lanza, sonia maria. arte e mídia códigos mestiços (artigo)
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LANZA, Sonia Maria. Arte e Mídia códigos mestiçosTRANSCRIPT
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Arte e Mdia: cdigos mestios
Sonia Maria Lanza
Resumo: O objetivo deste trabalho refletir sobre a mestiagem e as fronteiras que ela possibilita. A
mestiagem no deve ser relacionada apenas a um conceito biolgico, tambm objeto de estudo de outras reas
porque estabelece confrontao e dilogo entre linguagens. A arte e a mdia so cdigos que permitem esse
encontro, pois esto sempre se reinventando, em constante transformao. So cdigos mestios que no se
limitam a gneros e a estilos nicos. E, para que ocorra a mestiagem, cabe memria assegurar que nenhum
dos elementos desse encontro seja dominante, mas, ao mesmo tempo, que possam dar lugar a outro cdigo
cultural.
Palavras-chave: Cdigos mestios; Mdia; Cultura,
Abstract: The objective of this paper is to reflect about the half-breed code and the frontier zones that it creates.
The half-breed term should not be related only to a biological concept, it is also an object of study in other areas.
This is because it establishes confrontation and dialogue between languages. Art and media are codes that allow
this meeting, they are always reinventing themselves and are constantly changing. Half-breed codes are not
limited to unique styles or genres. And for it to occur, memory has to ensure that none of the elements of this
meeting is dominant, but at the same time, that they give space to another cultural code.
Keywords: Half-breed code; Media; Culture.
A mestiagem o reconhecimento da pluralidade do ser no seu devir.
Franois Laplantine
Mestiagem. O estudo recente, mas a ocorrncia antiga, pois o encontro de
culturas inevitvel; no algo que passou, o que nos constitui, razo de ser, tecido de
temporalidades e espaos, memrias e imaginrios que at agora s a literatura soube
exprimir (Martn-Barbero, 2003: 271).
O historiador francs, Serge Gruzinski, em seu livro, O pensamento mestio
(2001), tambm discute a complexidade do tema e aponta vrias denominaes para o
conceito de mestiagem.
Misturar, mesclar, amalgamar, (...) etc., so muitas as palavras que se
aplicam mestiagem e afogam sob uma profuso de vocbulos a
impreciso das descries e a indefinio do pensamento. A idia a que
remete a palavra mistura no tem apenas o inconveniente de ser vaga. Em princpio, mistura-se o que no est misturado, (...), ou seja, elementos
homogneos, isentos de qualquer contaminao. (2001:42)
Amlio Pinheiro (2006:10) argumenta que:
Mdia e intelectuais, em sua grande maioria, recusam-se a analisar todo o processo
material, cultural e cognitivo da mestiagem, [...]. O termo aqui no remete a cor,
mas a modos de estruturao barroco-mestios que acarretam, pela confluncia de
materiais em mosaico, bordado e labirinto, outros mtodos e modos de organizao
do pensamento. Tais modos no binrios desconhecem o dilema entre identidade e
oposio
Para que se possa elucidar melhor o conceito de mestiagem, Martn-Barbero
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(2003) reflete sobre identidade cultural dos povos latino-americanos e dispe que os
processos civilizatrios se tornam cada vez mais fortes quando vrias linguagens se
combinam. O autor enfatiza que a Amrica Latina o espao de confluncia cultural por
excelncia, portanto o conceito de identidade deve ser refletido como um processo
permanente em que h diferenas que se confluem.
No Brasil, particularmente, os elementos culturais heterogneos so os pilares de
nosso imaginrio cultural e interagem continuamente.
Os estudos sobre a cultura, mais especificamente sobre a cultura popular, se
intensificaram na dcada de 60. O conceito de hegemonia possibilitou pensar a questo sobre
a dominao social no como imposio a partir de um exterior e sem sujeitos, mas como
um processo no qual uma classe hegemoniza, na medida em que representa interesses que
tambm reconhecem de alguma maneira como seus as classes subalternas (Martn-Barbero,
2003:116). No h hegemonia, h liderana cultural-ideolgica, e nem toda assimilao do
hegemnico pelo subalterno signo de submisso (idem:119)
As reflexes de Martn-Barbero e tambm de Canclini sobre identidade cultural
so fundamentais para compreender a cultura latino-americana. Para Canclini, a globalizao
gera o fenmeno da hibridao1 cultural, isto , processos socioculturais que se misturam
formando novas estruturas. Portanto no h identidades autnticas, puras.
