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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
JUVENTUDES, TRABALHO E TERRITORIALIDADE: O INGRESSO DE
JOVENS DO SEXO FEMININO NO TRÁFICO DE DROGAS
Joana das Flores Duarte1
Resumo: Os estudos sobre jovens do sexo feminino no mercado informal e ilícito de drogas é recente.
De modo geral as produções dialogam com o lugar do “ethos guerreiro”, das relações de poder e
mando no território enquanto espaços ocupados exclusivamente por jovens do sexo masculino. Essa
visão estereotipada em que as jovens são assujeitadas, foi desmistificada a partir da pesquisa de
mestrado, realizada em uma unidade socioeducativa privativa de liberdade, no Estado do Rio Grande
do Sul, em 2015. Ao utilizar a técnica de observação participante, a pesquisadora conviveu com as
jovens por três meses, e nesse período foi possível concluir a partir das narrativas das entrevistadas
que, o ingresso no tráfico de drogas se dava por duas questões centrais: a primeira de caráter
econômico, porque o tráfico segue as mesmas engrenagens do modo de produção capitalista; e a
segunda pelo poder de mando e respeito na comunidade. Das 16 entrevistas, apenas uma narrou que
ingressou após começar a namorar um “padrão” (nome dado ao líder do tráfico na comunidade), mas
aos poucos, vivendo o dia a dia, passou a desejar também o “ethos” de “patroa”. É por esses condutos,
que o presente artigo busca situar as novas expressões e sobrecargas no ingresso de jovens do sexo
feminino no tráfico de drogas e a sua relação com as sociabilidades territoriais.
Palavras-chave: Juventude. Trabalho. Territorialidade.
Introdução
A partir da pesquisa de mestrado, realizada na unidade socioeducativa privativa de liberdade,
em Porto Alegre (RS), única em todo território do Estado, foi possível compreender que, o ingresso
dessas jovens no tráfico de drogas guarda relação com a dimensão econômica, e com as novas
configurações de disputa pelo poder e mando territorial.
Na pesquisa, as (os) participantes foram: as adolescentes em medida socioeducativa privativa
de liberdade no Rio Grande do Sul; profissionais concursados atuantes no Centro de Atendimento
Socioeducativo Feminino (CASEF). Quanto à participação das adolescentes em medida privativa de
liberdade, foram estabelecidos os seguintes critérios: I); ter entre 12 a 18 anos; e; II) estar em medida
privativa de liberdade. Para os/as profissionais, o critério estabelecido foi ser funcionário/a
concursado. Ao final da pesquisa havia 22 participantes, sendo dezesseis adolescentes (16) e seis
Bacharela e Mestra em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Doutoranda no
Programa de Pós-graduação em Serviço Social pela mesma Universidade. Integra o NEPEVI – Grupo Estudos e
Pesquisas em Violência, Porto Alegre (RS), Brasil. E-mail: [email protected]
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profissionais (06). O trabalho de campo foi realizado no período de abril (15/04) a julho (14/07) de
2015, totalizando quarenta dias (40) e 128 horas.
No tocante a metodologia, utilizou-se além das entrevistas semiestruturadas, a observação
participante, referenciada por autores das Ciências Sociais como Minayo (1994); Gil (1987); Demo
(2000), que, embora com definições diferenciadas, sinalizam para a concepção histórico-social, sendo
impossível alcançar e dominar o todo. Sendo assim, a observação participante é uma técnica de coleta
de dados que visa subsidiar informações de determinado fenômeno que se busca estudar, portanto,
não consiste apenas em ver e ouvir. Nesse sentido, as duas técnicas foram complementares no
processo de realização da pesquisa qualitativa. Na pesquisa foi adotada a definição de Whyte (2005),
entendendo que a coleta de dados somada à aproximação da pesquisadora com os sujeitos por um
período maior de tempo é reveladora de uma nova forma de sociabilidade.
