legislador racional e auctoritas
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CARLOS OTÁVIO BANDEIRA LINS
LEGISLADOR RACIONAL E AUCTORITAS
TESE DE DOUTORADO
ORIENTADOR: PROFESSOR TITULAR TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
SÃO PAULO – 2009
CARLOS OTÁVIO BANDEIRA LINS
LEGISLADOR RACIONAL E AUCTORITAS
Tese de doutorado em filosofia do
direito, sob orientação do Professor
Titular TERCIO SAMPAIO FERRAZ
JUNIOR
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
SÃO PAULO – 2009
BANCA EXAMINADORA:
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DEDICATÓRIA:
A meu avô CARLOS BANDEIRA LINS, no vigésimo ano
de sua falta.
A ANA PAULA, a nossos filhos – de nossos sonhos os
melhores – e a meus pais.
A MARIA LÚCIA ARRUDA ARANHA e PIERRE
CLEMENS, semeadores de humanidade.
AGRADECIMENTOS:
Ao Professor TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR, pelo
apoio e estímulo oferecidos na orientação do presente
trabalho e pela luz duradoura que seu pensamento
arroja sobre o direito.
Aos Professores CELSO LAFER e ELZA BOITEUX, da
Faculdade de Direito, e CICERO ARAUJO, da Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, de cujos
cursos as bases de nossa reflexão são diretamente
tributárias.
Ao Professor JOSÉ MAURÍCIO CONTI, pela lhaneza e
generosidade que desde os bancos da academia o
distinguem.
A minha filha ANA CAROLINA, pela inestimável e
solícita colaboração.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO......................................................................................................................... 02
CAPÍTULO I – AUCTORITAS
I – O exílio de Numa........................................................................................................ 11
II – Auctoritas e Julgamento............................................................................................ 21
III – Auctoritas e Fundação.............................................................................................. 29
IV – Auctoritas, entre o mito e a história......................................................................... 34
V – Direito romano e Auctoritas...................................................................................... 47
VI – Conclusão................................................................................................................ 53
Notas................................................................................................................................ 54
CAPÍTULO II – A INTERPRETAÇÃO JURÍDICA COMO DRAMA
I – Direito, poder e Auctoritas......................................................................................... 62
II – Kelsen e o direito como retrato................................................................................. 66
III – A metáfora do drama............................................................................................... 73
IV – O modelo de Tercio Sampaio Ferraz Junior............................................................ 76
V – O legislador racional................................................................................................. 80
VI – A interpretação jurídica como tradução................................................................... 86
VII – A interpretação jurídica vista pela metáfora do drama........................................... 92
Notas................................................................................................................................ 98
CAPÍTULO III – DISCURSO NORMATIVO E REPRESENTAÇÃO
I – Representação de interesses e representação política................................................. 104
II – O retorno dos interesses............................................................................................ 111
III – A representação pensada a partir do Estado............................................................. 116
IV – A representação pensada a partir da sociedade........................................................ 121
V – Direito e política em Kelsen...................................................................................... 132
VI – O Processo como representação: o Advogado......................................................... 137
VII – O Processo como representação: o Juiz.................................................................. 145
VIII – O Processo como representação: o Representado................................................. 150
Notas................................................................................................................................ 159
CAPÍTULO IV – O VIGOR DA NORMA E A LIBERDADE DOS CIVES
I – A colegialidade como modelo da decisão jurídica...................................................... 170
II – As três dimensões do vigor da norma........................................................................ 174
III – O vigor da norma e a liberdade dos cives................................................................. 185
IV – Direito e liberdade republicana................................................................................ 194
Notas................................................................................................................................ 200
CAPÍTULO V – CONCLUSÃO ................................................................................................. 203
RESUMO................................................................................................................................ 214
BIBLIOGRAFIA...................................................................................................................... 216
2
INTRODUÇÃO
Há no campo do direito linhas que, na perspectiva
examinada por Hannah Arendt, nos permitam de alguma forma unir o passado e o futuro,
linhas que atuem como a pavimentar o interstício entre essas dimensões no qual o homem
se situa e proponham sentido para os seus atos − ou, nos termos de Tercio Sampaio Ferraz
Junior, objetivos para agir e razões para o falar? Poderia o direito prescindir dessas linhas
se consiste precisamente em olhar para o passado em que se situam as leis, os precedentes,
a doutrina e os fatos a serem julgados, e, simultaneamente, para o futuro, para a contínua
tarefa de julgar fatos em acordo, ou certo grau de acordo, com a doutrina, os precedentes e
as leis – grau de acordo que tem em vista o perigo de que as decisões fracassem, e se vejam
desconfirmadas enquanto decisões, ignoradas antes de sequer descumpridas? E no
entretecer dessas linhas, como o direito se situa entre os tempos distintos da história, à qual
os comandos do poder passam a pertencer assim que são promulgados, e da política, o
conjunto de relações interpessoais atinentes ao espaço público, em cujo domínio as
decisões são chamadas à existência e têm de se afirmar como decisões?
3
Tomamos como ponto de partida para a resposta a essas
indagações a semelhança identificada por Hannah Arendt entre o aspecto fluído do poder
judiciário, na visão de Montesquieu algo nulo, e no entanto detentor da última palavra nos
regimes constitucionais, e a idéia romana de auctoritas. Essa semelhança reside no traço
paradoxal de a auctoritas possuir um caráter de certa forma intangível e de não obstante
atuar, em Roma, como uma força real; e embora assinale que os seus fundamentos parecem
perdidos para o homem moderno, Hannah Arendt se debruça sobre eles justamente por
estar convencida de que a perda da auctoritas não equivale à perda da capacidade humana
de construir e assegurar a continuidade de um mundo adequado para a vida dos homens de
hoje e de seus pósteros.
Nossa investigação procura mapear o modo pelo qual a
atividade jurídica pode se articular como um exercício significativo e desejável dessa
capacidade: seguindo o pensamento de Tercio Sampaio Ferraz Junior, encontramos os
vestígios da fundação no horizonte de toda discussão que parte de dogmas, que se trava de
modo regrado e que visa a dirimir conflitos sem os eliminar. Em cada uma dessas faces do
fenômeno jurídico o uso da palavra se mostra vinculado ao reconhecimento da presença
4
do outro e de um contexto duradouro a unir os falantes. Mas ao invés de se tratar de um
horizonte intangível, a fundação se atualiza, dramaticamente, nas sucessivas operações de
interpretação de normas jurídicas, cujo enunciado se conforma a padrões que permitiriam
vê-la como um ato de comunicação racional entre o editor normativo − concebido como
um único legislador − e a civitas, que ele sabe cindida em grupos em alguma medida
incompossíveis.
A figura do legislador racional se avizinha
particularmente da auctoritas pelo fato de não ser um locus passível de ocupação ou
disputa: as exigências de sua racionalidade promanam da memória de discussões jurídicas
anteriores, e se oferecem igualmente a todos os interlocutores que disputam o sentido de
uma norma. O papel unificador que por meio dela se impõe à discussão, desde o próprio
interior desta, resulta de uma estrutura de necessária horizontalidade, que se mantém e
formalmente iguala os oradores na medida em que estes assumem como seus os traços do
legislador racional – reconhecendo-o portanto como o endereço da auctoritas, e
pronunciando-se como portadores desta. E essa estrutura se estende até o momento em que
se conclui a enunciação do ato que impede o prosseguimento da discussão por ser
5
externamente reconhecido como potestas, mas que internamente é esperado e vivido como
exercício de auctoritas.
Dentro dessa estrutura, o direito se mostra inserido de
forma singular na vida da civitas, e procuraremos desvendar o modo pelo qual se fazem
representar, na discussão jurídica, vozes que de outra forma teriam apenas o sistema
político em sentido estrito como veículo, enfrentando neste o risco de não serem fortes o
bastante para se fazerem ouvir, ou de se articularem em modo exacerbadamente conflitivo
− com o risco de ruptura do que Cicero Araujo denomina a cena civil da vida política, em
oposição ao teatro da guerra cujo risco jamais se afasta por completo.
Construído para dar conta da polifonia dessas vozes, o
modelo de decisão jurídica não se reconduz por isso ao topos da solidão do poder, mas
antes ao juiz que implicitamente dialoga com instâncias revisoras, ou à colegialidade de um
tribunal, cujos membros, ao deliberar, não têm presente o resultado final do julgamento.
Nenhum desses oradores está em posição que os distinga dos demais interlocutores
jurídicos: nenhum pode falar apenas por si, uma vez que fala para os outros e que, por isso,
fala em termos que estes possam reconhecer como também seus – o que implica a
6
modulação da fala própria como discurso que se dirige a ser representativo da fala dos
demais.
Na discussão assim estruturada, as várias interpretações
adquirem o sentido de atos de reforço do cometimento normativo (certum que se fortalece
na pluralidade de manifestações de adesão); e de outra parte, vêm a estabelecer uma
relativa nota de controle de umas sobre as outras no plano do relato (dubium que, se nem
sempre se torna maleável no confronto, quando menos se enfraquece pelo efeito de
revogação − em sentido pragmático − ocasionado pelo bloco de interpretações
dissonantes).
Abordaremos por fim a relação entre a força vinculante
das normas jurídicas, ou o seu vigor, e a liberdade dos cidadãos, examinando, como apoio
em Isaiah Berlin, as dimensões em que essa comunicação se opera e o modo pelo qual o
direito opera em benefício da civilidade na solução de conflitos e afirmação de interesses.
Limita-se nossa discussão ao objeto assim delineado,
que por sua vez se constitui como tal dentro dos quadros teóricos do pensamento de Tercio
7
Sampaio Ferraz Junior. O diálogo em andamento nessa obra entre o direito e a reflexão
filosófica sobre o mundo contemporâneo tem como um de seus traços mais instigantes o
fato de ser marcadamente jurídico, isto é, conduzido a partir do direito e tendo em vista a
explicitação de seus processos, ainda que desvendando as articulações entre o sistema
jurídico e o tecido social em que ele se situa; e nesse sentido tem a dupla virtude de tornar
o debate jurídico significativo para um público pensante ampliado sem que isso se efetue à
custa da colonização do pensamento jurídico, vale dizer, sem que a apresentação do direito
o desnature em imagens de apêndice menor da organização política ou forma algo impura
da moral. Longe de nos voltarmos à análise externa dessa teoria, tencionamos apenas
refletir a partir de alguns de seus postulados, relacionando-os a outros autores e pontos de
vista − no intuito de elaborar algo como a cartografia costeira de um pequeno trecho do
continente teórico que, em suas grandes navegações, Ferraz Junior tem desvelado.
Pesa especialmente sobre nossa escolha o fato de a
legislação e o direito não escaparem ao processo examinado por Hannah Arendt em A
Condição Humana, pelo qual, na Era Moderna, a ação deixa de ser o paradigma dominante
da vita activa e se vê substituída sucessivamente pelo trabalho e pelo labor. A avaliação
8
corrente das instituições legislativas e judiciárias vê-se resumida ao que se consegue
mensurar, numericamente, como o ritmo de seu funcionamento, ou seja, a quanto e quão
rápido essas instâncias ou seus membros se pronunciam – sem que se dê igual medida de
atenção para o que esses pronunciamentos dizem e significam, ou por que e para que são
solicitados.
O clamor a um tempo vago e frenético pela
modificação das leis − de quaisquer leis − soma-se, contraditoriamente, a exigências de
previsibilidade absoluta do resultado de julgamentos, e se substitui à compreensão e
reflexão crítica sobre a amplitude do campo significativo descortinado pelos textos
normativos e pela articulação deles todos em quadros mais abrangentes e em padrões
temporais mais dilatados. A atenção concentrada na celeridade e na uniformidade deixa a
nosso ver de levar em conta, na apreciação do sistema jurídico, a contribuição que as suas
respostas logram oferecer à constituição, ampliação ou modulação desse próprio campo
significativo − e à própria viabilização de sua permanência.
Na auctoritas que a fala dos juristas adquire quando se
vale da língua do legislador racional se entrevê, de um lado, um limite à manipulação da
9
vida social pelo poder político do momento; e de outro, a instauração de condições para
que esse próprio poder se fortaleça no papel de arena substitutiva do confronto violento
entre os vários grupos e interesses sociais, negando estabilidade ou univocidade a
mensagens cujo sentido isolado destoe fortemente do conjunto de outras mensagens
trocadas pelos diversos comunicadores do sistema.
Como pontos originais do presente trabalho, devemos
salientar primeiramente sua filiação ao pensamento de Tercio Sampaio Ferraz Junior. A
eleição dessa matriz doutrinária nos conduz às regiões fronteiriças entre o direito, a
linguagem e a política tão familiares aos leitores de Ferraz Jr. quanto pouco freqüentadas,
por juristas, para além do território desbravado pelos clássicos da Teoria do Estado ou da
Teoria Geral do Direito.
A riqueza proporcionada pelo encontro, nessas mesmas
regiões, de pensadores como Cicero Araujo, Nadia Urbinati e Renato Janine Ribeiro,
torna-se por isso também uma nota singular do texto.
10
De outra parte, a caracterização do diálogo jurídico
como discurso representativo ancorado na idéia de fundação e a inspeção das relações entre
esse traço constitutivo seu, o vigor da norma e a liberdade, parecem-nos ser pontos em que
o resultado da pesquisa dialoga com o próprio quadro teórico que a embasa.
O signo sob o qual esses tópicos aqui se articulam, no
entanto, é o da contribuição: o desenvolvimento de algumas das possibilidades de uma
teoria maior não se empreende sem a intenção de que o esforço possa servir como estímulo
a que outras pesquisas venham a se desenvolver sob o mesmo paradigma.
11
CAPÍTULO I – AUCTORITAS
I – O EXÍLIO DE NUMA
Na história lendária de Roma, ao período da origem e
afirmação militar da cidade, sob a liderança de Rômulo − vinculado a Marte, a uma loba e
ao fratricídio na luta pelo poder −, segue-se o reinado pacífico de Numa Pompílio, que Tito
Lívio apresenta como homem justo, religioso e tão versado quanto era possível em sua
época ser no direito dos deuses e dos homens (omnis divini atque humani iuris, fórmula
destinada a seguir longa carreira no direito através de um fragmento de Ulpiano
incorporado ao Digesto).1
No texto de Tito Lívio, segue-se à narrativa dos eventos
desses reinados em tudo opostos o estabelecimento de um súbito liame entre seus
protagonistas – assinalando-se que ambos, “por caminhos diversos, um pela guerra, outro
pela paz, engrandeceram (auxerunt) a cidade.”2
O inesperado nexo assim configurado chamou a
atenção de Jacques Ellul, que o decifra como signo de uma concepção dual da maiestas
12
(em seu texto, souveraineité), na qual os romanos foram capazes de distinguir o momento
da criação e o da conservação – e a necessária ligação entre ambos de que resulta o
aumento da cidade.
Rômulo personifica o primeiro aspecto, como
“...o Mago, o criador da soberania, o jurista que vincula. Ele
próprio se faz rei, utiliza a religião em seu proveito, é um junior. A
ele se reportam as festas, como as Lupercais, em que se recriam
brutalmente as foças soberanas − e as ordens ativas, como o rex, os
lupercos, os equites, os juniores.” 3
Ao passo que Numa caracteriza o segundo:
“Ele é o homem religioso, que estabelece o culto de Fides. Ele
estabiliza o poder, que não procurou. Ele é um senior, trabalhando
pela paz. Ele organiza a cidade e a religião, com sacerdotes e ritos.
A ele se reportam a justiça da Cidade, as cerimônias cotidianas e as
ordens conservadoras, como o Senado, os flâmines, os seniores, a
família. Ele é enfim o jurista que delimita.”4
A cidade se engrandece, na narrativa de Lívio,
justamente pela diversidade de planos em que se estende, nos seus dois primeiros reinados:
13
a realidade e a força do poder romano, segundo Ellul, provêm dessa combinação entre a
celeritas de Rômulo e a gravitas de Numa. Combinação que remete ao traço de união,
detectado por Tercio Sampaio Ferraz Junior, entre os modelos de justiça vertical e
horizontal de Walter Burkert − propostos a partir de estudo acerca das palavras gregas que
expressam a idéia de pena, e centrados respectivamente na idéia de uma hierarquia a ser
protegida pela força e de uma igualdade a ser construída ou restaurada pela palavra.5
A consciência da diferença e do liame entre os dois
planos se imprime nos homens e nos costumes romanos − compreendidas nestes últimos as
instituições em que claramente se distinguem as formas de poder (imperium, potestas) da
autoridade (auctoritas), até que o Principado as enfeixe a todas.6 Mas ainda nesse
momento, a percepção dual se mostra persistente: pois o regime que será denominado
Império se inaugura afinal com um Augusto − título proveniente da mesma raiz de
auctoritas. E a dualidade se repetirá depois da fragmentação do Império: embora a idéia de
uma Nova Roma seja a referência imediata de variados projetos de recomposição da
unidade política perdida, o mundo que lentamente emerge das ruínas do que foi a metade
14
ocidental do Império logo encontrará no passado romano um ideário e modelos diversos, e
deles se servirá para se firmar em bases próprias.7
Rômulo e Numa, a diferença que os separa e o vínculo
que os une compõem afinal a “herança ideológica mais ampla” em cuja totalidade, ao ver
de Jean Gaudemet, é que se pode compreender a plena significação de seu mais evidente
legado – o legado jurídico.8 A concepção dual da maiestas confere à idéia política da
civitas uma especificidade propriamente jurídica, que a diferencia tanto do puro fenômeno
urbano como da experiência das cidades da Grécia:
“Enquanto que a reflexão política grega vê na cidade antes de tudo
uma comunidade de homens (a cidade ateniense é designada
oficialmente pela expressão ‘os atenienses’), Cícero, como bom
romano, tem a cidade como fundada pelo direito” (grifo nosso).9
Nesse traço de juridicidade se acha em germe a idéia de
exercício regrado e ordenado − e portanto limitado − do poder; e não será por isso casual
que, no Trecento, Bartolo de Sassoferrato tenha podido encontrar no direito fundamentos
para defender a organização republicana de cidades do norte da Itália – conferindo peso
15
político à imagem de Roma que, de acordo com Quentin Skinner, principiara a tomar
forma no século anterior, a partir de autores que
“...começam a pensar que o apogeu de Roma se deu no período
republicano, e não mais no imperial. Por conseguinte, adotam uma
nova atitude em face das grandes figuras do final da República,
especialmente Catão e Cícero. Antes, esses homens tendiam a ser
vistos estritamente como sábios estóicos, portanto como modelos
de desapego em face do burburinho da vida política. Agora, ao
contrário, são elogiados como grandes patriotas, figuras
exemplares da virtude cívica, que perceberam o quanto estava
ameaçada a liberdade republicana e tentaram salvá-la da tirania
que avançava.”10
Essa imagem não se circunscreve, geográfica ou
historicamente, ao norte da Itália durante a Renascença, mas se renova na rebelião das
Províncias Unidas contra a monarquia espanhola, na Guerra Civil inglesa e no período
anterior à Independência Americana e à Revolução Francesa − compondo o que Philip
Pettit identifica como a longa tradição republicana.11 Os próceres desta corrente se
16
formam na leitura de autores como Políbio, Cícero, Tito Lívio, Salústio, Tácito, ou
Plutarco, em cujas obras admiram, segundo Claude Nicolet, a exposição de
“...todas as hipóteses possíveis da política: o nascimento de uma
comunidade, a organização dos poderes necessários a uma cidade,
a conquista da igualdade de direitos por parte do povo contra os
‘grandes’, as reivindicações de liberdade contra a opressão, mas
também, decerto, as grandes questões ‘sociais’ (como ainda não se
dizia): a pobreza, as dívidas, a ‘lei agrária’, os ‘subsídios
públicos’.12
Mas se os modelos e o vocabulário romanos servem
longamente como meio de expressão à experiência política moderna, Michael Oakeshott
aponta que, do século XIX em diante, os protagonistas e teóricos dos regimes democráticos
em formação se voltarão preferencialmente à Grécia, na busca de termos ou precursores
aos quais essa nova realidade possa ser associada.13
Quentin Skinner e Philip Pettit também assinalam ter
havido nesse período, no âmbito da representação da liberdade, a desaparição de parte do
legado romano; e assinalam que até o século XVIII predominava uma concepção da
17
liberdade como ausência de dominação (e não como ausência de interferência), em razão
da qual se requeria a constituição de Estados cujos súditos não fossem dependentes do
soberano ou de sua mercê: Estados livres, por serem seus súditos igualmente livres. O
declínio dessa concepção é associado por Skinner ao utilitarismo e ao Estado liberal:
“Com a ascensão do utilitarismo clássico no século XVIII, e com o
uso de princípios utilitaristas para sustentar boa parte do Estado
liberal no século seguinte, a teoria dos Estados livres caiu cada vez
mais em descrédito, até que, por fim, deslizou quase inteiramente
para fora de vista” 14
O arrefecimento do ideário republicano observado em
diferentes planos por Oakeshott, Skinner e Pettit se relaciona à ascensão do número,
favorecido tanto pelo utilitarismo quanto pela democracia; e aqui devemos nos deter no
significado dessa mudança.
Renato Janine Ribeiro aponta que, desde os gregos a
democracia é tida como o regime dos polloi, os muitos, e assinala a presença de um
elemento irredutivelmente social nas reivindicações democráticas − que têm como eixo o
desejo, imediatamente voltado aos bens dos aristoi: convergindo com o diagnóstico de
18
Tercio Sampaio Ferraz Junior sobre o papel da inveja na formação do senso de justiça,
Janine Ribeiro aponta que, no cerne da democracia, está “o anseio da massa por ter mais,
o seu desejo de igualar-se aos que possuem mais bens do que ela.” 15
A idéia de república, ao contrário, se relaciona ao que
Montesquieu chama de vertu, e Janine Ribeiro propõe que se compreenda como
abnegação16 − não sem ecoar a indagação de Durkheim sobre o sentido do termo original:
“não chamamos de virtude a toda disposição moral que impõe um limite a uma
preocupação excessiva pelo interesse pessoal?”17 Em seu âmago reside “uma disposição
ao sacrifício,” que chegaria mesmo a proclamar “a supremacia do bem comum sobre
qualquer desejo particular.” Não se trata por conseguinte de um regime do desejo, mas
sim do dever.18
E se a relação entre a democracia e a república é
perpassada pela tensão entre desejo e dever, o diálogo entre a primeira e o princípio
benthamita da utilidade (ou da maior felicidade) flui naturalmente a partir da mensuração
dos prazeres também pela extensão, dada pelo número de pessoas que cada um deles
alcança.19 A articulação do Estado em função da economia é uma das feições possíveis da
19
primazia do desejo, e Janine Ribeiro sublinha a possibilidade de se conciliar um regime
econômico de “populismo distributivista” com a forma política do “despotismo do
príncipe demótico.”20
O aspecto patrimonial do desejo não é entretanto senão
a sua face imediata, segundo Janine Ribeiro: se o desejo irrompe como uma “pulsão
aquisitiva”, o núcleo das reivindicações sociais está em algo absolutamente distinto:
“através da matéria e da mercadoria se mira outra coisa – o reconhecimento como ser
humano, ou algo até menos nomeável, cuja densidade apenas podemos imaginar.” E esse
algo é mais do que o “anseio pela igualdade reconhecida”: reside antes no “caráter
questionador” do desejo, que corresponde a sua “dimensão de aventura.” 21
O inconformismo que possibilita ao desejo fundar a
aventura ultrapassa o nível em que as relações entre pessoas são mediadas por objetos: o
que estes proporcionam não é mais do que conforto, que se esgota no simples fruir. A
aventura atrai pela imprevisão, por se saber como ela começa, mas não como termina; o
desejo, se não se deixa esgotar no gozo material, é desejo de ação, no sentido que Hannah
Arendt dá ao termo.22 Mas para alcançar esse ponto, ele precisa ser refinado: “o desejo tem
20
seu tempo, sua demora; paradoxalmente, ele surge apressado, urgente, porém toda
tentativa veloz de traduzi-lo em outra linguagem se salda por fracasso.” 23
A velocidade da tradução é a sua verticalidade, e dela
resulta a redução do desejo a cobiça, apresamento e consumo de bens – o desejo que, nos
termos arendtianos, corresponde ao mundo do animal laborans. E a contenção dessa
velocidade implica a abertura do processo à consideração de outros desejos e dos valores
que os fundamentam, à presença de outros homens, de cujo concerto depende o ingresso
de todos no plano da ação. Para que se chegue a tanto, o desejo necessita de instâncias em
que possa amadurecer, ser discutido e mesmo se transformar, alcançando a plenitude de sua
vertu: Janine Ribeiro fala em educar os desejos a partir de hábitos aristocráticos,24 e a
abnegação republicana – ou a dimensão de horizontalidade que por meio dela se institui –
é o modo pelo qual isso se torna possível.
Voltando à leitura que Jacques Ellul faz de Tito Lívio,
podemos afirmar que o abandono dos termos e modelos políticos romanos corresponde à
perda da perspectiva dual que a associação entre as figuras míticas de Rômulo e Numa
simbolizava, e ao fortalecimento da idéia de que a vida em civitas poderia se fundar no
21
desejo em estado bruto. Uma civitas que assim se constitui não pode aspirar entretanto a
ser a Nova Roma: trata-se de uma Roma fraturada em sua própria essência, dominada por
uma hybris em meio à qual Numa não é convidado a assumir o reino, mas a trilhar o exílio;
ou, em suma, de uma anti-Roma – cujas epifanias marcaram dolorosamente, quando não de
forma trágica, a história do século XX. Mas estará a lição romana definitivamente perdida?
O que nos tem a dizer o direito, seu maior e mais duradouro legado?
II – AUCTORITAS E JULGAMENTO
No registro de Hannah Arendt, essa perda passa pelo
desligamento do homem moderno das três fundações especificamente romanas de domínio
político: a tradição, a religião e a autoridade. Com a perda da primeira, o homem se expõe
ao risco de se privar da dimensão de profundidade de sua existência, que não se constitui
senão como memória do que nós próprios e outros homens vivemos. A instalação da
dúvida no campo da religião ameaça não apenas as várias crenças e dogmas, mas a própria
fé, e por conseguinte o milagre que no âmbito político esta opera, a saber, “interrupções de
uma série qualquer de acontecimentos, de algum processo automático, em cujo contexto
22
constituam o absolutamente inesperado” – o que em outras palavras significa liberdade.25
E a perda da autoridade, finalmente, corresponde à erosão de um fundamento que dotava de
necessária permanência e durabilidade o mundo em que transcorrem as fúteis, instáveis e
breves vidas humanas.26
Se nos voltarmos ao direito, podemos relacionar
diretamente a esse inventário de perdas o processo pelo qual os juristas tendem a não vê-lo
como mais do que linguagem ou expressão do poder do Estado (no sentido weberiano, e
não arendtiano, do termo poder): à primeira vista, não haveria qualquer outro ponto em que
a ordem jurídica pudesse encontrar apoio. No entanto, o recurso a Hannah Arendt nos
induz a procurar outras perspectivas a partir de sua reflexão – que Celso Lafer nos lembra
dirigir-se sempre ao sentido positivo de “restaurar, recuperar, resgatar o espaço público
que permite, pela liberdade e pela comunicação, o agir conjunto, e com ele a geração do
poder.”27
De fato, ao enunciar a perda da tradição e o risco dela
decorrente, Hannah Arendt ressalta também a possibilidade de que os homens desfrutem do
passado sem se aprisionar em nenhum aspecto predeterminado e vicioso de sua memória,
23
inspirando-se a encontrar e reportar, como se fossem absolutamente novas, “coisas que
ninguém teve ainda ouvidos para ouvir.”28 Para ela, a fé está além da ossificação
institucional da crença, e a dúvida nesse segundo âmbito pode também ser lida com sinal
positivo, de forma a ampliar a liberdade. E finalmente, a crise da autoridade pode ser lida
como a ocasião de se articular uma forma distinta de exercício “da capacidade humana de
construir, preservar e cuidar de um mundo que pode nos sobreviver e permanecer um
lugar adequado à vida para os que vêm após.”29
Uma das possibilidades que essa crise descortina nos
parece entrevista pela própria Hannah Arendt na semelhança que ela aponta entre a idéia
romana de auctoritas e o que Montesquieu denomina o ramo judiciário do governo –
“cujo poder foi por ele chamado ‘de certo modo nulo’ (en quelque façon nulle) e que
constitui, não obstante, a mais alta autoridade nos governos constitucionais.” 30
De imediato chama a atenção o fato de que Hannah
Arendt quer explicar o que foi a auctoritas entre os romanos por meio de uma alusão ao
que hoje o direito é; e de sublinhar na atualidade do direito aquele que talvez seja o seu
mais expressivo traço republicano, ou seja, um arranjo de instituições que protegem do
24
desejo aquela que, de acordo com a idéia de volonté générale, será a sua própria e maior
expressão, colhida de forma especial e instalada num texto que se quer distante das
flutuações ordinárias de opinião.
Para se referir a esse arranjo, além disso, o texto
arendtiano se vale da locução o ramo judiciário do governo em lugar daquela que seria
usual: poder judiciário. Tanto mais quanto se trata de uma semelhança que Hannah Arendt
qualifica como notável, o emprego desse raro circunlóquio sugere tenha a autora se
indagado, ao comparar a auctoritas ao ramo judiciário, sobre a existência de uma relação
que não fosse apenas analógica ou restrita a questões constitucionais.
É de se notar que o pensamento arendtiano se voltava,
quando a autora subitamente faleceu, a um tema tão relacionado ao direito quanto pouco
tratado pelos juristas. Não há dúvida de que o direito como um todo depende da
verticalidade que, de um lado, define as instâncias do julgamento e as balizas lingüísticas,
leis, a partir das quais este se opera, e, de outro, concorre com a sua força para a execução
do que for decidido. Mas a esse padrão não se reconduz uma atividade tão fundamental do
direito como aquela que a palavra julgamento quer expressar − e que logramos nela
25
distinguir, como apreciação, quando não nos dispomos a reduzi-la ao ditado da solução do
caso.