Ter uma identidade seria, antes de mais nada, ter um pas, uma cidade ou um bairro,
uma entidade em que tudo o que compartilhado pelos que habitam esse lugar se
tornasse idntico. Aqueles que no compartilham constantemente esse territrio,
nem o habitam, nem tm, portanto, os mesmos objetos e smbolos, os mesmos
rituais e costumes, so os outros, os diferentes (1998:190).
Martn-Barbero (2003) considera ainda que no processo de comunicao, os
receptores tm papel fundamental e, como agentes sociais que so, deve-se levar em conta sua
vivncia. O terico colombiano2 enfatiza que, como a Amrica Latina um espao de
fronteiras, de multiplicidade, de temporalidades, em que a mestiagem genuna, a identidade
aqui tida como uma representao das diferenas ligada ao mercado.
Para Castells, a experincia de um povo caracteriza sua identidade. Ele distingue
Estes so estruturados por normas que as instituies impem na sociedade e a importncia
relativa desses papis no ato de influenciar o comportamento das pessoas depende de
negociaes e acordos entre indivduos e essas instituies e organizaes. (2006:22)
1 Canclini prefere o termo hibridao a sincretismo e mestiagem, porque acredita ser mais abrangente e referir-
se a diversas mesclas interculturais, no apenas raciais, como se costuma associar o termo mestiagem. (1998:
19) 2 Nascido em 1937, na Espanha, o autor se diz colombiano de corao; vive neste pas desde 1963.
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Segundo o autor, os papis sociais so efmeros e a identidade faz parte das pessoas.
No difcil concordar com o fato de que, do ponto de vista sociolgico, toda e
qualquer identidade construda. A principal questo, na verdade, diz respeito a
como, a partir de qu, por quem e para qu isso acontece. A construo de
identidades vale-se da matria-prima fornecida pela histria, geografia, biologia,
instituies produtivas e reprodutivas, pela memria coletiva e por fantasias
pessoais, pelos aparatos de poder e revelaes de cunho religioso. Porm, todos
esses materiais so processados pelos indivduos, grupos sociais e sociedades, que reorganizam seu significado em funo de tendncias sociais e projetos culturais
enraizados em sua estrutura social. (Castells, 2006: 23)
As consideraes acerca da identidade cultural permitem estabelecer relaes com
a teoria da mestiagem. Para Laplantine e Nouss, identidade cultural o resultado de
misturas e cruzamentos feitos de memrias, mas, sobretudo de esquecimentos, (...) e da forma
como a identidade cultural frequentemente apreendida, no existe. (s/d: 77)
Assim, a mestiagem enquanto conceito faz-nos pensar a crise do mundo
contemporneo, a falta de identidade. Os conceitos de que mestiagem reunio e
agrupamento so conceitos inadequados e insuficientes atribudo ao termo.
A princpio quando se fala em mestiagem, principalmente para leigos quanto ao
tema, o termo pode significar cruzamentos genticos, mas no s isso, o conceito amplo,
como j tem sido explicitado acima, e, portanto, estendido para outras reas do conhecimento
como a lingustica, a antropologia, arte, e outros, como cruzamentos culturais.
Enfim, a mestiagem a mistura de diversas culturas e no se refere somente a
etnias, aborda processos culturais e h um dilogo que revela a natureza barroca da cultura,
especificamente da cultura latina.
A dinmica do processo mestio
Na mestiagem, a troca, a mudana e a aceitao de outros elementos contribuem
para criao de um sistema aberto, e a memria e as informaes sincrnicas transformam os
elementos da cultura. A mestiagem um processo dinmico e constituda como
uma trama relacional, conectiva, cujos componentes no remontam saudosa e
solitariamente a instncias aurorais perdidas, mas sim festejam o gozo sinttico
dessa tenso relacional que se mantm como ligao mvel em suspenso. Aquilo
que pretende permanecer como diferena, fora das texturas fronteirias em trnsito,
corre o risco de transformar-se em homogeneidade carrancuda, repetitiva e
totalitria. (Pinheiro, 2006: 10).
A mestiagem no um processo simples de ser absorvido e no surpreende que a
complexidade e a mobilidade das mesclas deem a ideia de algo desordenado. a constante
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presena do aleatrio e da dvida que vai conferir mestiagem seu carter de
impalpabilidade.
Todo discurso uma forma particular e cultural de traduo, conforme Machado,
a histria textual se firma como uma operao tradutria (2003: 177).