Desse processo, foi possível afirmar que, estudos sobre jovens do sexo feminino no mercado
informal e ilícito de drogas é recente. De modo geral, produções que versam sobre este tema, são
dirigidas ao segmento juvenil do sexo masculino. No entanto, o número de jovens ingressas no
sistema socioeducativo tem suscitado estudos com ênfase na discussão de gênero. Conforme o último
levantamento anual realizado no ano de 2013 (publicado em 2015), pela Secretaria Nacional de
Direitos Humanos, o Brasil tinha 23.066 adolescentes e jovens (12 a 21 anos) em atendimento
socioeducativo, sendo 22.081 do sexo masculino e 985 do sexo feminino. Deste total, 15.221
adolescentes estavam em medida de internação, 5.573 em medida de internação provisória e 2.272
em medida de semiliberdade. No que se refere aos atos infracionais, o documento evidencia uma
linearidade com os levantamentos anteriores, ao apresentar roubo (10.004) e tráfico (5.866) como os
atos mais recorrentes respectivamente (BRASIL, 2015).
A crescente de jovens do sexo feminino no sistema socioeducativo, tem posto em xeque o
posicionamento historicamente androcêntrico2 do sistema de justiça juvenil brasileiro, bem como vem
desmistificando a visão estereotipada no ingresso das mesmas no tráfico de drogas, este último
entendido enquanto relação de compra e venda da força de trabalho, considerando que, as mesmas
2 Segundo Arruda (2011, p.197), fundamentada em Moreno Amparo Sarda (1987), o termo andro é originário do grego
andrós, usado para se referir a “homem”, “macho”, “elemento masculino”. A expressão androcentrismo diz respeito à
centralidade conferida ao masculino na organização das relações sociais e, de maneira especial, às qualidades que o
homem deve apresentar para atestar sua masculinidade, entre as quais se destaca a virilidade. Assim, O preceito de
igualdade jurídica, nesse aspecto, mostra-se inexistente ao longo da história e descortina as múltiplas violações e a
funcionalidade do androcentrismo no sistema penal. Vera Regina Andrade (2015, p.143) sobre este tema esclarece que, a
funcionalidade androcentrica se constitui para manter o “masculino ativo e o feminino passivo”, “o cara e a coisa”, “o
criminoso e a vítima”. “O sistema penal existe, sobretudo, para controlar a hiperatividade do cara e manter a coisa no seu
lugar (passivo) ”.
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possuem remuneração fixa (em alguns casos com sistema de metas), carga horária e relatam que a
diferença do trabalho no tráfico para outro se dá por este ser ilegal. No entanto, dialogar com a
perspectiva do tráfico de drogas enquanto trabalho, implica ao mesmo tempo, assumir que, esta não
é uma perspectiva homogenia nos estudos sobre o tema. Todavia, este artigo, assentado nas narrativas
das 16 entrevistas, reconhece a partir das mesmas que, o ingresso no tráfico de drogas, é visto como
um trabalho, mas também com significado de um “lugar” de “sucesso”, mando na comunidade e
“segurança”. Dos relatos, apenas uma adolescente disse ter ingressado por ser namorada do “padrão”,
embora ocupasse na dinâmica produtiva o lugar de “gerente”, isso segundo a mesma por ter maior
escolarização.
Cabe, portanto, entender as comutas por visibilidade, direitos, autonomia e reconhecimento
das mulheres, e de que forma isso se reproduz e materializa na comunidade periférica e criminalizada
pelo Estado, onde o direito humano à proteção social é constantemente negado. Nessa esteira,
compreender os meios e as estratégias com as quais essas jovens lidam enquanto forma de acesso ao
mundo das mercadorias, de visibilidade, pertencimento e “segurança” são necessárias. Dentre as
contradições, é a ideia de segurança a maior delas, pois para as adolescentes, ingressar no tráfico de
drogas é também visto como uma forma de distanciamento, porém não de supressão, da violência de
gênero, que segundo elas recai predominantemente na violência doméstica. É, pois, nesse lugar de
visibilidade que outras formas de violência emergem, dentre elas a territorial, visível nos conflitos
entre facções e polícia militar. É por esses condutos que o presente artigo se situa.
A institucionalização do Gueto: “ Somos todas da vila. Somos todas do mesmo mundo3.”