A partir dos fragmentos do que seria a filosofia
arendtiana do julgar, podemos dar início a um exame do que significa a apreciação.31 Para
ela, a operação central do julgamento é o trânsito para a idéia kantiana de pensamento
alargado, construído por meio da imaginação, através da abstração de nossos interessses e
da comparação do juízo que fazemos do objeto ao juízo possível dos outros: “pensar com a
mentalidade alargada – isto significa treinar nossa imaginação a visitar.”32 E visitar os
homens com vistas a comunicar-lhes o efeito que o objeto nos causou – o que pressupõe
um sensus communis que nos une a eles, ante o qual os objetos valiosos o são em forma
exemplar: é a partir deles que se constrói o universal, de que inicialmente não dispomos.33
A apreciação é um exercício desse senso de
horizontalidade; pois embora haja uma nota vertical no sentido primário da composição
tardo-latina de ad e pretium, apreçar, ou avaliar ,34 logo se nota que o ato de dar o valor ou
o preço de algo impõe que se atravesse um momento de contemplar − sentido da palavra
26
apreciar que expressa uma medida de abstração de si mesmo durante o exame do objeto,
numa relação em que nenhum dos pólos prepondera sobre o outro.
A horizontalidade passa a predominar quando o
apreciar se torna sinônimo de deleitar-se, e finalmente se consagra na equiparação de
apreciar a ter estima por: o foco dessas acepções não está nem no exame tendente ao
estabelecimento do valor, nem no momento de pura contemplação a que o exame em tela
dá ensejo, mas transita para o estado induzido pelo alvo da apreciação, que inicialmente se
oferece sob forma transitória e momentaneamente prazerosa, o deleite, e depois se pereniza
como memória desse momento: nessa etapa, a estima induzida pelo objeto passa a ser o
traço dominante da própria percepção que temos dele.35
Podemos dizer que o verbo apreciar designa um
percurso, no qual um sujeito ativo, que mobiliza suas capacidades para definir o valor ou
dar o preço, passa a ser um sujeito contemplativo, que se põe em suspenso enquanto se abre
à percepção do objeto, e depois se torna um sujeito passivo, que o alvo de apreciação cativa
pelo deleite e progressivamente modifica − desenvolvendo nele uma estima que antes não
existia.
27
Estamos aqui no pólo oposto à idéia da possibilidade de
impor a outrem a própria vontade; pois o que está em jogo na apreciação não é o impor,
mas o próprio quem do qual a vontade seria própria. Aquele que aprecia submete-se ao
risco do despertar de opiniões, vontades ou prioridades que, induzidas pelo que lhe suscita
o alvo da apreciação, ele antes não reconheceria como suas; risco que, levado ao extremo,
encerra a possibilidade de o sujeito se tornar alguém que outros não reconheceriam como o
próprio ele de antes da apreciação.
Apreciar, por conseguinte, é um encontro do sujeito, a
partir do alvo da apreciação, consigo mesmo; e um encontro que o transporta do si a um
entre – e o situa entre outros sujeitos. Para alcançar o termo final do percurso, o sujeito se
torna novamente ativo, e passa da estima subjetiva ao preço ou valor. Nesse momento,
seus achados devem ser dispostos de forma a que possam ser comunicados a terceiros: o
preço ou o valor são sempre definidos para alguém, ainda que este alguém seja a própria
pessoa, à qual essa mensuração não se oferece transparentemente. E para chegar a bom
êxito nessa tarefa, o sujeito que aprecia tem de ter diante de si também o critério do
destinatário de sua avaliação; o que quer dizer que tem de abrir seu pensamento ao pensar
28
desse outro – movendo o seu pensar para o modo representativo do pensar alheio. Modo
que Hannah Arendt distingue de “uma empatia imensamente alargada,” que não levaria a
mais do que uma substituição de preconceitos, e apresenta como um movimento de
“abstração das limitações que se juntam contingentemente a nosso próprio juízo,” ditadas
pelas nossa inserção no mundo e pelo que “normalmente chamamos de interesse próprio, e
que, segundo Kant, não é esclarecido ou capaz de esclarecer, mas limitador.”36
Ao refrear seu desejo, desligar-se de seu interesse e
assim transitar para o que Arendt chamaria de seu próprio ponto de vista geral –
intimamente ligado às particularidades compreendidas na apreciação, mas formulado em
termos aos quais os outros sujeitos possam igualmente aceder –, o sujeito tem condições de
proclamar devido, em relação ao objeto, um valor que não será o valor por ser obrigatório,
isto é, exigido como tal por injunções externas ao processo, como um universal ao qual se
subsume o particular: o que o sujeito colhe no percurso da apreciação permite-lhe formular
uma solução em condições – maiores ou menores, mas sempre dirigidas a tanto – de ser
aceita pelos demais. E esse caráter intersubjetivo não se perde nem mesmo se a solução
tem de se revestir de forma potestativa – como ocorre se o sujeito em questão é um juiz.
29
III – AUCTORITAS E FUNDAÇÃO
Esse movimento intrínseco ao direito que é o percurso
da apreciação qualifica o julgamento como algo absolutamente diferente da imposição da
própria vontade; e jungindo-o a um fundamento que outros podem reconhecer,
assemelha-o notavelmente ao fenômeno romano da auctoritas.
Hannah Arendt sublinha que a palavra auctoritas deriva
do verbo augere, correspondente a aumentar, e assinala que o que se aumentava pela
autoridade ou por seus detentores era o próprio ato sagrado da fundação de Roma, ao qual
se remetia toda a vida política romana. Reconhecia-se a auctoritas em pessoas que, por
pertencer a uma linhagem antiga, pela assimilação de uma tradição, ou por sua própria
ancianidade, situavam-se mais próximas da fundação: “aqueles que eram dotados de
autoridade”, sublinha Arendt, “eram os anciãos, o Senado ou os patres.”37 O campo para
o encontro interpessoal que a auctoritas oferece é o passado comum, que se plasma como
presença nessas pessoas e instituições.
30
É possível rastrear formas incipientes do delineamento
desse campo, e Francisco Javier Casinos Mora o faz, em erudita obra sobre esse fenômeno
romano, a partir do texto de Tito Lívio – conduzindo-nos novamente para a passagem de
Rômulo a Numa. O autor examina em chave política os eventos que se referem à
desaparição do primeiro e antecedem a escolha do segundo; e encontra sinais indicativos
da existência de uma organização anterior à instituição da monarquia, centrada em um
proto-senado formado pelos Patres, cujo poder compreendia tanto a auctoritas como o
poder em sentido estrito. Depois de Rômulo, assevera Casinos Mora, esse proto-senado
não se inclinava a estabelecer novamente ninguém acima dele próprio; e se teve de ceder
ao populus o poder de escolha do rei, logrou conservar entretanto a auctoritas, que o
habilitava a confirmar ou vetar a escolha efetuada.38
O relato de Tito Lívio é de fato esclarecedor a respeito
da divisão entre auctoritas e potestas; mas a redução da primeira à prerrogativa senatorial
de veto criaria dificuldades para que se unificassem em seus domínios tanto as formas
menos potestativas de manifestação de autoridade − e aqui pensamos nos jurisconsultos do
período clássico, cujas respostas sobre dúvidas jurídicas nada vetavam, mas simplesmente
31
assinalavam caminhos a serem seguidos − como, no outro extremo, a auctoritas manifesta
como um quase-poder, à semelhança daquele que o Senado de fato exerceu na condução
das Guerras Púnicas, em que foi o verdadeiro centro decisório da política romana.
A auctoritas de fato é objeto desse trecho de Tito Lívio;
mas o que ele tem a dizer não está em sua literalidade, conforme aprendemos com Jacques
Ellul. É preciso modificar a estratégia para lidar com o texto, e inicialmente podemos
demarcar, no contexto em que a auctoritas vem a lume, alguns traços que possam se repetir
em suas outras manifestações.
Primeiramente, o cenário em que a auctoritas se
distingue da potestas é o de uma situação-limite: depois de Rômulo haver desaparecido
em uma tempestade, os jovens romanos suspeitaram de que os senadores poderiam tê-lo
matado, para tomar o poder; e os Patres, em contrapartida, passaram a recear uma ruinosa
conflagração com o populus. Uns pela opressão, outros pelo risco de destruição, todos se
sentiam ameaçados em sua própria existência; e ao longo da história romana, os períodos
em que o Senado terá maior peso, como as Guerras Púnicas, serão momentos de
semelhantes tensões. A visibilidade moderna de questões de vida ou morte no direito não é
32
a mesma de épocas em que a morte era de fato pena; mas o desenho de institutos como o
poder geral de cautela do magistrado conserva o eco da Antigüidade nesse enfrentamento
de questões para as quais não é possível prever resposta.
A forma de se superar um tal impasse envolve
necessariamente o uso da palavra, e por meio dele a exploração de novas perspectivas a
partir da situação inicial: no texto de Lívio, isto se desvela na figura de Próculo Júlio, que
num primeiro momento serena os ânimos do populus ao repetir o que Rômulo lhe dissera,
ao descer à Terra e elegê-lo arauto:
“Vá e anuncie aos romanos que é vontade dos céus que minha
Roma se transforme em capital do mundo. Que eles pratiquem
portanto a arte militar. Que aprendam e ensinem a seus filhos que
nenhum poder humano pode resistir às armas romanas.”39
Tito Lívio deixa claro que em sua época soa admirável
que essas palavras tenham bastado para provar ao populus a imortalidade de Rômulo e,
senão a inocência dos senadores, ao menos a necessidade de se abandonar o conflito, em
nome do destino de Roma. Mas sua descrença quanto ao medium não se estende ao mérito
33
da previsão atribuída a Próculo Júlio, em que se projeta uma visão oracular de sucessos
que Roma efetivamente obteve. E o seu empenho em procurar no passado por modelos de
austeridade e civismo dos quais Roma se afastara e aos quais deve tornar não se justifica
senão em virtude da persistente fé, dele e dos romanos, no destino anunciado nesse
episódio inaugural.40
O valor da palavra é sublinhado pela oposição, no texto,
entre o êxito inicial da comunicação e o tumulto que ressurge quando os senadores se
distanciam unilateralmente do populus e criam o interregnum – isto é, quando resolvem se
alternar todos eles no trono ao invés de restabelecer a monarquia. O populus logo
decodificou tal medida como a simples multiplicação do número de senhores aos quais
servir, ou seja, como uma evidente hybris potestativa dos senadores, e se sublevou contra
ela.
A tensão assim recriada apenas se resolve por um ato de
limitação: os patres reconhecem o risco da situação a que deram causa, e se vêem na
contingência de ceder ao populus a summa potestas de escolha do rei, retendo apenas a
possibilidade de vetar o nome escolhido.
34
Se atentarmos para o texto de Tito Lívio, colheremos
nele próprio indicações de que a auctoritas não se confunde com essa prerrogativa de veto.
Lívio distingue claramente a autoridade senatorial − ainda reconhecida em sua época, e
revestida do idem ius de se manifestar sobre a aprovação de leis ou escolha de magistrados
− da força de veto que ela não tem mais, e que deixou de ter quando o povo passou a
deliberar depois da manifestação senatorial.41
Essa distinção permite ver que a auctoritas sinaliza um
limite para o poder, mas não está no efeito potestativo, de que não necessariamente se
reveste – o que leva Hannah Arendt a afirmar, numa assertiva que pode ser comparada à
expressão en quelque façon nulle de Montesquieu, que “a característica mais proeminente
dos que detêm autoridade é não possuir poder.”42 Mas em que quadros a auctoritas se
exprime, e que espécie de aumento ela representa, sem ser um poder no sentido weberiano?
IV – AUCTORITAS, ENTRE O MITO E A HISTÓRIA
A resposta não se oferece de imediato na seqüência do
texto. Tito Lívio conta que, havendo se resignado a abrir mão da summa potestas, os Patres
35
o anunciam em uma assembléia, na qual o interrex assegura ao povo que eles confirmarão
a escolha de qualquer rei que seja digno sucessor de Rômulo. E acrescenta que essa
proclamação agrada tão profundamente ao povo que este não se sente compelido apenas à
reconciliação – mas também a devolver aos Patres o próprio e recém-obtido poder de
eleição do rex.
Trata-se de um desfecho pouco realista para uma
situação de conflito: no momento em que estão prestes a tomar dos opressores o poder com
o qual são oprimidas, as forças do populus recebem-no em parte, como simples concessão;
e o aceitam, e se desarmam, e não apenas o fazem como restituem o poder aos opressores –
em agradecimento!
Como poderá o povo ter se deixado ludibriar pela
“aparente generosidade do Senado”, ou pela verdadeira astúcia dos Patres, que, segundo
Pierre Grimal, reservaram-se “o privilégio de investir a personagem designada pelo
povo,” posicionando-se como “os garantes (auctores) do imperium real,” e apenas
cederam ao populus a prerrogativa de “emitir um desejo”?43 Que espécie de civitas terá se
fundado sobre tais bases?
36
Para responder a essas indagações, temos de nos
distanciar de Tito Lívio, sem o fazer de seu texto: o que ele nos oferece como fato, e
recebemos como enigma, muda de figura se é lido como mito.
O que não nos leva a cogitar de imediato dessa
abordagem é o sucesso de Tito Lívio na tarefa em cuja efetivação reside a marca de sua
autoria sobre uma narrativa que não criou: seu empenho em conferir verossimilhança a um
relato que originariamente não possui esse traço.
Seu olhar a um tempo crítico e não de todo infenso ao
que relata, como vimos em relação à idéia do destino grandioso de Roma, procura apartar
do veio principal do texto os acontecimentos em que o sobrenatural se entremeia − e por
isso nega a filiação divina de Rômulo e sua amamentação por uma loba, seu arrebatamento
durante uma tempestade e a efetividade de sua manifestação a Próculo Júlio. Enquanto
assumimos o ponto de vista do narrador, permanecemos à margem das evidências de que
algo superior ao curso normal das coisas está em ação no plano de fundo do texto – e é
justamente nesse algo que se encontra a força originária do relato, responsável por sua
propagação até a época de Tito Lívio.
37
Há que se notar que a distinção entre história (ou fato) e
mito não equivale a uma distinção entre verdadeiro e falso, entre real e imaginário, mas
entre formas distintas de compreensão do mundo, de organização da experiência do real e
de orientação em seu interior.
Ernst Cassirer nota que as representações míticas
“...não são extraídas de um mundo já acabado do ser; não são
meros produtos da fantasia, que se desprendem da firme realidade
empírico-positiva das coisas, para elevar-se sobre elas, como tênue
neblina, mas sim, representam para a consciência primitiva a
totalidade do ser. A apreensão e interpretação míticas não se
associam posteriormente a determinados elementos da existência
empírica; ao contrário, a própria ‘experiência’ primária está
impregnada, de ponta a ponta, deste configurar de mitos, e como
que saturada de sua atmosfera. O homem só vive com as coisas na
medida em que vive nestas configurações, ele abre a realidade para
si mesmo e por sua vez se abre para ela, quando introduz a si
próprio e o mundo neste medium dútil, no qual os dois mundos não
só se tocam, mas também se interpenetram.”44
38
Hans Blumenberg encontra as raízes do mito na
experiência pré-humana do medo de agressões de origem desconhecida, que, ampliada no
tempo e no espaço, converte-se em um estado situacional de tensão: passa-se a viver à
espera da agressão, em intensidade já desligada da efetiva presença de ameaças − e ainda
crescente.
Torna-se necessário reduzir tal angústia novamente a
medo, e nesse momento a imaginação não é um recurso de menos valia do que a
experiência ou o conhecimento. Supor algo familiar no inóspito, dar explicações para o
inexplicável ou nomes para o inominável são recursos usados para “fazer do inatual e
invisível objeto de uma ação de rechaço, de conjura, de abrandamento, ou
despotenciação” e dar-lhe um trato “de igual para igual.” No dizer de Blumenberg,
“O que se fez identificável mediante nomes é liberado de seu
caráter inóspito e estranho através da metáfora, revelando-se,
mediante a narração de histórias, o significado que encerra. O
pânico e a paralisação − os dois extremos do comportamento
angustiado − se dissolvem na aparência de magnitudes de trato
calculáveis e formas de trato reguladas, inclusive quando os
resultados da ‘contraprestação’ mágica e cultual se burlam,
39
ocasionalmente, dessa tendência a lograr, para o homem, maior
favor dos poderes superiores.”45
Mircea Eliade assinala por isso que o mito é vivido
como uma história verdadeira, em que se encontra não apenas uma explicação da situação
do homem no mundo, mas também o acervo dos “modelos exemplares de todos os ritos e
atividades humanas significativas.” Trata-se contudo de uma exemplaridade compulsória,
e tanto mais quanto menores são as certezas que de outra fonte provêm: o modelo mítico se
erige sobre o tríplice postulado de que a existência do mundo se deve a uma intervenção do
numinoso, por razões que nunca são totalmente perscrutáveis; de que a continuidade do
mundo como tal depende da manutenção desse elo originário; e de que é possível chegar a
tanto por meio da repetição ritual dos mitos fundadores, que mapeiam os caminhos mais
seguros, porque já experimentados, para o sucesso que se quer repetir.46
A narrativa que Tito Lívio apresenta como história tem
sua força definida pelos padrões do mito, e assim se oferece aos romanos como explicação
asseguradora e exemplo obrigatório. O primeiro desses aspectos se apresenta de forma
literal, nas palavras de Rômulo a Próculo Júlio: Roma persegue a promessa mítica de se
40
tornar a capital do mundo. Quanto ao segundo, no entanto, a apresentação é mais sutil: o
que pode assegurar a eficácia verificada nas origens de Roma é a exata reprodução do
modo de agir inscrito nos primeiros momentos da vida da civitas.
O que há de mais inacessível aos modernos na
experiência romana da auctoritas é esse caráter exemplar, que, provido pelo mito,
efetivamente permite que se compreenda o seu exercício como uma ampliação da fundação
de Roma. O passado que os romanos buscam ao se voltar para os detentores de autoridade
não é uma dimensão isolada do presente, mas um tempo que foi perpassado pelo
sobrenatural e por meio dele pode regressar, sob a forma de um novo êxito daqueles que
ocupam a posição que foi dos Patres originais. A fundação que se aumenta não é um
fenômeno do tempo histórico, mas da eternidade que o mito revela, e que se mostra como
tal em cada nova intersecção estabelecida com o curso ordinário dos eventos. Ao fazê-lo,
essa dimensão preenche em maior medida o tempo comum – e assim o engrandece, até que
se possa falar na plenitude dos tempos, na qual se situa a previsão oracular de Rômulo,
ditada a Próculo Júlio.
41
A ambigüidade de Tito Lívio relaciona-se ao fato de a
sociedade romana, em sua época, já não participar integralmente dessa experiência, sem no
entanto haver adquirido dela a distância que apenas na modernidade se estabelecerá. Nesse
processo, o que o mito perde como força própria compensa-se pela sua mudança em
habitus, ou, no registro arendtiano, em tradição; e podemos observar a dinâmica dessa
transformação na própria figura dos Patres, que se desliga paulatinamente do traço
fortemente mágico que originariamente a distinguia, o poder auspicial (equivalente à
capacidade de ler os signos de aprovação divina no vôo das aves),47 e se recompõe em
torno da atitude identificada pelos romanos como gravitas – expressão apenas simbólica da
posse de uma visão em profundidade do mundo e do peso dos atos humanos, que não se
oferece às demais pessoas.48
O núcleo da auctoritas não está entretanto nos sinais
externos dessa posse, e sim num estrato mais fundamental, para o qual a exemplaridade e a
habitualidade, sem tampouco se confundirem com ele, dirigiam os romanos. O mito e o
habitus, afinal, nada prescrevem senão um percurso para as situações-limite; um percurso
que mobiliza a faculdade de julgar, e de cujo exercício resulta por isso um augere em
42
relação ao ponto de partida – processo que no logos mítico pode ser narrado e
compreendido como um influxo do numinoso no tempo ordinário.
No relato de Tito Lívio, o percurso tem início num
ponto em que senadores e populus se mostram aferrados apenas a seus interesses. Aqueles
não oferecem mais a estes do que a multiplicação por cem do número de senhores, e a
resposta popular não é senão a negatividade pura da promessa de conflagração. Nesse
ponto de partida, há entre o Senado e a demanda popular uma separação tão radical quanto
aquela que existe entre sujeito e alvo da apreciação.
Os senadores têm, a princípio, meios de se impor; mas
o crescimento do povo em hostilidade, ou a potência que assim se forma,49 exige que
aqueles se abram à consideração do que este postula. No percurso da apreciação, o
movimento é análogo: o sujeito diminui de expressão, enquanto o alvo a tem acrescida.
A quæstio passa a ser examinada, e os senadores têm de
pôr em suspenso seus juízos prévios para encontrar, nas possibilidades que ela oferece,
uma solução. Olhos modernos, mesmo cientes de que se trata de um mito, não deixam de
ler a proposta como excessivamente vinculada ao interesse deles; mas a trama não diz tanto
43
respeito à qualidade da solução quanto à ruptura da unilateralidade, necessária para se
chegar a alguma solução. O Senado deu esse primeiro passo, e para fazê-lo teve de pensar
o tema sob o ponto de vista do populus – ou pensar representativamente, para que a
solução proposta tivesse perspectivas reais de atingir e sensibilizar seus destinatários.
Nesse movimento, por se debruçarem sobre a questão,
por se abrirem às informações nela codificadas, por se deixarem afetar pelo que colheram e
pela incorporação do ponto de vista do populus, os Patres que propõem a este a partilha de
poderes não são mais os mesmos que decidiram estabelecer o interregnum: como resultado
do percurso que completaram, eles se engrandeceram – palavra que preserva em seu
sentido não-físico a natureza do aumento correspondente à auctoritas. O vínculo ao
passado – e eventualmente a auctoritates do passado, como os juristas romanos procurarão
estabelecer – visa a atualizar esse engrandecimento original, ou, em outros termos, é a
contribuição do presente para o engrandecimento da Roma de todos os tempos.
E aqui há de se ver um aspecto do percurso da
apreciação a que até agora não demos a ênfase devida: não há auctoritas sem a
44
contrapartida de reconhecimento, e por isso nunca é exclusivo de uma das partes o
engrandecimento que se alcança por esse meio.
A renúncia do povo a escolher o rei não é no texto
apenas um sinal da confiança de que os senadores passaram a dispor, mas também um
índice da transformação experimentada pelo populus – que passou de parte intransigente,
dispersa e puramente negativa, a uma instância política de estatura não inferior à do
Senado.
Trata-se de um acontecimento grandioso, que no mito
não poderia se exprimir senão de forma extraordinária − como manifestação que é de um
evento sobrenatural. O que se relata não é uma capitulação do populus, e sim a sua
resposta proporcional à resignação dos senadores, que abandonam sua inclinação inicial a
não escolher um rei.
Esse gesto possui duplo aspecto, e se invertêssemos o
sinal da avaliação de Pierre Grimal, poderíamos mesmo dizer que a renúncia do populus é
que é aparente, e que ele se investiu no privilégio de ter escolhido um rei: a summa
45
potestas não está no ato da escolha, mas na possibilidade de não a efetuar – o que o
populus garante que não ocorrerá.
Os próprios termos de Tito Lívio também se sujeitam a
essa inversão – com o que poderíamos dizer que, ao institucionalizar a auctoritas do
Senado, o populus se reservou a supremacia da potestas.50 Mas o mito assinala uma
diferença qualitativa entre essa potestas e a potência em estado bruto, aquela que o populus
já amealhara e que não lhe havia bastado para desatar o impasse: com a sua contrapartida
na auctoritas reconhecida no Senado, ela se reporta agora ao poder no sentido arendtiano
do termo, de capacidade para o agir conjunto.51
Importa observar que a articulação política fundamental
da civitas se desenha no conflito que emerge na vacância do trono real – ou do poder que
Rômulo exercia. O que lança os romanos em sua aventura não é o desejo concentrado em
um único e inquestionável centro, mas o exato oposto: a libertação dos desejos, no plural,
ocasionada pela ausência de um poder vertical que os contivesse. Apenas depois de os
senadores tentarem impor o interregnum e de o povo se movimentar para talvez entronizar
um rei à força é que se chega à fundação do novo poder romano, o imperium confiado ao
46
rei e depois aos cônsules, resultante do refreamento de verticalidades que se codifica no
alinhamento da auctoritas senatorial e da potestas popular.
A elevada conta em que Maquiavel tem a desunião
entre Senado e povo, por força da qual “nunca se privou de autoridade o governo régio
para dá-la aos optimates; e não se diminuiu de todo a autoridade dos optimates, para
dá-la ao povo,”52 relaciona-se ao sentido positivo dessa polarização: o reconhecimento
mútuo dos adversários do momento anterior é um limite à sua condição de adversários, e
não estabelece apenas limites outros para cada qual, mas converte a redefinição desses
limites em um programa de ação institucionalizada que logra obter o engajamento de
ambos os grupos. O arranjo é decerto instável; mas sua virtude está em criar esse espaço de
mobilidade e co-existência, em que se preserva a disposição dos grupos a um tempo à ação
e à moderação – o que impressiona favoravelmente também a Montesquieu:
“O governo de Roma teve o traço admirável de que, desde seu
surgimento, tal foi sua constituição que, quer pelo espírito do povo,
pela força do Senado, ou pela autoridade de alguns magistrados,
qualquer abuso de poder sempre pôde ser corrigido.”53
47
A força do Senado repousa em sua auctoritas, que
corresponde ao reconhecimento de seu poder de ver em profundidade – identificado como
poder auspicial, gravitas ou capacidade de julgar, tal como figurado pelo mito, pelo habitus
e pelos efetivos sucessos históricos do Senado. A crise moderna da auctoritas também é a
crise dos elementos contextuais que desempenham esse papel de expressão e reforço: o
mito se relaciona à fé, o habitus e a memória histórica à tradição, e ambas são postas em
xeque pela exigência moderna de uma racionalidade que, moldada à imagem do animal
laborans, se confunde com a expressão imediata do desejo. O próprio judicium, na medida
em que se opõe ao imediatismo da vontade, também entra em crise; e nesse ponto,
modernamente, tenta-se compensar o enfraquecimento da auctoritas com um reforço do
imperium – cometido a órgãos que subitamente se tornam menos judiciários do que de
governo.
V – DIREITO ROMANO E AUCTORITAS
A auctoritas não aparece como um fenômeno
imediatamente jurídico, se o mito a vincula ao reconhecimento obtido pelos patres junto ao
48
populus por meio de uma performance política que, levada a bom termo, institui a civitas
romana. Parafraseando Hannah Arendt, entretanto, podemos dizer que todo o fenômeno da
autoridade, e não apenas sua crise, é político na sua origem e natureza;54 e relacionar ao
peso da auctoritas na civitas, e da valorização do julgamento que daí se segue, a
extraordinária expansão do direito entre os romanos – a ponto de o historiador Paul Veyne
declará-lo o “esporte nacional” desse povo.55 O direito romano, que Tercio Sampaio
Ferraz Jr. examina à luz da auctoritas, 56 nos permite ademais refletir sobre a relação entre
esta e a argumentação, e sobre o grau e modo de unidade que a auctoritas oferece.
Inicialmente uma forma cultural sagrada, no dizer de
Ferraz Jr.,57 e assim ligado aos mistérios do poder auspicial, o direito conservou seu
prestígio mesmo depois do acesso dos plebeus a seu conhecimento – resultado das lutas
conduzidas durante a República: já não são apenas patrícios os seus cultores que, no século
II A. C., recebem a denominação de jurisconsultos.
Nesse mesmo período, passam a circular coleções de
respostas (responsa) a variadas dúvidas jurídicas.58 E os estudiosos desses textos registram
49
que os primeiros responsa não se fundam em argumentos, mas antes no prestígio pessoal
de seus autores – que, plebeus ou patrícios, são indistintamente vistos como auctoritates.59
Os sucessivos juristas se deparam no entanto com
responsa distintos para casos semelhantes; e sem poder deixar de reconhecer a auctoritas
de todos os antecessores, têm de desenvolver meios que lhes permitam articular de forma
inteligível as coincidências e as discrepâncias entre eles.
Isto ocorre em paralelo à transição do poder auspicial à
gravitas como sinal da auctoritas. Mas é importante notar que é ela própria que
desencadeia, no direito, essa mudança de padrão, e que logo a incorpora: o prestígio do
jurista passa a se relacionar ao refinamento de sua argumentação.
O que se opera nesse momento é um fenômeno de
importância capital: o discurso do jurista se reconfigura como o que Tercio Sampaio Ferraz
Jr. denomina discurso fundamentante.60 E nesse momento, a definição da auctoritas em
função desse padrão a remete a um plano estrutural, dissociando-a da concretude das
opiniões sobre os casos, e abrindo espaço para o julgamento.
50
Nesse movimento, as opiniões deixam de ser tomadas
em conta de axiomas, e passam a ser vistas como dogmas – palavras gregas que Casinos
Mora observa terem servido como tradução para duas acepções distintas de auctoritas.61
Aceitas portanto enquanto fragmentos de um saber experimentado (Viehweg), essas
opiniões são tomadas como ponto de partida para discussões; mas permanecem sempre
sujeitas à investigação do valor que possam assumir em um dado caso.62
Jean Gaudemet destaca ser este o método de Labeão –
contemporâneo de Augusto e fiel à República – em seus Pithana:
“O ‘Pithon’ é a exposição de uma opinião ‘provável’, mas que
pode ser contestada. Em Labeão, isto se traduz por uma solução
jurídica dada a propósito de um caso concreto, que é reduzido a
seus elementos jurídicos essenciais e toma a forma de um ‘tipo.’ A
solução proposta valerá para outros casos do mesmo ‘tipo.’ Ela
será apresentada sob a forma de uma ‘regra’. Esta regra poderá ser
criticada e modificada. Daí esta fórmula, que, ainda que dada por
Paulo (D. 50, 17, 1), expressa o método de Labeão: ‘A regra é uma
exposição breve do caso. O direito não vem da regra, mas a regra
nasce da justa apreciação do caso.’”63
51
Nesse proceder se identifica a peculiar situação em que
o jurisconsulto se encontra em relação à auctoritas. Embora reconhecido como autoridade,
não é como tal que o jurisconsulto argumenta: ele o faz referindo-se à autoridade, ou às
autoridades. O reconhecimento prévio de que dispõe o habilita a falar, permite que seu
responsum influa na solução do caso e o integra ao corpus que constituirá a referência de
posteriores responsa, ampliando-o; mas a esse posterior desfecho ele não pode apelar
enquanto cumpre o ato performativo de emitir sua opinião.
