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Robert Kurz A Indústria Cultural no Século XXI Sobre a actualidade da concepção de Adorno e Horkheimer Da crítica aparente da burguesia intelectual ao culto pós-moderno da superficialidade * Crítica cultural elitista ou emancipatória? * Reducionismo tecnológico * A publicidade como percepção cultural do mundo e de si mesmo * A continuação do "trabalho abstracto" e da concorrência por outros meios * A Internet como novo meio central da indústria cul- tural * A virtualização do mundo da vida * Interatividade da Web 2.0 e individualização * Uma cultura grátis paga cara * O limite interno do capital e a crise económica da indústria cultural * A caminho do esgotamento das reservas culturais * O mundo não é um acessório. Por que é impossível uma "revolução cultural" separada Nota prévia: o presente ensaio é a versão escrita e alargada de uma comunicação apresentada em 21 de Novembro de 2010 na Alliance Française em São Paulo no âmbito de uma série de conferências subordinadas ao tema “A Indústria Cultural no Século XXI”. Há textos que já estão envelhecidos quando vêem a luz do dia. E há textos que mesmo com cem anos de idade se apresentam frescos e emocionantes. O livro A Dialética do Esclarecimento de Adorno e Horkheimer, onde se inclui o célebre capítulo sobre a Indústria Cultural, teve a pri- meira edição em 1944. Poder-se-á ainda falar tanto tempo depois da actualidade das ideias aí formuladas? Para o pensamento pós-moderno em sentido lato a resposta é clara: não. Este ponto de vista tornado dominante nas últimas décadas gosta de acusar o conceito de indústria cultural de ser portador de um “pessimismo cultural” conservador. Que mal poderá haver na industrialização da cultura? Não se encontrarão aí potenciais de liberdade e progresso que podem ser utilizados por todos os seres humanos? A esquerda cultural e pop pós-moderna, na sua experiência me- diática para não dizer snobismo mediático, julgou-se para lá do pensamento “fora de moda” da teoria crítica. Com isso, no entanto, apenas demonstrou o seu próprio carácter de simples fenó-

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Texto de Kurz sobre a atualidade do conceito de indústria cultural de adorno e horkheimer.

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Robert Kurz

A Indústria Cultural no Século XXISobre a actualidade da concepção de Adorno e Horkheimer

Da crítica aparente da burguesia intelectual ao culto pós-moderno da superficialidade *Crítica cultural elitista ou emancipatória? * Reducionismo tecnológico * A publicidadecomo percepção cultural do mundo e de si mesmo * A continuação do "trabalho abstracto"e da concorrência por outros meios * A Internet como novo meio central da indústria cul-tural * A virtualização do mundo da vida * Interatividade da Web 2.0 e individualização *Uma cultura grátis paga cara * O limite interno do capital e a crise económica da indústriacultural * A caminho do esgotamento das reservas culturais * O mundo não é um acessório.Por que é impossível uma "revolução cultural" separada

Nota prévia: o presente ensaio é a versão escrita e alargada de uma comunicação apresentadaem 21 de Novembro de 2010 na Alliance Française em São Paulo no âmbito de uma série deconferências subordinadas ao tema “A Indústria Cultural no Século XXI”.

Há textos que já estão envelhecidos quando vêem a luz do dia. E há textos que mesmo com cemanos de idade se apresentam frescos e emocionantes. O livro A Dialética do Esclarecimento deAdorno e Horkheimer, onde se inclui o célebre capítulo sobre a Indústria Cultural, teve a pri-meira edição em 1944. Poder-se-á ainda falar tanto tempo depois da actualidade das ideias aíformuladas?

Para o pensamento pós-moderno em sentido lato a resposta é clara: não. Este ponto de vistatornado dominante nas últimas décadas gosta de acusar o conceito de indústria cultural de serportador de um “pessimismo cultural” conservador. Que mal poderá haver na industrializaçãoda cultura? Não se encontrarão aí potenciais de liberdade e progresso que podem ser utilizadospor todos os seres humanos? A esquerda cultural e pop pós-moderna, na sua experiência me-diática para não dizer snobismo mediático, julgou-se para lá do pensamento “fora de moda” dateoria crítica. Com isso, no entanto, apenas demonstrou o seu próprio carácter de simples fenó-

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meno de moda. Entretanto a empresa pop pós-moderna já está um pouco entrada nos anos eos seus velhos protagonistas ganharam uma aura já quase de avô. De repente eles mesmos cor-rem o risco de se tornarem conservadores em relação ao seu próprio métier de juventude cultu-ral profissional. É precisamente nesta situação que é de todo o interesse voltar a ver com outrosolhos o conceito crítico de indústria cultural e as acusações pós-modernas contra ele lançadas.

Da crítica aparente da burguesia intelectual ao culto pós-moderno da superficialidade

Para começar será preciso esclarecer o que se deve entender por “pessimismo cultural”. Nomodo de expressão pós-moderno, que em todo o caso prefere proceder associativamente, asimples classificação denunciatória já parece falar por si mesma, sem precisar de mais funda-mentação. Aqui se infiltra de algum modo a referência pejorativa à postura de “burguesia cul-tural” na argumentação depreciativa, argumentação essa que permanece igualmente associativae indeterminada. Na realidade a “burguesia cultural”, a que corresponde a estrita diferença en-tre cultura de entretenimento e cultura séria, é um fenómeno bem especificamente alemão. Aliteratura, a música etc. “sérias” ou de “alto nível cultural” não devem ser manchadas por um“entretenimento” entendido como fundamentalmente baixo, tal como o ensino e a investigaçãoacadémicas não devem ser manchadas por uma “ciência popular” aferida pelo entendimentocomum.