Alguns exemplos a seguir elucidam que a mestiagem no se refere somente
gentica, mas tambm a outras linguagens, outros cdigos como o haicai, o hip hop. A
mestiagem est presente tambm na culinria, na dana, na msica, na arquitetura, na mdia,
e tantas outras linguagens que no ser possvel apresent-las todas aqui.
O haicai, por exemplo, poesia de origem japonesa com estrutura definida3 permite
infinitas possibilidades de traduo. Tal composio fundamentada nas observaes de uma
cena que acontece na natureza ou objeto natural. O poema, ao ser traduzido para o ocidente,
perde algumas de suas caractersticas, entretanto incorpora outras e revela a presena da
cultura para a qual o texto traduzido. A traduo um mecanismo fundamental para
compreender a interveno semitica da cultura. A formulao desse mecanismo decorre da
anlise da compreenso do encontro entre culturas como experincia dialgica e, portanto,
semitica (Machado, 2003: 28) e os encontros entre linguagens, entre culturas, enfim
traduo, so caractersticas da mestiagem que se aplicam bem ao haicai.
Abaixo, um dos haicai de Bash4, provavelmente composto em 1686. Em
japons, teramos:
furuike ya/ kawazu tobikomu/ mizu no oto.
Literalmente: O velho tanque - Uma r mergulha. Barulho de gua.
O velho tanque
Uma r mergulha,
Barulho de gua.
3 O haicai um poema de 17 slabas em trs linhas de 5, 7 e 5 slabas mtricas. O poema possibilita um momento
de reflexo e de descoberta ao leitor. Originalmente, continha um kigo,palavra que se refere a uma das estaes
do ano, que indicava quando foi escrito. O tema principalmente cenas que acontecem na natureza. Disponvel
em http://www.sumauma.net/haicai/haicai-oquee.html. Acesso em 21 de outubro de 2007. 4 Traduo de Paulo Franchetti e Elza Di.
Imagem disponvel em http://www.kakinet.com/caqui/umhaiku.shtml. Acesso 21 de outubro de 2007.
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A traduo evidentemente no reproduz o texto. O processo de traduo sofre
interferncias da cultura na qual o texto ser traduzido, portanto seria inapropriado exigir
fidelidade. Quando muito, o que podemos ter uma verso da ideia original, to fiel quanto
consiga encontrar correspondncias culturais entre os dois ambientes.
Leminski diz que o processo de traduo dos poemas de Bash um severo
exerccio de linguagem. Basta ver a tessitura material, o jogo fontico, no plano do
significante dos haicais5. V-se que realmente no um processo simples, o que est de
acordo com a ideia de Machado, para quem a traduo cumpre uma funo textual
modelizante ao transferir a estruturalidade potica de uma lngua para outra completamente
diferente. Evidentemente, a traduo cria uma informao nova (2003:179)
Nos exemplos a seguir, nota-se na forma o cuidado com as slabas e com a
estrutura fsica dos poemas:
VELHA
LAGOA
UMA R
MERG ULHA
UMA R
GUGUA
(Dcio Pignatari citado em Matsuo Bash, de Paulo Leminski, 1987:46)
velha lagoa
o sapo salta
o som da gua
(Paulo Leminski Matsuo Bash: A Lgrima do Peixe, 1983:20)
5 Disponvel em planeta.terra.com.br/arte/PopBox/kamiquase/ensaio4.htm. Acesso em 21 de outubro de 2007.
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nos objetos da cultura que podemos perceber o esforo feito para traduzir as
inter-relaes que os mesmos criam ao se mesclarem. impossvel afirmar a origem dos
vrios elementos uma vez amalgamados.
Outro exemplo da interao a mestiagem que se d no Hip Hop (ou na cultura
Hip Hop), movimento iniciado na dcada de 1960, nos Estados Unidos e construdo a partir
do encontro do rap6, instrumentao dos DJs, do break7 e do graffiti.8. Foi uma forma de
expresso, com letras muitas vezes agressivas, uma forma de reivindicao da periferia.
Neste processo, esto presentes corpos negros e latinos, grupos que no eram
apoiados pelo sistema e procuravam uma forma de produzir uma cultura local que lhes
permitissem visibilidade. O processo de mestiagem cultural a se encontra presente,
provocando as mobilidades, enriquecendo a cultura local. A contaminao um fato bastante
presente na construo da Cultura Hip Hop. A dana do Hip Hop no se preocupa com razes
de dana original; seus passos no so coreografados, ela constituda de passos inventados.