Nesse momento, o jurisconsulto não detém autoridade,
mas apenas a representa: ele procura atualizar o êxito dos modelos oferecidos pelo
passado, e tem de mostrar, expressando reverentia pelo que estes dizem, que o seu próprio
dizer merece semelhante consideração. Não é do jurisconsulto a última palavra, e se ele
não é da auctoritas mais do que um representante, o que afirma admite refutação –
havendo espaço, em todo caso particular, para respostas melhores. Qualquer tentativa de
oposição tem no entanto de se fundar nos mesmos pontos de partida: a refutação é possível,
contanto que se faça em bases de maior auctoritas.
52
Podemos dizer por conseguinte que a posição do
jurisconsulto como auctoritas é o axioma, ou, na terminologia de Ferraz Jr., um certum; e
que o teor de seu responsum, como dogma, será sempre um dubium.64 Hannah Arendt tem
em vista o primeiro aspecto ao afirmar que a autoridade está em suspenso se a pessoa que a
reivindica tem de provar que a possui: isto significa que ela não foi reconhecida como
autoridade, e portanto que ao menos de início, malogrou como tal.65
Em relação ao segundo, no entanto, o que sucede não é
tão simples; pois, ao contrário do poder, a autoridade não exige de seus destinatários acato
ou obediência, mas tão somente reverentia, isto é, que se considere com respeito e
deferência o que seu portador tem a dizer.66 A medida de seu fracasso não está portanto em
não ser seguida, mas em ser desconsiderada: ela não é refratária à discussão e ao uso de
argumentos, inclusive os que queiram contestar a opinião do portador de autoridade –
desde que se reconheça a auctoritas de que essa opinião se reveste.
A auctoritas se constitui destarte como um idioma
comum, em que a forte coesão dada pelo vínculo aos predecessores se estende aos que os
sucedem e possibilita a articulação de idéias antagônicas sobre um mesmo tema –
53
minimizando a possibilidade de exclusão total de qualquer delas. O pluralismo é uma
propriedade da auctoritas, e Ferraz Jr. observa que a plasticidade que ela emprestou ao
direito romano permitiu que este se tornasse “um saber que era a ampliação da fundação
de Roma” − espraiando-se por todo o Império como objeto de um conhecimento universal,
a despeito de não oferecer um fundamento teórico unitário ao qual pudessem se reconduzir
todos os seus desenvolvimentos.67
VI – CONCLUSÃO
Nosso estudo nos leva a concluir que os romanos
enunciavam em linguagem mítica, sob o signo da auctoritas, uma via de passagem da
situação-limite, ou do choque de verticalidades antagônicas, a um agir conjunto traçado em
plano horizontal: a fundação romana tem início na apreciação, no movimento de
auto-restrição e abertura ao outro intrínseco ao julgar – atitude que no limite assume a
forma de abnegação. É nesse ponto que principia a aventura da nau da palavra no
desafiador mar dos desejos; o augere contínuo da fundação é o sentido dessa navegação, e
não há exagero em se chamar de libertas – “um legado transmitido pelos fundadores de
54
Roma ao povo romano,”68 segundo Hannah Arendt – o virtuoso percurso que ela desenha.
Nos próximos capítulos procuraremos traços dessa aventura no fenômeno jurídico
contemporâneo.
***
NOTAS:
1Tito Lívio, História de Roma, 1989, p. 43; Ab urbe condita liberi, I, 18, consultado em
http://www.thelatinlibrary.com/livy/liv.1.shtml#18. O fragmento de Ulpiano incorporado ao Digesto
(D.1.1.10.2) assinala que “Iuris prudentia est divinarum atque humanarum rerum notitia, iusti atque iniusti
scientia” (ou, na tradução de Hélcio Maciel França Madeira, “Jurisprudência é o conhecimento das coisas
divinas e humanas, a ciência do justo e do injusto” – cf. Digesto de Justiniano – liber primus: introdução ao
direito romano,2005, p. 21 .
2 “Ita duo deinceps reges, alius alia via, ille bello, hic pace, civitatem auxerunt.” Ab urbe, cit., I, 21; História
de Roma, cit., p. 48/49.
3 “... le Magicien, le créateur de la souveraineté, le juriste lieur. Il se fait roi lui-même, il utilise la religion à
son profit, c’est un junior. A lui se rattachent les fêtes, comme les Lupercales, où l’on recrée brutalement les
forces souveraines − et les ordres actifs, comme le rex, les luperques, les equites, les juniores.” Jacques Ellul.
Histoire des Institutions − l’Antiqueté, 1999, p. 236 (tradução nossa).
4 “Il est l’homme religieux, établissant le culte de Fides. Il stabilise le pouvoir, qu’il n’a pas recherché. Il est
un senior, travaillant pour la paix. Il organise la Cité et la religion, avec des prêtres et des rites. A lui se
55
rattachent la justice de la Cité, les cérémonies quotidiennes, et les ordres conservateurs, comme le Sénat, les
flamines, les seniores, la famille. Il est enfin le juriste délieur.” Ibid., pp. 236/237.
5 Burkert assinala que o primeiro modelo se observa também entre animais (sua referência é à vingança
desproporcional do chimpanzé-alfa sobre as fêmeas que o desobedecem), e que o segundo, essencialmente
ligado à simbolização, parece ser exclusivamente humano. Tercio Sampaio Ferraz Jr. examina a
interpenetração entre os dois modelos em Aristóteles, na tradição romano-cristã, em Hobbes e Rousseau; e
depois de observar que até mesmo o modelo vertical é atravessado por um senso de igualdade, reflete sobre a
possível origem comum dos aspectos racionais (exclusivamente humanos) e emocionais (comuns aos animais)
da justiça no sentimento de inveja, concebendo-o como portador de uma dimensão positiva em que se funda a
elaboração de princípios racionais de compensação e distribuição. Cf. Estudos de Filosofia do Direito –
reflexões sobre o Poder, a Liberdade, a Justiça e o Direito, 2002, pp. 213/229.
6 Sobre o enfeixamento da auctoritas pelo princeps, veja-se Jean Gaudemet. Les institutions de l’Antiqueté,
2002, pp. 280/281.
7 Ernst Robert Curtius nota que a idéia da Roma penitente pelos abusos que cometeu, corrente desde os
padres do século IV, não impede que se sucedam as tentativas de restaurar parte da grandeza da Roma
triunfante, sob o signo da translatio imperii (v.g. ao império otônida) ou da translatio studii (p. ex. à
Universidade de Paris). Cf. Literatura Européia e Idade Média Latina, 1996, pp. 62/63. Franz Wieacker
delineia uma polissemia ainda maior, assinalando a existência de uma idéia de Roma guélfica (sustentando as
pretensões de soberania do Imperador romano-germânico), uma gibelina (idéia de uma Roma espiritual, com
a qual a cúria respondeu às pretensões do poder temporal) e finalmente uma idéia republicana, que animou as
cidades do norte da Itália a resistirem ao poder imperial (cf. adiante, nota 11). Cf. História do direito privado
moderno, 2004, p. 44.
8 Peter G. Stein afirma que “cuando se piensa en el legado de la Antigüedad Clásica, lo primero que aparece
es el arte griego, el teatro griego y la filosofía griega; cuando dirigimos la mirada hacia Roma, lo que viene a
56
nuestra mente son probablemente las calzadas romanas y lo Derecho Romano.”El Derecho Romano en la
Historia de Europa, 2001, p. 1.
9 “Alors que la réflexion politique grecque voit avant tout dans la cité une communauté d’hommes (la cité
athénienne est designée oficiellement par l’expression ‘les Athéniens’), Cicéron, en bon romain, tient la cité
pour fondée par le droit.” Jean Gaudemet. Le miracle romain. In: Fernand Braudel; Georges Duby (orgs.).
La Mediterranée − les hommes et l’héritage, 1986, pp. 45/79 (aqui, p. 47). Em A República, I, 25, 39,
Gaudemet encontra expresso o liame entre res publica e populus, e sublinha a conotação jurídica que
perpassa esta última denominação: “o povo não é um simples agregado de indivíduos, é um agrupamento
unido ‘por um consentimento jurídico e para a utilidade comum’” (op. cit., p. 48).
10 Quentin Skinner. As fundações do pensamento político moderno, 2006 (5ª reimpr.), p. 75; cf. tb., sobre
Bartolo, pp. 32-34; e ainda Stein, El Derecho Romano, cit., pp. 99/104. Sobre o papel dos juristas nessa
época, veja-se Donald R. Kelley. Civil Science in the Renaissance: Jurisprudence Italian Style. The
Historical Journal, Vol. 22, No. 4, (Dec., 1979), pp. 777-794 (consultado em
http://www.jstor.org/stable/2638687).
11 Philip Pettit. Republicanism: a theory of freedom and government, 1997, p. 19. Poderíamos denominar
essa corrente de literatura de oposição a um poder que, durante esse longo período, também se valia da
experiência e de denominações romanas (maiestas, imperium, pactum subjectionis) para se afirmar como
absoluto.
12 Claude Nicolet. O cidadão e o político. In: Andrea Giardina (dir.). O homem romano, 2002, pp. 21/48
(aqui, p. 21).
13 Michael Oakeshott. Lectures in the history of political thought, 2006, p. 178.
14 Quentin Skinner. Liberdade antes do liberalismo, 1999 (aqui, p. 80). Nesse momento, o predomínio
passou à idéia de liberdade como ausência de interferência legal sobre os particulares, postulada
sucessivamente, de acordo com Philip Pettit, por Hobbes, por autores que se opunham à Independência
57
Americana, pelos utilitaristas Bentham e Paley e pelos liberais subseqüentes. Veja-se do autor igualmente: A
third concept of liberty. In: Robert E. Goodin; Philip Pettit, Contemporary Political Philosophy: an
anthology, 2006, pp. 398-415. E de Pettit, confira-se Republicanism, cit., pp. 41-50.
15 Renato Janine Ribeiro. Democracia versus República − a questão do desejo nas lutas sociais. In: Newton
Bignotto (org.). Pensar a república, 2002 (reimpr.), pp. 13-25.
16 Ibid., p. 18.
17 Émile Durkheim. Como Montesquieu classifica as sociedades por tipos e por espécies. Trad. Elizabeth de
Vargas e Silva. In: Célia Galvão Quirino; Maria Teresa Sadek (orgs.). O pensamento político clássico −
Maquiavel, Hobbes, Locke, Montesquieu, Rousseau, 2003, pp. 279/292.
18 Ribeiro, Democracia versus República, cit., mesma página.
19 Jeremy Bentham. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. Trad. Luiz João Baraúna. In:
Bentham − Stuart Mill, 1989, pp. 03-68. A extensão se discute na página 17
20 Ribeiro, Democracia versus República, cit., p. 22.
21 Ibid., pp. 23/24.
22 Hannah Arendt. A condição humana, 2001, p. 188 e ss.
23 Ribeiro, Democracia versus República, cit., p. 19.
24 Ibid., p. 24.
25 Hannah Arendt. Entre o passado e o futuro, 2000, pp. 216/217.
26 Ibid., p. 185.
27 Celso Lafer. Hannah Arendt – pensamento, persuasão e poder, 2003, p. 35.
28 Arendt, Entre o passado e o futuro, cit., p. 130.
29 Ibid., p. 132.
30 Ibid., pp. 164/165.
58
31 Não iremos aliás nos aprofundar nesses fragmentos, em que Maurizio Passerin d’Entrèves encontra dois
modelos de julgamento distintos, centrados no espectador e no ator da política (cf. Maurizio Passerin
d’Entrèves. Arendt’s theory of judgement. In: Dana Villa (ed.), The Cambridge companion to Hannah
Arendt, 2005, pp.245-260), mas apenas empregá-los como baliza de nossa exposição.
32 Hannah Arendt. A vida do espírito – o pensar, o querer, o julgar, 2002, p. 371
33 Passerin d’Entrèves observa que não se trata do senso comum ordinário, e sim desse especial sentido de
pertinência a uma comunidade, que Arendt relaciona, ao lado do pensamento alargado, à idéia kantiana de
uma humanidade unida, vivendo em paz perpétua. Passerin d’Entrèves, Arendt’s theory of judgement, cit.,
p. 252.
34Cf. Dicionário latino-português, 2000, p. 92; Dicionário Houaiss da língua portuguesa, 2001.
35 O argumento não se altera se substituirmos deleite e estima por seus duplos negativos, desgosto e desprezo.
36 Arendt, A vida do espírito, cit., mesma página.
37 Arendt, Entre o passado e o futuro, cit., p. 164.
38 Francisco Javier Casinos Mora. La noción romana de auctoritas y la responsabilidad por auctoritas,
2000, p. 73.
39 Tito Lívio, História, cit., 1, 16 (p. 42).
40 O sentido modelar da obra é declarado em seu prefácio: cf. Tito Lívio, História, cit., pp. 17/19.
41 O texto latino é o seguinte: “Hodie quoque in legibus magistratibusque rogandis usurpatur idem ius, vi
adempta: priusquam populus suffragium ineat, in incertum comitiorum euentum patres auctores fiunt.” Tito
Lívio. Ab urbe, cit., 1, 17.
42 Arendt, Entre o passado e o futuro, cit., p. 164.
43 Pierre Grimal. A civilização romana, 1993, p. 101.
44 Ernst Cassirer. Linguagem e mito, 2000, pp.23/24. Sobre a expressão racional do pensamento mítico,
veja-se também Raymond Boudon. Essais sur la théorie générale de la rationalité, 2007, especialmente
59
capítulos 4 (La rationalité des croyances religieuses selon Max Weber) e 5 (La rationalité de l’ ‘irrationel’
selon Durkheim), pp. 139-188 e 193-247.
45 Hans Blumenberg. Trabajo sobre el mito, 2003, pp. 13/14.
46 Mircea Eliade. Mito e realidade, 2004, p.13 e ss.. Negrito nosso.
47 Cf. Gaudemet, Les institutions de l’Antiqueté, cit., p.134.
48 Cf. R. H. Barrow. Los Romanos, 2006 (reimpr.), pp. 24. O oposto dessa qualidade é a levitas, a
frivolidade associada aos prazeres desenfreados, à bebida e à dança, defeito pelo qual os romanos recriminam
os gregos. Maria Helena da Rocha Pereira ilustra a atitude romana perante a levitas com a reação de Catão
à vitória judicial de Murena, eleito cônsul, impugnado por acusação de corrupção e defendido por Cícero: em
franco desdém, ele sorriu e declarou: “temos um cônsul muito engraçado.” Estudos de história da cultura
clássica – II volume – cultura romana, 2002, p. 355.
49 Hannah Arendt distingue como potência o que ordinariamente se chama de poder, mas não corresponde à
capacidade para o agir conjunto; é o poder compreendido em chave egoísta, ou o que poderíamos chamar de
a capacidade humana para a dominação. Cf. Sobre la violencia, 2006 (reimpr.), pp. 61.
50 Michael Oakeshott assinala que “a fonte e o doador de toda potestas era o próprio populus Romanus.
Potestas pertencia ao ‘povo romano,’ tal como auctoritas pertencia ao Senado romano” (“The source and
donor of all potestas was the populus Romanus itself. Potestas belonged to the ‘Roman people’, just as
auctoritas belonged to the Roman senate”). Lectures, cit., pp. 233
51 Arendt, Sobre la violencia, cit., p. 60.
52 Maquiavel. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, 2007, p. 19 (as virtudes do conflito são
examinadas nos caps. 2-8 do Livro I, pp. 19/40).
53 Montesquieu. Considerações sobre as causas da grandeza dos romanos e de sua decadência, 2002, p. 68.
54 Arendt, Entre o passado e o futuro, cit., p. 128.
55 Paul Veyne. Sexo e poder em Roma. 2008, p. 98.
60
56 Tercio Sampaio Ferraz Jr.. Introdução ao Estudo do Direito – técnica, decisão, dominação, 2001, pp.
52/61.
57 Ferraz Jr., Introdução, cit., p. 52. José Carlos Moreira Alves observa que apenas os pontífices
dominavam seu exercício, que requeria um preciso conhecimento dos dias em que se poderia comparecer a
juízo (dias fastos, em oposição aos nefastos) e das fórmulas verbais a serem rigorosamente observadas para se
intentar uma ação ou celebrar um contrato. Direito Romano, 1983, p. 13.
58 Jean Gaudemet. Les naissances du droit – le temps, le pouvoir et la science au service du droit, 1997, p.
257.
59 Helmut Coing. Elementos fundamentais da filosofia do direito, 2002, p. 311; Peter Stein, El derecho
romano en la historia de Europa, cit., p. 19.
60 Tercio Sampaio Ferraz Jr. Teoria da norma jurídica, 2000, p. 17.
61 O autor se refere à versão das Res Gestæ de Augusto encontrada em um monumento em Ancara, Turquia –
o Monumentum Ancyranum. Auctoritas é traduzida como dogma, “opinião ou crença,” e também “decisão,
juízo ou ditame,” quando surge no texto como auctoritas senatus; e como axioma, “honra, prestígio,
reputação ou dignidade” quando se contrapõe a exousia, “poder de fazer algo.” Casinos Mora distingue
então a auctoritas-axioma, uma qualidade que se possui, da auctoritas-dogma, que recobre as manifestações
e pronunciamentos de um reconhecido detentor de autoridade – e pode ser discutida. Cf. La noción romana
de auctoritas, cit., p. 06/08.
62 Cf. Theodor Viehweg. Tópica e jurisprudência – uma contribuição à investigação dos fundamentos
jurídico-científicos, 2008, p. 44 e ss.; Helmut Coing, Elementos fundamentais, cit., p. 310/312; Michel
Villey. Direito romano, s/d., pp. 71/82.
63 “Le ‘Pithon’ est l’exposé d’une opinion ‘probable’, mais qui peut être contestée. Chez Labéon, cela se
traduit par une solution juridique donnée à propos d’un cas concret, réduit a ses éléments juridiques essentiels
et prenant ainsi la forme d’un ‘type’. La solution proposée vaudra pour d’autres cas du même ‘type’. Elle será
61
presentée sous forme d’une ‘règle’. Cette règle pourra être critiquée et modifiée. D’où cette formule, qui, bien
que donée par Paul (D. 50, 17,1), exprime la méthode de Labéon: ‘La règle est un exposé bref du cas. Le
droit ne vient pas de la règle, mais la règle naît de la juste appréciation du cas.’” Gaudemet, Les naissances
du droit, cit., p. 261.
64 A Jurisprudentia a nosso ver já apresenta o que Ferraz Jr. descreve como a ambigüidade estrutural do
discurso normativo. Cf. Ferraz Jr., Teoria da norma, cit., pp. 39/53.
65 Arendt, Entre o passado e o futuro, cit., p. 129.
66 Oakeshott, Lectures, cit., p. 228.
67 Ferraz Jr., Introdução, cit., p. 61.
68 Arendt, Entre o passado e o futuro, cit., p. 215.
62
CAPÍTULO II −−−− A INTERPRETAÇÃO JURÍDICA COMO DRAMA
I −−−− DIREITO, PODER E AUCTORITAS
No ensaio Kelsen e o poder jurídico, em que compara a
teoria clássica do direito público e a teoria kelseniana do direito, Norberto Bobbio nos
fornece a pista a partir da qual prosseguir. A seu ver, enquanto a primeira delas “coloca no
vértice de sua construção o conceito de soberania entendida como o poder supremo acima
do qual não existe nenhum outro” e “considera o Estado antes de tudo do ponto de vista
do poder,” a teoria kelseniana “coloca no vértice do sistema não o poder soberano, mas a
norma fundamental” e “considera o Estado (e qualquer outro poder organizado) do ponto
de vista normativo.” Bobbio conclui que norma e poder não são mais do que “duas faces
da mesma moeda,” no sentido de que o Estado, como poder organizado, pressupõe
normas, e as normas não se impõem como obrigatórias sem a investidura de pessoas ou
instituições em poder de garantir, até pela força, que o sejam.1
Sem que necessitemos aqui discutir os termos em que
Bobbio efetua essa aproximação – ou o grau de probabilidade de que um antigo romano ou
63
um homem medieval viessem a subscrevê-la –, podemos tomá-la em sentido negativo,
como índice da distância entre direito e poder, de um lado, e religião, ética e tradição, de
outro; ou como resultado da sujeição de quaisquer outras ordens de feição jurídica à do
Estado, alcançada no processo de formação do “Estado nacional soberano, que, nascido
na Europa, se espalhou recentemente por todo o mundo.”2 Michael Oakeshott sublinha
que os habitantes das comunidades de que se originaram os Estados tinham no âmbito
privado suas leis, e se definiam em torno delas,3 e considera que
“A emergência de um Estado foi, em um importante aspecto, a
integração legal dos habitantes de seu território e a transformação,
por reconhecimento e destruição, da lei e dos tribunais locais na lei
e nos tribunais de um Estado.”4
É o poder desse Estado que pode ser tido como
intercambiável com o direito desse Estado; mas sob a perspectiva da auctoritas, vimos que
esse poder aparece como um resultado incerto e variável dos sucessos da ação e do
julgamento, e desprovido da durabilidade de um artefato: antes algo a ser realizado do que
um dado operacional seguro seja para a fundamentação de raciocínios, seja para a
previsibilidade de conseqüências. Se assim é, o que permite considerar o poder ou o direito
64
como um sólido − em cujas faces Bobbio nota, no final do ensaio em comento, que ao lado
do primeiro se estampa a legitimidade, e do segundo, a eficácia generalizada, indicando a
interdependência de ambos5 − ou o que confere lastro a essa idéia é a contínua operação da
auctoritas, em instâncias que tentaremos captar. Para tanto, a interdependência assinalada
por Bobbio nos permite dispor das observações do campo político como vias para a
compreensão do direito – tal como permitiria o contrário, se nosso objeto de exame fosse a
política.
Podemos assim tomar da moeda de Bobbio a efígie – e
com isto nos aproximamos da primeira das metáforas pelas quais Cicero Araujo, tratando
da representação política, examina duas formas distintas de se conceber o soberano e a
soberania – o retrato e o drama.6 O pensamento jurídico habitualmente privilegia o
primeiro paradigma, e em expressões como vontade da lei ou vontade do legislador, lida
com o soberano (ou o ordenamento) como algo dotado de realidade ontológica, como
observa Nadia Urbinati.7 A metáfora do drama é no entanto aquela que nos permite divisar
a auctoritas, mostrando o que inicialmente se designa como soberano antes como o signo
65
da soberania em construção – ou, no dizer de Urbinati, de um processo inerentemente
plural de unificação. 8
Esse processo de construção da soberania é o espaço
que existe, no direito, entre a norma fundamental e a eficácia generalizada; e em seu centro
se insere o crucial problema da interpretação das normas jurídicas, tratado por Hans Kelsen
de forma algo desconcertante a partir da ótica do retrato.
De acordo com a Teoria Pura do Direito, o jurista
perde a objetividade no momento em que passa da descrição das possíveis acepções de
uma norma à avaliação de qual delas deva ser adotada. Sua atividade enquanto jurista cessa
após o exame filológico do texto normativo e um levantamento descritivo das
possibilidades lingüísticas de sua leitura, e vem a ser retomada apenas quando se torna
possível catalogar os sentidos que tenham merecido a chancela da autenticidade por parte
das instâncias oficialmente incumbidas de declarar o direito. Kelsen recusa ao que quer que
o jurista diga entre esses dois momentos, ou a qualquer crítica posterior (que na verdade
corresponde a um movimento do jurista tendente a se reinstalar no primeiro daqueles
66
marcos), o status de ciência do direito, afirmando tratar-se de considerações
jurídico-políticas.9
A perspectiva do drama se encontra ao revés presente
na idéia de interpretação como tradução, por meio da qual Tercio Sampaio Ferraz Jr.
procura restaurar alguma medida de objetividade no debate entre as possibilidades
semânticas oferecidas pelos textos legais, chegando à figura de um legislador racional –
cujo perfil se delineia a partir da experiência jurídica – como o parâmetro de comparação,
ou julgamento, das várias interpretações propostas.10
Nessa figura se abre espaço para compreender o direito
como um exercício plural de auctoritas, ou como etapa de um processo constitutivo de
poder, cujo momento forense, em que o significado das normas é incerto e discutido, é
essencial.
II −−−− KELSEN E O DIREITO COMO RETRATO
A ciência kelseniana reclama para o direito o que
Andrei Marmor conceitua como objetividade metafísica,11 exigindo de suas proposições
67
que sejam rigorosamente descritivas e que tenham como referência verificável objetos
existentes no mundo − fundamentalmente, as normas.12 Estas se distinguem de proposições
jurídicas que as descrevem pelo sentido: embora relacionadas umas às outras pelo conteúdo
(a conduta que se espera seja adotada), as normas dispõem que algo deve ser, e as
proposições expressam que a norma dispõe que algo deve ser.
A proposição, por conseguinte, pressupõe a anterior
edição de uma norma; o sentido de uma proposição, como assinala Jean Ladrière, é “a
possibilidade que ela possui de poder ser reconhecida como verdadeira ou falsa,” e assim
equivale às “circunstâncias que permitem assegurar-se de sua verdade ou de sua
falsidade,” ou às “condições de sua verificação.” 13 E nada há por ser verificado numa
proposição se ela se refere ao que ainda não está normatizado. O jurista não age como
teórico ao ingressar nessa seara, mas como político; e o faz amiúde, como o próprio Kelsen
assinala: “isso não lhes pode, evidentemente, ser proibido. Mas não o podem fazer em
nome da ciência jurídica, como freqüentemente fazem.”14
68
O viés desfavorável desse comentário não nos parece
ser um modo de defender apenas o rigor da ciência em nome da qual os juristas
indevidamente falam, mas, no limite dos pressupostos kelsenianos, também o que seria o
próprio Estado de Direito: na medida em que é uma nova norma o ato que estipula qual
deva ser o modo de se ler uma norma anterior, ele apenas poderia promanar de uma
instância juridicamente habilitada à sua produção. Ao defender uma particular leitura da
norma, por conseguinte, o jurista não agiria apenas na qualidade real de político, mas de
político em certa medida ilegítimo – ou quando menos marginal à consideração jurídica.
O que resta como ação lídima para o jurista é algo
desalentador. Um tratado doutrinário que visasse a expor em chave kelseniana um dado
conjunto de normas jurídicas teria de ser precedido de um conjunto de decisões judiciais a
respeito do tema escolhido. O principal trabalho do jurista consistiria em mapear essas
decisões, horizontal e verticalmente: no primeiro aspecto, separando dispositivos legais
cujo sentido já estivesse pacificado pelo Judiciário de outros que ainda fossem objeto de
exame e controvérsia; e no segundo, distinguindo se pacificação ou controvérsia têm sede
em tribunais superiores, tribunais comuns ou juízos de primeira instância.15
69
A exposição que resultaria de um procedimento dessa
ordem se aproxima da metáfora plástica do retrato, que Cicero Araujo emprega para
elucidar traços da concepção hobbesiana do soberano e das noções de representação a ela
pertinentes. Essa aproximação não deixa de ser sugerida pela ampla área de contato entre
as noções de interpretação e representação − que no entanto apenas em artes
performativas como o teatro chegarão a ser intercambiáveis.
A representação implica um afastamento do objeto
originário, que não se dá a examinar senão sob a forma daquilo (ou daquele) que o
representa; e nessa chave, a partir do momento em que uma autorização do conjunto
representado institui o soberano como seu representante, a visibilidade do conjunto se
resume à do soberano. Esse deslocamento, no direito, é dado pelo fato de que o conjunto de
proposições doutrinárias não é o próprio texto legal.
Na metáfora do retrato se pressupõe contudo que uma
tal passagem não se efetua de forma automática, mas sim por meio de “um trabalho de
construção do artista, a partir do material bruto que tem diante de si”, voltado a captar
70
uma perspectiva especial do retratado, um traço profundo seu que não se confunde com as
simples linhas corporais, mas que demarca na composição a figura do ser-representante,
distinto de um homem natural.16
Esse ser-representante, longe de se confundir com o eu
empírico do representante, expressa o Nós em que a comunidade política, através do
soberano, se constitui e se dota de aspirações a ultrapassar a longevidade empírica de seus
membros originais, e chegar à permanência.17 Há margem ainda para acréscimos à tela, e
Cicero Araujo assinala que a composição inicial pode vir a ser criativamente restaurada,
por meio de aportes que visem a incluir no retrato original também a ação interpretativa de
magistrados e, eventualmente, dos próprios súditos, enquanto estes se mantêm nos limites
da autorização originária.18
Podemos traçar um paralelo entre esse modelo e o
kelseniano. Neste, o ato de autorização originário é pressuposto na norma fundamental, e
verificado a posteriori como a eficácia global do sistema.19 O que antecede aquela ou o que
se passa entre ela e a eficácia não é objeto de cogitação do direito, que se volta apenas às
71
normas promanadas de elos oficiais da cadeia de validade. E o trabalho de construção do
artista é o que transforma as decisões dos intérpretes oficiais do direito no próprio sentido
das normas, validamente declarado, em lugar de um simples conjunto de opiniões de
magistrados.20
O Nós da comunidade se demarca a partir do retrato do
encadeamento desses elos, e seus contornos são dados pela delimitação do conjunto de
interpretações autênticas. As aspirações de permanência do quadro se codificam em forma
negativa, apresentando-se como a ausência de espaço, numa tela assim concebida, para a
discussão crítica da opinião predominante e para a exposição de teses diversas – com o que
a interpretação oficial se torna incomparável também no aspecto diacrônico. Não obstante,
o doutrinador-retratista não pode deixar de prever sucessivas restaurações de sua obra,
ciente que está de que suas proposições não eliminam (mas apenas tornam inexplicável) a
inovação jurisprudencial, nem asseguram que alguma norma não deixe por completo de ser
observada.21
72
Segundo Cicero Araujo, a arte essencial do retrato está
em posicionar o soberano acima da pessoa física que o encarna e também dos interesses
imediatos do conjunto de seus súditos: ele expressa mais do que a soma desses interesses −
que não se desvinculam do campo privado −, e sintetiza a convergência deles para o bem
comum e permanente da sociedade.22
No momento em que se dá essa convergência
inaugura-se uma esfera que podemos denominar pública, e se torna necessário reformular
em outros termos − termos de relevância pública − os pleitos que passam a ser do âmbito
privado, e que se queiram transferir àquela sede.23 Paralelamente, as premissas kelsenianas
desenham um campo a partir do qual se pode falar em relevância jurídica, dada pela área
de contato entre os pleitos particulares e o sentido de atos de vontade normativos, da
discussão que se queira travar. Nessa discussão, contudo, o sentido das normas é aquele
que se tenha previamente declarado como tal: juridicamente, não se pode questionar a
definição originária ou postular seja ela modificada.
