, uma aparência singular. Com quase seis pés de altura, o
homem era de constituição vigorosa, robusta. O tempo e a vida dura e estafante haviam
gravado com um estilete runas fundas em sua face sincera e cordial, bronzeada pelo
vento e pelo clima. Grandes olhos que aparentavam lealdade fitavam alegres o mundo e
percebia-se neles que não tinham muito apreço pela tristeza. O rosto vigorosamente
talhado, com um nariz ligeiramente adunco, que se evidenciava atrevidamente, era
emoldurado por uma barba não muito comprida, onde já se via o grisalho. Uma
profusão de cachos loiros envolvia-lhe a cabeça, de testa alta e livre.
Sob o colete destacava-se um cinturão comum de couro, que era ao mesmo
tempo bolsa de dinheiro, cartucheira, coldre e bainha de facão. Não usava a arma como
peça de ostentação. No cano de uma bota, outrora amarela, em cujos tacões eram vistas
esporas não muito grandes, estava metida uma arma, igualmente digna de atenção, e um
chicote com um cabo munido de um castão de chumbo. As mãos do homem, que
podiam ser consideradas graciosas quando comparadas ao tamanho do corpo,
denunciavam sinais de que sabiam agarrar com firmeza. Mas mais uma coisa destacava-
se do cano da outra bota: era a flauta, guardada em segurança em um estojo de couro, da
qual o “ligeiro Julius” não se separava. O homem deixava uma boa, uma agradável
impressão naqueles que o viam. Ele, porém, avaliava os forasteiros em espiadas rápidas
e percucientes, sabia como ninguém lidar com situações assim. Como agora: tinha-me
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observado, medindo-me, enquanto bebia vagarosamente o conhaque, despindo o
agasalho e entregando o cinto aos cuidados do estalajadeiro.
“Com certeza é um velho amigo seu, Peter”, e meneou a cabeça na minha
direção, estendendo-me a mão direita. “Eu sou Julius Bravermann. O senhor já ouviu
falar de mim, não é verdade? – Não? – Agora, o Rio Grande do Sul me conhece, tal
como eu lhe conheço os mais recônditos esconsos e recantos mais longínquos. Saiba,
porém, que o melhor rincão é este aqui, debaixo das asas do ‘Goldener Gans’ do Peter.
Sendo assim, mais uma vez: Boa noite! – Ô Peter, então, como anda sua velha? –
Continua bem disposta? Muito bem, gostaria de vê-la, de cumprimentá-la, saudar o
‘Ganso de ouro’ na sua pessoa e ver se sobrou alguma coisa para eu jantar.”
E, aí, ele dirigiu-se aos cômodos da estalagem, dos quais logo ressoaram vozes
animadas que davam notícia da chegada de um freguês bem-vindo.
“Então, meu caro senhor Fresenius”, disse Schultes, enquanto se ajeitava
confortavelmente na poltrona, “agora, pode chover e parar de chover à vontade,
distração é o que não falta. Preste atenção! Ainda hoje, ele tem de ser atiçado, o nosso
‘Münchhausen rio-grandense’. Eu tenho que espicaçá-lo, e o senhor precisa me ajudar.
Vai ver que ele não resiste, como o peixe à minhoca.”
“Ele é casado?”
“Não, mas ele sustenta uma família. Ele ajuda a irmã viúva. O marido dela foi
atingido por uma árvore quando cortava lenha na mata. Uma das muitas vítimas que a
mata reivindica. Pagou as dívidas do cunhado e organizou o negócio da irmã. Também
lhe paga um serviçal competente, para o negócio andar pra frente. Cuidando com
desvelo da casa e dos cinco filhos – o mais velho com doze e o caçula com quatro-, não
sobra muito tempo à mulher para o trato da terra. Com certeza, essa é a razão pela qual
ele não se casou. Ele raspa e junta tudo o que pode, para que não falte nada, nem um
tostãozinho, à irmã, no caso de ocorrer algo com ele ou venha a morrer de repente.
Precisa de pouco pra si. Não é beberrão, nem jogador. Nunca pega em cartas e é bem
moderado na bebida. Acima de tudo, adora música. Não consegue se imaginar sem sua
flauta. Mas onde ele, um homem assim tão sincero e honrado, vai buscar as lorotas a
respeito de suas experiências no mato, isso eu não sei.”
“Será que ele não inventa simplesmente as coisas apenas para ter o que contar à
roda de conhecidos? Uma, por assim dizer, lengalenga de mateiro-agrimensor.”
“Eu também já pensei nisso. No começo, talvez tivesse sido assim; mas agora,
de tanto contar, ele mesmo passou a crer nas histórias que conta. Mas, aí vem ele. –
Então, Julius, já se sente revigorado?”
“Sim, meu amigo! – Sua velha conhece meu ponto fraco: linguiça fresca de
fígado com chucrute. Por uma salsicha de fígado com chucrute, você sabe, seria capaz
de vender meu primogênito, se eu não fosse filho único. – Mas, antes de continuar a
conversa, – sua balsa está em ordem, Peter? – Eu preciso atravessar amanhã sem falta
para o outro lado.”
