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    LÊDO IVO

    PERFIL DO ACADÊMICOQuinto ocupante da Cadeira nº 10, eleito em 13 de novembro 1986, na sucessão de

    Orígenes Lessa e recebido em 7 de abril de 1987 pelo acadêmico Dom Marcos Barbosa.Recebeu os acadêmicos Geraldo França de Lima, Nélida Piñon e Sábato Magaldi. Faleceuem 23 de dezembro de 2012, em Sevilha, Espanha, aos 88 anos.

    Cadeira:

    10

    Posição:

    5

    Antecedido por:

    Orígenes Lessa

    Sucedido por:

    Rosiska Darcy de Oliveira

    Data de nascimento:

    18 de fevereiro de 1924

    Naturalidade:

    Maceió - ALBrasil

    Data de eleição:

    13 de novembro de 1986

    Data de posse:

    7 de abril de 1987

    Acadêmico que o recebeu:

    Marcos Barbosa, Dom

    Data de falecimento:

    23 de dezembro de 2012

    BIOGRAFIA 

    Lêdo Ivo nasceu no dia 18 de fevereiro de 1924, em Maceió (AL), filho de Floriano Ivo e

    Eurídice Plácido de Araújo Ivo. Casado com Maria Lêda Sarmento de Medeiros Ivo (1923-2004), tem o casal três filhos: Patrícia, Maria da Graça e Gonçalo.

    http://www.academia.org.br/academicos/origenes-lessahttp://www.academia.org.br/academicos/rosiska-darcy-de-oliveirahttp://www.academia.org.br/academicos/marcos-barbosa-domhttp://www.academia.org.br/academicos/rosiska-darcy-de-oliveirahttp://www.academia.org.br/academicos/marcos-barbosa-domhttp://www.academia.org.br/academicos/origenes-lessa

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    Fez os cursos primário e secundário em sua cidade natal. Em 1940, transferiu-se para oRecife, onde ocorreu sua primeira formação cultural. Em 1941, participou do I Congressode Poesia do Recife. Em 1943 transferiu-se para o Rio de Janeiro e se matriculou naFaculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, pela qual se formou. Passou acolaborar em suplementos literários e a trabalhar na imprensa carioca, como jornalista

    profissional.

    Em 1944, estreou na literatura com As Imaginações, poesia, e no ano seguintepublicouOde e Elegia, distinguido com o Prêmio Olavo Bilac, da Academia Brasileira deLetras. Nos anos subseqüentes, sua obra literária avoluma-se com a publicação de livros

    de poesia, romance, conto, crônica e ensaio.

    Em 1947, seu romance de estréia As Alianças mereceu o Prêmio de Romance daFundação Graça Aranha. Em 1949, pronunciou, no Museu de Arte Moderna de São Paulo,a conferência “A geração de 1945”. Nesse ano, formou-se pela Faculdade Nacional de

    Direito, mas nunca advogou, preferindo continuar exercendo o jornalismo.

    No início de 1953, foi morar em Paris. Visitou vários países da Europa e, em fins de 1954,retornou ao Brasil, reiniciando suas atividades literárias e jornalísticas.

    Em 1963, a convite do governo norte-americano, realizou uma viagem de dois meses(novembro e dezembro) pelos Estados Unidos, pronunciando palestras em universidades econhecendo escritores e artistas.

    Ao seu livro de crônicas A Cidade e os Dias (1957) foi atribuído o Prêmio Carlos de Laet,da Academia Brasileira de Letras.

    Como memorialista, publicouConfissões de um Poeta (1979), distinguido com o Prêmio deMemória da Fundação Cultural do Distrito Federal, eO Aluno Relapso (1991).

    Seu romanceNinho de Cobras foi traduzido para o inglês, sob o títuloSnakes’ Nest, e emdinamarquês, sob o títuloSlangeboet. No México, saíram várias coletâneas de poemasseus, entre as quaisLa Imaginaria Ventana Abierta,Oda al Crepúsculo,Las Pistas,LasIslas Inacabadas, La Tierra Allende, Mía Patria HúmedaeRéquiem. Em Lima, foi editada

    uma antologia,Poemas; na Espanha sairamLa Moneda Perdida e La Aldea de Sal; nosEstados Unidos,Landsend, antologia poética; na Holanda, a seleção depoemasVleermuizen em blauw Krabben (Morcegos e goiamuns).

    No Chile, saiu a antologiaLos Murciélagos. Na Venezuela, foi publicada a antologiaEl Solde los Amantes.

    Na Itália foram publicadosIlluminazioni eRéquiem.

    Em 1973, foram conferidos aFinisterra o Prêmio Luísa Cláudio de Sousa (poesia) do PEN

    Clube do Brasil, o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, e o Prêmio da FundaçãoCultural do Distrito Federal e o Prêmio Casimiro de Abreu do Governo do Estado do Rio de

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    Janeiro. O seu romanceNinho de Cobras conquistou o Prêmio Nacional Walmap de 1973.Em 1974,Finisterra recebeu o Prêmio Casimiro de Abreu, do Governo do Estado do Rio deJaneiro. Em 1982, foi distinguido com o Prêmio Mário de Andrade, conferido pelaAcademia Brasiliense de Letras ao conjunto de suas obras. Ao seu livro de ensaios A Éticada Aventura foi atribuído, em 1983, o Prêmio Nacional de Ensaio do Instituto Nacional do

    Livro. Em 1986, recebeu o Prêmio Homenagem à Cultura, da Nestlé, pela sua obrapoética. Eleito “Intelectual do Ano de 1990”, recebeu o Troféu Juca Pato do seu antecessor

    nessa láurea, o Cardeal Arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns. Ao seu livro depoemasCurral de Peixe o Clube de Poesia de São Paulo atribuiu o Prêmio Cassiano

    Ricardo – 1996.

    Em 2004 foi-lhe outorgado o Prêmio Golfinho de Ouro do Governo do Estado do Rio de

    Janeiro, pelo conjunto da obra.

    Seu romance Ninho de Cobras foi traduzido para o inglês, sob o títuloSnakes’ Nest, e em

    dinamarquês, sob o títuloSlangeboet. No México, saíram várias coletâneas de poemasseus, entre as quaisLa Imaginaria Ventana Abierta,Oda al Crepúsculo,Las Pistas,Las

    Islas Inacabadas eLa Tierra Allende,Mia pátria húmeda,Réquiem,Donde La geografia esuma esperanza,Poesia en general,El mar,los Sueños y los Pájaros. Na Venezuela saiuElsol de los amantes. Em Lima, foi editada uma antologia, Poemas; nos EstadosUnidos,Landsend, antologia poética; na Holanda, a antologia bilingueVleermuizen emblauw Krabben (Morcegos e goiamuns).

    Na Itália foram publicadas a antologiaIlluminazionie uma tradução do Réquiem e no

    Chile a antologia poéticaLos Murciélagos. Na Espanha, foram publicadas as antologiasLaMoneda perdida eLa Aldeia de sal e os livros de poemasRumor Nocturno ePlenilúnio.

    No plano internacional, Lêdo Ivo é detentor do Prêmio de Poesia del Mundo Latino Victor

    Sandoval (México, 2008), do Prêmio de Literatura Brasileira da Casa de las Américas(Cuba, 2009) e do Prêmio Rosalía de Castro, do PEN Clube da Galícia (Espanha, 2010).

    Ao longo de sua vida literária, Lêdo Ivo tem sido convidado numerosas vezes pararepresentar o Brasil em congressos culturais e participar de encontros internacionais de

    poesia.

    É sócio efetivo da Academia Alagoana de Letras, sócio honorário do Instituto Histórico e

    Geográfico de Alagoas, sócio efetivo da Academia de Letras do Brasil, sócio honorário daAcademia Petropolitana de Letras; sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico

    do Distrito Federal.

    Condecorações: Ordem do Mérito dos Palmares, no grau de Grã-Cruz; Ordem do Mérito

    Militar, no grau de Oficial; Ordem do Rio Branco, no grau de Comendador; MedalhaManuel Bandeira; Cidadão honorário de Penedo, Alagoas. É Grande Benemérito do Real

    Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro e DoutorHonoris Causa pela

    Universidade Federal de Alagoas. Pertence ao PEN Clube Internacional, sediado em Paris.

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    BIBLIOGRAFIA 

    Poesia

    As imaginações. Rio de Janeiro: Pongetti, 1944;

    Ode e elegia. Rio de Janeiro: Pongetti, 1945;Acontecimento do soneto. Barcelona: O Livro Inconsútil, 1948;Ode ao crepúsculo. Rio de Janeiro: Pongetti, 1948;Cântico. Ilstra!"es de #$eric %arcier. Rio de Janeiro: J. Ol&$'io, 1949;Linguagem: (1949)19*41+. Rio de Janeiro, J. Ol&$'io, 1951;Ode equatorial. o$ -ilogravras de n/sio %edeiros. 0iteri: 2i'oca$'o, 1951;Acontecimento do soneto. Inclindo Ode à noite. Introd!3o de a$'os de igeiredo. .ed. Rio de Janeiro: Or6e, 1951;Um brasileiro em Paris e O rei da uropa. Rio de Janeiro: J. Ol&$'io, 1955;%agias. Rio de Janeiro: gir, 197*;Uma lira dos !inte anos (contendo: s i$agina!"es, Ode e elegia, conteci$ento do soneto,Ode ao cre'úsclo, ala e Ode noite+. Rio de Janeiro: Liv. 3o Jos, 197;staç"o central. Rio de Janeiro:

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    Institto Progresso #ditorial, 1948;.a ed. revista (co$ -ilogravras de 0eKton avalcanti+, Rio de Janeiro: #di!"es O rDeiro,1958;C.a ed., Rio de Janeiro: #ditora Record, 198C. O 9obrin3o do eneral. Rio de Janeiro:iviliDa!3o Brasileira, 1974;.a ed., #ditora Record, 1981. *in3o de Cobras (F Pr$io Eal$a'+. Rio de Janeiro: Livraria

    Jos Ol&$'io #ditora, 19?C;.a ed., #ditora Record, 198*;C.a ed. #ditora , 1977;-0 contos escol3idos. Bras/lia: 2oriDonte, 1987;Os mel3ores contos de L4do 5!o. 3o Palo: lo@al, 1995;Um domingo perdido. 3o Palo: lo@al, 1998.

     Cr8nica

    A cidade e os dias. Rio de Janeiro: O rDeiro, 195?;O na!io adormecido no bosque. 3o Palo: as idades, 19?1;As mel3ores cr8nicas de L4do 5!o. Pre6Gcio e notas de il@erto %endon!a no, 1991.