73
O modelo do retrato nos proporciona, dessa forma, um
soberano que sintetiza em forma rígida e homogênea o Nós da comunidade, e se posiciona
por sobre qualquer diferença ou conflito em seu interior: o único ator político é ele próprio,
retratado como detentor da plena autorização do povo uniformizado a que a comunidade se
reduz. Transposta para o campo do direito, essa metáfora nos apresenta, como soberano, a
atividade judiciária institucionalizada sob a forma de um Poder do Estado, e como
diferença suprimida, as interpretações da lei que não tenham recebido a chancela de
autenticidade. O retrato da comunidade indiferenciada é o mesmo num âmbito ou noutro –
e o modelo kelseniano não tem meios de nos conduzir além desse ponto.
III −−−− A METÁFORA DO DRAMA
Em oposição a essa forma de representação, Cicero
Araujo pensa no drama como imagem apta a exprimir uma comunidade marcada pelo
conflito de vários grupos sociais, que por isso não se reflete politicamente na figura de um
soberano autorizado a falar e agir em nome do todo. Essa comunidade se articula por meio
de uma constituição mista, em que se combinam princípios de vários regimes políticos, e
na qual os vários grupos encontram possibilidades próprias de representação. Trata-se no
74
entanto de uma versão plebéia da constituição mista do pensamento clássico,24 assinalando
Cicero Araujo que sua descrição não propõe hierarquias de status fixas entre os grupos
sociais rivais.25
Essa comunidade vive o drama – ou, nos termos de
nossa investigação sobre a auctoritas, a situação-limite – de poder a qualquer tempo passar
da sua cena civil, em cujo enredo os grupos sociais “se deixam representar por atores
desarmados, os quais buscam deliberadamente soluções pacíficas para suas diferenças,”
ao teatro da guerra, no qual os grupos sociais se metamorfoseiam em comunidades
políticas antagônicas e se conflagram de forma abertamente violenta, visando ao
estabelecimento da supremacia de um deles sobre os demais.26
Nesse contexto, os vários atores − que competem entre
si, conforme Cicero Araujo, não pela consumação de uma síntese política inatingível, mas
por representarem forças sociais rivais − se vêem obrigados a abrir diálogos também com
os atores adversários, tendo em vista a manutenção do conflito em seu nível civil. O drama
se desdobra assim numa tensão dos representantes entre os deveres para com os
75
representados e as obrigações para com os outros atores, e no engenho requerido para
tornar conciliáveis essas duas séries de exigências. Cicero Araujo observa que a
representação assim concebida
“Parece mais plausível se deixarmos de lado a idéia de que o
representante simplesmente substitui o representado na arena
pública, ou coloca-se em seu lugar ou age em seu nome. Melhor
seria pensá-lo como a expressão de um pólo social que pretende
representar (...). Podemos dizer que o representante completa o
representado em vez de meramente substituí-lo (...) o representado
é a face social do instituto da representação, enquanto o
representante/ator é sua face política, sua expressão através de uma
forma que busca transformar a percepção social do conflito. Uma
não é nem deve ser o espelho da outra, e sim suas faces
complementares, ao mesmo tempo em comunicação e tensão
recíprocas.” 27
E a adoção dessa idéia de representação também
implica em modificar a noção do que deva ser o controle dos representantes:
76
“A questão normativa principal não é se a estrutura de
representantes está cumprindo apropriadamente suas obrigações de
promover, no lugar dos representados, suas vontades, pleitos ou
interesses (...). É preciso ter em conta o contexto inteiro da
representação: haverá, por um lado, a interface entre o social e o
político, e, por outro, a relação entre os próprios representantes na
cena pública, em que cabe dramatizar o atrito social. No
julgamento do desempenho dos representantes, é claro que se deve
considerar a capacidade deles de levar à cena pública as queixas
sociais (...). Porém, o julgamento tem de atentar igualmente para a
capacidade da representação de reelaborar as queixas e torná-las
mais reflexivas, dando-lhes a forma mais adequada para obter uma
recepção positiva na cena pública (...). Controlar a representação
(...) implica fazer o balanço de toda essa trama.”28
IV −−−− O MODELO DE TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR
No campo jurídico, chega-se a uma semelhante
alteração de perspectiva no modelo de interpretação que Tercio Sampaio Ferraz Jr. propõe
como solução para o que denomina desafio kelseniano.
Esse modelo situa-se em linha de afinidade direta com
as questões primordiais da obra densa e rigorosa de Ferraz Jr., construída em torno da
77
situação, no mundo, de um homem empenhado em interações discursivas por meio das
quais busca a aquisição de certezas e a definição de objetivos para o agir e razões para o
falar. 29
As primeiras respostas colhidas se oferecem ao homem
não apenas como respostas, mas também como oportunidade para a descoberta da reflexão
e do julgamento. A procura por respostas satisfatórias leva-o a distinguir aquelas que se
sustentam em motivos e fundamentos das que são meramente arbitrárias.
A experiência da modalidade fundamentante30 de
resposta, ou discurso, dá ao homem, na situação comunicativa, as bases para prosseguir em
sua busca de maneira racional. Ele se percebe vinculado aos seus interlocutores em termos
de mútuo entendimento, e por isso assume, como regra discursiva básica, a transparência da
fundamentação: os falantes não podem se deixar determinar, em suas ações lingüísticas,
por fundamentos não apresentados na discussão, 31 e têm o fundamental dever de provar o
que alegam,32 incumbindo-se de refutar suficientemente as objeções que lhes sejam
endereçadas.
78
O acordo em torno do mútuo entendimento não implica
entretanto uma idealizada e permanente busca de consenso, mas ao revés, admite que a
discussão possa se dar em caráter de oposição ou conflito fortemente partidarizado entre os
falantes (discussão-contra). A reflexividade crescente dos conflitos, entretanto, amplia o
risco de as discussões extrapolarem a racionalidade fundamentante (e de se chegar, no
limite, ao derramamento de sangue); e para afastar essa possibilidade, os falantes
concordam em instituir um comunicador especial − o editor normativo −, que se verá
dotado de poderes para regular a atividade de todos e promover a solução regrada das
controvérsias, absorvendo-as em seus procedimentos e normas.
Dentre as suas prerrogativas excepcionais, aquela que
assume maior relevo no âmbito da interpretação é a de não se sujeitar ao ônus de provar o
que alega: esse encargo se transmite a quem queira deixar de se submeter a seus comandos.
Mas surge um problema quando se trata de precisar o próprio sentido da norma: é
exatamente nessa operação que se determina quem é a pessoa que recebe o ônus da prova.
79
Numa situação concreta em que esse problema se
coloque, nenhum dos litigantes poderá esperar pela atribuição oficial de sentido: isto
equivale a ser vencido no processo. O comportamento empírico de partes em conflito será
o de chamar a si o ônus da prova − ainda que para afirmar que ele caberia na verdade ao
adversário. Todos o reivindicam, e todos falam.
Nesse momento, o editor normativo virtualmente
desaparece − até por ser o único que decididamente nada tem a provar − e o seu papel
unificador deixa de se fazer sentir. A norma passa a ser um dado do passado, e a
oficialização de uma das suas interpretações possíveis, um resultado futuro. Emerge uma
descontinuidade tendente ao infinito, semelhante ao vão que os eleatas enxergam no que
interpretamos como o movimento da flecha ao alvo, ou de Aquiles à linha de chegada de
uma corrida em que não largou na frente. O segmento de reta que parece ser um caminho
tranqüilo se exibe como a sucessão de um sem-número de pontos em que pode estar o
endereço de uma correta interpretação da norma; e esta, como resultado, deixa de servir a
um único sentido ou senhor para fazê-lo a uma desconcertante pluralidade deles. Em dada
medida, o presente da norma é sempre um interregnum: no momento em que não se
80
discute o seu significado, também não se nota a sua existência – o que tanto pode significar
sua aceitação plena quanto seu completo desuso.
Ferraz Jr. compara a atividade que então se desencadeia
a uma série de operações de tradução da norma em estado bruto, dominada pelo conectivo
dever-ser, para a linguagem cotidiana, dominada pelo conectivo ser. Premidos pela
necessidade de oferecer soluções que façam sentido, os juristas dialogam com as normas de
um modo peculiar, que termina por se constituir como uma língua intermediária, falada por
todos eles – e dominada pela figura de um legislador racional, concebido como o centro de
origem de todas as normas. Mas quem seria esse legislador, e como se opera a tradução?
V −−−− O LEGISLADOR RACIONAL
É no século XIX, de acordo com Ferraz Jr., que a
interpretação da lei aparece como problema teórico para os juristas, exigindo reflexão sobre
o que ela é e qual o seu fundamento – e não apenas sobre como proceder a ela.33
Tal percepção tem como pano de fundo o advento das
grandes codificações do direito, por meio das quais não apenas se atendia à reivindicação
81
iluminista e jusnaturalista de adequação ao modelo de um direito racional e universalmente
válido dos variados e, na dicção de Guido Fassò, “tutt’altro che perfetti” ordenamentos
jurídicos vigentes, como também se reduzia a pluralidade deles a uma única e mais
abrangente estrutura – em mais uma etapa da vitória dos Estados Nacionais sobre os corpos
intermediários cujas jurisdições antes puderam disputar o mando sobre súditos ou
cidadãos.34
Fassò sublinha contudo o peso, no desencadear das
codificações, do que qualifica como a crise do direito comum justinianeu, correspondente à
grande incerteza decorrente de o longevo núcleo do direito comum haver se mesclado, em
sua secular existência, e em inúmeras variantes locais, a uma multifária massa de
comentários e decisões tidas como fonte de direito, assim como a fragmentos de direito
canônico, direitos nacionais, feudais, municipais, corporativos e costumeiros. Seguindo
literalmente a idéia agostiniana do direito romano como ratio scripta, os juristas
procuraram transfigurá-lo em direito natural, “conferindo-lhe aquela intrínseca logicidade
e aquela racional sistematicidade que se distinguia neste último.”35 Paralelamente, com a
82
positivição desse direito natural, surgia a tendência a tê-lo, pela própria naturalidade, em
conta de absoluto. 36
As codificações favorecem a idéia jusnaturalista de
sistematicidade – que levava, segundo Ferraz Jr., a considerar a interpretação como o ato
de “inserir a norma em discussão na totalidade do sistema”37 –, mas não eliminam a
questão de definir o modo de relação existente entre as partes e o todo, vale dizer, definir
se o sistema seria a pura combinação de partes cuja unidade poderia ser traçada, sem mais,
do princípio da não-contradição (modelo mecânico) ou se encerraria algo mais do que a
soma delas, encontrando-se sua unidade nesse plus (modelo orgânico).38
O primeiro grande teórico da interpretação, Savigny,
passa de uma posição a outra: preocupado inicialmente em encontrar as técnicas
necessárias para mostrar aquilo que a lei diz, ou, como sublinha Ferraz Jr., atento
essencialmente ao significado textual das leis, a ser alcançado por meio de investigações
gramaticais (voltadas ao sentido vocabular da lei), lógicas (referentes a seu sentido
proposicional), sistemáticas (sentido global ou estrutural) e históricas (sentido genético),39
83
ele passa a valorizar, em sua obra posterior a 1814, “institutos de direito,” que seriam a
expressão de “relações vitais” entretecidas no campo jurídico e expressivas do Volksgeist,
o “espírito do povo” – que se torna o “elemento primordial para a interpretação das
normas.”40
A partir dessa mudança de posição se processa um
efeito inesperado da racionalização iluminista da produção de normas: os juristas tomam
consciência de que a sua atividade encerra a possibilidade de, no campo processual,
constituir um augere em relação ao texto da lei.
Parte deles rejeita essa possibilidade, procurando
manter estrita obediência ao sentido da lei em sua origem (ex tunc), determinado pelo que
figuram como a voluntas do legislador histórico (voluntas legislatoris); Ferraz Jr. reúne as
várias escolas que partilham dessa opinião na classe dos subjetivistas. Outros, os
objetivistas, referem esse augere a um valor ínsito ao próprio texto legal, e relativamente
independente do legislador histórico: uma voluntas legis, capaz de assimilar as
circunstâncias do tempo presente e estabelecer o sentido da lei doravante (ex nunc).41
84
O campo de provas dessas teses é apenas sinalizado
pela doutrina e pela jurisprudência, em que se documentam as elaborações mais
sofisticadas de teses subjetivistas e objetivistas. Nos inúmeros embates entre elas, dos
quais podemos apontar como exemplo as demandas referentes à responsabilidade civil no
final do século XIX, não apenas se experimentam significados e soluções novas para as
questões concretamente examinadas, num processo rememorado positivamente pelo
Josserand de A evolução da responsabilidade civil, e negativamente pelo Ripert de Le
régime démocratique et le droit civil moderne;42 mas em termos de método se vai além.
Nessa série de confrontos, percebe-se que a adoção dos
postulados subjetivistas implica reduzir o âmbito de ação dos intérpretes e dos magistrados
– o poder en quelque façon nulle –, e fortalecer o eixo determinado pelo que, com apoio na
leitura que Montesquieu empreende da constituição inglesa, os juristas identificam como
instância de origem das leis: o legislador. Os ganhos em segurança jurídica não bastam
entretanto para que se predique a racionalidade desse legislador, em cuja composição
ingressam as diversas legislaturas históricas e seus variados e nem sempre manifestos
pendores ao deliberar sobre um dado tema. A fidelidade ao que se pudesse proclamar como
85
a vontade histórica na origem de cada lei resultaria em uma busca de singularidades de
harmonização improvável, em prejuízo da sistematicidade ou mesmo da coerência do todo
– delineando-se um legislador antes caprichoso do que racional. De outra parte, os
horizontes desse ente seriam necessariamente mais estreitos do que os de seus
contemporâneos, que passam a viver sob a lei concebida apenas idealmente; e esse
problema se acentua em relação às pessoas de época posterior, para as quais a lei e as suas
intenções de origem podem soar como anacrônicas, inadequadas ou mesmo profundamente
injustas.
Nota-se em contrapartida que, pelas premissas
objetivistas, o âmbito de ação dos intérpretes se amplia ao máximo – Ferraz Jr. fala
mesmo em um certo anarquismo43 –, e que a racionalidade, no sentido de adequação de
meios a fins, se desequilibra em favor destes, com prejuízo da própria inteligibilidade (e
possibilidade de predicação de legitimidade) da escolha daqueles. Sem limites nesse
âmbito, ao legislador se substituem, sob a capa da voluntas legis, as vontades de seus
plúrimos intérpretes, a massa imprecisa e fragmentada de vários propósitos aos quais estes
querem atender e a impossibilidade de diálogo entre posições às quais se chega por vias
86
heterogêneas e arbitrariamente eleitas. Nesse cenário, o que se torna algo caprichoso não é
o legislador, mas sim a própria racionalidade.
O debate jurídico, no entanto, flui; o augere se instala, e
é assimilado. A idéia de tradução quer dar conta daquilo que permite esse resultado; e o faz
pela demarcação de um campo em que julgamento e reconhecimento se manifestam – isto
é, em que a auctoritas encontra espaço. Onde, contudo, se situa esse campo?
VI −−−− A INTERPRETAÇÃO JURÍDICA COMO TRADUÇÃO.
Ferraz Jr. nota que as traduções acontecem, e não se
processam nem por meio de uma comparação entre a língua, a realidade e a outra língua –
pressuposto de um naturalismo ao qual se assemelha a posição objetivista, que crê na
possibilidade de se chegar sem a língua (ou meios sobre cujo uso há consenso) a uma
realidade a que todos tenham imediato acesso e que possam portanto traduzir, em seus
variados idiomas, de igual maneira –, nem por meio da substituição dessa realidade por
idéias – postulado que implica o acesso extra-lingüístico ao pensamento não articulado,
87
necessário para se identificar a voluntas legislatoris em locus distinto dos próprios atos
lingüísticos que a expressam.44
De acordo com Ferraz Jr., a passagem de uma língua
para outra envolve uma comparação das respectivas estruturas, formadas por regras
básicas, cuja inobservância resulta em sentenças desprovidas de sentido, e por regras
secundárias, voltadas a evitar a produção de ambigüidades. A tradução é simples se as
regras básicas de duas línguas são semelhantes; mas há casos em que elas não coincidem, e
neles se torna necessária, para a tradução, a criação de uma terceira língua – que contenha
em suas regras secundárias as regras básicas das outras duas.
A criação dessa língua intermediária e o manejo das
línguas de origem e de destino requer no entanto a intervenção de um tradutor, e o
adiantamento a este de um crédito de confiança – autoridade-axioma – por parte dos
destinatários de seu trabalho. Pode-se pensar aqui na sua escolha como algo análogo à
investidura em um mandato, em termos de representação política, e examinaremos esse
tema em pormenor no próximo capítulo; mas trata-se de um mandato que, como na
88
metáfora do drama, não se prende exclusivamente às inclinações do representado, mas
também − ou essencialmente − à manutenção de um espaço comum de operações
discursivas.
A competência desse tradutor se afirma como
habilidade de manipular o espaço de comunicação segundo três vetores: uma reta traçada
na horizontal divide-o em alto e baixo, sinalizando hierarquia, e por meio dela se almeja a
neutralização dos comunicadores, assim como a imposição como absolutos de sentidos
determinados conjunturalmente. Uma linha vertical delimita os campos dentro e fora, ou
critérios de participação, e com ela se quer neutralizar terceiros, induzindo-se à suposição
de uma tácita e consensual aprovação ao trabalho do tradutor. E uma linha diagonal cinde o
espaço em claro e escuro, relevante e irrelevante, voltando-se aos próprios símbolos e aos
sentidos que deles se possam extrair.
Ferraz Jr. não nos ilude acerca da natureza do processo:
trata-se aqui de um exercício de violência simbólica, ou do poder de imposição de
significações como legítimas, dissimulando-se as relações de força que estão no
89
fundamento da própria força; no entanto, afora pela expressiva limitação decorrente do fato
de que o tradutor não escolhe nem cria o espaço de comunicação – em que é apenas e
condicionalmente aceito – o perfil de sua ação não se reconduz ao paradigma potestativo.
Isto porque o crédito que lhe foi adiantado não é uma
garantia do êxito de sua interpretação, que se orienta e se mede pelo papel que ela
desempenhe na construção e manutenção de um espaço discursivo para a apreciação, ainda
que conflitiva, da quæstio. A verticalidade ainda presente na violência simbólica é por isso
medida, e vinculada ao estabelecimento da horizontalidade que possibilita a comparação
das várias interpretações propostas: o tradutor nunca é o único tradutor, e não se firmará
entre os seus concorrentes se sua palavra for por eles desqualificada como expressão
violenta de um idioma estranho ou de um interesse particular desmedido.
O êxito na tradução pressupõe dessa forma um grau
objetivo de desprendimento: o tradutor tem de se deixar envolver pelos traços do objeto,
que, não sem o afastarem do que até então era seu conjunto de saberes estabelecidos,
preparam-no para comunicar aos demais envolvidos no processo um sentido – ou um valor
90
– ao qual estes também podem aceder, e que ao menos não podem desconsiderar. Sua
tradução tem de se pautar, dessa forma, por regras de que os demais tradutores não podem
prescindir; e regras que haveriam de ser observadas se as normas jurídicas proviessem
todas de um legislador plenamente racional.
Na figura deste legislador racional está o duplo positivo
das críticas que objetivistas dirigiram a subjetivistas e daquelas dirigidas por estes aos
primeiros: de acordo com Ferraz Jr., ele é concebido como uma pessoa singular, a
despeito da multiplicidade de instâncias envolvidas na atividade legislativa; permanente,
sobrevivendo aos parlamentares que votaram a norma dada a interpretar; único, e autor de
todas as normas do ordenamento; consciente, tendo presente o teor e o alcance de cada uma
delas; finalista, dirigindo todos os seus atos a algum propósito; onisciente, possuindo o
domínio de todos os fatos no presente, no passado e no futuro; onipotente, por fazer suas
normas valerem até que as revogue; justo, e jamais inclinado à prática de injustiças;
coerente, mesmo que pareça se contradizer; onicompreensivo, por haver disciplinado todas
as situações da vida com o seu ordenamento; econômico, no sentido de jamais incorrer em
91
redundância; operativo, impondo utilidade a todas as palavras de que se vale; e preciso, por
trabalhar as palavras da linguagem natural em sentido rigorosamente técnico.45
Essas “propriedades” do legislador racional não são
fragmentos de uma teoria rígida e sistematizada, mas tópicos, pontos de vista de uma
experiência jurídica que os debates entre subjetivistas e objetivistas alimentaram,
decantados ao longo do tempo como perguntas a que as normas editadas pelos sucessivos
legisladores reais tiveram de responder para que o respectivo sentido pudesse ser
decodificado. No contexto da tradução, essas questões já destacadas do âmbito de origem
atuam como índices de como proceder ou argumentar em novas discussões, vale dizer,
como regras de desambiguação, que atraem o que na origem era axiomatizado e lhe
emprestam maleabilidade. O trabalho do tradutor se mede com a estrutura de questões
postas pelos topoi e, nesse confronto, torna-se também mensurável, ou seja, passível de
comparação com outros esforços de tradução; os quais, por seu turno, não podem deixar de
ser considerados como empenhos de várias auctoritates, na medida em que operam sobre a
mesma base lingüística.
92
A língua hermenêutica se constitui assim como
caminho para a tradução do modo imperativo da língua normativa, marcada pelo conectivo
dever-ser, para o modo indicativo da língua da realidade, dominada pelo conectivo ser; e o
faz por meio da constituição de um modo que poderíamos chamar de subjuntivo ou
condicional, estruturado em torno de um dever-ser ideal – ao qual remetem frases como
“se o legislador quisesse dizer... teria usado a palavra...”. Esse legislador não é nem o
julgador nem o legislador real, nem muito menos cada tradutor em particular, mas uma
construção que instaura a possibilidade de se fundamentar a atribuição de sentido à
norma: é por referência às premissas e possibilidades codificadas nessa figura que as
traduções podem ser comparadas, ou seja, que os tradutores podem julgar a medida em
que cada um deles se desincumbiu do ônus da prova relativo ao sentido da norma.
VII −−−− A INTERPRETAÇÃO JURÍDICA VISTA PELA METÁFORA DO DRAMA
O caráter dramático da interpretação jurídica como
tradução é análogo àquele que os representantes políticos enfrentam na sociedade
polarizada descrita por Cicero Araujo: nos dois casos, o mandatário tem de guardar
fidelidade à posição ou grupo que representa, e simultaneamente às necessidades da
93
manutenção do espaço em que a representação se exerce. E se por essa necessidade o
mandatário político tem de atuar ao lado de seus competidores, o intérprete jurídico tem de
operar dentro dos limites da língua hermenêutica, respondendo às exigências de
racionalidade que a constituem e que serão cobradas pelos demais intérpretes.
Uma antiga e pouco explorada intuição de Maurice
Hauriou sobre o sentido institucional da norma jurídica46 parece-nos restar mais clara à luz
do sentido dramático da interpretação: a discussão do sentido de algo que se qualifica como
norma implica uma medida de efetivo reconhecimento de sua existência, do sistema
político do qual ela provém e dos demais interlocutores do sistema jurídico em que a
discussão se processa. O mergulho no antagonismo por conseguinte produz o assentimento
à vigência desse ordenamento, e o fortalece.
A norma se descortina portanto como um cenário para
a ação de seus intérpretes; cada tradução é uma atualização de seu sentido, e nesse aspecto
pode-se dizer que todas são operações de fundação, ou de augere. No entanto, a definição
das possíveis interpretações em face de exigências comuns sintetizadas na figura do
94
legislador racional remete essa fundação ao passado, evitando que possa ser apropriada
pelos participantes do debate jurídico − que, tal como o jurista romano que se referia às
auctoritates do passado, sabem que atuam em confiança, como tradutores, e não
proprietários do sentido da norma.
A tradução não é portanto um fazer, mas um palco da
ação: porque se vêem uns aos outros, e são vistos pelos que lhes dão crédito, os juristas
não dispõem do teor verbal da norma, nem do desembaraço em relação a meios de tratá-la
que Hannah Arendt identifica como o traço platônico das idéias de fundação de Maquiavel
e de Robespierre.47 E por isso o manejo da linguagem incompatível com as premissas de
racionalidade do legislador – que são premissas de continuidade da comunicação – se dá a
perceber como ruptura desta, e é descartado como abusivo, ou, como observa Ferraz Jr. em
suas reflexões sobre a justiça, revogado pelos demais participantes do drama.48
A figura do legislador racional, dessa maneira, não
apenas permite a comparação entre as várias interpretações, como também instaura,
enquanto lingua franca, uma medida em que as várias possibilidades hermenêuticas se
95
tornam comutativas, articulando-se como alternativas aptas a preencher o locus que
disputam na estrutura do sistema, sem prejuízo de sua unidade. E essa equivalência
funcional permite que as várias interpretações surgidas no silêncio do editor normativo
coexistam − sem que o sistema exija peremptoriamente, pela adoção de uma em um dado
momento, a exclusão das demais.
Isto permite que, na qualidade de exercícios
reconhecidos de uma competência comum, votos vencidos, pareceres não seguidos e
opiniões doutrinárias inautênticas se desprendam dos casos concretos em que não são
adotados e formem uma literatura crítica, que mantém aceso o questionamento da solução
em um determinado momento majoritária. O repertório normativo se enriquece de uma
memória da qual poderá lançar mão em momentos nos quais a dramaticidade da vida
social exija a recalibração das posições dominantes.
A formulação e conservação dessas alternativas se
comunica ao próprio campo político, na medida em que a obrigatória fundamentação da
recusa de uma dada interpretação marca os pontos de apoio normativos da solução
96
vitoriosa e as deficiências de imunização das outras interpretações − e assim sinaliza estas
e aqueles como possíveis objetivos programáticos de movimentos dirigidos a mudar a
configuração legislativa. A representação política encontra na interpretação jurídica um dos
meios para se deixar canalizar pelas formas institucionais do sistema e para afastar o risco
de seu fracasso como representação, voltando-se à normatização e sublimando, por esse
meio, a possibilidade de se trilhar o caminho em cujo horizonte último paira a figura do
derramamento de sangue.
Mas é do próprio campo jurídico que o drama
hermenêutico pode operar com êxito sobre o exterior. Cada interpretação se posiciona
perante as outras como resposta, e a questão à qual faz face não se resume à simples
exigência de que o seu sentido se mostre como o que estipularia o legislador racional (uma
vez que as outras respostas também são selecionadas por esta premissa), mas antes abrange
as interpelações dirigidas pelo conjunto das interpretações rivais − que exigem respostas
suficientes para os argumentos com os quais pretendem se firmar como o sentido da norma.
97
As exigências do discurso fundamentante inscrevem
essas outras possíveis respostas na própria estrutura daquela que se adota: se a imunização
é o processo pela qual os ataques dessas respostas são rechaçados, ela não se faz senão
porque tais ataques são desferidos, e na medida em que o são. O modo caracteristicamente
jurídico de afirmação de algo importa sempre a negação das possibilidades contrárias; e
todas estas por isso se introjetam, em forma negativa, nas decisões em que são recusadas.
A norma que se dá a compreender e aplicar
juridicamente não se desvincula portanto do momento forense em que seus significados se
defrontam, mas antes se dá a compreender e aplicar juridicamente por manter preservada a
pluralidade dramática desse momento. O sistema jurídico tenderia a se descaracterizar
como tal se pudesse prescindir dessa abertura − ou se, nos termos de Tercio Sampaio
Ferraz Jr., experimentasse um desvio no sentido de axiomatização de seus dogmas, e
procurasse excluir da cena hermenêutica as possibilidades que suas próprias respostas
conservam.
98
A despeito, pois, de o debate entre os vários tradutores
de sentido da norma se desencadear na perspectiva de um ato de poder, ele se inscreve em
um plano de horizontalidade: a defesa de cada posição implica, simultaneamente à
assunção dos traços do legislador racional, o reconhecimento das outras como possíveis
traduções – e a demonstração (dever de prova) de que não são respostas tão boas como
aquela que se defende. O que o legislador racional comunica aos debatedores não é
portanto o poder de impor a vontade de cada qual, mas auctoritas, relacionada à
capacidade de ouvir o que o outro (ou todos os outros) tem (ou têm) a dizer, de apreciar
tais falas e de situá-las numa escala de valores comunicável não apenas aos que tomam a
palavra – mas também àqueles em nome dos quais se fala. A auctoritas, aqui, não é nada
menos do que a possibilidade de estabelecer um diálogo partidarizado sobre a norma, ou
seja, de situá-la no centro de um drama cujos atores se mantêm não apenas na cena civil –
mas em seu ato jurídico.
***
NOTAS:
1 Norberto Bobbio. Direito e Poder, 2008, p. 170.
99
2 Jorge Miranda. Teoria do Estado e da Constituição, 2002, p. 19.
3 Na Europa moderna que era “um mosaico de leis, de jurisdições e de procedimentos judiciários para a
solução de conflitos de propriedade e para as transações cotidianas” (“a mosaic of laws, jurisdictions and
judicial procedures for the settlement of disputes about property and the transactions of everyday living”), o
componente legal em sentido próprio poderia ser pequeno, e o sentido mesmo de lei algo dúbio; mas ao ver
do autor, constituiu o mais familiar padrão em cujos termos as relações entre os habitantes dessa Europa se
articulavam. Michael Oakeshott. On human conduct, 1975, p. 187.
4 “The emergence of a state was, in one important respect, the legal integration of the inhabitants of its
territory and the transformation, by recognition and destruction, of local law and local courts into the law and
the courts of a state.” Ibid., mesma página.
5 Bobbio, Direito e poder, cit., pp. 190/191.
6 Cicero Araujo. Representação, retrato e drama. In: Lua Nova, nº 67, 2006, pp. 227/260.
7 Nadia Urbinati. Representative democracy, 2006, p. 227.
8 Ibid., mesma página.
9 Hans Kelsen. Teoria Pura do Direito, 1984, pp. 463/473.
10 Ferraz Jr., Introdução, cit., pp. 257/259
11 Andrei Marmor, Três conceitos de objetividade. In:Andrei Marmor (org.), Direito e Interpretação,
2004, pp. 267-302.
12 Com a ressalva de condutas determinadas em normas jurídicas como pressuposto ou conseqüência e de
relações inter-humanas enquanto relações jurídicas, ou “relações que são constituídas através de normas
jurídicas.” Kelsen, Teoria pura, cit., p. 109.