“Amanhã? – Impossível! – a balsa vai ficar em terra, em segurança. Examine
você mesmo a água amanhã. Daqui, nos primeiros três ou quatro dias ninguém pode ser
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levado para o outro lado. Se, realmente, parasse de chover agora, o rio só iria baixar
depois de amanhã. Antes de a água baixar até a Cajerana, a balsa não pode ser
manejada. Você tem um teto e é meu hóspede. Você, senhor Frenesius, também vai
permanecer aqui.”
“Com muito gosto”, me veio à mente. “Além disso, senhor Bravermann, acho
que nós não nos vamos entediar nesta ‘prisão’, junto do amigo Schultes, e o céu não
haverá de ter as comportas abertas pra sempre, pois, de contrário, temo, que ficaríamos
em maus lençóis, já que a boa e velha balsa não é nenhuma arca. Eu acho é que nós
devemos beber a este prazeroso encontro sob as asas do ‘Goldener Gans’ e deixar
chover lá fora, até quando Deus quiser. Eu acredito que Ele só mandou a chuva, para
que nos conhecêssemos. Fico muito contente que você, o terceiro do grupo, também
esteja aqui. – Assim, saúde! - Ao alegre encontro.”
Julius não deu muita trela e, conversa vai, conversa vem, nós esvaziamos
algumas garrafas, até que Schultes disse que estava na hora de seguirmos nosso rumo.
“Você ficou sabendo que eu comprei a terra do Maneco Dias?”
“Não sabia. – Quanto você deu por ela? – São doze meias colônias. Eu já as
medi. O negócio é legal? A terra pertence apenas ao Maneco? O velho Ignacio tinha,
tanto quanto me lembro, três filhos, Claudino, Maneco e Juca. Não é verdade? Dessa
forma, Claudino e Juca também têm direito. Eles assinaram a transferência? ”–
“Ambos os irmãos morreram, sem deixar herdeiros. Claudino pereceu como
capitão, em Canudos, e Juca afogou-se no naufrágio do Aymoré defronte a Buenos
Aires. Sendo assim, Maneco é o único herdeiro.”
“Bom. Então está certo. – Quanto você pagou?”
“30 Contos, com 5 por cento de desconto para o pagamento à vista.”
“Um preço módico. Não é alto demais, nem tampouco demasiado baixo. Duas
meias colônias são só campo, e uma meia, quase que exclusivamente pedregulho, inútil
para a lavoura.”
“Bom. – Agora considere o solo e a mata que há no terreno. Uma terra dessa
qualidade e com tamanha abundância de madeiras dos mais nobres tipos, como anjico,
guajubira, louro, cedro, batinga, araçá, etc., das que raramente se acham.
Há por essas trilhas tanto araçá, que apenas sua casca e lenha cobrem a metade
do valor da compra.
O humo, então, seguramente de um metro de profundidade. Em todo o Rio
Grande do Sul você não vai encontrar outra terra como essa.”
“Oho, meu velho Peter”, interrompeu Julius. “Eu conheço o solo, eu conheço a
mata. Já a percorri o suficiente. Você tem razão, a região é boa, e tem também boa
madeira – com certeza. Mas, há algo mais aí no que disse. Casca? – Sim, e a casca tem
um bom preço. Para a região, o que você diz pode valer. Entretanto, vá para outro lugar,
para “Mato Preto” ou “Sanga d’Ouro”, no município de Santa Cristina. Aquilo é terra,
ali há árvores. Senhor Fresenius, se algum dia o caminho o levar para aquelas bandas,
não deixe de visitar a colônia Abundância. Lá o senhor verá frutas, lá o senhor verá
árvores. Ouçam isto.
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O que vocês diriam, se um dia vocês acordassem diante das florestas gigantescas
de Mato Preto? – Vocês não diriam absolutamente nada, pois vocês não teriam
condições de fazê-lo, tamanho o deslumbramento. Vocês ficariam de boca aberta com a
surpresa e esquecer-se-iam de fechá-la. Foi assim, e não de outra forma, que aconteceu
também comigo.”
“Ora, Julius, se você conseguiu fechar novamente a boca, por que nós iríamos
deixá-la aberta?”
“Naquele tempo, não havia tempo para deslumbramentos. Naquele tempo, entre
nós era: machado na mão e pra frente com o trabalho.”
“Mas”, observei eu com humildade, “primeiro não era preciso pegar a foice, para
abrir caminho entre os arbustos e o capim?”
“Hahaha! – Isso é o que vocês pensam, sim, e aqui, nas nossas matas, é assim
que as coisas são feitas, mas lá – o menor arbusto tem a largura da perna de um homem,
e a relva e os cipós mais fracos têm a grossura de um braço. De que serviria a foice
nesse gigantesco emaranhamento? – Não, na mão o machado, no cinto, uma
machadinha e, de lado, um facão do tamanho de uma mão espalmada, é assim que se
ataca a mata por lá. Vão lá, se quiserem ver mata e terra.
Mas, como vocês não podem ir sozinhos, aqui estou eu para ser o seu guia.”
Meus pais haviam comprado terras na Colônia Santa Tecla, na Picada Bonito.
Lá, eles tocavam uma hospedaria e eu já havia completado 20 anos, quando um dia ouvi
dizer que lá em baixo na venda, junto ao rio Papagaio, havia agrimensores.
