laputa - janer cristaldo

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Laputa (1887)Janer Cristaldo (1947— )

EdiçãoeBooksBrasil.org

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©2000­2006 Janer [email protected]

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Podemos confrontar nossaperspectiva de forasteiros

com a dos nativos e semearassim um inquietante mal­estar

mental que com freqüência resultaprodutivo e benéfico para ambos.

Leszek Kolakowski

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Cansado. Não da vida. Mas de cidades. Da

agitação, ruído, competição. Da violência dosgrandes centros. Das metrópoles onde a lutapelo dinheiro e fama transformava os sereshumanos em máquinas de louvar e obedecer.Era uma fuga, não podia negar. Tivera um diaveleidades de literato, fora buscar luzes nosgrandes centros e, se luzes encontrara, nãosuportara seu fulgor. A luta por um lugar sob osholofotes era tão cruenta e a paga, se pagahouvesse, tendia a apresentar­se apenas navelhice, quando certamente já estaria corroídopelo desgosto de viver. Não, decididamente não.Suas carnes feneciam a olhos vistos, mais pelafalta de sol, talvez, do que por falta de exercício.Ou mudava agora de vida, ou nunca mais.

Marília, mar, amor...São curiosas as circunstâncias que nos

levam a certos lugares — pensou com seusbotões — a tal ponto que às vêzes parecemosandar sempre atrás de palavras, não deparagens. A opção pela ilha, talvez a devesse emparte à palestra de um professor argentino sobrea literatura local. O conferencista — de cujosdentes salientes uma ouvinte, segredando à suavizinha, gostaria de fazer um colar — analisava“Singradura”, conto de um escritor ilhéu, ecomeçara suas considerações com aquelaaliteração que evocava paz, bucolismo, princípiodos tempos. Navegar sempre num mesmo rumo.Mesmo que rumo à morte? Sentada sobre umrochedo, olhando o mar, Marília esperava oamor. “Mar e tempo: pedra e nada; e também

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Marília, no curso de milênios, pela só integraçãonas poucas horas de afogada fará sua partepoderosa no seio das marés. Nela sobreviveráseu cheiro virgem e sua espera calada. PoisMarília é mar amantíssimo, de nascença, pordecreto imperioso de loucura... Vocação precocede princesa!”

Não menos evocativa era a réplica docandidato a amante: “Marília, por minha honra ebandeira, atracarei meu barco nesta Ponta daGalheta muito mais depressa do que é humano,e meus tesouros te cairão aos pés numa tardenunca tão luminosa em teu país”. Não queesperasse encontrar na ilha rendeira tãoromântica nem pescador tão camoniano, mas seescritores são os homens que sonham pelacomunidade, lá certamente encontraria —esperava encontrar — aspirações outras que nãoaquela busca febril de dinheiro e status,enfermidade que roía a alma das cidades. Depoisde Paris, nada lhe faria tão bem ao espírito doque uma ilha vagarosa, povoada de pescadores erendeiras. Chegara até mesmo a criar umafrasezinha enquanto fazia suas malas paravoltar ao Sul, que não ficaria mal em umromance: onde tem rede tem renda. Só que afrase parava ali, dela nada se concluía. Nãoficaria mal em um cartaz promocional da ilha.Mas e daí?

Ponta da Galheta. A praia existia no mapa.Lá atracaria seu barco.

O sonho estava morto, pensou. O ônibusdescia quase surfando a última das sete curvas.Não que as tivesse contado. Um passageiro

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informava ao vizinho, certamente forasteirocomo ele, que os nativos chamavam aquelaelevação de Morro das Sete Curvas, enquanto agente de fora — ouvia a expressão pela primeiravez e sentiu­se incluído, à revelia, entre estes —preferia chamá­la de Morro do Ó. Ninguémconseguia conter a exclamação ao vencer o cumee deparar­se bruscamente com o festival deverde e azul oferecido pela lagoa, mar emontanha. Sim, o sonho estava morto. Aquelemorro, fosse do Ó ou das Sete Curvas, pareciasepará­lo física e definitivamente de seusprojetos passados, morto e bem sepultado estavao escritor. Iria tratar de cultivar seu jardim. “Omundo é para quem nasce para o conquistar enão para quem sonha que pode conquistá­lo,ainda que tenha razão.” Tinha acuidade, oPessoa. Uma incapacidade atroz de concluirqualquer trabalho o fazia escorregar rumo aofundo de um poço de álcool e desespero, semmuita esperança de volta à superfície. Tinha nasgavetas centenas de páginas escritas, dezenas deprojetos de conto ou romance, mas em nenhumconseguia colocar um ponto final. Deveriaexistir, certamente existia, na área dapsiquiatria, uma definição para aquela doença, epor certo não seria ele o único a portá­la. Melhorentão desistir de escrever e parar de morrer.Viva a vida, ou o que resta dela, e foda­se aliteratura. Quem não sabe ensina: seriaprofessor. De literatura.

O ônibus margeava a Lagoa da Conceição,janelas sempre fechadas, o que o transportou auma antiga angústia, tão antiga que talvez fosse

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a primeira, pelo menos a primeira posta nopapel. Aquele conto, se é que era conto, por azarmerecera um prêmio, o que o levara a pensarque sabia escrever. Qual futebolista acariciandoas botinas aposentadas, evocou seus primeirosrabiscos.

* * *Com as mulheres aprendi a ser homem.

Supreendeu­me, de início, a descoberta. Mas,pensando bem, esta é a única aprendizagempossível. Não são as mulheres e seus caprichosos critérios últimos de nossas opções, angústiase atitudes éticas? Não é com a mulher queaprendemos a ser ternos e amantes, impiedosose cruéis Quando o filósofo disse ser o homem amedida de todas as coisas, generalizava, é claro.Fosse mais específico, estaria mais perto daverdade.

Viajar (o ato físico, o locomover­se) torna­me mais lúcido, as idéias resvalam ágeis éúnicas. Por mais que me inquira, não encontrorazões precisas. Aventuro hipóteses: talvez porestar acompanhado e, em verdade, só. Ou quemsabe por sentir­me rasgando a noite (nunca viajoquando dia), afastando­me a cada minuto doslugares que habito, numa espécie de desmama,de corte umbelical. E sei que qualquer dia nãomais voltarei.

A cidade, amarelecida pelo sol que morre,vai se tornando cada vez menos densa, menospopulosa, mais subúrbio. Os passageirosescondem­se em suas golas, afundam seuscorpos tensos nas poltronas, como se isto osaquecesse nesta melancólica tarde de julho. O

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dia faz­se penumbra, a penumbra faz­se noite ena noite os homens calam. Amo este silêncioruidoso do viajar.

O vento gelado nas faces, cabelosquerendo fugir do couro que os prende, outrapossibilidade para explicar meu estado deespírito. Sinto nitidamente os contornos de meurosto, o vento desenha no espaço as linhas alémdas quais não existo. Sempre compro um lugar àjanela. Por frio que esteja, conservo­a aberta.

— O senhor não se importaria de fechar ajanela?

Pois não, cavalheiro, vosso pedido fazia­seesperar. Desde há muito ouço esta pergunta,quase já sei exatamente a temperaturasuportável por vossas peles. Isto dependetambém de temperamento. Uma pessoa tímida,por exemplo, suporta mais frio que umpassageiro de índole agressiva. O cavalheiroestará no rol dos últimos, pois não? Mas não voucerrá­la de todo, preciso mais de brisa que vocêde calor. A janela fechada sufoca. O frio, nomáximo, enregela. De modo que...

Luzes sonolentas surgem na noite.Multiplicam­se, diferenciam­se, passam esomem na distância. Uma cidade sem nomedorme tranqüila. Quadrúpedes semicalvos ebarrigudos abrigam­se dessajeitadamente sobAlvos Lençóis, no Recesso do Lar, o Esteio, apóscumprirem as obrigações de estado com aRainha. Milhares de seres sonham pesadelosmais sinceros que suas ilusões de despertos.Jamais saberão da passagem deste proscrito,tampouco dos juízos que faço. Já vos vi em

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outros lugares, em circunstâncias por vezesirônicas. Ides às praias substituir vossa flácida eincolor epiderme, e código algum legisla sobreesta criminosa proximidade entre mar e mortos.

E mais me contraem o sorriso suasambições antropocêntricas. Três bilhões decentros do universo. “Nossa meta é o homem.”Já ouvi isto de louvados e ilustres humanistas etambém de vendedores de enciclopédias. Ama ateu próximo como a ti mesmo, e seja anátemanão aceitar este slogan fóssil, síntese de vinteséculos de mórbida cultura.

Mas... Será vida o vagido destes vermes,cujo engatinhar um incomensurável universoignora? Como, cavalheiro? Ah, sim, a janela.Mas como sois mesquinho, interrompendominhas íntimas reflexões!

Um troglodita em plena urbe, assim mesinto. Parece­me existirem algumas diferençaspsicológicas entre um ser cujo leito foi nainfância a grama, e teve por lençóis o orvalho eluar gelados, e outros que nasceram no asfalto,em escuros e sufocantes cubículos. Para estes, aclaustrofobia é doença. Cães uivando sem razõesque eu saiba, ruídos surdos de dentes triturandoa grama, que só ouço se colado ao chão, grilosbordando o silêncio, estrelas cuja visão destróiquaisquer ambições mais altas, eis meuuniverso mais primeiro, mais bem guardado, eagora, o mais distante. Existirá algumsignificado nestes milênios de cultura quetiraram um animal da barbárie e de seuambiente de magia, para torná­lo um ser frágil,cultural e doente? Claustrofobia, cavalheiro, é

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saúde.Outra cidade. De novo, seres tranqüilos,

porque inconscientes. Mesmo despertos não têmangústias e lhes são absurdas e doentias astorturas que me impinjo. Sempre tranqüilos, éincrível, e eu os invejo. Mas não consigo sê­lo. Jásaindo, nos subúrbios, uma luzinha vermelhapisca na porta de uma casa onde ainda existemsons. É possível que lá dentro um farrapo demulher, exausta de sua absurda faina diária,sabiamente olhe o vácuo. Se o faz, é minha irmã.Não saberá, mesmo ouvindo os ruídos que meacompanham, que passei a poucos metros desua morada e confraternizei com seu desesperosilente.

Embaça­se o vidro do arfar das bestas.Também dormem, o próprio motorista talvezesteja dormindo. Discretamente, abro umbocado a janela. E respiro a terra, a noite e ospastos que ela cobre.

Não tenho tempo para amar­vos. Minhacarne débil e branca (vossas cidades destruíramsua antiga cor e rijeza e sua docilidade a meusímpetos) atesta a marcha sem volta de retornoao húmus. Dêem­me a vida eterna e amar­vos­einas horas vagas. Talvez assim, até mesmo teçaum poema otimista à espécie. Esta ternurairônica que ainda em mim resta não se originade vossos compêndios ou ideais, mas doslamentos frágeis que ouvi de vossas fêmeasinsaciadas. No burilamento de minha rudeza easperidade, a mulher ocupa um lugar cujaimportância me intriga.

Aos quinze, eu as temia e amava: medo e

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fascínio do desconhecido. Aos vinte, amei­as:acabou­se o mistério. Entreguei­me, mostrei­mecomo era, fiz­me vulnerável. Ao perdê­las, sofripor tal ingenuidade. Hoje, elas só conhecemmeus gestos exteriores. Apresento­lhes mil faces,deixo­as confusas, conservo meu egoperfeitamente camuflado, faço­as chorar e seuapego à dor me comove. Desta comoção brotaminha simpatia por certos seres humanos. Quese extingue quando reflito, por exemplo, sobre anebulosa de Andrômeda.

O próprio ato amoroso se me tornou algodorido. Ao fazer amor, preciso sair de mimmesmo, estabeleço uma ponte até outrem. Estaconcessão machuca­me quase fisicamente.

— A janela, por favor, meu filho estágripado.

Perdão, senhor, ignorava que esseapêndice vivo que sempre carregais em vossasviagens fora atacado por este inquietante vírus.Já fecho a janela, não serei descortês com meuscompanheiros de viagem. O único motivo que meimpede a paternidade é ver­vos carregados comvossas crias, quais membros aleijados de vossoscorpos, que não conseguis comandar.

Fecho a janela. No vidro, os contornosdifusos de meus traços. Mergulho o rosto nocalor ambiente. Nem assim adormeço. Os termosde vosso contrato não me satisfazem. Claro querenuncio às vantagens que me seriamoutorgadas. Por algumas, lamento. No cômputototal, que falta de perspicácia tendes!

Luz já quase dilucular. Vontade de noite,desejos de não chegar.

* * *

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* * *Olhava­se naquele texto como no espelho,

não no espelho que refletisse apenas a imagempresente, mas em um outro que mantivera fixose nítidos os traços de um homem nele refletidohá vinte anos. Se superpusesse as duasimagens, a passada e a presente, os traçoscoincidiriam quase que totalmente. Descontadaaquela difusa arrogância de jovem que aos vintepensa já ter exaurido a vida e suaspossibilidades, aquele quarentão que fugia dasgrandes cidades em um ônibus caindo aospedaços continuava assinando embaixo aquelesimpropérios. Ao lê­los, alguém comentara: “emteu texto se nota uma alergia visceral à família”.Pois continuava visceralmente alérgico à santainstituição. Só que não mais chamava dequadrúpedes os que a ela aderiam. Os anos lhehaviam ensinado que nem todos os homenstinham estofo para lançar­se a aventurasincertas como a literatura — ele próprio nãoperdera a aposta? — e afinal de contas,quadrúpedes ou bípedes, todos tinham direito aum lugar ao sol. Quanto às mulheres,continuava a alimentar a mesma ambivalênciados anos passados, até agora não entendiamuito bem o que queriam as moças. Econtinuava a abominar janelas fechadas.

Duas décadas. O que mudara parecia tersido o universo, já marchava inexoravelmenteaos cinco bilhões de consciências.

Pensou morar na Barra, seis quilômetrosadiante da Lagoa da Conceição, nalguma cabanafrente ao mar. Um incidente fortuito o fez mudar

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de planos. Quase ao final da Avenida dasRendeiras, curva lenta e preguiçosa quemargeava a lagoa, à direita, abria­se um campoaberto, povoado por vacas e cavalos. Para umhomem saudoso da infância — e quem não o équando a velhice se aproxima?– aquela visãoparadisíaca o convidava a ficar. Espécie dejardim particular, ali poderia afagar os animais,cavalgar, pelo menos enquanto a fúriaimobiliária não o invadisse. Reforçando oconvite, uma revoada de queroqueros aterrissoucom gritos de guerra naquele simulacro depampa. Não resistiu. Antes que o ônibusabandonasse a avenida, pediu para descer. Omotorista estacionou junto a um remanso, trêsbarcos se aproximavam trincando o espelho daságuas. Desceu, espreguiçou­se, olhou em tornoauscultando sua nova geografia. Se instalariaali, naquele ponto preciso. À frente, a lagoa. Àdireita, a montanha. Logo adiante, o mar. Comosupremo requinte, com o qual sequer sonhava,uma reprodução em miniatura dos pagos ondenascera: vacas, cavalos e — ó saudades! — umbando de queroqueros. Que mais podia almejarum gaúcho?

Foi quando atracou o primeiro dos trêsbarcos no trapiche que avançava remansoadentro. Um estremeção lhe percorreu a espinhaao ler ser nome na proa: Fantástico Show daVida.

Como se tudo estivesse ocorrendo damelhor maneira possível no melhor dos mundos,encontrou logo adiante uma casa ampla paraalugar, já mobiliada, frente à lagoa e tendo aos

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fundos sua miniatura de pampa. A biblioteca eoutras parcas posses chegaram na semanaseguinte. Encantou­o a ingenuidade sem nomeda proprietária, rendeira, mulher de pescador,tudo parecia fechar, quando ela perguntou: “osenhor escreveu todos estes livros?” Não, DonaZeferina, não escrevi nenhum. Pela resposta, aZefa jamais imaginaria que naquele não terescrito sequer um livro residia todo seu drama efracasso, as razões de seu exílio. Mas se aqueladeliciosa manifestação de desconhecimento domundo da cultura o encantara, outra observaçãoo colocou em alerta.

— O senhor não tem televisão?Não. Não tinha. Para que televisão em ilha

tão linda?Zeferina tenta disfarçar sua perplexidade:— Nem rádio?Muito menos. Não pretendia poluir o

silêncio daquele oásis com ruídos e angústiasurbanas. A rendeira esgaçou ainda mais a boca.Ao fechá­la, balbuciou que uma vez por semanasua filha viria limpar a casa.

— O professor vai gostar. Ela foi eleitaPrincesa da Lagoa no verão passado.

Oh, não, tudo era sonho! Mar, Marília,princesa...

Zefa desejou­lhe boa estada e saiubalançando os quartos, falando com seus botõese girando o indicador em torno ao ouvido.Morava na casa ao lado, com a filha e umpequinês, sempre à espera do marido, habitantemais do mar do que da terra. No pátio,

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improvisara um viveiro de pássaros, uma telafina cercando um quadrilátero irregular formadopela parede de fundos da casa e dois eucaliptospróximos. Juliano não resistiu. Pediu para olharo viveiro. Queria aproximar­se dos eucaliptos,arrancar­lhes algumas folhas, triturá­las nasmãos e respirar, palmas em concha, um cheiroverde de infância.

A mulher o introduziu pela cozinha,imersa em um particularíssimo matraquear,xingando “esses tais de ecologistas, sedescobrem meu aviário entram aqui com políciae fiscais, prendem minha bicharada e largamtudo na ilha do Campeche”.

Mal Juliano entrou no viveiro, umainquietação percorreu a passarada, pareciapairar no ar um temor qualquer ante o visitantedesconhecido. Esparramo de canários e curiós,sabiás e ticoticos voando baixinho e buscandogalhos, chilridos assustadiços de pássaros quejamais vira ou ouvira. Foi quando um martelaçoestridente feriu­lhe os tímpanos e teve de rangeros dentes para não chorar. Uma araponga. Háséculos não ouvia aquele som de bigorna, cujoeco se diluía em ondas nos campos de PoncheVerde. Arapongas e queroqueros. Junto com ogaúcho estaria também migrando a fauna do RioGrande? Na imprensa insular lera qualquercoisa sobre a “invasão gaúcha”. O que lhe soavaestranho, não deixava de sentir­se dentro de seupróprio país ao atravessar a ponte Hercílio Luz.Mas não conseguia imaginar o gaúcho trazendoflora e fauna na garupa. Aproximou­se de umdos cantos do viveiro e roubou algumas folhas

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do eucalipto. “É para um chá”, explicou.Organizada sua biblioteca — já descobrira

uma forma de transportá­la sem desorganizarlivros — tratou de cumprir a visita há tantotempo planejada. Iria até a Barra. Lá estaria,cansado e doente, o eterno copo em punho,Taba, o responsável por boa parte de suaserrâncias. Não havia insistido em publicar nofinado Diário de Notícias aquele conto — ou oque fosse — mais tarde premiado em umconcurso? Os prêmios literários deveriam serproibidos para menores de quarenta, pensavaagora, assim muito jovem entusiasta nãoperderia tempo e energias em função de um falsoestímulo

Dez anos depois do fatídico conto, oucrônica, como quisessem, quando já nem sabiapor onde andaria Taba, passara em turismo pelaBarra. Da praia avistou num dos botequins umasilhueta conhecida. Talvez nem fosse a silhuetao que reconheceu, mas aquele gesto distante dequem olha a vida como se estivesse olhando omar ao longe. Postura eterna. Podia estar a meiometro de seu interlocutor. Mas olhava um pontocego acima do ombro do companheiro de mesa, orosto estático, olhos parados, boca semprecontando coisas, uma boca de lábios finos eróseos, aparentemente deslocados em umacabeça solenemente encanecida. Quanto maisperto do botequim, menos dúvidas. Só podia sero Taba, rosto e lábios serenos eram os mesmos,apenas os cabelos mais embranquecidos.Sentou­se à sua frente sem dizer palavra.Contente por dentro, mais pra cachorro que há

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muito não via o dono. Nos dias de jornalista, viraem Taba um dos raros secretários de jornal aescapar ao epíteto de filho­da­puta e por elenutria uma afeição quase filial. Sem mover orosto, Taba o saudou como se o tivesse visto nodia anterior:

— Meu querido Bagual!Bagual! Nem mais lembrava do apelido

que lhe fora colado à pele em seus dias de foca,por sua impetuosidade e santa ira em relação aosistema, sua mania talvez já perdida na curvasdo tempo, de reformar o mundo. Bagual!Abraçou­o comovido:

— Velho Taba de guerra!Raro encontrar no mundo pessoas limpas.

Gostaria de cultivá­las à medida que ocorriamem sua vida. Notícias sobre os anos em que nãose haviam visto. Taba fora ejetado de PortoAlegre após a morte do Diário de Notícias.Abandonara o jornalismo e chafurdava em umaassessoria de imprensa.

— Sabes como é, Bagual, ou talvez nãosaibas ainda. Jornalista só adquire algumpatrimônio se se deixa corromper. Se insiste embancar o Quixote, morre fodido e mal pago.Fodido e mal pago já sou, agora só me faltamorrer.

Ignorou aquela desesperança toda, hámuito conhecia seu humor.

— Mas vais morrer na mais linda dasilhas.

Lábios finos e rosados. Espichou­osalguns milímetros, em prenúncio de ironia.

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— É o que diz todo gaúcho quando chegaaqui. Mal tira as botas, fica exposto a três males:bicho do pé, bicho geográfico e encatarinamento.Para os dois primeiros, em qualquer farmácia secompra uma pomada que elimina o bichinho. Oproblema é o encatarinamento. Aí a cura custamais caro.

Iria negar a evidência, que a ilha eralinda?

— Ainda vou gravar — dizia Taba olhandoo mar — os depoimentos desses gaúchos deágua doce que mal chegam aqui e já seencantam. Vai por mim, meu querido. Trêsmeses e vais juntar alternativas a teu discurso.A ilha é linda, mas... Mais tarde, este mas vai setransformar em repulsa. Com o tempo, vaisacabar falando sozinho, chiando pelas ruas:”esses catarinas!” Leste Juvenal?

Não esperou para continuar:— Acho que não. Em tua adolescência não

havia mais latim no ginásio. Bueno, em Juvenalse vê o despeito dos romanos ante os gregos.Nesta ilha, me sinto grego entre romanos:superior e desprezado. Vai e volta. Quem aportanestas praias é acometido de uma maldição,acaba se fixando por aqui. Mas ainda vou te vercom saudades das ruas quentes e poluídas dePorto Alegre. Certa vez perguntaram a umcatarina o que escolheria, se tivesse de escolherentre a beleza e a estupidez. Sabes o que o ilhéurespondeu?

Como iria saber?— “Ora, a beleza é passageira...”

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Estaria exagerando. A opção não eraespecífica dos ilhéus, tinha de convir. Tentouatalhá­lo:

— No mundo todo...— É — cortou Taba — no mundo inteiro é

igual, eu sei. Mas aqui é pior.Por que vivia ali?— Não saberia te responder. Ou talvez

soubesse. Mas não entenderias. Um profissionalcompetente, quando não é valorizado entre osseus, só tem duas saídas: ou decola, contraventos e marés, ou se suicida. Decolar, nãoconsegui. Me faltou empuxo. Para morrer,qualquer lugar é bom.

Irritante, aquele fatalismo. A verdade éque Taba fenescia. Mudou de assunto. Estava alisó de passeio, não pretendia estabelecer­se nailha.

— Santa ilusão, meu querido. Vais ficarcom este verde e este azul grudados nas retinas,as curvas dos morros e os traçados das gaivotasvão invadir teus sonhos. Gaúchos, somosibéricos, em alguma de nossas células há anostalgia de mar e deserto, de praia e areia. Umbelo dia, daqui a cinco ou dez anos, cansado dacidade grande, vais te perguntar: e por que não ailha? Eu também vim a passeio...

Um visionário, Taba. Ou talvez apenas umbom observador. Mais dez anos haviam passado— “horror, pensou, como passam rápido asdécadas” — e lá estava ele, cumprindo osvaticínios do companheiro dos dias dejornalismo. Mas recusava­se a endossar seu

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pessimismo. Há muito desistira de encontrar oparaíso na terra. A ilha teria seus senões, masseria suficientemente hábil para contorná­los.

Era domingo e tinha certeza de encontrarTaba no mesmo boteco e certamente na mesmamesa. Se bem o conhecia, era homem de trocarde mulher ou mesmo de mulheres. Mas uma vezadaptado à ambiência de um bar, era fiel comoum cão. Vestiu bermudas, calçou guides, tiroudas gavetas uma camisa velha e puída da qualtemia ter de um dia separar­se e se dispôs aenfrentar os seis quilômetros que o separavamde Taba. Adeus vida sedentária! Quandorepechava o primeiro morro, ouviu de uma casaao lado a voz esganiçada da Zefa:

— Professor! A parada do ônibus é láembaixo, no Recanto.

Não pretendia tomar ônibus. Ia até aBarra. A pé.

— O professor não tem carro?Fez sinal que não. Zefa girou novamente o

indicador em torno ao ouvido.Domingo de inverno. Mas o inverno

parecia ter sido abolido na ilha, por decreto dosdeuses ou de alguma autoridade turística. Doalto daquela privilegiada espécie de istmo,divisava à esquerda os veleiros e pranchas dewindsurf na lagoa. À direita, os surfistas daPraia Mole. Logo adiante a Galheta, a praiamítica onde o poeta situara sua Marília, sereiasentada olhando o mar à espera do amor. Ospoetas, pensou, não se deveriam deixar tentartanto pelas aliterações. Enquanto vencia o

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morro, surpreso pela facilidade com que o fazia,lembrava Asdrúbal. Ficção do Taba? Dequalquer forma, Asdrúbal pertencia à suabiografia, talvez mítica, quem sabe até mesmoveríssima, sabe­se lá o que se passa na cabeçade um pingüim. Taba o recolhera exangue napraia, não havia na Barra quem não oconhecesse, ficção pura não seria.

Fiz como me aconselhou o Che“ — falavade Guevara, um de seus entrevistados — “hayque darles um purgativo”, caso contrário a faunainterna do turista polar era ativada pelo calortropical, urgia purgá­los de toda possibilidade deinfecção. Até ali a história era viável, maspermanecia no ar aquele elemento insólito, oguerrilheiro que se pretendia libertador dasAméricas aconselhando o jornalista sobre comotratar um pingüim. Mais difícil ainda era engolira despedida de Asdrúbal. Após alguns meses deBarra, ouviu guinchos familiares certa manhã,além da arrebentação. Jogou­se ao mar e dasondas surgiram três outros conterrâneos, comos quais travou acalorada discussão.

Taba já dizia mentalmente adeus aAsdrúbal, quando este abandonou os seus emergulhou de volta rumo à praia. Aproximou­sede Taba e, em seu melhor fraque, inclinou­setrês vezes, emitindo comovidos guinchos. Voltouentão ao mar, enturmou com os três colegas ejamais foi visto no mar da Barra. Se alguéminsinuava estar fazendo concessões aos dados deuma ficção ao ouvir tais relatos, Taba indignava­se e, sabe­se lá, podia até mesmo acontecer quenem tudo fosse ficção. Era difícil distinguir, no

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jornalista desesperançado, qualquer linhadivisória entre a realidade e sua recomposiçãodos dados da realidade. Assim sendo, Bagualnão se preocupava muito com sua amarga visãoda ilha, certamente acidez psíquica de homemdescontente consigo mesmo. A ilha era linda, eponto final!

Seriam onze horas quando chegou à praia.Seis quilômetros em uma hora era boa marcapara quem há muito só fazia o trajeto entre aredação de um jornal e o bar mais próximo.Suas referências mais constantes, lembravaagora, eram sempre mesas de bar. Mania dequem abomina lar, o que mais uma vez otransportava ao conto dos vinte anos. Tevealguma dificuldade em situar o botequim doTaba. A Barra havia mudado e para pior,cabanas amontoavam­se lado a lado,transformando uma espécie de favela o queantes fora uma aldeia de pescadores, caixas desom ameaçando abafar o rumor do mar.Lembrou que o bar se chamava Três Irmãos efinalmente o encontrou, era agora restaurantecom ares de fino. Deserto. Sentou­se na mesa deTaba, na janela frente ao mar. Se bem oconhecia, jamais teria molhado os pés naquelaságuas, gostava de manter “uma distânciarespeitosa” entre ele e o mar. Uma caipira, porfavor. Não precisou esperar muito. Mal haviamergulhado em si mesmo quando um braçoamistoso afagou­lhe os ombros:

— Não disse, Bagual?Como se tivessem conversado ontem,

continuou o diálogo interrompido há uma

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década.— E quem disse, o que te faz supor, que

vim para ficar?Sorriu vitorioso:— Quem disse fui eu, há coisa de dez

anos, nesta mesma mesa — e bateu com apalma da mão na toalha–. Já estavaestranhando tua demora. Só há uma cura paraencatarinamento, é viver na Santa e BelaCatarina.

Sempre o mesmo. Talvez mais gordo.Olhos mais tristes. Abraçou­o com uma vagavontade de chorar. Mas era gaúcho, tinha porobrigação quase profissional não chorar.

Como se todos aqueles anos fossem umapausa para ir ao banheiro, retomou sua tese.Que todas as colonizações tinham um sentidoeconômico, os homens não se mexiam a troco denada. Os espanhóis haviam colonizado o Méxicoporque lá havia ouro. O Peru, em busca deprata. Haviam fundado Buenos Aires à beira deum rio pelo qual podiam chegar a Potosi. Nãopor acaso, el Rio de la Plata. Fernão deMagalhães tivera sua expedição financiada nãopara descobrir um estreito, mas para melhorprover os pálatos europeus de especiarias.

— Lembras daquela tua croniquetaingênua de adolescente, onde colocavas amulher como centro do universo e os homensagindo e lutando sempre em função do sexo?

Claro que lembrava. Como também dosorrisinho demolidor de Taba, ao mandar baixá­la para impressão.

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— Aquele texto me deixou contente, erasinal de que não estavas passando fome. Acharque os homens se movem em função de sexo, éótica de quem tem a barriga cheia. Voltando àilha — e fez uma pausa para molhar a garganta— que tinha esta ilha para oferecer aocolonizador? Economicamente, nada. Foraalguns limões para combater o escorbuto, nadamesmo.

Onde pretendia chegar?— A ilha não tem sentido. Não existe

desde quando começou a existir.No entanto, ali estavam, degustando os

camarões da lagoa, sentados sobre seu chãosólido, palpável, e do outro lado da janelameninas em biquini jogavam vôlei sobre suasareias. Imperturbável ante a evidência, Tabaprosseguia. Que a ilha fora povoada pela Coroaportuguesa para dar apôio logístico às tropasque defendiam a Colônia do Sacramento.

— Ao voltarem a Portugal, os lusosesqueceram aqui os pobres diabos açorianos queos abasteciam. Tudo é ficção, desde o começo ailha é ficção. Que pode dar uma ilha colada aocontinente, cheia de sol e de praias, sem riquezanatural alguma?

Pergunta meramente retórica. Quandoentusiasmado Taba não admitia respostas.

— Sede de governo e paraíso defuncionários públicos. Trocando em miúdos:curral eleitoral, voto a cabresto, corrupção ecovardia. Uma pulga chupando o dorso docontinente.

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Tinha fama de escrever não com tinta,mas com vitríolo. Não por acaso, jamaisesquentara banco nos grandes jornais.

— Que produz um barnabé? Se amanhã,num desafio ao poder, os bravos ilhéuscruzarem os braços reivindicando algo, o queacontece? Nada. Absolutamente nada. Nocontinente, quem trabalha vai ficar contente.Vão receber menos papéis cobrando impostos.