13 Jean Ladrière, A articulação do sentido, 1977, p. 67 e ss. Em outros termos, pode-se dizer que sentido é
um conceito pragmático: um sentido-para-que a proposição seja verificada pelo observador.
100
14 Kelsen, Teoria pura, cit., p. 472.
15 Nessa apresentação esquemática, aproximamo-nos da exposição de Tercio Sampaio Ferraz Junior sobre o
uso competente da língua e a organização do espaço de comunicação (Introdução, cit., pp. 270/274). O
mapeamento em questão também encerraria um corte diagonal, dado pelo aspecto de relevância, em função
do qual permaneceriam em relativo esquecimento os dispositivos legais que não chegam a ser objeto de
controvérsia e as interpretações que os Tribunais já houvessem desconsiderado ou não se mostrassem
inclinados a encampar.
16 Cicero Araujo, Representação, cit., p. 236.
17 Ibid., p. 238.
18 Ibid., pp. 239/240.
19 Cf. Bobbio, Direito e poder, cit., pp. 164/165.
20 Compare-se com a idéia do corpo político do Rei, em oposição a seu corpo natural, examinada no clássico
de Ernst Kantorowicz, Os dois corpos do rei, 1998.
21 Kelsen, Teoria Pura, cit., p. 30.
22 Cicero Araujo, Representação, cit., pp. 241/242.
23 Referimo-nos aqui simplesmente às inflexões de linguagem que deve sofrer um discurso sobre, digamos, a
propriedade, se ele se processa uma esfera na qual se torna possível condicionar o que o particular
experimenta (no exemplo, como um poder sobre coisas) ao desempenho de uma função social. É possível
tratar essa idéia de forma a que se chegue a algo tão amplo quanto as exigências da Razão Pública de John
Rawls (cf. O liberalismo político, 1993, pp. 261/306), mas esse não é o escopo de nosso trabalho.
24 O texto clássico a respeito é o exame da constituição política romana efetuado por Políbio. Cf. História,
1996, pp. 325/349.
25 Cicero Araujo, Representação, cit., pp. 242/243.
101
26 Ibid., p. 246.
27 Ibid., pp. 248/249.
28 Ibid., pp. 257/259.
29 Efetuamos aqui uma apresentação brevíssima dos conceitos centrais da primeira parte de Direito, retórica
e comunicação, 1997, pp. 03/53, e do primeiro capítulo e parte do segundo de Teoria da norma jurídica, cit.,
pp. 01/47, sem pretensões maiores do que a de situar a problemática da interpretação na obra de Tercio
Sampaio Ferraz Junior.
30 Modalidade à qual já nos remetemos ao tratar dos juristas romanos (cf. cap. I, nota 59; Ferraz Jr., Teoria
da norma, cit., p. 17).
31 Ferraz Jr., Direito, retórica e comunicação, cit., p. 30
32 Tal regra “é vista como o centro lógico e ético da discussão racional. Lógico, porque, sem ela, não há
fundamentação, nem ordem nos fundamentos. Ético, porque a racionalidade é também uma exigência de
racionalidade.” Ferraz Jr., Teoria da norma, cit., p. 18.
33 Ferraz Jr., Introdução, cit., p. 261.
34 Guido Fassò. La filosofia del diritto dell’otocento e del novecento, 1994, pp.16/18. Isaiah Berlin nota que
as doutrinas centrais dos iluministas franceses fundavam-se na “crença, arraigada na antiga doutrina da lei
natural, de que a natureza humana era fundamentalmente a mesma em todos os tempos e lugares; de que as
variações locais e históricas não tinham importância em comparação com o núcleo central constante em
função do qual os seres humanos podiam ser definidos como uma espécie, assim como os animais, as plantas
ou os minerais; de que havia metas humanas universais; de que uma estrutura logicamente conectada de leis e
generalizações suscetíveis de demonstração e verificação podia ser construída e substituir o amálgama caótico
de ignorância, preguiça mental, conjecturas, superstição, preconceito, dogmas, fantasias e, acima de tudo, o
‘erro interessado’ sustentado pelos governantes da humanidade e responsável em grande parte pelos
102
disparates, vícios e desgraças da humanidade.” E sublinha que os iluministas preconizavam o uso de
“métodos semelhantes aos da física de Newton” nos domínios “da ética, da política e das relações humanas
em geral”, apesar do pouco progresso até então obtido nessa seara, “com o corolário de que, uma vez
efetuado, esse passo eliminaria os sistemas legais e as políticas econômicas irracionais e opressivas, e sua
substituição pelo domínio da razão salvaria os homens da injustiça e desgraça política e moral colocando-os
no caminho da sabedoria, felicidade e virtude” (Isaiah Berlin. O Contra-Iluminismo. In: Isaiah Berlin.
Estudos sobre a humanidade, 2002, pp. 273-298; aqui, pp. 273/274, grifo nosso).
35 “Di qui la tendenza, che se riscontra frequentemente tra il Sed ed il Setecento, a transfigurare il diritto
romano in diritto naturale, conferendogli quell’intrinseca logicità e quella racionale sistematicità che si
scorgevano in quest’ultimo.” Ibid, p. 18.
36 Ibid., mesma página. Cf. tb Wieacker, que ao comentar a importância da Escola Histórica, refere-se a um
cisma profundo da jurisprudência, entre um usus modernus tardio, “que mesmo nas realizações brilhantes dos
dogmáticos franceses Domat e Pothier, nunca tinha conseguido reconduzir os conteúdos da tradição do
direito comum a princípios gerais” e, em contraposição, “uma legislação absolutista e revolucionária que,
com todos os seus méritos, tinha, no entanto, tornado iminente a asfixia do espírito vivo da ciência jurídica”
(História do direito privado moderno, cit., p. 429)
37 Ferraz Jr., Introdução, cit., p. 261.
38 Ibid., mesma página.
39 A respeito das inflexões do pensamento de Savigny, veja-se também Arthur Kauffman, A problemática
da filosofia do direito ao longo da história, in: Arthur Kaufmann; Winfried Hassemer (orgs.), Introdução
à filosofia do direito e à teoria do direito contemporâneas, 2002, pp. 56-208 (especialmente p. 165).
103
40 Ibid., p. 262. A concepção de espírito do povo de Savigny, de acordo com Wieacker, não tem entretanto
conotações biológicas ou sociais, prendendo-se antes a uma idéia de tradição espiritual, cultural ou mesmo
literária. Cf. História do direito privado moderno, cit., p. 439.
41 Ferraz Jr., Introdução, cit., pp. 262/263.
42 Louis Josserand, La evolución de la responsabilidad. In: Louis Josserand. Del abuso de derecho y otros
ensayos, 1999, pp. 59-87; Georges Ripert Le régime démocratique et le droit civil moderne, 1936 (cf.
especialmente o subtítulo de la responsabilité à la réparation, pp. 329/371)
43 Ferraz Jr., Introdução, cit., p. 264.
44 Ibid., pp. 264/268.
45 Ibid., pp. 276/277.
46 Maurice Hauriou. La teoria de la institución y de la fundación − ensaio de vitalismo social, 1968, p. 40.
47 Arendt, Entre o passado e o futuro, cit., p. 184.
48 Tercio Sampaio Ferraz Jr.. Estudos de filosofia do direito, 2002, pp. 263/270.
104
CAPÍTULO III −−−− DISCURSO NORMATIVO E REPRESENTAÇÃO
I −−−− REPRESENTAÇÃO DE INTERESSES E REPRESENTAÇÃO POLÍTICA
A partir da figura do legislador racional estrutura-se
uma comunidade lingüística entre os juristas, que se acham obrigados a considerar o que
cada um deles diz aos outros: o alheamento a algo vertido na língua comum, isto é,
apresentado como uma possível manifestação do legislador racional, implica negar
relevância ao suporte de inteligibilidade do próprio ato em que se consuma, e manifesta-se
como um sem-sentido que afasta da comunicação (ou revoga) não a fala ignorada – mas a
do comunicador que a ignorou.
O risco de cair numa tal situação implica a abertura dos
falantes ao conteúdo do que todos os outros têm a dizer, sintonizando-se cada qual
inclusive com aqueles com os quais não tem contatos diretos. Ao contrário dos atores do
cenário político, os juristas são por isso obrigados a acompanhar as discussões doutrinárias
e a jurisprudência com a mesma atenção destinada às inovações legislativas. E se há pouco
105
pudemos mencionar a inclusão do que não se torna normativo em uma literatura crítica,
aqui há de se notar o contrário: exige-se essa abertura ao que os outros dizem mesmo do
pólo normativo da comunicação – de que podemos tomar como figura icônica, por ora, o
juiz.
Essa abertura permite que examinemos o crédito que se
concede aos detentores da competência lingüística comum para a interpretação das normas
como efetivamente correspondente a um mandato, de estrutura dúplice, tal como no âmbito
político: a comunicação jurídica, pensada como drama, envolve tanto a veiculação e
ponderação de interesses substantivos quanto concessões destinadas à manutenção do
espaço de diálogo comum. E para compreendermos a dinâmica desse processo, temos de
nos debruçar de modo mais detalhado sobre a representação política, visando a precisar, de
um lado, como se desenrola em seu âmbito a relação entre interesses particulares ou de
grupo e o interesse geral; e de outro, que papel se reserva aos representados no processo de
representação.
106
Tomamos como ponto de partida o estudo de Norberto
Bobbio sobre a representação, incluído em sua Teoria Geral da Política. Bobbio situa o
tema num contexto de ampliação da esfera política, e conseqüente despotencialização da
soberania do Estado: conceitualmente, esta corresponde à prerrogativa de tomar, em
caráter de exclusividade, decisões que vinculam a todos, e à posse de meios de as impor em
um dado território; mas nos últimos decênios, sua abrangência tem recuado perante
“uma crescente extensão, e expansão, da produção jurídica em
forma de acordos entre os grandes grupos de interesse no interior
do Estado e entre esses grupos e o Estado, considerado por esses
grandes grupos, que cresceram na sociedade civil e agora estendem
suas ramificações para fora do Estado, como um parceiro.”1
Depois de acentuar esse crescimento do peso dos
interesses particulares, Bobbio sublinha que, no verbo representar, convivem dois sentidos
para os quais a língua italiana reserva formas substantivas distintas: rappresentanza,
quando se trata de agir em nome e por conta de outrem; e rappresentazione, se o que se
quer exprimir é a idéia de reproduzir, espelhar ou refletir aquilo que se representa. Para
ilustrar a diferença entre eles, Bobbio nota que ambos informam a idéia de democracia
107
representativa, em que o adjetivo se remete tanto ao fato de que há órgãos que tomam
decisões em nome da coletividade como ao espelhamento dos diversos interesses e grupos
da sociedade civil na composição desses órgãos; ao passo que na idéia de democracia
direta, a representação no segundo sentido torna-se menos provável, já que nesse regime a
deliberação sempre se dá sobre quesitos propostos em termos alternativos, ante os quais se
torna “impossível ou menos provável o espelhamento [la rappresentazione] da sociedade.
Nesse ponto, Bobbio divisa um paradoxo da democracia direta, que se mostra menos
representativa do que a democracia indireta quando se toma representação no sentido de
espelhamento.2
Contrapondo representação de interesses e
representação política, Bobbio assinala que esta passa de rappresentazione a
rappresentanza quando se segue do mandato vinculado ao mandato livre; e que aquela
segue percurso análogo quando se deixa a representação de cada um dos interesses
organizados e se alcança uma representação de todos os interesses, inclusive os
desorganizados. Podemos dispor esses resultados em uma tabela, em cuja linha superior,
108
lida da esquerda para a direita, se localiza o ideal a ser atingido nessa concepção de
representação:
Representação de interesses Representação política
Rappresentanza Agir em nome de outrem
Representação de todos os interesses, organizados ou não
Mandato livre
Rappresentazione Espelhamento
Representação de cada um dos interesses organizados
Mandato vinculado
Bobbio aproxima sem dificuldades o topo das duas
colunas, afirmando que a representação política não deixa de ser uma representação de
interesses, cujo diferencial está em dizerem respeito a toda a sociedade, ao invés de se
cingirem à particularidade de um ou mais grupos (compreendendo ainda os interesses
dispersos e os das gerações futuras). Embora nessa passagem resida a diferença que
Rousseau estabelece entre a vontade de todos e a vontade geral, a atenção de Bobbio
situa-se antes no movimento vertical, e na espécie de mandato necessário para que os
interesses gerais possam encontrar expressão; e assim ele considera que os representantes
apenas poderão exprimir mais do que interesses particulares se desfrutarem de liberdade
109
em relação a seus eleitores, desatando-se de instruções que houvessem recebido ou
tivessem de procurar.3
A tradição a que Bobbio se alinha pode ser retraçada, e
Bernard Manin o faz, desde a origem da democracia representativa – cujos fundadores não
tinham em mente o restabelecimento da democracia antiga ou de uma variante sua, mas
antes a constituição de um regime absolutamente diverso daquela, e por isso superior.4
Manin refere-se textualmente a Madison, que argumentava que o povo reunido não teria a
capacidade de depurar e alargar o espírito público possuída por um corpo escolhido de
cidadãos, cujo preparo asseguraria melhor discernimento do verdadeiro interesse do país e
cuja medida superior de patriotismo e amor à justiça impediria sacrificar esse interesse a
considerações efêmeras e parciais;5 e a Sieyès, que, apelando a um tempo à necessidade de
divisão social do trabalho e à utilidade da especialização, defendia que os negócios
públicos fossem objeto de uma profissão particular, já que na moderna sociedade
comerciante a maior parte das pessoas se dedica a afazeres produtivos e não goza de tempo
ocioso bastante para cuidar satisfatoriamente daqueles.6
110
De acordo com Bobbio, são estas as duas linhas de
argumentação pelas quais os defensores do regime representativo, de todos os tempos,
preconizam o mandato livre: a incapacidade do povo, por falta de tempo para a aquisição
de conhecimentos específicos ou competência para discernir interesses gerais; e a sua
inclinação a privilegiar, em detrimento destes (e também dos interesses dispersos ou das
gerações futuras), interesses individuais, locais ou de grupo.7
Embora Rousseau não conceba a possibilidade de
representação ou delegação de vontades, é a sua idéia de vontade geral, à qual se chega pela
abstração dos interesses particulares, que informa essa concepção. Os defensores da
representação aspiram torná-la veículo de um ideal de imparcialidade – em nada estranho
àquele que se cobra na interpretação e aplicação do direito – a partir de cuja efetivação num
corpo de representantes seria possível captar o interesse geral e se pautar por ele. Essa
imparcialidade resulta de um distanciamento em relação ao social, suas facções e seus
interesses parciais, cuja presença no âmbito da representação levaria ao particularismo e à
ruína do bem comum.
111
Não obstante, a representação não se livra de vínculos
com os interesses dos representados, que se estabelecem tanto por meio dos partidos
políticos, sobre cuja ação Bobbio se debruça, como por meio do controle exercido pela
opinião pública, cujo sentido jurídico foi destacado por Jellinek.
II −−−− O RETORNO DOS INTERESSES
Jellinek concebe a representação como uma relação
orgânica, em que os representantes e o povo configuram uma única entidade. Os primeiros
formam o órgão secundário dessa unidade, incumbido de exprimir o que se deva ter como
a vontade do orgão primário, o povo; e esta não se dá a expressar senão por meio das
deliberações dos representantes.8
De acordo com Jellinek, os interesses diversos no seio
do órgão primário não se transferem automaticamente às deliberações do órgão secundário,
que normalmente resultam de negociações entre grupos nas quais o assentimento destes se
dá por motivos muito variados. Bem por isso, embora no estudo preparatório das decisões
haja espaço para a expressão de interesses sociais definidos, na deliberação existem apenas
112
a maioria e a minoria; e o que a primeira exprime não é nem a vontade da sociedade, nem a
soma da vontade de alguns de seus membros ou grupos, mas a vontade unívoca do povo, e
uma vontade que, embora nem sempre o faça, deve corresponder aos interesses comuns.9
Jellinek combate no entanto a tese de que o liame
jurídico entre o povo e o parlamento se estabeleceria apenas por meio da constituição, em
função da qual se deveria conceber a vontade dos representantes como a própria vontade
do povo (ou como a expressão da vontade geral); e argumenta que nessa concepção a
cidadania passa a ser atributo exclusivo dos membros do parlamento, e que o povo, como
temia Rousseau, de fato se torna escravo. Se esse fosse o caso, além do mais, não seria
possível explicar as grandes lutas do século XIX pela reforma política e expansão do
sufrágio, que não visavam apenas à mera participação eleitoral, mas à obtenção de peso,
através dos eleitos, na condução do Estado.10
Podemos dizer que a unidade entre o órgão secundário
e o órgão primário, em Jellinek, cinge-se ao plano da expressão: as deliberações do
primeiro manifestam a vontade do povo e o vinculam juridicamente, ou seja, são o
113
exercício da rappresentanza; mas não alcançam o plano do conteúdo, isto é, não subtraem
do povo enquanto órgão primário a prerrogativa da formulação dessa vontade – processo
no qual há espaço para a exposição de divergências entre grupos e para a discussão e
avaliação dos interesses peculiares a cada qual.11
E isso fica nítido no momento em que Jellinek atribui
feição jurídica às regras que estipulam a duração limitada e a necessidade de renovação de
mandatos, a extensão e organização do sufrágio e a eventual dissolução de parlamentos,
querendo assim expressar que tais disposições não apenas evitam a assimilação do povo
pelo órgão secundário como visam a promover a “dependência política permanente e
normal dos eleitos para com os eleitores,” inclusive pelo controle daqueles pela opinião
pública. A rappresentazione advém dessas regras, em que Jellinek vê a garantia de que “a
vontade de um parlamento que se houvesse desligado por inteiro do modo de pensar de um
povo não possa manter-se longo tempo fora da autoridade deste.” 12
Estendendo seu raciocínio, Jellinek ainda nota que as
regras que determinam no mais lato senso o método de composição e preenchimento de
114
cargos do parlamento (num rol em que podemos incluir aquelas que definem o papel dos
partidos, que seccionam geograficamente o eleitorado e estipulam a bancada de cada uma
de suas frações, ou que disciplinam a circulação de idéias, informações e dinheiro nas
campanhas eleitorais) têm como objeto último dar forma ao povo, enquanto órgão primário
do Estado. O povo não é a simples soma dos cidadãos, mas “uma unidade organizada para
a seleção de representantes.” Uma mesma população se articula como povo por meio das
regras que presidem essa relação, e cada mudança nessas regras define um modo distinto
de ser povo dessa única base populacional.
A alteração mais importante verificada no conjunto das
democracias representativas, na passagem do século XIX para o século XX, foi sem dúvida
a universalização do sufrágio; e o consectário imediato dessa mudança foi o crescimento do
peso dos partidos políticos – por meio dos quais os interesses particulares voltam
definitivamente à cena.
Norberto Bobbio assinala que hoje são os partidos, e
não os candidatos neles reunidos, os entes “que recebem dos eleitores aquela
115
‘autorização’ para agir, na qual Hobbes via a essência da representação política.”13 Por
meio deles, opera-se uma clivagem na relação entre os eleitores e os eleitos, que se
desdobra em uma relação entre o eleitorado e os partidos e em uma relação entre estes e os
representantes. O eleitorado situa-se portanto apenas na posição de autor, e os eleitos
aparecem somente como atores; ao passo que os partidos são atores em relação aos
eleitores, e autores em relação aos eleitos, vale dizer, grupos que agregam eleitores no
momento da eleição e que disciplinam os eleitos no curso dos respectivos mandatos.
Num e noutro campo, de acordo com Bobbio, o ideal
do mandato livre se compromete: a sujeição dos eleitos ao controle partidário restringe-lhes
a possibilidade de se pautarem por conclusões próprias acerca do que é o interesse geral; e
a capacidade de que os partidos dispõem para divisá-lo vê-se igualmente limitada pela
concorrência e multiplicação de agremiações, as quais, para ampliar sua fração de poder,
não podem deixar de se aproximar dos interesses e das reivindicações de eleitores ou
grupos cujos votos disputam.
116
Nesse quadro, dá-se o que Bobbio qualifica como “a
desforra da representação dos interesses sobre a representação política.” A figura do
mandato imperativo volta sorrateiramente à cena política, e se não tem a força de outras
épocas (até porque a bipartição do liame entre eleitores e eleitos permite falar apenas em
uma imperatividade indireta, e baseada antes em um julgamento dos partidos do que em
exigências imediatas dos eleitores), Bobbio nota que seu regresso enfraquece o apelo do
debate sobre instituições de representação por interesses: “a diferença, que durante séculos
foi decisiva, entre representação dos interesses particulares e representação política
tornou-se cada vez mais evanescente e menos visível.” 14
III −−−− A REPRESENTAÇÃO PENSADA A PARTIR DO ESTADO
Na classificação proposta por Nadia Urbinati Bobbio e
Jellinek poderiam ser grosso modo referidos, respectivamente, às teorias jurídica e
institucional da representação, fundadas ambas “numa analogia Estado-pessoa e numa
concepção voluntarista da soberania”15 – que no entanto os dois autores que analisamos
desenvolvem até o limite, divisando novamente o social e seus desejos, ou a população, no
limiar dos modelos que propõem.
117
O ponto central da teoria jurídica (em que Urbinati situa
Rousseau, Hobbes, Sieyès e Burke) não está nos termos em que seus próceres debatem a
liberdade dos mandatários no exercício da representação, mas sim no fato de que essa
discussão tem lugar dentro de “uma lógica individualista e não política, na medida em que
presume que o eleitor julga as qualidades pessoais de um candidato, antes de suas idéias
políticas e seus projetos.”16 Nesses parâmetros é que se torna possível pensar que a
liberdade do representante e a possibilidade de ele divisar interesses gerais e se orientar por
eles são grandezas que crescem em paralelo, em sentidos coincidentes (Bobbio) ou opostos
(Rousseau, Kelsen).
A maior parte desses autores considera a representação
uma necessidade, e não um processo em que se possa cobrar representatividade ou justiça:
se ao povo soberano não é dado fazer-se presente em cada deliberação (ou se, como postula
Madison, é de todo desejável que ele não o faça), seus representantes agem legitimados
pela incontornável (ou imprescindível) ausência de quem os escolheu. Na representação
assim concebida avulta o sentido de rappresentanza – e a descrição de Jellinek sobre o
processo deliberativo é nesse aspecto mais consentânea com seus pressupostos do que a de
118
Bobbio, pois a rappresentazione do parlamento, entendida como especularidade em relação
ao tecido social, não interfere no momento da escolha entre quesitos alternativos: tanto
quanto na democracia direta, nesse momento apenas se identificam maioria e minoria.
E a essa concepção de representação centrada no Estado
corresponde uma idéia de soberania como vontade – que o todo delega a uma de suas
partes, como teme Rousseau, ou que essa parte exprime em lugar do todo de uma forma
que este não poderia ou não saberia alcançar, como defendem Madison e Sieyès.17 A teoria
jurídica se prolonga assim em uma tecnologia de edificação de instituições (a technology of
institution-building),18 que, voltada a neutralizar a influência dos interesses particulares na
expressão da vontade geral, atinge o paroxismo em Carl Schmitt, e na solução extrema por
ele concebida como forma de chegar a esse objetivo:
“Durante a crise do parlamentarismo, no começo do século XX,
Carl Schmitt reviveu a função construtivista da representação
concebida por Hobbes e Sieyès e usou-a para fazer o ausente
presente, ou para reconstruir a unidade orgânica do volk acima do
pluralismo de interesses sociais (e contra ele) através da
personificação do soberano (no líder ou führer). Seu objetivo era o
de um Estado mais fortemente unido do que era possível através do
119
compromisso parlamentar entre interesses ou ‘governo por
discussão.’”19
Quanto à teoria institucional, Hanna Pitkin assinala
como sua especificidade o fato de tomar o grupo, e não o indivíduo, como ponto inicial da
reflexão, e de assim desenvolver a idéia da representação como uma relação orgânica.20
Urbinati observa que nem por isso tal teoria se afasta da premissa de que o Estado de
Direito, a igualdade perante a lei ou a organização impessoal do Estado dependem da
blindagem da esfera política aos interesses da esfera social: “as pessoas devem esconder
suas identidades concretas e sociais para fazer dos oficiais públicos agentes imparciais de
decisão.”21 É essa décalage entre o público e o privado (ou entre o cidadão e o homem)
que, a seu ver, informa a oposição que Carré de Malberg estabelece entre organização e
representação:
“O que se encontra no sistema chamado representativo não é um
sistema de representação da pessoa e da vontade da nação, senão
precisamente um sistema de organização da pessoa e da vontade
da nação.”22
120
Jellinek é um exemplo de que a clivagem em tela nem
sempre se efetua tão incisivamente, já que para ele as regras que transformam a população
em povo e disciplinam a renovação e o controle da legislatura têm o sentido último,
tornado jurídico, de assegurar que os mandatários se sujeitem à vontade dos eleitores. No
entanto, embora ele chegue a divisar o tema das relações entre interesses particulares e
representação, não o desenvolve, limitando-se às indicações pontuais de que aqueles pesam
antes da votação de projetos de lei, ou de que a legislatura que se desvie por completo das
exigências da opinião pública logo deixará de existir.
Tal se dá pelo fato de sua reflexão ter o Estado como
objeto privilegiado, admitindo o ingresso do social apenas em forma oblíqua, já depois de
sua formatação como povo, ou seja, em função de seu papel institucional de órgão primário
da formação da vontade estatal. É nesse sentido, e não no de uma assimilação, que se deve
compreender a assertiva de que o povo “tem sua própria vontade, no que respeita à
competência do órgão secundário, na vontade deste, e fora dela não conhece vontade
alguma.”23 Jelinek assinala afinal que o povo conserva o poder de “expressar de um modo
imediato sua vontade, enquanto esta seja uma faculdade especial que lhe compita.” 24 Mas
121
é apenas o que lhe resta no modelo: a população se torna visível quando, como povo, ou
seja, órgão, participa de eleições; e ou se exprime de forma imediata nesse momento, ou
desaparece do horizonte da teoria e do que esta delimita como âmbito de sua atenção.
Hannah Pitkin aponta que em um tal modelo
“A representação é um tipo de ‘caixa preta’ desenhada pela inicial
delegação de autoridade, dentro da qual o representante pode fazer
o que lhe aprouver. Se ele deixa a caixa, se excede os limites, ele
não representa mais. Não pode haver algo como representar bem
ou mal; ou ele representa, ou não. Não há algo como a atividade de
representar, ou os deveres de um representante; qualquer coisa
feita depois do tipo correto de autorização e dentro de seus limites
é por definição representar.”25
IV – A REPRESENTAÇÃO PENSADA A PARTIR DA SOCIEDADE
Os desenvolvimentos de Nadia Urbinati permitem ir
adiante desse ponto e integrar ao âmbito da teoria o fato de que a população representada
pensa e deseja, manifestando de formas várias sua opinião, durante todo a duração
não-institucional de sua existência, isto é, no período entre eleições – no curso do qual ela
não se apresenta como uma unidade dada e bem delineada por regras, mas como um
122
universo móvel e plural de interesses, tendências e opiniões conflitantes. A autora ressalta
ademais o papel que o modelo representativo confere ao julgamento, ao lado da vontade; e
finalmente sublinha a virtude do modelo representativo como forma de expressão e
unificação democrática da sociedade e de suas forças antagônicas, com vantagens inclusive
sobre a democracia direta – propondo o que denomina uma revisão democrática da teoria
da soberania popular de Rousseau.
Urbinati nota que, num regime cuja legitimidade deriva
de eleições livres e contínuas, a representação não é um dado estático ou algo de que os
representantes tenham a posse, mas uma relação dinâmica e circular: “a representação
não pertence apenas a agentes governamentais ou instituições” e se desenha como um
processo político “estruturado em termos de circularidade entre instituições e sociedade.”
E antes de pretender “tornar visível uma unidade preexistente,” como hipoteticamente
seriam a unidade do Estado, do povo ou da nação, “ela é uma forma de existência política
criada pelos próprios atores,”26 representantes e representados, cuja interação
continuamente cria, avalia e recria as bases dessa unidade.
123
Nesse contexto, a comunicação regular e constante
entre a sociedade e os representantes políticos não é apenas inevitável, mas imprescindível,
e isso em nada conflita com “o caráter geral da lei e os padrões de imparcialidade
implicados pela cidadania.”27 A interpenetração entre a forma do Estado de Direito e as
várias identidades sociais, nas quais se condensa o que Renato Janine Ribeiro trata como o
desejo, caracteriza a “rica vida política” que o direito de voto confere aos cidadãos,
permitindo-lhes fomentar “agendas políticas concorrentes” e influir na vontade dos
legisladores “em bases contínuas, e não apenas no dia da eleição.”28
Isso significa em outras palavras que a população nunca
deixa totalmente de ser povo, isto é, nunca se retira por completo de cena, nem deixa de
formar e manifestar opiniões, inclusive sobre o desempenho de seus representantes – com
os quais procura interagir sempre que julga necessário. Os cidadãos colhem informações
em múltiplas fontes e se valem de todos os meios disponíveis para se articular e influir na
manifestação de seus órgãos representativos − o que abre o campo político às demandas do
social. Em uma linha que evoca as considerações de Jellinek acerca do significado jurídico
de povo, mas delas se distancia pela amplitude política que alcança, Urbinati inclui meios e
124
modos de comunicação, articulação e influência no âmbito da representação, assinalando
que a mídia, os partidos e os movimentos organizados não são fenômenos marginais, mas
elementos que viabilizam o diálogo entre “vontade e julgamento, presença física imediata
(o direito ao voto) e uma presença mediata idealizada (o direito à livre expressão e à livre
associação)” numa sociedade que é “uma confusão viva do dualismo entre política da
presença e política das idéias, dado que toda presença é um artefato discursivo.”29
No mesmo diapasão de Bobbio, Urbinati compara
favoravelmente a democracia representativa à democracia direta; mas enquanto aquele
infere exclusivamente da forma de deliberação majoritária a menor rappresentazione da
democracia direta, Urbinati o faz a partir de elementos que descobre ao desdobrar a
representação no tempo e em uma série de atos interligados, de padrão circular.
Em primeiro lugar, Urbinati nota que se as eleições
manifestam a vontade do povo, a renovação periódica de mandatos e o contínuo
acompanhamento da atividade parlamentar ativam sua capacidade de julgamento; e percebe
que no curso das legislaturas o povo conserva um poder negativo em face de seus
125
representantes – acionado quando estes deixam de se comunicar satisfatoriamente com
aquele, e exercido tanto em forma institucional própria (dentre as quais Urbinati menciona
as hipóteses de dissolução de legislatura, referendum ou alguns tipos de recall) como nos
quadros da liberdade de associação, manifestação e expressão.