O movimento Hip Hop, no Brasil, j uma adaptao da informao que aqui
chegou por volta de 1980. uma traduo, pois nenhuma informao transmitida tal qual
foi pensada; so necessrios os acordos com o ambiente e nele acontecem as transformaes.
O espao se faz presente, pois, como afirma Santos, o conjunto dos homens que nele se
exercem como um conjunto de virtualidades de valor desigual, cujo uso tem de ser disputado
a cada instante, em funo da fora de cada qual (2006: 317).
Para Laplantine e Nouss (1991; s/d) a arte mais prxima da mestiagem a
msica, pois nela h cruzamentos de vozes, harmonia, acordes, msicas que recorrem
matemtica, cantos dos pssaros, sons da voz humana, etc.
Vale lembrar que encontros culturais desenham movimentos que esto na base
formadora de toda e qualquer cultura, portanto exploses culturais so momentos de enorme
imprevisibilidade que levam ao florescer de novas possibilidades no cenrio prolfero das
representaes culturais.
Machado (2007: 17) afirma que:
para a abordagem semitica, trata-se da constituio de sistemas de signos que,
mesmo marcados pela diversidade, apresentam-se inter-relacionados num mesmo
espao cultural, estabelecendo entre si diferentes dilogos graas aos quais o choque
se transforma em encontro gerador de novos signos.
6 Sigla para rythm-and-poetry: msica popular, urbana, declamada rpida e ritmada, mais do que cantada.
(Houaiss; Villar, 2001:2383) 7 Arte corporal da cultura Hip Hop. Executada ao som de msica rap por rapazes adolescentes nas ruas,
caracterizada por movimentos improvisados de grande virtuosismo atltico. (idem, 509) 8 Do italiano graffito, refere-se a marcas feitas em muros. Forma de expresso que encontrou uma sociedade
aberta contracultura. (D.O. Leitura. N. 4, abril de 2000:42-50)
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Os exemplos acima e outros que esto presentes na cultura latino-americana
(culinria, moda, lngua, cidades, arquitetura, etc.) confirmam o enfraquecimento das
fronteiras e permitem comprovar o cruzamento de linguagens. Ou seja,
A mescla de linguagem e tradues interculturais sempre foi condio fundante das
prticas produtivas no nosso continente, desde Colombo: absolutamente necessrio
saber distinguir as possibilidades de acelerao, alastramento e acumulao dos
sistemas tecnodigitais, de um lado, das estruturas que, por formao histrica e
social, j vinham sendo mestias organicamente, da culinria at os grandes espaos
urbanos. (Pinheiro, 2006:17)
Cdigos mestios na mdia: o fato na fico
A mestiagem, conforme j o dissemos, so cruzamentos, so trocas, so cdigos
que interagem e transformam. Na mdia, os cdigos se encontram, e a construo da
mensagem submetida aos acasos da transmisso e da compreenso. A mdia possui uma
linguagem que permite todos os encontros. Um deles que comprova essas caractersticas sob o
signo da mestiagem a telenovela.
As tragdias, comportamentos e os fatos so pauta em todos os tempos, em todas
as produes humanas. Na mdia no diferente. Diferente a maneira de contar estas
histrias. Atualmente a fantasia parece ser mais real que a realidade (Boorsstin apud Gabler,
1999: 11), e o factual e o ficcional se mesclam ao narrar a notcia. um processo de traduo
dinmica em que os cdigos partilham e transmutam signos e isto facilita uma diluio de
fronteira e possibilita um cruzamento de linguagens.
Um exemplo na televiso em que se pode comprovar que no h sistemas isolados
foi a telenovela Senhora do Destino (2005), da Rede Globo. O autor, Aguinaldo Silva,
declarou9 que a trama teve origem no Caso Pedrinho, como ficou conhecida a histria do
recm-nascido que foi roubado numa maternidade, em Braslia, fato com grande repercusso
na mdia.
Em 21 de janeiro de 1980, Pedro Braule Pinto foi levado do hospital onde nascera.
Seus pais, Maria Auxiliadora Braule (Lia) e Jayro Patajs Braule Pinto, no tiveram
informaes sobre o sequestro e o crime foi arquivado em 1997. Em outubro de 2002, por
meio de uma denncia annima de uma pessoa ligada famlia adotiva do menino (registrado
com o nome de Osvaldo Martins Borges Jnior), o garoto foi localizado e em novembro de
2002, provou-se por exame de DNA que ele era Pedrinho, o filho de Dona Lia. A Folha de
9 Disponvel em http://observatrio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos, acesso em 19 de fevereiro de 2005.