Taba exagerava. Que mais não fosse, nailha não existiam apenas os parasitas de Estado,fauna típica das capitais. Havia o elementonativo, o pescador, o agricultor, a rendeira.

— Esses — atalhou — deviam permanecera semana toda no hospício. Seriam soltos aosfins­de­semana, para contemplação dos turistasem busca de cor local. Estás chegando, meuguri. Deves estar intoxicado de Rousseau,Thoreau e outros utópicos. Deves andar embusca do bon sauvage, quem sabe do paraísoperdido. Estás mortalmente encatarinado.

Soava­lhe familiar, muito gaúcho e aomesmo tempo estranho, aquele “meu guri”,afinal já não era exatamente o que no RioGrande se entendia por guri. Os anos haviampassado, para ambos, com a mesma lentidão oupressa, Taba já entrara nos sessenta econtinuava a chamá­lo de guri. Podia nãoendossar suas hipérboles, mas suas intuiçõeseram fulminantes. Não iria negar que, no fundomesmo, vivera sempre em busca de um mundoutópico. Havia perambulado por toda a Europa,não poucos livros e viajantes diziam situar­se láo mundo ideal. Vivera algum tempo no mítico

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país da liberdade, igualdade, fraternidade, emvão tentara encontrá­las, pelo menos ao alcanceda mão de qualquer um. Ou tinha­se souche,argent, ou nada feito. De fato, havia lidoRousseau, Thoreau também. Não quepretendesse viver da pesca ou do cultivo daterra, afinal tinha outras habilitações. Masinvejava quem assim conseguia viver, semmaiores angústias metafísicas.

— Enfim, bem­vindo sejas — suspirouTaba —. Espero que esta robinsonada não tecuste caro.

Passou a tamborilar na mesa umsambinha:

Trabalha, colono, trabalha.Lavra, planta e capina.

Pelo preço de tua mortalhapagas a prancha do menino,

do menino da Joaquina.

Eu dou leite, dou pão, eu dou água,tiro a comida da terra e do monte.

Com meu suor alimento minha mágoa,minha mágoa e os vagabundos

do outro lado da ponte.

Cantas tua lagoa formosa,de águas que não são de cheirar.Minha vida não é feira de rosas

para que pelo azul de suas águaspossas navegar.

— Que tal, Bagual? Podia intitular­se,acho, Rancho de Amor ao Continente. Se eles

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soubessem do que é capaz um jornalistadesocupado, criavam uma assessoria para meinventar trabalho. Ouve só o final:

Professor na UFESCLotado no BESC

Assessor da TELESCPoeta na APESC

Cá na ilha, amigoVocê dá ou DESC!

Ria sozinho, não que gargalhasse. Ria como fundo dos olhos, interrogando os de Juliano,que aos poucos intuía a nova nomenclatura.Numa espécie de breque, rematou:

Ceva gelada,meu saco ao léu,oh! sou tão feliz,eu sou o ilhéu!

Primeira providência ao chegar emFlorianópolis — Floripa para os íntimos, distantevinte quilômetros de seu refúgio em meio ao mare ao verde — a procura de um bar. Não parabeber, já que vinha em parte para curar­se.Concluíra, talvez em tempo, ser a luta vã contrao papel em branco o fator que o impelia aoálcool, horas e horas inúteis em meio ao silêncioda noite, arracando cabelos e jogando papéis aocesto diante da máquina e de um copo. Foiquando começou a desconfiar que o perigo nãoestava no álcool e sim no jornalismo. naquelatentativa de transcender o jornalístico através deuma obra literária. Ao concluir que ovelha nãoera para mato, sentiu­se liberto do papel embranco e do trago. Bar, para Juliano, significava

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bem mais que bebedouro. Não exagerava seafirmasse que fizera sua carreira universitáriaem bares, era onde preferia trabalhar, mergulharna leitura e eventualmente emergir do mergulhose um rosto amigo, conhecido ou desconhecido,o convidasse ao diálogo ou namoro. Bar,sinônimo aventura. Onde o bar?

Meio milhão de clientes potenciais na ilha.Mesmo assim não foi fácil. Pequisou na cidade efora dela, nas ruelas do centro e nas avenidasjunto ao mar, só via aglomerados de genteescutando rádio ou televisão, quando não ambossimultaneamente, e aí não entendia mais nada,chegara mesmo a ver um garçom estático, olhoscravados em um vídeo sem imagem alguma,apenas o som ligado. Tinha outra concepção debar. Taba o havia alertado:

— Nesta ilha, as palavras vão pouco apouco perdendo o sentido. Aqui, bar não é bar.Achas que existem bares, viste locais ondepessoas bebem e conversam. Aparentementeconversam. Na verdade, trocam besteiras sobrefutebol e carros, conversar são outrosquinhentos. É trocar idéias, e só pode praticareste comércio quem dispõe desta mercadoria.Confundes barnabés em fuga ao expediente comambiência de bar. Buñuel já dizia — e Tabasorria beatificamente ao lembrar seus dias deEspanha — que bar é o lugar por excelência derecolhimento e meditação. Saudades, tche, doOriente, Gijón, Café del Prado.

Se inventava de evocar seus baresmadrilenhos, só restava esperá­lo de torna­viagem. Bar — dizia ao voltar — é a tribuna onde

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pessoas discutem opiniões divergentes, é omomento em que se exerce a livre expressão depensamento. Kafka falava daquela casa idealonde qualquer um pode entrar mesmo sem serconvidado, falar ou calar, confraternizar oumesmo conversar com seus botões, sair quandolhe der na telha. Tais casas existem. Mas nãoaqui. Os botecos onde viste pessoas bebendonão passam de extensões das repartiçõespúblicas, lá qualquer bacharel se sente doutor erábulas que jamais exerceram o Direito exibemrubis nos anulares, as nulidades. Lá, todopensamento original é sacrilégio, meu guri.Ninguém discorda de ninguém, a ilha toda é umimenso curral eleitoral, dominado por dois outrês aprendizes de déspota. As oligarquias ilhoasfingem que se distribuem entre dois ou trêspartidos, mas todos caem de quatro ante um só,o do poder.

Exercício de sarcasmo da parte de Taba?O fato é que, nos primeiros meses, se quisessesentasr para ler um jornal ou isolar­se, tinha detampar os ouvidos com bolinhas de algodão.Lembrava Schopenhauer: a soma de barulhoque uma pessoa pode suportar está na razãoinversa de sua capacidade mental. Encontrarafinalmente um boteco, o Kibelândia. Tambémrepleto de barnabés. Ilha dos Barnabés, pensou,bom título para um romance, ao mesmo tempoque procurava eliminar da mente a antigatentação. Não era exatamente silencioso, maspelo menos ali só se ouvia o ruído de vozes evozes não feriam a sensibilidade de um homemde bar. Ao dispensar as bolinhas de algodão,

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passou a ouvir restos de conversa, pedaços defrase, um se repetindo sempre como discorachado: “desculpe discordar, mas...”, “desculpenão concordar, porém...”, “perdão por pensar deforma diferente, no entanto...” As fórmulasvariavam, mas as desculpas sempre faziam­sepresentes iniciando cada frase, caução eprecaução de barnabé. Ele provinha de umacultura onde discordar era quase um dever, nãopor acaso merecera o apelido de Bagual. Ao nãoaceitar uma idéia, um gaúcho enchia a boca:“discordo veementemente”. Ali, um medoqualquer pairava no ar, um medo difuso de teridéias próprias, um pavor de ser diferente. Emandanças passadas, Juliano bordejara algumascapitais do Leste europeu, nelas encontrara omesmo medo contaminando as conversas,pessoas falando baixinho, temerosas de que ovizinho ouvisse qualquer sussurro. Teria a ilhauma vocação socialista?

— A ilha — discordava — jamais seráexplicada pela razão, espero não precisar repetiristo. Te imagina sóbrio, chegando à meia­noiteem um baile de carnaval. Aparentemente, nadaestá acontecendo, todos dançam bonitinho,puxando cordão e sambando. Quinze minutosdepois, observando melhor, vais que a realidadeé bem outra: há um dedo numa buceta, umalíngua lambendo um cacete, um pau na bundade alguém.

— E daí? — Juliano não entendia oparalelo.

— Daí que estou aqui não há quinze dias,mas há quinze anos. Conheço a história do

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pedaço. Nesta geografia, covardia é tradição.— Vai te foder, Taba — discordava Juliano

— que má vontade é essa? Em qualquer lugar domundo barnabé tem espinhaço mole, é sermedroso por definição.

Taba ria mansamente. Atrás do sorriso emdiagonal, Juliano adivinhava pesadosargumentos.

— Em 1777, isto é, já faz dois séculos,quando a ilha era praça de guerra e nãobalneário de barnabés... sabes o que aconteceuaqui.

Não. Não sabia.— Pois então escuta antes que eu morra e

seja tarde.Era todo ouvidos.— In illo tempore, como diziam os padres,

a ilha era bordada de fortificações, defendida portrês mil homens, entre infantaria, artilharia ecavalaria. Bueno, aí o Carlos III, rei de Castela ehoje um excelente conhaque, resolveu fazer umabrejeirada a Dom José I, rei de Portugal,metendo as patas num pedaço do territóriobrasileiro. Enviou rumo ao Sul uma esquadra,sob o comando de Dom Pedro Zeballos, queabordou a ilha pela ponta norte. Sabes o queaconteceu?

Não esperou resposta:— Claro que não, meu guri. À simples

aproximação da frota, desde os cavalos até osinfantes deram no pé, o exército todo varou oEstreito, rumo a São José. Zeballos tomou a ilhasem disparar um tiro. Não apenas os bravos

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defensores, mas toda a população da ilha, sóforam em Cubatão, a seis léguas daqui. Caso osespanhóis se dignassem a perseguí­los, podiambuscar refúgio em chão gaúcho. “Nasceram paracovardes”, disse o Davi Canabarro sobre estepovinho. Achas que estava fazendo piada? Logo,quando se falar em tradições da ilha, prima interpares, cultive­se a covardia.

* * *Nada mais pedagógico que o correr dos

dias, descobria Juliano. Tinha passaportebrasileiro mas era visto como estrangeiro. Osnativos dividiam a humanidade em duas fatiasdistintas. Havia a “gente de fora”, gomoperfeitamente definido, que abrangia desde oscatarinenses que viviam do outro lado da ponte— no Brasil, segundo Taba — até pessoasoriundas dos estados vizinhos ou mesmo depaíses distantes. Por uma questão deparalelismo, a outra fatia devia chamar­se gentede dentro ou, talvez, gente da ilha. Mas se umhomem nasce numa ilha e dela jamais se afasta— descobria Juliano — jamais saberá o que éuma ilha. Sem falar que ninguém define a sipróprio, e sim ao outro. Para os nativos, a outrametade da laranja era o que chamavam de“gente nossa”, coletivo vago e indefinido,pedigree que obedecia a uma única condição: ternascido na ilha, nela viver e — por que não? —nela deixar seus ossos.

Zefa, mais sedenta de síntese, abreviava acoisa dizendo nós, simplesmente. Nadaentenderia de gramática, Juliano duvidava quesoubesse ler. Mas em sua boca, nós tinha uma

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acepção muito precisa, era um plural dos maissingulares, excludente e fixador de fronteiras,em torno às quais pareciam girar o mar, a terrae o universo todo. nós fomos ao baile, nós fomosà missa, nós fizemos uma farra do boi. (Maistarde, só bem mais tarde, viria a saber o que eraa tal de farra, de início julgara ser um outronome para bumba­meu­boi, boi­de­mamão oualgo semelhante). Incêndio no morro? Coisa degente de fora. Casa arrombada, areia retiradadas dunas? Tudo coisa de gente de fora, isso nósnão fazemos.

Taba invertia os termos da proposição,definia­os como eles: eles vão a seus bailes, elesvão a suas missas, eles comem peixe com pirão.Quando dizia nós, o pronome era muito maisexcludente que o da Zefa. Referia­se a si próprioe a Juliano, estendendo­o talvez a uns poucosgaúchos ou paranaenses encatarinados. “Nós,seres pensantes”, não era expressão rara comointrodução a suas catilinárias. Ou catarinárias,como ousaria insinuar Juliano, caso ignorasse ohorror de Taba a trocadilhos.

Acontece que decidira viver na ilha. Apesarde não ter ultrapassado as fronteiras de seupaís, sentia­se irremediavelmente incluídonaquele “gente de fora”. Zefa tentava excluí­lo docoletivo infamante: “se bem que o professor épessoa distinta”. Distinto dos demais, disto eletinha consciência. Mas não era a esta suaanomalia personalíssima que Zefa se referia.Naquele distinto estava implícita a urbanidadecom que ele a tratava, o aluguel sempre pagopontualmente, a paciência e curiosidade com

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que ouvia as queixas sobre as ligeirasincongruências de seu pequeno mundo,“imagine, professor, onde vamos parar, atelevisão mostrando mulher pelada”. Zefa sabiamuito bem que todo televisor tinha um botãoque o ligava e desligava. Mas jamais ocorreriaacioná­lo quando as mulheres peladas invadiama telinha.

Contabilizava aquele ilhocentrismo comocoisa de gente simples, sem maiores noções dehistória ou geografia. Imersos em um eternopresente, dificilmente se afastavam por mais devinte quilômetros das praias onde haviamnascido. Insólito foi ouvir na universidade, emplena reunião de mestres e doutores, o mesmobrado ilhéu: “não podemos permitir que auniversidade seja invadida por gente de fora”.Teve ímpetos de reagir: “Colega, umauniversidade não se faz com gente de dentro,que mais não seja não me sinto estrangeiro nopaís em que nasci”. Mas nada disse, há muitodesistira de questiúnculas.

Ou seu passaporte lhe conferia o sagradodireito de exercer seu ofício em qualquer pontodo território nacional, ou a ilha era outro país.Com o decorrer dos meses, mesmo sentindo­sebrasileiro até o tutano, acabou convindo que adistinção ilhoa entre gente nossa e gente de foranão era totalmente desprovida de significação.“Flora é o que vegeta” — explicava Tab — “sãoeles. A fauna somos nós”.

Logo­logo entraria em contato com afauna. A ilha era rota de fuga, e isto não osurpreendia, ele também não fugia? Exaustos e

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feridos pelas migrações, ora espontâneas, oraforçadas, os fugitivos que ali buscavam ninhoeram pássaros muito especiais, raras vezes comrumos definidos e quase sempre sem rumoalgum. Qual ser urbano não sonhara um diacom uma ilha? As utopias, de Platão a Huxley,haviam sido situadas em ilhas. Nada deespantar que uma ilha ensolarada, colada aocontinente, atraísse hordas de utopistas nãochegados a grandes navegações. Ou mesmo,delas frustrados.

O primeiro espécime exótico — até osossos, literalmente — encontrou­o no Kibe,ponto de encontro inevitável de todo e qualquermigrante. Descia pela Praça Xivi rumo ao bar, naescola em frente uma professora puxava umataboada. Quatro mais três? Seeete. Quatro maisquatro? Oiiito. Quatro mais seis? Nooove.Matemática moderna? Talvez não. Mais tardedescobriu que a Praça Xivi era na verdade PraçaXV. Mas que obrigação tem um homem do finalde milênio — argumentava o alcaide — deconhecer algarismos de uma língua morta? Ebaixou decreto determinando que números deplacas fossem escritos em arábicos.

No Kibe ia entrando aquele perfil de garça,não podia ser, é alucinação, disse para simesmo. Encontrara Olívia Palito nalgum bistrôdo Quartier Latin, não que ela assim sechamasse, mas era a própria namorada doPopeye, mais caricatural que a própriacaricatura, “a que nem o Pitanguy conserta”.Impossível existir uma outra no mundo. Tinhade conferir, certificar­se de que não estava tendo

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delírios ao meio­dia.— Jacira? — perguntou incrédulo.— Meu nome é Bodira.Estaria brincando. No mundo só existiam

duas Olívias Palito, uma pertencia ao mundodos quadrinhos e a outra era ela, ora bolas! E sechamava Jacira. Uma terceira era inviável, umaimpossibilidade estatística. Talvez existissem nomundo sósias às dezenas, mas daquela avis raranão podia existir outra cópia no universo, distotinha certeza. Como Bodira? Não era Jacira?

— É meu novo nome.Ah! O universo voltava a ser inteligível.— Conheces este cara? —A novel Bodira exibiu uma efígie

pendurada no pescoço.Conhecia. Era um dos tantos gurus

indianos, que faziam fortuna às custas daingenuidade ocidental, Rajneesh ou coisa que ovalha.

— Pois foi dele que recebi meu novo nome.Lembrava agora aquele louva­deus em

pose mística em seu estúdio em Paris, voltandode Poona, as ossudas pernas de gafanhotoencolhidas, os pés juntos pelas plantas, mãocadavéricas em gesto de prece:

— Um... — dizia, do fundo de seu ser.Juliano, que andara folheando ao acasofilosofias do Oriente, corrigira timidamente:

— Om.Olívia Palito desfizera o gesto de prece.

Erguendo o indicador da direita, sustentado pelo

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punho fechado, repetira:— Um.Um? A palavra mística não era Om?— Um... meu querido — e exibia o dedo

magérrimo para reforçar a cifra —. Um mês...Faz um mês que não dou uma...

Ali estava, dez ou mais anos depois,aquela sacerdotisa dos ortópteros sentada à suafrente, cotovelos aduncos cravados em duascasas da toalha xadrez. O planeta era umaaldeia.

Dias depois, no mesmo bar, Vanva emtoda sua glória. Ou Ivan Vaso Mesopotâmico. Defato, João. Pianista com pretensões de gênio,gaúcho mas não fanático, leitor de Dostoievski ecultor de Scriabin, não iria atenderprosaicamente por João, nome mais adequado acarregadores de piano. Donc, Ivan. VasoMesopotâmico já era outra história.Inconformado com solene incompreensão dosporto­alegrenses, acabara se travestindo emarqueólogo. Ardendo em desejos de visitar umdoce amigo em Nova York, sem um vintém nobolso, apostara tudo — “menos a reputação, queesta jamais tive” — em um vaso antigo,garimpado num bric­à­brac da Rua da Praia.Vaso em punho, foi ao Rio, onde o depositou emum cofre do Banco do Brasil, convocou duas outrês múmias de um instituto histórico ougeográfico qualquer, solicitando um parecersobre a idade daquele objeto encontrado emescavações no Iraque, suspeitava quepertencesse ao período áureo da culturamesopotâmica. Do que discordaram os

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especialistas, sugerindo que pertenceria à épocabem mais recuada no tempo, quem sabe aossumérios — “de sumárias eras”, acrescentavaVanva, quase chorando de rir — o que lhe valeuum bilhete de ida­e­volta a Nova York e maisdiárias para submeter ao carbono 14 o vasocompra no bric. Daí o apelido, bem maispertinente que Bodira. Aportara à ilha comprojetos muito definidos:

— Em matéria de frutos do mar, prefirosurfistas. Vou pôr gerações no vício.

Trabalhava — não conseguia conjugar overbo sem rir — como arqueólogo em uma dastantas ESCs da ilha. Preferia que o chamassemde Ivan Vaso de Todos os Homens. Vanva, paraos íntimos. Que não eram poucos.

O que atribuía ao acaso, aquelesreencontros insólitos sempre no mesmo bar, foiaos poucos desvelando seu caráter denecessidade. O Kibe era algo como um dessespromontórios ou recifes de alto mar, pausa erepouso inevitáveis de aves de arribação. Osespécimes iam chegando e tomando posse desuas mesas, para ninguém constituíria surpresatropeçar ali com qualquer outra pessoa pela qualcruzara um dia qualquer em um ponto qualquerdo globo. Robert le Rouge, não se fez esperar.Mal o viu escorado no balcão, Juliano atacoupelas costas:

— Sdrasvuitche, tovaritch! Já sabesdesenhar uma caixa de fósforos?

Sentiu que lhe havia jogado um balde degelo na nuca. O cabra da peste levou algunssegundos para reagir ao choque térmico, parecia

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recusar­se a acreditar no que ouvia.Nordestino do Ceará, fora estudar

arquitetura na Patrice Lumumba. Soube que nomundo já existiam sapatos em Porto Alegre, poronde passara para apanhar um barco emBuenos Aires, até então não via porque nãoenfrentar com sandálias de dedo o invernorusso. Juliano o encontrara em Paris, ondefizera escala rumo à Nova Jerusalém.Hospedara­o por uma noite, sem conseguirfurtar­se à gozação:

— Sabes desenhar caixas de fósforo?— Onde é que ôce qué chegá?Não queria chegar a lugar nenhum. Se

sabia desenhar caixas de fósforo, podiaconsiderar­se doutor em arquitetura soviética. Ocearense se fechou em copas, quis fazer asmalas e procurar hotel. Juliano tranqüilizou­o,estavam em Paris, democracia burguesa, éverdade, mas terra de franco debate, nãoprecisava temer um gulag na Sibéria pordivergências ideológicas. Tinha bolsa porquantos anos?

— Cinco — respondeu mais confiado —.Um ano de russo e quatro de arquitetura.

— Então me manda um postal deEstocolmo — pediu.

Não entendia:— Vou pra Moscou, já disse.— Ótimo! Então manda um postal de

Estocolmo.O cearense não entendia mais nada, ia

fazer uma bolsa em Moscou, cinco anos na

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Patrice...— Meu anjo, não vais ficar nem cinco

meses por lá. Depois do Sul Maravilha, do vinhoe churrasco, achas que agüentas meio ano noparaíso socialista? Me manda um postal deEstocolmo, que é onde vão lavar pratos osbolsistas da Patrice.

Saíra furioso de Paris, xingando­o dereacionário e burguês. E ali estava, no Kibe,caneco em punho, matando as saudades de umchope gelado. Antes que conseguisse falar,Juliano insistiu:

— Sem falar que me deves um postal deEstocolmo.

Acuado, Robert le Rouge preferiu render­se:

— Não deu, cara. Nas primeiras férias,voltei voando pra terrinha.

Sem falar na Velha Europa, de idade eorigens absolutamente indefiníveis, epidermetinindo de tensa após o trabalho de não poucosbisturis, rosto límpido de adolescente, nádegasdurinhas de muito footing, olhar de serpentehipnotizando passarinho. Por aquela boca —assegurava Taba — terão passado léguas eléguas de piça. Mais conhecida como Santa, quetampouco era seu nome, muito menos ironia.Segundo a lenda — e tudo era lendário em tornoa ela — chamava­se, ou chamara­se, Catarina, eum belo dia decidiu acrescentar o Santa aonome.

Ainda segundo Taba, fonte privilegiada deinformações, o belo dia ocorrera lá pelo outono

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de 70, “mal Paulo VI proclamou doutora aanalfabeta de Siena, ela começou a rolar naareia, justo aqui em frente aos Três Irmãos, searrancava os cabelos e fazia votos de não maispecar”. Mas a carne, como sempre, parecia terlevado a melhor. Para seu uso pessoal e entreamigos, Taba rebatizou a Santa. Em seu jargão,era agora Velha Europa: putíssima o ano todo ecasta quando lhe convinha.

Juliano a desconhecia em seus dias deSanta — constava que coincidiam com a Paixão— mas não deixava de nutrir­lhe uma cálidasimpatia, talvez até mesmo eivada de algumdesejo. Que mais não fosse, era algo insólito emmeio à pacatez ilhoa, vê­la rebolandofuriosamente sobre uma mesa de bar — “guarda,babbo mio, guarda!” — e cantando, mesmo paraespanto de Vanva, cujos olhos cansados jáhaviam visto não poucas coisas: “Ay que toma!Ay que toma! Ay que toma! Mi culito es degoma!”

Princesa incaica, imaginava Juliano, deveter descoberto há alguns séculos a fonte dajuventude e não conta para ninguém. Coroavasua lenda uma expulsão de Teerã, andava por láfazendo dança de ventre pra persa nenhumbotar defeito. Só que em hora pouco propícia.Exibia seus dotes para a galera justo no dia emque o aiatolá Khomeini reentrava solenementeem sua paróquia para expulsar o grande Satãocidental: “Saí de calças na mão”, confirmavaVelha Europa, e não falava por metáforas.

Tampouco faltaria um Cristo. Alto e louro,envolto em uma túnica branca, gestos largos e

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messiânicos, pregava sob a figueira da PraçaXivi, sempre assistido por duas sensuaissamaritanas. Havia voltado à terra e escolhera ailha para fundar a nova igreja, a que salvaria omundo. Estes constituíam os espécimes maiscoloridos e berrantes da fauna, já que a maioriadaqueles seres preferia — e alguns precisavam,por razões de segurança — exercitar um certomimetismo que os protegesse da curiosidadepública. Lembravam um pouco o arapuã,pássaro daquelas paragens, com ares de espécieem extinção. Visto pelo dorso, era de umacoloração cinza e muito sem graça,perfeitamente camuflável junto às pedras dosmorros. Asas abertas e visto por baixo, era deum colorido psicodélico, charme que só ousavaexibir longe do verão e dos turistas.Homossexuais em busca de um clima maisrespirável, ex­guerrilheiros que haviam trocado ofuzil por um violão, mineiras fugindo de maridosferozes, gaúchas dando um tempo ao tempoenquanto gestavam um feto embaraçoso, mais agrande massa daqueles habitantes de capitaisque simplesmente fugiam da violência e poluiçãodas metrópoles. Não poucos pontos comuns osirmanavam: tolerância, drogas, sexo livre e certodescaso em relação a dinheiro e posses. De ummodo geral, todos haviam perambulado peloplanetinha. Impelidos por 64, ou mesmo pelohumano desejo de mudar de geografia, tinhamcomo patrimônio afetivo comum as ruas de Parisou Berlim, Roma ou Barcelona. A ilha não eraapenas fuga, mas também repouso, pausa parameditação. Outro fator comum — observariaJuliano com o decorrer do tempo — era a perda

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da identidade passada e aquisição de umapelido, sempre ligado a uma circunstânciapessoal qualquer. Qual novo nome o esperaria equais circunstâncias o definiriam? Bagualevocava pampa e juventude, não combinava comilha e climatério.

Taba parecia escapar ao novo batismo, eraTaba simplesmente, tanto na SETESC ondeganhava amargamente seus tragos cantando asbelezas naturais “desta bosta de ilha”, como nosbares da Barra ou da Lagoa. Ninguém maislembrava, talvez exceto Juliano, que um dia sechamara Tabajara. Em matéria de mimetismodeixava léguas atrás o arapuã, era estimadoonde quer que chegasse, embora sempredetestasse todo lugar onde entrava. Suacapacidade de camuflagem tinha raízes nos anosde reportagem, bom jornalista, dizia, é o quepergunta como quem não quer saber nada, oque dá ao interlocutor a certeza de que acreditouna resposta. Por outro lado, todo apelido tinhaalgo de derrisão, sempre procurava acentuarqualquer coisa pouco confessável do portador. Oque talvez explicasse a imunidade de Taba: erauniversalmente generoso, estendia a mão aamigos e a pessoas que sabia inimigos, no fundoacreditava que o mais rancoroso dos desafetos —“não sei se me engano” — sempre seria sensívela um gesto de humanidade. Postura que nãoexcluía uma cáustica visão da ilha:

— Robinson de alguma forma teve debatizar o ilhéu. Mas teve a chance de convivercom apenas um Sexta­feira. Aqui é Sexta­feira asemana toda e por todos os lados.

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Pausa teórica para observar a reação dointerlocutor. Na verdade, não pretendia passar­lhe a palavra.

— Não que os nativos não tenham atitudesliberais — continuava, os lábios já seprolongando em um riso interior, sinalinequívoco de que deles brotariamsurpreendentes revelações —. Eles — eacentuava o pronome — superaram tabus quenem nós um dia sonhamos superar.

Esperava uma manifestação de interessepara não se sentir monologando.

— Que tabus, Taba?— Tudo é incesto nesta terra, Bagual.

Cada bolsão da ilha, um tipo de rosto. Observaos nativos cá da Barra. São relativamente altos,o que é raro nesta geografia. Rosto comprido,eqüino, dentuços, maxilar prognata. Na Lagoa, eolha que a Lagoa fica a uma légua daqui, lá vaipredominar outro tipo, anóide e desmilingüido,testa curta, aprognata, nariz esborrachado.Descobri isto por acaso. Como tu, jamais tivecarro. No ônibus, observava os que desciam naLagoa para ficar por perto e sentar. Bastou umasemana para intuir que, se ficasse ao lado de umanóide de nariz esborrachado, já teria lugar naAvenida das Rendeiras. Depois do Retiro, sórestavam os de cara de cavalo. Tudo incesto,tche!

Exagerava, o velho Taba. Fazia parte deseu temperamento e de seu próprio passado.Não havia criado e recriado a história doAsdrúbal? O fato é que Asdrúbal existira, todos olembravam na Barra. Mas não podia deixar de

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admirar no jornalista de botinas penduradas suacapacidade de justapor uma pinceladasurrealista à sensaboria da realidade cotidiana,sua facilidade de respingá­las com gotas deesperpento.

* * *

DO GLOSSÁRIO DE TABAPARA ENTENDER A ILHA

Amigo — Qualquer um. “Oi, amigo, comovai?”. Saudação perfeitamente permissível apessoa totalmente desconhecida.

Auma — Princípio de vida, segundo oAurélio. Entidade a que se atribuem, pornecessidade de um princípio de unificação, ascaracterísticas essenciais à vida e aopensamento. Ou seja, alma. V. g.: sauva tuaauma.

Aumadén Pinóti — A interpretação nãoexige maiores pesquisas lingüísticas. Trata­se deum Pinot noir Almadén, de Santana doLivramento.

Barriga verde — Ver Limo.Bumbum — Ver Miss Bumbum.Camarão à la grega à la ilha de Santa

Catarina — Camarão “recheado” com queijo,acompanhado de arroz com cenoura ehipotéticas passas de uva. Porque à la grega,nem os gregos sabem. À la ilha nada tem a vercom à l’ail. É à la ilha porque é, e fim de papo.

Camarão à la ilha e óleo — Para bomentendedor, corruptela de à l’ail. Camarão com

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alho, frito em banha reciclada ad aeternum.Camarão recheado — O que seria

insóltio. Trata­se, em verdade, de uma massa defarinha que tem como recheio o que seriarecheado. Fruto não do mar, mas da lógica ilhoa.

Campos universitário — A primeira vista,campos onde “os universitário” pastam. Masnão: ônibus que leva ao campus.

Catarinárias — Vários gaúchos reunidosna ilha conversando sobre ela. Ou mesmo longedela, se nela já viveram.

Catarinicidade — Enteléquia do ilhéu. Apalavra tem acepções diametralmente opostas,dependendo se for dito por gente de fora ougente nossa.

Cátis Vain — Parece que é um vinho.Caução — Traje de banho masculino,

calção. Jamais deixar caução por garrafas embar para não receber um calção de volta.

Chapéu — Ver Gaúcho.Chatô Brian — Château Briand, à

primeira vista. Talvez castelo, quem sabe vinho.Mas não. Trata­se em verdade de filé àChateaubriand, só que em vez de grelhado esangrando o bife — pois de bife se trata — vemtorrando e fumegando. Em falta de pommes deterre soufflées vai batatinha frita na mesmabanha do camarão à la ilha e óleo. Em falta deagrião vai uma alfacinha, que quem não sabecomer tampouco sabe reclamar.

Circo — ver Gaúcho.Corrupção — Vício administrativo

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bravamente denunciado pelos intelectuais deLaputa, quando ocorre no Amazonas, Ceará ouCochinchina.

Desencatarinamento — Faseimediatamente posterior ao encatarinamento.Ocorre em geral três a seis meses depois deste.