     Literatura 5n&anto,Bu!enil

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    O menino da noite. 3o Palo: o$'an>ia. #ditora 0acional, 1995;O can?rio a=ul. 3o Palo: ci'ione, 199*;O rato da sacristia. 3o Palo: lo@al, ***; A 3ist'ria da artaruga. 3o Palo: lo@al, **9.

     diç"o ConBunta

    O *a!io Adormecido no ;osque (renindo idade e os ias e Ladr3o de lor+. 3o Palo:Livraria as idades, 19?1.

     raduções

     

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    adal'e rande e Jan arlos %estre. %adrid, #s'an>a: ala$@r #ditorial, **9. #umor*octurno. a&de, vol. 1?.+ BRIL, ssis. A raBet'ria Po+tica de L4do 5!o.Rio de Janeiro:

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    infindável processo de conquista, manutenção e perda do poder, e na qual se estendemtantas escuridões, estrelas cintilam e se apagam e voltam a brilhar misteriosamente comose fossem as luzes dos destinos surpreendentes, e silêncios se sucedem a palavrasinflamadas, e a vibração dos comícios e do povo nas ruas é, às vezes, abruptamentesubstituída pelo avançar dos tanques e a cintilação das baionetas.

    Desse mundo ao mesmo tempo mutável e petrificado, que foi também o de Evaristo daVeiga, o Patrono desta Cadeira – desse mundo de utopias e sucessivas esperançasadiadas, dessa comédia política engastada na grande comédia humana, Rui Barbosa foi ohabitante glorioso e exemplar, sempre voltado para nós, para a nossa inquietação, e pronto

    a nos dizer que a História não é só o passado, a experiência acumulada ou perdida, mastambém o tempoque está sendo vivido por todos nós, o hoje e o aqui. A História é o

    presente dilacerado que nos incita e incomoda. Na sua lição suprema, a Liberdade avultacomo o nosso bem mais valioso, pois os que a menosprezam ou condenam, sob a

     justificativa de que a sua supressão, mesmo temporária, seria indispensável aoestabelecimento da Ordem e da Justiça, são na verdade os emissários da Injustiça e atédo Terror. Nas nações que suprimiram a liberdade a fim de implantar a justiça, não há justiça nem liberdade.

    Como no tempo de Rui Barbosa, prosseguimos buscando o modelo de organizaçãonacional que nos permita consolidar, para sempre, o regime republicano e democrático efundar uma sociedade justa e moderna num Brasil ainda separado em duas civilizaçõesdistintas, a da riqueza e a da miséria, assentado em privilégios inextirpáveis e desprovidodo sentimento de solidariedade social.

    Não encontramos até hoje esse sistema de convívio, que deve estar presente não apenasnas Constituições mas, principalmente, nos espíritos, e incorporar-se às nossas vidascomo uma verdade e um destino. Por isso, continuamos pagando, periodicamente, pesadoe escuro tributo pela nossa incapacidade. E o caminho do exílio, inaugurado pelos poetasda Inconfidência e seguido por José Bonifácio e Rui Barbosa, permanece aberto, comosímbolo da casa dividida e do trágico desencontro das vontades políticas.

    Ao longo da História do Brasil, os exilados formam verdadeira legião, o que levou o grandehistoriador José Honório Rodrigues – desde ontem guardado em nossos corações de

    companheiros – a cunhar a palavra exiliografia para designar esse arquipélago desombras.

    Com o poder e o esplendor da Linguagem, Rui Barbosa nos deixou uma obra que, tocandosempre em nossas feridas ora cicatrizadas, ora reabertas, nos indaga e nos responde.

    Mas a Literatura é o reino do terror e da interdição. Nos lábios do iniciante que se dispõe amudar o destino das Letras, como se assim também mudasse o destino do mundo, estásempre suspensa uma condenação à morte.

    Cada geração arma o cadafalso destinado ao sacrifício dos que vieram antes. Mas, graçasa Deus, essa alvorada sanguinária traz a consolação de que o crudelíssimo verdugo

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     juvenil de hoje será amanhã sumariamente decapitado. A liberdade estética anunciadapelo porta-estandarte pressuroso antecipa nova servidão e já traz em seu bojo a garantiada revolta futura. As transgressões mais ousadas são temporárias e passarão como passao vento que faz fremir a folhagem das florestas. A última palavra não existe em Arte.Ninguém ocupará por muito tempo a fortaleza sitiada e expugnável. E assim vai o mundo:

    de justiça em justiça, de injustiça em injustiça, de ilusão em ilusão.

    Não é de estranhar-se, pois, que o Modernismo, com o seu exacerbado cultivo dacoloquialidade e presunçoso desapreço pela retórica, tenha excluído Rui Barbosa da praçaprincipal das nossas Letras, atingindo-o mortalmente no seu ponto vulnerável – ou

    invulnerável.

    O conceito vigente de Literatura, que privilegia a criação poética e a ficção, destituindovários gêneros preclaros – como a Oratória Política e Religiosa, a Epistolografia, a Prosados grandes jornalistas que são também grandes escritores, a Historiografia – contribuiu

    ainda mais para o afastamento de Rui Barbosa.

    Todavia, a sua obra torrencial e oceânica, a sua prosa durável como os rochedos efragorosa como as ondas das tempestades, insiste em propor-nos a interrogaçãofundamental que se submete sempre a uma resposta temporária: onde começa e onde

    termina a Literatura.

    E a sua prosa juncada de fulgurações retóricas nos adverte que a Literatura se divide emvárias famílias espirituais e estilísticas, não podendo, portanto, ser representada por uma

    única e monótona família, enfraquecida e empalidecida pelas sucessivas uniõesincestuosas e na qual todo mundo seja primo de todo mundo. Os adeptos da linguagemúnica para a criação poética e literária, com a adoção compulsória de um determinado

    estilo, são, na realidade, sequazes do autoritário ou totalitário partido único.

    Na Casa do Senhor, há muitas moradas – guardemos em nossas almas essa verdade

    bíblica, que o meu antecessor, Orígenes Lessa, certamente muito amou. Na diversidadeestilística, residem o brio, a força e a honra das literaturas.

    A grande Geração Realista e Parnasiana de Rui Barbosa e Machado de Assis se

    caracterizou pela obsessão de pureza e correção gramaticais, numa atitude estética quepromoveu a relusitanização de nossa Língua literária e contrariou o processo de rupturalinguística iniciado pelo nosso Romantismo e que, ainda hoje, confere um encanto

    primaveril à prosa de José de Alencar e à poesia de Castro Alves.

    As polêmicas em que se envolveu Rui Barbosa – especialmente a que se travou em torno

    do texto doCódigo Civil e teve como sobranceiro antagonista o também baiano CarneiroRibeiro – indicam esse cuidado obsessivo, que chegou mesmo a contagiar a opinião

    pública e a dispor, na imprensa, de um espaço permanente.

    Sucessor de Rui Barbosa nesta Cadeira 10, o sergipano Laudelino Freire – que nos legouum dos mais prestigiosos dicionários da Língua – pertence ao mesmo universo cultural do

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    autor deRéplica. Em seu caminho, percorrido na disseminação das regras do bemescrever e do bem falar, acumulam-se as respostas às consultas dos leitores e àspolêmicas, numa ação didática que, aliás, não logrou evitar a contaminação anedótica.

    Confesso que, para mim, uma polêmica entre gramáticos tem o mesmo encanto de um

    duelo num romance de aventuras, é tão emocionante comoOs Três Mosqueteiros, deAlexandre Dumas. Como no tempo em que eu lia aColeção Terramarear, aPleiade deminha infância, a minha respiração resta suspensa no momento em que um dospolemistas ressuscita a abonação daquele frade que andou pelas Índias e, com essadescoberta formidável, paralisa o descuidado adversário. Esse instante supremo só é

    comparável àquele em que o espadachim afortunado faz fulgurar a estocada imprevisível.A riqueza dos argumentos invocados desdobra vastos horizontes, como se estivéssemos

    diante de um daqueles tesouros conquistados pelos piratas de Emilio Salgari nos mares daChina. E, assim, todas as transgressões léxicas e sintáticas se convertem em acertos.No

    manancial que Rui Barbosa tanto frequentou e no qual hauriu a sua opulência de discípulodo quase baiano Padre Antônio Vieira, renovando galhardamente a expressão barroca,todas as lições, inclusive as mais heréticas, estão acumuladas. Esta Língua belíssima eplanetária, que é a nossa guarda em seu acervo os amparos mais surpreendentes,assegura foros de cidade à prosa mais canhestra e à sintaxe mais desastrada – e tanta é agenerosidade do presente sucessivo convertido em passado, que os mais acirradosdepredadores do idioma podem buscar, no florilégio esquecido ou caluniado, as suas justificações mais respeitáveis e a sua nutriente ração de vernaculidade.

    A ordem e o rigor que regem o universo dos gramáticos e filólogos não passam de

    enganos ledos e cegos. São portões que se abrem para a liberdade, a desordem e aaventura. São grilhões que só escravizam os já cativos.

    É de lamentar-se, pois, que as polêmicas gramaticais tenham desaparecido. Consideroessa desaparição um sinal lúgubre, uma incômoda evidência do nosso declínio, já que ohomem não interroga mais o seu dizer e o seu falar.

    Não esqueço, contudo, os seus inconvenientes. Afeiçoadas à vocação querelosa doshomens, as polêmicas transcorrem numa atmosfera carregada de ironias, intolerâncias,rancores e até ódios. O interlocutor mais douto e mais forrado em argumentos e certezas é

    insultado e escarnecido e retribui na mesma moeda perversa, numa lauta compensaçãode injúrias. Contudo, esse bilioso desapreço pelo próximo corre por conta do grande einabalável amor que os gramáticos dedicavam à nossa Língua. Eles muito odiaram, porquemuito amaram – e que esse puro amor os absolva de todas as suas impiedades. Benditosgramáticos que, no inferno amarelo das polêmicas, encontravam o paraíso da Linguagem!

    Hoje, os consultórios gramaticais foram substituídos pelas seções de horóscopos. A utopiaindividual e as esperanças descabidas dos homens invadiram o lugar privilegiado antes

    ocupado pela legislação linguística. Assim, em vez de ensinar os homens a falar, os jornaisdo nosso tempo os habituam aos sonhos desabridos e os nutrem diariamente da

    presunção grandiosa de que os seus destinos estão acumpliciados com o movimento dasestrelas.

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    Todavia, aqueles dentre nós que todas as manhãs renovam o compromisso de “dar umsentido mais puro às palavras da tribo”, segundo a lição do poeta, não podem deixar deevocar os tempos ditosos, quando os astrólogos ainda não haviam enxotado os filólogos egramáticos.

    Hoje, a Babel está instalada em toda parte, até no coração dos homens. Aincomunicabilidade é a evidência contundente deste tempo de comunicação acelerada.Neste século de imagens, mais do olhar que da língua, as ambiguidades eplurissignificações despem as palavras de sua exatidão. Vivemos num mundo em que tudoé dúvida e indagação. Quase poucos sabem o que dizem, porque não aprenderam a dizer

    – e esse caos deslumbrante, típico da sociedade de massa e das multidões solitárias que juncam as ruas, tornou-se a própria matéria da expressão artística e literária. O homem

    avança para as estrelas, no novo Renascimento em que as naves espaciais substituem ascaravelas, mas, ao mesmo tempo, regressa às cavernas, no eterno retorno em que o futuro

    o devolve insidiosamente ao passado mais remoto e iracundo.

    Senhores acadêmicos,

     na buliçosa trajetória do paraense Osvaldo Orico, sucessor de Laudelino Freire nesta

    Cadeira, continua crepitando o rastilho do fogo polêmico que crestou tantos figurantesliterários da Primeira República.