Foi assim. Meu pai cavalgara até lá e trouxera a notícia, de que eles pousariam
ali, com equipamento completo para um longo serviço, para recrutar pessoas para o
trabalho na mata.
‘Mato Preto’, conhecido por todos nós, através de histórias, como exemplo do
que é grande, do que é medonho – na forma de animais selvagens e bugres -, devia ser
medido.
Aquele fora um ano ruim. O depósito de milho estava quase vazio; as batatas
também haviam vingado pouco. O feijão fora vendido. O tabaco ainda não estava no
ponto. Por isso toda perspectiva de ganho era oportuna. Meu pai dissera-me que os
agrimensores pagavam dois patacões de prata por dia, incluindo a alimentação. Ele me
aconselhara a ir com eles, e ganhar umas centenas de mil-réis. Eu era habilidoso, eu
sabia ler, contar e escrever. Atenção, eu pensei, talvez você se dê melhor na vida se der
uma olhada em outros lugares. Sim, a roça e o trabalho na terra não me deixavam.
Bom, então eu fui até lá. Apresentei-me ao pequeno holandês, que depois se
afogou no Rio Azul.
“E então, Peter, encha os copos mais uma vez, pois eu quero contar para vocês
as aventuras que eu tive nessa viagem.”
Depois de revigorados, de um lado para narrar, de outro para ouvir, Julius
continuou:
“No terceiro dia nós partimos. Fui com a roupa do corpo e uma muda
arrumada na mochila, além de camisas e cuecas; essa era a bagagem.
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O machado e a machadinha estavam sobre sela. A pistola e o facão iam metidos
no cinto, a espingarda pendurada aos ombros, sem esquecer-se da flauta no cano da
bota.
Ao amanhecer, assim que o sol nasceu, partimos cheios de boa disposição ao
encontro da selva distante.
Aspirei o ar fresco da manhã a plenos pulmões, o peito repleto de todo
tipo de alegres esperanças juvenis. Éramos uns vinte homens, com 40 montarias e bestas
de carga que nos acompanhavam, para tomar de assalto o ‘Mato Preto’.
Depois de dois dias havíamos deixado para trás as propriedades daquela que era
então a zona de colônias e os campos, que conduziam a pradarias infindas. Nós
vagamos durante dezoito dias, como marinheiros se orientando apenas por meio de
bússola, abrindo caminho através do capim, galgando colinas, atravessando vales,
riachos e brejos, sempre e sempre mais além. Por três vezes nós pernoitáramos em
fazendas de gado, as outras vezes, a céu aberto. Muitas vezes chegamos a ficar junto
com nossos animais, com lodo até o pescoço e tivemos que ser resgatados. Contudo, só
perdemos um animal na cheia de um riacho.
Finalmente, no décimo nono dia, avistamos na névoa do horizonte longínquo
uma longa e negra faixa de mata. Havíamos conseguido. O nosso destino estava ali,
diante dos nossos olhos.
Sendo assim, adiante! – O crepúsculo caía. – A noite cobria a terra. Nem uma
pequenina estrela saudava-nos amistosamente do céu. Estava bem ruim, pois caía um
forte orvalho, de forma que nos embrulhamos nos ponchos. Sempre em frente.
Sempre em frente, até chegarmos, disse nosso líder. Então, alguém deu de cara,
não com a mata, mas sim com o chão, ao cair com seu animal.
De repente, disseram à frente: “Parem! – Parem! – Chegamos!” Realmente. Nós
havíamos subido um morro, e ali estava diante de nós, a fantástica mata, de aspecto
escuro e proporções gigantescas.
Na escuridão da noite e na névoa que se formava, a mata dava a impressão de
uma muralha gigante, de um forte, em frente ao qual nós, os sitiadores, acampamos em
volta de uma fogueira de bivaque.
Da mata vinham murmúrios, sussurros e zumbidos, semelhantes ao barulho de
uma grande cidade à distância.
Por cima das nossas cabeças passava, inaudível, o grande bacurau, o uralaú, a
ave-fantasma; só se ouviam seus gritos prolongados, que ecoavam como lamentos
saídos de outro mundo. Também grandes corujas grandes emitiam seus chamados
através da mata. Vaga-lumes de todos os tamanhos pairavam em grupos, brilhando,
como se brincassem através do fresco ar orvalhado, tal qual inúmeros meteoros
percorrendo o espaço sideral.
Um jovem alemão, trazido pelo agrimensor de Porto Alegre, dedicava-se
afetuosamente a questões do estômago.
Ninguém o incomodava.
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De repente, ele acordou sobressaltado. Prestou atenção aos ruídos da mata e
disse: ‘Ei, Julius, parece que há gatos bem mal-educados na mata.’
Ele não deixava de ter razão, pois das profundezas da selva ressoava o esturro de
um tigre à procura de água. O líder de nossa expedição, o velho Urbano de Azevedo,
deu imediatamente a ordem de acender fogueiras nos quatro cantos do acampamento,
como precaução contra um eventual ataque.
Um velho negro que estava entre nós sorriu, pois ele achava que não havia
nenhum tigre por ali.