Encatarinamento — Estado de espíritoprovocado pelo fato de um dia ter­se visitado ouvivido poucos dias ou semanas na Ilha de SantaCatarina. Encantamento com a geografia,belezas naturais e pragmática cordialidade dosinsulares. Enamoramento, encanto,encantarinamento. Daí

Encatarinar­se ouEncantarinar­se — Encantar­se com a

ilha, suas praias, morros e dunas, seu verde eseu azul, pescadores e rendeiras. Esquecer­seque ilhas são sempre ilhas, que pescadores erendeiras apenas pescam e rendam, isso quandopelo menos pescam e rendam.

Filé à la guarani — Nada a ver comeventuais culinárias indígenas. Bife comguarnição. Do francês fillet garni, corrigido poralgum restaurador (sic!) mais criativo para filé àla garni, transcrito mais tarde por algum garçom(resic!) com espírito de iniciativa e desejo deentender o mundo para filé à la guarani.

Filé à inglesa — Sem comentários.Filé à la moda do chefe — Talvez à moda

do chefe de polícia, pois Chef, que é bom, a ilhajamais conheceu.

Filé de peixe ao molho São Jaquês —

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Prato de dificílima intelecção, onde por SãoJaquês deve­se entender, supomos, SaintJacques e, por extensão, coquilles SaintJacques, o Ostracus malacus do Cantábrico,portado pelos cristãos como prova daperegrinação à Santiago de Compostela. Nãosendo a ilha banhada por águas cantábricas, enela vieiras não passando de um sobrenome,supõe­se que o prato seja um prosaico filé detainha frita ao molho de mariscos.

Garoupa à la belle manière — O mesmocriador do filé à la guarani, sempre desejoso deentender o universo, parece assim ter transcritoou interpretado os pescados à la belle meunière.

Gaúcho — Sabe por que gaúcho usachapéu? É porque gosta de dar na sombra. Omenor circo do mundo? São as bombachas, sócabe um palhaço dentro.

Gente de fora — Todo aquele queatravessa a ponte sem ter nascido ou secorrompido em Laputa. Gentílico em geralatribuído a gaúchos e paranaenses.

Gente nossa — Todo aquele que não égente de fora. Ver Manezinho da Ilha.

Limo — Sabe por que catarina é barrigaverde? Porque gaúcho tem limo nas costas.

Manezinho da IlhaMiss Bumbum — Espécime feminino

muito encontrado em Laputa, cérebro decamarão, única virtude residindo nos glúteos.Com a setorização progressiva dos concursos debeleza feminina, os serviços de turismo talvezpromovam, em verões vindouros, o concurso

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Miss Esfincter. Traga lupa.Mulher de gaúcho — Ver palmeira.Paeja valenciana — Paella,

provavelmente. Ou melhor, a sombra da sombrana caverna da paella valenciana. Risoto defrango com tainha, vermelhão em vez de açafrão,que este sai caro e a diferença ninguém nota.

Palmeira — Mulher de gaúcho. Podetrepar que não tem galho.

Pato à européia — Prato que sempreressuscita com tabelamentos de preços. De umamarreca com chucrute tabelada e de um frangocom spaghetti também tabelado, surge o pato àeuropéia, com massa e chucrute, mas pelo dobrodo preço. Para perplexidade da Europa.

Peixe frito com pirão — Excelência daculinária ilhoa. Peixe frito com pirão.

Piava — Ver veado.Porta Aberta — imaginoso coquetel ilhéu,

vinho com coca­cola. Atenção: na ilha jamaispeça coca, assim sem mais nem menos, ou arecebe numa bandeja. Quanto mais nobre ovinho, melhor o porta aberta.

Querido — Ver amigo. Qualquer um.“Querido, que bom te conhecer”.

Táubua — Tábua. Nos jornais, o revisor éa “táubua de sauvação”.

Truta à la suíssa — Truta à la Suíça (sic!).A idéia é a de um peixe escalando o Mont Blanc.Por Mont Blanc vai um molho branco mesmo epor truta vai tainha.

Veado — Você pensa que piava é veado?

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Piava não é veado, não. Piava dá em qualquerrio, veado só no Rio Grande.

Xis — Sanduíche. Do inglês,cheeseburger, logo chisburgue, chis e finalmentexis, com s tão chiado quanto o x. Variante: X.

Xis­queijo — Sanduíche com queijo.Variante: x­queijo.

* * *Aproximava­se a Festa da Tainha e

Juliano não entendia mais nada. Zefa, sempresorridente e reboleando os quartos, lhecomunicava que o marido havia telefonado dobarco, que havia matado tantas toneladas depeixe e já naquele matar residia sua primeiraperplexidade. Admitia que pescar peixes soassecomo pleonasmo. Mas matá­los lhe trazia àmente a imagem de um Pithecantropus erectusdando uma cacetada na tainha. Enfim, modosde falar... O que não entendia mesmo era que,quanto mais abundante a safra, mais subia opreço do pescado. Cardumes inundavam o litoralilhéu, entravam pela Barra e invadiam a Lagoa,ofuscando seu olhar com o reflexo de milharesde dorsos prateados. Só faltavam pular foradágua, atravessar coleteando a Avenida dasRendeiras e saltar nos fornos dos restaurantes.Teriam os edis ilhéus revogado a lei da oferta eda procura? Precisava consultar Taba.

No sábado depois da dúvida, juntoujornais e revistas da semana. Taba fenescia aolhos vistos, os pés e as pernas inchadas não lhepermitiam grandes andanças e os jornais nãochegavam à Barra. Zefa já se habituara a sua

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mania de pedestre ancestral. Não mais girava oindicador em torno à orelha quando o viarepechar o morro da lagoa. Não fosse umincidente, aparentemente anódino, o sábadoteria sido perfeito.

Os vizinhos matavam um novilho nodescampado atrás do pátio, o território dosqueroqueros de sua infância, fora acordado pelomugido surdo do animal em agonia durante adegola. Olhou pela janela, alguns pescadoresmantinham preso por cordas o novilho que seesvaía em sangue. Debruçada na cerca, Princesa— pois assim passara a chamar Marília —olhava excitada o jato vermelho e quente — elevia, sentia, o calor de vida que fugia — queesguichava da garganta do animal, as patas jámal conseguindo sustentar o corpo. Ao sentirsua presença na janela, sem conseguir desviar oolhar do novilho que já começava a dobrar osjoelhos, uma voz rouca perguntou, voz de fêmeano cio:

— O professor não gosta de sangue?Degolar bois ou ovelhas havia sido sua

rotina no campo. Mas não gostava. Não sentiaprazer algum em degolar um animal. Algodesagradável o acompanhou em sua caminhadaaté a Barra.

Taba no Três Irmãos, eternamenteolhando o mar. Talvez o vazio. Parecia já tervisto tudo o que tinha a ver e de nada lhe valeriadesviar o olhar em outra direção. À guisa desaudação, jogou­lhe na mesa os jornais, pararoubá­lo àquela contemplação muda.

— Buenas, Bagual. A ilha já começa a te

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confundir?Começava. Mas como sabia?— Basta dar tempo ao tempo, meu guri.

Quem passa um fim­de­semana na ilha, pensatê­la entendido. Se fica dois ou três meses, nãoentende mais nada.

Desatou ávido o pacote de jornais, osolhos engolindo as manchetes, numa espécie deaperitivo à uma leitura posterior. Gostava decitar Hegel: a leitura dos jornais é minha prececotidiana. Seu lar era o planeta, que chamava deplanetinha. O que mais o apaixonava em Buñuelera aquele seu desejo final em Mon derniersoupir, sair da tumba a cada dez anos, compraros jornais da semana e voltar, lívido eesgueirando­se rente aos muros, ao abrigo dasepultura. Falava com ar cansado, esvaía­se —Juliano lembrou o novilho e então entendeu seumal­estar matutino — a olhos vistos sua vontadede viver. Se acontece o pior — pensou Juliano,acometido por dentro de uma vontade de chorar— em vez de flores, levo pro Taba um buquê dejornais. Controlou­se e passou a expor o enigmadas tainhas. Marx, se ressuscitasse na ilha, teriade rever suas teorias.

— A ilha não existe, já te disse. É purailusão dos sentidos. Claro que puseste isto naconta de um jogo de palavras. Vais acabarconcluindo que não é.

Não entendia.— Estás vendo aquelas postas de peixe

frito com pirão, que os íncolas chamam deculinária? Bueno, são postas de tainha. Se

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achas que é peixe fresco, recém­saído do mar, éporque não conheces a ilha.

Talvez não. Mas conhecia muito bem seuinterlocutor. Estavam em plena temporada datainha, naquele sábado inaugurava­se a Festada Tainha, frente ao bar os pescadores faziamarrastão e as redes chegavam às praiasregurgitando de tainhas. A que sofismas apelariapara negar a evidência?

— Nisto teus sentidos não te enganam. Defato, tudo aquilo é tainha.

Sorveu com lentidão um largo gole deuísque, enrolou­o na língua com prazer decondenado que teve seu último desejo satisfeito,antes de mandá­lo rumo aos neurônios.

— Me proibiram beber. Não pode ser bommédico quem proíbe beber, bem que eudesconfiava da pajelança ilhoa. Por que negarum prazerzinho a quem está de partida? Elesacham que quem bebe é bêbado. Misturam éticacom terapia, e eu detesto coquetéis.

Os peixes, já perto da areia, coleteavamcom cada vez mais desespero ao sentir a águafugindo. Juliano, que o conhecia de não poucosbares, sabia que agora sua mente funcionariacomo um televisor desvairado, fixando­sealeatoriamente nesta ou naquela manchete,lembranças passadas e, quem sabe, até mesmono assunto em pauta.

— O Halley. Meu pai viu o Halley.Deteve­se alguns segundos na notícia.

Alguém havia registrado o nome Halley comosua propriedade comercial, quem quisesse usá­

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lo teria de pagar royalties.— Conseguiram comercializar um cometa.

Qualquer dia, acabam projetando comerciais nopôr­de­sol. Horário nobre. Mas o cometinha vaiter de apressar­se se quiser que meus olhos ovejam. Quanto àquelas tainhas, tu não vaissentir nem o cheiro. Estes cem metros, entre nóse a praia, elas jamais os transporão.

As postas de peixe nas mesas eramindubitavelmente de tainha, exalavam um odorde fritura que chegava a infiltrar­se nos poros.Pretenderia Taba desenvolver um novo conto doAsdrúbal?

— Me escuta, meu guri, e aprendeenquanto estou vivo.

O refrão anunciava longas catarinárias.Que não se fizeram esperar e rolavam de suaboca como as contas de um rosário, pareciaaborrecê­lo repetir ad nauseam o óbvio a maisum encatarinado. Que entre aquelas tainhaspingando frituras, que ele, Juliano, hesitava emcomer, e aquelas outras, bonitas, saltitando napraia, não havia parentesco algum. Que astainhas encharcadas de banha oferecidas aosturistas, eram tainhas da costa gaúcha,estocadas desde o ano anterior no Rio Grande doSul. Que a tainha que se contorcia ali na praia,de fato era do litoral catarinense, mas delailhéus e turistas só veriam a cor. Que sequisesse comer uma delas, apanhasse o primeirovôo para São Paulo, com sorte chegas antesdelas, que é para lá que elas vão. Que a Festa daTainha não era festa e tampouco tinha tainha,fora criação sua na Secretaria de Turismo, a

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SETESC.— De uma ilha, os turistas esperam, no

mínimo, peixes. Em julho, gaúchos e tainhasgaúchas, entediados do litoral gaúcho, se dãoencontro aqui, nalguma mesa destas.

Segundo Taba, afirmar que onde tem redeem renda era aliteração barata de publicitárioem crise de criatividade.

— Rede, vá lá, eles precisam fingir quepescam. Pescar tainha é cartão postal, o turistagosta de tirar fotos participando do arrastão, ounão poderia voltar para casa afirmando terpassado alguns dias numa aldeia idílica depescadores. Pesca mesmo se faz em alto mar, elá não tem tainha. Mas renda é pura ficção.Essas toalhas, colchas e chales dessas barracasé tudo confecção industrial, vem do nordeste,São Paulo e até das lojas Renner, lá de PortoAlegre.

Juliano interrompeu­o. A versão em tornoàs tainhas passava, que mais não fosse jácomeçavam a encostar na Barra caminhõesfrigoríficos que engoliam metodicamente oproduto dos arrastões. Mas ele morava naAvenida das Rendeiras, as velhotas batiam bilroo dia todo, a própria Zefa...

— Tudo encenação. Puro teatro. Claro queas mais velhas sabem rendar. Na temporadaposam para os turistas. Ou achas que meiacentena de Zefas abastece o milhão de turistasque invade a ilha a cada ano? O pior de tudo,Bagual...

Pediu outro uísque. Dois bons minutos

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passaram enquanto folheava o último jornal.Despertou com o garçom servindo mais umadose.

— O pior de tudo, tche, é que atrás detoda peça há um dramaturgo. E o autor destasou eu.

Voltou a mergulhar em seu mutismocontemplativo, maneira sua de sublinhar umafrase que queria sublinhar. Na praia, gaivotas ecrianças disputavam os frutos menores doarrastão.

Porto Alegre, anos 60. Com a morte doDiário de Notícias, uma diáspora de jornalistassaíra em busca do pão em outras plagas, osmais jovens aventuravam Rio ou São Paulo. Ele,que começara lá, de metrópoles só queriadistância. Na ilha, começava­se a falar emturismo.

— Dia seguinte, eu estava aqui. Esta gentenão tinha jeito nem pra vender pastel. Quandobolei a Festa da Tainha, se arrancaram ospentelhos, que era muito melhor vender o peixepara São Paulo, que até pescador comiasardinha em lata, como fazer festa da tainha setainha era cara demais para ser consumida nailha? Longa é a jornada do ilhéu até oentendimento, Bagual. Levei um tempão paraconvencer os íncolas que eu não tinha vocaçãoalguma para vendedor de peixes. Queria vendera ilha, afinal para isso me pagavam. A festavingou. Hoje não sei se choro ou choro de tantorir, vendo a gaúchada subir a serra pra comertainha gaúcha a preço de caviar.

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Um menino de muletas aproximou­se damesa, capengando, segurava pela cauda umatainha soberba. Feliz, entregou­a a Taba, comum sorriso de quem se sente privilegiado pelahonra de entregá­la, “presente do pessoal daBarra”. Apesar de suas ácidas considerações —certamente reservadas a interlocutores gaúchos— o jornalista era estimado e respeitado em seuterritório de exílio. Pediu ao garçom de furúnculosupurando sob o olho esquerdo que aguardasse. Mal o aleijadinho deu as costas, riudivertido.

— Ganhaste uma tainha, meu guri, umadas raras que conseguiu atravessar este trechode areia. Ganhaste, porque eu já nem posso vertainha. Se não aceito, eles ficam magoados,acham que faço desfeita. Mas falava das festas.Ou dos eventos, como dizemos na SETESC. AFesta da Laranja foi outra criação nossa. O ilhéupode ser tanso, mas na hora de ganhar dinheirobota o bestunto a funcionar. Já viste algumlaranjal nesta ilha, Bagual? Claro que não. Mascomigo eles descobriram ser possível celebrar oque não existe. A Festa da Laranja foi idéiadeles, me apresentaram muito orgulhosos oprojeto, o que é que o Dr. acha?

Pausa para um gole prolongado de uísque,como se bebesse vida. Jamais o vira embriagado,o copo era apenas muleta.

Achei ótimo. O continente produzlaranjas? Que continue a produzi­las. Nós, daSETESC, vamos vendê­las como frutas da ilha.Daí à Festa do Vinho é um passo. Ou da Maçã.Ou do Queijo. Ou do que nós quisermos. Sei que

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sentes fracassado como ficcionista. Eu, quejamais tive a pretensão de escrever, me sintomelhor que um Nobel. Não te parece convincenteminha primeira peça? Não estão aí os ilhéusrepresentando que pescam, as ilhoasrepresentando que rendam? Olha só quepúblico, que sucesso de bilheteria! Charters deMontevidéu e Buenos Aires, caravanas de PortoAlegre e São Paulo. Que escritor não invejaria talaudiência? Sei, já estás imaginando: todohomem tem seu preço. Mas o jornalismo...

Pausa para olhar o mar. Ou talvez o nada.— O jornalismo, são águas passadas.

Hoje, vivo de ficções. Para muito escritor, isto ésonho. Mas qual grupo social não necessita deficções? Não das grandes ficções, daquelasprofundas, nas quais um escritor aposta suavida, estas são muito incômodas. O homenzinhonosso de cada dia detesta o escritor profundo,ele só complica seu cotidiano. Mas de ficçõesmais singelas, com imprimatur da Igreja e doEstado. A Anita...

Vinha chumbo, e chumbo grosso.— Mais do que os continentes, as ilhas

precisam de mitos. Nós, gaúchos, acabamosproduzindo a heroína ilhoa.

Nova boutade, no mínimo. Ou iria negar acatarinicidade de Anita?

— Sei... sei... Mas essa pobre coitada,eleita heroína por ter largado o corno do maridoe seguido atrás dos lindos olhos azuis doGaribaldi... Em verdade, é produção gaúcha. Elapode ter nascido não importa onde, mas o

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movimento que a criou foi um gesto de gaúchos.Não fosse a Revolução Farroupilha, nem vultosos aborígenes teriam para cultuar. Não meacusa de bairrismo. Borges, o tão celebradoJorge Luís Borges das universidades, que nadatem a ver com o peixe, já escreveu: quem convivecom um gaúcho adquire mania de líder. Se bemque não deixa de ser sugestivo, ter como heroínauma mulher que larga o marido. Melhor nãofalar disso nas escolas.

Os caminhões frigoríficos haviam engolidotoda safra do arrastão. Na areia jaziam algumasarraias e peixes menores, alimentando a disputaentre pivetes e gaivotas. Juliano não aceitava —ou talvez começasse a temer um dia ter deaceitar — aquele desalento sem nome, vocaçãopara a entropia, do amigo sempre sarcástico.Nos dias de Porto Alegre, Taba deixava pelomenos entrever uma nesga de esperança. Eleestava chegando, não iria falar do que nãoconhecia. Mas Taba teria de convir que PortoAlegre havia virado selva de concreto. Enquantoque aquele mar, aqueles morros, o bucolismodaquela paisagem...

— Pode ser... mas com a paisagem eu nãoconsigo conversar.

Uma vida miúda fluía na praia, um arapuãdesceu do morro e encarapitou­se em um postecravado na areia.

— Nem Marx, com suas pretensas leis,explica esta ilha — retomou Taba —. É precisovoltar um pouco mais atrás. Claro que conhecesSwift.

Que tinha a ver o deão com a ilha?

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— Lembras da viagem à Laputa?Uma gaivota engasgada com um peixe

expulsou o arapuã do poste. À beira da praiadesenvolvia­se toda uma outra luta, em níveltalvez inferior, mas nem por isso menos luta. Lávinham mais catarinárias. Para começar, o nívelde ruído. Que na segunda manhã em Laputa,Gulliver quase enlouquecera, o povo da ilhatinha os ouvidos adaptados para ouvir a músicadas esferas e naquela manhã a corte executavasua parte.

— A diferença é que aqui só se ouve amúsica da corte, jamais a das esferas. Estesanalfabetos todos pagos pelo governo, aquelessurfistas ali no mar, financiados pelo Estadopara fazer paisagem, que abafam o ruído dasondas com decibéis, isto não é obra minha,desta sou inocente. Já viste povinho maisbarulhento que este, Bagual?

Não. Não por acaso, passara a tapar osouvidos com algodão. Para os ilhéus, descobrira,música igual a rock, decibéis sinônimo destatus. Quanto mais watts comportava umacaixa de som, mais prestígio conferia ao animalportador. Taba resolvera o problema a seu modo.Com muita lábia e algumas citações com jeito debíblicas — no príncipio não havia sons —conseguira vender o óbvio nos Três Irmãos: quecivilização era silêncio. Apontou um casario naencosta do morro.

— Lá. Foi lá que descobri que as utopiassão inviáveis.

Esboçou num guardanapo o perfil domorro e nele incrustou um retângulo perto do

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topo, apoiado sobre uma base estreita. Era a tirade terra que havia comprado ao chegar na ilha, apreço de banana, o território onde uma vezpretendeu habitar, embalado pelo ruído do mar.

— Meu sonho não durou meio ano, tche!Desenhou outro retângulo vertical no

morro, paralelo a seu terreno.— Um pescador, um destes seres idílicos

quando vistos de longe, comprou a faixa ao lado,ali onde estão aquelas quatro casas. Dividiu oterreno com os filhos, cada um comproualgumas toneladas de decibéis. Eu recebia rockpelo flanco, Teixeirinha por cima, futebol pelosopé. Tinha escalavrado minhas mãoslevantando cercas e paredes, me sentia umThoreau construindo minha utopia, e a barbárieme ataca com ruídos. Vendi meu refúgio, jásemiconstruído, pela metade do que paguei pelatira de mato virgem.

Considerava Swift o melhor analistapolítico da ilha, o único teórico a propor ummodelo para explicá­la.

— Na ilha flutuante — continuou, olharfixo em seu ex­projeto de utopia — vivia a classedirigente, às custas do trabalho dos homens docontinente. Esta gente — e olhou em torno,identificando com o olhar o alvo de seusarcasmo — esta gente não produz nem mesmoa água que bebe. Se o pessoal do continenteousasse um dia insubordinar­se, era só fechar atorneira e os íncolas morriam de sede. As pontessão canudos, pelas pontes a ilha chupa o sanguedo continente.

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Swift, para Juliano, eram leituraspassadas. Se bem lembrava, em Laputa haviasanções.

— Claro que havia. Em caso de rebelião, orei estacionava a ilha sobre a cidade amotinadae sobre os campos que a rodeavam. Os rebeldesficavam sem sol nem chuva. Em casos maisgraves, eram bombardeados com pedras. Aqui, ailha previne qualquer motim abafando ocontinente com sua sombra corruptora.Bombardeia com cabides de emprego.

Juliano, maravilhado. O jornalismoroubara aos gaúchos um ficcionista dos bons.Justapunha uma frase à outra, uma leitura aum fato, e a realidade circundante tomava novascores, como a arapuã ao abrir as asas. O quetalvez explicasse sua sensação de fracasso,consumira seu talento tentando reelaborar osdados brutos do cotidiano. Se não explicava seuamargor, pelo menos elucidava aquele eternocopo em punho.

— As semelhanças estão longe de acabar.Qual era o sentimento predominante entre oslaputianos?

Antes que Juliano aventasse qualquerhipótese, respondeu, dedo em riste dirigido auma mosca bêbada que trocava pernas peloxadrez da toalha:

— Medo. Medo de tudo. Medo de que aterra fosse engolida pelo sol. De que o soldeixasse de fornecer luz ao mundo. De que opróximo cometa — e o Halley é para o ano quevem — destruísse a terra. Todas as manhãs, oslaputianos se perguntavam pela saúde do sol.

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Aqui, o medo é de barnabé, todas as manhãs seperguntam pela saúde do governo.

Fim do reboliço do arrastão. Corvoscapengas aterrissavam na praia para limpá­ladas sobras das gaivotas. A inclinação do solamaciava o verde dos morros e fazia tender aocinza o azul do mar. Não fosse o azedume deTaba, força alguma no mundo lhe eliminaria asensação de estar tomando um trago numa dastascas do paraíso.

— Continuando: as mulheres de Laputaeram dotadas de grande vivacidade, detestavamos maridos e adoravam os estrangeiros. Em meioa esta gente de fora, sempre desprezada pelacorte, as damas elegiam seus amantes. Se saíamde Laputa, por nada do mundo voltavam à ilha.O homem parece ter previsto a saga de Anita,nem morta voltou para cá. Mas devagar naspedras, Bagual. Cuidado com elas, que nestailha Deus ainda não morreu.

Soava­lhe de forma estranha aquele alerta,estranha mas oportuna. Em seus poucos mesesde Lagoa, já constatara um conflito latente. Deum lado, havia os íncolas, como dizia Taba,claque irredutível de Deus, Pátria, Família,Fidelidade Conjugal e Virgindade das FilhasNúbeis. Em meio àquela comunidade, quaisfacas calando melancias, instalara­se a gente defora, habitantes de uma outra galáxia, ondesexo, drogas e a ausência de qualquer dogmaconstituíam rotina. Marília esperava o amorolhando o mar, ou melhor, a novela das oito. Aomesmo tempo espumava no entrecoxa ao ver oscasais dando livre vazão a seus ímpetos, nas

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praias ou carros, sempreocupação algumaquanto ao que deles pensassem eventuaisobservadores. Certa madrugada, ao sair ao pátiopara respirar a noite, viu um casalzinho setratando sob um poste de luz. Sentiu a seu ladooutra presença, virou­se e viu, meio àpenumbra, Princesa seminua. Dela só via otorso, estremeções lhe percorriam os ombrosenquanto titilava furiosamente o sexo e abraçavaum bonequinho qualquer. Uma mescla de medoe desejo lhe percorreu a coluna, mais medo doque desejo. Entendia Taba.

— Mas o melhor mesmo é a Academia deLagado. Swift anteviu a própria ALESC.

Os corvos davam por terminada sua faxinae começavam a tomar altura em espirais, aosabor das correntes quentes. Taba, feliz por terao lado um interlocutor, retomou o massacre.Que os acadêmicos de Lagado eram intelectuaissustentados pelo trabalho escravo do continentepara discutir bizantinices. Um deles, há oitoanos, pesquisava como extrair raios de sol dospepinos. Que outro pretendia reconverter oexcremento humano nos alimentos originais.Que um terceiro queria transformar o gelo empólvora, por calcinação. Havia os queamaciavam o mármore para fazer travesseiros eos que petrificavam os cascos dos cavalos, parasalvá­los do atroamento.

— Isto não te lembra nada?Não. Onde queria chegar?— É que ainda não conheces os

mecanismos de poder da ilha. O santo dossantos é a ALESC, a Academia de Letras do

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Estado de Santa Catarina — enunciava Taba,empostando a voz —. Os imortais estãobuscando até hoje a tal de identidade cultural.Ora, em uma ilha que nada produz a não serpaisagem, extrair raios de sol de um pepino éprojeto bem mais factível.

Praia já quase deserta, pescadoresempurrando barcos rumo a barracos.

— Quarenta medíocres emperiquitadosposando de escritores, tche! Mais da metade nãotem um livro sequer publicado. Os que escrevemproduzem uma espécie de realismo­socialistainsular onde cantam o azul do mar e o verde dosmorros. Como se literatura tivesse por funçãoatrair turistas. Ora, isto é função minha, masnem por isso me julgo escritor. Claro que nãorecebem um vintém pelo fato de seremacadêmicos, jamais cometeriam tal sacrilégio,ars gratia artis! Mas cada um têm em média trêsou quatro cargos públicos. Onde, em qualquerlugar do mundo, viste quarenta pessoasocupando mais de cem empregos? Nem nas Mil eUma Noites. Ali Babá e os seus tinham de lutarpela vida.

Mar e morro começavam a confundir­seem um gris indistinto.

— Não há poeta medíocre — concluiu —que não seja candidato potencial a um cargopúblico.

Chamou o garçom carbunculoso eordenou mais uma dose com um gesto depolegar.

— O Dr. Notório... Já ouviste falar do

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Doutor Notório Saber?Conhecia vários. Era a fórmula mais

cômoda encontrada pela universidade paraaumentar salários de professores incapazes deuma pesquisa. Eram geralmente gordos e velhos.O garçom pendeu a pústula sobre a mesa eserviu dois uísques.

— É velho e esbelto, adora expor as lourasbarbas ao vento declamando poemas debaixo dafigueira da Praça Xivi. Physique du rôle é o quenão lhe falta. Fundou a ALESC, o Machadoilhéu, líder inconteste dos imortais de Laputa.

Sorveu o álcool com ganas, ar de quemquer morrer em pleno gozo.

— Minha modéstia me impede de declinara graça de quem o batizou, é claro. Pois ohomem revelou­se um personagem que escritoralgum jamais conceberia — e já começava a rirantecipando o relato — um desses seres que só arealidade é capaz de criar. Fundou a tal deacadêmia há várias décadas e voltou paracomemorar seus quarenta anos. Até aí nadademais — e recomeçava a rir, aos tropeços,ríctus doloroso de asmático — mas não é que ohomem volta com próprio busto debaixo dobraço. Quer fincá­lo não importa onde. Tentouna praça Xivi, a prefeitura barrou. Tentou “oscampos universitário”, mas não esperava que “osuniversitário” chiassem. Tomou de assalto osalão nobre da Assembléia e os deputadosacharam que, busto por busto, melhor o deles.

Ria, a carcaça sacudida por convulsões.— Dr. Notório... Esse, nem eu, nem tu,

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nem Kafka ou Ionesco conceberiam. Só a ilhamesmo, esta ilha e nenhuma outra.

A tarde também morria.Parecia nutrir­se de uma relação de amor

e ódio ante a ilha. Juliano seria o último doshomens a reprová­lo. Não alimentara a mesmaatitude em relação a Paris? Alguns anos jáhaviam transcorrido desde sua volta e ainda nãodescobrira se amava ou detestava aquelamulher. Pois Paris só podia ser mulher, homemalgum cultiva tais ambivalências em relação aum outro homem. Mas Paris era passagem,sempre havido sido para todo estrangeiro embusca de si. Era também passado. O melhorlugar do mundo — considerava com seus botões— é aquele onde estou. Onde estavavoluntariamente, bem entendido, que jamaisestamos por prazer ou livre opção em umacadeia ou hospital. Poderia ter tentado PortoAlegre, São Paulo ou Curitiba, o Brasil não eraum Uruguai, onde fora de Montevidéu não haviasalvação. Ou Madri ou Lisboa, onde se sentia emcasa. Mas preferira a ilha e nela estava bem,sem entender o azedume de Taba.

Vivia longe de relógios. Despertava comuma orquestra insana oficiando um caóticoconcerto no viveiro da Zefa, canários e caturritasafinando violinos e serrotes, corruíras chiandoassustadas com alguma ameaça, em meio àsvozes confusas de sabiás, tucanos, pica­paus ebem­te­vis, a bicharada menor em cárcereprivado, os maiores observando de fora ospresidiários. Sem falar nas gargalhadashistéricas do joão­de­barro, de rancho instalado

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no poste de luz frente à casa, e a cantoria todapontuada pela bigorna da araponga. No campoao fundo da casa, quero­queros revoando comgritos de guerra em época de postura. Tudo eraÉden. Ou talvez nem tanto. O pequinês da Zefaaparecera frente à casa. Apanhou­o pela pele dopescoço, ferimento nenhum que pudesse indicaratropelamento ou pauladas. Mas o pênis pendiainforme, inchado demais para o pequeno portedo animal, inchado e mutilado. Entendeu entãoos gemidos de Princesa no silêncio da noite. Suasilhueta parecia morder e brincar com umursinho de pelúcia.

* * *— Los frutos de este árbol son tan

variados como lo son los pecados. Algunaspersonas no ven que son frutos propios paraanimales: son los que viven en la inmundicia,haciendo com su carne y con su espíritu lo quehace el puerco, que se revuelca en el lodo de lacarnalidad. Almas embrutecidas! Dónde habéisdejado la dignidad? Habéis sido hermanos de losángeles y os hán convertido en sucias bestias!