Se a burguesia cultural clássica, sobretudo na Alemanha, torce o nariz à superficialidade damoderna cultura comercial, isso não passa de um gesto vazio. Pois tal crítica permanece elaprópria superficial, uma vez que a sua preocupação é toda ela para os modos exteriores de ex-posição, enquanto o conteúdo social e o núcleo politico-económico de tais produções têm deser ocultados e permanecem amplamente irreflectidos. Esta espécie de “pessimismo cultural” éuma forma de reacção puramente intracapitalista. Quanto mais se invoca abstractamente uma“essência interna” indeterminada e mistificada da alta cultura iluminista burguesa, tanto maisirrelevante se apresenta a cruzada da burguesia cultural contra a indústria cultural. Atrás dissoesconde-se um penoso estado de coisas. O entretenimento frívolo e a simplificação popularnão passam do reverso do carácter carregado ideologicamente em alto grau das próprias ciên-cia e arte burguesas “sérias” que assim se torna reconhecível. O facto de estas não serem com -pradas apenas porque já antes tinham sido compradas pelo Estado para efeitos de representa-ção mostra a origem comum em que o dinheiro se valida no Estado e o Estado no dinheiro. Éverdadeiramente a involuntária revelação deste contexto que não agrada aos críticos da culturada burguesia cultural na industrialização da cultura, pois com isso a sua própria vida fica ex-posta. Para os restos hoje miseráveis e do ponto de vista capitalista precarizados dos bajulado-res burgueses da alta cultura está completamente rompida a distância para a superficialidadecultural, pelo que a sua atitude só pode ser entendida como sátira real.

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É verdade que não se pode absolver sem mais Adorno e Horkheimer do patriotismo do milieuda “burguesia cultural”. Este, no entanto, encontra-se mais no modo de exposição do que noconteúdo crítico. Se a “crítica da crítica” pós-moderna insiste sobretudo no primeiro, então elamais uma vez diz mais sobre si mesma do que sobre o objecto que põe de lado. De facto para oculturalismo pós-moderno são sempre mais importantes os trapinhos, os acessórios, o “styling”e a atitude do que aquilo que neles se exprime. A crítica inverdadeira e ela própria superficialda burguesia cultural à superficialidade vira-se num culto pós-moderno afirmativo da superfi-cialidade. A aparência imediata ter-se-ia emancipado da sua essência. Ao que corresponde omodo de pensar positivista que submete os conteúdos a um método formal vazio e os condenaà indiferença.

A feira explícita da exterioridade, de que a crítica cultural conservadora e a nebulosa invocaçãode uma “interioridade” constitui uma mera inversão, naturalmente não é nada de novo. Ela re-gressa periodicamente, ainda que na pós-modernidade tenha experimentado por assim dizer asua apoteose de capitalismo tardio e de capitalismo de crise. Heinrich Heine, no seu ensaio crí -tico sobre A Escola Romântica (1833), tem em mira de certa maneira uma atitude e um modode proceder semelhantes para caracterizar o processo de autodissolução do romantismo: “Entreos imitadores de Fouqué tal como entre os imitadores de Walter Scott formou-se tristemente ocostume de descrever apenas a manifestação exterior e o traje em vez de a natureza interna daspessoas e das coisas. Este género rasteiro e modo leve grassa actualmente tanto na Alemanhacomo na Inglaterra e em França. Mesmo se as descrições já não enaltecem o tempo da cavala -ria, mas dizem respeito às nossas condições modernas, mesmo assim mantém-se o estilo antigode ver apenas o acidental do fenómeno em vez de a sua essência. Os nossos novos romancistas,em vez de conhecimento das pessoas exprimem apenas conhecimento do vestuário, baseando-se talvez no mote: o hábito faz o monge.

Já foi dito muitas vezes e não foi só do lado conservador que a redução dos objectos à sua feno-menologia e decididamente à sua fachada, tal como o formalismo tanto estético como episté-mico, constituem marcas ineludíveis de esgotamento cultural e social e de processos de dissolu -ção; seja de uma formação social, de uma época, de um padrão cultural ou de uma determina -da escola. No que respeita ao nosso objecto, trata-se não apenas do modelo em fim de linha dapós-modernidade, mas é esta que já constitui como tal e no seu conjunto o modelo em fim delinha da modernidade capitalista sob todos os pontos de vista. O baile de máscaras pós-moder -no não representa senão uma festa de classe média em tempo de peste, nem sequer particular-mente frívola, mas sim aborrecida. De resto uma metáfora com que Roswitha Scholz caracteri-zou já nos anos noventa o carnaval histórico da pós-modernidade como fuga condenada aofracasso para o palácio de cristal do capitalismo de casino. Isso até hoje pouco mudou na cons -ciência ideológica do carácter social pós-moderno apesar dos violentos surtos da crise. Quantomais se invoca a “criatividade”, mais surge ininterruptamente a apresentação do acidental e doexterior. Não é a criação de algo novo que se exprime com emoção contra a determinação da

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essência, mas sim a fuga perante a essência negativa e completamente miserável da realidade daprópria existência.