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S.Paulo publicou o fato em 15 de novembro de 2002 como Entenda o caso, anlogo a
resumo de captulos de telenovelas.
A protagonista da telenovela Senhora do Destino (2005) tambm tem a filha
roubada ainda pequena em um hospital, no Rio de Janeiro. A me de Pedrinho encontrou-o 16
anos depois e na telenovela a personagem Maria do Carmo tambm reencontra a filha, mais
ou menos 22 anos depois. Neste caso, a arte imita a vida, salvo as diferenas, evidentemente.
Este drama da vida foi amplamente divulgado pelos jornais. Matrias com ttulo
A verdadeira histria da mulher que roubou a vida de um filho10, ou Me adotiva de
Pedrinho chora e nega crime11, entre outros, assemelhavam-se com os captulos de novelas,
tambm publicados, toda semana, nos jornais.
O caso Pedrinho, veiculado nos jornais, anlogo narrativa novelesca. O
ombudsman da Folha de S.Paulo observa e comenta, na poca, a estrutura novelesca, ao
escrever:
(...) Enumerem-se seus ingredientes humanos: um casal que teve o filho subtrado na maternidade e que aps 16 anos o localiza a partir de um exame de DNA, um jovem que, duas semanas depois de perder o pai (adotivo) por causa de
um cncer, v sua identidade e sua filiao brutalmente questionadas, uma me
(agora viva) com complicada trajetria posta, de repente, ante uma situao na qual
pode perder o filho (adotivo) e/ou, talvez, ir para a priso.12
O caso Pedrinho13, assim como a telenovela Senhora do Destino, teve um final
feliz. Mas a grande maioria das tragdias no o tem. E a imprensa noticia fatos sem gran
finale, porque depende do acontecimento do dia-a-dia para publicar.
V-se que o caso Pedrinho encontra, em outro territrio, espao de interao, de
mestiagem. A notcia apresenta informaes pautadas no relato do cotidiano real
evidentemente, mas transformadas em verdadeiras novelas, outro cdigo que no
caracterstico do jornalismo.
Cdigos mestios na mdia: a fico e o fato
A telenovela, gnero ficcional que est enraizado na cultura brasileira, tem uma
audincia considervel e a programao televisual vem, nos ltimos anos, utilizando muito
10
Revista Selees, em www.revistaselecoes.com.br, acesso em 02 de novembro de 2005. 11
Folha de S.Paulo, Caderno Cotidiano, C-1, de 16 de novembro de 2002. 12
Caderno Brasil, p. A-8 de 17 de novembro de 2002. 13
Vilma Martins Costa foi condenada, em 24 de agosto de 2003, a oito anos e oito meses de priso, em regime
semi-aberto. Fonte: http://conjur.estadao.com.br/static/text/3778,1, acesso em 24 de maro de 2006.
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esse cdigo. De origem mestia, porque utiliza de vrios cdigos, verbal, visual, ultrapassa
fronteiras, numa dinmica constante de expanso e transformao. Isto porque tambm nos
programas jornalsticos, em que a regra veicular a informao a partir da referencialidade do
fato, os cdigos da telenovela, dramaticidade, cortes, ganchos, por exemplo, passam a ser
paradigma; o trabalho de expresso corporal aliado s vozes dramatizadas do
apresentador/jornalista a mescla de noticiar e ficcionalizar o fato
Enquanto os noticirios se enchem de fantasia tecnolgica e se
espetacularizam a si prprios, nas telenovelas e programas dramticos que o
pas se relata e se deixa ver. Enquanto, nos noticirios, o vedetismo poltico
ou farsesco se faz passar por realidade ou se transmuta em hiper-realidade essa que nos escamoteada pela empobrecida e dramtica realidade que
vivemos -, nas telenovelas, nas dramatizaes semanais, onde se faz
possvel representar a histria do que acontece, suas misturas de pesadelo
com milagres, as hidridaes de sua transformao e de seus anacronismos.
(Martn-Barbero; Rey, 2001:161)
Um exemplo de mestiagem em programas, chamados jornalsticos, na televiso
o Globo Reprter14
, da Rede Globo, em que aborda temas da atualidade, aventura,
comportamento e cincia. Nos episdios especiais, quando acontecem fatalidades e casos que
chocam o pas, o reprter o mediador entre o acontecimento e a notcia, num cruzamento de
cdigos.