Da sacada do Pólis, escorado em umacerveja, Juliano contemplava a fauna miúda quedesembocava na Praça Xivi. Era sábado. “Ay quetoma, ay que toma, ay que toma, mi culito es degoma”. Para observar o mundo bastavam poucosmetros de altura. Quem enunciara mesmoaquela evidência? Lembrava de um velhote emum filme polonês, Um dia, um gato. O balcão dorestaurante estaria a uns quatro ou cincometros do solo, lhe permitia visão de conjuntodaquele universo de seres. Talvez se

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pretendessem livres, sem sequer perceber quefaziam todos os dias, inexoravelmente, o mesmopercurso. À frente, a “antiga figueira onde vouler meu jornal”, que rendia rimas atrozes com a“velha rendeira tradicional”, no estro doscandidatos locais ao Parnaso. “Parece que foi àsombra de sua ramada cúmplice que Garibaldiconheceu Anita”, ria Taba sozinho, e continuavacriando: “foi ali que Saint­Exupéry concebeu OPequeno Príncipe, o baobá aquele não era umbaobá, mas a figueira. O Cavaleiro daEsperança, quando aterrissou no Campechepara salvar o Brasil do imperialismo ianque, deutrês voltas em torno dela de mãozinhas com aOlga Benário e depois de velho perdeu o cabaço.Pode não ser verdade, mas quem vai dizer quenão?”

A árvore não negava sua sombra a turistase desocupados, loucos místicos e loucos mansos,prostitutas de calçada e prostitutas de Estado,filhos da classe média ilhoa a pretexto deatividades culturais atordoando os transeuntescom toneladas de decibéis. Sábado, as putas deEstado pareciam ter deixado a figueira livre,para gáudio da Velha Europa.

— No hay pecado tan abominable comoéste. Esto lo comprendieron los filósofos no porla luz de la gracia, que no tenían, sino que lanaturaleza les iluminó, es decir, les decía queeste pecado vuelve ciego el entendimiento. Estailha tem pecado muito contra a carne, o pecadoveio pela ponte velha, continua a chegar pelaponte nova e ainda falam em erguer umaterceira ponte, para que a ilha se afogue no

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pecado. Os dias são chegados, o mal chegarápelas pontes, pela velha e pela nova, e tambémpela terceira ponte, se terceira ponte houverantes do Dia do Juízo.

— Quem te viu e quem te vê.Era Bom Cabelo, o garçom. Perplexo,

escutava os anátemas de Catarina.— E ainda se diz santa. O professor

conhece essa mulher.Em parte. Mas queria ouvir nova versão.— Parece ser argentina.O garçom girou a mão num gesto de

enfado, o mesmo gesto de Zefa ao ouvi­lo dizerque não tinha rádio nem televisor.

— Talvez, professor. Mas antes de serargentina, paraguaia ou boliviana, que de ondeela veio ninguém sabe, antes de tudo é louca.Não é louca de atar, de manicômio, professor. Élouca de puta. Dá o ano todo e quando seaproxima a Semana Santa vem pra baixo dafigueira pregar castidade. O professor querapostar? Mal o Cristo ressuscita, ela sai a fazerstriptease em mesa de bar.

Velha Europa, sem concorrência,inundava a praça com seu verbo.

— Este arbol tiene siete ramas, que seinclinan hacia la tierra. De ellas nacen flores yhojas. Son los siete pecados mortales, que sehallan repletos de otros diversos y muynumerosos pecados, unidos a la raíz y al troncodel amor propio y de la soberbia, la cualprimeramente ha producido las ramas y lasflores de los pensamientos. Después sale la hoja

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de las palabras y el fruto de las malas obras.Están inclinadas hacia la tierra, es decir, que lasramas de los pecados mortales no se dirigen másque a la tierra de la frivolidad e desordenadasustancia del mundo. Además, como no puedenalimentarse de la tierra, nunca se sacian, y deahí su insatisfacción. Son insaciables einsoportables a si mismas. Siempre se han dehallar inquietas, inclinadas a desear, a quererlas cosas que causan insatisfacción.

Bom Cabelo fremia. Indignado, quasegaguejava:

— Se o professor visse... Melhor nem falar.Mas já que comecei... Sabe, professor, ela esteveaqui, nesta mesa que o senhor gosta, trazia doisadolescentes a tiracolo. Empinou um copo decerveja de um gole só, olhou para aquelas duascrianças, parecia cobra olhando pra ticotico,professor, e disse: “de mi boca no cae una gota”.E agora, professor, bota banca de virtuosa. Dápra entender, professor?

Talvez desse. Mas não seria fácil explicarao garçom. Velha Europa falava várias línguas, oque não implicava higidez mental. A figueiraconstituía uma tribuna tentadora. Debaixo delabrandiam a palavra não só os malucos de Jeová,mórmons, evangelistas quadrangulares,científicos em Cristo ou coisa que os valha. Paralá afluíam as esquerdas, militantes das diversasseitas do PC, enfim, se algum poeta em busca derimas pobres cantava a velha figueira tradicionalonde em tardes fagueiras ia ler seu jornal, queencontrasse outras imagens para louvá­la, quetudo era possível sob sua copa, menos ler. Santa

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falava dos ofícios da língua e da boca:— El alma me habla con la lengua, que

está en la boca del santo deseo. En la boca se dala paz y la quietud y mi lengua ha sido creadapara darme honor, reconocer sus pecados ytrabajar por amor de la virtud y por la salvacióndel prójimo.

Inquieto, o garçom queria falar. Julianodeu­lhe corda. Que falasse Bom Cabelo.

— Professor...Viriam grandes revelações, o garçom

tentava segurar uma gargalhada antecipada.Ainda escreveria um dia algo intitulado “Oshomens de minha vida”. Eram os garçons. Ondequer que estivesse, elegia seu ponto deobservação em função deles. Por ofício, deveriamser discretos. Escolhia o bar menos pela cozinhado que pelo garçom. Sem um cúmplice, nadafeito.

— Numa festa do Santíssimo, o professordesculpe, não consigo contar a história sem rir,ela recebeu um pão­por­deus, esses versinhosque as moças recebem nessas festas. Comperdão da má palavra, professor, era assim: “óVelha Europa sotreta, um dia hás de levarchumbo, pra largar esse vício imundo de andarchupando buceta”.

Ali havia o dedo de Taba, considerouJuliano. Bom Cabelo se afogou em umagargalhada que lhe avermelhava o rosto.

— Agora a mulher vem dizer que a pazestá na boca, que tem língua para salvar opróximo. Desse jeito, professor, quem não quer

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ser salvo?A descoberta da figueira por Catarina, ou

como quer que se chamasse, segundo Taba foraacidental. Estaria passando pela praça, quandoum crente qualquer bradou: “Senhor, vós quedisseste...” Ciosa da língua, Velha Europa o teriacorrigido: “Vós que dissestes. Vocês, homens dapalavra, deveriam saber usá­la”. Como sempredeambulava pela praça, os apóstolos das boasnovas falavam baixinho quando ela passava.“Homens de pouca fé, porque silenciais quandovos miro?” Dali a deitar verbo, fora um passo.Sem ter igreja, já tinha platéia.

— Malditas sejam as pontes e malditossejam os pontífices. Pelas pontes chegam osgaúchos e o pecado, pelas pontes chegam ospaulistas e a cocaína, os argentinos e o dólar.Pelas pontes vai chegar o castigo e a ilha só serásalva no dia em que caírem as pontes, malditassejam!

Vanva. Chegou e sentou, sem maispalavras. Perplexo. Pegou com força a mão deJuliano. Bom Cabelo tornou­se frio e impessoal,como se tivesse de servir o próprio mal.

— Mataram metade da vida, meu apóstataquerido. Minto. Mais da metade.

Um sargento da polícia feminina postou­sejunto à sacada, apito em punho. Olhos de umazul que chamavam a um mergulho sem volta.Vanva só tinha uma objeção, preferia umsargento legítimo. “Não fazem mais sargentoscomo antigamente”, costumava suspirar em seusdias de bom humor. Juliano sentiu a mãopercorrer­lhe o braço para fixar­se junto ao

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cotovelo. O garçom desertou da sacada.— Deviam erguer­nos um monumento —

retomou Vanva, voz embargada, olhos vazios,rosto chupado —. Nós reinventamos a orgia, nósinstalamos a utopia neste século triste. Assaunas todas do Ocidente, de Paris a Nova York,de Sampa a Floripa, eram territórios de livrefantasia. No melhor da festa, surge a peste.Praga do Vaticano, só pode ser, disso não tenhoa menor dúvida. Quando algo de ruim aconteceno mundo, a culpa é do papa. Enquanto aciência não conjura o mal — dizia, quebrandoteatralmente o pulso — vamos viver o interregnoda punheta. Eu, minha mão e Deus...

As nuvens do Cambirela, encimando aBaía Sul, prenunciavam chuva, pelo menossegundo a ótica de Bom Cabelo. O garçomadorava divulgar os feitos de Velha Europa, masdava no pé mal via Vanva. Na praça, osflamboyants circundavam a figueira como umherpes de vermelho histérico. Indiferençaabsoluta de Vanva ante aquela manhã gloriosa,que qualquer deus se orgulharia de assinarembaixo.

— Sete são os dias da semana, sete são ascolinas de Roma e sete são as curvas do morroda Lagoa — continuava Catarina sua cabala —.Pelas três pontes entrará o pecado montado emseu castigo, e pelas sete curvas do morroinundará a Lagoa e as praias da ilha. Por seteanos o mal vai incubar. Quando caírem aspontes e for chegado o dia, só vai ficar de péquem não pecou.

Bom Cabelo, ríspido, interroga Vanva.

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— Um cerveja, meu querido, antes que omundo acabe. Mataram metade da vida, Juliano.Metade e mais um pouco.

Continuavam com os antebraços colados,para asco do garçom, indeciso entre a estima ao“professor” e a ojeriza ante o “anormal”. Julianoprocurou­lhe os olhos. Para sua surpresa,descobriu­os verdes. Nada ficavam a dever aosda sargenta cheia de formas e apito, que maispelas primeiras parava o trânsito frente ao Pólis.Um bom lugar para morrer... Começava aentender Taba. Vanva estava vivo, tanto quesofria. Ao mesmo tempo estava morto, nele nãomais existia o pianista e os sonhos do pianista.Eventuais concertos em salas poeirentas, pianodesafinado e público analfabeto, o faziammergulhar no álcool e xingar a mãe, onde já seviu batizar um filho com meu nome erecomendá­lo às musas, melhor me abortasse oucomprasse uma sanfona, João da Gaita, ça va!Trajava um terno folgado de linho branco,camisa verde de amplas golas avançando pelosombros, cabelos e leve moustache impecáveis,relógio de ouro cintilando ao pulso, todo umcharme de sátiro consciente de que dali emdiante tudo é descida. Vanva tinha então olhosverdes! Jamais se preocupara com a cor dosolhos de seus interlocutores. A sargenta era umaexceção, aquelas duas moedas imensasbrilhavam ao longe.

— Sei que teu negócio é mulher, Juliano.Acho que sei, vida sexual sempre é umasurpresa. Mas mulher alguma vai te dar o queum homem te daria. Não ri, não pretendo te pôr

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no vício. Na mulher, o desejo não se deixa ver, édiscreto. Um, dois, três machos de falo em riste,meu querido, o ângulo do cacete insinuando aintensidade da tesão, aquela alegria de criançaque ainda não ouviu falar de pecado, nessaaltura todo mundo vira criança curtindo opróprio corpo e dele extraindo prazer. Tudo issoeu vivi, aquelas cirandas que não se sabe ondeacabam ou começam, orgasmos rápidos eangustiados, ou lentos ou mesmo orgasmoalgum, apenas tensão, ah!, isso tu não conheces.Mulher, quando a gente propõe uma orgia,pensa logo em feijoada ou espeto corrido. Autopia estava aqui, ao alcance da mão, nãoprecisamos mais nos refugiar no Fédon ou noBanquete, chega de alegar que Platão era, queSócrates era, que Cervantes também, e pareceque até mesmo Cristo era chegado ao bomesporte. Mecanismos de defesa de bicha erudita,as metafísicas, precisam de pioneiros ilustres esólidos antecedentes para entregar­se ao que ocorpo pede.

Vanva falava com verve, excitado, como sequisesse conjurar as pragas de Velha Europa.Enquanto aquele amor de sargento — precisariamesmo de apito para parar o trânsito? — retinhaos carros, uma tropa saltitante de harekrishnasinvadia a praça Xivi, chocalhos e tamboresabafando o apocalipse.

— O tempo entre meu desejo e a satisfaçãode meu desejo, Juliano, é a distância entre umolhar e o quarto mais próximo. Nem precisa serquarto, pode ser um mictório interessante.Dispensamos palavras, torneios, identidade. Isto

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é, dispensávamos. A alegria da trepada anônima,a excitação do desconhecido, tudo é passado.Hoje, quem tem cu tem medo.

Aquele humor abrupto rematava com umaestocada rasteira as mais nobres consideraçõeshumanísticas. Vanva não ria, parecia estar maisperto de chorar.

— Os tempos são chegados — esbravejavaSanta, tentando sobrepor a voz aos harekrisnas,o que exigia não pouco de seus escassospulmões —. Mensageiro é o que não nos falta, ocometa é o primeiro. Mas o cometa não traz amorte. É só um alerta aos que quiseremabandonar o pecado e fugir da morte. Que ospecadores ergam os olhos aos céus desta ilhapecadora. Quando virem a estrela de setecaudas, seus dias serão chegados.

— Eles são ótimos! — sorriu Vanva,soltando o braço de Juliano —. Do jeito que vãoas coisas, apostar no apolicapse é aposta ganha.O cometa é sempre pontual. Se a peste se fazesperar, há sempre guerras, medo nuclear. Sóperde quem aposta na vida.

Pelo outro lado da praça, avançavamoutros pregadores, cercados de mulheres derosto sem expressão e cabelos pelos quadris.Que os anos e os dias estivessem contados, erauma questão de fé. Que os minutos de VelhaEuropa chegavam ao fim era uma evidência. Emmeia hora, a figueira abrigaria mais profetas queas margens do Jordão nos dias de Cristo.

— Aquela rodinha ao lado da banca dejornais — retornou Vanva —. Olha só as posesde macho e os bigodes de piaçava. Mais da

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metade deles são meus parceiros de sauna.Talvez todos, no escuro o que menos interessa éo rosto. Outro dia, no café da esquina, olhei emtorno e não havia um só no balcão que eu nãotivesse transado. Todos muito viris, muitossenhores de si, contando proezas de motéis. Vaipor mim, meu Juliano apóstata, quanto maisespesso o bigode mais adoram chupar um matee eu os perdôo porque eles sabem o que fazem,afinal quem não gosta do bem bom? Pau duronão tem amigo.

Dissessem os gaúchos o que quisessemsobre a ilha, Juliano nela não se sentia mal.Fascinava­o aquela confluência de universosparalelos, diversos mas no fundo um só. Osseres humanos, por mais peculiares que sepretendessem, eram todos feitos do mesmobarro. Bom Cabelo o estimava e se divertia àscustas de Catarina. Mas o braço de Vanvacolado ao seu perturbava a Weltanschaaung dogarçom. Os machíssimos senhores queenrubesceriam se Vanva os cumprimentasse narua, certamente o teriam visto na sacada, quemais não fosse falava com o mesmo entusiasmode Velha Europa brandindo o apocalipse. Se ohaviam visto sentiam­se também vistos. Paratodos os efeitos ninguém conhecia ninguém. Asproposições dos místicos que pregavam a todosazimutes tampouco constituíam novidade,diferentes rebanhos de ingênuos seduzidos poralguns vivaldinos em busca de dinheiro e poder.Se algo de misterioso restava naquele campo deobservação, estava ali à sua frente, poucosmetros abaixo, o sargento cheio de charme que

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comandava os carros com um grácil gesto deancas. Ou talvez não houvesse mistério algum.Terminado seu turno, provavelmente ela seaplastaria ante um vídeo, sonhando os sonhoscuidadosamente confeccionados pela rede Globo.Pela esquerda, anunciando o meio­dia, reboaramos sinos da catedral, os bronzes dominando oalarido ecumênico da praça. “Dois mil anos dáum puta prestígio” — pensou Juliano —“sacerdote algum de tal seita precisa fazerproselitismo debaixo de figueiras”.

— Tenho peninha é das maridas...Vanva ainda não dera por concluído seu

raciocínio.— Elas se enfeitam, se julgam

sensualíssimas, quando os machões sóconseguem erguer o cacete evocando as tardesde sauna.

Vencida pelos sinos, tambores e pelo verbode outros deuses, Velha Europa deu porencerrada sua pregação. Pelo apocalipseninguém perdia por esperar.

— Ela vem para cá, Professor — alertou ogarçom —. Tão certo como Deus existe, vaisentar na sua mesa.

Nem uma coisa nem outra eram evidentespara Juliano. Adivinhava em Bom Cabelo umsecreto prazer em opor, a Vanva, a VelhaEuropa.

Ilhas. Geografia à parte, o que fazia umailha ser ilha? — se perguntava Juliano. Algo nasilhas atraía aqueles seres. Velha Europadesfilava gloriosa por entre as mesas do Pólis,

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rumo à sacada. Abraçou Vanva com efusão, ogarçom já não entendia mais nada, há pouconão prometia a mulher o fogo do inferno para ospecadores? Para Juliano, dirigiu um olharquente e dúbia saudação.

— Recuerdate, hombre, que éres polvo y alpolvo revertirás.

Sem sequer imaginar o que estava atrásdo trocadilho do pássaro exótico, Bom Cabeloesforçava­se para ser gentil. Vanva pediu umcopo.

— Porque el hombre — arrematou aosentar­se — no es hecho de carne, sino de polvo.

Manipulava a seu grado a língua que lheconvinha, conseguia manifestar seu gosto pelafoda enquanto o público externo a julgavabrandindo o apocalipse. “Pra tansa não serve”,ponderou Juliano. Vanva, cosmopolita e safado,ria sozinho, olhar perdido em algum ponto dasnuvens do Cambirela. Surpreendeu­se já quaseilhéu. Tanso: ao ouvir pela primeira vez apalavra, fez que a entendia, em verdade jamais aouvira. Taba o advertira: nesta ilha, ou és tansoou viras tenso, hipertanso ou hipertenso, não hámeio termo. O garçom serviu divertido VelhaEuropa e postou­se no outro canto da sacada,orelha em riste.

Tinha qualquer coisa de francês, quiçás deeslavo, nas guturais, algo de quem aprendeumuitas línguas ou fragmentos de língua nosleitos da vida. Gabava­se de ter feito toda aEuropa, da Itália ao Ártico de carona, “quem temboca vai a Roma”. Vanva se deliciava com suasconsiderações sobre uma matéria que, em falta

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de melhor nome, definia como cunilinguísticaindoeuropéia comparada: “Mon Dieu, como sechupa en el Ocidente. C’est pas comme ça enPologne. Allá las nenas lo llevan por delante ypar derrière, pero la boca solo tienen parahostias”.

De uma experiência milenar de cama emesa, Velha Europa extraía suas teorias. Quenão podia ser de outra forma. Que o socialismoeliminara no Leste toda e qualquer coisa que sepudesse chamar de culinária, tudo que seingeria pela boca tinha gosto de nada, uma coisaera uma boca ocidental e decadente, viciadadans les saveurs les plus exquises, e outra eraum pálato que só sabia distinguir sal do açúcar,isso quando não faltava um ou outro. Vanvasimpatizava com a tese, afinal justificava seuspersonalíssimos deleites, a culinária da ilha nãoia além do peixe frito com pirão. A presençainsólita dos serzinho erótico­apocalíptico pareciater devolvido ao pianista arqueólogo seu espíritode porco costumeiro.

— Conta, Santa, tua fuga do Egito.— De muchas cosas he huído, hombre,

pero jamás de Egipto.— De Teerã, querida, de Teerã, nunca sei

quem é árabe ou persa naqueles desertos.Solicitada, Velha Europa quase chegava a

um orgasmo verbal. No que nada tinha deoriginal. Os ilhéus, com ou sem megafone empunho, pareciam embriagar­se com as própriaspalavras. Que mais não fosse, seus colegas deLetras não abusavam do direito de falar semdizer nada? Que falasse Santa.

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— Se me descuido, me capam, Vanvita.A pregadora mais furiosa que João em

Patmos se transfigurava, era agora experientecortesã narrando loucuras passadas. Dançavaem uma boate na Teerã do Xá quando osaiatolás entraram na cidade a ferro e fogo,metralha varrendo bares e vitrines, álcool nãosobrou nem pra remédio, o guarda­roupa datrupe queimado pelos pasdarans. De calcinhas epassaporte, enrolada num chador, contente porestar viva, ela se refugiara no consuladobrasileiro. Vanva, emerso do mundo dos mortos,queria detalhes:

— Verdade, Santa, que os celeradosqueriam te cortar o clitóris?

— Ameaçaram. Mas morro dando e nãoentrego.

Bom Cabelo dava as costas, fingia olhar acatedral. Santa voltava a ser Messalina.

— Morrer nunca foi tão fácil — atalhouVanva, uma nuvem qualquer pairando em seusolhos, logo afastada pela algaravia da mulher.

— O professor consegue me imaginar dechador e fio dental? Pois assim nos jogaram noconsulado, com recomendações de nunca maisvoltar, que o Senhor os perdoe, eles não sabem oque perderam. Com aquele calor infernal fui medesembaraçando daquelas estopas, tadinho dofuncionário que me atendia, todo vermelho eolhar baixo, mas que fazer? Alá não é meu Deusnem Khomeini meu profeta, não tive culpaalguma se aqueles bárbaros queimaram meuguarda­roupa. Leste o livro de Khomeini,

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Vanvita? O professor leu? Entre outrasaiatolices, discute uma delicada questãoteológica, se o crente deve fazer a higiene analcom uma ou três pedras. Mon Dieu, où étais­jeces jours­lá?

* * *— Professor Paixão!Abraçou­as com efusão. Se na ilha todo

forasteiro sofria uma espécie de rebatismo, nãopodia queixar­se da nova identidade. Ali estavamelas, Marias, Patrícias, Virgínias, Carmens,Elizetes, Gorettes, Ivonetes, Luzinetes, por queestranhas razões aquele sufixo era tão produtivona ilha? Pouco importava. O fato é que aliestavam elas, peitos e coxas ao alcance de suasmãos e generosamente ofertos, o professor gostade pôr atrás? — sugeria Virgínia, curiosa, poiseu também tenho minhas fantasias, sempreimagino um pirata barbudo e com um pauenorme, eu amarrada a um tronco e o pirata merasgando toda, quer, Paixão, quer? Eu sou comoAfrodite, avançava Vera 2, seios em riste, demeus peitos jorra leite em abundância, vemprofessor Paixão, meu terneirinho mamão, quehoje ainda não dei de mamar a ninguém, oprofessor vem? Olha só minha tetinha gotejante,por enquanto é só uma gotinha, mas depois vaiesguichar como um chafariz, é só lamber umpouquinho tua Verinha. Porque é tão bomcontigo, se indaga Gorette, você é tão suave, mederreto por dentro quando te como, não tenhoculpa de meu nome nem nada a ver com minhaxará, ela morreu por não dar e pra você eumorro dando, fica hoje comigo, Paixão? Me

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ajuda, professor, a Capitu pôs ou não pôs oscornos no Bentinho, o vestibular taí e o Machadonão esclarece se o personagem era ou não erachifrudo, se angustiava Tê 1, sossega Tezinhaquerida, que sobre cornos professor nenhum vaite interrogar, já lhes basta o peso dos próprios ese a Capitu não engalanou Bentinho foi debesta, que cornos não são privilégio depersonagens de romances, os cornos são eternose são como Deus, só existem para quem nelescrê. Paixão, Pingo de Porra quer te ver,aconteceu algo e ela não conta pra ninguém,pequena e encolhida a baixinha chorava noescuro, jogou­se ao peito de Juliano comocriança buscando pai, chorava em silêncio efalava aos pedaços, eu já não gosto, Paixão, dehomem de unha grande, caí na besteira de ir proquarto com ele, e seus ombros estremeciamjunto aos ombros de Juliano, lágrimas rolandopescoço abaixo, não conta pra ninguém,paizinho, não conta, é tão... tão... sei lá, é tantacrueldade, ele foi tão vil, quem tem pena delesou eu, alguma doença deve carregar na almaum homem que me enfia o dedo e me rasga dealto a baixo, parecia que me carneava pordentro, pode alguém viver carregando tanto ódio,diz Paixão, pode? e as lágrimas de Julianocomeçaram a molhar o pescoço convulso dePingo de Porra, verdade que os padres é quegostavam de tratar assim as mulheres, paizinho?e Juliano preferiu o silêncio, contasse àquelebichinho machucado pela vida o que de fato ospadres haviam feito ela talvez até absolvesse oanimal que quisera marcar­lhe as entranhas.

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Ali estavam elas, meninas de classe médiatentando fugir ao emprego de banco ou debalcão. De qualquer forma teriam de prestarserviços extras ao chefe sem que por isso fossemmelhor pagas, mães solteiras expulsas de casa ecarregando um filho às costas, meninas docontinente preparando um vestibular ousupletivo, ganhando a vida com o único capitalque portavam, divorciadas que preferiam jogar­se na vida a ter de suportar um marido e mesmomulheres casadas, na ausência ou mesmo com aconivência do marido abriam as pernas paraarredondar o fim do mês. Na sauna, nãoconseguia esquecer as reuniões dos PHDeuses.Humanistas por ofício, se a cada um fosse dadoum punhal antes da reunião, poucos sairiamvivos da sala. Entre elas, pelo menos havia paz,respeito mútuo, e se Pinguinho de Porrasoluçava em um canto escuro da sala derepouso, a agressão era externa e as colegassofriam com seu sofrimento. O contraste guerrae paz, universidade e bordel, era tão imediato eimpositivo, sem notar aos poucos tornou­sehábito para Juliano buscar a paz tão logoterminava a guerra, mal assinava o livro de atasdas dolorosas e inúteis reuniões de professoresvoava para a sauna no primeiro táxi à vista, aperspectiva de algumas horas sem luta já faziasua tensão arterial voltar a níveis aceitáveis,antes mesmo de ter vencido a Beira­Mar Norte.No bordel estava em jogo boa parte dos dramashumanos, mas lá havia objetividade, nãosegundas intenções, lá o armistício erapermanente. Nas pedagógicas reuniões doDepartamento, ao discutir­se inócuos artigos de

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inócuos regulamentos, egos feridos se revolviame brandiam discursos de ódio, expresso deabsurda forma, os doutos humanistas jamaisdiriam você é um filho­da­puta, sai pra fora quete quebro a cara, tais gestos absolutamente nãose coadunavam com um professor de Letras,melhor brandir arabescos colaterais, o artigonúmero tal da instrução normativa númerocaralho e você, caríssimo colega, foda­se emnome da lei, foda­se você e toda sua estirpe, nãoé nada pessoal, estamos apenas respeitandoregras. Já vira não poucos professores sairchorando das malsinadas reuniões e chegavainclusive a questionar­se sobre a gravidade daunha rasgando o sexo da menininha que cessarade soluçar e agora parecia dormir em seu peito,se as feridas na carne mais dia menos diacicatrizavam, o mesmo não se poderia dizer deegos arranhados e amarrotados. O senso dehumanidade parecia ter desertado dos cursos dehumanidades e viera pedir asilo junto às putas.Puta. Se na universidade um vai­pra­puta­que­te­pariu estava sempre aflorando aos lábios dosPHDeuses, ali a palavra era tabu, só permitidaeventualmente por profissional recém­largando omarido, ainda não iniciada nos mistérios doofício. Ou quando a profissional sentia não estarsendo tratada como puta. Vera 2, Jocasta ilhoa,não só lhe permitia tais intimidades, e muito ohonrava ser aceito como amante e não merocliente, insistia com seus peitos, eu sou a Mãe­Puta, vem mamar na tua putinha. Professor,quer saber Tezinha, quem é esse Lira Negracatarinense, deve ter sido poeta importante, tematé clube com o nome dele, coitado do Cruz e

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Souza, morrera negro e desconhecido para umséculo depois virar questão de vestibular, não,Tezinha querida, lira é outra coisa, nada a vercom o clube Lira, senta aqui que eu te tanjo.

E ali estava ele, entre perplexo e divertido,não conseguindo evitar de rir interiormente, nacasa onde todos estavam em função de sexosempre havia cá e lá meninas estudando emfunção de um vestibular ou concurso. Nauniversidade, falava no deserto, adivinhava emnão poucos olhos fundos a doce lembrança derecentes fodas no Meiembipe. Que cadeira vocêprefere? — perguntara Dr. Notório, o chefe doDepartamento. A do réu, ia dizer, mas seconteve, o fato é que se imaginava como eternoacusado e intimamente se comprazia emhipotéticas defesas. Para uso próprio, dividia asociedade em três gomos. Primeiro, o que eramos homens de fato, baratas rastejando às tontas,sempre em direção à morte, e nisto ele nãodiferia nem de Pingo de Porra nem do animalque a ferira fundo: lá adiante, esperando todos,estava a tumba. Taba participava desta suaconcepção e na vida só via um sentido, aconfraternização no naufrágio. Navegamos todosrumo à morte, costumava afirmar, enquantoremamos sempre podemos voltar um bocadoatrás, ancorar numa ilha, quem sabe retardar oinstante do fim, abordar outros náufragos econfraternizar antes que a morte nos leve. Comoâncora para ateus até que era sólida, a teorianão estimulava furar o barco para apressar omergulho

Havia depois os homens que gostariam de

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ser e agir conforme a ética que apregoavam e osque gostariam de ser e agir conforme a ética quenegavam. Trocando em miúdos: de um lado ossátiros que gostariam, por imposições culturais,manter a fidelidade e castidade que apregoavame impunham, de outro os que cultivavamestoicamente tais virtudes, mas no fundoadorariam viver a devassidão dos sátiros semmaiores traumas, os dois tipos acabavamvivendo divididos em um mesmo ser ereservavam uma personalidade para cadacircunstância, o padre tirava a batina paraentrar no prostíbulo e o putanheiro assumiauma aureóla de marido fiel ao discursar em umatribuna. Ambos espécimes constituíam osegundo gomo. No magro terceiro gomo, seassim podia ser chamado, já que raros eram osseus constituintes, braceavam aqueles quejulgavam melhor viver sem mentir, nem a seusinstintos nem aos demais.

Imaginava­se seguidamente na hipotéticacadeira na qual sentava mentalmente, escolhiajuízes e lhes sugeria graves acusações. Dr.Notório era seu magistrado predileto: comenta­se, professor, que além de freqüentar bordéis, osenhor tem relações íntimas com não poucasalunas. Formulava sua defesa: as relações entreprofessor e aluno constituem a culminância doprocesso pedagógico, acaba a distância entre ume outro, o medo do jovem frente ao mais velho,quebra­se finalmente a hierarquia, não vivemosem caserna e a função do professor­visitante,segundo me consta, é fecundar a universidade.Imaginava­se argumentando ora calmo, ora

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iracundo e por vezes a discussão meramentemental lhe provocava taquicardias. Mas Dr.Notório jamais iria assim interpelá­lo e sua visãopedagógica só encontrava tribuna nos bares. Nasauna Anita Garibaldi — não tinha culpa se amania de homenagear heróis com nomes de ruaprovocava tais situações — acabava encontrandoespécimes das três fatias em que dividira ouniverso masculino e no fundo eram todosiguais. Como diria Vanva, pau duro não temamigo. O resto era teatro entre sacerdotes ecrentes, professores e alunos, pais e filhos,marido e mulher. Nas aulas, citavainsistentemente aquela sueca de olhos meigos eprofundos, Karin Boye, uma das primeiras doséculo a desconfiar de utopias desvairadas:“Gostaria de acreditar na existência de umabismo verde no ser humano, um mar de seivaintacta, que funde todos os restos mortos emseu colossal reservatório e os purifica e recriaeternamente... Mas eu não o vi. O que sei é quepais doentes e professores doentes educamcrianças ainda mais doentes, até que a doençase torna norma e a saúde um pesadelo. De seressolitários nascem outros mais solitários ainda,de temerosos outros mais temerosos. Ondepoderia um último resquício de saúde ter­seescondido ainda para crescer e perfurar acarapaça?” Qual cadeira? A do réu — ia dizermas não disse, afinal fora convidado paralecionar literatura.