Todos estavam cansados. Então, nós que não estávamos de sentinela fomos
deitar e logo adormecemos.
Nada atrapalhara nosso descanso. Toda preocupação fora desnecessária.
Era dia claro quando acordamos. O sol brilhava com todo esplendor lá em cima
no céu, aquecendo e animando tudo. O velho havia-nos prometido um repouso
reparador depois das marchas exaustivas. Ninguém devia ser acordado.
Nós olhávamos uns para os outros admirados. Até onde a vista alcançava só
havia campos atrás de campos, entremeados de capões como se fossem ilhas. Mas,
quando eu me levantei e me virei, para olhar a mata, lá estava diante de mim, em toda
sua poderosa massa, o ‘Mato Preto’, que encontraria em nós a consagração de seu fim.
Uma parede verde infinita, da altura de uma torre, coberta de milhões e milhões
de flores magníficas de todo tipo, de todas as cores e matizes; foi assim que se
apresentou a mata ao nosso olhar. Não era possível ver os troncos das árvores. Eu digo
para vocês, era o verdadeiro cercado da Bela Adormecida.
Lá ficamos todos observando silenciosa e solenemente a grande e majestosa
edificação da mata o grande e majestoso edifício da mata.
Todos os tipos de pássaros cantavam, assobiavam, trinavam, chiavam ou gritavam em
agradecimento ao sol, que os aquecia. Borboletas e beija-flores revoavam e planavam,
fazendo cintilar suas cores, de uma flor para as outras. A mesa de Deus fora posta para
todos, generosamente repleta.
Jacus soltavam gritos sonoros e a araponga dava sua martelada na copa das
árvores. Lagartos ligeiros passavam pela relva e lebres curiosas e brincalhonas surgiam,
para rapidamente voltarem a desaparecer. Saídos da mata, em grande sossego e olhando
em derredor, apareceram veados. Logo nos notaram e escapuliram em saltos largos.
Todos, à exceção de um, foram abatidos pelo velho Urbano.
‘Julius’, disse-me o jovem alemão, ‘eu já olhei bastante por aí, mas,
sinceramente, não parece ser uma floresta com árvores’.
Ele tinha razão, pois o que parecia serem árvores eram na verdade arbustos. De
floresta mesmo não havia um único tronco de árvore para se ver. As frondosas copas
das árvores erguiam-se acima da mata de corte, que parecia impenetrável, entrelaçada
por amoreiras-do-mato de galhos grossos; acima dessa copas fechava-se um teto de
folhas extremamente compacto. Somente palmeiras, com seus troncos delgados e
flexíveis, atravessavam-no aqui e ali, em seu esforço para alcançar o sol. Suas longas
palmas, batidas pelo vento da manhã, ansiavam pelo céu, como longos braços
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suplicando pela luz celeste. Por cima, passavam os representantes da vigilância sanitária
rural, os uburus, espreitando, em busca de trabalho, movendo-se pelo suave bater de
suas asas largas e rijas.
Em silêncio, surpresos, uns de pé, outros sentados, contemplávamos aquela
magnífica criação de Deus consagrada à morte, até que o chamado para o café da manhã
nos trouxe de volta à realidade insossa.
O plano da campanha havia sido traçado. Os agrimensores queriam, em seguida,
determinar os limites da mata. Nós devíamos limpar o local do acampamento e montar
as barracas e ranchos.
Originalmente a mata havia sido destinada pelo imperador a uma colônia militar.
Mas nada fora feito. Tempos depois fora vendida, medida por nós, mas sem ser
ocupada. Por quê? – Eu não sei. Provavelmente, guardaram a terra para o futuro, para
fazer especulação.
Então, a mata foi medida de ponta a ponta. Nós havíamos circundado a floresta
com nossos instrumentos de medição, do mesmo modo que os judeus fizeram com as
trombetas ao redor de Jericó. Pena que a mata não tenha caído tão facilmente como o
muro de lá.
Finalmente disseram: amanhã começa-se a abrir a picada.
780 colônias completas, 100x1000 braças e uma praça central de 7500 de
braças quadradas deveriam ser delimitados e dois caminhos através da colônia
deveriam ser abertos. Todas as picadas longitudinais deveriam ser traçadas.
Ali, havia trabalho para dar e vender; a pergunta era, se nós aguentaríamos a
coisa.
Depois de uma noite inquieta e cheia de ansiedade, a manhã finalmente raiou.
Logo, todos estavam de pé, prontos para amolar os instrumentos cortantes.
A coluna ficou a postos, aguardando a indicação do lugar, no qual começaria a
investida, e onde era aguardada a ordem do ataque.
‘Pessoal’, disse o velho para nós, ‘hoje nós vamos entrar em uma mata na qual,
até onde se sabe, nenhum homem - sem contar os selvagens - jamais penetrou. Um dia
os jesuítas acamparam diante dessa mata, quando fundaram suas missões. Eles andaram
por aí , aqueles homens valentes, sem se deixarem fraquejar, e estabeleceram-se em
outra parte. Mas nós vamos penetrá-la e atravessá-la. Nós não sabemos o que ela nos vai
oferecer em seu interior. Ouçam minhas palavras: Mantenham olhos e ouvidos atentos.