A hipóstase da capa exterior cultural e metodológica encobre precisamente a causa central daindiferenciação, ou seja, a forma social geral e sobreposta como conteúdo substancial, à qualtambém a indústria cultural já pertence sempre. O que é “burguês” em sentido próprio na esfe-ra cultural dominante não é um gesto conservador da “cultura” da associação de filólogos, massim o carácter de mercadoria dos seus produtos, que integra estes no reino do “trabalho abs -tracto” e a si mesmo se degrada em elemento abstracto na metamorfose do capital, como ummóvel de design ou comida de design. Os protagonistas podem aqui ignorar reciprocamente ocarácter de entretenimento ou sério.

Ironicamente a burguesia cultural clássica e as suas actuais figuras decadentes não se ilude demodo diferente do pós-modernismo que surfa nos média quanto à essência negativa da culturacapitalista. Ambos reflectem apenas diferentes estádios do desenvolvimento capitalista do mes-mo modo afirmativo. O pessimismo cultural é conservador e a formação positiva pós-modernada indústria cultural é apenas pseudo-“progressista” no mesmo continuum capitalista nãotranscendido por nenhum dos lados. Por isso a diferença se encontra apenas relativamente àsembalagens ou aos penteados, enquanto a determinação categorial idêntica permanece escon-dida e não se consegue sentir o ridículo comum. Quando riem uns dos outros riem sempreapenas de si mesmos.

Crítica cultural elitista ou emancipatória?

O pessimismo cultural conservador é elitista até aos ossos e só a partir deste ponto de vista épseudo-crítico da produção intelectual em série. A cultura há-de supostamente morrer com oocidente porque já não está reservada às classes superiores “cultas” mas assume o carácter deuma cultura de massas. A crítica da frivolidade, da superficialidade e da vulgaridade da indús-tria cultural reconduz-se assim directamente ao facto de ser produzida para a grande maioria,incluindo as camadas sociais inferiores consideradas como que “por natureza” intelectualmentemenores. Devia conceder-se-lhes com gosto uma espécie de divertimento ingénuo, de modo aterem o seu prazer inofensivo e evitarem maus pensamentos, desde que a alta cultura elitistamantivesse o seu caracter exclusivo e a coisa ficasse entre nós.

Na indústria cultural, pelo contrário, sente-se como ameaçador que ela nivele as pretensões, ul-trapasse as fronteiras sociais e desmascare como um disparate a aura de zelo cultural da antigaburguesia, uma vez que esta há muito perdeu a sua base histórica que só ideologicamente con-tinua presente. Não é por acaso que Adorno e Horkheimer troçam dos “amigos da educação”que “idealizam como orgânico o passado pré-capitalista” imponentemente patriarcal. Por isso a

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cultura de massas industrial e comercializada não fica sujeita ao veredicto conservador por ser“o esclarecimento como mistificação das massas” (como diz o subtítulo do capítulo da Indús-tria Cultural), mas sim porque torna reconhecível a falsidade reacionária do auto-incensamen-to bucólico e imitador dos clássicos da consciência de professor efectivo que gostaria de refres-car a sua própria estupidez social na canonizada “nobre simplicidade e silenciosa grandeza”(Winckelmann) de heranças culturais irreais.

Inversamente os profetas pop pós-modernos rejubilam exactamente com a mesma massifica-ção industrial como se ela fosse per se valiosamente emancipatória. A cultura de massas já seriasempre boa, independentemente do conteúdo e da forma, e seja ela uma cultura autónoma daspróprias massas ou uma cultura que obedece a imperativos heterónomos e perfeitamente inde-pendentes destinados à consciência estragada das massas. Uma afirmação mais ou menos domesmo modo que para a ideologia do movimento de esquerda (de resto completamente mar-cada em termos pós-modernos) qualquer movimento de massas em si já tem de ser essencial-mente “autêntico” seja qual o sentido em que se movimenta. A indústria cultural, independen-temente da sua forma de mercadoria e de capital, enquanto acessibilidade geral e afirmação demassas, é considerada como momento de libertação no capitalismo de facto já não grandemen-te tematizado. Esta atitude aponta no entanto apenas para o brutal interesse próprio de uma de-terminada personagem na comercialização, nomeadamente como designer secundário acadé-mico e publicista. Essa é a verdadeira razão porque ela gostaria de colar à teoria crítica o pessi-mismo cultural elitista conservador como qualidade determinante.

Ora o conceito negativo de indústria cultural em Adorno e Horkheimer quer dizer exactamen-te o contrário: não é a acessibilidade para todos que é objecto de crítica, mas sim que a indús-tria cultural, como eles dizem, “representa o mais sensível instrumento de controle social”.Trata-se portanto do conteúdo estruturalmente alienado e objectivadamente autoritário da cul-tura de massas capitalista e não do seu alcance para lá das elites. Este conteúdo segundo Ador-no e Horkheimer é “barbárie estética” porque processa a “moral degradada dos livros infantisde ontem” a fim de disponibilizar para os desaforos sociais os indivíduos cada vez mais infanti -lizados.