E lá estavam eles, melhor diria elas, queraros eram os barbados, rostos que à primeiravista não poderia dizer se eram expressivos ou

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inexpressivos, já que permaneciam silentes eimóveis e não lhe era fácil, apesar do hábito,quase vício, de ler rostos, interpretar um rostoestático. Coxas generosamente abertas, ofertaque não deixava de ser simpática, oferta vãenquanto pública, apenas degustada pelosdefroqués, ex­seminaristas e ex­freiras queinfestavam os cursos de Letras. Me escolhestepor minhas coxas, Ju? Nada disso, Carmencita,coxas toda mulher tem, sensualidade está nosolhos e não nelas. La universidad es un acuariodonde las nenas ván pescar. De quem teriaouvido a frase? Talvez de Taba, talvez da VelhaEuropa, que tal afirmação soava coerente naboca de ambos. Mais tarde, só mais tarde,descobriria que a suposta piada era no fundo adefinição mais exata dos cursos de Letras dopaís todo, meninas casadoiras estacionadas noimenso parking universitário enquanto o maridonão surge, barnabés em busca de um papeluchopara promoção, vestibulandos reprovados emáreas técnicas, todos munidos de diferentesrazões mas coesos em único e inflexívelpropósito, o de diplomar­se sem ler um só livro.Algo de humanidade deveria restar­lhes, ocultanalgum escaninho do cérebro.

Sabe, professor, há dias em que a genteacorda sem calcinha, o problema não é esse, ofato é que a gente nem sabe quem nos tirou ascalcinhas, uma noitada de brilho e a genteacorda nua e esfolada numa valeta do Itacorubi,não sei o que aconteceu nem como, acho quetudo começou no motel, havia uma toalha doMeiembipe por perto e era para aqueles

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serezinhos encharcados de álcool e coca quedevia apresentar o grande enigma da literaturanacional, Capitu traiu ou não traiu Bentinho? Omulatinho carioca jamais devia ter aberto aboca, mesmo que tivesse escrito algo inteligentea universidade parecia ter o dom de esterilizar ecastrar qualquer obra, aniquilar qualquerexpressão de revolta, o que importa é a forma,vamos contar, meninas, as sílabas dos sonetosde Gregório de Matos, vamos estudar, minhagente, o emprego do pronome relativo em Eça deQueirós e Juliano não se supreenderia seacabassem extraindo a raiz quadrada de umpoema de Pessoa. Mas o professor não gostaquando a gente mostra o fundinho das coxas?Ora, Ivonete, como gesto acho até simpático,mas se fosse lá em casa era melhor. Verdade,fessor? Mas os outros gostam, e lá estavam ospobres defroqués e filhotes de padre babando nagravata, perdendo o fio da conversa mal umaaluna mostrava as calcinhas. Chez Anita pareciahaver mais pudor, não era bem vista pelaspróprias colegas a profissional que buscasseclientes exibindo o sexo e quando exerciaepisodicamente o magistrado entre elasnenhuma lhe oferecia as coxas em troca deconceitos, lá a moeda era outra. Aí, professor,quando soube que meu marido havia enrabado afaxineira, me pus de quatro, abri bem as pernase disse, se queres continuar nesta casa fazcomigo o que fizeste com ela, mete tudo e já.Hoje vamos examinar, dizia Dr. Notório, “AMissa do Galo”, obra­prima do erotismomachadiano.

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Tão jovens e tão senis! Falava sobremodernismo. Deus morreu, proclama Nietzsche.Os serezinhos assustadiços foram apanhandocadernos e bolsas, algumas persignavam­se,outras defendiam­se como quem sofre, Deus nãopode morrer. Não era mais João quem clamavano deserto, mas Juliano. Criaturas tementes aDeus desde o berço haviam sido educadas nasuperstição milenar, eternamente repetida porprofessores que, se haviam largado a batina,recusavam­se a largar os dogmas que atornavam pesada de portar, não que temessem ofogo eterno ao escutarem impassível a boa novade Zaratustra, nada disso, é que se Deus haviamorrido, com seu cadáver fora enterrado opacote teológico que garantia o exercício datirania do pai ante os filhos, do marido emrelação à mulher, as soluções éticas mais fáceis,tipo filme de mocinho e bandido, o bem e o malperfeitamente delimitados, o que evitava maioresangústias e questionamentos.

Nada de supreendente em um curso cujocorpo docente era constituído por papa­hóstiascontumazes, dependentes de placebosmetafísicos, sem a menor esperança de retorno àlucidez e à coragem. Em uma reunião dosPhDeuses, discutindo Auerbach, manifestara asconsiderações de Celso sobre Maria, Cristo comofilho do soldado romano Pantera, já que algumpai teria de ter, e José, dizia a Bíbllia, não o era.Violenta reação dos colegas, era preciso respeitara fé de cada um, como se em uma reunião depesquisa não fosse a dúvida a melhor virtude.Fé, professora — surpreendeu­se dizendo — você

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a deixa atrás da porta antes de entrar nestasala. Não se preocupe, ninguém vai roubá­la.Fés, tanto boas como más, não faltam nomercado. Na universidade, ou impera a dúvidaou voltamos a condenar Galileu à fogueira, tãologo termine a reunião a professora apanha denovo sua fé e volta com ela à tiracolo para casa.Taba tinha razão, na ilha Deus ainda vivia, sónão imaginou que na universidade... Não seriade espantar que até o reitor fosse à missa.

Chez Anita, o corpo discente parecia teruma visão mais realista da divindade. Semorreu, a mim não foi apresentado quando vivo,dizia Pingo de Porra. Se existe, algo terá contranós, era a opinião mais corrente. Já Vera 2 tinhaidéia bem mais pragmática da deidade, Deusestá em mim e jorra de meus mamilos, Deus fezem mim maravilhas, deu­me um dom para queeu o desse aos homens, vem Paixão, vem, teembebe de mim e de Deus, vem beber­me ebeber sua divina essência. Sedento de Deus,Juliano não resistia a seu chamado e dele seembebedava. Mas também ele participava dadivina substância, Verinha me dá tua língua, hámuito pouco de Deus em mim, mas o pouco queé meu é teu.

Lecionar satisfazia seu vago narcisismo.Os alunos eram um espelho sempre renovado,espelho cambiante onde contemplava suajuventude progressiva em oposição à senilidadeprecoce dos espelhos. Acreditavam em potocasproferidas há dois mil anos, quando estariammelhor servidos se recuassem mais dois ou trêsséculos, em Platão ou Sócrates pelo menos

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existia pensamento. A escola tinha por funçãomoldar o aluno ao padrões de uma éticapatriarcal e maniqueísta, se ao aluno restavaalguma criatividade ao sair do secundário auniversidade se encarregava de destruí­la. Semesmo assim, ao apanhar seu canudo, o alunodescobria em si uma gota de pensamentopróprio, para extirpá­la lá estavam os cursos demestrado e doutorado, sem falar no freio dométodo. Você não vai empregar um método?Quem você pensa que é para pensar com aprópria cabeça? Uma vez submetido ao método,servil como boi no jugo, o jovem mestre oudoutor estava pronto para o magistério. Sãosenis — escabelava­se Juliano — que fazer paraque voltem à juventude?

Sentia­se um palhaço. Toda grandeliteratura havia sido feita nos intervalos entrecaserna e bordel, guerra e armistício, cárcere emiséria, dúvida e sofrimento, e ali estava ele,bunda pregada a uma cadeira, cercado poroutras vinte bundas também pregadas,discorrendo sobre literatura. Ao entrar noscurrículos universitários, uma obra já havia sidodevidamente esterilizada pelo tempo e o que foraexpressão de vida tornava­se coisa morta etediosa. Ao institucionalizar a literatura, osescritores passavam a escrever não mais para oshomens, mas para críticos, acadêmicos e alunos,corta este palavrão aqui ou não podemos venderteu livro junto às escolas, não fala mal dogoverno que o MEC não vai gostar, não critica osocialismo ou estás condenado à morte civil,para isso existe a metáfora, meu caro, das

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metáforas você pode usar e abusar, aresponsabilidade fica por conta dos intérpretes.Por favor, nada de sexo ou política, queadolescentes não têm sexo e de política nadaentendem e mais, nada de atacar as esquerdas,nunca se sabe o que o amanhã nos reserva.Paixão, lambe meu grelo, está enorme comogostas.

De Bagual a Paixão. Promoção ou caputdiminutio? A vida dava muitas voltas. Comodizia a Zefa, é na carroça andando que asabóboras se ajeitam. De jornalista irado aplácido contemplador do mundo. Aceitava seufracasso como escritor, mas não abria mão deum certo conceito de arte. Literatura era revoltae quando uma obra chegava ao circuito escolar,nela de revolta nada mais havia. Sonharia, seainda ousasse sonhar, escrever algo que escolase universidades rejeitassem como peste. Masnem como sonho seu sonho era viável, osacadêmicos haviam­se munido de assépticosinstrumentos, tão assépticos e de tão simplesmanipulação que permitiriam a uma criançaextrair, brincando, a peçonha de uma cascavel.Pessoa morrera cirrótico, desesperado edesconhecido. Meio século havia sido suficientepara que universitários do mundo todoorganizassem colóquios e fizessem turismo àscustas de seu cadáver.

Ser ateu tinha suas vantagens, isso paranão dizer fascínio, e no ateísmo residia seueterno espanto ante a vida. As milhares decircunstâncias que o haviam trazido à ilha, semfalar nas outras tantas que o haviam levado a

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Paris, soavam­lhe como mistério absoluto.Jamais se pretendera professor e ali estavaensinando. Para o crente, a resposta erasimples: Deus quis. Morresse o pai, sesuicidasse a mãe, fossem os filhos atropeladospor um trem, ganhasse na loteria ou fosse eleitopresidente de uma nação, a resposta continuavaa mesma. Não existindo o tal de Deus, aresposta tinha de ser intuída, adivinhada, pelomenos até onde se deixava adivinhar. Pingo dePorra dormia em seu peito. Quem ou quaiscircunstâncias o haviam conduzido a ela — ouela a ele — e o que decorreria — ou nãodecorreria, daquela coincidência no mesmoponto geográfico, mais precisamente no mesmoleito? Para o ateu, descobria agora, tudo erasurpresa e descoberta, e a vida poderia serinsultada com todo e qualquer adjetivo, menos ode ser monótona. Para o homem de fé a vida erauma sucessão de eventos mais ou menosprevisíveis, encadeamento de circunstânciasonde a única surpresa — e a pior entre elas —era a morte, afinal “estava escrito”. Para Juliano,tudo era surpresa e o amanhã uma incógnita,tinhas por vezes ganas de manifestar suagratidão: graças a Deus, não creio nele.

* * *O Doutor é jovem e vem do Sul, por certo

ainda não conhece as peculiaridades da ilha.Nossa identidade tem suas raízes em Portugal,mais precisamente nas Açores e desta herançadecorrem não poucas conseqüências, Mauríciode Nassau que o diga. Ao tomar posse no cargode governador do Brasil holandês, assinalava

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que a nação portuguesa tem muito em atençãocorrespondências e cortesias, embora vãs e depouca importância. Os portugueses serãosubmissos se forem tratados com cortesia ebenevolência. Por experiência, o conde sabia queos lusos fazem mais caso da cortesia e do bomtratamento do que de bens. “O povo, dizia, é umrebanho de carneiros e que se tosquiam, masquando a tosquia vai até a carne, produzinfalivelmente dor e, como esses carneirosraciocinam, por isso mesmo, se convertemmuitas vezes em terríveis alimárias”. Assimsendo, meu caro Doutor, é preciso levar emconta esta idiossincrasia ilhoa, caso queiraascender no magistério. Esta universidade,professor, quase posso dizer que a ninei emmeus joelhos, eu a acompanho desde os temposheróicos quando, na falta de doutores,concedíamos o título às inteligências maisilustres da comunidade. Como não podíamosdar­nos ao luxo de enviar docentes para outroscentros, criamos, como tantas outrasuniversidades, o Doutor Notório Saber. Não seráum longo e sofrido curso, muito menos umatese, esquecida no pó das bibliotecas, o quedefinirá a qualificação intelectual de um mestre.O DR adere à personalidade como a lepra à pele.Cá entre nós, professor, para que servem asteses? Das milhares defendidas neste Brasil ouno Exterior, quantas vieram à tona ou serevelaram úteis aos contemporâneos? Tomamosentão o caminho mais curto e conferimoscapacitação docente a nossos pares. Tese,professor, no fundo só serve para melhorar osalário e fazer turismo sem despender divisas.

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Afaste­se o professor da tentação de procurar nabiblioteca central as teses de nossos doutores,elas não estão lá e além do mais seu gesto seriapouco simpático. Tese é algo íntimo, diz respeitoapenas ao doutor e seus examinadores. Parapreservá­las da curiosidade alheia, temos umBanco de Teses, mas lá tampouco o professorencontrará muita coisa. Vários incêndios, o quenão é inusual neste tipo de acervos, temos aliásum precedente ilustre, o da Biblioteca deAlexandria, vários incêndios, dizia, foramdilapidando a produção intelectual de nossosdoutores, particularmente da área humanística.Mas que se pode fazer ante a fatalidade?

O doutor é jovem mas já terá percebido asvantagens do ofício acadêmico. Contratado paraquarenta horas semanais, o doutor trabalharáapenas dez ou doze, ficando as restantesdispersas entre os vagos afazeres de pesquisa ehipotético atendimento a alunos. Mais quatromeses de férias ao ano, greves à parte, bementendido, conforme o ímpeto militante doslíderes mais aguerridos isto pode render maistrês ou quatro meses de far niente, isto sem falarem viagens a colóquios e seminários. Como oprofessor terá percebido, nenhuma outraprofissão no mundo contemporâneo lheproporcionará tanto otium cum dignitate. Masonde fica o ensino? — já estará se interrogando oprofessor. Ora, doutor, aqui volto novamente ànossa insularidade. Queiramos ou não, todosdependemos da boa vontade estatal, o que abreportas a um emprego não é a capacitaçãoprofissional, mas bons padrinhos políticos.

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Engana­se o professor se acha que algum deseus alunos está preocupado em aprender algo.Sugiro, meu jovem doutor, esquecer aquelaslendas em torno à universidade como fonte deaquisição de conhecimentos e pesquisa. Do quedecorrem outras conseqüências: considera­seantipedagógico entre nossos pares reprovar umaluno. Algum mestre mais impetuoso,geralmente gente de fora, não ciente de nossasnormas, às vezes tenta fugir a este código ético.O que só nos obriga a remanejar cursos, colocaro aluno injustiçado em mãos mais modernas ecompreensivas e finalmente o mestre em questãoacaba não esquentando cátedra. Se somosdoutores de mentirinha, porque seriam osacadêmicos de verdade?

Para controlar heréticos, usamos doisinstrumentos, o método e o colegiado, o primeiroaplica­se a hereges discentes, o segundo aosdocentes. O método, doutor, seja estruturalistaou psicanalítico, seja Goldman ou Lacan,Kristeva ou Gramsci, esteja na moda ou emdesuso, sempre serve de freio a jovens que sepretendem originais. Se permitirmos a umuniversitário pensar com a própria cabeça,estamos perdidos, vai­se por águas abaixo todaa civilização ocidental e cristã, sem falar que sereduz a zero o sentido de hierarquia. Donc, semmétodo, nada feito. Restringir cada enunciado aoimperioso ritmo ternário da dialética, três partese não mais que três partes, a primeira, asegunda e a terceira. Pode­se até dividir estastrês partes em outras três, um um um, um umdois, um três um, um três três, sempre o três

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como base, que soa estranho a qualquer júri,seja aqui seja em Paris, estender um raciocíniopor cinco ítens, por exemplo. Tese escorada emteórico francês ou alemão, obedecendo sempre àsantíssima trindade, é meia tese andada. O quenão podemos admitir nas altas instânciasacadêmicas são livre­pensadores, se assim fossea universidade perderia seu sentido e eutambém.

Já o colegiado, como deve ter intuído oprofessor, é uma corporação de notáveis damesma categoria, cujos membros têm a mesmadignidade, enfim, talvez não seja este o termomais adequado, melhor falar de mesmospoderes, já que vivemos em plena democracianeste caso não há mais sentido em se falar emhierarquia. Este fácies democrático dauniversidade moderna permite um sutil jogo deintercâmbios que torna mais afável e cordial avida universitária. Professores de fora por vezescaem no departamento cobrando a ponta de facaprojetos e pesquisas passadas — como se auniversidade moderna ainda se nutrisse de taislendas — olvidando, estes professores, queamanhã terão de solicitar de seus parespermissão para apresentar em Reikjavik umacomunicação sobre os diversos sons do x noscantões da ilha, ou desenvolver durante cincoanos uma tese em Paris sobre as possíveisabordagens da poesia de Cruz e Sousa. Este jogosutil, apesar de provocar hipertensõesirremediáveis em seres mais delicados, induz osmembros do colegiado à prática desta virtudetão simpática e cristã, a tolerância mútua e o

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conseqüente perdão a qualquer desídia.

* * *

SORRIA... NOVOS TEMPOSEle deu a vida pela Nova República, paravocê respirar os ares dos Novos Tempos, sema poluição das duas últimas décadas deregime militar. Você merece ser feliz! Vocêtem várias opções de lazer, sem fuga, umlazer consciente dos Novos Tempos. Nós, doRélax Center

ANITA GARIBALDIsomos uma opção de lazer dentre as mais demil existentes e, participantes do momentode democracia plena que somos, gostaríamosde recebê­lo e vê­lo sorrir. Nesta semana, oprimeiro drink é por nossa conta. Traga osamigos dos Novos Tempos.

“As mutações semânticas decorrentes da

Nova República”. Como sugestão de tese paramestrando em crise criativa, ali estava um temapara Dr. Notório algum pôr defeito. Com a mortede Tancredo Neves, o Plano Cruzado e o preço dacarne tabelado, restauradores e proxenetastinham de dar asas à imaginação, criar novospratos ou serviços para fazer frente à inflação.Nos restaurantes, nada mais simples. Um frangocom spaghetti, que por ser com spaghetti sedizia à italiana, mais um frango com chucrute,que por ser com chucrute se dizia à alemã,formavam agora juntos um novo prato, que porser com spaghetti e chucrute se dizia à européia,

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e no cérebro do autóctone a Europa era vistacomo uma vaga mistura de massa e repolhofermentado. Novo prato, novo preço. Já chezAnita a questão era mais delicada, a carne eravendida por hora, não por gramas. Se osserviços eram anunciados metaforicamente, oproblema não se resolvia com a criação de novosservicos, que de novo nada havia no ofício. Ofornecedor oficial de carnes tenras da ilhadriblara o impasse com virtuosismo. Amassagem continuava com preço antigo, apenastransposto à nova moeda, o que antes custava150 mil cruzeiros era agora 150 cruzados. Anovidade consistia em que massagem era agoramassagem­massagem, sutileza ainda nãointuída pelos restauradores que bem poderiamter criado o filé­filé e filés outros. Já amassagem­carinho, tal inovação semânticapassava a ser bem mais cara. Então hoje euquero uma massagem­massagem, pediu Juliano,não é questão de preço, só quero relaxar. Ah!mas a massagista­massagista não tem aparecidonas últimas semanas. Pois então vamos demassagem­carinho, vem cá Verinha, hoje estousedento de tua divina essência.

A pi­ça­do­pro­fes­sor­é­de­lei­tá­vel! —escandia Carmencita, esta é a única frase doOswald de Andrade que consigo lembrar.Literatura tem disso, minha Carminha, oscorpos discentes sempre preferem o que o corpodocente omite e cultura, disse alguém, é o quefica na memória depois de tudo o que seesquece. En­tão­só­pi­ça­é­cul­tu­ra­Ju­ju?Comment dirais­je? — se perguntava Juliano —

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não que seja propriamente cultura, mas semdúvida é melhor que muita literatura.

Putas. Putae, puteus. Poço, cisterna. Osmais primitivos e obscuros desejos do serhumano deviam, a bem do Estado, serrepresados pela Razão. Como junto à represaacumulavam­se sempre lama e detritos, paraque a mesma não estourasse, um escoadouroera necessário. Desde sempre. Se as gorettes,ivonetes e luzinetes da vida hoje erammarginalizadas profissionais, escondidas sob oeufemismo de massagistas, já haviam sidohetairas, aulétrides e hieródulas e legado àposteridade nomes imortais: Lâmia, Aspásia,Frinéia, Thaís, Laís. Sólon fora o primeirolegislador a reconhecer suas nobres funções,merecendo de Filémon justa homenagem em suaoração fúnebre: Por isto te tornaste um benfeitorde teus cidadãos, reconheceste nessa instituiçãosó o bem e a tranqüilidade do povo. Ela setornava absolutamente necessária numa cidadeem que a juventude turbulenta já não se podiaconter, nem obedecer à mais imperiosa lei danatureza. Instalando mulheres em certas casas,preveniste desgraças e desordens de outra formainaceitáveis. Dois milênios depois de uma Atenassem carros nem megafones, exerciam inclusiveuma terapia individual diminuindo a tensão desuas artérias. Pena que poucos jovens tinhamacesso às novas terapeutas.

Massagistas. A magia da semântica. Nospassados dias em que julgava morrer se nãoescrevesse — como se escrevendo exorcisasse aMoira — havia elaborado uma espécie de

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regulamentação da profissão e desde entãointuira que a primeira providência em prol dadignificação do ofício seria substituir o nomehistoricamente tão caluniado por termo maisprestigioso, com sabor de século XX. Semassagista sugeria rélax e sensualidade — pasmal comme trouvaille! — sua proposição era maissolene e metafísica: sexo­analistas. Ou melhor,sexanalistas, para afastar o neologismo detrocadilhos infames. Bebe, Paixão, bebe tudo,que meu bebê já mamou.

Os jornalistas só eram viáveis apósGutenberg, os sociólogos após Comte e játinham suas profissões, pelo menos no Brasil,regulamentadas, que se esperava — pensavaentão — para nobilizar o bíblico ofício? Comretórica de panfletário, propusera a valorizar eestimular a delicada vocação. Que a profissionalera a psicanalista por excelência de umasociedade enferma, a terapeuta que lidava comhomens perturbados e doentes ou lúcidos eangustiados. O ofício não podia ser exercido porpessoa sem maiores habilitações. Vinte anosdepois de suas utopias juvenis, vinha­lhe àmente a absurda hipótese de um concursoacadêmico como pressuposto para o exercício daprofissão. Seus títulos? Qual é o seu método?Que teorias ou teóricos tem por base? Doutorou­se em qual instituição? Seu diploma já foirevalidado? Não, três vezes não. Era um ingênuohá duas décadas e felizmente jogara aquelaspáginas ao cesto. Nelas sugeria proporcionar àscandidatas à nobre arte conhecimentos mínimosde psicologia, sociologia, técnicas sexuais,

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profilaxia venérea, administração de empresas.Acabar com a ambiência sórdida dos cabarés.Outra palavra do passado. Espírito moderno?Rélax, sauna. O que coincidia com sua propostasemântica. Era mais fácil a uma meninaescrever ao pai no interior que trabalhava comomassagista na capital do que tecer circunlóquiossobre a verdadeira natureza de seu ganha­pão.Sexanalista, tinha de convir, ainda que emcausa própria, soava muito melhor, se éconstitutivo do ser humano gostar do que nãoentende, tal ofício soaria aos pais comoinesperado êxito profissional. Que a prestação deserviços — propunha — não se resumisse a umato rápido e animalesco. Seria um atendimentoantes de tudo psicológico, cada cliente teria suaficha médica e nelas seriam registradas suasmais inconfessáveis preferências eróticas. Previadireitos trabalhistas, trinta horas semanais dadoo desgaste inerente ao ofício, adicionalpericulosidade e para horas extras, fériasremuneradas, indenização por acidente detrabalho, tipo doenças venéreas ou gravidez,associações de classe, sindicatos. Pára, Paixão,pára, tira fora, goza em meu rosto, é assim queeu gosto.

Em sua utopia de adolescente, chegara apropor cursos universitários de história doscostumes e teatralização do prazer, afinal para amaioria dos clientes tanto satisfazia o gozo realcomo o simulado. Santa ingenuidade. Todojovem que sugere reformas sociais a elas deveriaser submetido. Seu projeto era, no fundo, aburocratização do desejo, horários rígidos, ponto

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assinado e arte nenhuma, a mulher bocejandoem meio aos embates qual professor repetindoad nauseam a mesma aula. Me molha, Paixão,me molha, que em mim também já vem vindo.

Na trégua post bellum não conseguiadeixar de imaginar Dr. Notório no bordel. Abriasempre as reuniões de departamento com umaespécie de prece, perdoai­me, Senhor, se ao viverimpedi alguém de viver. Juliano sentava então, ecom muito prazer, na cadeira do réu, Dr.Notório, inquisidor emérito, o interrogando notribunal imaginário: como explica o professorsua presença neste antro de luxúria?

“Suprimi as prostitutas e perturbareis asociedade com a libertinagem”, a frase não erasua, mas de Agostinho. “Eliminai as mulherespúblicas do seio da sociedade e a devassidão aperturbará com desordens de toda espécie. Sãoas prostitutas, numa cidade, a mesma coisa queuma cloaca em um palácio. Suprimi a cloaca e opalácio tornar­se­á um lugar sujo e infecto”.Tampouco era sua. Mas de Tomás de Aquino, oBoi Mudo. Em vez de repouso, começava aacometer­lhe uma taquicardia sem causa físicaalguma, era a hipocrisia universitária invadindoseu cérebro em meio à paz do bordel. Endossar aprostituição, ó Notório, não seria atitude nova daparte de tua igreja. Observa­se na história umaprofunda relação quase simbiótica, entretemplos e lupanares, de um lado a idéia de que ocorpo diariamente vendido e conspurcado eraapenas o invólucro terreno de uma alma imortaltornava feliz toda e qualquer cortesã, não eragratuito o fato de encontrar­se imagens de

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santos, pudicamente cobertas com um véudurante o ato, em quartos de bordéis, aambivalência entre santa e prostitutapermanecia através dos séculos. Impossívelnegar a função da prostituta na construção detua igreja, meu caro Dr. Notório, tua basílica deSão Pedro foi financiada pelos impostos queincidiam sobre os suados ganhos das meninas.Sem falar em Júlio II, abençoou Impéria em seuleito de morte e instalou em Roma um lupanar,para uso exclusivo dos cristãos, onde asprofissionais deviam observar horário de oraçõese atos devotos. Tu, Notório, tu não me enganas.Este ofício foi reconhecido por São Luís, comimposto e tudo. Lembras do concílio deConstança? Um milhar e meio delas, ao lado doEspírito Santo, inspiraram e aliviaram os castosconciliários, sem falar nas outras tantas queacompanharam os cruzados à Terra Santa.Bebe, Verinha, me bebe todo, me bebe mais edepois me beija.

* * *Assim vivia, entre alunas e profissionais,

surpreso em encontrar interesse por literaturano bordel e tanta prostituição na universidade,não se espantaria se um dia fretasse na AnitaGaribaldi alguma de suas pupilas. O que jápoderia ter ocorrido, não era fácil guardarcentenas de rostos por semestre, sem falar queàs vezes o demônio incorporava nas meninas emmeio ao vapor e Juliano sequer via os traços dasformigas vorazes que o atacavam e reduziam seucorpo a uma consistência de mingau.Imaginasse Zefa as razões de seu ar cansado,

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não mais lhe perguntaria: “foi duro o dia,professor?”

Se fora! Mas duro entre os dias foi aqueleem que Princesa foi a um baile, não no clube daLagoa, mas no da Freguesia. O sábado ameaçavachuva, em vez de caminhar preferiu pôr acorrespondência em dia. Em vão. Desde amanhã ao entardecer, Zefa insultava Princesa,entremeando uma algaravia furiosa com tapas ebofetões. Fosse um pesquisador em lingüística,teria ali uma mostragem fabulosa. Quandofuriosas, ou fofocando, as ilhoas apocopavam aspalavras, um quadrissílabo virava dissílabo, umtríssilabo virava monossílabo, estes iam prascucuias e mesmo assim elas se entendiam.Conseguiu bispar alguma coisa, baile do outrolado da ponte, já te disse pra não ir, teu paichega hoje do mar e em meio a isso passou aouvir, em vez de tapas, o sibilar de um cinto outalvez chicote, música de fundo poucoestimulante quando se quer escrever a umaamiga distante. Deixou de lado seu interesselingüístico sociológico pela coisa e, com umVivaldi, abafou a violência a estibordo. Protegidopor audiofones, continuou sua charla silenciosa,só interrompida pelo vulto de Princesa, rostovermelho e inchado de tapas e açoites, fugindoraivosa em sua bicicleta. Até ali, nada fugia àlógica. Je suis arrivé — continuou a escrever — àla conquête de mon île.

Domingo, acordou com a sensação de quealgo girava errado no universo. Em meio àvigília, necessitou de alguns minutos paraperceber o que faltava à harmonia das esferas.

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Um silêncio sinistro conspurcava o clarear dodia. Que fora feito do serrote verde dascaturritas? Onde a parlapatagem estridente doscanários e curiós, dos mexericos dos bem­te­vis,saíras de sete cores, tiê­sangues e tiê­fogos? Porque não cumpriam sua obrigação imemorial desaudar o sol? Um prurido de terror percorreu­lhe a medula, era como se estando imóvel vissesua sombra mover­se. Vestiu­se assustado eespiou pelo muro que separava sua casa dopátio da Zefa. No viveiro, centenas de pássaros,patas quebradas, agonizavam em silêncio atroz.Em meio ao massacre, buscou a araponga. Abriae fechava o bico, pedindo morte.

O Zefo chegara de alto mar. Irritado com afuga de Princesa, manifestara a seu modo seudesagrado. Em sinal de luto, naquele domingonem mesmo o joão­de­barro, soberano em seurancho, fez reboar sua gargalhada.

* * *Santa Catarina tem identidade cultural

própria e negar tal evidência é negar a própriailha. Esta identidade repousa em sua geografia,amorosamente mapeada por nosso vate maior, oZininho da Ilha, que espero ver um dia nestacasa que há quatro décadas fundei.

Um pedacinho de terraperdido no mar

um pedacinho de terrabeleza sem par

jamais a naturezareuniu tanta belezajamais algum poeta

teve tanto pra cantar

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Fiel e consciente depositário do legadomodernista, discípulo atento de Marinetti,Mallarmé, Mário e Oswald, em seu poemarevolucionário o autor ousa infringir as leisprocustianas da gramática e ignora,conscientemente, os arcaicos apelos àpontuação, no que reside seu caráter inovador.Equivocam­se os críticos dalém­ponte ao acusaro poeta, sumariamente, de analfabeto: éjustamente por bem dominar o vernáculo que oautor o rejeita. Assim temos, sem maioresconcessões ao poetar clássico, esta cabal,poética e definitiva acepção de ilha: umpedacinho de terra, onde o autor, fugindo aquaisquer preocupações lexicográficas, define ageografia de seu poema, para arrematá­la comestro: perdido no mar. Neste perder­se, nãopretende o poeta que a ilha navegue à derivaqual nau sem leme. Insiste apenas em situar­nos em meio ao mar que nos nutre e contorna,que nos dá autonomia e sustento, graças aotrabalho do homem ilhéu.