Observem as árvores, suas copas, seus troncos e suas raízes. Observem os arbustos, o
capim, os cipós, assim como o solo debaixo de seus pés. E, além disso, sejam briosos no
trabalho e agora ...’
Veio à mente do alemão ‘Helm ab zum Gebet’†.
Fomos ao trabalho de bom humor, tudo nos fazia rir.
A primeira árvore com que nos deparamos, depois que nos esforçamos para
atravessar a barreira de galhos secos e heras, e que deveria ser abatida, foi uma canela
† “Helm ab zum Gebet” (traduzido à letra = “levantar elmo para a oração”) alude à mais importante peça
do cerimonial militar do exército alemão.
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negra. Tinha 7 pés de diâmetro, na medida portuguesa. Cortá-la? – Um absurdo. Junto
às pontas das raízes rentes à terra, cavou-se em quatro lugares, onde foi colocada a
dinamite. Todos recuaram para junto dos detonadores, que deveriam incendiar os
pavios.
Então houve um estrondo horrendo e, depois, somente restos de árvore para
remover.
Porém, o que eu contar sobre os diferentes tipos de árvores gigantes, vai ser,
afinal, sempre a mesma coisa. Vocês só precisam saber das maravilhosas experiências
que vivi.
Nós estávamos a bem dizer quase no meio da mata que, devido à densidade do
teto, formado pelas copas, possuía pouca madeira de corte, quando um dia, bem diante
de nós, nos deparamos com uma grande clareira, com bem umas 200 braças quadradas.
Um milagre na selva. Todos nós paramos e admiramos. No meio da clareira
erguia-se uma torre solitária, de madeira circular, em ruínas. Ela tinha bem uns 5-6
metros de diâmetro. Próximo dali havia algumas laranjeiras cheias de frutos. Aqui e ali
viam-se árvores da mesma fruta, já secas. Toda a superfície da área aberta era uma
campina, cuja relva havia sido mantida baixa. A orla da mata mostrava-se densamente
entremeada de plantas de corte. No meio da campina, bem próximo à torre de madeira,
corria um córrego de um prateado claro.
De onde veio a torre? Quem havia plantado as laranjeiras? Quem havia coberto o
lugar de grama? Quem a havia mantido aparada? – Os jesuítas? – Não. Selvagens?
Impossível. Só dá para presumir que tenham sido paulistas, quem fez o arroteamento.
Quem sabe?
Nós seguimos em frente e primeiro descobrimos, através dos muitos vestígios,
quem havia mantido baixa a grama.
A torre? – Nós chegamos perto e vimos que estávamos diante de uma
monstruosa ruína de uma árvore. A entrada ficava no lado oposto do tronco. A torre-
árvore era oca. Nas paredes ainda se viam os restos identificáveis de locais de repouso,
uns sobre os outros, para aproximadamente trinta pessoas. Provavelmente os paulistas
haviam entalhado a árvore encontrada, para servir como abrigo noturno. Depois, a
árvore foi morrendo pouco a pouco e restou essa torre.
O solo foi analisado com o perfurador e aqui, como em toda a mata, foi
identificado o puro e inesgotável solo de estufa. Nenhum de nós havia visto um humo
assim tão bom que pudesse ser comparado com aquele. Ali era possível ter grandes
colheitas.
Lá adiante, escondido na orla da mata, afinal o que é aquilo? – Perguntávamos
uns para os outros. Alguma coisa de cerca de 40 pés de altura e 10 polegadas de
grossura. – Fomos até lá e encontramos o que nos pareceu serem pés de milho secos.
Cortámo-los. Caíram um depois do outro, mostrando as espigas – espigas, como eu
nunca tinha visto, digo a vocês, de três pés de comprimento por nove polegadas de
diâmetro. Era milho amarelo e cada grão era como uma moeda de dois vinténs.
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Levamos na época o milho conosco, contudo, da nossa colheita só saiu o milho
comum. Com isso, pudemos perceber a força colossal daquele solo.
‘Ora bem’, disse o velho, ‘Aproximem-se. Vamos tomar o café da manhã. Vão
até ali e peguem aquele tronco caído na grama, para que possamos ter, no mínimo, onde
nos sentar. Deixem-no debaixo das laranjeiras.’
Fomos em seis homens. Olhamos o tronco. Ninguém conhecia a madeira. Bem
no momento em que nos preparávamos para examinar, o velho assobiou. E ele não
sabia esperar. Onze pés de comprimento e mais meio pé de largura um pé e meio de
grossura. O tronco estava aberto em uma das pontas, e era oco. Caramba, como a coisa
era pesada. Foram precisos mais dois homens para, então, removê-lo.
Jogámo-lo para debaixo das árvores. – Bum! Aí ele caiu. E, aí, ele ficou como se
fosse vidro, estilhaçado em mil pedacinhos.”
“Julius”, admirou-se Peter, “como isso é possível? – Como pode o tronco de
uma árvore, como pode madeira seca, como você diz, se espatifar em pedacinhos? Que
tipo de madeira era essa?” –
“Hahahaha!”, riu Julius. “À sua saúde, Peter! - Diversão é o mais importante.
Madeira, meu caro Peter, madeira? – Não era nenhuma madeira ...”