    Num volume de memórias, ele não hesita em empregar tintas fortes para descrever, comgrande desenvoltura e talvez algum desabuso, as peripécias de suas colisões, tão

    entranhadas no que considerou ter sido a sua estonteante ascensão pessoal.

    Foi Osvaldo Orico um dos nossos passantes literários mais bizarros. Tendo surgido no

    alvorecer do Modernismo, não o atraiu a estética de ruptura e busca do novo. Com a suanotória autoestima, viveu sempre ao redor de si mesmo, jamais se fatigando de

    contemplar-se num espelho previamente aparelhado para confirmar o conceito que tinhatanto de sua obra variada como de sua vida rumorosa e até colisiva – e o incansável ver-sea si mesmo o terá compensado decerto do silêncio crítico generalizado que circundou oseu estilo borboleteante. Dos seus livros, lembroCozinha Amazônica, colorido e sápidocatálogo de manjares equatoriais. Para completar essa referência, recordo aqui uma noite,

    numa festa em casa amiga, em que esse meu antecessor se nutria das bebezainas ecomezainas suculentas e, talvez, excessivas de sua terra natal. Embora nos arredores dosoitenta anos, continuava ancorado numa mesa que parecia resumir todas as seduções domormaço amazônico, nela praticando um meticuloso ritual de repetições, quando apetitesbem mais jovens já se haviam retirado daquele porto de delícias. E a sua soberba

    pertinácia inquietava o seu médico, ali presente e temeroso de que a afeição do seu ilustrecliente à culinária nativa o privasse de chegar a uma idade ainda mais provecta.

    A Osvaldo Orico, que tanto contribuiu, com o seu temperamento impetuoso, para atrepidação de nossa vida literária e nela deixou persistentes sinais, sucedeu, nesta

    Cadeira, o modesto e meigo Orígenes Lessa, amigo dos homens, dos livros e das árvores.O que o convívio cultural pode oferecer de mais claro e salubre se encarnava nesse filho

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    de pastor evangélico, nesse paulista de Lençóis que se distinguiu pela sua humildadepessoal e devoção às Letras e ainda pelo exemplo de solidariedade intelectual e humana,a que não estava ausente um frêmito utópico.

    A vasta bagagem de Orígenes Lessa está destinada a leitores de todas as idades e aberta

    às curiosidades mais várias. Ele pertencia à linhagem invejável dos criadores literários queescrevem diariamente, história após história, livro após livro, e passam a vida inteirarodeados de seus próprios enredos e personagens, respirando simultaneamente aexistência real e essa outra existência a que a linguagem confere nítida realidade.

    Foi Orígenes Lessa fundamentalmente um ficcionista que, num estilo correntio, souberealizar-se no Romance, na Novela, no Conto e no domínio da Literatura Infanto-Juvenil.

    Como romancista, não são poucos os títulos que ostentam o seu tirocínio – presente noinesquecívelO Feijão e o Sonho, na ficção pungente e nostálgica deRua do Sol, comovidotributo a uma infância reinventada pela imaginação no sombrio mergulho psicológico de ANoite sem Homem, sem esquecer a narrativa nervosa deO Joguete, cuja precisão ebrevidade nos remetem para a sua arte de contista.

    Ao longo de sua carreira, Orígenes Lessa se afirmou como um dos nossos maisapreciados cultores da história curta. Nutrido em Maupassant, Tchekov e Mark Twain, eainda nos paulistas Monteiro Lobato e Antônio de Alcântara Machado, ele nos oferece, emobras comoOmelete em Bombaim e A Desintegração da Morte, conjuntos consideráveisde contos que documentam a sua capacidade de criar personagens vívidos, engendrar

    situações e captar pequenos flagrantes da vida cotidiana, destramente surpreendidos sobuma luz insólita ou burlesca, quando não trágica. O exemplar e modelar Milhar Seco, ahistória do pequeno engraxate que encontra a morte em plena alegria, sendo uma das

    obras-primas do conto em nossa Língua, reclama ser considerado o seu instante mais altode contador de histórias, cuja mão segura sabia levantar o véu que esconde os pequenos

    destinos e com olhar atento acompanhava os passos das criaturas anônimas das ruas e asconvertia em ficções.

     Às histórias de Orígenes Lessa, longas ou sumárias, e sempre povoadas de miúdas vidascinzentas, não falta, às vezes, uma aura de parábola ou alegoria, a testemunhar sua

    fidelidade à Bíblia, ao seu alcance desde a infância. Nos dias finais, o filho de pastorevangélico e antigo menino que havia fugido do seminário, no passo atrevido queantecipava a vocação de escritor e exprimia a escolha entre dois caminhos tão diferentes,demonstrou essa assiduidade em livros comoO Evangelho de Lázaro eSimão Cireneu,aos quais se acrescentam as inéditas Narrativas Bíblicas.

    Sua obra mais célebre,O Feijão e o Sonho, tem, aliás, algo de alegórico, entranhado nasingeleza e pungência da narrativa. Esse romance se nutre das duas vertentes nítidas daexistência humana: a necessidade e a fantasia, os limites da vida diária, com as suasestreitezas e servidões, e as aventuras e satisfações espirituais que nos esperam a todos

    quando abrimos as portas da imaginação.

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    E ele, Orígenes Lessa, sabendo olhar o chão e sabendo contemplar o longo e evasivohorizonte, cumpriu belamente o seu ofício literário e humano. Até mesmo nas horasderradeiras, já com o coração pacificado, e cercado pelo apreço de seus pares e aconsagração de milhares de leitores, continuou fazendo do sonho a matéria de sua própriavida.

    Experiente escritor profissional, convertia a sua imaginação no pão bíblico de cada dia –no feijão de sua mesa de operário das Letras. E o reconhecimento unânime não saudavaapenas o ficcionista que tão bem conhecia o caminho travessio que leva ao mundo dosadultos. O aplauso vindo de todas as partes recompensou também a pena aérea e

    delicada que escreveu tantas histórias para crianças e adolescentes.

    A presença notável de Orígenes Lessa na Literatura Infanto-Juvenil já o tornou um dosnossos clássicos no gênero – um dos raros que podem ser colocados ao lado de MonteiroLobato. Esta última e fervorosa afeição literária nos induz a reconhecer que esse escritor

    amado pelas crianças e jovens possuía algo dos seres para os quais a vida é uma rondade surpresas; e, conhecedores da natureza humana, preferem o sorriso indulgente ou

    malicioso ao ríctus de rancor ou amargura. Sorriem melhor os que sorriem por último.

    Não foi apenas para a Literatura que convergiram a imaginação e criatividade de Orígenes

    Lessa. Na história da Propaganda e Publicidade, ele dispõe de uma posição qualificada.Contudo, o pioneiro em Comunicação Social que foi Orígenes Lessa não a utilizava em

    benefício próprio, para a projeção de sua imagem pessoal ou de sua obra, cuja trajetóriaclareada pela aceitação popular se caracterizou pela ausência de trombetas, pelo seu ar

    quase esquivo. Em seu caminho de homem e escritor, guiava-o decerto aquela luz maisalta que estabelece a hierarquia oculta dos homens e confere uma primazia incontestávelaos que sabem guardar em seus espíritos uma perpétua infância e se sentem rodeados devozes longínquas. Não esqueçamos do amor que ele devotava aos livros e seu papel noaprimoramento social e comunitário, o que o levou a criar, em sua cidade natal – nessacidade de Lençóis Paulista que tanto o ama e foi amada por ele –, uma bibliotecaadmirável. E também não nos esqueçamos de seu interesse pelos poetas anônimos dasfeiras, o que o fez recolher tão amorosamente, com a mais límpida competência, letras evozes do nosso folclore. 

    Senhores acadêmicos, para Goethe, com a verdade e a mentira o artista constrói uma terceira coisa, que é a obrade Arte. Na paixão pela fabulação própria do homem, ele identifica o seu e nosso pendor

    para a edificação de mundos imaginários.

    Assim, não deve servir de pasto à estranheza que certa roupagem florida se acrescente,

    como um selo, à nossa vocação para a prática de um imaginário que, começando por serinventado por nós, termina por nos inventar e nos impor o seu emblema de mitografia e

    ficção. Nessa metamorfose, as nossas obras findam por gerar as nossas vidas e escreveras nossas biografias. A nossa aventura interior corrige a monotonia do mundo. E vivem

  • 8/19/2019 Lêdo Ivo

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    duas vezes os que não dispensam a passagem dos cavaleiros da ilusão pelos palcos davida.

    Num poeta, coexistem o intelectual e o primitivo, e ambos formam uma unidadeinseparável. A inteligência se enraíza nas profundezas da carne e da terra e desses reinos

    escuros e misteriosos extrai a sua força criadora, esse enlace da imaginação e do amor,esse fruto maduro de segredos sepultados.

    Assim, o que o poeta diz haverá de ostentar, sempre, o sinal coletivo dos que, em sua falaindividual, exprimem as vozes do outro e dos outros e recolhem o sussurro interminávelque quebra o grande silêncio do mundo. A criação poética é, pois, uma dádiva e umtestemunho. É uma devolução que o poeta faz ao seu berço. A linguagem de todos,tornada uma linguagem pessoal, regressa, em forma de canto, às suas origens que são aprópria capital da vida.

    A Poesia é uma magia da linguagem: uma magia criada pelos homens. E, na mesa domundo, essa infindável celebração do universo, testemunhando uma vocação e ummagistério, haverá de ter sempre uma serventia, quer assegurando a continuidade doidioma nativo através dos tempos, quer renovando as imagens da existência e do homemcomo prova maior de nossas vidas.

    Graças a essa linguagem, aqui estou. Certamente fui trazido pelos navios de minhainfância e pelos ventos do mar que, atravessando lagunas e coqueirais, ilhas e estaleirosapodrecidos, alcança esse irmão separado de nós que se confunde com os caranguejos

    semiocultos na terra mole e escura dos mangues e maceiós – essa terra congeminada àágua que é a minha raiz e o meu berço, a minha Pátria e a minha Linguagem, e atémesmo o meu pesadelo.

    Reinos da malícia, as academias amam as anedotas e as frases afortunadas. Atrevo-me,pois, a contar-vos uma pequena história. Num telhado em Paris, no fim do século passado,

    alguns gatos costumavam reunir-se. Uma noite, um deles foi atraído pela presença de umabelíssima angorá. Perguntando-lhe quem era, numa delicada interpelação que decerto

    prenunciava abordagens mais ousadas, recebeu dela a seguinte resposta: “Dizem que soua gata do poeta Stéphane Mallarmé.”

    Essa resposta felina e ambígua exprime a nossa dificuldade de ser. Mesmo vestidos emfúlgidos uniformes, que o tempo se incumbirá piedosamente de desbotar, nossa dúvida

    permanece. Não sabemos ao certo quem somos, já que a nossa imagem se nutre do quepresunçosamente pensamos ou julgamos ser e do matizado conceito alheio, numa escala

    que vai do vitupério ao louvor.