Tal poder não se situa fora da ordem jurídica, nem se
volta à determinação substantiva das linhas políticas a serem seguidas pelos representantes,
mas se resume à prerrogativa de obstar um determinado curso de ações adotado pela
representação. Esta convive com o poder negativo e por meio dele se revigora, afastando-se
do risco de malogro na função de força integradora da sociedade quando sabe ler os sinais
que daquele emanam.30
O malogro se apresenta como uma crise da
comunicação entre o povo e o parlamento, que Urbinati ilustra com a idéia de despotismo
indireto, colhida em Condorcet. 31 Essa forma despótica se instaura no momento em que a
representação, sem romper a barreira da legalidade, deixa de ser real (distanciando-se em
126
demasia da base de sentidos partilhados com o eleitorado) ou passa a ser muito desigual
(favorecendo alguns setores em detrimento de outros).32
Numa segunda vertente, Urbinati assinala que o jogo
político travado a partir da representação cria para as idéias e para a opinião um espaço que
na democracia direta é preenchido apenas pelo número; e assim se desenrola em uma
longue durée que ultrapassa o episódio isolado de cada deliberação.
Isto se dá porque a escolha de um representante não se
resume a uma análise de traços pessoais dos candidatos, mas antes se reporta ao ideário que
estes e seus partidos adotam como plataforma e adiantam como referência para a ulterior
avaliação dos respectivos atos e propostas, no caso de haverem conquistado mandatos. O
jogo entre elementos programáticos, resultados obtidos e o poder deliberativo do eleitorado
se protrai no tempo, e a política se vincula dessa forma à agenda de longo prazo em que as
eleições se sucedem e se estabelecem como rotina.
Com isso se abandona o caráter decisionista da
democracia direta − que é em última análise o alvo da crítica de Bobbio, e que Urbinati
127
entrevê no fato de cada voto ser um exercício absoluto de vontade, sem compromisso com
deliberações anteriores e sem o valor de índice da orientação das seguintes. O deficit de
rappresentazione não provém da forma majoritária da deliberação, mas da imediatidade do
processo decisório na democracia direta, que não cria espaços para uma expressão mais que
efêmera de opiniões e interesses: a assembléia se move na unidimensionalidade de um
eterno presente, em que o peso de qualquer daqueles é o mesmo, e a congruência entre
várias decisões passa a ser função do acaso.
Em lugar do decisionismo, a representação permite que
se estabeleçam linhas de coerência narrativa entre as várias eleições, que se entretecem em
uma composição que “une votantes através do tempo e faz de relatos ideológicos uma
representação da socidade inteira, de suas aspirações e de seus problemas.”33 Na trama
narrativa assim delineada o voto assume, em cada eleição, o sentido de “uma tentativa de
dar peso às idéias, não de dotá-las de peso idêntico ou de um peso qualquer”34 − e com
isso se abre espaço para que inclusive a opinião vencida, ou a corrente que a sustentava, se
veja de alguma forma incluída, ou representada, no resultado deliberativo final.
128
Trata-se aqui de um ponto capital: num regime
representativo, a vitória e a derrota deixam de ser decisivas, ou totais, e se esvaziam de um
sentido que poderíamos chamar de trágico − adequando-se à escala do drama a que se
refere Cicero Araujo. Urbinati aponta que por serem expressões de opiniões, e não da
presença física, imediata e total de um colégio de eleitores, os votos não passam de
aproximações, que nunca sinalizam uma delegação total de poder; e que sem exaurir em si
os pensamentos e ações de que o eleitorado sempre é o dominus, os sufrágios não oferecem
aos vencedores um refúgio onde possam ingressar sem preocupações, nem impõem aos
vencidos um degredo sem lugar para a esperança.35
Os atores desse drama têm a nítida percepção de que o
poder não pertence à corrente representativa que porventura se torne majoritária e nem à
maioria formada em um pleito isolado, mas sim ao conjunto dos cidadãos enquanto
coletividade, cujas clivagens não são definitivas, não correspondem senão grosso modo às
divisões dos grupos que disputam o poder, nem sinalizam alinhamento automático ao que
estes deliberam, isoladamente ou em conjunto.
129
Contando por isso com suas possibilidades em eleições
vindouras, os grupos vencidos não se tornam dissidentes, nem abandonam o registro
político da cena civil, mas normalmente se submetem a processos de autocrítica, e depois
deles se voltam novamente ao trabalho junto aos eleitores; enquanto que os vitoriosos de
qualquer pleito sabem que a próxima vez pode não ser a deles.
Cientes por conseguinte de que não decidem a posição
que ocupam nesse jogo, uns e outros se empenham por manter, senão melhorar, sua
situação relativa; e dessa maneira
“A corrente de opiniões, interpretações e idéias que buscam
visibilidade através do voto em um candidato ou em um partido
consolida a ordem política. A discórdia se torna um fator de
estabilidade, um motor de todo o processo político. Ela se torna o
vínculo que mantém coesa uma sociedade que não tem centro
visível e se torna unificada através de ação e discurso (experiências
comuns de interpretação que os cidadãos compartilham, enunciam,
relembram e refazem incessantemente como companheiros
(partisan-friends).”36
130
A representação logra por isso traduzir o social sem
dele se apropriar, abstendo-se de negar a esfera em que se decide a quem caberá o poder
positivo – e em que reside sempre o poder negativo. E essa tradução se efetua em forma
plural, por inscrever o social em estruturas mais amplas, vale dizer, “em uma linguagem
que é geral e quer representar o geral.”37 Nesse movimento, a representação a um tempo
permite a formação de identidades (constelações de idéias, na expressão de Urbinati, às
quais se pode aderir, ou das quais se pode dissociar) e mesmo a transformação delas,
sempre possível quando o processo consiste em filtrar particularidades para apresentá-las
em público e dotá-las de chances de participar na composição de maiorias, vale dizer, em
uma contínua reformulação delas para uma linguagem que possibilita o diálogo político.
Urbinati dissocia assim a idéia da rappresentanza do
paradigma da substituição implicado na idéia de mandato livre e propõe – muito
sugestivamente – a advocacia como seu parâmetro. Considerando as causas a serem
enfrentadas é que os eleitores escolhem seus advogados, e não lhes confiam aquelas sem se
reservar o poder negativo de acompanhá-los, e de cobrar-lhes minuciosas satisfações. A
rappresentanza se manifesta então como a liberdade de que o mandatário dispõe, durante o
131
andamento da causa, para traçar a estratégia geral de ação e decidir remanejamentos
pontuais do curso definido apenas em suas linhas mestras – podendo celebrar alianças e
efetuar concessões que estime sejam de interesse de seus constituintes.
De outra parte, a rappresentazione deixa de ser pensada
como o espelhamento de “várias identidades substanciais que não se comunicam umas
com as outras,”38 e passa a ser figurada como uma relação de simples similaridade de
perspectiva entre o discurso do representante e a identidade de seus eleitores – uma
similaridade que estes e aquele “constróem, transformam ou interrompem”39 através de
discurso e opinião, que se sujeita a graus de convergência e divergência e encerra uma
medida de abertura para a reformulação das especificidades que definem a relação entre o
grupo e o seu representante. Em outras palavras, do espelhamento mecânico se passa à
reflexão, e da vontade e identidade fixas à identidade narrativa, assentada em opinião e
julgamento – e não no puro querer ou desejo.
Dispomos agora de elementos bastantes para refletir
sobre o mandato do tradutor de sentido da norma; mas antes de voltarmos a Ferraz Jr., é
132
preciso sublinhar que a relação entre a interpretação e o mandato propriamente político,
sem ser de identidade, não é meramente analógica. E para fazê-lo, temos de nos voltar
àquela que um comentarista julgou ser a “doutrina do direito mais genuinamente política
que seja dado conceber:”40 a teoria de Hans Kelsen.
V – DIREITO E POLÍTICA EM KELSEN
Se a idéia da tradução coubesse no modelo
interpretativo kelseniano, poderíamos dizer que o único que a exercita é o juiz, e que ele
exerce seu mandato em caráter de pura rappresentanza, uma vez que o sentido da norma é
aquele que o magistrado proclama na nova norma que edita. No entanto, ao estabelecer a
produção de efeitos tendentes à aplicação de uma sanção como condição necessária e
suficiente para o reconhecimento da juridicidade de qualquer interpretação, Kelsen não
oferece garantias de que algum falante da língua ordinária possa reconhecer, no decisum, o
texto normativo anterior. Ele admite expressamente o contrário;41 e no último item da
Teoria Pura, descarta a possibilidade de se empreender, no campo jurídico-científico, a
crítica ao resultado interpretativo.
133
Isso implica reconhecer, e Kelsen não se nega a fazê-lo,
que um instituto tão essencial ao direito como o processo é também uma arena política, já
que a atividade de um advogado orientada à fixação do sentido de uma norma, antes da
decisão ou em grau de recurso, não pode ser tida como pura ou cientificamente jurídica.42
Não deixa de ser curioso notar que o elemento posterior
a uma sentença e anterior a uma decisão de segundo grau que detém a qualidade jurídica é
a singela petição de interposição de recurso, que, sem que normalmente os profissionais o
notem, modifica o cenário jurídico pelo acionamento de uma instância revisora, e cria
deveres cujo descumprimento se torna passível de sanção. As subseqüentes razões e
contra-razões de recurso, vale dizer, a crítica e a defesa da interpretação legal adotada pelo
juiz, não possuem o mesmo efeito nem o mesmo status; e caso se dissesse que regras que
impõem a consideração delas pelo juiz ou pelo tribunal as integram ao direito, seria
possível replicar que a modificação do cenário jurídico não advém de algo intrínseco ao
que as partes digam, mas do hipotético descumprimento daquelas regras.
134
Dentro do rigor kelseniano, portanto, a atividade toda
que as partes e o próprio magistrado, não obstante sua investidura oficial, vivenciam como
o centro do processo situa-se fora do direito; e o componente jurídico não é mais do que a
forma que um embate político assume quando um dos contendores postula ao órgão
competente a solução do caso por uma nova norma.
É de se ver entretanto que a relação entre direito e
política em Kelsen é normalmente expressa em termos que sugerem a possibilidade de uma
assimilação: em sua Teoria Geral do Direito e do Estado, ele afirma que “a sociedade
nada mais é que uma ordem social,”43 e o Estado, “uma personificação dessa comunidade
ou a ordem jurídica nacional que contrói essa comunidade.”44 Parece impróprio falar em
uma oposição entre direito e política se sociedade e Estado, ordem e direito, são
designações variadas para uma referência única − diapasão em que Kelsen prossegue ao
afirmar que a comunidade “consiste tão-somente numa ordem normativa que regulamenta
a conduta recíproca dos indivíduos”45 e que, “se existe uma realidade social relacionada
ao fenômeno que chamamos de ‘Estado’ e, portanto, um conceito sociológico distinto do
conceito jurídico de Estado, então a prioridade pertence a este, não àquele.”46
135
O que permite a Kelsen deduzir essa oposição dentro de
uma teoria abertamente monista é o reconhecimento de que a vida dos indivíduos não se
reduz à dimensão social, nem à forma jurídico-estatal que esta assume. Um dos pontos em
que se nota que ele estabelece essa reserva é aquele em que denuncia como ficção
ideológica a hipótese de que a ordem social, isto é, o direito, pudesse ser portadora de um
interesse coletivo:
“Na verdade, a população de um Estado está dividida em vários
grupos de interesses mais ou menos opostos entre si. A ideologia
de um interesse coletivo de Estado é usada para ocultar esse
inevitável conflito de interesses. Chamar o interesse expressado
pela ordem jurídica de interesse de todos é uma ficção mesmo
quando a ordem jurídica representa um compromisso entre os
interesses dos grupos mais importantes.”47
A ordem tem nos interesses desses grupos (e, em última
análise, na liberdade dos indivíduos) o seu duplo negativo; ela é ordem à custa de
contê-los, é sociedade (ou comunidade) porque em meio a eles se organiza, e é política
136
porque dispõe dos meios de coerção necessários para conformar os indivíduos a essa sua
organização – sem no entanto reduzi-los a peças de seu próprio jogo.
Nesse sentido lemos na Teoria Pura que
“É usual caracterizar-se o Estado como uma organização política.
Com isto, porém, apenas se exprime que o Estado é uma ordem de
coacção. Com efeito, o elemento ‘político’ específico desta
organização consiste na coacção exercida de indivíduo a indivíduo,
e regulada por essa ordem, nos actos de coacção que essa ordem
estatui.”48
E na Teoria Geral do Direito e do Estado:
“Já que a sociedade – como unidade – é constituída por
organização, é mais correto definir o Estado como ‘organização
política’. Uma organização é uma ordem. Mas em que reside o
caráter político dessa ordem? No fato de ser uma ordem coercitiva
(...). O Estado é uma sociedade politicamente organizada porque é
uma comunidade constituída por uma ordem coercitiva, e essa
ordem coercitiva é o Direito.”49
O direito se associa à política, e simultaneamente dela
se distingue, pelo seu sentido organizador, que permite a Kelsen defini-lo como “a
137
técnica social que consiste em obter a conduta social desejada dos homens através da
ameaça de uma medida de coerção a ser aplicada em caso de conduta contrária.”50 É ao
potencial desagregador (e entrópico) da segunda que o direito se opõe, e o faz enquanto
forma, que toma a política como sua matéria.
Se o que se destaca como especificamente político no
direito, no Estado, no poder ou na ordem social é a capacidade de auto-imposição coativa
por sobre o reino das condutas sociais indesejadas e conflitivas, quer dos indivíduos em
suas vidas particulares, quer dos grupos de interesses em que eles se inserem, essa
especificidade consiste em dar forma a esse conjunto, regulando-o, sem contudo o
suprimir. No retrato – para voltarmos à metáfora de Cicero Araujo – não se pinta a política
não porque ela não pertença ao reino do direito, mas porque está comprimida em sua
medula.51 A forma jurídica, no entanto não a esgota, e existe justamente porque ela
ressurge – por exemplo como origem de interpretações não-oficiais do sentido de normas.
VI – O PROCESSO COMO REPRESENTAÇÃO: O ADVOGADO
138
A identificação desse componente jurídico-político no
processo permite vê-lo como sede de uma espécie de rappresentazione: se as normas são a
política já formalizada e a comunidade já instituída, a discussão do sentido destas é, para
usar um termo de Bobbio, uma desforra localizada do social em estado bruto, ou a
introdução de algo da política não-formalizada na dinâmica em que uma nova norma irá se
produzir.
As premissas kelsenianas nos autorizam até mesmo a
generalizar essa rappresentazione: se considerarmos que a atividade processual como um
todo gira em torno da produção dessa norma individual, e que em princípio é apenas o juiz
que atua juridicamente, deve-se concluir que não há processo sem propósitos
jurídico-políticos, e que, por conseguinte, a rappresentazione não é um fenômeno
esporádico do processo, mas estrutural. Se normalmente ela é um elemento que passa
desapercebido, isto se deve ao fato de que a imensa maioria dos casos não envolve
questões de diferença de interpretação de leis, podendo-se omitir um apelo direto ao padrão
unificador, isto é, o legislador racional.
139
Do ponto de vista do direito − que não é o seu único
aspecto, como veremos −, o processo cumpre a função de órgão de captação jurídica do
político; e nesse sentido podemos ler a tripartição da sentença em relatório, fundamentação
e dispositivo como sinalização de um movimento da rappresentazione para a
rappresentanza e desta para a formalização – em que o direito, política formalizada, se
impõe sobre a política em estado bruto.
Há no entanto uma diferença entre a representação
política propriamente dita e a representação jurídico-política. No primeiro caso, os
interesses substantivos em jogo se confrontam em um cenário muito mais livre e instável,
na medida em que podem se combinar em grandes frentes e agem sobre as própria regras
que estabelecem os termos constitutivos da cena civil. No segundo, o editor normativo já
assumiu a tarefa de ordenar a articulação da cena; a veiculação dos interesses substantivos
tem portanto de se referir também a ele, às palavras que já proferiu e às classes em que já
dividiu estes últimos − reduzindo a mobilidade de que seus titulares dispõem na esfera
política. Se a atenção às normas se interrompe, regressa-se à política − no limiar da
passagem de sua modalidade persuasiva (peitos, cena civil) à violenta (bias, teatro da
140
guerra). O que importa aqui sublinhar no entanto é que o diálogo jurídico implica uma
certa partilha das prerrogativas do editor normativo entre os vários comunicadores − que,
manejando uma língua comum, se reconhecem como auctoritates.
Para simplificar a exposição, tomemos um processo em
que as partes em conflito são duas pessoas físicas, e o objeto do litígio não reclama a
atuação do Ministério Público ou de qualquer terceiro. O que se diz de uma das partes
aplica-se também à outra, e o único comunicador diferenciado é o juiz, que editará, de fato,
uma nova norma ao cabo do processo. Em que sentido os demais têm prerrogativas comuns
a ele?
Nadia Urbinati nos mostrou que representantes
políticos não são o espelho de seus representados, guardando com eles apenas semelhança
de perspectiva. Da mesma forma, podemos notar que não é a própria pessoa que ingressa
em um processo, mas um aspecto de seus interesses e de sua identidade. É aliás essa
circunstância que exige a sua representação; pois esse aspecto pode significar a diferença
entre vida e morte, a conservação ou perda da liberdade, a manutenção da vida familiar ou
141
sua ruptura e qualquer questão de especial significado para quem a desvela, mas sua
tradução em linguagem jurídica exige a demonstração da perspectiva em que se assemelha
aos termos correntes do discurso jurídico.
Nesse ponto reside a peculiaridade central do mandato
daquele que assume a palavra em nome de alguém, e que também podemos simplificar
como sendo o advogado: instado pelo particular, ele passa a moldá-lo como parte,
expondo-lhe possibilidades e restrições, vantagens e desvantagens, riscos e benefícios de
cada linha de ação que consiga figurar. Perante o particular, o advogado representa o
direito – e nesse exercício de rappresentanza leva aquele a refletir sobre o que quer, o que
fará, em que papel quer se desvelar e, no limite, sobre quem ele é ou aspira a ser em função
de suas perspectivas jurídicas. 52
No âmbito privado, muitas vezes não se trata de um
papel especialmente gratificante; e no âmbito público, em que a consulta assume a feição
dos antigos responsa, o crédito de confiança adiantado ao subscritor de um parecer não o
imuniza contra dissabores variados a que possa dar causa a consideração de sua opinio por
142
detentores de poder. No entanto, nesse papel o advogado tem de se alçar à imparcialidade
– contemplando sobriamente a ordem jurídica para não alimentar em seu consulente ilusões
sem fundamento, e sim expectativas realistas, ou pelo menos a chama de uma fundada
esperança.
Nesse movimento ele aprecia o direito; e o que ele
representa para o particular não é a pura articulação entre as normas, mas um cenário em
que o pleito daquele pode ter acolhida, isto é, pode ser reconhecido como direito pelos
outros intérpretes normativos, em relação aos quais o advogado pensa em modo
representativo. Como advocacia, no sentido que Nadia Urbinati dá a esta palavra, sua
rappresentanza se dirige portanto destes ao particular − a quem ele fala como auctoritas.53
Enquanto assim procede, entretanto, o advogado
distende o direito ao máximo; e pelo espaço que assim cria, ele pode assumir as inflexões
do consulente, a ponto de transportá-lo para dentro de si e de suas capacidades como
jurista. Se as suas primeiras palavras levam o particular a se definir perante o direito, a
partir dessa definição é o direito que, na pessoa do advogado, se articula em função daquele
143
que se torna o seu cliente; e, da rappresentanza do direito, isto é, do pensar representativo
(que, enquanto exercício da competência lingüística comum, remete-se ao plano do
cometimento de sua fala), ele passa à rappresentazione de quem o toma como patrono.
Nessa qualidade, o advogado não questiona a produção racional do direito por um
legislador que possa ser figurado como a vontade geral, mas antes sublinha a necessária
ligação entre esta e as razões que seu cliente tem; razões que ele, advogado e representante
dos juristas, encontrou em sua apreciação; e que o onisciente e justo legislador racional, e
todos os que falam em seu nome, nunca poderiam deixar de reconhecer.
O julgamento do advogado se resolve assim em um
augere, que, perante os demais atores do mundo jurídico, se manifesta como uma nota
distintiva em sua fala: a lingua franca, cujo emprego o investe em auctoritas, passa a ser
articulada com o que se percebe, no nível do relato, como a voz do particular: trata-se de
um elemento novo, que passa a ter espaço no direito, em cuja cena o advogado o interpreta.
Na composição desse personagem ele será todavia tanto mais eficiente quanto menos se
deixar dominar pelo exagero interpretativo, pela saturação da comunicação que
corresponde ao espelhamento, e quanto mais se ativer à similaridade de perspectiva – que
144
o habilita a ouvir o que os outros personagens têm a dizer e a dizer o que eles possam
compreender, ou seja, a contracenar com eles, ao invés de conduzir um solilóquio paralelo
a um drama em andamento.
Dessa contenção depende a força persuasiva do que o
advogado diz, e esta se relaciona à propriedade pragmática de efetividade, que Ferraz Jr.
define como adequação entre relato (aqui, rappresentazione, o que o advogado postula) e
cometimento (os fundamentos que, em seu exercício da língua comum, ele indica como
base para o desempenho da rappresentanza):54 este necessita de reforço tanto mais
expressivo quanto maior for a distância entre a postulação e o repertório já consolidado do
sistema.
A persuasão que a efetividade da fala do advogado
almeja é fundamentalmente a do juiz: trata-se de fazê-lo admitir que o relato é uma
resposta que poderia ser (e o advogado defende que é) a do legislador racional. Isto obriga
o juiz a inserir essa fala em sua linha de considerações − e, deixando de ser agência de
edição normativa, a argumentar, em pé de igualdade com seus interlocutores processuais.
145
VII – O PROCESSO COMO REPRESENTAÇÃO: O JUIZ
Para compreender a atuação do juiz como
representante, propomos desdobrar sua figura em duas, tal como o faziam os romanos: o
magistrado, incumbido de uma função de governo, e o judex, ocupado apenas em julgar. O
que enunciamos aqui são dois tipos ideais que não atuam em separado e que, globalmente,
devem se equilibrar; mas que, em perspectiva local, terminam se confundindo
impropriamente. Grande medida da arte performativa do juiz está em sua sensibilidade
para identificar se as questões que se lhe apresentam requerem uma resposta em que se
acentua a celeritas do magistrado que decide, e que portanto fundamentalmente inova, ou a
gravitas do judex que aprecia, e que por conseguinte considera pormenorizadamente o que
em linhas gerais já está diante de si.
Não é necessário grande indagação para relacionar a
atribuição ao juiz de poderes de magistrado à natureza conflitiva e partidarizada do embate
processual. A decisão sobre medidas cautelares ou definitivas de prisão, desapossamento
patrimonial, separação de lares e constrições de todo gênero; a deliberação sobre as provas
146
admissíveis, e a respectiva colheita junto a quem não tem, muitas vezes, a menor
disposição de as fornecer; a polícia de audiências, em que partes e advogados se
reencontram no ápice do litígio que conduzem, se não são já conduzidos por ele; a dura
administração da coletividade de processos reunidos em uma unidade judiciária, a vara, em
que nenhum pedido é único e muitos não se destinam ao deferimento, sem que isso
implique que seus autores se reconheçam desprovidos de razão, necessidade ou urgência:
não se exerce tais atribuições sem uma carga de mando, necessária para que cada litigante
possa ser equitativamente tratado e ter seu caso conduzido a bom termo.
De modo algum se trata de um poder nulo − e a
investidura do juiz em poderes de magistrado não apenas é uma necessidade instrumental
como pragmática, sinalizando, no aspecto cometimento, o caráter meta-complementar da
relação que ele mantém com os demais falantes. No entanto, o que a imagem de
Montesquieu indica com precisão é que, no plano do relato, o juiz é simplesmente judex,
isto é, que no ato essencial de sua participação no processo, ele fracassa se for buscar
amparo em sua concomitante qualidade de magistrado. Como aponta Ferraz Jr., a posição
do juiz
147
“Não pode manter-se de modo obstinado, no sentido de que o
editor veja apenas e sempre o seu lado na relação. A autoridade
tem assim de ser implementada, tanto no sentido de que possa ser
compreendida, o que implica argumentação e discussão, como
também fortalecida, o que implica argumentos reforçados.”55
A figura do juiz resulta assim de uma verdadeira
kenosis da soberania:56 sua fala enquanto judex não pode apelar à sua condição de editor
normativo, mas apenas à lingua franca em que todo o discurso normativo assenta, e na
qual ele deve traduzir as particularidades do caso. Aquilo de que o judex dispõe é
auctoritas; a potestas lhe é comunicada em sua dimensão de magistrado. E o que a
auctoritas lhe oferece não é uma posição inatacável, mas a possibilidade de ser
reconhecido – e não desconfirmado57 – como editor normativo, atrelada no entanto ao
dever de ouvir todos os demais falantes da lingua franca, de dialogar com os seus
argumentos e de se expor à crítica deles.
É de se ver que a auctoritas disponibiliza o acesso de
quem a recebe a todo o repertório e a todos os falantes do sistema: o juiz dialoga com a
constituição e as normas, com os doutrinadores que as comentam, com as decisões de
148
outros casos, com a influência que junto aos juristas possam ter autores ou as soluções
jurídicas de outros países, e, finalmente, com toda a porção da vida social passível de ser
vertida em lingua franca, no ensejo de haurir força, nesse vasto repositório de
comunicações, para dar fundamento ao que diz:“nenhuma autoridade é autoridade em si,
mas em razão de um fundamento,” conforme aponta Ferraz Jr.58
Aquilo a que o juiz visa é a se autorizar como editor
normativo perante os destinatários de sua decisão. Ele não objetiva apenas solucionar o
caso, mas fazer com que sua solução seja considerada, o que em última análise é fazer-se
considerar – sem ter de apelar à sua própria potestade de magistrado. E sua auctoritas se
funda igualmente no fato de que todo o repertório pode ser mobilizado pelas partes para
descartar a sua fala, isto é, que atua não apenas como fundamento, mas também como
controle de sua performance. Isto o induz à procura da forma canônica desse autorizar-se,
análogo à coerência narrativa de Urbinati: trata-se do que Ferraz Jr. denomina
imunização, ou seja, um ato de remissão de toda a discussão e dos envolvidos nela a
fundamentos – normas ou regras outras – que o próprio sistema contém, e em função das
quais ele, juiz, pode minimizar o risco de ter sua decisão ignorada ou qualificada como
149
produto de seu arbítrio. Ele a apontará assim como expressão do que a lei disciplina, como
desdobramento de uma garantia constitucional, como uma em uma série de decisões que a
jurisprudência como um todo firmou ou como qualquer outra figura que dissocie de sua
pessoa – e remeta à auctoritas – a decisão que ele está por enunciar.59
Importa notar contudo que, ao proceder dessa maneira,
o juiz também se abre ao resultado da rappresentazione exercida pelos advogados. A ele
não é dado ser reconhecido como autoridade e ignorar o que lhe é dito na língua que o
autoriza; seu mandato é vinculado a essa língua, às normas e à fala dos demais juristas, e
por isso ele tem de ouvir, compreender, considerar e definir o valor das comunicações nela
efetuadas.
Ao exercer sua função de julgador, assim, ele mede o
sistema com as questões suscitadas pelas partes, e o faz em profundidade, a ponto de rever,
na medida em que a efetividade dessas falas o exigir, os próprios pontos em que o
repertório parece mais definido. É na conclusão dessa etapa que ele passa da
rappresentazione à rappresentanza, de judex a magistrado; e por meio do augere que
150
promove ao aceitar ou rejeitar pedidos e argumentos das partes, os timbres destas se
incorporam à sua voz – e por meio dela ao sistema.
Aqui há de se salientar que o que a decisão judicial
contém não é uma simples resposta, mas o problema que a sugeriu. O que passa a ter sede
oficial no repertório, por conseguinte, é o que, parafraseando Urbinati, podemos chamar de
a rica vida jurídica do processo, ou seja, todo o empenho das partes e do juiz em
estabelecer, antes da decisão, pontes entre o que dizem e o que estimam – usando um verbo
que é sinônimo de apreciar – que os outros comunicadores do sistema reconhecerão como
uma frase coerente na língua comum.
VIII – O PROCESSO COMO REPRESENTAÇÃO: O REPRESENTADO
Devemos voltar nossos olhos agora para a figura do
representado. Se o processo é para o direito um órgão de captação do conteúdo político,
para o representado que dele dispõe é um meio de acesso de suas demandas à forma
jurídica. O questionamento do significado de uma norma resulta de um julgamento da
atividade de representação desempenhada pelos atores do cenário político (vale dizer, da
151
elaboração dos textos normativos) e jurídico (ou seja, da tradução desses textos para a
lingua franca do legislador racional). Trata-se de um julgamento difuso e policêntrico,
muitas vezes sem sequer um protagonista definido, que toma como objeto a lei e as suas
interpretações correntes, e as confronta com a especificidade que, fazendo-se notar
inicialmente talvez de maneira discreta, por vezes chega a mostrar frágeis as pretensões de
suficiência ou o propósito de generalização ilimitadada do repertório já existente.
Quem julga a representação, em qualquer âmbito, é
sempre o representado, que é o mesmo representado da esfera política, em que Jellinek o
vê organizado como povo para participar de eleições. No processo, entretanto, não se cuida
de escolher representantes, e por isso ao invés de se formatar como povo, o representado
assume a feição de partes, e partes sempre no plural, eis que essencialmente antagônicas: o
que o representado veicula são problemas cuja solução reputa urgentes, e problemas que se
põem perante o editor normativo e as palavras que este já proferiu. Partes processuais não
são apenas pessoas interessadas em um provimento jurisdicional favorável a uma ou a
outra delas, mas, consideradas em sua pluralidade, órgãos do representado para veicular
suas opiniões sobre a ação dos que o representam.