“Mas”, cortei eu curioso, “se não era nenhuma madeira, o que era então?” Eu
estava realmente ansioso para ouvir o que o nosso Münchhausen iria nos contar.
“O dia já estava claro quando acordamos. O que estava ali era algo simples,
aquele solo produzira uma simples batata-doce de tamanho gigante!”
“Ah! Ah!” nossas bocas deixaram escapar na mesma hora, pois não havíamos
contado com uma surpresa daquelas.
“Sim, senhor, uma simples batata-doce. Os pedaços nós assamos na fogueira.
Tinha um gosto delicado e era bem farinhenta. A queda e a esparramação da batata-
doce acabaram por desentocar uma gambá e seus oito filhotes, que haviam feito um
ninho em seu interior. Nós não tocamos neles, pois não poderiam nos fazer mal. Quando
ela se recobrou do susto, fugiu lá de dentro aos trotes, com os filhotes sobre as costas.
O velho deu a ordem para suspendermos o trabalho de medição e para nos
dirigirmos às barracas, a fim de trazermos o acampamento do campo para aquele local.
Fomos ao trabalho e em poucos dias terminamos o que era preciso.
A barraca principal tinha leitos, armados como beliches, nas paredes laterais e
nos fundos. No lado da frente era a porta. No meio, fora montada uma mesa e ao redor
dela, bancos, tendo por encosto as camas. Não muito longe da porta e defronte a ela,
havíamos montado a barraca que servia de cozinha. Tínhamos limpado a árvore oca,
mas não achamos nada que remetesse a seres humanos e sua presença. Como no topo
ela ainda estava totalmente fechada, poderia assim servir como selaria, etc.
Mudamos do campo e nos sentíamos muito bem. Os animais podiam correr
livremente. Eles tinham boa água e um ótimo pasto. O que eles comiam de dia voltava a
crescer à noite. E, o mais importante, nós os tínhamos sempre ao alcance dos olhos.
Abrir a picada foi um trabalho horrível, já que estávamos lidando só com
gigantes da mata. Porém, a dinamite foi uma grande ajuda para nós.
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Lá fora, na borda da mata, nós havíamos semeado uma plantação. Como
deveríamos trabalhar ali ainda durante muito tempo, precisávamos produzir nós mesmos
alguma coisa para nosso sustento, pois a natureza nem sempre oferece tudo. Plantamos,
então, batata, feijão, milho, abóbora, etc.
Esse trabalho de agrimensura era como uma vida em um bosque de contos de
fadas. As orquídeas mais esplêndidas pareciam suspensas no ar. Borboletas gigantescas
adejavam em volta delas. Encontramos verdadeiras colônias de pássaros tecelões. Todas
as plantas, por causa do solo rico, atingiam tamanho incomum. Os animais, contudo,
não eram fora do normal.
Por mais que trabalhássemos intensamente para irmos adiante, suspendemos o
trabalho, respeitosamente calados, assim que nos deparamos com um grupo de cem ou
mais quatis, os ginastas da selva. Nós nos divertimos com suas acrobacias e mesmo
nosso alemão, que era de Berlim, declarou com franqueza: ‘Eu nunca vi algo assim no
circo em Renzen.’
Raramente víamos outros animais. Em toda a parte o bicho se muda, quando o
homem chega com os seus tormentos. Não é assim que se diz?
Quase nunca conseguíamos ver porcos do mato.
Uma vez, contudo, ao anoitecer, nós havíamos terminado o trabalho do dia e
ansiávamos por chegar às barracas, quando vimos uma porca selvagem com dois
filhotes no Arroio da Prata, assim chamado por causa dos reflexos da mica que havia
nele. Perseguimos os animais, mas não os pegamos antes de alcançarem o capim. E
então – então, eles desapareceram de repente, como se tivessem sido tragados pela terra.
Agora a questão era encontrá-los. Mas, logo em seguida, eles correram na margem
oposta para dentro da mata e sumiram.
Como será que os bichos chegaram ao outro lado? Eles não nadaram através do
riacho, pra lá eles não voaram também; o córrego é bastante largo para saltarem por
cima. Como então? – Vocês não fazem ideia. – Agora, prestem atenção. Estávamos sem
tempo para procurar, mas por acaso encontramos uma batata doce, que crescera sob o
leito do rio e que emergira em direção à luz do dia no outro lado. Roedores a
encontraram antes de nós e a escavaram. Os porcos haviam usado esse túnel, era essa a
chave do mistério.”
“Senhor Fresenius, o senhor que gosta de escrever, aconselhe os ingleses e os
franceses a plantar tais batatas doces debaixo do Canal da Mancha. Seria uma solução
barata para a questão do túnel sob o canal.”
Pitando o bom fumo de Santa Cruz em nossos cachimbos e molhando as
gargantas com a excelente cerveja de picada, que Peter arranjara em quantidade
suficiente, não passávamos nenhuma necessidade, envoltos pela fumaça do tabaco como
outrora os deuses nas nuvens, e escutando, intimamente satisfeitos, apesar dos
semblantes sérios.