A notcia da morte da atriz Daniela Perez, ocorrida em dezembro de 1992, tornou-
se pauta para o programa. Na poca, janeiro de 1993, o apresentador Celso Freitas, intercala
fatos da vida real da atriz a cenas de Yasmin, personagem de Daniela na novela De corpo e
Alma, de Glria Perez, veiculada em 1992 e incio de 1993. O ator Guilherme de Pdua
atuava como Bira, par romntico da atriz. Isto facilitou a dramatizao do fato na TV e
tambm em mdia impressa, criando uma mescla de personagens, vtimas, viles e
melodramas; enfim, uma fuso entre o fato e a fico: os cdigos mestios.
Fatos que foram ficcionalizados aparecem tambm no cinema e no jornalismo
literrio. O livro Crimes moda antiga (2004) tem como subttulo contos verdade e
apresenta releituras de fatos que marcaram o jornalismo brasileiro, recontando crimes que
ocorreram entre 1906 a 1930. No so relatos dramatizados, como tantos outros que temos em
outras mdias, mas histrias objetivas com uma fragmentao semelhante a novelas. Ele
apresenta depoimentos, documentos, desenhos e pequenos captulos que atraem o leitor.
14
O programa foi veiculado pela primeira vez em abril de 1973. Atualmente com apresentao de Srgio
Chapelin, est no ar s sextas-feiras, s 22h00 aproximadamente, com durao de 45 minutos, dividido em cinco
blocos. Fonte: www.globo.com/globoreporter, acesso em 24 de maro de 2006.
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Um dos contos refere-se ao crime da mala15 que ele nomeou de A mala sinistra. Segundo
Xavier (2004: p. 139), o caso teve tanta repercusso na poca que, dois anos depois, foram
produzidos trs filmes brasileiros, A Mala Misteriosa, de Paulino Botelho; os outros com o
mesmo ttulo de A Mala Sinistra, de Marc Ferrez, e de Jos Labanca.
Nestes fatos, tragdias, e tambm em tantas outras que cotidianamente
lemos/vemos, difcil separar os elementos caractersticos da notcia, daquilo que foi
reescrito e traduzido.
Cdigos mestios na mdia: a fico no fato
A mestiagem s existe enquanto exterioridade e alteridade e, por isso, no existe
em estado puro; a prpria ideia de mistura supe elementos que so anteriores ao processo em
si. Quando h justaposio de elementos sem se misturarem, no h um processo mestio. Ao
contrrio, para que ocorra um processo de mestiagem, preciso que haja mescla de
elementos. Entretanto, nessa mistura, as diferenas no desaparecem e nem h perdas.
Laplantine e Nouss enftico ao dizer que, na mestiagem, no h processo de identificao
(...) e no sendo identidade, tambm no alteridade (s/d: 81-82), os elementos entram em
acordo.
O pensamento da mestiagem um pensamento da mediao, da multiplicidade
nascida do encontro. Neste sentido, a mestiagem :
mais auditiva do que visual, mais musical do que pictrica. Enquanto num quadro,
posso distinguir as suas diferentes partes justapostas no espao, no caso de uma
sinfonia tudo me dado ao mesmo tempo, embora esse todo no pare de
transformar, Da mesma forma, a narrativa muito mais adequada para dar conta da
mestiagem do que a descrio. O puro, o simples, o elementar, e mesmo a mistura
podem ser descritos, mas a mestiagem permanece indescritvel, (...) embora no
seja inenarrvel, pois contar contar evolues e transformaes (idem, s/d.: 84).
A narrativa est no domnio da temporalidade, da organizao sintagmtica. A
mestiagem tambm se d numa temporalidade na qual no se distingue o passado, o presente
ou o futuro em estado puro.
A narrativa se constitui na tenso de duas foras. Uma a mudana, o inexorvel
curso dos acontecimentos, a interminvel narrativa da vida ( a histria), onde cada instante se apresenta pela primeira e ltima vez. o caso que a segunda fora tenta
15
Notcia veiculada em 02 de setembro de 1908, no jornal O Estado de S.Paulo. Fonte: Nosso Sculo, V. I,
Editora abril, p. 63. O jornalista narra o fato do ponto de vista de Miguel Traad, ou seja, em primeira pessoa. a
histria desse imigrante rabe de Beirute que, aos 23 anos, enforcou e esquartejou o corpo de seu antigo patro
Elias Farhad. Ele alegou vingana, mas confessou posteriormente que o antigo patro atrapalhava sua relao
com a esposa da vtima.