152
Se essa manifestação não ganha de imediato o cenário
político, ela se insere nos quadros do que Nadia Urbinati define como poder negativo:
quando promana das partes um pedido de reformulação de uma certa interpretação legal,
por certo não se determina positivamente que isto seja feito, até porque apenas por exceção
as partes convergem, isto é, se uma deseja a mudança, a outra provavelmente a recusa. O
que o movimento das partes sinaliza é que uma porção do social, de que uma delas é
exemplo, não se mostra satisfeita com o resultado até então obtido da representação,
embora ainda não se sinta motivada a passar ao registro do poder positivo – isto é, à
articulação política propriamente dita.
Tal manifestação se dirige portanto à representação
jurídica, e pesa sobre ela como a pecha do despotismo indireto de Condorcet, isto é, se faz
decodificar como uma queixa de irrealidade ou distância excessiva entre a representação e
o representado, ou de pronunciada desigualdade no tratamento dado a alguns setores do
social em detrimento de outros. Mas, simultaneamente, o fato de o juízo desfavorável se
veicular em chave negativa sinaliza confiança nas possibilidades da representação para
regenerar seu liame com o representado.
153
O que o poder negativo sinaliza é a disposição de parte
maior ou menor da sociedade para um agir conjunto com os representantes jurídicos: no
século XIX, por exemplo, propôs-se em inúmeros processos que o centro de gravidade da
responsabilidade civil por acidentes do trabalho se deslocasse da culpa; e, num percurso
que posteriormente reconstituímos como uma evolução de teorias, as respostas se
orientaram à substituição da figura originária pela do contrato, deste pelo domínio sobre o
máquinário, daí para o risco da atividade econômica e, finalmente, para o poder que o
chamado empregador exerce sobre a pessoa, desde o momento em que esta se encontra à
sua disposição.60
Podemos dizer que, em linhas gerais, a proposta foi
aceita; e a mobilização legislativa de que resultaram as primeiras leis de acidentes do
trabalho procurava responder tanto à demanda originária quanto à aceitação por ela obtida.
Houve decerto casos em que se demarcou uma nova posição, mas as grandes linhas da
mudança proposta não passaram solitariamente por nenhum deles, e nem mesmo pelos
trabalhos doutrinários que procuraram discorrer sobre a novidade encerrada em cada
demanda: elas se deixaram captar no conjunto da comunicação.
154
Como isto se processou? Ao estudar a representação no
processo, notamos que o advogado primeiramente formata a pessoa como parte, e em
seguida se ocupa de dar efetividade à sua linha de argumentação. A efetividade impõe ao
juiz, cujo mandato enquanto judex é vinculado, a considerar o relato do advogado, e a
assimilar o que chamamos de o timbre de sua voz, ainda que não aceite o pedido veiculado.
Essa consideração não capta entretanto apenas o relato
e o cometimento daquela mensagem do advogado – e a arte performativa da advocacia
compreende também essa capacidade de alargamento da apreciação do caso. No momento
em que o juiz se volta para este, ele o compreende no quadro da situação comunicativa
como um todo, isto é, localizando-o na grande e permanente troca de mensagens em que se
engajam os comunicadores vários do sistema jurídico. É a toda essa situação que o juiz se
abre, e portanto também ao que se passa nos demais processos de sua vara, nos da vara ou
da comarca vizinhas, nas câmaras do tribunal a que elas se vinculam e nos tribunais
superiores; ao que se colhe na doutrina e nos debates legislativos, no âmbito nacional e
também no estrangeiro; e como já vimos, a toda a parcela da vida social que já foi ou que
155
pode ser traduzida − especialmente por ele − na lingua franca que os comunicadores
jurídicos manejam.
Trata-se de um requisito pragmático de seu êxito
enquanto editor normativo: uma vez que a autorização do juiz enquanto tal relaciona-se à
demonstração de sua excelência no domínio da lingua franca, pode-se dizer que ele
fracassa quando deixa de detectar, nas inflexões dessa língua, as manifestações do
representado. E se ao contrário tem êxito, e nota que as partes do processo traduzem uma
questão que, no conjunto da situação comunicativa, se mostra como uma proposta de agir
conjunto, o juiz necessita se elevar do repertório à estrutura do sistema − e procurar a
margem de sintonia entre a manifestação do poder negativo do representado e as regras
de calibração do sistema.
Tercio Sampaio Ferraz Jr. chega à idéia das regras de
calibração depois de estudar sob o ponto de vista pragmático as relações de validade e
invalidade. A primeira é o modo normal de operação do sistema, em que o editor
normativo procura a imunização para a sua posição de autoridade no relato de uma outra
156
norma.61 A validade, por isso, “expressa uma espécie de estado constante ou de
estabilidade de um conjunto normativo”, mantido por mecanismos de “retroalimentação
negativa”, isto é, que não modificam qualitativamente o repertório já configurado.62
Há momentos, no entanto, em que essa relação não
basta para oferecer uma “resposta coerente dentro de uma situação.”63 Nesse caso, há
regras, no sistema, que indicam a possibilidade de inversão do padrão habitual, em nome
do princípio fundamental de imperatividade do sistema – ao qual se relaciona o agir
conjunto que, por meio do poder negativo, as partes propõem. Aquelas regras atuam sobre
o que Ferraz Jr. denomina a calibração do sistema; e esta relaciona-se a padrões de mais
larga escala aos quais o sistema tem de atentar, quando confrontado às exigências da vida
social, das demandas e conflitos cuja solução se lhe pede. Nas palavras do autor,
“Para essa atuação ou funcionamento, as normas têm que estar
imunizadas contra a indiferença, o que ocorre pela constituição de
séries hierárquicas de validade, que culminam numa norma origem.
Quando, porém, uma série não dá conta das demandas, o sistema
exige uma mudança em seu padrão de funcionamento, o que ocorre
pela criação de uma nova norma-origem e, em conseqüência, de
nova série hierárquica. O que regula essa criação e, portanto, a
157
mudança de padrão, são suas regras de calibração. Graças a elas, o
sistema muda de padrão, mas não se desintegra: continua
funcionando.”64
Um ensaio sobre o juiz e o direito social, de Edgard de
Moura Bittencourt, nos oferece um exemplo: o autor reporta que, em muitos processos de
indenização por morte em acidente de trabalho, os magistrados se viam no dilema de seguir
o direito de família codificado ou conferir uma proteção – que este não previa – a famílias
que, embora plenamente constituídas, o eram sob a égide do concubinato, e não do
casamento.65
Esses magistrados decidiram pela proteção das
concubinas, sem que normas outras os imunizassem; e deram assim início a séries
normativas que, embora inválidas, mostraram-se efetivas, isto é, equilibradas nas
dimensões relato e cometimento, e por isso aptas a acrescentar novos conteúdos ao sistema
jurídico − promovendo a sua “retroalimentação positiva.”66
Essa mudança de padrão não deixa ser regulada, mas o
é pelas regras de calibração, que operam a partir da estrutura do sistema. Moura
158
Bittencourt alude a elas quando refere que o Supremo Tribunal Federal,“em duas
expressivas manifestações, colocou a questão defronte dos fins sociais da lei e em face da
lesão de fato que sofre a mulher.” Nem a menção aos fins sociais no art. 5º da Lei de
Introdução ao Código Civil implica “equiparar a concubina à esposa no tocante ao ato
ilícito de terceiro,” nem há regra que aponte que “não é mister, para a responsabilidade
civil por ato ilícito, que seu autor tenha lesado um interesse jurídico, bastando o interesse
de fato de que a concubina seja titular.”67 Os fins sociais, de um lado, e o princípio da
responsabilidade e do não enriquecimento em virtude de ato ilícito, de outro, sinalizavam
as margens do êxito possível da comunicação normativa − dentro das quais a passagem ao
padrão de invalidade restituiria à situação a possibilidade de se traduzir em termos da
língua do legislador racional: este não poderia deixar de prever a equiparação da concubina
à esposa para os fins da questão tratada.
A coerência narrativa, nesse caso, passa pelo que o
legislador deveria ter dito, dentro das balizas estruturais para o desempenho de sua função
− que são aquelas que permitem o debate racional sobre como se deve ler o que ele disse.
As regras de calibração transpõem essa questão para o plano de compromissos maiores –
159
ou estruturais – do sistema, de que elas constituem o índice. E quem as aciona é o
representado, por meio do poder negativo que as partes manejam, ao conduzir a reexame
jurídico, mediante argumentações dotadas de efetividade, o próprio repertório do sistema.
Nesse sentido, pode-se dizer que o processo não é um fenômeno circunstancialmente
forense, mas o próprio fórum − palco do ato jurídico da cena civil da vida social.
***
NOTAS:
1 Norberto Bobbio. Teoria geral da política, 2000, p. 456.
2 Ibid., p. 459.
3 Ibid., pp. 460/461.
4 Bernard Manin. Principes du gouvernement repésentatif, 1996, pp. 11/14.
5 James Madison, O Federalista, X, in: James Madison, Alexander Hamilton e John Jay. Os artigos
federalistas, 1993, p. 137 .
6 Apud Manin, Principes , cit., pp. 11/14.
7 Bobbio, Teoria geral da política, cit., p. 462. A notável exceção é Kelsen, que partilha do diagnóstico de
Sieyès, mas defende o mandato vinculado.
8 Georg Jellinek. Teoría general del Estado, 2000, p. 506.
9 Ibid., p. 516. É de se notar a similaridade entre essa linha de argumentação e a defesa do objetivismo na
interpretação jurídica.
10 Ibid., p. 518.
160
11 Para o sentido de expressão e conteúdo na lingüística, veja-se Louis Hjelmslev. Prolegômenos a uma
teoria da linguagem, 2006, pp. 53/64.
12 Ibid., p. 521.
13 Bobbio, Teoria geral da política, cit., p. 469.
14 Ibid., p. 471.
15 “They are both grounded in a State-Person analogy and a voluntaristic conception of sovereignity.”
Urbinati, Representative democracy, cit., p. 21.
16 “An individualistic and nonpolitical logic, insofar as it presumes that electors pass judgement on
candidates’ personal qualities, rather than their political ideas and projects.” Urbinati tem presentes tanto a
distância entre a concepção hobbesiana da representação e a tutela (trusteeship) como o fato de que Burke
não funda a representação em bases contratuais. Ibid., p. 22.
17 Para Urbinati, essas idéias são intercambiáveis: “Parliamentary sovereignity can be seen as an electoral
transmutation of Rousseau’s doctrine of the general will, although, paradoxically, once transferred to the
represented Nation, that will becomes a strategy for ‘blocking tha way to democracy.” Ibid., p. 23.
18 Ibid., p. 22.
19 “During the crisis of parliamentarism, at the beggining of the tentieth century, Carl Schmitt revived the
construtivist function of representation conceived by Hobbes and Sieyès and used it to make the absent
present, or to reconstruct the organic unity of the volk above (and against) the pluralism of social interests or
‘government by discussion.’”. Urbinati ainda acrescenta que “in its radicalism, Schmitt’s case is a useful
example of the incompatibility between representation as a technique for achieving a (mystical) unity of the
community and political representation.” Ibid., mesma página.
161
20 “Unlike Hobbes, the Organschaft theorists start from the group rather than from the isolated individual;
instead of being the agent of an individual, the representative becomes an organ of the group.” Hannah
Pitkin, The concept of representation, 1972, p. 39.
21 “The people must hide their concrete and social identities to make public officials impartial agents of
decision.” Urbinati, Representative democracy, cit., p. 23.
22 Urbinati traduz do original para o inglês o seguinte excerto: “Lo que se encuentra en el régimen llamado
representativo no es un sistema de representación de la persona y de la voluntad nacionales, sino
precisamente un sistema de organización de la persona y de la voluntad nacionales.” Carré de Malberg,
Teoría general del Estado, 2001, p. 942.
23 Jellinek, Teoría general del Estado, cit., p. 506.
24 Ibid., mesma página.
25 “Representation is a kind of ‘black box’ shaped by the initial giving of authority, within wich the
representative can do whatever he pleases. If he leaves the box, if he exceeds the limits, he no longer
represents. There can be no such thing as representing well or badly; either he represents or he does not.
There is no such thing as the activity of representing or the duties of a representative; anything done after the
right kind of authorization and within its limits is by definition representing.” Pitkin, The concept of
representation, cit., p. 39.
26 “The third theory breaks with these two models. It creates a new cathegory altogether insofar as it considers
representation dynamically rather than statically: representation is not meant to make a preexisting entity –
i.e., the unity of the state or the people or the nation – visible; rather, it is a form of political existence created
by the actors themselves (the constituency and the representative).” Urbinati, Representative democracy, cit.,
p. 24.
162
27 “Reversing the maxim held by the two previous theories, (the political conception) claims that the
generality of the law and the standards of imparciality implied by citizenship neither should nor need to be
achieved at the expense of the political visibility of ‘the man’ (read, ‘social’ identity as distinct from and
opposite to ‘political’ identity).” Ibid., mesma página.
28 “(The right to vote engenders) a rich political life that promotes competing political agendas and conditions
the will of the lawmakers on an ongoing basis, not just on election day.” Ibid., p. 26.
29 “Will and judgement, immediate physical presence (the right to vote), and a mediated idealized presence
(the right of free speech and free association) ae inextricably intertwined in a society that is a living
confutation of the dualism between the politics of presence and the politics of ideas sinca all presence is an
artifact of speech.” Ibid., pp. 24/25.
30 Urbinati assinala que a concepção deliberativa habermasiana, centrada na força integradora da
comunicação, deixa de iluminar o tema da representatividade da representação, sempre passível de gradação
e, enquanto cornstrução ideológica, sujeita a revisão e revaliação. Ibid., p. 29.
31 Cf. Condorcet, Bosquejo de un cuadro histórico de los progresos del espíritu humano y otros textos, 1997
(pp. 363-380).
32 Urbinati, Representative democracy, cit., p. 28.
33 “Direct voting (or, in Condorcet’s words, ‘immediate democracy’) can be represented as a discrete series of
decisions (pointillist sovereignity). But when politics is schedulede according to electoral terms and the
political proposals the candidates embodies, opinions create a narrative that links voters through time and
makes ideological accounts a representation of the entire society, its aspirations and problems.” Ibid., p. 31.
34 “Voting is an attempt to give ideas weight, no to make them identical in weight, or with weight.”Ibid,
mesma página.
163
35 “Both winners and losers know that votes themselves never exhaust their thoughts and actions and there is
always room for concern or for hope.” Ibid., pp. 31/32.
36 “(In representative democracy) the chain of opinions, interpretations, and ideas that seek visibility through
voting for a candidate or a party consolidates the political order; discord becomes a stabilizing factor, an
engine of the entire political process. It becomes the bond that holds together a society that has no visible
center and becomes unified through action and discourse (common experiences of interpretation that citizens
share, tell, recall, and remake incessantly as partisan-friends).” Ibid., p. 32.
37 “But a political party translates the many instances and particularities in a language that is general and
wants to represent the general.” Ibid., p. 37.
38 “A conteiner of countless substantial identities that do not communicete with one another.” Ibid., p. 49.
39 “A similarity that they construct, transform or interrupt.” Ibid., p. 51.
40 Wolfgang Schild, Las teorías puras del derecho, 1983, p. 34.
41 “A propósito importa notar que, pela via da interpretação autêntica, quer dizer, da interpretação de uma
norma pelo órgão jurídico que a tem de aplicar, não somente se realiza uma das possibilidades reveladas pela
interpretação cognoscitiva da mesma norma, como também se pode produzir uma norma que se situe
completamente fora da moldura que a norma a aplicar representa.” Kelsen, Teoria pura, cit., p. 471.
42 Trata-se aqui do ponto que motiva o comentário de Schild acima transcrito: todos os atores do cenário
jurídico disputam influência política, não se poupando nem o escritor que, “num comentário, elege uma
interpretação determinada, de entre as várias interpretações possíveis, como a única ‘acertada.’”Ibid., p. 472.
43 Ordem que se define pela função de “motivar certa conduta recíproca dos seres humanos: fazer com que
eles se abstenham de certos atos que, por alguma razão, são considerados nocivos à sociedade, e fazer com
que executem outros que, por alguma razão, são considerados úteis à sociedade.” Hans Kelsen, Teoria geral
do direito e do Estado, 2005, p. 21.
164
44 Ibid., p. 262.
45 Ou “o termo ‘comunidade’ designa o fato de que a conduta recíproca de certos indivíduos é regulamentada
por uma ordem normativa.” Ibid., p. 263.
46 Ibid., p. 264.
47 Ibid., p. 267. Esta passagem nos parece estreitamente relacionada ao trecho da Teoria Pura em que Kelsen
deduz haver no direito um mínimo irredutível de liberdade, devido ao fato de a ordem jurídica apenas poder
prescrever ações e omissões inteiramente determinadas (Kelsen, Teoria pura, cit., p. 73); mas a formulação
na Teoria Geral é suficiente para nossa exposição, e nos dispensa de enfrentar em profundidade a indagação
que o trecho da Teoria Pura suscita quando atentamos para a particularidade de tom em que Kelsen proclama
que “nunca o indivíduo pode, na sua existência total, na totalidade de sua conduta externa e interna, do seu
agir, do seu querer, do seu pensar e do seu sentir, ver a sua liberdade limitada através de uma ordem jurídica”
– tom ao qual retorna, logo depois de diminuir o que acabara de consignar, ao assinalar que “mesmo sob a
ordem jurídica mais totalitária existe algo como uma liberdade inalienável.” A densidade dramática dada pela
irrupção de um orador por sob as linhas do registro de puro cientista que o texto de Kelsen normalmente
adota sugere que a ressalva técnica do autor, em que ele descarta a hipótese de haver descoberto um direito
natural do homem à liberdade, talvez devesse ser analisada menos pelo relato do que pelo cometimento.
Trata-se no entanto de uma discussão maior do que os limites do presente trabalho.
48 Ibid., p. 385.
49 Kelsen, Teoria geral, cit., p. 273.
50 Ibid., pp. 28/29.
51 Essa interpenetração resta nítida na Teoria Geral do Direito e do Estado, em que Kelsen apresenta como
atos imputáveis ao Estado todos aqueles tendentes à aplicação de sanções – chegando assim ao sentido mais
amplo em que “a ordem jurídica é executada por todas as ações que servem como preparação para uma
165
sanção, em particular as ações por meio das quais se criam as normas estipuladoras de sanções” (Kelsen,
Teoria geral, cit., p. 276). Ainda próximo à linha de Jellinek, ele considera órgãos do Estado todos os
particulares cuja conduta se insira na ampla genealogia da aplicação de sanções, num arco que vai da
celebração de contratos ao voto em eleições; e assim delineia um conceito formal de Estado, em que este
corresponde à ordem jurídica total, ao lado de um conceito material, em que os atos do Estado são apenas
aqueles praticados pelo “aparato burocrático formado pelos funcionários do Estado” (ibid., p. 279). Na
segunda edição da Teoria Pura, Kelsen prefere falar em fins mediatos e imediatos do Estado, e, fazendo
concessões à linguagem ordinária, aparentemente distancia os particulares do que em sua obra anterior
considerara a função pública deles; mas não deixa de pontuar sua análise com uma observação sugestiva de
que não abandonou de todo seu ponto de vista anterior: “diz-se, na verdade, que o Estado faz leis, mas não se
diz que o Estado elege o parlamento; embora se pudesse dizer isto com tão bom fundamento como quando se
diz que o Estado faz leis” (Kelsen, Teoria pura, cit., p. 395, itálico nosso).
52 Se em lugar da pessoa física temos um interesse público, disperso, ou sem titular individualizado, e do
advogado, temos o Ministério Público (ou, no quadro dos interesses difusos, alguma entidade habilitada à
ação), o quadro não se altera, mas apenas se internaliza: o julgamento do direito pelo representante se
defronta então com um outro julgamento que também é dele, mas que ele efetua na qualidade de órgão de
formulação do interesse (valendo sublinhar que entes outros que não o Ministério Público nunca o fazem em
caráter de exclusividade). O Ministério Público não se desonera nunca de se perseguir a plena congruência
entre as duas representações, uma vez que o objeto dos julgamentos é um único: como participante do diálogo
jurídico e como órgão do interesse público, é sempre à ordem jurídica que sua visão se reporta − diferindo
entre um momento e outro porque seus horizontes se ampliam no curso da representação. Ao reconhecimento
desse augere se reporta a possibilidade de o Ministério Público pedir a absolvição de alguém que, como
órgão, acusou.
166
53 Podemos dizer que no exercício dessa sua primeira função, o advogado transmite a ordem, isto é, manifesta
ao particular a existência de uma legalidade pré-estabelecida, em que os seus desejos encontram limites à
plena ou imediata realização. Se isto de um lado promove a moderação das expectativas do representado, de
outro amplia o domínio cognitivo deste sobre as regras da civitas − o que pode concorrer para a ativação dos
poderes de que o conjunto dos cidadãos dispõe para influir politicamente na legislação.
54 Ferraz Jr., Teoria da norma, cit., p. 117/120.
55 Ferraz Jr., Teoria da norma, cit., p. 67.
56 Para o significado de kenosis na teologia cristã e sua presença na filosofia (especialmente em Hegel),
veja-se Jean-Yves Lacoste, Diccionaire critique de théologie, 2007, pp. 754/757.
57 A teoria da norma jurídica de Ferraz Jr. assinala que, no plano pragmático, o editor normativo se empenha
em qualificar sua relação com os destinatários da norma (mostrando que o que diz os obriga) e em controlar
as possíveis reações destes a essa qualificação (relação meta-complementar). Confirmação − a aceitação − ou
rejeição − o descumprimento do que se reconhece como ordem − não põem em risco essa qualificação, ao
contrário da desconfirmação, que consiste em desconsiderá-la ou ignorá-la, e com isso anular o editor e o
discurso normativos. Cf. Ferraz Jr. Teoria da norma, cit., pp. 55/58.
58 Ferraz Jr., Introdução, cit., p. 179.
59 Ferraz Jr. Teoria da norma, cit., pp. 106/108. Mais adiante, veremos esse tema em maior detalhe.
60 Essa reconstituição se encontra, por exemplo, em Octávio Bueno Magano, Lineamentos de infortunística,
1976, pp. 08 e ss.. O recorte não é contudo uniforme, nem linear: François Ewald sinaliza como término da
“distorção progressiva e constante” a que a jurisprudência dezenovista submete a idéia da culpa como
fundamento da reponsabilidade o caso Teffaine, julgado em 1896 e comentado por Saleilles (repertório
Dalloz, 1897, I, p. 433). Neste ter-se-ia consagrado a idéia de que o artigo 1384, alínea primeira (responde-se
pelo dano (...) causado pelo fato (...) das coisas que se tem sob guarda), enuncia uma regra cuja aplicação
167
não se subordina à do art. 1382 (toda e qualquer ação do homem que causa a outrem um dano obriga
aquele, por culpa de quem este ocorreu, a repará-lo), sem que por isso se esteja no pleno domínio do risco
(cf. François Ewald. L’état providence, 1986, p. 33). Na Itália, Gennaro e Giulia Ferrari destacam a
importância de julgado da Corte de Apelação de Roma, datado de 10 de junho de 1896, em que a concessão
de indenização se fundamentou no alcance do liame contratual entre o empregador e o operário − e que
pedimos vênia para transcrever, como ilustração do modo pelo qual se oferece resposta a uma demanda nova
perante o repertório: “Se bem se considera a natureza do contrato de que se fala, é forçoso concluir que a
obrigação de o responsável pela obra tutelar a integridade pessoal do operário é ínsita ao próprio contrato,
sem necessidade de que seja expressamente estipulada. Em última análise, é o empreendedor que regula o
trabalho e estabelece o modo e os meios para conseguir o escopo comercial que se propôs; é ele quem
escolhe os instrumentos, as máquinas e a matéria prima; é ele quem determina onde, quando e como o
trabalho deve ser executado, e transmite as ordens relativas. Em suma, ele é o dominus da obra, é a mente
que dirige o trabalho e dispõe a seu talante do braço do locador. O qual de seu lado deve restar
absolutamente passivo, não pode opor-se à mente dirigente do patrão, não tem nem pode ter a escolha dos
meios seja de executar o trabalho, seja de tutelar sua pessoa, mas deve submeter-se cegamente às ordens do
responsável, a disposição do qual põe suas próprias forças, confiando-lhe sua própria pessoa. Ora, como o
patrão tem tantos e tão extensos direitos tácita, mas necessariamente, pela natureza do próprio contrato, o
qual restaria de outra forma frustrado em seus fins, assim também tácita, mas necessariamente, tem
igualmente o dever, em correspondência com os sobreditos direitos, de tutelar a integridade do operário
dele dependente. Não fosse assim, faleceriam a todos e tantos direitos ínsitos à natureza mesma do contrato
quaisquer deveres correspondentes, hipótese esta antijurídica em um contrato bilateral e de boa-fé, com é
aquele de que se trata.” O exame do conteúdo do contrato procura amparo na idéia pretoriana da restitutio in
integrum: “Além disso o operário, que loca sua mão-de-obra, não pretende (nem o poderia validamente)
168
compreender na locação também sua incolumidade pessoal, mas ao revés confia a sua pessoa ao patrão,
que a emprega à sua maneira, obrigando-se, pela natureza do contrato, a restituí-la ao fim do trabalho ao
operário no estado de incolumidade em que a recebeu.” E sinalizando indiretamente seu caráter inovador, o
julgado passa daí em diante a refutar de antemão a crítica de que ele próprio correspondesse a intromissão do
Judiciário em assuntos do Legislativo: “Nem se diga que esta teoria, que encontra sua base nos princípios
gerais do direito que regulam a contratação civil ou comercial, opõe-se ao estado atual de nossa legislação
(...). Decerto o Poder Judiciário não pode invadir, é elementar, o campo do Poder Legislativo sem ofender
os cânones fundamentais em que se alinham em virtude da Lei as liberais instituições que governam nossa
nação, mas é certo igualmente que o Poder Judiciário não excede os limites a que se circunscreve sua alta
missão, mas esclarece em obséquio à lei estatutária o exercício de suas próprias atribuições quando
interpreta com critérios diretivos jurídicos as disposições legislativas e a presumida vontade do legislador,
com o fito de podê-la aplicar retamente aos casos concretos que se submetem à sua decisão.” (Gennaro
Ferrari e Giulia Ferrari, Infortunni sul lavoro e malattie professionale, 1995, pp. 16/17). Ambos
transcrevem também excerto de uma obra de Fusinato, publicada em 1887, em que já se desenha o âmago do
que futuramente se identificará como teoria do risco profissional: “Os acidentes (...) aparecem (...), com
efeito, como acessórios inevitáveis da indústria que regularmente se reproduzem. É a própria indústria que
em si inevitavelmente encerra uma causa perene de perigo, independentemente de qualquer medida de
prudência ou prevenção que do operário ou do patrão se possa razoavelmente pretender (...). Ora, se isto é
verdade, se tais acidentes são uma condição inevitável do exercício da indútria, que se torna a única e
verdadeira razão deles, não parece justo que a indústria mesma lhes suporte o ônus? E dizendo que a
indústria deve suportar-lhes o peso, se compreende naturalmente o patrão ou o empreendedor que da
indústria extrai o lucro.” Pela cronologia, o que se pode dizer é que a pioneira elaboração da teoria do risco,
169
se foi considerada no julgamento de 1896, viu-se acolhida apenas em parte, como desdobramento do contrato
(Ibid., p. 19).
61 Ferraz Jr. distingue duas modalidades de relação de validade entre normas, de acordo com o alvo da
norma imunizante. Se ela se reporta à posição de autoridade do editor da norma imunizada, ou seja, indica em
seu relato que o editor da norma imunizada é autoridade, trata-se da validade condicional: tal é o caso das
regras que definem a investidura e competência do juiz. Se ela se dirige ao próprio relato da norma
imunizada, cuida-se da validade finalística: esse relato passa a ser exigência do relato da primeira norma, e
com isso se resguarda a posição de autoridade do emissor da segunda; é o que se passa com a norma que fixa
o salário mínimo em determinado patamar: a reação a ela é neutralizada pela norma antecedente em cujo
relato se prevê que o mínimo deva servir para manter uma família durante um mês. A discussão passa a ser
travada em torno da adequação a esse parâmetro, e não da autoridade do emissor da segunda norma. O
exemplo está em Introdução, cit. pp. 181/182; a explanação sobre a validade, em Teoria da norma, cit., pp.
109/113.
62 Ferraz Jr., Teoria da norma, cit., p. 125.
63 Ibid., mesma página.
64 Ferraz Jr., Introdução, cit., p. 188.
65 Edgard de Moura Bittencourt. O juiz comum e o direito social. In: Edgard de Moura Bittencourt, O
juiz, 2002, pp. 83/86.
66 Ferraz Jr., Teoria da norma, cit., p. 125.
67 Edgard de Moura Bittencourt. O concubinato, 1988, p. 156.
170
CAPÍTULO IV −−−− O VIGOR DA NORMA E A LIBERDADE DOS CIVES
I −−−− A COLEGIALIDADE COMO MODELO DA DECISÃO JURÍDICA
Vimos que, no modelo de Tercio Sampaio Ferraz
Junior, a figura do legislador racional comunica auctoritas à discussão hermenêutica sob a
forma de um idioma em que os falantes podem se dirigir, compreender, criticar e apreciar
uns aos outros. Não se trata de um locus passível de ocupação ou manipulação, uma vez
que as exigências de sua racionalidade promanam da experiência constituída a partir de
discussões jurídicas anteriores, e se oferecem igualmente a todos os interlocutores. O papel
unificador que por meio dele se impõe à discussão, desde o próprio interior desta, resulta
de uma estrutura de necessária horizontalidade, que se mantém e formalmente iguala os
oradores e os obriga a reconhecer todos os que se pronunciam nesse idioma e a idêntico
título. E nessa estrutura tem lugar inclusive o ato que, por ser externamente reconhecido
como potestas, pode impedir o prosseguimento da discussão, mas que o fará na medida em
que for reconhecido − ou apreciado − como exercício de auctoritas.
171
Embora inicialmente tenhamos tomado o juiz como
figura icônica do pólo normativo da comunicação, cumpre observar que o modelo de
decisão jurídica como ato de auctoritas não se reconduz ao topos da solidão do poder, uma
vez que a decisão sobre o sentido de uma norma não apenas proclama como tal aquele que
o magistrado endossa, mas igualmente abrange os sentidos cuja rejeição o judex tem de
fundamentar − incorporando-os em forma negativa a seu discurso.