A antítese da indústria cultural seria uma cultura para todos que se opusesse à coerção da merarepetição e internalização do princípio dominante; portanto nem uma cultura para poucos, quese mantém como mero ornamento desse princípio, nem uma cultura compensatória de terapiaocupacional democrática, que não passa de um mecanismo de controle híbrido. É justamenteeste carácter essencial da indústria cultural na forma da mercadoria que os ideólogos pop pós-modernos não querem reconhecer, embriagando-se pelo contrário nela. A crítica, se é que elaainda surge, reduz-se a uma mera diferenciação interna que confere arbitrariamente um estatu-to de culto pseudo-emancipatório a determinadas tendências de massas da indústria cultural,como se a compra e consumo dos respectivos produtos contrariasse o controle social de modopuramente imanente, enquanto outras produções são rejeitadas com fundamentação igualmen-

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te superficial.

Reducionismo tecnológico

Outro aspecto da crítica cultural genuinamente conservadora consiste no seu reducionismotecnológico, que corresponde à atitude elitista de burguesia cultural. A cultura também estariacondenada à decadência supostamente porque a sua massificação exigiria simultaneamenteuma mecanização tecnológica. É justamente contra esta interpretação que protestam Adorno eHorkheimer logo no início do capítulo da Indústria Cultural. Aí se diz: “Os interessados ado-ram explicar a indústria cultural em termos tecnológicos. A participação de milhões em tal in-dústria imporia métodos de reprodução que, por seu turno, fazem com que inevitavelmente,em numerosos locais, necessidades iguais sejam satisfeitas com produtos estandardizados. …Ora isso não deve ser atribuído a uma lei de desenvolvimento da técnica enquanto tal, mas simà sua função na economia contemporânea”.

Para os dois autores esta função é dupla: o controle social é eficaz como efeito colateral justa-mente porque a cultura foi transformada num objecto imediato da produção para o puro lucro.Ou, expresso em termos de filosofia social nas palavras de Adorno e Horkheimer: “Tudo sótem valor na medida em que se pode trocá-lo, não na medida em que é algo em si mesmo”. Sobo totalitarismo da economia isto é válido tanto para o mais simples objecto de uso materialcomo para os bens da produção cultural capitalizada. Tal como um casaco socialmente não éum casaco e o leite não é leite, mas ambos aparecem igualmente como objectivação de “traba-lho abstracto” e portanto como quantidade abstracta de preço, assim também a qualidade sen-sível e estética de bens culturais musicais ou literários e teóricos é degradada pela sua formaabstracta de valor e de certa maneira morta, porque esta apenas proporciona ao produto oacesso à “validade” e à participação na massa de substância social do valor, permanecendo oconteúdo específico para si indiferente. Em todo o caso poder-se-á anotar à formulação deAdorno e Horkheimer que não se trata aqui do processo de uma mera “troca”. Pois a circulaçãorepresenta apenas a esfera de “realização” da “riqueza abstracta” como fim em si mesmo(Marx), ou seja, o regresso da substância do valor representada no corpo das mercadorias àforma do dinheiro que lhe é “própria”.

É em primeiro lugar desta objectividade económica fetichista, com a sua permanente mudançade forma interna a que o objecto real permanece exterior, que deriva a estandardização mecâ-nica e o nivelamento dos conteúdos, e não de uma exigência puramente tecnológica. A críticacultural conservadora insiste no processo tecnológico de produção em massa justamente por-que gostaria de manter fora da linha de tiro a essência negativa da forma social de mercadoria.O pós-modernismo agudiza mesmo essa ignorância, uma vez que já nem sequer recusa a críti-ca da determinação social da forma, mas declara-a desde logo impossível epistémica e logica-mente. A oposição à retórica de decadência dos conservadores consiste então novamente numa

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mera inversão da sua redução tecnológica. Seria justamente a tecnologia como tal que desen-volveria efeitos benéficos independentemente da sua forma capitalista (ou mesmo tornadosgentilmente possíveis apenas por esta). A crença pós-moderna inversa na libertação culturalatravés da tecnologia sucumbe também ao mesmo mal-entendido. Pessimismo cultural conser-vador e optimismo cultural pós-moderno constituem na sua limitação tecnológica as duas fa-ces da mesma medalha. Ambas escondem igualmente a dominação da “riqueza abstracta” capi-talista sobre os conteúdos e as formas de exposição dos bens culturais.

Em todo o caso a tecnologia da indústria cultural não está imune à forma económica do fetichedo capital nem à função de controle social a ela associada. Ela não é de modo nenhum neutrana sua forma de manifestação concreta, à semelhança dos meios técnicos de produção nas ou-tras indústrias capitalistas. Mas não se deve confundir causa com efeito. É a forma e a estruturada tecnologia que obedece aos imperativos da relação social e não o contrário. Os aparelhos es -tão geneticamente impregnados pela forma social. O desenvolvimento das forças produtivas nocapitalismo é sempre simultaneamente um desenvolvimento de forças destrutivas. Isto é válidonão apenas num sentido superficial e particular, por exemplo para a industrialização da guerra,com a bomba atómica como ponto culminante da técnica e ultima ratio dos progressos demo-cráticos. Também a linha de montagem não representa um aumento puro e neutro da produti-vidade, pelo contrário, na sua determinação concreta pertence igualmente à miséria do traba-lho abstracto a que os produtores estão subjugados. A indústria cultural não é excepção nestaidentidade entre produtividade abstracta e destruição.