    Duvidoso de mim, como a gata de Mallarmé, nutre-me a certeza de que me acolhestes

    como presumo ser e presumis que eu seja. Sou grato à vossa carinhosa acolhida. Masouso confessar que, entre vós, e vencido o longo caminho, me sinto ainda como o aluno

    relapso que um dia, inexplicavelmente, ganha nota dez.

  • 8/19/2019 Lêdo Ivo

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    Nesta Casa misteriosa, é convívio o que, em outras paragens, seria indiferença, e acordialidade ocupa o lugar da colisão. Os antagonistas de ontem se convertem aqui emamigos de infância, semanalmente aplicados em partilhar radiosas lembrançasimaginárias.

    Assembleia literária e cultural, corredor político, salão mundano, entreposto de ambições,estuário de sonhos e até escola de polidez, esta Instituição oferece a quem busca a suaverdade um perfil ambíguo, capaz de desorientar tanto o singelo portador do aplausounânime como o rancoroso e sinistro detrator.

    Na verdade, a Academia é o que cada um julga que ela seja, com sua fidelidade,distanciamento ou desamor. E, ao julgamento que fazemos desta Casa sempre iluminadapelas luzes fortes e obstinadas de um poder e de um prestígio que ela gerou desdemomento inaugural, haverá de acrescentar-se o dos nossos antecessores, que aescolheram como lugar de convivência.

    Essas vozes de cinza, aqui presentes na evocação continuada, nos ensinam que aLiteratura é um sistema e uma permanência, uma herança e uma promessa, uma graça euma fidelidade, uma ininterrupta acumulação da memória, a pergunta que não noscansamos de fazer aos nossos corações inescrutáveis.

    Essas vozes cortadas pela morte nos advertem para o capricho do tempo que muda asobras mais ruidosas em silêncio, apaga rostos e silencia fanfarras, converte as vanguardasmais belicosas em tradições vetustas ou em piedosos esquecimentos e nos incita a não

    confiar muito na generosidade e justiça do dia seguinte ou nas conspirações felizes daposteridade.

    Mas a nossa palavra, mesmo perdida ou avariada pelo vento da noite, haverá de sersempre dádiva e serventia, pois a nossa tarefa consiste em exprimir o mistério da vida ecriar uma nova imagem do mundo. Neste dizer pelos que não dizem e neste cantar pelos

    que não cantam, está a nossa honra.

    Senhores acadêmicos,

     Pascal observa que a vaidade está de tal modo ancorada no coração do homem, quetodos, seja um cozinheiro ou um filósofo, se vangloriam de ter os seus admiradores e os

    desejam. Os que escrevem mal reclamam a glória de escrever bem; e o próprio leitoralmeja apregoar a glória da leitura.

    Que, entre tantas vaidades naturais à sempre tolerável miséria de nossa condiçãohumana, me seja permitido propalar aqui a de reunir-me agora a tantos amigos, a tantos

    companheiros do crepúsculo.

    Que a vaidade do convívio harmonioso entre vós seja a minha derradeira vaidade.

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    7/4/1987

    DISCURSO DE RECEPÇÃO – DOM MARCOSBARBOSA 

    Permiti, Sr. Lêdo Ivo, que eu dê início a estas palavras de boas-vindas, lembrando, sem

    dúvida por deformação profissional, passagem dos Evangelhos. A parábola do homem quepersiste em bater à porta até que ela se abra: “Batei, e abrir-se-vos-á!” Mais de vez

    batestes às portas da Casa de Machado de Assis, que hoje se abrem de par em par paraacolher-vos. E a vossa persistência em bater, sendo afinal recebido por unanimidade e em

    votação relâmpago, terá decorrido de duas convicções. A do vosso próprio valor e a deque os membros desta Casa sabiam sobejamente que merecíeis, como poucos, uma denossas Cadeiras, tanto por direito de nascimento como por direito de conquista.

    Por direito de nascimento, porque já nascestes para as Letras como poeta consagrado,desde que publicastes, aos vinte anos, na mesma Faculdade de Direito pela qual passeiantes de vós, o vosso livro de estreia, As Imaginações, saudado com entusiasmo não sópor Mário de Andrade, Lúcio Cardoso, Sérgio Milliet e Roger Bastide, como também porAfonso Arinos, Adonias Filho e Otávio de Faria, que haveriam de preceder-vos nesta Casa.Mário de Andrade classificou a vossa estreia de “deslumbrante”. Nascíeis para as Letrascomo a província de Minas Gerais, presente aqui não apenas naquele que vos saúda,como naquela que vem sendo a metade de vossa alma e hoje partilha a vossa glória. Pois já lembrava Alceu Amoroso Lima, citando Diogo de Vasconcelos, que as Minas já

    nasceram prontas e acabadas, como Minerva da cabeça de Júpiter, não conhecendo

    infância nem folclore, a tal ponto que os poetas da Escola Mineira sobrepujavam então osda Metrópole. 

    Vossa estreia não era uma promessa, mas uma evidente realidade, que dispensava acondescendência dos críticos, diante de versos definitivos como estes: “Um céu espera pormim / em um áspero continente / que nenhum mapa registra.” Ou então, já prefigurando,logo no ano seguinte,Ode e Elegia, o sentido e longo poema em memória de vosso irmãoÉber Ivo: Éber,o espírito de Deus pousou em tuas mãos trêmulase na agonia dos teus olhos enevoadosque se entrecerraram porque o ritmo do teu coração morreu

    e teus sonhos procuraram outros roteiros mais extensos. 

    [...] 

    Nós guardamos o teu retrato de primeira comunhãoe o ampliaremos para que cresças durante a prolongada ausência;

    recolhemos os teus livros e os teus cadernosde primeiro da aula e choramos os teus dez anos inquietos;

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    outros souberam somente que partiste num esquife brancoe teu último traje terreno foi uma roupa de marinheiro. [...] 

    Teus olhos se transformaram em faróise sentiste a permanência do grande poeta que é Deus

    antes de sentires a transfiguração poética;peço, porém, que digas aos poetas que encontrares por aí

    que o mundo se afunda em grandes tormentase os poetas continuam sendo os timoneiros do mundo;mesmo que as estrelas não brilhem nos céus claros estarás conosco,tão integrado conosco que não te sentiremos ausente. Dizei-me, senhoras e senhores, se isto são versos de vinte anos. E não julgueis ser aemoção que torna perfeito o longo poema de que citamos alguns versos. A emoção éantes uma armadilha e só consegue ser Poesia, quando é, como já se disse, recolhida natranquilidade. Na tranquilidade do artista que domina seus meios de expressão por altacapacidade técnica, que não esperou, no caso de Lêdo Ivo, tão bem nascido nas Letras,le

    nombre des années.

    E viriam, logo em seguida, vossas odes, elegias e baladas em longos versos claudelianos,que não significam, contudo, influência ou cópia do grande poeta de nossa comumadmiração e nosso comum afeto. Na “Descoberta do inefável”, que dedicastes a Lêda (que

    descobrimos assim tão cedo em vossa história), há um contínuo perpassar de anjos: 

    Temos necessidade de anjos, para ser homens.Temos necessidade de anjos, para ser poetas.

    Vem, incontável música, e anuncia(ao poeta e ao homem, humilde unidade)a ressurreição diária dos anjos.Restaura em mim a certeza de que a folha voandoé o seu indomável divertimento,pois às vezes sinto que meu primeiro verso foi murmurado talvez,

    sem que eu soubesse, por um anjoperturbado com o meu ar desesperado de papel em branco.

     Dedicastes a Lêda esse longo poema de tantos anjos, mas logo, na “Elegia” seguinte, vos

    dirigíeis diretamente a ela: 

    Moça, de onde vem essa beleza que antecede à voz?Esse ar de quem viu pássaros voando, muito longe,onde o descobriste, em que sono ou viagem, moça?Fala, menina, que o silêncio te escuta. Canta,

    que o canto é a necessidade do céu, é a alegriaa descer sobre nós como se estivéssemos subindo

  • 8/19/2019 Lêdo Ivo

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    para a incessante altura. E, prosseguindo na conquista da Academia, para a qual já havíeis nascido com o primeirolivro, dá-se em breve o Acontecimento do Soneto, pois não há poeta que se preze que osdespreze. E, no primeiro deles, sendo todos dedicados a Lêda, concluíeis, davidicamente

    e camonianamente, com estes dois tercetos:

    Sôbolos rios que cantando vãoa lírica mortal do degredadoque, estando em Babilônia, quer Sião,

     Irei levando uma mulher comigo,

    e serei, mergulhado no passado,cada vez mais moderno e mais antigo.

     Bem compreendeis (ou não seríeis o grande poeta que sois) não haver oposição entre omoderno e o antigo, entre o particular e o universal, entre o efêmero e o eterno.

    Retomais, depois dos sonetos, os poemas longos, de longos versos, mas agora cada vez

    mais alternando-se com novos sonetos ou pequenos poemas, como este “Para embalartua filha”, espécie de pintura em porcelana, que podemos citar inteiro, de tão breve, de tãoleve: À flor d’água, a flor.

    E porque a quiseramvai o nadadortambém à flor d’águaem busca da flor. 

    E por mais que nadenada encontra n’água.

    Sumira-se – encanto! –à flor d’água a flor.

    Nada o nadador.

     Atrás da flor n’águanada o nadador.Nada até morrerde amor à flor d’águaem busca da flor. 

    E assim, nadando em busca dessa flor simbólica, que sempre parece escapar-nos como aprópria beleza, conquistastes enfim, a Academia, embora já a tivésseis merecido há tanto

    tempo como Jacó a Raquel.

  • 8/19/2019 Lêdo Ivo

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    O ano passado, numa reunião menos formal que a de hoje, nosso Presidente (o daAcademia) denunciava entre os presentes um candidato que não ousava confessá-lo, masvivia de olho no jeton e no mausoléu. Não éreis vós o candidato enrustido, pois nãoestáveis presente àquela tarde e jamais ocultastes vosso desejo de pertencer a esta Casa.Tendes, portanto, aqui, a partir de hoje, não só vossa Cadeira cativa, como o vosso jazigo

    no São João Batista. Sois ainda bastante moço para que vos possa falar, sem causarsusto, da “indesejada das gentes”, como a chamava Manuel Bandeira. E, além disso, que

    eu saiba, sois o único acadêmico com epitáfio pronto, composto por um dos nossosconfrades, nada menos que João Cabral de Melo Neto, a quem considerais, desde 1940,

    “companheiro na viagem da vida, por mais distanciados que estejamos geográfica ouesteticamente”: Aqui repousalivre de todas as palavrasLÊDO IVO,poeta,na paz reencontradade antes de falar,e em silêncio, o silêncio

    de quando as hélices paramno ar.

     Livre das palavras. Pois as palavras, que vos gabais de dominar quando declarais: “Sou

    um pastor de palavras”, vos dão também não pouco trabalho, de tal modo as lavais antes

    de usá-las. O que levou Guimarães Rosa a chamar-vos numa dedicatória: “poeta daspalavras lavadas.”

