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1 Rabiscos sobre o homem turista Pedro Bravo de Souza “Vive, dizes, no presente; Vive só no presente. Mas eu não quero o presente, quero a realidade; Quero as coisas que existem, não o tempo que as mede” Fernando Pessoa [Alberto Caeiro] 1 . I - Destino Seu sonho sempre fora visita-la, mas realmente não tinha como. Somada a falta de dinheiro, contentava-se tão somente em elaborar seus planos e deixar que eles adquirissem vida por conta própria. Contudo, tal monumento sempre lhe fascinou: sobre ele já tinha visto desde filmes a inúmeras fotos pela internet. Sentia-se insatisfeito, precisava, obrigava-se e carecia de uma viagem até lá. Ora, diziam ser a sensação do lugar inexplicável, mas – prosseguiam!, glorificante e, algumas vezes, até amendotradora. Lucas, então, sentava-se sozinho na hora do café, sempre na mesma poltrona ao lado da janela, e suspirava sonhando um itinerário perfeito. O café não tinha gosto, tampouco seu sonhar. Mas hoje é dia de feira, e o herói volta da célebre Torre de Pasárgada. Consigo, inúmeras fotos. No trabalho, uma série de questões difíceis às quais Lucas não consegue responder nada além de: “Mas, vejam essas fotos, o quão linda elas são!”. Em coro, seus colegas rebatem: “E a sensação do lugar? O que você viu de diferente lá?”. Em verdade, eles já estavam aborrecidos e exaustos. Primeiro, porque já haviam vistos as fotos pela internet colocadas no mesmo instante que Lucas lá estava. Segundo, bom, segundo, pois eles também já a haviam visitado e voltaram da mesma maneira que seu colega. Assim, após cinco minutos de uma fraca novidade presente no escritório, todos voltaram aos seus postos. Mas estão, de fato, tais postos ocupados? II - Itinerário Hoje é o dia do homem turista. O homem turista visita o mundo todo, mas sempre como estivesse em lugar algum. Armado de um celular, uma câmera, ou uma filmadora, seu olhar tornou-se metálico, pior, sem lembrança alguma de onde esteve. O homem turista vai à Pasárgada, e volta antes da partida. Quando algo se lhe apresenta como esplendoroso e o fascina, logo o vê através de uma lente para não esvair-se perante algo maior que ele. Quando uma obra de arte o faz perder sua própria identidade, logo muda para uma outra ou a vê de perto o suficiente para não vê-la. Viajante de terras longínquas, ele não sabe nada de tais terras; e, logo que o questionam sobre sua suposta viagem, sente-se incapaz de falar sem mostrar uma foto. O homem turista não sabe narrar. O homem turista é um homem sempre mediador. Caso encontra um mendigo pela rua, ou lhe dá um dinheiro ou lhe dá um insulto, ou seja, o homem turista nunca se aproxima totalmente do outro. Assim, fazer caridade foi substituída por doar dinheiro a sem saber quem através de um telefone, um celular ou ainda pela internet. Eis o tempo da caridade longínqua! Não há o que fazer, continuam, senão isto ou aquilo. Mas, o homem turista não é sozinho. Ele depende muito mais dos outros – de quem produz sua comida, de quem fabrica sua roupa, seu carro ou sua casa -, e ao mesmo tempo não sabe quem são tais outros. Ele está inserido numa multidão a qual não vê nada além

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Rabiscos sobre o homem turistaPedro Bravo de Souza

“Vive, dizes, no presente;Vive só no presente.

Mas eu não quero o presente, quero a realidade;Quero as coisas que existem, não o tempo que as mede”

Fernando Pessoa [Alberto Caeiro]1.

I - Destino

Seu sonho sempre fora visita-la, mas realmente não tinha como. Somada a faltade dinheiro, contentava-se tão somente em elaborar seus planos e deixar que eles adquirissem vida porconta própria. Contudo, tal monumento sempre lhe fascinou: sobre ele já tinha visto desde filmes ainúmeras fotos pela internet. Sentia-se insatisfeito, precisava, obrigava-se e carecia de uma viagem atélá.

Ora, diziam ser a sensação do lugar inexplicável, mas – prosseguiam!,glorificante e, algumas vezes, até amendotradora. Lucas, então, sentava-se sozinho na hora do café,sempre na mesma poltrona ao lado da janela, e suspirava sonhando um itinerário perfeito. O café nãotinha gosto, tampouco seu sonhar.

Mas hoje é dia de feira, e o herói volta da célebre Torre de Pasárgada. Consigo,inúmeras fotos. No trabalho, uma série de questões difíceis às quais Lucas não consegue respondernada além de: “Mas, vejam essas fotos, o quão linda elas são!”. Em coro, seus colegas rebatem: “E asensação do lugar? O que você viu de diferente lá?”. Em verdade, eles já estavam aborrecidos eexaustos.

Primeiro, porque já haviam vistos as fotos pela internet colocadas no mesmoinstante que Lucas lá estava. Segundo, bom, segundo, pois eles também já a haviam visitado e voltaramda mesma maneira que seu colega. Assim, após cinco minutos de uma fraca novidade presente noescritório, todos voltaram aos seus postos. Mas estão, de fato, tais postos ocupados?