O momento destrutivo do fim em si mesmo económico fetichista atinge, modela e violenta demúltiplos modos para lá da correspondente orientação das técnicas de produção também osconteúdos culturais. Tal como no caso das mercadorias para as necessidades do dia-a-dia, nãose trata do conteúdo da necessidade, mas sim da sua adaptação também técnica ao conteúdo davalorização. A inversão capitalista entre meio e fim, entre concreto e abstracto apresenta-se demodo específico na produção de bens culturais. De facto pode entender-se isto também comoinversão entre técnica de produção e conteúdo ou entre inovação técnica e conteúdo: não é um(novo) conteúdo que procura para si uma técnica adequada, pelo contrário, qualquer conteúdoé adaptado a uma técnica rentável e a “criatividade” reduz-se exactamente a isso. Mas tambémesta relação não deriva de qualquer relação independente de técnica e conteúdo, mas sim dofacto de ambas serem forçadas à cama de Procrustes do imperativo do valor. Adorno eHorkheimer escrevem a este respeito: “A indústria cultural se desenvolveu com a primazia dosefeitos,… dos detalhes técnicos sobre a obra, que outrora trazia a ideia e com essa foiliquidada”.

Deste modo se inverte a relação entre conteúdo e modo de representação. Na indústria culturaleste último parece autonomizar-se, como se mostra de seguida: “O facto de que suas inovaçõescaracterísticas não passem de aperfeiçoamentos da produção em massa não é exterior ao siste-ma. É com razão que o interesse de inúmeros consumidores se prende à técnica, não aos con -

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teúdos teimosamente repetidos, ocos e já em parte abandonados”. Tal como na produção o queestá em causa é apenas o aumento das vendas, também no consumo consequentemente o queestá em causa é apenas a função técnica de brinquedo igualmente indiferente ao conteúdo. Masse os “detalhes técnicos” já não são expressão da ideia do conteúdo, dominando pelo contrárioacima do conteúdo e “liquidando” a ideia, esta tendência irresistível é ela própria por sua vezdevida à forma geral de mercadoria tanto do meio de produção como também dos produtos. Aformulação aponta justamente para o facto de que a técnica dos meros efeitos não existe poracaso, mas é expressão daquele totalitarismo económico que nos tempos pós-modernos aindase agravou enormemente em comparação com meados do século passado.

A publicidade como percepção cultural do mundo e de si mesmo

O efeito tecnológico tem o seu modelo na publicidade omnipresente, na estética das mercado-rias do mercado mundial. A ideia de conteúdo não possui qualquer existência própria; ela estáà partida ao serviço de uma coisa que lhe é exterior e por isso ela é também casual, tornada ir-real de modo formalista e abafada no mero efeito. É justamente para esta dimensão da estéticadas mercadorias que Adorno e Horkheimer apontam já em 1944, na fase final da totalização dodesign publicitário no mundo da vida: “A cultura é uma mercadoria paradoxal. Ela está tãocompletamente submetida à lei da troca que não é mais trocada. Ela se confunde tão cegamen-te com o uso que não se pode mais usá-la. É por isso que ela se funde com a publicidade.… Apublicidade é seu elixir da vida. (O seu) produto … acaba por coincidir com a publicidade deque precisa por ser intragável”.

De notar aqui, como já se assinalou, a redução notória que ocorre em Adorno e Horkheimer àchamada “troca” que representa uma truncagem na economia, pois no sistema do “trabalhoabstracto” reacoplado a si mesmo não pode falar-se de “troca” em sentido próprio. Apenas auma observação superficial a forma dinheiro corresponde a uma “relação de troca” externa,sendo que essencialmente faz parte do fim em si autonomizado da “riqueza abstracta” comoauto-relação interna do capital. Abstraindo disso, é justamente apenas perante este pano defundo que aquela autonomização secundária da publicidade se torna possível e acaba por setornar uma necessidade que imprime o seu selo em toda a produção cultural, como se diz nocapítulo da Indústria Cultural: “A publicidade converte-se na arte pura e simples com a qualGoebbels a identificou premonitoriamente”. Deste modo “uma olhadela rápida mal conseguedistinguir texto e imagem publicitários da parte redaccional”.

A actividade artística é tão pouco livre como na idade média cristã, pois tal como então qual-quer representação tinha de repetir sempre a mesma constituição religiosa, também agora elase transforma sempre na mesma publicidade, justamente na sua aparentemente fortuita “multi-

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plicidade” e contingência, publicidade que a si mesma se recomenda e aprecia na figura de au-tomóveis, bebidas energéticas, telemóveis ou bonés de basebol. Representar o mundo na formaautonomizada da publicidade significa só conseguir percebê-lo na forma da mercadoria auto-nomizada. Isto afecta também a autopercepção e as relações sociais dos indivíduos. Até na inti-midade, que já não existe, nasce uma distância mediatizada que tem como pressuposto umacompleta ausência de distância em relação aos imperativos sociais. Já não existe qualquer espa-ço de tranquilidade social não sobrecarregado com as exigências da dominação. O modelo deidentidade posto em movimento tem de se apresentar sempre e em toda a parte à sentença das“tabelas de opinião” no eterno carnaval da subjectividade como uma marca de cerveja ou deperfume. O capital humano ambulante precisa dos produtos da indústria cultural em sentidolato não tanto para uso, mas mais como sujeito para a teimosa “auto-representação” em que osportadores do traje estão secretamente convencidos da sua falta de valor. Os actores para simesmos nem sequer quando estão sozinhos podem abandonar o seu papel. A máscara de ca-rácter secundária da indústria cultural do autovendedor precário está colada à pele.