Um pedacinho de terra, reitera, quasealitera, o poeta, insistindo nas diminutasdimensões de sua geografia — não por acaso usaduas vezes o diminutivo — por oposição aocontinente, deixando claro que uma ilha nãoexige maiores dimensões para produzir umaforte cultura e uma grande poesia. Quebrando onexo lógico do discurso, o vate insinua, ex­abrupto, a característica fundamental dopedacinho de terra perdida no mar: a beleza sempar. Jamais a natureza, insiste, reuniu tantabeleza, e aqui ressurge a beleza antes observada,

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atributo inerente à ilha que jamais algum poetateve tanto (nova aliteração) pra cantar.

Cantar a geografia ilhoa é cantar sualagoa, que não passaria despercebida ao olhararguto do vate.

Tua lagoa formosaternura de rosapoema ao luar

cristal onde a luavaidosa

sestrosa e dengosavem se espelhar

Canta o poeta a evidência, ignorandoolimpicamente os resmungos dos eternosnegativistas profissionais dalém­ponte que,cegos ao espelho das águas nelas pretendem verlixo e poluição, como se poluição não fosseinerente ao progresso. Para o poeta, não há porque remexer o fundo lamacento das águas.Permanece então aflorando à sua superfície, daíternura de rosa, que chamará, por razões derima, uma lua vaidosa sestrosa e dengosa,compondo assim a sinfonia já antecipada empoema ao luar.

Cantadas a ilha e a lagoa, canta agora opoeta o marco humano da geografia que oinspira:

Ilha da moça faceirailha da velha rendeira

tradicionalilha da velha figueira

onde em tardes fagueirasvou ler meu jornal

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Sai de cena, pois, a natureza e emerge nopoema o singelo rosto ilhéu, a velha rendeira e— mais importante — tradicional — que nãoapenas servirá de suporte rímico a jornal, mascontestará, corajosamente, boatos provenientesdo sul de que a tradicional, repito, atividade dasrendeiras é nutrida por indústrias do nordeste.Finalmente, a ilha é a da velha figueira, onde umdia — por que não? — terão se beijado, sob suaramada cúmplice, Garibaldi e Anita, onde —quem sabe? — não terá se espreguiçado Saint­Exúpery após suas travessias transatlânticas. Énas tardes fagueiras, tão inerentes à ilha, que opoeta, satisfeito de seu poetar, vai ler seu jornal.Oh! beato Santo Antônio, amigo de NossoSenhor Jesus Cristo, fidelíssimo filho de SãoFrancisco, em Lisboa nascestes e em Lisboafostes batizado, em Roma coroado, vossa mãeguardastes, vosso pai livrastes, assim vos peçomeu glorioso Santo Antônio, pelas ondas de marem que passastes, pela coroa que da vossacabeça abristes, pelo cordão com que voscingistes, pelo breviário que consagrastes, pelasalpercatas que calçastes, pelos treze dias que nodeserto andastes, em busca de vosso santobreviário que perdestes e que no fim delesachastes, eu vos peço, meu glorioso SantoAntônio, por aquela hora em que vos revestistes,pelo altar que subistes, pela missa quedissestes, pela hóstia que consagrastes, pelocálice que pela primeira vez levantastes e oSenhor nele achastes, que ajudeis a encontrarnossa perdida identidade.

* * *

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Mergulhar no sono, meu Juliano apóstataquerido, mergulhar no sono e refugiar­se nosonho e fora do sonho não há salvação. Amasturbação é sempre triste, prazer nãopartilhado é prazer pela metade, sem falar que,em minha idade, punheta seria patético. Pânico,Juliano, pânico será o sentimento dominantedeste fim de milênio, medo nuclear viroumigraine, enxaqueca de parisiense. A guerranuclear independe de nossas cautelas e sim doestado de humor dos senhores da guerra, semfalar que a bomba tem qualquer coisa dedemocrática, nos resta pelo menos o consolo denão ficarmos sós, depois de uma boa guerrinhasó as baratas usufruirão do planeta, a aventurahumana será vista como uma tentativacomovente por alguma civilização extraterrestreque consiga decifrar nossas bibliotecas e bancosde dados. Se sobre apocalipse não temoscontrole algum, a peste é controlável, a pestepode sentar­se em minha mesa, conversarcomigo, pode até abraçar­me e eu possopermanecer incólume, sob uma condição: nãoconfraternizar com o outro, fugir à festa dacarne, que no fundo não é da carne e sim doespírito, essa tal de carne, tão difamada ecaluniada por padres e moralistas, em verdade éo instrumento pelo qual o espírito se manifesta emeu pânico é tal que já nem bebo, tenho medode sucumbir ao charme de algum menino aofinal da noite, feliz de ti, Juliano, que tesatisfazes com as mulheres e mesmo assim seique deves nutrir pelo menos parcela de meupânico.

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Me refugio então no sonho, meu querido,minha atividade onírica só tem se intensificadonos últimos meses e meus sonhos são quasesempre obsessivos, sempre contaminados pelapeste. Mesmo sonhando sinto medo, não que mepretenda original, o fato é que estamos todoscom medo, por mais angelical que seja umvirtual parceiro pensamos duas vezes antes delevá­lo para a cama, mas acho que pelo menosmeu medo consegui driblar, desde há muitoestabeleci minhas defesas anti­pesadelos. Não teserão estranhas aquelas angústias de quem caiinexoravelmente de um galho seco ou resvalasem volta por um telhado sem começo nem fim.Destas miragens já estou salvo, quando me vejona extremidade do galho braceandodesesperadamente no vazio para não cair ouesfolando mãos e pés na tentativa vã deinterromper a queda, sei que tudo é sonho,jamais poderia ter subido até aquele galho etodos os telhados têm fim e começo e afinal decontas, em minha vida profissional, devassa ouafetiva, não há razão alguma para trepar emgalhos ou telhados e sendo tudo sonho mecontorço violentamente na cama e acordo,exorcizando o pesadelo, era só o que faltavavivermos com medo durante a vigília e empânico em meio ao sono. Hoje até tenhosaudades das vertigens que me proporcionavammeus galhos e telhados, há muito só meperseguem nas noites meninos lindos e demembros enormes, tesões pétreas deadolescentes, piças pingando leite e mel e queroabocanhá­las e hesito, me bate o medo, sonhoaté com colegas e amigas, claro que em vez de

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clitóris elas têm falos, as joanas d’Arc, com essaseu vou, decido, com mulheres o risco é menor euma alegria infantil me invade, como é que eunão descobrira mais cedo que elas era assim tãobem dotadas? Tenho participado de orgias quenenhum grego ou romano concebeu, já que tudoé sonho vamos lá, pelo menos até agora a tal deciência e os tais de cientistas ainda nãoautorizaram o vírus a transmitir­seoniricamente, sem falar que em sonhos dispensomaiores performances para beijar­me e beber­mea mim mesmo e não raro tenho acordado com alembrança — pena que só a lembrança — dosabor ácido­quente de esperma no pálato.Refugiar­me no sonho, Juliano, esta é a minhadefesa e por isso já não bebo, tenho medo denuma noite de porre confundir com sonho arealidade, antes da peste a realidade era de fatoum sonho, e por isso até de beber tenho medo.Sei que a peste vai passar, mas também sei quequando passar já terei passado. Tem ainda esseelastério estúpido de morte latente, cinco anospara uns, dez para outros e por favor não me dizque também não vives tenso, vistoriandodiariamente a pele em busca dos sinais. A festaacabou, Juliano, suicida é quem ainda acha quenão. Lembras daquele contaminado que quebrouo altar de uma igreja? Louco, escreveu umjornalista, louco repetiram as agências, loucopublicaram os jornais. Para mim, de louco elenada tinha, nele só vejo saúde e lucidez, se apeste é um castigo de Deus, como andaminsinuando doutos senhores e até mesmo SuaSantidade, o melhor a fazer é não deixar pedrasobre pedra na baiúca onde Ele mora.

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Meu fracasso, até já o havia aceito,encontrara até mesmo aquele equilíbrio mínimoque não faz do fracassado um mutilado psíquico.Não pretendo pôr a culpa nos deuses, nadadisso, mas sabes que um pianista nesta terra,ou é sobrinho do ministro da Aeronáutica outem de fazer carreira na Europa, competindocom meninos prodígios que foram gestadosouvindo concertos. Tive essa chance. Mas tive decongelar sob a neve, em filas humilhantes,igualado a turcos e árabes candidatos aescravos, para implorar um visto depermanência no paraíso, sem falar naqueles diasem que qualquer orgulho ou vaidade pessoal seaproxima perigosamente de zero, sem falarnaquelas circunstâncias que, se talvez nãoanulem o imigrante em busca de pão, sãodeletérias para quem busca espírito. O piormesmo era ser apresentado nas salas como HerrJoao, Monsieur Joao, o apresentador tentandoinutilmente nasalizar esta tão decantadaexcrescência da última flor, o “ão”. Ninguém vaime convencer que um João possa fazer carreiracomo pianista. John, Johan, Jean, Giovanni,Ivan, vá lá. João, jamais. Fui condenado já nobatismo sob pretexto da absolvição do pecadooriginal, logo eu que, por mais que me esforce,nada de original consigo ver nos pecados. Umavez aceita a maldição de ser João — com tudoque disto decorre, brasilidade inclusive — mediminhas forças, comparei­as com minhasambições e senti ter posto a barra muito alto.Sejamos então arqueólogo, pensei, se não decolocomo artista, tanto faz ser açougueiro ou

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alfaiate. Arqueólogo de tesourinha, bementendido, que isso de escavar coisas jamais meatraiu, as unhas devem ficar um lixo. Já havia,meu Juliano, me reconciliado com meu fracasso,comigo mesmo e com a ilha, fiz meu círculo ondeme apresentava como sou sem que ninguémdesse palpites sobre meus meninos ouquestionasse minhas preferências, conheces ateoria dos universos paralelos? Bom, eu nãoconheço, mas deve ser algo próximo dosuniversos que vivi cá na ilha, não conheçofantasia que aqui não se realize. Se as mulheresfossem dotadas da imaginação masculina, dissealguém, sei lá quem, o universo seria consumidoem um vórtice de volúpia. Aliteração à parte, ocara tinha razão, será por isso que os padresempossaram a mulher como encarnação daluxúria, hábil recurso de transferir ao outro sexoo ônus que mais cedo ou mais tarde lhes seriaatribuído. Para chegar a meus universos, jamaisprecisei atravessar buracos negros, sempre mebastou abrir a porta de uma sauna. Esta merdade peste, Juliano, esse virusinho fodido, pareceque arroxeado, está se revelando mais eficaz queos tribunais da Inquisição. Mas em meus sonhosmicroorganismo nenhum mete as patas, tenhome aperfeiçoado na arte de direcionar meusdelírios noturnos e mais noite menos noite acaboorganizando a orgia absoluta.

* * *Eu pairava sobre a merda, cara! Respirava

noite e dia a eterna merda da burguesia jogadadiariamente às toneladas na Baía Norte, e dizerque meu pai paga em dólar o metro quadrado

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pra sentir o buquê daquele penico enorme. Aburguesia faz vela e remo em meio à merda efazem footing, cooper, passeiam aspirandomerda, que outras aspirações não parecem ter eeu aspirava não só a merda da burguesia toda,mas também a merda de meu pai, minha mão,meus avós, minha própria merda. Odiei meu pai,odiei minha mãe e tive nojo de mim mesma. Foiquando conheci o Beto. Não fosse o Beto, cara,eu tava podre de coca, aidética, sei lá o quê, oBeto me ressuscitou, me ensinou a revolução, eJuliano não conseguia entender aquela súbitaintimidade, não lhe desagradava ser tuteadopelas alunas, uma vez quebrada a hierarquia odiálogo corria mais solto, mas tinha de forçar­separa aceitar aquele “cara”, onde a Aninha todaencabulada que uma tarde lhe confessara osdias em que acordava sem calcinhas sem saberquem as havia tirado? Ana já não era Aninha,mas “compa” Anita.

A ilha, ó cara, tem uma vocação para apodridão e eu estava apodrecendo junto, oproblema nem é a ilha, é o país todo, a merda égeral, A Beira­Mar Norte é só a ponta do iceberg,sei que ando um tanto escatológica, mas quefazer? Tá todo mundo dando no pé, só que rumoao errado, foi Beto quem me mostrou isso. Lavarpratos na Europa ou nos States é fome de dólar,projeto de proletário que quer chegar a burguês.O buraco, meu caro mestre, é mais embaixo. Ossoviéticos traíram a Idéia, imagina que correramo Beto da Lumumba só porque usava a boina doChe, coisa de pederasta, alegaram, os russos hámuito viraram reaças, qualquer dia botam a

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perder todo o legado de Marx e Lênin, essa tal deperestroika nunca me cheirou bem. Betoaproveitou as primeiras férias. Foi lavar pratosem Estocolmo, lavou em Paris, Londres, nosSheratons da vida, costumava dizer o Beto, souíntimo de todos os serviçais.

Pequeno era o vasto mundo.Balancei, mestre, balancei. Saí de minha

cobertura com piscina, tinha até uma mucamachamada Maria para me servir scotch, fuienfrentar catres imundos, antes de deitar tinhade examinar a cama com lanterna e sempreacabava encontrando um escorpião. Era umapipa, lembras? Pois perdi vinte quilos, olha só alinha, mestre! E isso participando de um projetorevolucionário, não de um regime dietético — eum fio de pentelho, pensou Juliano, puxa maisque vinte juntas de boi —. Professora na UFESC,assessora do BESC, podia ser o que quisesse,tenho paizinho no poder e concurso na ilha épiada, podia estar soltando a franga em Paris apretexto de estudar Sartre, bebendo e fodendoem Lisboa, espichada nas Açores, pesquisandoas origens do s álveo­palatalizado do linguajarilhéu. Mas será isso vida, ó cara? Saí da merda efui confraternizar com uma juventude quetambém fugia do escatol das social­democracias,lá encontrei suecos e alemães, franceses egregos, tinha gente também do Leste, húngarose búlgaros, polacos e alemães orientais, abrigada dos gregos era sempre campeã nacolheita do café, o que era desleal, afinalnasceram colhendo olivas. Cafezais minadospelos contras, meu caro mestre, vez que outra

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voava um belga para o Atlântico, decolava uminglês rumo ao Pacífico. Sem falar nosbombardeios, tínhamos instruções depermanecer imóveis e continuar na colheitamesmo ouvindo os Black Birds quebrando abarreira do som, correr pelos cafezais seria maisarriscado. Mas os sandinistas não dormiam detouca. As fronteiras com os ticas tinham defesaanti­aérea e da pesada, um dia foi aquele ruídode jatos ao sul, minha vontade era de cavar umabrigo com as unhas, não que fosse só minha,todos se borravam de medo, quando nossocomandante assumiu a coisa, BRIGADA JOSÉMARTI!, berrou com voz sem medo. PRESENTE!responderam os latinos, BRIGADA LAPASIONÁRIA! y los pájaros se acercabán,PRESENTE! lá estavam os espanhóis, BRIGADAZUMBI DE PALMARES e a brasileirada foi umavoz só, PRESENTE!, eu me agarrava nos ramosdo cafeeiro e quase mijei nas calças quando ládas bandas dos ticas surgiram dos pájaros en elcielo, mas não eram os Black Birds, eram doisMigs amigos, foi quando uma camponesa gorda,rosto indiático, dessas que parecem ter tido ospés sempre plantados na terra, sabe?, ergueu­see começou a cantar e aquele canto a peito abertocontaminou todos, cantando saudamos loshermanos cubanos, adelante, marchemoscompañeros, avancemos a la revolución.

De Aninha a Anita, mestre, naquele dia mesenti promovida, Aninha rimava com filhinha emal cheguei em Manágua os companheiros mechamavam de Anita, compa Anita, não que metenha sentido como a xará, ela nem tinha

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ideologia a não ser os olhos azuis do Garibaldi.Minha identidade já na chegada era outra, haviasaído da santa paz ilhoa e estava em meio àrunga, como dizem os nicas, ah! cara, aquelanativa com voz de Mercedes Soza, os Black Birdsque não eram pássaros nem pretos massimpáticos Migs, aquele hino entoado nos maisdiversos sotaques, primeiro o medo e depois aslágrimas, tudo aquilo, meu professor, ninguémvive se tiver a bunda presa à ilha. E nossocomandante, de FAL em punho. Que és FAL? /Preguntó una vez Juan Lindo / le contestóGumercindo / con acento popular / compaJuan, ese animal tira todo / si le agarra bien elmodo / con usted va a charchalear. Isso é que époesia, meu professor, eu me sentia a anos­luzde distância das punhetas metafísicas dasoficinas literárias e varais literários e encontroliterários onde barnabés sedentários e varicososse jogam elogios mútuos, quão instigante é o teufazer literário, oh não! instigante é o teu, lá narunga o papo é outro, o poema brota do povo, jáouviste falar no general Parajón? Claro que não,aqui só se fala nestes piricuacos latino­americanos a serviço dos gringos. Ouve, mestre,ouve: saludo a Parajón / con gusto y gran placer/ el corazón se me late / al ver la sangre correr.

Foi o Beto, mestre, quem me despertoupra poesia revolucionária, não fosse o Beto euainda estava contando as sílabas dos sonetõesdo Cruz e Sousa, discutindo o erotismo emDrummond, não è à­toa que sempre o achei comcara de medalhão, mal morreu já virou moedadesta republiqueta em que as moedas se

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esfarelam mal saem do prelo, achei ótimo ocruzeiro levar as fuças do Machado, vai sair logode circulação, terão de criar heróis em série comuma inflação destas, qualquer dia sobra até praminha xará, não vai ser mole o que vou ter desuportar de piada. Já pensou, um Departamentode Vultos da Pátria ou coisa parecida fabricandoàs pressas biografias e feitos e a Casa da Moedaincinerando os heróis no dia seguinte? Poesia,cara, tá na mira do fuzil, não que eu tenhaempunhado um fuzil, fui lá para as brigadas dacolheita. Mas o Beto, no Nuevo Diário, batucavasuas reportagens com um AK­47 ao lado. ElNuevo Diário é e foi um celeiro de poetas, nãoesses poetinhas nossos que não medem o pesode suas palavras, em verdade elas não pesamnada, outro dia fui visitar o Beto, estava lá nadamenos que o Cardenal, aquelas barbas lindas deprofeta, o gesto aberto e amoroso, um gato,diriam as meninas da Joaquina. Mas lá areligiosidade é outra, nada dessas missinhasgregorianas tipo chá das cinco com hóstias, láassisti missas, cara, onde o ostensório era umfuzil, e seus poemas não são estilo ó coração deJesus que estais na cruz, trazei­me luz, lá opapo é mais sério, Cardenal contemplava ummorro ao oeste onde cintilava um letreiroenorme, feito de pedras, F S L N, entonces desdeel auto miré las letras grandes sobre el cerro / ydentro de mi habló Dios: / “Mirá lo que hice porvos / por tu pueblo, pues. / Mirá esas letras, yno duden de mi, tené fe / hombre de poca fe /pendejo”. Só então vi um deus viável, um deusvivo, o deus cá da ilha faz dois mil anos quepromete voltar pra botar ordem na pocilga, lá

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deus escreve seus planos nos morros, lá nãoencontras essas rimas asquerosas de lagoasformosas dengosas sestrosas se espreguiçandoao luar, sem falar, cara, que lá quem usar boinanão é chamado de maricón. Aiatolá do Caribe,diz a imprensa burguesa, só porque ele um diaapoiou Khomeini, acontece que o Islã épotencialmente revolucionário, taí o Kadhafi,cardeal por cardeal sou mais o Cardenal.

O mesmo não diria Velha Europa doaiatolá, pensou dizer Juliano. Mas não disse.

Manágua é linda, mestre, linda. Pelomenos para quem tem olhos para ver este tipoespecial de beleza. Se vais lá buscar aquele luxoe aquela limpeza do Paseo de la Ahumada ou deHuérfanos, não vais encontrar essa assepsia à laPinochet, não foi para curtir requintesburgueses que o Beto me ensinou a Nicarágua.As ruas de Manágua estão cheias de poeira, lixo,carcaças de carro, não sei qual é o sol maisinsuportável, se o de janeiro ou o de julho, pratomar um ônibus se espera uma hora e quandose consegue subir a gente viaja como sardinhaem lata, os corpos fedem a suor e fritura, nadade novo, já tomei ônibus pra Barra da Lagoa nafesta da tainha sempre recusei a BMW do papai.Lá falta água, mestre, até parece o verão emFloripa, falta luz e transporte. Não vou dizer queo povo seja muito civilizado, um dia pedi numrestaurante uma tortilla que não conseguiaengolir, guardei a metade para o primeiromenino faminto que encontrasse na rua, quandoentrou um nica a cavalo na baiúca, podre debêbado, encostou o cavalo no balcão e pediu

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uma Cerveza Victória. O professor leu Cortázar?Pode ser que seja morna e sem graça, mas com aherança de Sandino a cerveja sempre érefrescante na Nicarágua, acontece que a cervejanão era para o bebum, o cavalo bebeu o litrointeiro entornado pela boca. É, também temdisso lá, mas afinal se os russos com setentaanos de revolução não conseguiram forjar ohomus sovieticus, não seriam os sandinistas queconstruiriam, em menos de uma década, um sercivilizado. Mas a cidade é linda. Em meio àpoeira e aos quarenta e tantos graus, lá estãogravadas as palavras de ordem, Yankees, manosfuera de Nicarágua, No pasarán, Pátria libre omuerte, Ni con cien millones nos vencerán loscabrones, não me foi fácil passar uma semanasem tomar banho em meio àquele calor infernal,mas lá, cara, lá respirei liberdade, não havia paime cobrando a hora de chegar em casa nem euprecisava fazer relatórios de minhas noites.

* * *Só porque sou miudinha, Paixão, me

chamam Pingo de Porra, mas tamanho não édocumento, assim franzininha como sou façotrês ou quatro machos pedirem água ao mesmotempo, tratar três ou quatro até que não é difícil,eles se excitam uns aos outros e eu só tenho otrabalho de apojo, às vezes basta um leve toquede língua. Divertido mesmo foi um padre,Paixão, coitado do homem, acabei ficando compena dele. Teria uns cinqüenta anos, entrouaqui na Anita com jeito de quem quer fazersauna, foi naqueles dias do Plano Cruzado epediu uma massagem­massagem. Como nunca

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vi massagista­massagista neste bordel, topeiatender o cara, ele tremia e dizia que estavatenso, tenso coisa nenhuma, o tanso na vidatoda jamais havia sentido uma mulher nua deperto, comecei massageando pelo tronco, fuidescendo com as mãos em cruz, nem preciseichegar à pentelhama o pau do padre já estavateso, fui forçando lentamente a mão contra abase do pênis, ele me pedia desculpas, o safado,“olha aí o que você fez”. Disse que não ligasse,tinha pau de bom calibre, eu já estava atéficando excitada, só porque sou baixinha nãofujo de pau grande. Lá no Sul há uma lenda, quequando Deus fez o homem, pra diferenciar omacho da fêmea fez as mulheres passarem depernas abertas sobre o fio de um machado, claroque nas baixinhas o machado cortou fundo. Eujá começava a me entusiasmar com a idéia, quisprimeiro sentir a coisa na boca, nem tive como,foi me debruçar sobre o homem e esguiçouaquela leitaria toda. O cara me confessou,Paixão, que tinha cinqüenta e não sei quantosanos e nunca havia transado uma mulher navida, só conseguiu me comer depois de umasvinte visitas, sempre se remoendo de remorsos.Fiquei tão condoída que até fui assistir missa naparóquia dele, cada vez que ia comungar ohomem derrubava os canecos, o sangue deCristo rolava altar abaixo, dizia ele que erasangue, pra mim sempre foi vinho, mas vinho eleite ele não me dava, só recebia aquele pãozinhosem fermento. Levei um domingo o padre lá pracasa, a mãe tinha viajado, mal fiz umcafunezinho foi aquela molhaçada nas calças,passou a tarde toda no pátio, as pernas abertas,

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parecia um lagarto secando ao sol. Eu tinha derir, Paixão, me escondia do coitado pra rir umpouco, só que depois me deu vontade de chorar,o padre me pôs na cama, encostou o rosto emminha xexeca e chorou que nem criança, aslágrimas me molhavam os pentelhos e ele gemia,“eles me roubaram a vida, roubaram minha vidainteira”. Pode, Paixão, pode?

Ele foi viciando, Paixão, vinha todas assemanas e só queria ir comigo, levei acho quequatro ou cinco meses pra conseguir que o carame penetrasse antes de acabar, ele começou mebeijando em cruz minha teta esquerda, falavanuma língua de padre antigo, acho que rezavaum breve contra a luxúria, Deus, qui justificasímpium, et non vis mortem peccatoris, majestatemtuam suppliciter deprecamur: ut famulos tuos detua misercordia confidentes, caelesti protegasbenignus auxilio, et assidua protectioneconserves; ub tibi jugiter famulentur, et nullistentationibus a te separentur. Per Dominum, eutinha mais vontade de rir do que quando mefazes cócegas, mas agüentei firme, algo me diziaque naquele dia o padre segurava a tropa, aícomeçou a me lamber a outra teta, semprerezando, Hujus, quaesumus, Domine, virtutemisterii, et a propris nos munda delictis, etfamulos tuos ab omnibus absolve peccatis. PerDominum, pelo pouco que entendi do latinório,depois de cada seio e cada oração ele repetiaaquele perdóminum, acho que pedia perdão peloprazer que sentia, e aí ele foi descendo, Paixão,eu quase não conseguia acreditar, mas o homemcontinuava descendo, me lambeu o umbigo,

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respirou fundo e enfiou a cara no mato,Purificent nos, quaesumus, Domine, sacramentaquae sumpsimus: et famulos tuos ab omni culpaliberos esse concede; ut, qui conscientiae reatuconstringuntur, caelestis remedii plenitudineglorientur. Per Dominum, e sempre pedindoperdão veio por cima de mim, te confesso,Paixão, que perdi toda vontade de rir quandorecebi aquela máquina enorme, eu me sentiaque nem frango no espeto, ele também me sentiacomo frango no espeto, acho que é isso queexcita os homens nas baixinhas, nem precisamter pau grande para se sentirem bem dotados, eaté que um dia professor, conseguiu gozar emmim, pediu depois que eu me acocorasse sobre orosto dele, asperges me, minha Pinguinho dePorra.

Eles são todos muito machos, Paixão, ocoitado do padre era exceção, sempre me tratoubem, verdade também que foi melhor tratado,não sei se alguma outra mulher aqui da casateria a paciência que eu tive, mas ali na sala dobar eles só contam vitórias, onde quer queandem posam de galos, é por isso que estouassim branca em pleno verão. Eu adorava ir àJoaquina, Paixão, mas não suporto sentir quequando passo sempre tem alguém dizendo praalguém, a gatinha aquela ali eu já faturei, possoser puta mas tenho dignidade, aqui na camaredonda faço qualquer sacanagem, mas na ruaou na praia não estou em serviço, tenho o direitode passear ou tomar sol sem que meincomodem. O que me dá mais nojo é que elesnão coragem nem mesmo de cumprimentar a

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gente, quanto mais de convidar pra umacervejinha, na rua até parece que viro leprosa, auns vinte metros de distância eles já vãoprocurando alguma coisa à direita, à esquerdaou nas nuvens, algo para olhar que não sejameu rosto e é por isso que te adoro, Paixão,fiquei sem entender nada o dia em que me vistena Felipe Schmidt, eu tinha certeza que ias viraro rosto. Mas não, paraste, me abraçaste e mebeijaste na testa, me senti quase tua filha, achoque nunca ninguém me beijou com carinho,muito menos me ofereceu um café noSenadinho, eu disse que não, paizinho, queestava com pressa, não tinha pressa coisanenhuma, é que me deu um branco e eu nãosabia como aceitar, nós todas te adoramos,mesmo as que nunca foram contigo, não sei sejá notaste, mas nenhuma mulher pega homemenquanto não escolheste a tua, ficar contigo dáprestígio, nesta tarde o mulherio todo deve estarme invejando.

O que entortou todo mundo aqui da casa,Paixão, foi aquela festa da Tê 1, nessas datas agente larga o ofício e vira moça­família, trazfilhos e namoradinhos, a Tê havia passado novestibular, festa é festa e em dia de festa não setrabalha, a gente convida os clientes que nostratam bem, deves ter recebido convites detodas, não só o meu, sei disso. Sei lá por quê,acho que vieste um pouco por mim, sei que parati não sou um buraco, mas a dona da festa era aTezinha, longe de mim pretender te fazer sala.Não sei quem, Paixão, talvez fosse até a Tê, tevea idéia de trazer um fotógrafo. Achei lindo,

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Paixão, lindo, na hora de cortar o bolo, mal ofotógrafo se ajeitou, não sobrou macho na sala,tinha gente pedindo banheiro e perguntando quehoras são, duvido que alguém tivesse pensadoem sauna naquela noite, quando fui lá tava todomundo espremido que nem malandro emcamburão e eu fiquei só olhando, na sauna nãocabia aquela gente toda, eles estavam coladosuns aos outros e se bem conheço meu povo, commedo e vergonha de ficar de pau duro e lá nasala, paizinho, sobrou só tu, eu não acreditavano que via, sei que sempre cumprimentas agente na rua, mas não acreditava que topassesuma foto com o putedo todo, ninguémacreditava, a gente achava que tinhas ficado alipor uma questão de gentileza, sempre fostegentil, mas todas esperavam que na hora da fotocobrisses o rosto com um copo, com essesjornais que sempre trazes debaixo do braço,ninguém acreditava no que via quando cortasteo bolo, tua mão na mão da Tê, ela te pediu umbeijo, aquilo foi desafio dela, acho, eu nunca teforçaria a um beijo, como também nãoacreditava que te deixasses fotografar com umade nós, sei que vives em outro mundo e nessemundo não somos aceitas, se bem que temmuita universitária arrendondando o fim do mêsnas boates, e aí tu beijaste a Tê na boca, ofotógrafo registrando tudo. O que mais gostei,Paixão, foi aquela foto com a turma toda,parecias o Cristo na Santa Ceia, nós todasguardamos com carinho aquela foto, quem saiunela se sente... sei lá... se sente mais gente emenos puta e podes ter certeza que ninguém vaiusar aquela foto pra te sacanear, se usasse teria

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de mudar de cidade, não teria mais espaço aquina ilha. Se a gente já não tem muito respeito poresses que trocam de calçada quando nos vêemna Filipe Schimdt, aquele monte de machosamontoados na sauna saiu de crista baixa, sónão levaram vaia porque bem ou maldependemos deles. Naquele dia aconteceu algo,tu fizeste acontecer algo, se fugisses da foto nãoteria acontecido nada, é normal que ninguémgoste de ser fotografado com uma mulher danoite, eles todos têm mulher, filhos, um nome azelar. Foste tu, Paixão, que entornaste o caldo,tu feriste a normalidade, as meninas estavam dequeixo caído, até a Tê chorava, ela contou quechorou a noite toda abraçada contigo, aquelafoto vou guardar pro resto da vida, aquela fotovou guardar pro resto da vida, paizinho, medeixa dormir enroscada em ti.