*
Uma noite Julius continuou sua história, “o tempo ruim persistira, e assim não
podíamos trabalhar – não gostávamos de ter esses feriados na mata; o velho não tolerava
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jogos de cartas e ele tinha razão – eu também não podia tocar flauta durante o dia todo,
e não havia espaço para dançar. O dia inteiro era dedicado à leitura ou aos suspiros.
Podia-se também ficar deitado e dormir, comprimindo as costelas. Nós acumulávamos
reservas.
O tempo úmido já nos atormentava há oito dias. Uma noite, o velho estava
sentado à mesa, escrevia e calculava, calculava e escrevia, lá fora o pior dos tempos e a
pior das iluminações. O vidro da lanterna estava tão embaçado que quase não era
possível ver sua luz. Ainda não havia lâmpadas de carbureto. À disposição havia
lamparinas de sebo, para nós, e velas de estearina para o velho, quando não acabavam
todas.
Eu ficava no meu beliche e pensava como seria bom, se naquele momento eu
estivesse sentado junto de minha mãe. Olhava para o barômetro, pendurado no meu
alojamento. Ele continuava sem subir. O que iria acontecer? – Assim pensava,
dormitando. ‘Você, Julius’, despertou-me desse entorpecimento a voz do velho ao
longe, ‘você poderia ir amanhã até a estância e perguntar, se há lá cartas e jornal.’
‘Sim’, disse o cozinheiro que, naquele momento, acabava de atravessar a porta e
ouvira as últimas palavras, ‘então, alguém podia ir junto. Eu preciso de carne.’
‘Está bem’, assentiu o velho. ‘Julius e Hilário, vocês saem amanhã cedo. Tragam
um bezerrinho de uns três anos.’ -
‘Quem está chapinhando lá fora?’ perguntou um dos nossos.
‘Deixa chapinhar quem tem vontade de fazê-lo. – Robert! Você juntou as varas
de medição e as colocou no seco?’
‘Sim senhor, coloquei...’
Robert não continuou, pois a porta se abriu de repente e, para o espanto de todos,
apareceu ali um grande urso marrom, de pé. Com as garras dianteiras estendidas em
direção à mesa, ele parecia pedir algo.
Todos fugiram. Ouviu-se o engatilhar de espingardas e não teria demorado
muito para que estourassem os disparos. O velho, contudo, levantou o braço e gritou:
‘Não atirem! Não é um animal selvagem.’
O bicho observou-nos com olhar suplicante, dirigiu-se à mesa e apanhou um
pedaço de pão que estava sobre ela, enfiou-o na boca e ficou de quatro.
‘Vejam vocês. O podre rapaz está com fome. – Julius, pegue a flauta e toque uma
modinha bem devagar.’
Sem preguiça, tirei a flauta e toquei uma genuína modinha. Vocês deviam ter
visto como o urso pardo se ergueu e, então, se virou bem devagar, pacatamente. Os
homens estavam deitados nos beliches e riam, tanto que as lágrimas escorriam pelas
faces.
‘Oh, Deus, deem-lhe uma fatia de pão com mel. Ele está com uma fome canina.
Ele dança tão bem.’ Era dito na confusão.
O bom urso pardo, que logo se tornara amigo de todos, ganhou um pedaço de
pão com mel. Tamanha a volúpia diante da delícia, que a comeu por entre bramidos.
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Quando acabou de comer, ele se curvou, como se quisesse agradecer, juntou as patas
dianteiras, abaixou a cabeça e deu duas cambalhotas. Então, pôs-se de pé novamente.
‘Com certeza, ele escapou de algum sérvio.’
‘Pois bem, pode procurá-lo à vontade!’
‘Julius, você pode ensinar-lhe mais algumas danças.’
‘Claro, quer dizer, vamos a elas, em dias de chuva, para ganhar dinheiro.’
Entretanto o servente tinha acabado o trabalho na cozinha e queria levar para
nós, na barraca, uma bacia cheia de feijões, que precisavam ser escolhidos.
Certamente, havia ouvido o barulho, a flauta e o patear, mas isso não era
novidade ali.
Contudo, quando ele abriu a porta e viu diante de si um urso que havia acabado
de se levantar de uma cambalhota, deixou a tigela cair – ainda bem que era de latão -, e
ficou ali petrificado como, outrora, a mulher de Ló. Vendo essa cena, o pessoal rompeu
em uma nova gritaria, que fez o grande animal querer se esconder de medo.
‘Parem!’ gritou o velho. Vão buscar uma correia e uma corrente. Nós
precisamos ter mão no sujeito. Julius e Hilário poderão amanhã dar notícia do ocorrido.
Talvez o dono possa ser encontrado.’
Ele mesmo colocou a coleira e a corrente no urso. O animal agradeceu-lhe,
colocando-lhe as patas dianteiras sobre os ombros e lambendo-lhe o rosto.
O pobre animal, o bom urso pardo estava feliz por estar entre pessoas.
Então, foi levado para o tronco-depósito e preso ali.
‘E agora’, disse o velho, ao voltar da ‘toca do urso’, ‘e agora, eu peço que todos
vocês sejam delicados com nosso convidado, que aumentou nossa família em mais uma
cabeça, pois ele é uma – dama.’
Era uma ursa. E, algumas semanas depois, nós a encontramos um dia com dois
filhotes engraçadinhos, agarrados às tetas.