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organizar; ela procura dar-lhe um sentido, introduzir uma ordem. Essa ordem se
traduz pela repetio (ou pela semelhana) dos acontecimentos: o momento presente
no original, mas repete ou anuncia instantes passados e futuros. A narrativa nunca
obedece a uma ou a outra fora, mas se constitui na tenso das duas (Todorov,
1979:21-22)
O jornalismo informao, contar os fatos, texto narrativo. Ao narrar os
acontecimentos, o reprter no pode inventar ou criar os fatos, deve relat-los de forma
referencial, como trazem os manuais de redao jornalstica.16
.
Entretanto, a notcia e tambm algumas reportagens vm sendo publicadas de
forma diferente, nas ltimas dcadas: so informaes pautadas no relato do cotidiano real
evidentemente, mas veiculadas como se fossem fico; e so crnicas, gnero que figura entre
a fico e o jornalismo, alm de casos em que as reportagens se mesclam aos cdigos da
fico. A crnica no se refere necessariamente a uma ruptura dos gneros, e sim a
transformaes, dilogos, recriao, potica de mestiagem.
Haroldo de Campos enfatiza esta questo, ao abordar o problema da relao entre
os gneros na literatura. Ele observa que a ruptura dos gneros no est ligada somente aos
produtos da cultura popular e acrescenta que o hibridismo dos gneros, no contexto da
revoluo industrial (...) passa a se confundir tambm com o hibridismo dos media, e a se
alimentar dele (1999:285). Citando McLuhan, Haroldo de Campos acrescenta,
o hbrido ou o encontro de dois media um momento de verdade e revelao, do
qual nasce a forma nova (...) O momento do encontro dos media um momento de
libertao e de resgate do entorpecimento e do transe que eles costumam impor aos
nossos sentidos (1999: 286).
O jornalismo texto da cultura, o encontro de sistemas sgnicos. um espao de
semiose, de fronteira e como tal tem a capacidade de reconstituir, de restaurar lembranas da
historia da cultura e da humanidade.
Alm de condensar outros cdigos oriundos de vrias mdias, como o grafismo,
fotografia, a infografia17
, diagramao, cores, etc., que so incorporados para compor o dirio,
h as linguagens que foram se adequando ao processo de produo e recepo do jornal.
Amlio Pinheiro sintetiza:
A mobilidade em mosaico do jornalismo impresso aproveitou-se, neste continente,
de uma sorte de montagem sinttica das culturas em ritmo rpido, aptas para incorporar os agregados metonmicos provenientes dos mais diversos cdigos e
linguagens. Trata-se de processos de produo e recepo desdobrados, em
16
Conforme Novo Manual da Redao Folha de S.Paulo. (1987). 17
Gnero jornalstico que utiliza recursos grfico-visuais para apresentao sucinta e atraente de determinadas
informaes. (Houaiss, 2001: 1615) (Grifo meu)
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interaes mltiplas, pelo carter migrante, mestio e solar da sociedade (2004: 13).
Refletir estes cruzamentos e transformaes pelo qual o texto jornalstico
manifesta permite comprovar a existncia do factual e o fictcio, de cdigos mestios.
Outro fato ocorrido em 2006, tambm colocado aqui para exemplificar como as
linguagens se utilizam de outros cdigos e, portanto, so cdigos mestios. O artigo
Memrias pstumas de um cadver em Ipanema, de Moacyr Scliar, publicado no jornal Folha
de S.Paulo em 16 de janeiro de 2006, Caderno Cotidiano, refere-se ao fato de um homem
ter sido encontrado morto na praia de Ipanema, Rio de Janeiro. O texto simula um depoimento
pessoal, como se o cadver estivesse catarticamente ali, naquela praia, e a morte, to
inaceitvel pelo homem, fosse amenizada: para ele e para ns, pelo prazer de estar onde, em
vida, talvez nunca tivesse estado.
No ttulo, o cronista alude ainda obra de Machado de Assis, Memrias pstumas
de Brs Cubas, nico romance no qual o autor um defunto defunto-autor - e ironicamente
narra sua vida iniciando pela prpria morte. Aqui tambm, um rapaz vai narrar brevemente
sua vida ao morrer.
Tambm no texto de Scliar, o defunto-autor no se queixa do seu destino.
Consegue realizar seu sonho, embora tenha sido somente depois da morte: estar na praia de
Ipanema, no meio de gente bonita e rica. O narrador nasceu e cresceu na favela do Vidigal e
sempre quis estar na to famosa praia, mas a dura vida levou-o para o trfico, nico jeito de
arranjar dinheiro para ajudar o pai paraltico e a me diabtica. O inevitvel aconteceu:
desentendeu-se com a gangue e foi morto a pauladas. Jogado no mar, chegou praia. Acabei
realizando meu sonho. (...) Meu sonho? A praia de Ipanema.