* * *— Gosta de festa, Professor? — perguntou

Zefa e ele sentiu­se entre a cruz e a espada,como explicar àquele ser de diminuto universomental que festas o entediavam, isso quandonão o entristeciam? “Sou sempre triste nasfestas, alegre em mesa de bar”, escrevera nosdias de veleidades literárias. Como ponto departida de um poema, até que não se saíra mal,acontece que o possível poema morrera alimesmo, naqueles dois versos. Festa implicavadesconhecidos, com poucas chances de seremsimpáticos, já na adolescência começara a evitarfestas, reuniões onde todo mundo fala eninguém diz nada, desde há muito se habituaraao diálogo mano­a­mano, eventualmente com

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quatro ou cinco pessoas, mais do que isso eramultidão. Ou aula. Estava se tornandomisógino? Dissessem o que quisessem. Numaépoca que não poupa nada nem ninguém, diziaGoethe, vou pelo menos poupar a mim mesmo.Fechava com Goethe.

— Gosta de festa, Professor?Tinha segundos para responder e a

situação era crítica. Dissesse que sim, poderiacondenar­se a alguma atroz celebração deaniversário, provavelmente de Princesa, comtortas açucaradas e xaropes ianques, como diriaTaba. Sem falar em toneladas de decibéis derock. Como expressar então sua misoginia semferir Zefa, que com tanta alegria o convidava?Havia algo no ar nas últimas semanas, Zefareboleava os quartos mais febrilmente, umaagitação inusual tomara posse dos olhos dePrincesa e mesmo entre as rendeiras da avenidapodia­se intuir que algo festivo, talvez insólito,estava por ocorrer. Perdia­se em alternativascomo resposta, quando Zefa, sem mais esperar,resolveu a questão:

— O professor está convidado. Começa nasexta­feira santa.

Estava perdido. Fodido e mal pago. Oconvite, não recusado em boa hora, acenava comduas implicações funestas: festa religiosa,certamente, e com começo na sexta­feira. Zefaria com todos os dentes, estava feliz ante aperspectiva de apresentar seu hóspede àcomunidade, por um lado certamente seapiedava de sua solidão, por outro lhe conferiaprestígio exibir seu inquilino, o Professor. Já

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começava a planejar uma hipotética viagem aPorto Alegre, pediria asilo a Taba, enfim, Tabaera inviável, da Lagoa à Barra havia seisquilômetros e todos eram primos naquelageografia, quem sabe viajava mesmo, ou, mesmonão viajando, se escondia em algum hotel aonorte da ilha. Antes mesmo que abrisse a bocapara dizer que infelizmente etc. e tal, DonaZeferina explicou:

— É Semana Santa, Professor. Tem farrado boi.

Bendita boca que se mantivera fechada.Bois lhe traziam um cheiro de infância, cheiro deaveia e verde, canções escondidas nalgumescaninho perdido da memória. Eu mandei fazerum laço / do couro do jacaré / pra laçar meu boibarroso / lá nas costas de Bagé. Para umgaúcho saudoso da pampa, que mais queriaalmejar? Na várzea ao lado havia cavalos equero­queros, encontrara até mesmo um leiteiroque pela manhã lhe trazia apojo morno e Zefaagora o convidava para a mais típica festa ilhoa!Taba era um chato, um pessimista profissional.Pode contar comigo, Dona Zeferina!

Salvo. Já se imagina em aniversário emfamília, copo de plástico em punho, espumandode coca ou pepsi, mais quinze velinhas,parabéns pra você, sopros, enfim, a síntese detudo que mais detestava na vida. Ouviravagamente falar da festa, das danças e canções.Embora não dançasse nem cantasse, sempre sesentira bem em meio a gentes cantando, asfestas populares sempre lhe traziam um saborde terra, por mais estranhas e longínquas que

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lhe soassem as canções. Conheceria aBernunça. Outro dia, passando sob a figueira daPraça Xivi, ficara perdidamente enamorado deuma voz que cantava: Olé, olé / olé, olá / arredado caminho / que a Bernunça qué passá. Olhoua mulher que cantava, ao violão, para uma rodade crianças, e seu rosto também era lindo,vontade não lhe faltou de acocorar­se junto aospivetes e ali permanecer contemplando aqueleser lindo por dentro e por fora. Bernunça. Tabaalimentava etimologias para seu próprio gosto.Que Bernunça, no imaginário ilhéu, era amulher de Satanás. Que tudo decorria dacerimônia do batismo, nos tempos do latim. Abrenuncia Satana? — perguntava o padre. Abrenuncia — respondia o padrinho. DaíBernunça, a mulher de Satanás. Iria conferir.

A ilha começava a tomar sentido. Se asreuniões de departamento lhe haviam alterado apressão arterial, o problema não era da ilha masda universidade como um todo, onde quer quetrabalhasse enfrentaria os mesmos insultos edilacerações mútuas. Já nas primeiras reuniõesnotara uma certa atmosfera, que em algo sedistinguia do ambiente de uma redação dejornal, só não conseguia precisar em quê. Logodecifrou o enigma. Numa redação, tudo erapassageiro, o jornalista que hoje redigia a seulado poderia amanhã não estar mais ali, haviauma dinâmica no ofício que mudava a cadasemana os rostos que o rodeavam. Nodepartamento, os rostos eram eternos, aestabilidade de função na universidadetransformava seres teoricamente pensantes em

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barnabés preocupados com gratificações eaposentadoria, constituíam uma grande família,um colossal recipiente de ódios e cumplicidades.Morreriam todos abraçados, arranhando­secomo gatos em pânico em um saco fechadojogado a um rio. Morreria ele também naquelenaquele saco? Talvez sim, talvez não, mas comoem algum lugar teria de morrer, a ilha não lhedesagradava como sepultura. Lembrou Taba eirritou­se, mal lembrava morte lembrava Taba, opior é que não conseguia escapar à infameassociação de idéias. Ódios acadêmicos eramcavacos do ofício, tinha a Anita Garibaldi pararelaxar, nem tanto pela sauna mas pela paz nelareinante. Com o convite de Zefa, sentia quecomeçava a integrar­se no universo ilhéu. Eumandei fazer um laço — surpreendeu­secantarolando — do couro da jacutinga, pra laçarmeu boi barroso lá no passo da Restinga.

* * *Que fazer, Bagual, quando tens talento

mas não tens parente, quando estás no auge detuas forças e te fecham todas as portas? Malassinei uma croniquetas no Diário, não faltouquem perguntasse: mas ele é filho de quem?Como se fosse necessário ser filho de alguémpara escrever bem. Eles não perdoam. Ou ésfilho de um nome de rua ou então algumuniversitário em crise de tese te descobrirá,daqui a um século, é claro, quando estarãomortos e bem enterrados os contemporâneosque interpelaste. Em falta de pai serve umpartido, o ideal é o PC, tem sacristias em todosos cantos do mundo. Amado intuiu a coisa

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desde cedo, não fosse o Paizinho dos Povos obaiano seria mais um jovem talento quepromete, desses que acabam morrendo nacasca, verdade que pagou seu preço, mas o fatoé que aí está, louvado em prosa e verso, cinemae televisão, imortal e com pretensões a Nobel.Mas há homens que são inteiros, pouco seadaptam a partidos e concessões e ai de ti seestiveres entre estes. O PC é uma mão na rodapara um jovem sem maiores escrúpulos, é sóseguir a boa linha e logo estás viajando acongressos pela paz, efemérides, mordomiasmundo a fora, claro que a prisão, conforme ascircunstâncias políticas, é sempre um risco, masquem vai em cana é operário mesmo, queintelectual tem sempre seus respaldos, sem falarque alguns meses de cárcere, mesmo por apoiara barbárie e o totalitarismo, sempre caem bemem um currículo.

A glória, eu a conheci, Bagual. Lembras damorte de Nereu Ramos? Pois fui o primeiro achegar aos destroços do avião, pela primeira vezum jornal gaúcho furava a imprensa nacional, oDiário vendeu meio milhão de exemplares.Entrevistei Franco, Tito, Che Guevara, fiz acobertura de copas do mundo e festivais decinema, os Sheratons da vida não me sãoestranhos e apesar dos magros dólares que merestavam como salário — hotéis e mordomiassempre tinham patrocinadores — pude sentir­me, de fato, jornalista. Recebi quilos e quilos decartas por ano, havia quem me considerassealgo assim como um semideus, o homem quehoje está em Cannes, amanhã em Berlim,

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semana seguinte repousando nalguma ilha doEgeu, certa vez fui fotografado com a Liv Ullman,outra vez xinguei a Jane Fonda numa coletiva edaí o leitor imóvel já deduz: ele transou com aLiv e deve ter­se desentendido com La Fonda enão seria eu quem negaria tais delírios. A fama éuma soma de equívocos, disse alguém. Fui ummito vivo, tche! Bueno, aí morreu o Diário e oscolegas que me abraçavam e davam tapinhasnas costas passaram a procurasr­me comímpetos mórbidos, “e agora, Taba, que vaisfazer?” Emprego, que é bom, nada de oferecer,trabalhar é relacionar­se com o mundo e estarelação me foi vilmente cortada. É muito duro,Bagual, hás de convir, para um jornalista que járevirou mundo, visitar redações pedindo umachance em seus sessenta anos, arriscando ter deouvir como resposta uma vaga de redator.Durante muito tempo me propus jamais seramargo, não sei se consigo manter meupropósito.

Eles não perdoam, Bagual. Mesmo semum vintém no bolso, escrevi no amor paraalguns jornais, questão de desabafo, há horasque a estupidez satura de tal forma a atmosferaque pagamento é o que menos te preocupa. Aquio Taba não publica, sentenciavam secretários dejornais, alguns eu havia iniciado na putaria daimprensa, todos contestadores de 64, daditadura que havia decretado a morte civil decentenas de intelectuais. Com o mesmo sanguefrio dos militares decretaram minha morte,roubaram a tribuna de onde eu falava aos meus.Eu fiz um jornaleco de província vender vender

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meio milhão de exemplares, meu querido, euvendo um jornal quando assino, não há editorque não saiba disso e por isso mesmo fuiostracisado, nesta ilha me entedio como umaostra, bem deves imaginar o tédio de uma ostra,nestes dias em que se discute a identidade ilhoae se busca para a cidade um novo nome, tenhominha modesta sugestão: Ilha de Nossa Senhorado Ostracismo, santa padroeira do spleen dosmoluscos. Barnabé é molusco, não tem ossosnem fibras e ser molusco foi minha opção paranão morrer de fome. Não estou bem comigomesmo, meu querido Bagual, minha ironia emeu aparente bom­humor são estratégiasdefensivas, no fundo, no fundo mesmo, esperoque Ela, dama caprichosa, não se faça esperarmuito. Sem falar que minha carcaça obedececada vez menos a meus comandos. Esta ilha, játe disse, não é má para morrer.

O dia em que apertei a mão de Franco,aquela mão flácida e sem nenhum calor... Ocaudilho estava mais pra lá do que pra cá, masera ainda o Generalíssimo, caudillo de Españapor la gracia de Diós, a foto saiu na primeirapágina do Diário, dava a impressão que eu haviainterpelado o homem, quando tudo não passarade protocolo mudo e sem palavras. Não era debom tom, na época, louvar Franco, mas poder époder e o fato de ser recebido por um homem deEstado valeu­me prestígio e mulheres. Francomorreu. Os intelectuais espanhóis que lhehaviam dado sustentação, ou que pelo menosjamais haviam ousado dizer algo contra, hojeenchem a boca ao falar “en la época del tirano”.

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Sempre fui apaixonado pela Espanha, com ousem Franco, sabes disso. Meu enamoramentome rendeu uma beca, sob pretexto de tesedegustei cochinillos em Segóvia, lechales emToledo e até hoje não me sai dos neurônios ocheiro dos campos de feno de Pravia. Minhabeca me impunha certas obrigações, entre elas ade freqüentar aulas em Madri. Um de meusprofessores, além de ser imortal, era presidenteda academia dos imortais. Sabes quando ohomem renegou Franco? Só um ano após suamorte, já seguro de que o Generalíssimo nãoressuscitaria. Hoje, o imortal é de esquerda. Já oTaba é fascista. Só porque apertei,protocolarmente, a mão de um moribundo. Háalgo de errado em tudo isto, acho, ou talvez oerrado seja eu e mesmo depois de velho não medei conta disto, ao que tudo indica primeiroprecisas chegar a um ponto qualquer acima dobem e do mal e depois tudo te é permissível,podes receber condecorações de Pinochet, comoBorges, ou tapinhas do Stalin nas costas, comoNeruda ou Amado, após ter chegado a uma certaaltura, a esse ponto a partir do qual tudo éperdoado, podes até esticar o braço saudandoHeil Hitler! que teus biógrafos terão o cuidado demaquilar tua vida, retocar aquelas rugashistóricas, tornar­te up­to­date, como se diziaantigamente nos jornais. Mas cuidado com todoe qualquer gesto antes de chegares a este pontoimponderável, só ao alcance, começo a concluir,de vigaristas de alto bordo.

Quando tinha emprego e tribuna, nos diasem que ao aterrissar em Porto Alegre produzia

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manchetes tipo Taba disse, Taba declara,segundo Taba e outras que tais, eu era ojornalista que entrevistara o Che e o marechalTito. Mal morreu o Diário, no mato e semcachorro, passei a ser “o que apertou a mão doFranco”. Sempre abominei a prostituição, nãoaquela de bordel, da qual muito me servi, nosservimos, Bagual, mas a intelectual, a venda daalma em troca de fortuna, e cá estou vendendomigalhas do que tenho em troca de pão.Suicídio? Já pensei na hipótese, mas o suicidasempre pensa em punir alguém e eu sequertenho a quem punir, sem falar que sei que estoupartindo e não tenho pressa, o que me mantémvivo é a curiosidade, divisar na praia osrobinsons voluntários que buscam Laputa, quecontestam minhas considerações sobre a ilha,sem saber que aqui chegaram fascinados pelasimagens que criei, nem tanto pelo pão nosso decada dia, mais talvez por meu incorrigívelespírito de porco.

Este meu azedume... Há um pouco deteatro em meu sarcasmo, já deves ter notado,acho que até gosto da ilha, se a xingo tanto éporque algo existe entre eu e ela, jamais nospreocupamos com a conduta de uma mulherque não nos interessa. Laputa me propiciaexercícios de ironia, gênero que nem sempreconsegui passar nos jornais. O que me dói é apobreza humana desta gente. Toda comunidadeque se preze deveria ter, acho, dois ou trêshomens a admirar, pelo menos dois ou três, oumesmo um, um espécime daqueles que fascinaos jovens e lhes serve de emulação, seja por sua

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coragem e retidão, seja por sua visão ecriatividade. Em Laputa não há sequer um, aprópria heroína criada para consumo escolarnada mais fez senão seguir os passos de un belomaschio italiano. Em meus dias de guri, sem sairda Rua da Praia, tive a ventura de charlar comum Manoelito de Ornellas, com um ÉricoVeríssimo, Dyonélio Machado, Mário Quintana, eeste convívio me foi benéfico, acho que a todoadolescente que lê deveria ser garantido o direitode um dia freqüentar a casa dos autores queadmira, é como se o adolescente, perplexo ante aintimidade que lhe oferece o criador, se sentisseum pouco partícipe de sua grandeza. Participarda grandeza de quem, aqui? Não falo por mim, oque deveria ter feito já fiz. Me ponho na pele deum universitário que começa a fascinar­se pelasletras e pelo mundo do espírito. Qual seuparâmetro mais ao alcance da mão? Um barnabéde cerviz gacha, quatro ou cinco prebendas e adevida subservência aos donos do poder.

Eles pressentem, claro que pressentem,este nosso olhar. Sentas sozinho em um bar,jornal em punho, este gesto já constituiagressão, pior ainda se abres um livro: agridesem dose dupla. Já tens bom tempo de ilha, terásobservado que eles são gregários, jamais entramsós em um bar, nem mesmo em botequim depraia. Só existem enquanto grupos e estar só játe identifica como gente de fora. Se além desentares sozinho aproveitas teu tempo paraleitura, bueno, aí estás marcado na paleta, ondese viu ler em bar? Eles pressentem. Pressenteme reagem. Lembras como reagiam os yahoos à

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superioridade dos Houyhnhnms? Subiam nasárvores e jogavam as próprias fezes nos seres decuja nobreza não conseguiam participar. Estegesto, mesmo para os padrões ilhéus, seria nomínimo pouco civilizado. A defesa do yahoocatarinensis é o amplificador de sons. Podesbuscar a praia menos freqüentada, podessubornar o dono do botequim deserto para quedesligue seu radinho. Ao abrir teu livro, nãofaltará o animal que encoste sua cápsula de rockambulante, abra as portas da lataria e se deliciecom teu tormento. Para opor­se ao silênciocivilizado, os bárbaros só conseguem empunharseu escudo de decibéis. Em falta de palavras,empunham ruídos. Só te resta então fechar teulivro e amaldiçoar o dia em que te deixasteencatarinar.

* * *Toda ilha tem, meu jovem doutor, como

direi? suas insularidades, com perdão pelatautologia. Concentração de poder, verbi gratia.O professor deve julgar ridícula, disto tenhocerteza, nossa Academia. Talvez até mesmotenha razão. No entanto, nesta Casa que fundei,o que menos importa são as tais de Letras, nãopretende o professor que uma ilhota produza,sem mais nem menos, quarenta escritores quemereçam a imortalidade. Esta Casa, professor, éa ante­sala do poder. Para dela participar,sempre é bom ser genro de alguém, você já deveter intuído que ser genro é profissão de grandefuturo na ilha. Genro de alguém no poder, bementendido, que há sogros e sogros, neste jogosutil uns poucos valem muito e outros muitos

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valem zero. Uma vez atingida esta condição, a degenro de um sogro forte, qualquer mortal estápertinho da imortalidade. Obra literária?Dispensável, professor. Afinal, Getúlio nãopertenceu à Academia Brasileira de Letras,Adelita não usa fardão? Uma vez dentro da Casaque fundei, o genro pode postular outros cargose comendas, desde um doutorado por NotórioSaber junto à universidade, o que talvez lhepareça fútil mas em verdade não é, título aqui,título ali, você acaba participando de conselhosestaduais de cultura, de conselhos editoriaisdesta ou daquela fundação, sem falar em outrasfunções no Município, Estado e União, salarinhoaqui, jeton lá, sempre se pode chegar a um belopatrimônio, e isso sem fazer força. Sem falar nopoder, professor, na manipulação do poder e noprazer deste manipular. Na ilha, meu jovemDoutor, só publica quem nos interessa quepublique.

É judeu, o Doutor? Pelo nome não parece.Homossexual? Não leve a mal o professor taisperguntas, em verdade nada têm a ver com comsuas origens ou preferências sexuais, minhaintenção é apenas orientá­lo, isto é, orientar épalavra por demais forte, gostaria apenas dealertar, sim, alertar, este parece ser o verboadequado, alertar o jovem doutor para certassutilezas de uma carreira intelectual. Há círculose círculos de difusão literária, professor, se vocêpertence a esta ou àquela tribo, sua obra, tenhaou não valor, será ou não divulgada. Se oprofessor é goi, por exemplo, não pretendatraduções mundo afora, a menos que supra

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outras condições. Gay, por exemplo, ser gay éuma delas, não estou insinuando nada, longe demim tais conselhos, mas o fato é que, meu caro,ser homossexual, desde Platão a Wilde, semprefoi bom passaporte no mundo das Letras. Sendoo professor goi mas não gay, tem frente a sioutras opcões, ser marxista ou católico. Porqualquer das vertentes, bestseller garantido,mais acenos de Nobel. As duas igrejas são fortes,meu jovem, e têm paróquias em qualquer cantodo mundo. Não sendo o professor nem judeu,nem homossexual, nem marxista, nem católico,terá então de contar com suas próprias forças ecertamente cerrará fileiras com aqueles têtus,que só reconhecemos depois de mortos. Há duaslinhas mais de pesquisa, ser negro ou sermulher, a coisa já virou gênero literário, háespecialistas no país todo de literatura negra oufeminina mas, e isto salta aos olhos, o professornão se enquadra em nenhum destes gêneros.

Tampouco seja o jovem Doutor hostil aesta delicada chinoiserie que estamos tentandoerguer, a literatura barriga­verde. Nossas letras,professor, incipientes, é verdade, não podem seranalisadas à luz fria da crítica, ou virariam pó.Busquemos então compreensão na filosofiaoriental, no Tao, por que não? Chuang Tzu,cinco séculos antes de Cristo, parece ter­nosentendido.

Quando olhamos as coisas à luz do Tao,nada é melhor, nada é pior.

Cada coisa, vista à sua própria luz,manifesta­se a seu próprio modo.

Pode parecer melhor

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do que é comparável a elaem seus próprios termos.Mas, em termos do todo,nada torna­se melhor.

Portanto, nada há que não seja grande, enisto reside, professor, a grandeza de nossaliteratura, como queríamos demonstrar. Viver éa mais complexa das artes, Doutor, ou a maissimples, depende da sintonização de nossamente com a universidade da vida.

Quanto à ascensão intelectual dentrodeste pequeno microcosmo, por certo o jovemDoutor saberá como comportar­se, não poracaso doutorou­se na França. Louons­nous lesuns les autres. Críticas azedas não levamninguém a lugar nenhum, professor, vide oAgripino Grieco, por melhores que tenham sidosuas intenções, hoje é curiosidade de museu.Tao, Tao, meu caro, leia o Tao, nada há que nãoseja grande. Escreva dez ensaios sobre vinteautores, ensaios laudatórios, é claro, dediqueseus dez ensaios a dez outros e, em meio a eles,cite mais uma centena e terá então o professoruma idéia do poder multiplicador do verbo,quem quer que empunhe uma pena logo sentecócegas de glória. Ser historiador destasvaidades é glória garantida por um século pelomenos, não que esta glória póstuma nosgratifique, afinal vivemos aqui e agora, mas umlivro assim, professor, que estimula ambições enão fere vaidade alguma, é passaporte tranqüilopara vida ociosa, mansão na praia, bolsasintermináveis na Europa, veraneios nas Açoresem busca de nossas raízes, que mais não seja

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em terra lusas um monoglota se sente menosdepaysé do que se estivesse em Paris ouLondres. Assim sendo, doutor, por favor nãoasseste suas baterias críticas contra estaincipiente literatura, leia o Tao, não é lá muitocatólico mas justifica qualquer coisa, sem falarque goza do prestígio de vir do Oriente. Só o Tao,meu jovem, e nenhuma outra teoria fornecefundamentos aos intérpretes de nossainsularidade. Quer o professor receber um dia ashonrarias — e conseqüentes mordomias, é claro— que reservamos aos que nada constestam,àqueles aos quais jamais ocorre questionar estadelicada construção, a identidade ilhoa? Observeentão os sinais de tráfego. Verdade que nãoestão afixados nas ruas nem nos corredores dauniversidade, mas o professor terá intuiçãosuficiente para entendê­los.

Vaidade das vaidades, tudo é vaidade!clama Salomão com infusa ciência.

Mortal sendo, em minha humanidade,vaidoso sou: vaidade é minha essência.

Não estranheis pois, senhores imortais,que vos confesse sem pudor ou continênciao mais mimosos dentre os vícios capitais,esta fome e humana sede: permanência.

Quando, pura flama, fugir à imanência,buscador infatigável de sua identidade,

quando, ao declinar incerto da existência,

souber que em minha ausência a vida continua,lá do além almejo ver, em minha cidade,

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meu nome ornando a esquina de uma rua.

* * *As favelas, cara, vai ser de lá que vai

descer a revolução, as favelas são cinturões deódio e ressentimento dia­a­dia realimentadospela televisão, qualquer novela das sete, das oitoou do caralho vende padrões de vida e consumofora do alcance do zé­povinho, mas o Zé ficababando diante do vídeo, talvez no dia seguintedesça do morro e compre o cigarro que fumaquem sabe o que quer, pode até comprar aqueletênis que dá um certo tchan, talvez até ascuecas aquelas que transformam qualquer pobrediabo em um deus grego, acontece que logo­logoele se dá conta que mesmo fumando o cigarro dequem sabe o que quer, mesmo calçando o tênisque demonstra um padrão de vida, mesmousando as cuecas que o tornam mais viril,mesmo assim ele continua sendo um pobrediabo e quando descobrir que o tal de cigarro, ostais de tênis e as tais de cuecas sãoconseqüências de uma condição social — e nãocausas, como a publicidade insinua — aí,mestre, aí quero ver o que vai acontecer.

No Brasil, cara, está tudo maduro para arevolução, não é como na Nicarágua, onde ascomunidades viviam um estágio dedesenvolvimento muito primitivo, tinham formascomunais de propriedade e nada entendiam deluta de classes, como pode ocorrer luta declasses se nem classes existiam? Até agora aimprensa burguesa cobra o extermínio dosíndios misquitos. Mas como fazer revolução,mestre, onde não há classes nem luta de

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classes? Tivemos primeiro de criar classes entreos misquitos, estabelecer a luta entre elas, e sóentão tratar do processo revolucionário. Nestepaís está tudo em fervura, mais um pouco e anegrada toda do morro vai descer com baldes deódio fervendo, nós estamos atentos à capacidadeexplosiva dos morros, a igreja também, e aindahá os presídios, cara, ou achas que é por acasoque há uma pastoral penitenciária, já imaginasteesta gente toda com um FAL em punho? Nossocardeal já percebeu este potencial de ódiocontido e se hoje algum rato toca no fio docabelo do criminoso mais vil, no outro dia édenunciado na imprensa européia, a Igrejasempre teve seu lado revolucionário e se algoredime para mim esta bosta de terra é que nossocardeal é catarinense. Viste aquela palestra doCallado? Que nenhum país decente chegou a sero que é sem fosse necessário rolar sangue? Queo caminho da revolução passa pela Igreja e peloPT? Vibrei com a coragem do Callado, nuncaninguém havia dito isto publicamente aqui nailha, e mais, nos salões da universidade. Oreitorzinho não sabia onde se enfiar, comoanfitrião não iria contestar o visitante, sem falarque passaria por reacionário. Metade da batalhanós já ganhamos, mestre, ninguém mais temcoragem de contestar uma posição nossa. Setiver, nós o ridicularizamos nas assembléias e naimprensa. O sangue rolou na Rússia, rolou naFrança, rolou nos States e agora vai rolar aquiou este país nunca sairá da merda. A ilha podeser um atraso, mas nela existe um tremendopotencial revolucionário, a farra do boi, mestre,exato, esta festa do povo, brutal, é verdade, mas

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sempre é bom que o povo goste do cheiro desangue.

A farra, mestre, é paradoxal, dá votos aquem a financia e mais votos ainda aos que acondenam. Ecologistas do país todo estãodescendo à ilha, cara, defender o boi sempre dámanchete nos jornais do centro, sem falar queeles não têm o ônus de proibir ou prevenir farraalguma e quanto mais a condenam, maisacirram o ódio latente do pescador, deste pobrecoitado que viu seu território invadido peloséculo XX e só sabe reagir pela violência.Jornalistas mal­informados andam acusando aIgreja, que padres e bispos jamais disseram umapalavra que fosse contra a farra, mas quepoderiam dizer, professor, se bebem sanguetodos os dias? Só padre de província mesmo,daqueles que ainda acreditam em Deus, paraachar que a Igreja pode existir sem sangue, osangue está em seus alicerces, começa com o deCristo e continua História afora, vai perder otrem quem acha que a utopia pode serconstruída sem sangue. Ninguém lembra maisque os etarras e os brigadistas vermelhos, que opessoal da AP aqui em Pindorama, foram todosmovimentos nascidos em círculos católicos, éclaro que padre algum vai condenar a farra,seria o mesmo que abominar sangue, a seiva deque se alimentam, não é por acaso, mestre, quenosso cardeal fecha com Castro e Casaldáliga, osirmãos Boff com Ortega e o Cardenal comKhomeini. Sem um novo banho a humanidadenão se renova, democracia é conversa pra boidormir, o pepino é que a palavra é muito forte,

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tem enorme prestígio histórico, não vejo porquenão usá­la, pelo menos enquanto não chegarmosao poder. Moscou já era, cara, Cuba também, olíder agora está na Líbia e é para lá que eu vou,nem que tenha de usar véu.

O ódio, professor, pode ser direcionado,todo revolucionário sabe disso. Em vez do boi,um burguês. Sabãozinho, sabãozinho / deburguês gordinho / latifúndio e reação / vaivirar sabão. Soa a anos 60, não é mesmo? Mas apalavra de ordem permanece atual. O professorleu sobre aquele assalto a um prédio da Beira­Mar Norte? Deve ter lido, é claro, vive carregandojornais. Pena que não foi no meu prédio, queriaver meu ilustre progenitor se borrando de medodo alto de seu prestígio e de sua fortuna. penaque não foi lá. Viu quem eram as coitadinhasdas vítimas, mestre? Tudo deputado, senador,ex­deputado, secretários de Estado. Você viu, nooutro dia, a reação do povo? Viu algum gesto decondenação aos assaltantes? Nenhum, cara,nem unzinho, nos olhos de todos pairava umsorriso, desde a faxineira ao comerciário, dobancário ao barnabé, no olhar de todos se lia sóabsolvição, esses têm cem anos de perdão.Imaginou o dia em que o povo descer dosmorros, professor? Ser boi nesta ilha vai serprivilégio, o boi só sofre a dor física, o burguêsvai começar sofrendo a dor moral de perder opedestal de merda que o sustenta, não é poracaso que a Beira­Mar cheira à merda. Jáimaginou, os ilustres deputados, os juízes bons ebaratos, os barões da coca, todos despidos deseus dólares e barras de ouro, da piscina e da

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mansão na praia, do status e do séquito depuxa­sacos? Isto antes do paredón, é claro.Aposto que boi não sofre tanto na farra, boi nãosabe o que é poder.

* * *Ou então a farra do boi, Bagual. Viste esse

alarido internacional, ecologistas da Europa edos States xingando a ilha e os ilhéus? BrigitteBardot mandando cartinhas ao ministro daJustiça? Bueno, cá entre nós, atrás dessagritalhada toda está o Taba. Já viste uma farrado boi, Bagual? Deves estar imaginando umbumba­meu­boi, boi­de­mamão, algo do gênero.Eu também imaginava, em meus dias deencatarinamento. Mas durou pouco. Mal aporteiaqui na Barra, a comunidade me convidou paraa festa, o que me pareceu muito simpático. Tche,Bagual, nesta vidinha de jornal já vi presuntocom as tripas de fora, pedaços de membrosesparramados em volta da carcaça de um avião,já vi cabeça sem corpo e corpos sem cabeça, vicriança estuprada e carneada, literalmentecarneada, rasgada com faca da vagina até oumbigo, vi tudo isso e não vomitei. O crimeestava consumado, nos cadáveres ou pedaços decadáver já não havia mais o sopro da vida, emesmo apesar do mau cheiro consegui controlarminhas arcadas de vômito. Mais emético é ver ocrime sendo executado, elaborado aos poucos.Um fuzilamento ou enforcamento rápido é algotenso mas é rápido, uma vez acontecido deixa deacontecer. Já te imaginaste fazendo a coberturade uma sessão de tortura? Talvez nem tenhaspensado no assunto, tortura por definição é

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coisa de porões, ocorre entre quatro paredes e setestemunha houver esta é a próxima a morrersob os mesmos métodos. Pois esta gente, com oorgulho de quem convida o forasteiro para umafesta íntima, me convidaram para uma farra.