Finalmente, vieram buscá-la.
O tratador de ursos ficou extremamente feliz em encontrar a fugitiva em tão boas
mãos, e em poder recebê-la, como mãe de dois ursinhos tão lindos.
Quando o sérvio, pois era ele, perguntou ao velho pelas despesas, ele respondeu
‘dirija-se a esse homem’, pois fora eu que tivera os animais sob meus cuidados.
Há algum tempo já havíamos entrado em acordo sobre não exigir nada do
proprietário, se ele aparecesse, porque o animal viveu apenas à base de restos e nos
divertiu muito.
Apesar disso, houve muita negociação e regateio nas conversas. Finalmente,
feliz por ter de volta não um animal, mas três, e ainda por cima sem custos, o homem
agradeceu ao velho. Quando o sérvio se aproximou de mim, remexendo na corrente do
relógio, me deu meia onça, dizendo: ‘Pegue, você cuidou bem dos animais; vocês não
querem dinheiro. Fique com isso. Para se lembrar do urso, use o urso na corrente de seu
relógio.’
Eu aceitei a ‘meia onça’ e o homem partiu com seus animais.
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Quando mostrei ao velho a ‘peça de ouro’, ele disse, depois de observá-la: ‘uma
bela moeda, perfeita. Mas nem onça, nem ouro. Essa é uma medalha comemorativa da
cidade de Berna, na Suíça, que tem um urso no brasão. É bronze, mas bem folheado a
ouro. Uma lembrança simpática, Julius, mas nada além disso.’
Aqui, senhor Fresenius, aqui está a moeda.”
*
A medalha era verdadeira. A história sobre o urso-pardo fugido? Essa era uma
outra questão. Talvez ela tenha sido construída com base na moeda. Não faz diferença,
ela era legal.
*
“Ao nos emprenharmos mais e mais na mata”, continuou Julius, “nós nos
deparamos novamente com uma clareira. Pessoas já haviam estado ali. Uma porca
doméstica recém-parida, que retornara ao estado selvagem, estava deitada com cinco
leitõezinhos, tomando sol. Quando nos notou, levantou-se e fugiu com os filhotes. O
animal dirigiu-se para uma construção singular e desapareceu através de uma abertura
arredondada. Quando nos aproximamos, o animal estava sossegado lá dentro e
amamentava tranquilamente os leitões, sem se deixar incomodar. Era um chiqueiro
estranho. Aparentemente composto de 12 partes, liso em cima, um pouco metido para
dentro. Era assim o chiqueiro. Agora vocês devem estar pensando, que tipo de chiqueiro
era esse?”
“Ora bem”, pensei, “deve ser um cupinzeiro.”
“Não, não”, sorriu Julius, satisfeito, “era uma grande abóbora.”
“Uma abóbora?”, exclamou Peter, “Uma abóbora onde cabe um porco inteiro?”
“Não, Peter, havia seis lá dentro. Não se esqueça dos leitões.”
“Caramba”, disse Peter, batendo com as palmas nas coxas, “oh, Julius, mas nós temos
que ir onde crescem tais coisas gigantes.
“Sim, sim, se se soubesse... Contudo, agora me ocorreu uma coisa. Quando nós à
época cavalgávamos pelo campo, Hilário e eu, a procurar gado, fizemos uma parada ao
meio-dia em cima de um bloco de granito arredondado, aplainado no topo, para preparar
um chimarrão para nós.
Estávamos sobre o bloco, esperando a água ferver e conversávamos.
Mas não demorou muito e o bloco de granito se moveu. Ele começou a se
mexer. Um, dois, três, - e nós estávamos lá embaixo, contemplando a maravilha.
Pois bem, agora ouça, nós nos havíamos enganado direitinho, pois o bloco de
granito não era nada além de um carrapato monstruoso e cheio, que se incomodou com
o calor do fogo.”
“Julius!!!?” –
“O quê?”
“E do que então o carrapato estava cheio?”
“É verdade, Peter,” riu Julius, “infelizmente, isso eu não posso lhe dizer, esqueci
de perguntar ao bicho. – Mas, escute, estão batendo 11 horas. É a minha hora. Espero,
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senhor Fresenius, que minha história não tenha entediado muito vocês. – Foi um
descanso agradável.”
Julius apertou nossas mãos e saiu.
Por um momento ficamos a nos olhar, e então eu disse: “Julius está certo, está na
hora de nos deitarmos, para digerir o que nos foi oferecido. Boa noite!”
Na manhã seguinte, quando cheguei para o café da manhã, Julius já tinha
partido. Ele estava com pressa. Deixou-me cumprimentos e mandou-me dizer, que
quando me encontrasse de novo, iria contar a história do tigre que engoliu o cavalo e
depois passou a andar com uma sela para senhoras nas costas.
Nunca mais voltei a vê-lo.
Dois anos depois ele morreu.
Deixou sua irmã e os filhos dela bem amparados.
Que pena desse homem.
Não é de se admirar, com toda seriedade, que este homem tão divertido, tão
ético, tão forte, tivesse essas fraquezas?
Peter Schultes e sua esposa já estão aposentados e seu “Goldene Gans” deixou
de existir.