Loïc Wacquant, em seu livro intitulado “As Duas Faces do Gueto”, discorre sobre a retração
do Estado Social, e a consequente desintegração do espaço público, na medida em que o gueto – esse
território que constitui o todo – é desassociado e sofre a institucionalização via Estado Penal. Essa
análise sociológica é indispensável para compreender a forma como o território passa a ser visto
enquanto gueto e, portanto, passível de intervenção estatal penal, por ser este dado como circundo de
uma realidade própria, ou seja, desagregado do espaço social, como algo endógeno que não representa
e, tampouco, constitui a totalidade social. Segundo o autor, essa desertificação organizacional do
gueto tem como consequência:
3 Adolescente Yasmin. Todos os nomes apresentados são fictícios.
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a erosão do espaço público, o declínio das instituições locais (comércio, igreja,
associações de bairro e serviços públicos) [...] A origem da espantosa degradação do
tecido social institucional e associativo do gueto é encontrada, mais uma vez, no
recuo repentino do Estado de bem-estar social, o que solapou a infraestrutura que
permitia às organizações públicas e privadas desenvolver-se e subsistir nos bairros
estigmatizados e marginalizados (WACQUANT, 2008.p,39).
Nesse contexto, importa destacar a narrativa da adolescente Yasmin, quando a mesma diz que
são todas do mesmo mundo, isso implica na ideia de que o “mundo da vila”, o “mundo da favela”, é
um mundo próprio de quem vive lá, assim como os sujeitos que o habitam. Esse mundo que está
separado, segregado, está explícito no discurso da jovem e publiciza o conceito de desagregação
social.
De fato, narram a vida pública na vila como sendo um espaço muito precário, com o olhar
vigilante e repressivo da polícia, e de quem manda temporariamente, o “patrão” que, para ficar com
o poder de mando, precisa cotidianamente impor a sua autoridade. Por outro lado, falam também da
vida comunitária como sendo uma “extensão” da família nuclear. O território que, embora precário
do ponto de vista de acesso à moradia, a direitos, é constituído e mantido por fortes vínculos afetivos
entre os sujeitos que ali vivem. Há, portanto, uma construção comunitária, “na medida em que esses
fatores deixam de ser casuais” e passam a constituir a sociabilidade cotidiana (HELLER, 2008, p.91).
Eu sempre respeitei todo mundo, na vila todo mundo, as crianças, as vizinhas, era muito
respeitada. Sempre pude entrar na casa de um na casa de outro, almoçava na casa de
um jantava na casa do outro, pegava uma criança aqui, outra ali no colo, eu sempre convivi
bem com as pessoas e sempre me senti muito bem onde eu moro (ESTRELA CADENTE).
Todavia, a relação comunitária representa “a posição social do indivíduo, as possibilidades de
desenvolvimento de sua individualidade e de sua hierarquia de valores” (HELLER, 2008, p.93). Não
somente isso, mas também os preceitos da ordem social que é o produto do senso comum como, por
exemplo, o tráfico de drogas. Ainda que vivam na mesma comunidade, os indivíduos reproduzem
ideias e valores de uma concepção que não partem da sua realidade concreta, quando a repressão não
ocorre contra a violência gerada pela guerra às drogas no território, mas sim contra o indivíduo.
As pessoas dizem: “sai dessa vida”...chega uma hora que a gente quer sair, como eu falei
para ti, eu quis sair, mas não é simples assim... sair de uma facção, não se diz ah, não quero
mais, vou embora. Depois que entra, sair é uma missão quase impossível. Os que saem,
muitas vezes, pagam com a vida. Não é como as pessoas acham. A mesma coisa é deixar de
ser mulher dele (patrão). Não é assim. Às vezes é um caminho meio que sem volta. É
muito complicado... ele (patrão) disse uma vez: “não tem como sair”. As pessoas acham que
é dinheiro fácil, mas se pensar bem é um dinheiro muito difícil, porque tu és praticamente
obrigada a ficar e ainda correndo o risco de morrer (PIKENA).
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No entanto, o fenômeno é muito mais complexo, e, embora o tráfico de drogas seja um
trabalho, informal e ilícito, essa lógica permite não só a formação de grupos rivais, mas também a
impossibilidade de sair quando se deseja. Assim, o falido modelo proibicionista e a ampliação da
repressão às drogas, via legislação penal, só tem servido para aumentar a população carcerária, a
mortalidade de jovens pobres e a dominação dos territórios pelo crime organizado (LEMGRUBER;
BOITEUX, 2014, p.360).
Nesta simultânea de violações, o linchamento (fenômeno que não é recente), ganha
notoriedade nas narrativas como sendo “justiça com as próprias mãos” praticada no território.