Dá a impressão quase maçadoramente que também neste aspecto se pode percorrer a comple-mentaridade polar de pessimismo cultural conservador e optimismo cultural pós-modernocrente no progresso. Mais uma vez os suportes da reflexão da burguesia cultural troçam da pu-blicidade apenas porque gostariam de conseguir uma barreira ideológica contra a infiltração doeconómico vulgar na esfera elitista da arte. Eles barram o efeito sem conteúdo apenas para con-seguir parar a comercialização de pretensos “bens mais sagrados” sem quererem tocar minima-mente no capitalismo. Assim, a publicidade vulgar não deve poder ser reconhecida como a faceque sorri trocista no espelho à refinada arte burguesa. Nesse aspecto tal como em qualquer ou-tro a forma social da relação fetichista devorou o conteúdo. O que resta também na arte oficialpara os círculos superiores, que já só consegue ser elitista no preço em dinheiro, é a comum au -tovenda pelos artistas de salão que são “vanguardistas” ao máximo quando com vergonham vi-ram os quadros para a parede e escurecem os textos.

E mais uma vez o pós-modernismo apenas vira a crítica aparente do pessimismo cultural eproclama a publicidade como libertação da arte do toque de museu de um classicismo de mes-tre-escola. O carácter auto-represivo das mónadas da auto-representação alimentadas pelocomplexo totalitário da indústria cultural é tão escondido aqui como no caso da contraparteconservadora. A distância hipocritamente assumida da consciência de burguesia cultural emrelação à literal comunidade de publicidade universal e autopublicidade vira-se no entanto nadivisa pós-modernista “estar presente é tudo”. Não só a proximidade formal, mas também a co-nexão interna entre propaganda populista e publicidade ou não devem ser mencionadas ouconsideram-se mesmo susceptíveis de carga positiva. O pós-modernismo está assim de acordocom Goebbels sem querer saber disso. Cada um apraz-se em efeitos sem conteúdo para assimrenovar a própria máscara de carácter e deixar qualquer crítica à partida sem objecto. A consci-ência do estilo de vida pós-moderno é já apenas uma espécie de boné de basebol colectivo ideal

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que se promove a si mesmo.

A continuação do "trabalho abstracto" e da concorrência por outros meios

A apologia pós-moderna do predomínio do efeito e do detalhe técnico sobre o conteúdo gostade afirmar que isso está associado a um conforto cultural que garante o “prazer sem remorsos”.Que mal haverá nisso? Uma vez que se dissolveu qualquer critério de conteúdo e a crítica foideclarada uma impossibilidade, gostaria ainda de se proceder como se a mercadoria da indús-tria cultural caísse do céu como uma espécie de maná ou voasse para a boca de cada um comoos pombos assados do país da cocanha. Inversamente a burguesia cultural conservadora, namedida em que ainda sequer existe e não tem já de se colocar na forma do passado, vê a indús -tria cultural como pechincha cultural deselegante e considera que o consumo dos seus produ-tos só se faz sem esforço porque se trata de lixo absolutamente sem pretensões que envenena amente e a alma. Contra isso são apresentados os “trabalhos de elevada pretensão” produzidos,os únicos que devem ser válidos para os “verdadeiros artistas” bem como para os “verdadeirosapreciadores da arte”, como pequena mas refinada comunidade de um “conhecimento” sempreço.

Também neste aspecto os optimistas pós-modernos da cultura e os pessimistas conservadoresda cultura estão bem uns para os outros: ambos afirmam por igual a facilidade e o prazer semesforço do consumo da indústria cultural, só que este gozo supostamente cómodo é avaliado demaneira oposta. Adorno e Horkheimer abordam o assunto de modo completamente diferente.De acordo com a sua origem, de facto, eles não estão imunes ao auto-incensamento que sim -plesmente assenta mais na canonização e na restrição no sentido da alta cultura burguesa doque na primazia do conteúdo. Mas, independentemente deste condicionamento socio-históri-co, eles não deixam de ver o contexto de mediação interna entre a indústria cultural e a pressãopara a eficiência no trabalho capitalista, entre “trabalho abstracto” e “gozo do tempo livre” pre-tensamente sem remorsos. Não se trata aqui simplesmente da crítica a um simples efeito com-pensatório, como se uma coisa fosse exterior à outra.