    Jean Cocteau dizia que um acadêmico, ao morrer, se transforma em Cadeira. Graças aos

    cuidados de nosso precavido Presidente, nos transformamos também em mausoléu.Talvez não vos pareça tão importuna essa conversa fúnebre, se vos lembrar que, até àRevolução Francesa, o secretário da Academia, modelo da nossa, tinha a expressaobrigação de propor aos acadêmicos doentes a vinda de um padre que os assistisse. Nãotemos aqui secretário perpétuo, mas, por livre e espontânea vontade dos seus eleitores,um Presidente que se perpetua, garantindo as tradições da Casa. Mas, se não é mais

    função dos secretários precaver contra a morte os seus pares, colocastes entre vós ummonge, um simples monge. Sem as vestes episcopais de D. Silvério Gomes Pimenta e de

    D. Aquino Correia, não deixa de ser, entre o ouro dos vossos fardões, ummemento mori! Eisso é bom para que vossas imortalidades não vos subam à cabeça... E até os heróis

    pagãos, como atesta São Jerônimo, faziam-se acompanhar, em seu carro triunfal, de umescravo a lembrar-lhes, de espaço em espaço, sua condição humana e não divina.

    Mas, como diz oEclesiastes, tão amado e citado por Machado de Assis, há tempo paratudo: hora de nascer e hora de morrer, hora de plantar e hora de colher o que se plantou,

    hora de chorar e hora de rir. A hora desta noite é de alegria, tanto para vós, Sr. Lêdo Ivo,

    para a Academia que unânime vos recebe, unanimidade que nos absolve de não vostermos logo aberto a porta, como nos consola também um pouco de a não terem aberto,

  • 8/19/2019 Lêdo Ivo

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    antes de vós, ao grande poeta Jorge de Lima, que hoje, alagoano também, parece entrarconvosco nesta assembleia.

    Comemoramos o ano passado o XVI centenário da conversão de Santo Agostinho, quenos deixou As Confissões. Entre as suas e as de Jean-Jacques Rousseau, a distância

    torna-se maior pela semelhança do título. E Ernest Hello comentou: Temos diante dos olhos duas modalidades de confissão: a confissão de quem searrepende e a confissão de quem se gaba. Pois, há um modo de narrar as faltas pior que aprópria falta. E há um modo de se comprazer no crime pior que o próprio crime. A

    confissão é um mundo que tem dois pólos: Santo Agostinho e Jean-Jacques Rousseau. 

    Também vós, Sr. Lêdo Ivo, nos destes as vossas confissões, que não são as de um santonem as de um pecador, por serem, como pusestes no título, asConfissões de um Poeta.

    Nelas não pretendestes, como Agostinho, narrar a obra da graça de Deus em vossa alma(quem sabe um dia ainda o fareis?), nem pretendestes, como Rousseau, fazer de saída opróprio elogio, proclamando-se “o melhor”. Vossa intenção foi apenas estética. Narrar, istosim, como fostes sendo possuído pela Poesia, ao contrário do vosso irmão Éber que,como dissestes no poema, foi conhecer, pela morte, o poeta que é Deus, antes deconhecer a transfiguração poética. Antes mesmo de saber que a Poesia existia (contai-nos em vossas confissões), epresumindo que ela se reduzia a um segredo pessoal, a uma mensagem intransmissível,eu era poeta. Da realidade do dia consumido, eu fazia o que bem quisesse, guiado pela

    imaginação. Transformava os acontecimentos, mudava o destino e a fisionomia moral daspessoas, alterava a geografia, voava através dos tempos, encolhia e espichava o tempo ao

    meu bel-prazer. Rival da vida e do mundo, o meu universo pessoal impunha, no silêncio demim mesmo, a sua verdade irresgatável. E eu dormia tranquilo e confiante. Sabia que a

    vida jamais haveria de deformar-me. Eu pertencia à linhagem de seres dotados do escudoinvisível de sua própria e múltipla verdade. Permiti-me discordar, Sr. Lêdo Ivo, dizendo que exagerais. Na minha opinião, não éreisainda poeta. Tínheis então um dos elementos da Poesia. Aquela sensibilidade quepossuem também todos aqueles que são capazes de compreender, de vibrar com os

    vossos poemas. Só vos tomastes, no entanto, poeta, só começastes a ser plenamentepoeta, no dia em que descobristes as palavras, em que compusestes o primeiro verso, no

    dia em que para vós o verbo se fez carne. Pois o poeta, que vem do grego, é “aquele quefaz”. A emoção, comum a todos que amam a Poesia, constitui apenas uma primeira parte:

    o poeta só nasce no momento em que a consegue recolher na tranquilidade, em queconsegue expressá-la em palavras que lhe servem de limite e auréola. E me dais

    plenamente razão quando dizeis, em mais de um lugar, que não existe uma Sra. Formadistinta de um Sr. Fundo, mas que ambos constituem um casamento indissolúvel. E, se istovale para a Literatura em geral, que se dirá da Poesia? O poema perfeito é aquele em quenão se pode mudar uma palavra, ou mesmo uma vírgula. E dizeis acertadamente: “Assim

    como não temos um corpo (somos o nosso corpo) a Poesia não tem uma forma. É a suaforma.”

  • 8/19/2019 Lêdo Ivo

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    O poeta só começa realmente em vós, quando dizeis do vossoalter ego, Teseu do Carmo: Como todos os meninos, ele amava guardar pedras, calhaus, uma lívida e esponjosaestrela-do-mar. Mas, também, desde a infância, ele quisera guardar consigo as chuvas quecaíam sobre os sítios hipotecados, o farol da curva do bonde, os caranguejos que

    desapareciam no negro trapiche, o negro casco de um navio contra o azul, a lua que oseguia no caminho noturno quando voltava da escola. Escrever era para ele uma tentativa

    canhestra de recolher essas imagens e torná-las duráveis; guardá-las como o avarentoguarda as suas moedas e a lágrima o seu sal. Quisera retê-las no papel para não

    esquecê-las e poder lembrá-las sempre.

    E foi então que começastes, para isto, a pastorear as palavras e, muito cedo, sentistes que

    elas vos obedeciam e reconheciam como a um bom pastor, a ponto de vosso primeiro livro,publicado ainda antes da vossa maioridade, já ter sido um livro maior.

     EmSituation de la Poésie, Jacques Maritain nos lembra que as palavras não são usadaspelo poeta apenas como sinais, mas como símbolos. Por isso, não se preocupa eleapenas com o que a palavra significa, mas com sua música, o seu volume, o seu cheiro, asua cor: pois as palavras possuem tudo isto. E o poeta não joga apenas com as palavrasem si, mas com novas centelhas que lhes arranca, aproximando-as insolitamente umasdas outras, como uma cor valoriza a outra. E por isso mesmo, como frequentemente observastes, Sr. Lêdo Ivo, torna-se às vezesquase impossível distinguir entre Prosa e Poesia. Vós mesmo, embora na pele de Teseu

    do Carmo, declarastes vossa perplexidade, quando vosso editor vos pediu uma antologiade prosadores. A princípio, parece muito simples, como dizia o filósofo a Monsieur

    Jourdain: “Tudo o que não é Prosa é Verso, e tudo o que não é Verso é Prosa.” Mas eisque há prosadores que se tornam de repente poetas, como Machado de Assis, ao chamar

    à existência, como o Criador, numa síntese de poeta, a humilde figura de D. Plácida, aesconder nas saias os dedos queimados nos tachos, fruto da conjunção de duas “luxúriasvadias”, o sacristão da Sé e uma mulher que fazia doces para fora.

    Mas, se há prosadores que se tornam de repente poetas em plena prosa, quando esta

    atinge de súbito uma intensidade imprevista, produzindo uma centelha inesperada, vós, ao

    contrário, Sr. Lêdo Ivo, sempre poeta, desde que, menino e moço, ainda na cidadezinhaque em vão tentastes revisitar, a mão do Anjo da Poesia vos tocou na espádua. Em vão,escrevestes romances, crônicas, ensaios. Como tudo se transformava em ouro ao toquedo rei Midas, tudo se transforma em Poesia em vossas mãos, em vossa pena. Bem oreconheceis, quando declarais abertamente: “Sou essencialmente um poeta. Minha prosaé o descanso do guerreiro.” Sim, pois o poeta deve lutar com as palavras e vencê-las,como Jacó ao lutar até a aurora com o anjo do Senhor, que então lhe muda o nome para

    Israel: “Forte contra Deus.” E escrevestes: “Sou um poeta: as palavras me obedecem.” Evos surpreendeis a assinalar a frequente intromissão de versos em vossa prosa, quando

    escreveis, por exemplo, a respeito de um dos vossos romances: "Em Ninho de Cobras,

    encontro um verso que o poeta Lêdo invejaria: ‘O tumulto das ondas hesitantes.'"

  • 8/19/2019 Lêdo Ivo

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    Além da impossibilidade de traçar fronteiras entre Prosa e Poesia, outro problemapreocupava Teseu do Carmo, este sósia que criastes, para falar de vós mesmo na terceirapessoa e até para criticar-vos ao atingi-lo, às vezes, com vossa ironia, como o AristarcodeO Ateneu sentiu ciúmes da própria estátua, quando um dos bajuladores quis coroá-la...Teseu do Carmo, que se insurgira contra a ideia de colocar Prosa e Poesia em

    compartimentos estanques, sentiu na própria carne a impossibilidade e a decepçãodasPoesias Completas. Quando o editor telefonou-lhe para que fosse receber o primeiro

    exemplar das suas, sentiu-se um hipócrita e farsante, pois já trazia no bolso um sonetoclandestino, que desmentia aquela completude. Pois escrevestes, Sr. Lêdo Ivo: “O destino,

    a fatalidade e a essência da obra de um poeta é ser incompleta – dessa incompletude vivee morre.” E tendes razão. As poesias não podem ser completas, porque, sob um certoaspecto, nenhum poema é perfeito, nenhuma obra de Arte é perfeita. Dizeis com precisão:“A última palavra não existe em Arte.” Terminada a obra em que o artista colocara o quantotinha, esta já não lhe basta, e parte para outra.

    Escreve Baudelaire: O imortal instinto do belo nos leva a considerar a terra e seus espetáculos como umvislumbre, uma “correspondência” do céu. A sede insaciável de tudo o que está além doque a vida revela constitui a mais viva prova da nossa imortalidade. É, ao mesmo tempo,pela Poesia e através da Poesia, pela Música e através da Música, que a alma entrevê osesplendores do além-túmulo; e, quando um poema magnífico nos traz lágrimas aos olhos,elas não são o sinal de um excesso de alegria, mas antes o testemunho de umamelancolia irritada, de uma postulação dos nervos, de uma natureza exilada no imperfeito

    e que desejaria apoderar-se imediatamente, ainda aqui na terra, de um paraíso revelado. 

    La beauté boîte, dizia Jean Cocteau, ao comparar, como já lembramos, o artista com Jacó,a quem a luta com o anjo deixa manco.

    O artista, e sobretudo o poeta, esse artista dos artistas, não pode parar, sempre à procura,peregrino do absoluto, do ideal jamais atingido, o que torna impossível, mesmo como obra

    póstuma, a edição dePoesias Completas. Se Lêdo Ivo ou Teseu do Carmo (este nomeecumênico, pagão e cristão) consentiu em reunir emO Sinal Semafórico, em 1974, AsImaginações,Ode e Elegia, Acontecimento do Soneto,Ode ao Crepúsculo, A Jaula, Ode à

    Noite,Cântico,Ode Equatorial,Linguagem, Um Brasileiro em Paris,O Rei daEuropa,Magias,Os Amantes Sonoros e Estação Central, não considerou tudoistoPoesias completas.Pois Finis non coronat opus; a obra permanece sempre aberta,sempre incompleta. Em Arte, repetimos convosco, “a última palavra não existe”.