Portanto, onde o Estado não ingressa com direitos, mas somente punitivamente, o sentido de justiça
tem conotação diferenciada, é “a força-de-lei” de um “contrato social” em que a população vê no uso
da violência uma forma de disciplina.
Praticados em grande parte por integrantes de facções, são passiveis de punição os que roubam
na comunidade ou praticam crimes sexuais. Situação que em parte tem o apoio da comunidade, na
medida em que essa prática punitiva tende a manter o fenômeno enquanto expressão “casual” e não
integrador da comunidade. “Em todos os casos, é evidente, e não raro é explicitamente dito, que a
justiça pelas próprias mãos é praticada por descrença na justiça institucional” e, especialmente, por
seu caráter seletivo (MARTINS, 2015, p.105).
Já presenciei coisas horrorosas, muitos homicídios, mas nunca matei. Já vi muita tortura, e
até hoje sonho com as pessoas que vi morrendo. Vi gente que roubou na vila e foi muito
torturada, eles não matam, porque quando é para matar já vai logo, é mais para dar o
exemplo (ELIS).
É nessa esteira que se propõe dialogar com mais afinco sobre as variadas formas de violência
praticadas pela polícia e facções, enquanto representações da estrutura social no cotidiano. Dentre as
repressões, dizem que a polícia faz um trabalho sujo, ao chegar na vila e agir como se todos que ali
estão fossem envolvidos com o tráfico. Isso é recorrente nas narrativas das adolescentes, porque há
também uma resistência dos próprios sujeitos que ali vivem e são expostos na luta traçada entre
Estado policial e facções, na denominada “guerra às drogas”. Desse modo, toda a comunidade passa
a conviver cotidianamente com as “inspeções policiais arbitrárias nas ruas e, sobretudo, nas
habitações populares através de operações do tipo “tira da cama”, sem prévia de autorização judicial”
(ADORNO, 2000.p. 132).
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Segundo as adolescentes, os fatores de morte nas vilas são motivados justamente pela
repressão policial, por disputas e controle dos pontos de vendas entre as facções rivais e a dívida de
usuários, respectivamente. Narraram, também a perda de um ou mais familiares em virtude dos
conflitos no território. É preciso que se observe que este circuito é mais complexo do que se pode
imaginar. Ao perguntar para a adolescente Elis como é a relação com a polícia no território ela diz:
Bah, tu ainda pergunta? É ruim, é horrível. Eles (policiais) não podem ver que dão o
pau. É “paredão direto” (revista). Sempre escapei do paredão, mas em uma das vezes me
pegaram e fui presa. Uma vez estávamos fazendo um churrasco na boca, e eles chegaram
pegam os espetos da churrasqueira, jogaram no fogo e depois deram na gente. E enfiavam
os espetos nos guris, nas mulheres eles não deram muito, mas os guris apanham demais, os
guris levam muito (ELIS).
Orlando Zaconne, numa leitura sobre a instituição da ordem jurídica enquanto ato de
violência, considera que “o aparato sancionador do Estado pode ser acionado e aplicado de forma
absolutamente excepcional”, fazendo com que nesta situação “o soberano não seja obrigado a se
dobrar às leis, utilizando ou suspendendo o ordenamento jurídico em nome de um mandamento maior:
a salvação do Estado” (ZACCONE, 2014, p.71;77). Quando a violência passa a ser um meio de
comunicação, quando o Estado, por meio da instituição policial, legitima a violência ao ingressar no
território e realizar “a justiça do sangue”, paralelamente, o lugar de “inimigo/a” é ocupado. Porém,
não se pode achar que essa “ocupação” é algo hollywoodiano, ao contrário, ocupa-se primeiramente
em defesa da vida, e, seguidamente, pelo significado que lhe é atribuído, descrito anteriormente.
Numa perspectiva agambeniana, é a força-de-lei, mas que não é lei para legitimar o Estado,
porque define “um estado da lei em que, de um lado, a norma está em vigor, mas não se aplica (não
tem “força”) e em que, de outro lado, atos que não têm valor de lei adquirem sua força”. Sendo assim,
as leis garantistas são sobrepostas à autoridade disciplinar da instituição policial que neste caso possui
em sua intervenção “força de lei” (AGAMBEN, 2004, p.61).