Na realidade, a dialéctica do consumo pop totalmente capitalizado consiste precisamente emque a coerção social e a liberdade de escolha do objecto, o esgotamento perturbado da energialaboral protestante e a autocomplacência na exposição não só correspondem, mas transfor-mam-se uma na outra e uma manifesta-se na outra. O trabalho pesado de miséria não é apenaso pressuposto indispensável, que se gostaria de manter discreto, mas sempre o pressupostoconsciente para a capacidade de compra. Adorno e Horkheimer não invocam o perigo de umgozo demasiado fácil para a capacidade de trabalho que no entanto seria preciso exigir, masmostram que aquele cómodo conforto é em si mesmo ilusório. O que é dado enquanto tal não

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pode ser separado do seu contrário no processo de ganhar dinheiro, como eles deixam claro: “Adiversão é o prolongamento do trabalho sob o capitalismo tardio. Ela é procurada pelos quequerem se subtrair aos processos de trabalho mecanizado, para que estejam de novo em condi -ções de enfrentá-lo. Mas, ao mesmo tempo, a mecanização adquiriu tanto poder sobre o ho -mem em seu tempo de lazer e sobre sua felicidade, determinada integralmente pela fabricaçãodos produtos de divertimento, que ele apenas pode captar as cópias e as reproduções do pró-prio processo de trabalho”.

Mais uma vez não é a exigência da técnica de reprodução em si que realiza esta inversão fatal,mas sim o totalitarismo fetichista da forma geral da mercadoria que tendencialmente transfor-ma todas as expressões vitais em “trabalho abstracto” ou pelo menos as equipara a ele; mesmonão estando ligadas a qualquer processo de valorização real. Não há qualquer verdadeiro rela-xamento na falsa concentração e fixação no trabalho do sujeito. Mesmo o deixa-andar tem deser instrumentalmente organizado e profissionalizado para que se transforme no seu exactocontrário. É para isso que aponta uma das mais frequentemente citadas passagens do capítuloda Indústria Cultural: “O fun (em inglês no original: gracejo) é um banho medicinal, que a in-dústria da diversão prescreve incessantemente”.

Não só a coerção para o trabalho e o delírio do esforço se reproduzem no consumo de merca -dorias da indústria cultural, mas também a monadologia objectiva da esfera da circulação capi-talista, ou, como observam Adorno e Horkheimer, “a dureza da sociedade da concorrência”. Ofun também se torna um banho medicinal porque o “gozo” não é inocente nem cómodo, e nemsequer inteligente, mas, apesar de toda a camaradagem das festas, torna-se numa inspecção dodesign dos corpos, dos trapos e das personalidades, em que cada simulacro de eu só conseguedivertir-se contra todos os outros e tem de fazer crer permanentemente a si mesmo que o pra -zer está nisso. Mesmo a máscara de tempo livre forçadamente alegre, como se diz no resumodo capítulo da Indústria Cultural “atesta a tentativa de fazer de si mesmo um aparelho eficien-te…”. Em lado nenhum isto se mostra mais claramente do que nas micro-empresas pós-moder-nas de high-tech e de publicidade. O “trabalho abstracto” e a concorrência só se tornam umjogo e uma festa porque tanto a festa como o jogo há muito que se transformaram em “trabalhoabstracto” e concorrência.

Com isto se revela a indústria cultural também como uma organização com conotação sexual.Mulheres e homens situam-se aí de modo diferente apesar de todas as modificações culturais,exactamente porque se trata de modelos, simulações e formas de reprodução do “trabalho abs-tracto”. Pois a forma de sujeito assim determinada, incluindo a da concorrência universal, temconotação estruturalmente masculina, como Roswitha Scholz mostrou na sua teoria da dissoci-ação sexual que pela primeira vez tematizou a relação de género à altura conceptual das catego-rias capitalistas fundamentais. Mesmo estando as mulheres cada vez mais integradas na esferado “trabalho abstracto” e na esfera pública capitalista elas continuam a ser aí menos apreciadasporque continua a cair sobre elas a responsabilidade no sentido mais amplo pela oikos dissocia-

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da daquela esfera na medida em que não se pode expressar em dinheiro (gestão da casa, cuidardas crianças e dos idosos etc.). Esta relação capitalista entre os sexos profundamente ancoradano inconsciente colectivo atravessa todos os domínios sociais. E assim por maioria de razão sereproduz no “banho medicinal” da tensa empresa do divertimento. As mulheres entretantoconcorrem aí com outros corpos diferentes dos corpos sexuais aparentemente autodetermina-dos que se revelam como “mulheres” em todas as autonomias individualizadas. Também como“capazes de fazer tudo”, que devem ser igualmente responsáveis pela família e pela profissão,elas não perdem a acentuação específica sexual – ainda que de forma modificada – e o “sermãe” continua a matraquear por trás. Isto repercute-se na sua auto-imagem co-fabricada pelaindústria cultural; daí que elas também não sejam realmente tomadas a sério como sujeitas dofun.

A Internet como novo meio central da indústria cultural

Está na altura, como seria de esperar, de enfrentar a Internet como complexo mais avançado daindústria cultural. A “Net” constitui sem dúvida a tecnologia pós-moderna perfeita que nãopor acaso é comparada com a descoberta da imprensa no início da modernidade conside -rando-se que terá efeitos igualmente revolucionários. Mas, tal como a impressão de livros e assuas consequências sociais não se podem entender a partir de si mesmas mas apenas no con-texto do processo de constituição histórica proto-capitalista, também a Internet não pode serdeclarada um estabelecimento tecnológico autónomo com potencialidade de mudança social,mas apenas como momento socio-tecnológico nos limites históricos do capitalismo.