A dedicatria18
no aparece no artigo de forma clara, mas, assim como no
romance machadiano, a ironia predominante. Realmente, no posso me queixar do
Destino. A sorte no foi to madrasta, acaba realizando o sonho de estar junto de jovens em
frias - direito de todos (ser?) -, numa praia da zona sul do Rio de Janeiro, com sol e ser a
personagem principal. Tambm no falta a digresso, caracterstica machadiana, no ltimo
pargrafo do texto:
Minha prece foi ouvida e agora estou aqui, estendido na areia. verdade
que cobriram meu corpo com um plstico, mas, considerando que estou sem
protetor solar, at que no foi m ideia. E, por outro lado, sinto-me feliz
18
Memrias pstumas de Brs Cubas traz a dedicatria: Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadver dedico como saudosa lembrana estas memrias pstuma. Obra inicialmente publicada em folhetim, em 1880, depois compilada em livro e publicada em 1881. Em primeira pessoa, narrada pela personagem de
Brs Cubas que relata ua vida, em tom irnico, a comear pela dedicatria.
-
pelo fato de que minha presena no incomoda ningum. As pessoas
continuam ao sol, jogando bola, conversando, tomando banho de mar.
Ainda h pouco disse um rapaz, perto de mim: "Fazer o qu? As frias so
curtas e temos de nos divertir de qualquer jeito". Voc est certo, meu
jovem amigo. No s as frias so curtas, a vida tambm. Agora, Ipanema
sempre um consolo. E um bom assunto para memrias pstumas (Folha
de S.Paulo, 16/01/2006: C.2)
O texto jornalstico traz, alm do ttulo, uma foto que tem como texto legenda
Menina passa prximo a corpo que apareceu boiando e ficou encalhado na praia de Ipanema,
no Rio. No se pode anular o contexto e a traduo do texto de Machado de Assis, o que
reafirma a noo de mestiagem de Laplantine e Nouss, para quem uma realidade
complexa cujos componentes mantm a sua integridade, ao mesmo tempo que pressupe
mobilidade. Encontros, dilogos. (s.d: 8; 16)
A crnica informa e tambm consegue misturar histria e fico. Parece haver um
esgotamento dos gneros e dos modos narrativos, pois as fronteiras deslocam-se entre o
objetivo e o subjetivo (Laplantine e Nouss, s.d: 102). Um texto o produto de outro
diferente, e acaba sendo a fuso de vrios outros.
Apresentar aqui a mestiagem em textos diferentes foi o nosso propsito. A
mestiagem no se limita a fronteiras territoriais, ela est presente em textos em que
linguagens e cdigos diferentes se amalgamam, formando outros textos. Assim,
Todas as artes se desenvolvem em relao com outras artes: o artesanato migra do
campo para a cidade; os filmes, os vdeos e canes que narram acontecimentos de
um povo so intercambiados com outros. Assim as culturas perdem a relao
exclusiva com seu territrio, mas ganham em comunicao e conhecimento.
(Canclini, 1998: 348)
Alm disso, a cultura processo e se constitui subjetivamente em relao a outros
cdigos e as prticas culturais so fundamentais para sua continuidade e sua legitimidade. E a
mescla de linguagens sempre foi fundante dessas prticas. H contaminao entre linguagens
e um processo dinmico barroquizante em dobra e curva, com
os smbolos de linguagem, arbitrrios, costumeiramente acumulados pelo
conhecimento abstrato, j no nos servem muito. Esboando de modo abrupto a
complexidade do novo fenmeno das linguagens na Amrica: desde a descrio de
uma fruta de uma igreja, os signos se agigantam luminosos na direo das coisas
que nunca podero ser, porm degustam suas comissuras; e as palavras desdobram
seu arsenal mestio-imigrante numa sintaxe descentrada, proliferante e amplificante,
em que se perde o fio e o flego (Pinheiro, 2002:334).
SONIA MARIA LANZA doutora e mestre em Comunicao e Semitica, pela
PUC-SP, possui ps-graduao em Literatura Brasileira e graduao em Letras pela
Universidade So Judas Tadeu. professora no Centro Universitrio Fieo -
Unifieo/SP na rea de Comunicao, nas disciplinas: comunicao e expresso,
-
cultura, redao publicitria. Coordena os Projetos experimentais - trabalho de
concluso de curso, em Publicidade e Propaganda.
E-mail: [email protected]
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