Importante ressaltar que o sistema estatal – em sua governabilidade – mantém e opera ações
com força-de-lei, ainda que leis (“sem “força”) existam para invalidar suas práticas. Desse modo, não
é de se estranhar que, cada vez mais cedo, segmentos que crescem numa realidade onde as leis não
têm força – no caso as políticas públicas – veem na violência, na opressão uma forma de sociabilidade
e inserção.
Eu poderia ter me envolvido com outras facções, mas ele era o cara do [...], o chamativo de
ter o poder. Tipo, qualquer coisa eu nem precisava sujar as mãos, era só mandar, sabe? Um
negócio assim, a sensação de poder, salas e salas de drogas para você organizar, mandar
quebrar paredes para tirar drogas dali, então é muito poder. Tinham casas em que as paredes
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eram ocas, para colocar droga prensada. Tipo, dinheiro, era muito, eu organizava, eu contava
(PIMENTINHA).
Então eu comecei a segurar drogas, armas... daí foi... o sucesso foi subindo a cabeça
comecei a andar com o patrão e fui me envolvendo, quando vi já estava lá no topo, quase
a patroa do negócio, então era poder também (VICTÓRIA).
Passa-se a sociabilizar nos signos do crime, das drogas e das armas. Quanto mais se tem, maior
é o domínio do território e maior é o poder de representação – de visibilidade. Esse paradoxo do
sistema, visto superficialmente com forte contribuição dos programas de Governo e da midiatização
dos conflitos, parece ser a “solução” contra o “inimigo”.
Na verdade, é uma grande cadeia produtiva (produção bélica) que para manter-se precisa
“socializar” a sensação de poder, de controle e de mando; embora exista, na comunidade é tudo muito
provisório, visto que “o estado de exceção não é o caos que segue à dissolução da ordem, mas a
suspensão estratégica que visa fixá-la. Esse momento em que o direito é suspenso visa tão somente
ao retorno de sua aplicação” (ZACCONE, 2014, p.89). Assim, quem está no subsolo da pirâmide,
ainda que poder tenha e o exerça no circuito que lhe é imposto, a guerra estrutural é ramificada, criam-
se os guetos, os becos e os Contras.
Cresci vendo irmãos se matando na rua. Sempre vivi com muito medo, porque eram os
contras brigando, queriam invadir a boca (PIKENA).
E sabia que já tinha gente atrás de mim, querendo me pegar, né? Me matar... eu sabia...
os contras estavam atrás de mim... (YASMIM).
Ele morreu... Os Contras “fizeram um puxa”, né. Simularam uma briga no bar, mas com o
alvo certo...um único tiro (GUERREIRA).
Na disputa por esse poder circulante a vida é efêmera. Trata-se do lado mais obscuro e bárbaro
do sistema, quando se captura do sujeito a perspectiva de sua própria existência enquanto ser social.
Narram que na vila não se anda em paz, não se circula tranquilamente, constituindo assim os circuitos
prisionais contemporâneos. A favela “é o lugar produzido pelo que não encontra lugar nos territórios
delimitados pela lei e pela inclusão econômica. Além disso, as populações existem, estão presentes,
e os níveis de exclusão são diversos e nunca absolutos” (CUNHA E SILVA, 2011, p.06).
Quanto ao uso da tortura, esta não é só aplicada pela polícia, quando envolvidas com os chefes
do tráfico os “patrões”, também são agredidas fisicamente e cotidianamente ameaçadas.
Nunca me envolvi com traficante, com patrão, para não ter que tomar tapa na cara e ficar quieta,
sabe? Se a guria fica depois não pode ficar com mais ninguém. Até hoje, ele (traficante) diz que
vai me pegar. Ele criou uma obsessão, a maioria das gurias querem ficar com ele, mas como não
quero ele não aceita. (ALEXANDRA).
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Ele mandava em tudo. Tinha controle total da minha vida. Só não mandava me matar porque
dizia gostar muito de mim (PIMENTINHA).
Ele matou uma guria achando que fosse eu (GUERREIRA).