II - Itinerário

Hoje é o dia do homem turista. O homem turista visita o mundo todo, massempre como estivesse em lugar algum. Armado de um celular, uma câmera, ou uma filmadora, seuolhar tornou-se metálico, pior, sem lembrança alguma de onde esteve. O homem turista vai àPasárgada, e volta antes da partida. Quando algo se lhe apresenta como esplendoroso e o fascina, logo ovê através de uma lente para não esvair-se perante algo maior que ele. Quando uma obra de arte o fazperder sua própria identidade, logo muda para uma outra ou a vê de perto o suficiente para não vê-la.Viajante de terras longínquas, ele não sabe nada de tais terras; e, logo que o questionam sobre suasuposta viagem, sente-se incapaz de falar sem mostrar uma foto. O homem turista não sabe narrar.

O homem turista é um homem sempre mediador. Caso encontra um mendigopela rua, ou lhe dá um dinheiro ou lhe dá um insulto, ou seja, o homem turista nunca se aproximatotalmente do outro. Assim, fazer caridade foi substituída por doar dinheiro a sem saber quem atravésde um telefone, um celular ou ainda pela internet. Eis o tempo da caridade longínqua! Não há o quefazer, continuam, senão isto ou aquilo. Mas, o homem turista não é sozinho. Ele depende muito maisdos outros – de quem produz sua comida, de quem fabrica sua roupa, seu carro ou sua casa -, e aomesmo tempo não sabe quem são tais outros. Ele está inserido numa multidão a qual não vê nada além

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de rostos sem olhos. O homem turista tem uma presença click. O espaço a sua volta lhe é inteiramente

estrangeiro. O homem turista não é capaz de descrever com detalhe a parede ao lado da cama em quedorme. O que dirá ele do caminho a seu trabalho? Quando vai dirigindo, o faz pensando nas inúmerastarefas a serem feitas quando chegar. Ou ainda, o faz conversando com alguém pelo seu celular.Quando vai a pé, o faz ouvindo música e escrevendo mensagens a seus amigos. O homem turista é tãoperigoso no carro, quanto como pedestre. Ambos não vêm aonde vão. Enfim, quando o faz através demetrô ou ônibus, o faz lendo qualquer coisa que seja ou fazendo um caça-palavras sem caçador. Ohomem turista nunca é no lugar em que está.

O homem turista não come o que está comendo. Uma vez sozinho, enquantocome o feijão, pensa se a carne estará boa. Enquanto come a carne, pensa se a salada estará bemtemperada. Enquanto come a salada, reclama do preço do refrigerante que não comprou. Quandotermina de comer, já tem em si toda uma lista de tarefas para fazer após ao almoço, o que não significaque as fará. Uma vez em companhia, reclama do preço do refrigerante e conversa sobre o que quer queseja. Quando termina, lamenta não ter aproveitado o almoço para organizar sua rotina ao invés deperder tempo com os outros. O homem turista só é bem preparado para um instante anterior.

O homem turista não para nunca, pois o repouso lhe traz más lembranças ouproblemas pessoais. Segundo ele, é preciso sempre estar em movimento, em uma rotina frenética, semnunca estar sozinho consigo mesmo. O homem turista passa a vida almejando ir o mais longe possívelde si. Com efeito, logo que encara algo difícil quer subitamente desaparecer. Todo obstáculo é para eleum lugar de visitas, do qual ele pode sair quando quiser. Mas o homem turista não consegue. Então, eledorme, o máximo que pode; se tem insônia, toma remédios para isso.

O homem turista não sofre no amor pois nunca ama. De relacionamento emrelacionamento ele saltita sem parar. A última gota d'água: um deles conhece demais o outro. Emrealidade, seja aberto ou fechado todo homem turista fecha um pacto de não-conhecimento em suasrelações: faça o que quiser, mas não me fale! Para ele, assim que alguém o enxerga o suficiente parasabê-lo, não há mais o que fazer. É preciso partir, e se possível apagar da memória tudo que aconteceu.O homem turista está de viagem no amor, e assim ele nunca sofre, nunca ama, e nunca viaja. Naverdade, o sofrimento é, segundo ele, uma relíquia de uma moral antiga que distanciava as pessoas.Agora, diz com orgulho, posso transitar entre todos, nada me prende! De fato, o homem turista nãoancora-se em nada, pois nunca foi ao mar.

O homem turista nunca se prende, portanto, a nada, o que é razoável. Mas ohomem turista não desiste de um sonho, porque outro se lhe apresentou como mais promissor, ou aindaporque viu que alguma de suas posições eram insustentáveis, não. O homem turista desiste de algo,pois tem medo de deixar rastros. Ora, qualquer um seguindo tais rastros poderia encontrá-lo! Mas, ondese encontra o homem turista? Cadê sua identidade?