Olha para estes íncolas que nos cercam,Bagual. A Zefa que te hospeda, para não ir maislonge. Simplória mas simpática, não é verdade?No verão, bate bilro o dia todo, não perde missaaos domingos, acredita em Deus e na virgindadeda filha e já deve ter­te brindado com generosaspostas dessas horrendas tainhas fritas. Olhaaquele paraplégico se arrastando em suasmuletas, tenho feito o que posso por ele,consegui até um carguinho público, em verdadeele tem mais estabilidade que eu, ele me adora eisto não é fingimento. Olha esses pescadores, derosto escalavrado pelo sol e pelo mar, tãomansos e fotogênicos nos postais, tão afetuososquando te apertam a mão. Olha essas virgensadolescentes, proibidas de ir às praias pelospais, que não suportam a idéia de uma tanga oupeitos nus, a menos que seja nas filhas da“gente de fora”. Tampouco suportam ver a filhana universidade, é a quebra de todo e qualquerresquício de autoridade, as meninas passam abracear na praia de um mar mais ou menosculto, os pais se sentem reduzidos a um mundoagonizante. Olha fundo nos olhos dessa gentetoda. Não vais encontrar resquício algum de ódioou violência. Mas espera o Natal, meu querido.Ou a Semana Santa. Uma prosopopéia malignaparece tomar posse destes seres aparentementetão singelos, deve ser algum ancestral vírus

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açoriano que permanece camuflado nos gensdessa gente e mostra as garras duas ou trêsvezes ao ano. Aí, a pacífica batedora de bilro, oafável pescador, o coitado do aleijadinho, aadolescente babaca, todos se travestem emalgozes sedentos de sangue. Talvez me expressemal, imagino que um carrasco deve detestarsangue, deve estar cansado de sangue. Eles,não. Sabes o que é uma farra do boi, Bagual?Vou te contar. Acredita se quiseres. Na Espanha,nem os antitaurinos me davam crédito, tive demontar um dossiê, com fotos de apôio edepoimentos. Os madrilenhos, acostumbrados alas tardes de sol y sangre, não conseguiamimaginar que numa ilhota tropical persistissetanta crueldade e vileza.

Leste Sêneca, Juliano? Teu nome meintriga, ninguém é batizado Julianoimpunemente, teu pai deveria ter algumdiferendo com os padres. A tortura e oextermínio em massa constituíam a festacotidiana, para recobrar a simples sensação deestar vivo, o manezinho da ilha lá de Romaafluía em manadas à arena. Sob pretexto deassistir ao justiçamento de criminosos, emverdade castigava a si mesmo. A pólis se tornaPatolópolis, a cidade entra em declínio, doençavira sinônimo de saúde, criminalidade passa aser algo normal. Nem Marco Aurélio, o lúcido,ousou manifestar, que mais não fosse por suaausência aos massacres, seu desgosto àbarbárie. Aqui a doença é mais grave, antes dese tornar Pólis a cidade mostrou­se Patolópolis,a tortura vira sinônimo de tradição cultural e ai

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de quem ousar manifestar­se contra os usos ecostumes desta simpática comunidade depescadores e rendeiras. Ou Parasitópolis, sequiseres, as duas pestes sempre andam juntas.Se Marco Aurélio, com todo seu refinamento,temia desgostar a plebe, que restaria a mim,gaúcho ilhado entre bárbaros, senão o silêncio?Eles pressentem. Organizam a farra sempreperto de tua casa, se possível frente à tua janelae conforme a cachaça consumida pisoteiam teujardim e regam com sangue tuas flores. Bebemcomo esponjas, talvez para abafar algum últimoresquício de saúde, com o qual nossa presençaos tenha contaminado. Pior de tudo, eles sequertêm culpa. Os oligarcas de Laputa não têminteresse algum em súditos cultos e civilizados.Quem puder fornecer cinco bois à sanha doscoitados, ano seguinte é vereador. Ou deputado.Se ambicionar algo mais, mesmo que abomine afarra que financia, que faça como Marco Aurélio.Nada é grátis em Parasitópolis nem nada égratuito em Patolópolis. Ao torturar o animal,estes coitados ignoram que os bois são eles e afarra é o jugo. Bueno, Bagual, logo eu que crieiesta ilha para argentino ver, em um movimentotardio de remorso, mal­estar que acometepublicitários em fim de vida, acho, tentei fazeralgo por esta gente. Denunciar a loucura em umhospício, além de ser redundante, ninguémouve. Aproveitei meus dias de Espanha, osantitaurinos estão na moda. É difícil imaginar aEspanha sem touradas, ser toureiro lá é comoser padre aqui, único meio de ascensão social dequem nasceu em berço pobre, os padres selargam a batina sempre têm um encosto nos

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cursos de Letras, mas que vai fazer um toureirose pendura seu traje de luces? O dossiêhorripilou os jovens europeus, chocou atémesmo a Brigitte, se ela vê um árabe agonizandonuma rua é capaz de mudar de calçada para queseu sangue não macule suas sandálias e sóagora, após mais de século de barbárie e tortura,a intelligentsia ilhoa percebeu, ou finge perceber,a podridão que a sustenta.

* * *O jovem Doutor tem diante de si uma bela

carreira, isso se observar, como direi, certossinais de tráfego. Durante sua visita, você estarásendo observado por seus pares e casso nãotenha ultrapassado nenhum sinal, ou pelomenos não tenha ultrapassado muitos sinais,poderemos abrir um concurso para o professor.Sim, especificamente para o professor, ou você jáviu concurso aberto a desconhecidos? Pode serque nas áreas técnicas, onde competência éfundamental, algum concurso seja efetivamentepúblico. Mas o professor está em um curso deLetras. Em primeiro lugar, professor, por favorevite falar em coisas de religião. O professor vemdo Sul, terá por certo formação positivista, istopara não dizer atéia. Certamente não ignora quenós, professores de Letras, temos nossas raízesem seminários e conventos. Há coisa de poucosanos, quando a ilha não havia sido invadida pelagente de fora, começavamos nossas aulas com osinal da cruz e um pai­nosso. Com a invasão dagente de fora, não só para o corpo docente comotambém para o discente foi ficando cada vezmais constrangedor, professor, começar uma

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aula como nossos mestres de seminário. Melhornem tocar em Deus, meu jovem Doutor. Outrotema delicado é a literatura local. Não tenteanalisá­la, repito, sem antes ter lido o Tao. Nãohá nada que não seja grande. Não tente sequeraplicar a nosso fazer literário esses métodosdalém­mar, que assim nossos autores viram pó.

Nossas letras, meu jovem Doutor, sãofrágeis flores que ao menor sopro fenecem. Vocênão tem obrigação alguma de apreciar nossosescritores, muito menos de lê­los. Basta que oselogie. Se quiser permanecer na universidade, éclaro. O Professor é sensível, estou certo de quebem cedo encontrará metodologia adequadapara a abordagem de nossa .literatura.Pessoalmente, uso uma que sempre dá certo,pelo menos até agora ninguém reclamou, em suaabrangência satisfaz a todos. Se não, vejamos:

A busca da identidade catarinense, eternapreocupação do poetar ilhéu, encontra em (cita­seaqui o nome do poeta) um novo intérprete.(Agora, o nome do livro) nos traz de volta (nomedo poeta de novo), de poesia inteira, plenitude,entre nós, do equilíbrio da forma e conteúdo. É avoz alta da poesia em defesa de um céu maisamplo para o homem, onde se tem, porreferências maiores, justiça e liberdade. Aindaque o poeta saiba das oscilações dos tempos eclima, ele se coloca com coragem, em defesa dohomem:

(cita­se aqui um ou mais versos,contendo de preferência as palavras

homem, pátria, humanidade,

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o que é sempre difícil de se catarna obra de qualquer um).

Com palavras candentes, o autor consegueconstruir seus poemas em cima de uma visãobem mais complexa das relações entre sualinguagem e a realidade. E, particularmente, deuma visão complexa e rica de seu instrumentoespecífico de trabalho, a linguagem. Sua técnicafragmentária, minimalista quase, é conseqüênciacoerente dos temas escolhidos e da maneira deabordá­los. Não há, em (título do livro) aquelagratuidade de processos que desqualifica tantospoetas novos. Pelo contrário, o experimentopoético é, em (nome do poeta) uma necessidadeque nasce da própria temática abordada. Pode­sedizer que o corpo de seus poemas, despedaçadoem sua unidade, justapondo coisas heterogêneasnuma colagem fascinante, é imagem da própriarealidade que o poeta tenta fixar.

(aqui, mais alguns versos do poeta,colhidos,

preferentemente,ao azar).

(Nome do poeta, outra vez) é um dosnossos poetas lúcidos, uma das vozes maisgraves e mais altas de nossa poesia em todos ostempos. É um poeta de faca na bota. Que saberesponder aos desafios intelectuais com umtestemunho que sempre procurou expressar apartir de uma proposta ao nível dos maislegítimos interesses de seu povo. E desde (citarcidade do poeta) até um lugar esquecido emnossa América, onde alguém morra em luta pela

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liberdade que nasce no coração do homem, elecanta. Seu canto cresce como um coro, porque elepega pela palavra a realidade próxima de cadaum.

E assim por diante, meu jovem. Veja comoé fácil, para quem lida com as palavras, atingir ocerne de uma obra e arrebanhar simpatias semferir suscetibilidades. Observando o microcosmoque o envolve, o Professor há de encontrar suaprópria metodologia. Continuar, por exemplo,assim:

Podemos então concluir que, se nãoestamos diante de uma poesia de diretoengajamento social, certamente esta não é umapoesia alienada nem alienante. Trata­se, antes,de uma poesia voltada para o homem integral,nas suas múltiplas dimensões. Procuram estespoemas despertar o homem para seu caminhointerior, íntimo e pessoal, para a atividadeconscientizadora do homem adulto, maduro eponderado, capaz de ver cada elemento em seulugar, na sua função, no seu valor, dentro daharmonia do Tao. Neste sentido, essa poesia étanto filosófica quanto existencial, é tão místicacomo humana, refere­se ao estritamente pessoal eao amplamente universal.

Não há poeta, meu jovem Doutor, queresista, ou consiga escapar, a esta análise. Comochave de ouro:

Nos poemas de (mais uma vez o nome dopoeta) a palavra poética corporifica um universodenso e rico, embasado em sólida culturaclássica, humanística e filosófica, bem como em

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sadia e serena experiência vivencial. Ler essapoesia é contagiar­se com sua emoção poética eenriquecer­se com suas lições de sabedoria devida. Por isso, hoje, é impossível falar da poesiaem Santa Catarina sem, de imediato, conferirdestaque à criação lírico­filosófica de (aqui, citaro nome do poeta analisado pela penúltima vez).Omiti­lo é confissão de ignorância. Sabemos quetoda criação artística se desenvolve nacomunhão. Hoje (cita­se então o poeta pelaúltima vez) tem sua posição poética solidificada.Nenhum estudo, nenhuma antologia, nenhumaexposição futura sobre literatura em SantaCatarina poderá deixar de conferir o devidodestaque à obra madura deste poeta.

Esta fórmula, professor, vale paraqualquer Estado e para qualquer colóquio. Sócuide de, quando encontrar a sua, não esquecerde trocar Santa Catarina pelo toponímico deonde estiver. Sucesso, meu jovem, que vou parauma tertúlia na ALESC.

Minha terra, ilha encantada, não abuse,ínsula amada, o engenho de teu vate.

Mais que um poeta, deste ao mundo Cruz eSousa, negra lira cujo estro nos abate.

A alma que é justa, quando sobe aos céus,lá encontra toda glória e recompensa.Infeliz do escriba que vive entre ilhéusmerecendo de seus pares só descrença.

Me neste caso encontro e sem aleivosiasindago meus colegas em azo tão propício:

gostaríeis, imortais, que nestes dias

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últimos do ano, de Natal e de solstício,em louvor à ilha, meu oásis de alegrias,legue meu busto a este nobre sodalício?

* * *Duro mesmo, Paixão, foram aqueles dias

de Plano Cruzado, acho que até o dono da casaandou acreditando na coisa, ou talvez tivessemedo da Sunab, da polícia, sei lá. Até encontraraquele macete da massagem­massagem e damassagem­carinho foi duro agüentar a barra,tudo quanto era barnabé de baixa renda tomoua Anita de assalto, aquilo de cortar três zeros econgelar preços foi um desastre, espero quenunca mais se repita, a casa foi invadida porfuncionários do BESC, TELESC, PRODESC,ACARESC, tinha até bedel da UFESC, te juro, ocara varria o corredor quando fui me inscreverno vestibular. Imagina se entro na universidade,Paixão, o cara vai me dedar pra todo mundo,eles chegavam aqui com ar de quem tem grana,pediam duas ou três mulheres como quem pedefilé em açougue, assim por quilo. A gente estápro que der e vier, mas não foi fácil suportaraquela arrogância, eu me sentia vendida a preçode mulher da Mafra, não que eu tenha algocontra elas, vivem vida bem mais sofrida,acontece que dá vontade morrer ter de agüentaresses animais por pouco preço. Podes achar atéque foi sabotagem ao Plano Cruzado, Paixão,aquela tabela nova, a da massagem­carinho,mas não deve ter sido por isso que o Plano veioabaixo, eu pelo menos não me sinto nem umpouquinho culpada por essa inflação toda,

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agora, que foi duro, foi duro, a gente mal tinhatempo de dar uma lavadinha na xexeca. Não queme desagrade meu trabalho, só não gosto de mesentir fodida e mal paga. Falar nisso, paizinho,que horror aquilo da Galheta, parece coisa defilme americano, lembra daquela atriz que foicarneada viva? É, eu também leio jornais,primeiro o horóscopo e depois as páginas depolícia, o resto não me diz nada mesmo, querdizer, minto, no verão dou uma olhadela naspáginas de economia, os argentinos estãochegando e sempre é bom saber a cotação dodólar. Horror, que horror! Eu conheci o cara, elede vez em quando pintava por aqui, acho quepor solidão. Nunca pegou mulher, mesmo assima gente gostava dele, sempre nos tratou comrespeito e só fazia sauna, tava na cara que onegócio dele era homem. Tem muita gente quevem aqui, Paixão, não é por mulher não, é sóficarem sozinhos no vapor e se acertam por lámesmo. Nós ficamos chupando no dedo mas eunão reclamo, ele sempre me tratou bem, tinhauma mão delicada, dedos enormes. Mas o queeu gostava mesmo nele eram os olhos, Paixão,uns olhos verdes que traziam paz, o médico dacasa nos falou do risco de transar com esse tipode gente, mas dele ninguém tinha medo, paracomeçar ele não queria nada mesmo commulher, uma pena, ele era lindo e carinhoso,depois de ti, paizinho, acho que era o clientemais querido aqui da casa, nos pagava uísque àvontade e depois ia atrás de algum menino lá nasauna. Conheceste ele, Paixão? Acho que não, tuvens sempre à tarde, ele só chegava em fim denoite. Agora, isso. Já me convidaram pra

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Galheta mas eu nunca fui lá, se ganho minhavida pelada, pelo menos nos dias de folga possopôr um biquininho legal, não posso? Horror,Paixão, que horror!

* * *Tudo começa, tche, com uma inocente

corrida, ao estilo das de Pamplona, o boi investee as pessoas fogem. O que já não deixa de serestúpido, acontece que a farra continua e já noprimeiro dia vomitei. É duro para um gaúcho verum animal sendo torturado, pior ainda quando éum boi. Vomitei mas engoli o vômito, semanifestasse meu asco tão efusivamente seriaexcluído da festa e mesmo da comunidade.Jornalista, fui brindado com o hediondoprivilégio de assistir e mesmo participar, sequisesse, de um ritual tribal e íntimo, no fundodevia orgulhar­me por merecer a confiança dosnativos. Foi duro, mas fui até o fim, tive aimpressão de que às vezes o boi me olhava nosolhos pedindo socorro. Lembras aquela cena deApocalipse Now, aquela festa na selva? Depoisde uma dança ritual um boi, vivo e em pé, épartido em três pedaços por um dançarino, acada golpe de cimitarra ou coisa que o valha oanimal era cortado de alto a baixo edesmoronava aos poucos. Café pequeno dianteda farra, Bagual, generosidade dos asiáticos sócomparável à invenção da guilhotina, lá o boimorre em segundos. Paguei para ver do queeram capazes aqueles seres que me rodeavam.Não foram os chifres quebrados do boi, teconfesso, não foi o pênis cortado, os olhosfurados por espetos em brasa, não foram os bois

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com rabos atados, fustigados até rebentarem ascaudas, não foi o animal vilmente empalado comuma vassoura e muito menos o momentoculminante da prova, os quatro cascos cortadose fogo no que resta de rabo para que o animal seerga sobre as extremidades expostas de osso,não foi nada disso, meu guri, o que mais mehorrorizou. Horripilante era ver estes seres, tãogentis e prestativos, são capazes de carregar­menas costas até a cidade numa noite de temporalse tenho uma crise qualquer decorrente de meusachaques, o horror era vê­los excitados com atortura e o sofrimento, o sangue e a agonia. ASanta Igreja muito faturou em cima desta sedede sangue, a fogueira e a roda, se eram suplíciopara os condenados, constituíam festa e colírioaos olhos da platéia. Tua Zefa estava lá, Bagual,Princesa também, jamais vi as duas tãoendemoniadas. Princesa parecia acometida deorgasmos em cataratas, a Zefa irradiava um gozoque duvido tenha algum dia tido na cama, láestavam os “garçons” que me servem, o donodeste bar que elegi para morrer, quando chegarminha hora ele vai chorar em minha tumba etoda vez que lembrar de mim. Lá estava tambémmeu aleijadinho, aquele que tentei transformarem gente, na falta de pernas que obedecessem aseu ódio desancava a muletaços o boi já decascos cortados. O que me horripilou, Bagual,nem foi ver o boi vivendo seu calvário, o animalchorava, mudo de espanto. O que me fez medofoi ver de perto do que é capaz o ser humano.Pois eles são humanos, pelo menos assimparecem.

* * *

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* * *Oh Padre Eterno! No puedes ignorar que

estos miserables pecadores son criaturas tuyas yque te pertenecen por el supremo título de lacreación. Il Vecchio Ponte, babbo mio, foi acausa primeira de todo pecado e perdição, pelaponte velha a peste e o pecado invadiram a ilha eas pontes já são três, malditas sejam as pontes emalditos todos os pontífices. Oh, Hijo, ou Reybendito! No puedes negar que sean tuyos estosdesgraciados, puesto que por ti mismo losconquistastes por el título irrefutable de larendención. Escúchame, oh Hijo benditísimo!escúchame y muéstrate propicio a mis plegarias.Presentándome al elterno Padre con la prenda detu sangre y de tu pasión en mis manos, nopodrá alejarme de sí sin antes atender misruegos. Pela ponte velha entraram os gaúchos.Com os gaúchos entraram o pecado e a Aids, esó pelo sangue o pecado pode ser perdoado. Oh,ojo eterno! Tú eres el que ilumina a todas lasalmas que vienen a este mundo, el que ilumina atodos tus santos, y estos se asemejan a los queno tienen en la frente más que un solo ojo. Tú,Señor, me haces enloquecer.

Sob a figueira, Cristo desvencilhou­se dasduas discípulas, abriu longamente os braços,túnica inconsútil abanando ao vento:

— Por que levantas até o trono de minhaadorável Trindade tais clamores?

— Il Vecchio Ponte, babbo mio. As pontesdevem ser destruídas. A ilha está contaminadapelos gaúchos e pela peste, tua santa te implora,eu, Catarina, te peço, babbo mio, punição para

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os pecadores. Vuelvo la mirada a la isla, y veoperdidas las almas de inumerables pescadores, yal verlo se me dilata el corazón con la fuerza deeste amargo pesar y no puedo menos de llorarsu miseria como si yo misma me encontrasehundida en el fango de sus culpas, el corazón seme late, al ver la sangre correr. Tú, Señor, mehaces enloquecer.

— Que mais pedes, Santa, tu que tantopecaste, nestes dias em que de novo devo vertermeu sangue?

— Mi culpa confieso, Trinidad eterna, dehaberte miserablemente ofendido con tantaputaria mia. Miserable de mi, que no heguardado tus mandamientos. Oh malvada! Teunome é todos os dias conspurcado nestas praiasonde o pecado impera, teus pescadores vãopouco a pouco trocando la pêche par le peché.Deus é um punhal na mão de todo crente. Tú,Señor, me haces enloquecer.

— Além de meu sangue, que mais queres,minha Santa?

— Teu sangue virou símbolo, babbo mio,ninguém mais acredita que o vertes todos osdias, em todas as missas, teu sangue virouvinho e dele teus ministros se embriagam setevezes por semana. Teu sangue ritual já não mataa sede de ninguém, muito menos o sangue dosbois, os bois morrem e os pecadores continuampecando, os pescadores pescando, y tu corazónsiempre ofendido. Tú, señor, me hacesenloquecer.

* * *

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— Não, Bagual, não me considero culpadopela morte do Vanva, o coitado perdia o sonocom medo da Aids e foi morrer de jeito tão vil.Não fui eu quem o submeteu a todos os rituaisda farra, não o acossei rumo ao mar. Certo,tenho minha parcela de culpa. Eu já haviacriado a festa da tainha, a festa da laranja, afesta sei lá de quê, a SETESC me pedia maispromoções, mais eventos. Assumi o papel dedemiurgo, reorganizando uma matéria pré­existente. Criei a praia do nudismo. Escolhi aGalheta, está escondida ali atrás deste morro daBarra, gostava de refugiar­me nela quando aindanão era esta carcaça ambulante, era uma dasraras praias onde se podia ouvir o mar.Consegui quatro ou cinco dessas putinhas quepululam nas secretarias de Estado, junteialgumas bichas amigas, dessas de bundinhasfeminis. Quando se fala em nudismo, de homemmesmo ninguém quer saber, botei a turma ajogar vôlei e comprei algumas capas dessasrevistas que vendem capas e voilà, estava criadaa Galheta, paraíso naturista. Queriam mais umaimagem da ilha para vender? Pois criei maisuma. Nudismo não tem sentido em país tropical,tampouco rima com esta gente tacanha.Nudismo é brochante, as pessoas ficamintimidadas e sequer ousam se olhar, semprevais encontrar mais sensualidade na Joaquinado que em qualquer praia com todo mundo nu.Mas a SETESC pediu, eu criei. Não que algumturista viesse à ilha para praticar naturismo,nada disso. Mas não faltou quem acreditasse naficção, a praia foi aos poucos sendo ocupada por

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essa gente mais liberada, que tanto pavor causaao ilhéu. Estive lá outro dia, questão de ver ofruto de meu bestunto, havia gente lendo, coisaque nunca vi nestas praias, ninguémpreocupado com a nudez alheia, todos “gente defora”, é claro, curtindo talvez, mais que a nudez,esta sensação tão rara de estar entre civilizados,de estar longe da ilha. Os assassinos, Bagual,pelo que bispei aqui na Barra, tu os conheces,todos os dias te dão bom dia e te mostram osdentes, certamente gostam de ti e jamais teconceberiam como um bode luxuriento, que eubem te conheço. Tampouco te imaginariamcompanheiro de trago do Vanva. Universosparalelos convivem na ilha e particularmente naLagoa, que tanto atrai os gaúchos. A Lagoa éilusão, meu querido. A Barra também, mas tantofaz, pouco tempo me resta. Somos azeite e água.Podemos sorrir para eles, eles em troca nosmostram as canjicas, bom dia, como vai?, bonitoo dia hoje, não é?, será que vai chover?, e maisadiante não se pode ir. Estive certa vez em umfestival de cinema em Tunis, Bagual, almoceicom uma delegação árabe e estraguei a bóia.Todos comiam com a mão, fui enfiando a minhana panela, acontece que sou canhoto e naquelasbandas a mão esquerda é a de limpar o cu.Terminou o almoço. Mesmo assim, lá pelo menoseu podia discutir cinema. Aqui, posso até limpara bunda com os dedos, mas não tenho comquem conversar. Em Madri, estava muito maisperto de Porto Alegre do que hoje em Laputa.Qualquer negrão de favela se sente melhor aqui,basta acertar na Loteca e descer o morro quetem interlocutor, graça que não nos é concedida.

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“Vencedores do medo e como familiares àmorte”, assim nos definiu um dia ReinaldoMoura. Mas esse gaúcho não mais existe, se éque um dia existiu. Somos quero­querosperplexos, expulsos de nossa geografia,pousando até em telhados na falta do verde dapampa. Já viste quero­quero em telhado, meuguri? Pois aqui eu vi.

Em minhas viagens, Bagual, aprendi quetodo homem tem uma cabeça proporcional aotamanho do território ao qual pertence.Gaúchos, não temos idéia de fronteiras, paranós toda ilha é prisão, deve ser isto o que nossepara deles. Eles nos temem e reagem, violênciaé a reação da incompetência. Gaudérios, sempreolhamos o mundo com um olhar comparativo,comparar é julgar e quem suporta ser julgado?apesar de meu azedume, acho que no fundo oser humano tende sempre a voar mais alto. Maisdia menos dia as coisas vão mudar em Laputa,serão os dias da Virada, quando cada coisaatender por um só nome, quando bar serásinônimo de bar, literatura será literatura e nãopuxa­saquismo de barnabés cheios de medo. Atélá, muita gente vai morrer. Vanva foi o primeiro.Quanto a mim, também estou partindo.

* * *Ensina­se em jornalismo que toda notícia

deve responder a quatro perguntas básicas: oquê? onde? como? por que? O resto é detalhe,comentário, marrom glacê. Mas há notícias enotícias, não é verdade, Taba querido? Hátambém a mais terrível das notícias, a mais durae sintética, a composta apenas de duas palavras,

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aquela em que um sujeito e um predicadobastam e as outras três acadêmicas perguntasperdem seu significado. Notícia tão sintética eperfeita quanto patética e definitiva, transmitidasempre com voz embargada, esparramando­secom a velocidade do som e a perplexidade dosque ficam. A notícia, tche, me chegou rápida etrêmula como sempre chegam tais notícias. Umafrase, de sujeito que me evocava carinho,amizade, afeto quase paterno, mais um verboabsurdamente intransitivo: Tabajara morreu.Ponto final, silêncio de um lado e outro do fone,

Perplexidade ante o mais corriqueiro emais espantoso dos fatos, e inutilmente meponho a batucar o teclado numa tentativa decatarse, transferir para o papel esta notícia queme salga o rosto. A partir de hoje, falta alguémno Kibelândia. Quando nos vimos, Taba, pelaúltima vez? Anteontem. Ela estava em teus olhose pouco a pouco tomava posse de ti. Eu a via,tua a sentias, nós todos sabíamos e eu e tu,todos nós, pudicos, não ousávamos pronunciarseu nome. Eu fingia não vê­la, falava de vida etrabalho, dos exames de minhas alunas. Eutambém estou prestando exames — me disseste,em momento de indiscrição — e não sei se vouser aprovado: exames de sangue, urina, fezes.Estremeci por dentro e me pareceram pequenasas reclamações de minhas alunas.

Estóico, hierático, cãs serenamenteenvolvendo o olhar de quem sabe que vai partir,a esperavas. Eu também. mas não hoje. Não tãocedo. Nos presumimos eternos e a partir distojulgamos os demais. Ela virá, ela nunca falha a

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seus encontros. Certamente mais tarde,pensamos. Na pior das hipóteses, amanhã. Nãohoje. Falta de cortesia fazer­se anunciar nestecálido domingo de junho, raios pintando decores ainda sem nome os morros e águas destailha que tanto amaste e xingaste. Lembro teuperfil sereno lá na Barra da Lagoa em minhaprimeira visita à ilha, sereno e solitário, olhandoos homens e o mundo através do prisma ótico deum uísque. Não és o Taba?, perguntei, teafagando os ombros. Eras ele. Voltei, acho queuns dez anos depois. Havia campereado mundoafora, meu espírito era um negativo onde sehaviam superposto milhares de fotos, meuspontos de referência já os havia perdido, erevisitei a Barra. Lá estavas, sereno e imóvel,olhando o mar. Eu perambulava, mudava pordentro e por fora e não mais entendia a bússola,mas tinha um conforto: um dia volto à Barra, láestá o Taba segurando o leme, ele sempre sabeonde fica o Norte. Certa vez, não sei se te contei,vim aos Três Irmãos com uma amiga, lá estava oaleijadinho que subtraiu uma tainha aoarrastão, se arrastando pela areia sentiu­sehonrado em te fazer um regalo. Não estavas lá eperguntei por ti. Os olhos do menino explodiramde alegria mal pronunciei teu nome e minhaamiga quase deixou­me enciumado: “viste osorriso nos olhos daquela criança? Teu amigo foihomem daqueles que não se fazem mais”.

Como Asdrúbal, não fui ver, não vou ver,não quero ver, tua sofrida carcaça. De ti queroguardar aquele rosto tranqüilo e de espera, dequem sabia que Ela estava por chegar e desta

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vez não protelaria o encontro. Qualquer diadestes te visito em tua tumba, te levo um buquêde jornais, Folha, Estadão, J.B., Zero Hora, ElPaís, Le Monde, boto junto algum “lençol detainha” local para que te divirtas com aestupidez ambiente. Mas a vida continua.Devolvo pra dentro este nó que me sufoca, lavo orosto, limpo os óculos e rumo ao Kibe. QualAsdrúbal, três vezes te ergo um brinde, trêsvezes três vezes, três vezes não sei quantasvezes, enfim, pouco importam as vezes,importante é apanhar o bastão e continuarremando, confraternizar antes do naufrágio,remar como Asdrúbal, sabe­se lá rumo a onde.Mas cá entre nós, velho Taba de guerra, podiasao menos ter morrido em um dia de chuva.

* * *Engano teu, Bagual, nós que escrevemos

não morremos assim tão cedo, pode ser que acarcaça vá para a tumba, as palavras continuamreboando, deixa eu te contar o resto enquantominha aura ainda paira sobre a ilha.

O corpo dele, Bagual, veio dar emMoçambique, aqui à esquerda da Barra, Convitenão faltou, queriam que eu reconhecesse ocadáver. No fundo, o convite era outro, vem cáolhar como punimos quem infringe o tabu. Umafarra do boi me foi suficiente, recusei­me atestemunhar a farra do gaúcho. Me contaramque o corpo já nem parecia de homem, trabalhodos peixes, disse a imprensa. Mas peixe nãoempala. Bem ou mal, meus coleguinhas tiveramacesso aos fatos. Uma família de pescadoreshavia ultrapassado a Galheta e não sabiam

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como voltar, a praia estava cheia de gente nua.Chamaram vizinhos e foram abrindo caminho agolpes de pás e gadanhos, quem fugiu rumo aomorro teve sorte, sobrou Vanva que preferiu omar e só conseguiu voltar à terra aqui emMoçambique, dois dias depois. O pivô, meuquerido, parece que foi, pelo que ouço, tua idílicaPrincesa. Não, nada disso, não que ela tenhadado um só golpe em Vanva. As coisas vêm delonge. Somos ou fomos jornalistas, sabes muitobem que atrás de uma manchete tipo MULHERFUZILA VIZINHO QUE ATROPELOU CACHORROhá um monte de histórias anteriores. Difícilreconstituir os fatos quando quem mata é acomunidade. O fato é que o Zefo, suponhamosque assim se chame o marido de tua Zefa,decidiu um dia pescar no costão da Galheta,logo lá onde ninguém vai pescar. A Zefa, quejamais ouvira o Zefo pescar por lá, decidiu irjunto para conferir, talvez o que o Zefo queriamesmo era ver mulher pelada, mais a secretaesperança da Zefa de ver um dia um homem nu,coisa que certamente ela jamais viu. Comoescudo, levou Princesa, que nessa altura estariaespumando no entrecoxa para ver um macho nude perto. Que eles estavam lá, disso eu sei, meualeijadinho me contou. Depois, tudo é hipótese.Imagino o pescador sedento de mulher nua, masse descesse pela praia mulher e filha veriamhomens nus, o remédio foi chamar a primalhadae, ajunta a isso o ódio ilhéu à “gente de fora”, elá se foi Vanva, estraçalhado, cumprir suasingradura.

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