A oposição complementar até aqui esboçada entre o pessimismo cultural da burguesia culturale o optimismo cultural pós-moderno fica quase sem razão de ser neste complexo ultramediáti-co; e de facto sobretudo porque a alta cultura conservadora e de filologia antiga da burguesiaclássica está pronta a capitular incondicionalmente. A correspondente burguesia cultural nocontexto específico alemão foi por um lado desde sempre uma burguesia de fantasia, um gruposocial difuso e multifacetado, cujos membros pretendiam considerar-se “algo melhores” justa-mente no aspecto cultural. Esta demarcação referia-se não apenas às qualificações (académicas)superiores, mas a um cânone cultural tendo por cerne as línguas antigas, a filosofia clássica e apoesia do idealismo alemão. A pretensão a isto associada de “cultura superior” ia muito para ládos poucos especialistas no assunto; abrangia todo o espaço académico e também certamente opessoal docente e até os que concluíam o secundário. Por isso a demarcação não era apenasface às “massas incultas”, mas também contra as elites dos outros países capitalistas. Uma bur-guesia de fantasia era-o certamente também no que diz respeito à competência quanto ao con-teúdo daquele cânone cultural que para a maioria desta classe não passava de superficial e iaperfeitamente de braço dado com os ritos de vapores de cerveja e a brutalidade nas relações so-ciais.

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Esta velha “barbárie culta” da burguesia académica alemã extinguiu-se na época das guerrasmundiais e não há que chorar por ela. Na democracia de mercado mundial após 1945 desapa-receu ainda mais o cânone cultural clássico dando cada vez mais lugar a uma mera consciênciade elite funcional. O que restou foi um fraco reflexo da pretensão de resto nunca realmentecumprida e um resíduo apenas fantasmagórico da falsa consciência de ser “algo melhor”. Na ac-tual ideologia de classe média este impulso reduz-se cada vez mais à tentativa de compartimen-tar a qualificação a nível do secundário da própria prole contra as novas classes inferiores e osmigrantes, ou seja, de sabotar qualquer ultrapassagem do há muito anacrónico sistema escolarem três graus da RFA.

Quanto aos conteúdos, o império fantasmático da burguesia cultural desapareceu definitiva-mente com a terceira revolução industrial. A presunção elitista há muito que já não se refere àcapacidade de conseguir recitar Homero no texto original, mas sim a uma mistura de econo-mia política e “competência multimédia” que dá o perfil ideal para o indivíduo pós-modernode via estreita enquanto “aparelho de sucesso”; mesmo que seja apenas na nova fantasia do res-pectivo milieu. A consciência de elite sem fundamento trocou com muito sofrimento a máscaracolada à cara; ela tornou-se tão vulgarmente da economia capitalista e tão ordinariamente tec-nológica como toda a organização democrática. Mesmo os professores de latim, cientistas lite-rários e catedráticos de filosofia vão como aprendizes para junto de jovens e dinâmicos empre-sários aldrabões e desfazem-se em admiração perante maluquinhos de treze anos que gostamde se considerar virtuosos no clique de rato. A nova elite é notoriamente sem pretensões espiri-tuais e aparelhada para o curso de mercado de modo tão reducionista que as universidades “deexcelência” poderão ser consideradas quando muito como ironia objectiva. A apoteose docomplexo da indústria cultural consiste em que a elite de todos os sectores está transformadaem meras figuras de banda desenhada que se deleitam extraordinariamente no seu estado por-que já não têm qualquer critério de comparação.

Adorno e Horkheimer em 1945 ainda não podiam saber da revolução tecnológica digital nemda sua aplicação ao desenvolvimento capitalista. Mas estiveram perfeitamente em posição deprognosticar a tendência geral para a integração mediática no que respeita à indústria cultural,tal como Marx o tinha feito para a cientificização da indústria capitalista. “A televisão”, escre-vem eles, “tende a uma síntese do rádio e do cinema” e isso irá dar na “realização irónica do so -nho wagneriano da obra de arte total". Pois a “harmonização entre palavra, imagem e música”,uma vez que já não segue qualquer lei cultural própria, é apenas “o triunfo do capital investido”.

É fácil de perceber que a Internet se prepara para consumar a síntese da indústria culturalnuma escala ainda maior. As diferentes tecnologias de impressão, telefone, telefonia, rádio, ci-nema e televisão são fundidas num único complexo global. No entanto daí não emerge nova-mente uma revolução tecnológica enquanto tal, mas é a lógica (que penetra geneticamentetodo o sistema) do “trabalho abstracto”, da forma autonomizada do valor e do controle socialpor estas regido que constitui a matriz e simultaneamente o movens desta integração mediática.

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A força sintética não resulta de qualquer reflexão consciente e já nem sequer das actividadesautónomas dos indivíduos, mas emana pelo contrário da determinação heterónoma da formasocial. Por isso se condensam e agravam na Internet como novo meio central todas as contradi-ções e deficits que Adorno e Horkheimer detectaram precocemente na indústria cultural. Defacto trata-se apenas da pressentida “realização irónica do sonho wagneriano da obra de artetotal" num sentido abrangente. O que se pode assinalar em alguns aspectos essenciais.