    Aliás, Sr. Lêdo Ivo, não recusais apenas os limites do tempo. Recusais também os deEscola, os de estilo, os de influências. Várias vezes, vos irritais contra os entrevistadoresque querem saber, além do vosso número de colarinho e sapato, as influências quesofrestes, julgando que a noite dos vossos poemas seja a mesma do meu amado CharlesPéguy, que o vossoNinho de Cobras tenha alguma coisa a ver com oLe Noeud de

    Vipères, de François Mauriac, outro autor que amamos juntos. Como se não tivésseis avossa própria noite (Chaque Homme dans sa Nuit é um título de Julien Green),

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    atravessada pelo farol que encheu a vossa infância em Alagoas antes mesmo de saberdesas letras de “Ivo viu a uva”. Como se vossas personagens não fossem também as dacidade natal, inteiramente recriadas e transfiguradas pela vossa fantasia e inspiração. Bemtendes razão em detestar – são palavras vossas – “esse empenho didático em só enxergarinfluências livrescas, como se um autor não passasse de um boneco de papel e tinta, um

    calhamaço andante, a só se nutrir de letra!”

    Sempre vos guardastes das influências, dos críticos que vos pretendessem mostrar ovosso caminho e guiar a vossa mão na hora da escrita. Não consentistes em seretiquetado, amarrado a um estilo, em renegar vossa veia barroca, a vossa própria pessoa,

    para enfileirar-vos na esteira desses poemas herméticos que deparamos por toda parte eque parecem todos escritos pelo mesmo autor.

    Mas que sofrestes influências, bem que sofrestes, embora numa época em que nemsabíeis que elas existiam, e que apenas vos davam o gosto pela vida interior, pelo reino

    dos sonhos, pela partida numa chalupa, como as de Emílio Salgari, cheirando a sal do mare a emoção dos ventos. Não se tratava então de influências literárias, de receitas de estilo,

    de modelos a seguir.

    Entrevistastes, em 1948, o meu saudoso amigo Cornélio Penna, como recordáveis

    recentemente, quando vos falei pelo telefone da morte de Maria Odília. Dissera-vos ele:“Devemos deixar os corpos dos nossos autores apodrecer em paz.” Isto é, não devemos

    esmiuçar-lhes a vida, mas, sim, a dos personagens que inventaram e onde osencontraremos de modo mais profundo. Gostaria, no entanto, de convocar neste momento,

    pelo menos, um parente vosso que citais expressamente em vossasConfissões.

    Minha tia mais velha, Sr. Lêdo Ivo, sobrinha, aliás, de Lúcio de Mendonça, o verdadeiro

    fundador desta Casa de Machado de Assis, minha tia mais velha foi por algum tempo, nacidade mineira em que nasci e para onde o tio e tutor a levara em busca de melhores

    climas, “a dona do correio”. Dona do correio, eu supunha – a ponto de ter ficado surpresoao verificar que também precisávamos comprar selos para as nossas cartas. Vós tivestesum tio carteiro. Mais que vosso pai, que nutria uma certa desconfiança pelos intelectuais,terá ele contribuído para que tomásseis gosto pelas letras e assento, hoje, nesta Casa.Passemos a palavra ao sobrinho, pois o crime do tio, agora prescrito, teve as melhores

    consequências. Assim nos contais em vossasConfissões: Carteiro, Tio Zeca portava sempre um saco cheio de envelopes e impressos. Quandocomecei a me interessar por livros, e minha avó, diante dos meus êxitos escolares,garantia que eu haveria de ser um novo Rui Barbosa, tive nele fiel fornecedor. Mergulhava

    a mão na sacola e dizia, os óculos escorregando pelo nariz: “Vou ver se tenho algumacoisa para você.” Com a maior desenvoltura, extraia um pacote, rasgava a embalagem e

    me entregava um volume qualquer. Certa ocasião fui contemplado com uma obra de AllanKardec, decerto encomendada por algum espírita. Tio Zeca formava um péssimo conceitoda comunidade alagoana. Asserções desabridas saltavam de sua boca a serviço da

    verdade e da justiça. Assim, sonegando livros e revistas aos seus destinatários econfiando-os ao sobrinho, ávido de leitura, esse alagoano de boa lei corrigia injustiças e

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    desacertos da má organização do mundo, e escolhia o leitor certo para a obra incerta,romance ou almanaque. Referindo-vos ao vosso Álbum de Família, vós dizíeis, mostrando que a vida vos causoumais influências que a Literatura:

    Eu, menino, sorvia a beberagem forte e vinagrosa de suas palavras. A variedade doelemento humano me atraía e deliciava; diante de tão vasta galeria de destinos etemperamentos, não haveria de sentir tédio pela vida inteira. Os meus semelhantes fariamde minha existência uma festa incessante, para meu exemplo e divertimento. Era como se

    todos fossem personagens de romances, à espera da minha longínqua mas inevitávelmaturidade literária.

     Curioso que, como também me acontecia e, sem dúvida, a todas as crianças, os aleijados

    e miseráveis, que víeis, sem dúvida, em maior quantidade que eu, não afetavam ouperturbavam o vosso encantamento pelo mundo e pela vida. Parece-nos natural que hajamendigos e doentes, pobres e ricos, como existem flores e bichos, dia e noite, pedra eágua. Mesmo quando fostes para o colégio da capital da província, não víeis a misériabarroca que comia o passado faustoso de vossa terra, almoçando anjos bochechudos e ospúlpitos de jacarandá. Só muitos anos depois – escrevestes – longe e já quase estrangeiro, eu veria a miséria daminha terra correr ao meu encontro como um visitante sem palavras na boca desdentada.[...] A dose leonina de ufanismo que nos era servida, em casa e na escola, afastava a

    miséria, ou a tornava a manifestação imperativa da vontade de um Deus que, em suaimensa sabedoria, resolvera dividir o mundo entre os ricos, os remediados (classe a que

    presumíamos pertencer) e os pobres e miseráveis. 

    Já começáveis a sentir o mistério da obscuridade e da miséria humana pousado em vossoombro como um pássaro. Só muito depois, escreveríeis a “Primeira lição”: Na escola primáriaIvo viu a uvae aprendeu a ler.

     Ao ficar rapaz

    Ivo viu a Evae aprendeu a amar.

     E sendo homem feito

    Ivo viu o mundoseus comes e bebes.Um dia no muroIvo soletrou

    a lição da plebe. 

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    E aprendeu a ver.Ivo viu a ave?Ivo viu o ovo? Na nova cartilha

    Ivo viu a greveIvo viu o povo...

     Também em relação à Igreja, uma grande parte do clero acha que só hoje a Igreja viu o

    pobre, a Igreja viu o povo. Na sua ignorância, não sabem que São Bento foi que ensinou aAgricultura aos bárbaros, sendo considerado, como Virgílio, o pai do Ocidente, comoesquecem também as missões no Novo Mundo, onde só veem falhas, considerando osselvagens sob a ótica de Rousseau.

    Um dia perguntastes à vossa mãe se vosso pai era rico, ao que ela respondeu, enigmática:“Rico de filhos!” O que tanto podia significar que éreis demasiados (onze!) para oorçamento de um guarda-livros que só bem tarde se formaria em Direito, como tambémdizer, à semelhança da mãe dos Gracos, que éreis vós as suas joias. E, no entanto, coisainconcebível hoje, tínheis em casa três empregadas...

    Casado mais tarde com uma mineira de Montes Claros, uma das coisas que mais aimpressionaram em vossa terra foi o rito familiar da mesa farta, onde o almoço, começadopouco depois do meio-dia, prolongava-se por várias horas. Mas nem sempre terá sidoassim, quando éreis muitas fomes para a bolsa de um guarda-livros. Em todo caso,

    ficamos sabendo que a galinha, em suas partes, não era optativa. Vosso pai ficava com osobre (a que dáveis um nome mais completo e que também se poderia chamar supremoou mitra, segundo uma inspiração jurídica ou eclesiástica). A tia Flora ficava com o fígadode um amarelo-esverdeado. E todas as outras partes tinham, sem dúvida, os donosrespectivos. Daí a vossa surpresa em Washington quando, querendo juntar galinha ao leite

    e à torta da vossa bandeja, perguntou-vos a garçonete: “Coxa ou peito?” Belo mundo emque se podia escolher!

    Mas esse dia vos reservava uma surpresa maior. Sobrando-vos tempo, subistes asescadarias da Biblioteca do Congresso. Um guia imaginário assegurou-vos que havia ali

    41 milhões de livros, opúsculos, jornais, microfilmes. Um anjo irônico induziu-vos aprocurar o vosso nome no catálogo geral. Aceitando o desafio, abristes resolutamente a

    gavetinha com vossas iniciais. Dez obras vossas, em prosa, em verso, e também aquelasem que Prosa e Verso se guerreavam num campo de letras, ali se encontravam numa das

    270 mil prateleiras, quando, talvez, não houvesse uma só delas em vossa cidade natal.Tomastes a vossa esferográfica e anotastes o número da classificação esotérica: PQ 9697.

    Aquele dia fostes mordido, mais que de costume, pelo demônio do orgulho. Pois, na camado hotel, tivestes um sonho: alguém vinha ao vosso encontro com uma terrina, quedestampava, perguntando: “Coxa ou peito?” Só que esse garçom irrepreensível era nada

    mais nada menos que o presidente dos Estados Unidos... E agora compreendo melhor avossa decepção, quando, ao descrever-me recentemente um almoço, capaz de fazer

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    inveja a um monge na Quaresma, declarastes que o cardápio não fora muito além de uma“pálida asa de frango”! Não era apenas o alagoano amante da boa mesa, mas, também, opoeta que escolhera tão acertadamente o adjetivo: “pálida asa de frango.”

    Mas não façamos a injustiça de supor-vos sobretudo preocupado com as generosas

    cozinhas amazônica ou alagoana, contrastando com a austera mesa dos mineiros. Vossapreocupação é, sobretudo, a palavra, a ponto de lamentardes que os horóscopos tenhamtomado nos jornais os espaços outrora ocupados por aqueles que, através do infernoamarelo das polêmicas, encontravam o paraíso da Linguagem. Contudo, os horóscoposnão vos metem medo, pois escreveis no “Pacto ao cair da noite”:

     As taciturnas potestades

     já traçaram nossos destinos:morreremos ambos à noite.

    Amanhã seremos divinos. Porém, antes mesmo desse amanhã em que seremos divinos, já conviveis com os vossosmortos que hoje vos cercam invisíveis. Pois, também, escrevestes:Mortos continuamvivos quando amados.Viver é guardá-los. Fechado o ataúde,seguras as alças,

    o morto se evade. 

    Em verdade um mortonunca é enterrado.

    Volta com os vivos.Por isso acordamosnas noites escurascercados de mortos. O pai morto dá

    conselhos miúdosao seu filho aflito.