O homem turista não conhece o presente, embora seja seu chavão aquele que dizo quanto se deve aproveita-lo. O presente para ele é ínfimo: água na mão que teima brincar de esconde-esconde. Assim, passa sua vida tentando entender sua estranha natureza, sua duração fugidia e todaviamuito mais próxima que aquela do passado e do futuro. Em contrapartida, o homem turista nuncaquestiona o que é o espaço. Seu dia é ordenado por uma sequência de horas, e jamais por umasequência de lugares. Embora seja raro, caso enxergue uma relação entre o espaço e o tempo, deimediato subordina o primeiro ao último.

O homem turista é bombardeado por informações. Daí, supõe ele, um direitopara discutir qualquer assunto que seja. Em sua época, qualquer um pode criar uma imagem dizendobobagens que num estalo ela adquire um patamar de notícia. Ao mesmo tempo, qualquer um podefilmar algo que dificilmente apareceria nas grandes mídias. Assim, o homem turista vê-se confuso,

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todavia sempre pronto para vomitar uma opinião. É seu dever, como cidadão do mundo, denunciar oque quer que seja. Daí, é um dos atingindos pelo efeito hashtag, isto é, a tentativa de destruir umpreconceito ou salvar um país repetindo um jargão que, por sua vez, fora repetidido milhares de vezes:que significado permanece num termo desse? O que, realmente, ele combate?

O homem turista assim que morre não vê problema, a vida não era seu lugarmesmo. Hoje, - sim!, hoje é o dia do homem turista, de um homem que existe no tempo, de um homemabstrato, sem concretude, sem rosto, ausente. No entanto, é preciso sublinhar: o homem turista não é ohomem.

III - Viagem

“Ah, como eu odeio velório. Veja só, todo mundo reunido para sofrer um poucopor alguém que nem sofre mais. Sabia que certo povo não chora quando alguém morre, pois issoatrapalharia o descanso de sua alma? Aqui, a gente atrapalha o descanso de almas e corpos”. Sim, éverdade. Mas, Lucas era tão novo não? Morrer assim tão cedo, que injustiça!

As vozes das quatro pessoas presentes em seu velório raras vezes seentrecruzavam, contudo, quando o faziam, era sempre um ato de extrema coragem daquele que iniciavaa conversa. Não havia o que dizer, Lucas estava morto. Só não sabiam precisar a data, ou o motivo.Mesmo assim: “E o sonho dele, você que sempre foi mais próxima, sabe de algo?”. “Ele dificilmentefalava sobre isso, mas quando falava ele comentava sobre uma viagem a uma torre, sabe. Sei que elechegou a fazer essa viagem, mas voltou tão cabisbaixo e desanimado que nem parecia ter viajado”.

“Então, talvez não era esse seu sonho, não é verdade?”. “Talvez, mas já te disse,não consigo me lembrar de outro. A maioria de nossos sonhos a gente cria quando é pequeno para fazerquando grande, mas sonhos de gente pequena não cabem na cabeça de gente grande. Mamãe, semprenos dizia isso […]. Amanhã seria a data de namoro de vocês, não é?”

“Sim, seria... ah, acho que ele me contou uma vez querer muito ser músico. Eletocava algum instrumento?”. “Tocava sim, você não sabia? Não faziam cinco anos que estavam juntos?Bem, ele sempre foi reservado mesmo. Em todo caso, Lucas amava o violino. Era possível diferenciarele antes de começar a tocá-lo e depois, sabe... Verdade! Ele disse um dia que queria muito ser umviolinista! E de fato ele se dedicou bastante. Mas de um tempo pra cá não sei se ele parou ou não, poisnunca mais o vi tocando. Você já o viu? Não também, não é? Então...”

IV - Memória

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Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem.Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem.Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem.Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem.Homem. Homem.

Turista. Turista. Turista. Turista. Turista. Turista. Turista. Turista. Turista. Turista.Turista. Turista. Turista. Turista. Turista. Turista. Turista. Turista. Turista. Turista. Turista. Turista. Turista. Turista. Turista.Turista. Turista. Turista. Turista. Turista. Turista. Turista. Turista. Turista. Turista. Turista. Turista. Turista. Turista.

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Turista. Turista. Turista. Turista. Turista. Turista. Turista. Turista. Turista. Turista. Turista. Turista. Turista.Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem.

Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem.Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem.Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem. Homem.Homem. Homem.

Homem. Turista. Homem. Turista. Turista. Homem. Homem. Homem. Homem. Turista. Turista.Turista. Homem. Turista. Homem. Turista. Homem. Turista. Homem. Turista. Homem. Turista. Homem. Homem.Turista. Homem. Turista. Homem. Turista. Turista. Turista. Homem. Turista. Homem. Turista. Homem. Turista.Homem. Turista. Homem. Turista. Homem. Homem. Homem. Turista. Homem. Homem. Turista. Homem.Turista. Homem. Turista. Homem. Turista. Homem. Turista. Homem. Turista. Homem. Turista. Homem. Turista.Homem. Turista. Homem. Turista. Homem. Homem. Homem. Turista. Homem. Turista. Homem. Turista.Homem.Turista. Homem.Turista. Homem.Turista. Homem.Turista. Homem.Turista. Homem.Turista. Homem.

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1 “Poemas Inconjuntos”. In: Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João GasparSimões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993). p. 99.