“Estamos perante o simbolismo de gênero com sua poderosa estereotipia e carga
estigmatizante, enraizado nas estruturas e que busca reproduzir as pessoas do sexo feminino como
membros de um gênero subordinado” (ANDRADE, 2005, p.85). Neste sistema, há uma forte
hierarquia, embora as mulheres ocupem espaço de mando, a violência de gênero e a manutenção do
patriarcado são latentes. Há, ainda, situações em que a adolescente não tem envolvimento com o
traficante, mas este, por exercer um poder de mando no território, o exerce também sobre as pessoas.
No que se refere ao uso da força policial no território, as adolescentes são expostas às revistas
feitas por policiais homens, são agredidas e torturadas psicologicamente. Tais afirmativas partem de
suas narrativas, mas o que de fato implica uma reflexão é a extensão desta repressão, que se faz
também no Departamento Estadual da Criança e do Adolescente (DECA), em Porto Alegre.
Aquela história que brigadiano não pode dar em mulher, ou na adolescente, nas crianças,
eles dão e muito... eles dão porque eu apanhei do policial, ele me deu um soco e me
chamou de vagabunda. Quando estávamos indo para o DECA eles começaram: será que eu
não te conheço da boate tal? E falaram: por que, ao invés de roubar, tu não estás dando nas
boates? Depois falam que brigadiano não bate, não encosta, mas eles têm jeito para bater
sem deixar marca, fica por dentro... fiquei três dias com dor... sem contar o tempo de
terror na viatura até chegar no DECA... ninguém sabia que estava ali... (CAROLINA
BECKMAM).
No DECA fui revistada por um homem. Daí ele chegou e disse: “siga a linha” tem uma
linha que a gente tem que seguir até a cela. E disse: aqui dentro tu tens que ter o máximo de
respeito, se tu falar já sabe. Sem falar, cabeça baixa. Não quero ouvir tua voz. Respondi: Sim,
senhor. Aí perguntaram: já fizeram a revista? Disseram não: daí ele disse: ah, então vamos
fazer e sorriu. Tira a camiseta! Estava ele e uma mulher. Fiquei nua na frente dele, como
nasci, sem roupa...muita humilhação (RAPUNZEL).
No DECA, eles são bem radicais. Me lembro como se fosse agora... cheguei já desconfiada,
porque antes da entrada ali, os policiais me bateram. Mesmo que não tenha sido no ato,
mesmo que eles não tendo provas, não estão nem aí, chegam já batendo... (ALEXANDRA).
Pelas narrativas, fica evidente o uso da repressão policial e do abuso de autoridade. Há também
uma forte discriminação na relação de gênero, do uso da força e da necessidade de expor e humilhar
as adolescentes. Este ritual tem por finalidade a corporificação do sexismo pelo “vínculo
arbitrariamente estabelecido entre a posição social dos homens como categoria social em relação a
das mulheres” (SAFFIOTI, 2004, p.124). Dessa forma, o patriarcado é reforçado a todo tempo e
acrescido à violência física. Para Foucault (2014, p.206), a instituição policial é “organizada sob
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forma de um aparelho do Estado”, e os seus mecanismos de operacionalização “devem ser exercidos
sobre tudo”, mas não ao nível da totalidade do Estado, e sim “na massa dos acontecimentos, das
ações, dos comportamentos, das opiniões o objetivo da polícia são essas “coisas de todo o instante”.
Os polícias, além do uso do poder e da repressão, utilizam ainda o poder ideológico sexista
para legitimar a violência sobre as adolescentes. “Convém lembrar que o patriarcado serve a
interesses dos grupos e classes dominantes e que o sexismo não é meramente um preconceito, sendo
também o poder de agir de acordo com ele (SAFFIOTI, 2004, p.123). Somado a isso, os vestígios do
regime militar permanecem enquanto prática cotidiana, “nas delegacias e distritos policiais, torturas
e maus-tratos contra presos, suspeitos da prática de crimes, constituíam rotina nas investigações
policiais” (ADORNO, 2000, p. 132). Nesse contexto, cabe ao DECA e à polícia a institucionalização
da violência.
Sobre este aspecto, importa destacar a contribuição de Goffman a partir da leitura de Azadeh
Kian. Para o autor, é preciso desvendar “os mecanismos da produção social do gênero como dualidade
hierarquizada pela organização social, e seu esforço pelas instituições” em mantê-lo. O gênero é,
assim, performático, porque faz parte da realidade social e do modo como ela ritualmente através dos
corpos se movimenta e procura manter papéis fixados. Desse modo, a interseção entre micro e macro
é indispensável para pensar as relações de poder e o modo como elas operam e se legitimam, “na
construção social das desigualdades entre os sexos” cotidianamente (KIAN, 2014, p.325).