     E a mãe morta vem

    embalar, na noite,o filho barbado.

     Sê fiel, meu filho,à tua prosápia.Pratica teus mortos

     (como o marinheiro

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    respira a onda nuana entrada da barra). Enquanto viverescubra-te a caliça

    de todos os mortos. 

    Ouve o que te digo:está morto o vivo

    que esquece os seus mortos. Esta evocação dos mortos nos traz à lembrança um conto de Carlos Drummond deAndrade. Certa moça, morando perto do cemitério São João Batista, costumava passear àtarde entre os túmulos. Um dia, distraidamente, apanhou uma florzinha que brotara numdeles e que, se bem me lembro, logo jogou fora. Daí a sua surpresa quando, ao atenderem casa ao telefone, uma vozinha lhe disse: “Quero a minha flor!” A princípio, pensou quefosse um trote, mas a voz voltava todos os dias. Em vão, mandou rezar missas, em vãocobriu de flores um túmulo que, talvez, fosse o do morto exigente. Mas a alma não sedeixou subornar. Tirou o telefone da casa, mas continuava a ouvir a reclamação insistente:

    “Quero a minha flor!” Começou a emagrecer, não sorria, não comia e acabou morrendo...

    Sr. Lêdo Ivo, escrevestes que um dos atos essenciais do ofício de escritor é dar título a umlivro. E denominastes um dos vossosLadrão de Flor. Porém, as flores que roubastes nãovos conduziram à morte, como a inditosa moça do conto, mas à imortalidade acadêmica.

    Vós mesmo vos confessais ladrão de flor. Não das flores de retórica dos vossos colegas deofício, mas das vislumbradas na vossa infância pobre das Alagoas (“a flor d’água, a flor”)ou numa rua de Paris, ou numa tarde de Nova Iorque. Roubastes visões e vivências quetransformastes em Poesia. Mas, nesta Casa só recebemos pessoas honestas. Proponho-

    vos, por isso, um advogado.

    Explicais, nas vossasConfissões, que não sois descendente do escritor português PedroIvo, que era apenas pseudônimo de Carlos Lopes; mas fostes encontrar na ArcádiaUlissiponense um Miguel Tibério Piedegache Brandão Ivo, do qual teria vindo vossa

    vocação poética, vosso amor “pelas formas clássicas da Língua, como o Soneto, a Balada,a Ode e a Elegia”. E declarais expressamente:

     Por um momento me sinto vivo e completo, fruto consumado do Arcadismo Português com

    a antropofagia dos caetés alagoanos que, ao comerem o bispo D. Pedro FernandesSardinha, na verdade queriam assimilar toda a Europa. O advogado que convoco a defender-vos não pode ser considerado suspeito, pois nãoconsta que tenha nas veias o mesmo sangue. Se tem o nome de Ivo, o tem como nome debatismo e não de família. Nascido na Bretanha e vivendo em Paris, no século XIII, quando

    Tomás de Aquino ensinava na famosa universidade, e o rei São Luís fazia justiça debaixode um carvalho, daria origem ao epigrama que honrava o santo mas condenava uma

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    classe: Sanctus Yvo erat Brito (da Bretanha); Advocatus et non latro, /Res miranda populo.[Santo Ivo era bretão, / Advogado e não ladrão, / Coisa que o povo admira.]

    Porém, o santo advogado acabou juiz in utroque jure, isto é, tanto no tribunal dos homenscomo no Tribunal de Deus, onde o réu é, ao mesmo tempo, o acusador e a testemunha, e

    o juiz sempre absolve. Certa vez, veio a Santo Ivo um padeiro arrastando um pobremendigo, a quem acusava ter passado toda a manhã aspirando o bom cheiro dos pães doseu forno. Ivo tomou ao mendigo todo o dinheiro que recolhera de esmola. Em seguida, foiatirando, uma a uma, as moedas sobre a mesa. Porém, quando o padeiro estendeu obraço para arrecadá-las, como se constituíssem o pagamento reclamado, o Santo

    pronunciou a sentença: “Para pagar o cheiro do pão quente, basta o tinido das moedas...”E devolveu-as ao mendigo.

    Também a vós, Sr. Lêdo Ivo, ladrão de flor, para saldar vossos roubos, bastarão os vossosversos, caindo, um por um, das páginas dos vossos livros, no ouvido e no coração dos

    leitores.

    Vosso nome é um adjetivo que significa alegre e tem feminino e plural; Lêdo, Lêda eLêdos. Hoje, Lêdo e Lêda, estais ledos por partilhardes a mesma vitória: o poeta e a musa.

    Não nadastes em vão, Sr. Lêdo Ivo. À flor d’água, a flor.E porque a quiseram

    vai o nadadortambém à flor d’águaem busca da flor.

     A flor não sumiu como no poema. Eis que o nadador a tem agora entre as mãos. Só lhe

    resta colocá-la, como um troféu, no colo de Lêda.

    Se excetuarmos as duas acadêmicas e alguns intrusos que ultimamente ameaçam

    transformar esta Casa num jardim de infância, somos, para usar uma expressão vossa,embora vos referindo a outro grupo, “homens de Letras bastante servidos em idade”. Isto

    não nos impede de acolher-vos, satisfazendo a vossa última vaidade, como amigos deinfância. Ainda mais que acabais de tomar posse da Cadeira de Orígenes Lessa, o escritordas crianças, criança também ele, por seu encanto e bondade.

    O menino Orígenes. O menino Lêdo. Enquanto líeis aColeção Terramarear, estáveis vós

    mesmo na confluência desses três elementos que constituem vossas barrentas Alagoas,elementos aos quais juntastes o Fogo da vossa Poesia, para a celebração do Universo.Ave, poeta maior, um poeta menor vos recebe em nome da Casa que vos acolhe!

    Por isso, esquecendo o costume atribuído aos trapistas de se saudarem um ao outro com

    omemento mori e dos gladiadores romanos antes de entrar em combate, o Ave Caesar,morituri te salutant, “Ave, César, os que vão morrer te saúdam”, dizemos agora:

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    Ave, Ivo, os imortais te saúdam! 

    7/4/1987

    TEXTOS ESCOLHIDOS

    Os Morcegos

    Os morcegos se escondem entre as cornijasda alfândega. Mas onde se escondem os homens,que contudo voam a vida inteira no escuro,

    chocando-se contra as paredes brancas do amor?

    A casa de nosso pai era cheia de morcegospendentes, como luminárias, dos velhos caibrosque sustentavam o telhado ameaçado pelas chuvas.

    “Estes filhos chupam o nosso sangue”, suspirava meu pai.

    Que homem jogará a primeira pedra nesse mamíferoque, como ele, se nutre do sangue dos outros bichos(meu irmão! meu irmão!) e, comunitário, exige

    o suor do semelhante mesmo na escuridão?

    No halo de um seio jovem como a noiteesconde-se o homem; na paina de seu travesseiro, na luz do[farol

    o homem guarda as moedas douradas de seu amor.Mas o morcego, dormindo como um pêndulo, só guarda o dia

    [ofendido.

    ao morrer, nosso pai nos deixou (a mim e a meus oito irmãos)

    a sua casa onde à noite chovia pelas telhas quebradas.Levantamos a hipoteca e conservamos os morcegos.

    E entre as nossas paredes eles se debatem: cegos como nós.

    Soneto de Abril

    Agora que é abril, e o mar se ausenta,secando-se em si mesmo como um pranto,vejo que o amor que te dedico aumentaseguindo a trilha de meu próprio espanto.

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    Em mim, o teu espírito apresentatodas as sugestões de um doce encantoque em minha fonte não se dessedentapor não ser fonte d'água, mas de canto.

    Agora que é abril, e vão morreras formosas canções dos outros meses,assim te quero, mesmo que te escondas:

    amar-te uma só vez todas as vezesem que sou carne e gesto, e fenecercomo uma voz chamada pelas ondas.

    As Iluminações

    Desabo em ti como um bando de pássaros.

    E tudo é amor, é magia, é cabala.

    Teu corpo é belo como a luz da terrana divisão perfeita do equinócio.

    Soma do céu gasto entre dois hangares,és a altura de tudo e serpenteias

    no fabuloso chão esponsálício.

    Muda-se a noite em dia porque existes,

    feminina e total entre os meus braços,como dois mundos gêmeos num só astro.

    O Caminho Branco

    Vou por um caminho brancoViajo sem levar nada.Minhas mãos estão vazias.

    Minha boca está calada.Vou só com o meu silêncio

    e a minha madrugada.Não escuto, entre os barrancos,

    a voz do galo estridenteque, na treva do terreiro,

    anuncia as alvoradas.Nem mesmo escuto a minha alma:não sei se ela vai dormindoou me acompanha acordada,

    se ela é vento ou se ela é cinzaou nuvem rubra raiante

  • 8/19/2019 Lêdo Ivo

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    no dia que se levantacomo vela desdobradaem nave que corta as vagas.Não sei nem mesmo se é almaou apenas sal de lágrimas.

    Vou por um caminho brancoque parece a Via Láctea.

    Só sei que vou tão sozinhoque nem sequer me acompanho,

    como se eu fosse um caminhopisado por vulto estranho.Não sei se é dia ou se é noiteo que surge à minha frente,se é fantasma do passadoou vivente do presente.Não sei se é a torrente clarada água que corre entre pedrasou se um gavião me espreitaoculto no nevoeiro,

    espantalho prometidoao meu dia derradeiro.

    Atravessando barrancose plantações de tomate

    e ouvindo o canto escarlate

    de airosos galos polacos,vou por um caminho branco:brancura de bruma e prata.Entre tufos de carquejahá constelações de orvalhoe um clarão de meio-diacega a minha madrugada.

    Vou como vim, sem sabera razão da travessia.

    Nem sequer levo na boca

    o gosto de água salgadaque relembra a minha infânciafeita de mar e de mangue.Nem sequer levo nos olhos- nos meus olhos de menino -a mancha rubra de sanguedeixada pelo assassinoque vi certa madrugada.Vou por um caminho brancoe nada levo nem tenho:

    nem ninho de passarinhonem fogo santo de lenho.

  • 8/19/2019 Lêdo Ivo

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    Só vou levando o meu nada.Foi tudo quanto junteipara oferecer a Deusnesta madrugada.

    Minha Pátria

    Minha pátria não é a língua portuguesa.Nenhuma língua é a pátria.Minha pátria é a terra mole e peganhenta onde nascie o vento que sopra em Maceió.São os caranguejos que correm na lama dos manguese o oceano cujas ondas continuam molhando os meus pés quando  [sonho.Minha pátria são os morcegos suspensos no forro das igrejas

      [carcomidas,os loucos que dançam ao entardecer no hospício junto ao mar,

    e o céu encurvado pelas constelações.Minha pátria são os apitos dos navios

    e o farol no alto da colina.Minha pátria é a mão do mendigo na manhã radiosa.São os estaleiros apodrecidose os cemitérios marinhos onde os meus ancestrais tuberculosos  [e impaludados não param de

      [tossir e tremer nas noites friase o cheiro de açúcar nos armazéns portuáriose as tainhas que se debatem nas redes dos pescadorese as résteas de cebola enrodilhadas na trevae a chuva que cai sobre os currais de peixe.