Por fim, importa destacar que, a violência de gênero é assim expressa em todos espaços e
executada por diferentes sujeitos, entretanto, as adolescentes percorrem um itinerário violento desde
a infância, passando por abuso/exploração sexual, agressão física e doméstica dos companheiros e,
quando são presas, há violência física e institucional praticada pelas instituições do Estado.
Considerações finais
O aumento de adolescentes privadas de liberdade e o seu envolvimento no tráfico de drogas
tem posto em xeque a falácia do projeto governista/reformador, ao mostrar que o perfil das
adolescentes hoje, em cumprimento de medida socioeducativa privativa de liberdade, condiz com os
estratos mais vulneráveis da nossa sociedade: predominantemente negra, pobre e habitante da
periferia. Em maior número, as entrevistadas relataram que antes de ingressar na unidade ficavam na
rua. A socialização já não estava restrita ao núcleo familiar, em boa parte em virtude dos conflitos e
históricos de violência, a rua, ainda que com todas as precariedades, é também uma transgressão ao
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negarem os marcos de violência intrafamiliar. Evidencia-se, assim, a necessidade de ampliação no
debate de base popular sobre as atribuições da segurança pública e do Estado, a fim de que se construa
bases críticas de enfrentamento ao projeto de encarceramento, pois a unidade socioeducativa é
também uma resposta de que fora da privação os projetos de vida são limitados para as adolescentes.
O ingresso no tráfico de drogas mostra-se como uma das alternativas, tanto econômica quanto de
significado social.
Contraditoriamente, a visibilidade do segmento na esfera criminal e a sua crescente demanda
na socioeducação traduz em dados a emergência de um modelo contraposto ao que vem sendo
executado no tocante ao endurecimento da legislação penal na área de drogas. A retomada
conservadora, a qual o Brasil e o mundo vêm afirmando, faz da questão um tema de mídia, manipula
a opinião pública e constrói o arsenal ideológico e institucional contra o/a inimigo/a. Então, é pela
via política que o governo atua na propaganda do terror e de projetos que visam à cristalização e à
conservação dos interesses da classe dominante.
Por fim, é preciso que seja dada atenção às narrativas das/os adolescentes que evidenciam a
violência enquanto fenômeno público. O corpo torna-se o manifesto concreto do suplício, e,
paradoxalmente, de desconstrução da categoria gênero. Em ambos os casos, gênero e sexo não são
neutros, constituem os rituais de poder que só intentam a manutenção de uma sociedade socialmente
estratificada, patriarcal, racista e androcêntrica.
Referências
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Sociol. USP. São Paulo, ano 11, n. 2, p. 129-153, out.1999 (ed. fev. 2000).
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Filosofia) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres,
Gênero e Feminismo. Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011.
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Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
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Youth, work and territoriality: the entry of young women in drug trafficking
Astract: Studies of young women in the informal and illicit drug market in knowledge production
are recent. In general, the productions dialogue with the place of the "warrior ethos", of the relations
of power and control in the territory as spaces exclusively occupied by young men. This stereotyped
view in which the young women are assujeitados, was deconstructed from a master's research, carried
out in a socio-educational unit deprived of freedom in the State of Rio Grande do Sul, in 2016. Using
the participant observation technique, the researcher with the young women for three months, and
during this period it was possible to conclude from the narratives of the interviewees that the entry
into drug trafficking was due to two central issues: the first of an economic character, because
trafficking follows the same gears of the mode of production capitalist; and the second by the power
of command and respect in the community. Of the 16 interviews, only one narrated that she joined
after starting dating a "standard" (name given to the leader of the traffic in the community), but
gradually, living day by day, she also wanted the "ethos" of a mistress. Through these channels, this
article seeks to situate the new expressions and overloads of the world of informal and illicit work of
young women in drug trafficking and their relationship with territorial sociabilities and the juvenile
justice system, in spite of the challenges of the latter by the androcentric culture.
Keywords: Youth. Work. Territoriality.