    A língua de que me utilizo não é e nunca foi a minha pátria.Nenhuma língua enganosa é a pátria.

    Ela serve apenas para que eu celebre a minha grande e pobre pátria  [muda,

    minha pátria disentérica e desdentada, sem gramática e sem dicionário,

    minha pátria sem língua e sem palavras.

    As Ferragens

    Em Maceió, nas lojas de ferragens,

    a noite chega ainda com o sol claronas ruas ardentes. Mais uma vez o silêncio

    virá incomodar os alagoanos. O escorpiãoreclamará um refúgio no mundo desolado.E o amor se abrirá como se abrem as conchas

    nos terraços do mar, entre os sargaços.Nas prateleiras, os utensílios estremecem

  • 8/19/2019 Lêdo Ivo

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    quando as portas se cerram com estridor.Chaves-de-fenda, porcas, parafusos,o que fecha e o que abre se reúnemcomo uma promessa de constelação. E só então é noitenas ruas de Maceió.

    Poema em Memória de Éber Ivo

    Ébero espírito de Deus pousou em tuas mãos trêmulas e na agonia de teus olhos enevoadosque se entrecerraram porque o ritmo de teu coração morreu e teus sonhos procuraramoutros roteiros mais extensose tuas paisagens humanas perderam os limites e se indefiniramnunca mais te contarei histórias nem sentiremos melancolias nas

    tímidas noitesbem diziam que eras diferente de todos os teus irmãoshavia um halo de poesia iluminando o bronzeado de teus cabeloscujos caracóis a morte não desfez

    tua testa era límpida porque os pensamentos grandiososadormeciam nelateus olhos sempre se levantavam para o alto ampliando o limitedo panorama

    e em teu corpo franzino habitava o sangue dos poetas e dos

    músicoshabitava também o sangue dos contadores de históriasnós guardamos teu retrato de primeira comunhão e oampliaremos para que cresças

    durante a prolongada ausência.recolhemos teus livros e teus cadernos de primeiro da aula e

    choramos teus dez anos inquietosoutros souberam somente que partiste num esquife branco e teu

    último traje terreno foi uma roupa de marinheiroó belíssimo menino de olhos sonhadores e cabelos castanhosmesmo porque fizeste a grande viagem com a indumentária dos

    navegantes

    teu cruzeiro é bem longotão longo que minhas poesias te reconciliarão com os grandesproblemas eenigmasvestido de marinheiro como os caminhantes do mar

    nunca mais te direi as tristes lendas de violino e conversarei

  • 8/19/2019 Lêdo Ivo

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    contigotua poesia é tua presença transfigurada após a desapariçãoporque teus olhos se transformaram em faróis e sentiste apermanência do grande poeta que é Deusantes de sentires a transfiguração poética

    peço porém que digas aos poetas que encontrares por aí que omundo se afunda em grandes tormentas

    os poetas continuam sendo os timoneiros do mundonão te esqueças das minhas histórias e das minhas paisagens

    mesmo porque te tornaste um timoneiro do barco de Cristoo piano continua mudo para que se prolongue o compassoreadquirido de tuas singelas músicasmesmo que as estrelas não brilhem nos céus claros estarásconoscotão integrado conosco que não te sentiremos ausente.

    ( As imaginações, 1944.)

    Soneto do Poeta Brasileiro

    Não sou viril somente nas poesias.Quero dormir contigo, pois teus pés

    amassavam pitangas e traziasno corpo inteiro a marca das marés.

    Disseste que comigo casarias- amor na cama, beijos, cafunés.

    Entre-sombras de carne ofereciastão navegáveis como igarapés.

    Minha morena até dizer que não,o nosso amor demais me recordava

    duas lagoas onde me banhei.

    Sou macho e brasileiro, coração:em teu olhar eu nu e forte estavae foi assim, morena, que te amei.

    Soneto da Mulher e a Nuvem

    A João Cabral de Melo NetoNuvem no céu do nunca, nem tão branca- assim era o amor, à minha espreita,e era a mulher, de nuvens sempre feita

    e de véus e pudor que o amor arranca.

  • 8/19/2019 Lêdo Ivo

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    Não pude amá-la, pois não era francaa sua carne que o amor aceita,nuvem que um céu de amor sempre atravancae entre praias e pântanos se deita.

    Bruma de carne, em vão céu de tormento,parindo fogo aos meus dezesseis anos,assim foi ela, sem deixar seu nome.

    Nunca foi minha, e só em pensamentoeu pude dar-lhe o amor de desenganosque me deixou no corpo espanto e fome.

    ( As imaginações, 1944.)

    Soneto da Conciliação

    Que o amor não me iluda, como a bruma

    que esconde uma imprevista segurança.Antes, sustente o chão em que descansa

    o que se irá, perdido como a espuma.

    Veja que eu me elegi, mas sem nenhuma

    razão de assim fazer, e sem lembrança

    de aproveitar apenas a esquivançade que o amor não prescinde em parte alguma.

    Que também não se alheie ao que esclarece

    o motivo real, de uma oferta,reunir o acessório e o imprescindível.

    Antes, atente a tudo o que se tecedistante do seu dia inconsumível

    que dá certeza à noite mais incerta.

    Soneto dos Vinte Anos

    Que o tempo passe, vendo-me ficarno lugar em que estou, sentindo a vidanascer em mim, sempre desconhecidade mim, que a procurei sem a encontrar.

    Passem rios, estrelas, que o passaré ficar sempre, mesmo se é esquecida

    a dor de ao vento vê-los na descidapara a morte sem fim que os quer tragar.

  • 8/19/2019 Lêdo Ivo

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    Que eu mesmo, sendo humano, também passemas que não morra nunca este momentoem que eu me fiz de amor e de ventura.

    Fez-me a vida talvez para que amasse

    e eu a fiz, entre o sonho e o pensamento,trazendo a aurora para a noite escura.

    Soneto das Alturas

    As minhas esquivanças vão no ventoalto do céu, para um lugar sombrioonde me punge o descontentamentoque no mar não deságua, nem no rio.

    Às mudanças me fio, sempre atentoao que muda e perece, e ardente e frio,e novamente ardente é no momentoem que luz o desejo, poldro em cio.

    Meu corpo nada quer, mas a minh'almaem fogos de amplidão deseja tudoo que ultrapassa o humano entendimento.

    E embora nada atinja, não se acalmae, sendo alma, transpõe meu corpo mudo,e aos céus pede o inefável e não o vento.

    ( Acontecimento do soneto, 1948.)

    Balada Insolente

    Ao amor, como ao banhodeve-se ir nu

    levando-se contudocálcio e Poesia.

    E deve-se exigirmais que a morte,

    a vida; movimentoslivres e respiração.

    Que, neste momento,a Poesia seja

    riso e não lágrimas.

    Nunca assaz louvada,que ela esteja sempre

  • 8/19/2019 Lêdo Ivo

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    a serviço da vidasem trair os homens.Poesia e cálcio.

    Ao amor, que tem tudo,

    deve-se ir sem nada,levando-se no entantoprovisões de hormôniosaté mesmo no olhar.Na noite higiênica

    o vento balançagrandes flores: cálcio.

    ( A jaula, emOde ao silêncio, 1948.)

    Os Frutos da Imobilidade

    Entre a tarde e a arquitetura,a oclusão e a consonlância,canto-me dormido no horizontena viagem de olhos cerradospara as catástrofes do sono.E meu coração que é sombriocomo um sol visto às avessas

    tem canção ininterrupta,fanal de sino acordadoou os instantes plantados

    no dia do dia seguinte.

    Canto o tráfico do que sou

    diante da luz da aurora,a mulher do meu amor

    e eu sempre seguro e calmo.Luz no caminho noturno

    que cheira a mato pisado.O romper do dia sustenta-mecom seus címbalos de mármore.

    Não entôo o desencontro

    no amor da tarde, ou a cadeiaque nasce de tuas palavras.Canto a canção que me envolvecom os teus textos cruzadoscomo o trânsito na chuva

    em uma rua chanfrada.Não me inclino às harmonias

  • 8/19/2019 Lêdo Ivo

    38/40

    descobertas no tédio, elipsesde vôos incomunicáveis.No vasto chão do acasoeu lúcido apanho a rosa.

    Ei melodia! e o marao meu lado comparececom todos os seus naviosinclusive os naufragadosque retornam com seus mastros

    aos preâmbulos das nuvens.Guardando um sol no meu peito,

    falo de amor, compareçoaos espelhos dos instantes

    onde a vida se refleteem termos de diamante.

    E aos torvelinhos de outubro- momentos que são pirâmides -

    canto a vida em que pereçoentre dois pavimentos.

    (Cântico, 1949.)

    O Dia

    Das profundezas da tarde vem o dia em que se vive eternamenteigual à água múrmura entre os rochedosonde se ocultam na antemanhã os peixes perseguidos peloshomens.

    Não se percebe o outro dia melodioso lá foranas perspectivas dos arranha-céus, nos cinemas e no trânsito.A hora tem uma espessura de segredo guardado

    e as gargantas de onde as sedes emigraramsuplicam apenas o que sobrou do frio e do sono.

    As imprecações dormem no ar, com uma resistência de anjos,e as doçuras se desfiguram numa ilusão de joelhos fendidos

    n'águacomo se os corpos sentissem que o tempo foi embora.A vida, liberta dos vocabulários eventuais, festeja-se sem

  • 8/19/2019 Lêdo Ivo

    39/40

    memóriano espírito acorrentado a um infinito agoraeternamente presente como o oceano nas praias.

    (Cântico, 1949.)

    Balada do Arraial

    Não vim para te amarmas para descobrir

    o que teu corpo teme que não posso ver.No colégio falavamde tantas coisas tuas!Neste campo desertopodemos começar.Um dia serei poetae cantarei este instantee te chamarei na certade minha primeira amante.

    Oh! deixa que eu entre para o Amorcom os olhos abertos...

    (Cântico, 1949.)

    O Coração da Liberdade

    Estive, estou e estareino coração da realidade,

    perto da mulher que dorme, junto do homem que morre,próximo à criança que chora.

    Para que eu cante, os dias são momentâneose o céu é o anúncio de um pássaro.Não me afastarei daqui,da vida que é minha pátria,e passa como as águias no sule permanece como os vulcões extintosque um dia vomitam sono e primavera.

    Minha canção é como a veia abertaou uma raiz central dentro da terra.

    Não me afastarei daqui, não trairei jamaiso centro maduro de todos os meus dias.

  • 8/19/2019 Lêdo Ivo

    40/40

    Somente aqui os minutos mudam como praiase o dia é um lugar de encontro, como as praças,e o cristal pesa como a belezano chão que cheira à criação do mundo.Adeus, hermetismo, país de mortes fingidas.

    Bebo a hora que é água; refugio-me na estânciaquando a aurora é mistura de orvalho e de esterco,

    e estou livre, sinto-me final, definitivocomo o tempo dentro do tempo, e a luz dentro da luz

    e todas as coisas que são o centro, o coraçãoda realidade que escorre como lágrimas.

    (Linguagem, 1951.)