Cabe antes referir esse modelo à colegialidade de um
tribunal, cujos membros, individualmente considerados, não têm domínio sobre o resultado
final do julgamento, e não se distinguem por isso de seus interlocutores: nenhum deles
pode falar apenas por si, uma vez que fala por outros (o populus representado e presente
sob a forma de partes) e para os outros falantes; e que, em função dessa peculiaridade, fala
em termos que estes e aqueles possam reconhecer como também seus – o que implica a
modulação da própria fala como discurso que se dirige a ser representativo da fala dos
demais. E se por isso todos os falantes se obrigam a ouvir o que os outros têm a dizer,
perante esse tribunal uma sentença aparece antes como um voto, e como votos se
172
decodificam também os pronunciamentos das partes, aceitos ou refutados, mas de toda
maneira englobados nas decisões.
É preciso deixar claro que aquilo que comparamos a um
tribunal é algo absolutamente diverso das instâncias recursais efetivas; algo que
compreende os amplos domínios da situação comunicativa em que os falantes de um dado
processo não são os únicos que estão engajados, mas se perfilam ao lado de toda a
representação jurídica − tal como a caracterizamos no capítulo anterior. O uso da língua
comum não apenas franqueia o acesso do juiz ou das partes ao fluxo de mensagens
constitutivo dessa situação, mas os insere (e aos argumentos que levantam) nesse fluxo, de
forma a expô-los à avaliação de todos os falantes do idioma comum: a performance de
cada um na tradução do sentido de uma norma é matéria cujo interesse de modo algum se
cinge aos limites da lide em que se processa, mas um ato essencialmente público.
Nesse âmbito, a atividade de tradução jamais chega a
um resultado que possa ser tido como definitivo, ou que, no dizer de Paul Ricœur, possua
em relação ao enunciado de origem uma identidade de sentido que possa ser objeto de
demonstração: o que se oferece é o vislumbre de uma equivalência a ser permanentemente
173
“buscada, trabalhada, presumida” – e que nos termos de nossa reflexão sobre a
auctoritas, necessita ser reconhecida. Ricœur assinala que sempre será possível criticar
uma tradução, mas aponta como único modo de o fazer “propor outra tradução que se
presuma ou pretenda melhor ou diferente.”1
Para dar conta desse traço de permanente renovação,
temos de inserir, na metáfora da situação comunicativa como um tribunal, a divisão deste
em várias câmaras, ou pólos de aglutinação de falantes, que operam em relação de
horizontalidade sobre a língua comum e que continuamente se aplicam a traduzir e
retraduzir − de maneira melhor ou diferente − o sentido das normas. Seus
desenvolvimentos resultam não apenas em um enriquecimento constante do repertório por
novas traduções, mas no refinamento das bases de efetividade de cada tradução proposta,
isto é, no reforço do equilíbrio entre as soluções alvitradas e os respectivos fundamentos,
cuja densidade se relaciona a linhas de coerência narrativa (Nadia Urbinati) às quais se
filiam.
Nessa atividade, as câmaras se empenham em
estabelecer liames entre vários pontos do sistema normativo, de forma a responder ao
174
poder negativo das partes e a se fortalecer perante a leitura crítica das demais auctoritates
– desde aquelas diretamente mobilizadas pelo caso até as que o apreciam em caráter
meramente exemplar. Cada uma delas tem seu trabalho continuamente avaliado pelas
outras, e se mede permanentemente com estas; e é de toda essa atividade crítica e
construtiva que resulta a ampliação das possibilidades de calibração do sistema frente às
correntes plúrimas da situação comunicativa, e a capacidade de naquele se encontrarem
respostas convincentes ao que nesta se formulam como perguntas angustiantes: podemos
dizer que as bases da imperatividade se fixam antes da potestas que sobre elas vem
posteriormente a se erigir.
II −−−− AS TRÊS DIMENSÕES DO VIGOR DA NORMA
Nessa linha de considerações, nossa atenção deve se
voltar agora para o tema do vigor das normas jurídicas. Tercio Sampaio Ferraz Junior
assinala que a dogmática jurídica se vale desse termo para expressar a força vinculante da
norma, isto é, a qualidade que se manifesta como a “impossibilidade de os sujeitos
subtraírem-se a seu império, independentemente da verificação de sua vigência ou
eficácia.”2 Não se trata da própria vigência da norma, que diz respeito ao tempo no qual
175
esta tem vigor, nem de sua eficácia, relacionada à respectiva observância, espontânea ou
imposta: normas revogadas e por isso de eficácia limitada podem ter vigor, que se percebe
então como ultratividade dos respectivos efeitos em relação ao tempo (já esgotado) de
vigência delas – sendo este o sentido da fórmula tempus regit actum.
Aparentemente, o vigor se relaciona de forma imediata
à obediência, e esta será em princípio tanto maior quanto menor a controvérsia sobre o
sentido ou alcance de uma norma. Mas é possível manter essa opinião depois de
identificarmos, na própria expressão verbal de uma interpretação dominante, a pluralidade
de sentidos da norma cujo afastamento teve de ser justificado, e de notarmos que essa
pluralidade chega por vezes a fundar séries normativas paralelas?
Detenhamo-nos no primeiro caso, em que é ainda mais
rarefeita do que no segundo, em termos de potestas, a inserção das possibilidades diversas
no repertório: ainda assim elas se comunicam, permitindo que se alinhave em torno delas o
que no capítulo II chamamos de uma literatura crítica das soluções predominantes − de
onde pode provir até mesmo a alteração de posições aparentemente consolidadas em
instâncias de elevada posição potestativa.
176
Assim se explica, por exemplo, que, depois de ser
rejeitada por mais de 15 anos, a tese da possibilidade de progressão de regime dos
condenados por crimes hediondos tenha passado a ser acolhida pelo Supremo Tribunal
Federal: a leitura que apontava uma incompatibilidade entre a lei e a Constituição, embora
rejeitada durante esse longo período, permaneceu em atividade, isto é, em vigor, dispondo
de auctoritas para se opor à potestas que recobria a solução dominante; e em dado
momento, o amparo de que dispunha na situação comunicativa − ou a linha de coerência
narrativa em que se inseria − pôde ser invocado como fundamento legitimador da reversão
do quadro até então estabilizado.
Em casos como este nota-se que o vigor não é um
fenômeno linear, nem se firma exclusivamente sobre a univocidade de sentido do texto
normativo − mas antes se afina com o caráter polissêmico deste. Para elucidar esse ponto,
temos inicialmente de examinar o vigor dentro da polaridade de relato e cometimento que
marca a comunicação normativa.
No plano do cometimento, em que a norma é um
certum, o vigor é experimentado pelos comunicadores em forma negativa, impedindo a
177
atitude de desconfirmação: a predicação do vigor de uma norma expressa a impossibilidade
de ignorá-la ou de fugir à sua incidência, ou seja, a percepção da norma como norma, num
estágio anterior à sua tradução em termos de modelo de conduta, a reclamar obediência. A
atitude diante do vigor negativo, oposta à desconfirmação, é aquela que Michael Oakeshott
refere como assentimento:
“Uma norma é uma asserção de autoridade, não um teorema. Ela
pode ser objeto de indagação, pode ser aprovada ou rejeitada, pode
ser referida num argumento persuasivo voltado a ‘justificar’ uma
performance ou no ato de editar um ‘comando’ sobre o que deve
ou não ser feito, e pode ser teorizada em termos de seus
postulados, mas ela não é por si argumentativa e (reconhecida
como regra) não invoca aprovação ou desaprovação, nem se
oferece como uma razão a título de justificação ou como um tema
de inquirição teórica. Ela pede apenas assentimento em qualquer
performance à qual possa se relacionar.”3
Já em forma positiva, o vigor se experimenta a partir
do relato, mas de maneira dúplice; pois antes de a norma poder se manifestar como uma
diretriz a ser obedecida, ela se oferece nesse plano como um dubium – e como tal pede a
178
atividade interpretativa, alojando em sua estrutura, ao lado da exigência de assentimento
(que se afirma no plano do cometimento), um convite à participação.4
Antes de se impor como um modelo de conduta, por
conseguinte, a norma o faz como um campo em que se disputa, de forma regrada, o
desenho desse próprio modelo; seu vigor positivo não é portanto apenas prescritivo, nem
se comunica em forma monológica, mas também é participativo, e dialógico. O aspecto
em que essa participação exige uma conduta positiva diz respeito à aceitação das regras do
debate pelo sentido da norma − cujo centro ético e lógico, como nos lembra Ferraz Jr., é o
dever de prova, e cuja sintaxe se rege pelos padrões do legislador racional − e à
obrigatoriedade de se acatar como norma apenas o que resulta desse debate, o que exclui a
possibilidade de se receber como tal algo definido fora da situação comunicativa e das
possibilidades de fundamentação nesta oferecidas.
O vigor negativo corresponde ao êxito da comunicação
normativa em indicar aos cives e aos representantes jurídicos aquilo que em suas
discussões deve ser considerado normativo. O vigor positivo-participativo, por sua vez,
reporta-se ao sucesso que essa comunicação alcança em cada ocasião na qual tais sujeitos
179
chamam para si a tarefa de atribuir sentido ao enunciado de uma norma, e se voltam para
tanto, em modo irredutivelmente plural, ao próprio sistema e ao código do legislador
racional.
É nessa dimensão do vigor que o debate sobre o sentido
de normas se caracteriza como um exercício de representação, situado entre o
questionamento dirigido pelos cives ao direito e a formalização jurídica que irá receber essa
demanda: ao passar do modo negativo ao modo positivo-participativo, a norma em vigor se
mostra aberta para alojar as plúrimas forças em que se divide o autor mediato e endereçado
direto das normas jurídicas, ou seja, o representado, que atua como povo nas eleições e
como partes no processo.
Tal abertura complementa e reforça a dimensão
negativa do vigor: já por se voltarem à especificação de uma interpretação da lei, os
representantes prestam à norma o assentimento reclamado pela sua qualidade de norma,
deixando-se orientar positivamente não pelo seu sentido, mas pelo fato de não a
contestarem como tal − o que não quer dizer que não possam, no debate que se segue,
questionar aspectos como sua validade (reputando-a por exemplo inconstitucional) ou sua
180
eficácia (eventualmente alegando que esta possa depender de uma norma ainda não
editada).
Uma norma vigora em modo positivo-participativo,
destarte, enquanto se oferece à tradução por parte dos juristas. Durante o tempo em que ela
tem o debate como seu eixo, os falantes não a ignoram, mantêm-se ligados pela discussão e
submetem-se às regras que a presidem. Assim se formulam e ganham efetividade
interpretações que, embora concorrentes, têm sua diversidade limitada pela lingua franca,
pela necessidade de se inserirem em linhas de coerência narrativa e pelo controle que
exercem umas sobre as outras, atuando cada qual em relação às demais como manifestação
fundamentada de um dissenso referido também ao código comum − e assim desligado de
quem pessoalmente o sustenta.
Cumpre assinalar ademais que o êxito para o qual
convergem todas as traduções concorrentes (e o esforço de cada qual para provar a
superioridade das linhas de coerência narrativa em que se insere) ultrapassa o plano
interno do sistema: como conjunto, as várias traduções estabelecem e consolidam pontes
para várias possibilidades de calibração do sistema, e assim o guarnecem de melhores
181
condições para evitar que o representado deixe de se dispor em partes, isto é, para evitar
que se desloque do âmbito de seu poder negativo − podendo-se dizer, a contrario sensu,
que a redução dessas possibilidades favorece a passagem das forças conflitantes do populus
à articulação positiva no campo político. O vigor em modo participativo-positivo promove
destarte um ganho de estabilidade do sistema jurídico e de suas instâncias de edição de
normas.
Resta examinar o aspecto prescritivo do vigor positivo;
e já vimos que todas as interpretações da norma, fundadas nas premissas dadas pela figura
do legislador racional, dele partilham em maior ou menor medida. Referido à norma, esse
vigor não se resume portanto à força impositiva de uma dada interpretação, mas sim do
conjunto delas e das séries normativas delas derivadas − capazes de se alternar na posição
de hegemonia, sem prejuízo da coesão do sistema.
Isto se dá porque o augere das possibilidades de
tradução da norma, derivado do vigor em modo positivo-participativo, constitui também
uma ampliação dos modos de obediência a ela, e de reforço, por essa via, da
imperatividade do sistema. A pluralidade permite antecipar e construir hoje a mudança que
182
a manutenção da imperatividade virá a exigir amanhã, em função de modificações que já se
notam em curso na situação comunicativa e a despeito de as linhas desta ainda não
haverem dado ensejo à formulação de conceitos dogmáticos correspondentes.
É certo que, em nome da segurança jurídica, os
sistemas costumam ter regras que restringem essa pluralidade e as margens de discrepância
entre as soluções de casos concretos. O vigor não se relaciona entretanto a essas regras; e
bem o demonstra o fato de, normalmente, haver nelas próprias a previsão de requisitos
especiais para o respectivo acionamento, o que evita que sejam aplicadas de forma
mecânica e remete a possibilidade de uniformização a uma cronologia dilatada. Nessa
escala de tempo, a possibilidade de uniformização resta sinalizada como objetivo a ser
permanentemente visado; mas ao mesmo tempo se abre um interregnum em que novas
soluções podem ser construídas e testadas junto às várias câmaras ou pólos de aglutinação
de falantes da língua comum.
Os cuidados previstos no desenho de procedimentos de
uniformização evidenciam a percepção de que estes encerram um custo: não se chega a
suprimir a possibilidade de eclosão de novas traduções sem um reforço potestativo a uma
183
delas já estabelecida, e sem que por isso a própria norma passe por um processo de
trivialização.5
Em relação ao primeiro aspecto, esse custo consiste no
desnudamento, pelo recurso manifesto à potestas, do caráter de violência simbólica do ato
de interpretação, que passa a se exibir como produto de relações de força que não mais se
dissimulam. Isto termina por desautorizá-lo, expondo à predicação de ilegitimidade tanto a
interpretação nele contida (que se decodifica como injusta) como a própria instância que a
impõe (que se divisa como arbitrária). Quanto ao segundo, o custo de se reduzir à
inanidade o debate sobre o sentido de uma norma reside na possibilidade de desinteresse a
respeito dela: os falantes não mais se ligam pela norma ou pela disputa a seu respeito, mas
procuram outros meios de atender a seus fins tornados inconciliáveis.
Como resultado, a norma experimenta uma redução de
sua importância na configuração do sistema; esgarçam-se as tramas de coerência narrativa
em que ela se inseria; e seu texto passa a valer como índice de um desajuste entre o que se
apresenta como norma e os meios de solução efetivos dos aspectos conflitivos da vida
social. Há portanto um estreitamento do horizonte jurídico e das margens de ação do editor
184
normativo, correlato a um crescimento de possibilidades entrópicas que passam pela
desconfirmação localizada da norma (leis que não pegam ou caem em desuso), pelo
descrédito na representação e conseqüente acionamento do poder negativo do populus no
âmbito político ou, no limite, por uma elevação da carga dramática da vida civil − seja sob
a forma de uma rearticulação do poder positivo dos representados que acresça a tensão
entre eles e seus representantes, seja pelo acréscimo de possibilidades de ruptura no
horizonte dessa cena.
Nas três dimensões do fenômeno do vigor se articulam
dessa maneira os dois planos da comunicação normativa: a coexistência de várias
interpretações do sentido da norma e o debate contínuo acerca delas como possíveis relatos
atua em como reforço do cometimento da norma, que se beneficia da pluralidade e da
crescente busca por efetividade das várias traduções de sentido, e da conseqüente redução
do risco de desconfirmação. Simultaneamente, o cometimento assim reforçado move os
falantes para a atividade de especificação de sua interpretação da lei; e do empenho deles
surgem e se sofisticam, isto é, ganham efetividade, as interpretações antagônicas.
185
A controvérsia sobre o sentido da norma não é portanto
um prejuízo a seu vigor prescritivo-positivo – que se afirma em todas as acepções nas quais
ela se traduz, e não apenas em uma delas, e que por isso também se renova com a
existência de uma margem de operação para novas traduções de sentido. A ligação entre a
dimensão participativa do vigor e a imperatividade do sistema nos permite matizar as
exigências de uniformidade de soluções jurídicas com a observação de que a insegurança
se transfere da aplicação localizada de normas ao sistema como um todo à medida em que
se passa a explorá-lo como um mecanismo fabril − no sentido arendtiano desse termo − de
supressão de desacordos. Sem serem chamados nesse caso à participação, nada impede os
cives de, como o eu poético de Drummond, darem as costas ao que aspira a ser a máquina
do mundo − e que por aspirar a sê-lo talvez encante menos do que uma qualquer pedra no
meio do caminho.
III −−−− O VIGOR DA NORMA E A LIBERDADE DOS CIVES
Aquilo que se exprime como vigor enquanto é pensado
em função da norma diz respeito, quando referido aos cives, à liberdade; e desde logo
podemos assinalar que, em face das duas acepções de liberdade definidas por Isaiah Berlin
186
como negativa e positiva,6 o vigor se posiciona de forma simetricamente oposta: em modo
positivo-prescritivo, ele afeta a liberdade negativa, enquanto que em modo negativo o faz
com a liberdade positiva − restando por discernir que aspecto da liberdade é afetado pelo
vigor em modo positivo-participativo.
Berlin assinala a ligação conceitual da liberdade ao
tema da obrigatoriedade das normas e das margens para o uso da coerção, expressa nas
questões “‘Por que devo (ou alguém deve) obedecer a outro alguém?’ ‘Por que não devo
viver conforme minha vontade?’ ‘Devo obedecer?’ ‘Se desobedeço, posso ser coagido?’
‘Por quem, em que medida, em nome do quê e por causa do quê?’”7 Respostas diferentes
para essas perguntas dão origem a sentidos políticos distintos de liberdade, e Berlin centra
a sua atenção nas duas acepções que assumiram papel central na história contemporânea.
Na primeira delas, a liberdade se apresenta como um
fenômeno negativo, como resposta à pergunta “‘qual é a área em que o sujeito − uma
pessoa ou grupo de pessoas − é ou deve ter permissão de fazer ou ser o que é capaz de
fazer ou ser, sem a interferência de outras pessoas?’” No dizer do autor,
187
“Normalmente sou considerado livre na medida em que nenhum
homem ou grupo de homens interfere com a minha atividade. A
liberdade política nesse sentido é simplesmente a área na qual um
homem pode agir sem ser obstruído por outros. Se outros me
impedem de fazer o que do contrário eu poderia fazer, não sou
nessa medida livre; e se essa área é restringida por outros homens
além de certo valor mínimo, posso ser descrito como coagido ou,
talvez, escravizado.” 8
Transposta para o campo político, tal concepção leva a
identificar a própria lei como interferência, não mais do que preferível à multiplicação de
confrontos que a diversidade de propósitos e atividades humanos podem causar − e ao caos
social ou à dominação dos fracos pelos fortes que desse estado podem surgir. Reconhece-se
por isso devido estabelecer uma certa margem dentro da qual a liberdade não possa ser de
modo algum restringida, sob pena de o indivíduo ser privado de aproveitar e desenvolver
sequer minimamente as suas capacidades; há de se “traçar uma fronteira entre a área da
vida privada e a da autoridade pública,”9 sempre mutável e discutida, especialmente em
virtude do fato de que “a liberdade não é o único objetivo dos homens,”10 mas sempre
identificável como limite à interferência − apontada como ruim em si mesma, apesar de
188
necessária, enquanto seu oposto, a não-interferência, é bom em si mesmo, malgrado não
seja o único bem.11
Normas em vigor como prescrições se reportam a esse
aspecto da liberdade − e o restringem. Sofro interferência, por exemplo, ao ser condenado a
indenizar danos provocados por um veículo que havia sido meu, simplesmente porque não
registrei a respectiva venda − tal como o Supremo Tribunal Federal em determinada época
decidia. E antes mesmo de experimentar a privação de meus bens, já antecipo a
interferência somente por receber a notícia de julgados nesse sentido − especialmente se
vendi um carro e não cuidei de registrar a transmissão de propriedade.12
Essa antecipação se torna entretanto menos cogente
quando leio o elogio de Álvaro Villaça Azevedo a tribunais que não foram demovidos de
indagar, a despeito do entendimento do Supremo Tribunal Federal, se o proprietário tem
culpa pela situação: noto uma divisão no âmbito do vigor positivo, que, se não me confere
plena segurança, ao menos reduz a perspectiva de que eu venha a sofrer interferência. E
deixo em definitivo de receá-la quando venho a saber que o Superior Tribunal de Justiça
editou súmula contrária ao antigo entendimento do Supremo Tribunal Federal (com o
189
aplauso do professor Villaça): a desconstituição dessa causa de possível ingerência em
meus assuntos amplia (ou recupera) minha esfera de liberdade em sentido negativo, ou
minha reserva de mobilidade para os atos da vida civil. Não cabe discutir aqui se a
antecipação da interferência é, em si, privação de liberdade, ou de qual aspecto da
liberdade o seja; nosso exemplo quer ilustrar a proposição de que menos regras, dissídio
quanto a seu alcance e entendimentos restritivos acerca delas significam mais liberdade
negativa.
No segundo sentido, a liberdade se mostra como um
fenômeno positivo, como resposta a questão “‘o que ou quem é a fonte de controle ou
interferência capaz de determinar que alguém faça ou seja uma coisa em vez de outra?’”13
Esse sentido de liberdade, segundo Berlin,
“Provém do desejo que o indivíduo nutre de ser o seu próprio
senhor. Desejo que minha vida e minhas decisões dependam de
mim mesmo, e não de forças externas de qualquer tipo. Desejo ser
o instrumento de meus próprios atos de vontade, e não dos de
outros homens. Desejo ser um sujeito, e não um objeto; ser movido
pela razão, e não por causas que me afetam como que de fora.
Desejo ser alguém, e não ninguém (...). Sinto-me livre na medida
190
em que acredito que isto seja verdade, e escravizado na medida em
que sou convencido do contrário.” 14
Para Berlin, enquanto a liberdade negativa é um estar
livre de, a liberdade positiva é um estar livre para; mas antes de alcançar esse estado, o
sujeito se descobre como o primeiro obstáculo à própria liberdade, percebendo-se dividido
entre uma porção que aspira a ser dominante (identificada “com a razão, com minha
‘natureza mais elevada’, com o eu que calcula e visa o que o satisfará a longo prazo, com
o meu eu ‘real’, ‘ideal’ ou ‘autônomo’, ou como o meu eu ‘na sua melhor forma’”15) e
outra que ele há de dominar (“o impulso irracional, os desejos não controlados, a minha
natureza ‘mais baixa’, a busca de prazeres imediatos, o meu eu ‘ empírico’ ou
‘heterônomo’, varrido por todo assomo de desejo e paixão”16).
Essa representação de um eu dividido dá ensejo a duas
atitudes que, embora principiem como um recuo perante o mundo, a ele voltam a se referir:
a retirada para a cidadela interior, em que o sábio resolve observar apenas a lei que ele
próprio se dá e abre mão de desejar tudo o que, no mundo da causalidade, não pode
controlar ou conseguir; e a busca de auto-realização, entendida como a adaptação de
191
minha vontade ao que eu em minha melhor forma diviso como princípios fundamentais e
necessários na ordem das coisas:
“Compreender por que as coisas devem ser como devem ser é
querer que assim sejam. O conhecimento não liberta
oferecendo-nos mais possibilidades abertas de escolha, mas
preservando-nos da frustração de tentar o impossível.”17
Na universalização desse dever ser que, pelo
conhecimento, passo a desejar, começo a julgar legítimo exercer sobre outros o domínio
que minha melhor porção exerce sobre o restante de mim; e logo me proponho a educá-los,
dirigi-los como eles próprios se dirigiriam se dispusessem da visão privilegiada de que eu
ou meus iguais dispomos, ou enfim obrigá-los a ser livres:
“Obedecendo ao homem racional, obedecemos a nós próprios: não
realmente como somos, mergulhados em nossa ignorância e nossas
paixões, criaturas fracas atormentadas por doenças que necessitam
de alguém que as cure, pupilos que requerem um guardião, mas
como poderíamos ser até agora, se ao menos escutássemos o
elemento racional que existe, ex hypothesi, dentro de cada ser
humano que mereça ser assim chamado.”18
192
Sem que se necessite chegar ao regime político do
templo de Sarastro, figurado por Berlin como modelo de um governo despótico dos que se
consideram melhores, mais sábios e, poderíamos dizer, habilitados a exercer uma
rappresentanza enfim depurada de toda rappresentazione, desdotada de qualquer
contaminação com assuntos mundanos e por isso coincidente com a vontade que qualquer
dos cidadãos possuiria se estivesse em sua melhor forma, pode-se notar na liberdade
positiva um potencial conflitivo, deletério para a liberdade alheia: enquanto que os
defensores da liberdade negativa querem erguer barreiras à imposição da vontade de um
homem sobre outro, os patrocinadores da liberdade positiva defendem a maior expansão
possível do querer dos respectivos titulares. Nas palavras de Berlin, “os primeiros querem
refrear a autoridade como tal. Os últimos a querem colocada em suas mãos”19 − o que de
modo algum significa que se disponham a exercê-la apenas em nome da redução da
interferência alheia.
É com essa espécie de liberdade que o vigor em modo
negativo se defronta: não estou totalmente livre para fazer o que desejo se percebo que
minha conduta é qualificada de acordo com critérios que não são meus, mas que gozam de
193
um assentimento generalizado e estável, e que assim se refletem sobre minhas interações
com as pessoas de meu entorno. Devo levá-los em consideração, ainda que discorde deles
e pretenda substituí-los por regras de minha própria autoria, pois minha renitência tornaria
ainda mais distante a concretização de meus planos. Momentaneamente, portanto, não faço
o que quero; ajo em certo grau de acordo com esses critérios, e procuro me refrear para
atingir maior autonomia em momento mais oportuno.
Vejo entretanto que há margem para que esses critérios
de qualificação da ação sejam discutidos e redefinidos; e assim, dirijo meus esforços para
ocupar espaços nesse processo. Há pessoas com as quais compartilho interesses e pontos de
vista, e juntamente com elas me envolvo na atividade tendente a estipular os enunciados
reconhecidos como normas: dedico-me à política. Mas além disso, percebo que os
enunciados já em vigor oferecem ainda outra perspectiva: posso discutir o sentido deles, se
isto de algum modo me afeta, reunindo-me a um representante oficial do que tem vigor
como legalidade, e às pessoas que se opõem ao que junto àquele defendo. Sou conduzido a
isso por minha própria escolha: ao iniciar a discussão, eu me afirmo como senhor de meus
atos. Mas percebo a ambigüidade salientada por Tercio Sampaio Ferraz Jr.: noto que o
194
convite à participação espera correspondência em minha abertura à persuasão, e que ao
assumir a norma como premissa de minha conduta sujeito-me, de maneira convicta, a uma
conclusão que não me favoreça, e a uma interferência em desacordo com minha vontade
primária.20 Que espécie de liberdade estou a exercitar?
IV −−−− DIREITO E LIBERDADE REPUBLICANA
O vigor positivo-participativo de uma norma modaliza
a minha liberdade positiva, oferecendo-lhe espaço na situação comunicativa: eu me afirmo,
ao assumir a possibilidade de discussão do sentido de uma norma ou seus efeitos sobre
mim, mas já não me afirmo em oposição à civitas, e sim em adesão a ela: minha liberdade
positiva se torna civilidade, e se prossigo defendendo interesses meus, devo fazê-lo
apresentando-os como formas de inter esse, de estar em meio a outros que reconheço iguais
a mim: cives.21
A civitas, contudo, não toma deliberações
exclusivamente nesse espaço de comunicação em que ingresso, e o resultado de suas
anteriores escolhas é o que se oferece neste como norma: cabe decodificá-lo. Para fazê-lo,
tenho de assumir a língua comum em que a ação dos intérpretes funda a coesão dos vários
195
pronunciamentos normativos, passíveis de serem medidos pela figura do legislador
racional. Reconheço os falantes desse idioma como auctoritates, e assim também sou
reconhecido; e não me eximo de enfrentar nenhum ponto veiculado em lingua franca, de
forma que tudo o que digo é também objeto de ponderação.
Percebo-me em gozo de uma espécie republicana de
liberdade, tal como a definem Philip Pettit e Quentin Skinner. Tais autores concebem-na
ainda em modalidade negativa, mas já em oposição a algo diverso da interferência, que
vem a ser o estado de permanente sujeição ao arbítrio alheio, a dominação: a condição em
que se encontra o escravo bem tratado, que embora não seja ordinariamente perturbado por
seu senhor, não está a salvo de uma mudança de atitude deste. Dominar é ter poder
discricionário, e a simples consciência da sujeição a um tal poder, segundo Skinner, já
equivale a uma privação de liberdade, ao germe de uma inclinação à subserviência que
pode se tornar mesmo uma deformação de caráter. 22
Não é isso que se passa numa civitas cujos membros
são concitados a participar no debate sobre o sentido de suas normas, e a recorrer à situação
comunicativa em toda a sua amplitude para contra-arrestar a ação arbitrária de terceiros. O
196
amplo acesso às linhas de coerência narrativa do sistema se torna um esteio do império da
lei contra a ação de apresamento desta por pequenos círculos; e a discussão sobre seu texto
o conduz a uma dimensão irredutivelmente pública, revigorando-o nas várias seções do
fórum em que as demandas do populus procuram a um tempo traduzi-lo e traduzir-se nele.
De modo algum se poderá falar em subserviência ou deformidade de caráter de pessoas
que, virtuosamente, confrontam normas isoladas ao conjunto do sistema e às comunicações
nele trocadas, em busca de efetivos nexos que impeçam o uso manipulador daquelas.
A liberdade republicana cresce, portanto, com a
aceitação do convite à participação; mas este não equivale à oferta de um refúgio tranqüilo
contra a dominação − e sim de um posto de combate, lembrando o que Ihering chamou de
a luta pelo direito. Afasto a dominação à custa de esforços que dirijo ao sistema, e porque
me empenho em modificar resultados que de outra forma se produziriam automaticamente
− e me alcançariam sem apelação. Mas em que sentido pode-se qualificar como liberdade o
próprio ato, aparentemente obrigatório, de encetar esses esforços?
Aqui nos parece que a concepção republicana deve
incorporar o que Hannah Arendt identifica à
197
“Liberdade de chamar à existência o que antes não existia, o que
não foi dado nem mesmo como um objeto de cognição ou de
imaginação e que não poderia portanto, estritamente falando, ser
conhecido.”23
No momento em que passo à ação, transcendo a série
causal que me levou à posição em que me encontro, e ultrapasso os próprios fins em nome
dos quais me dispus a aceitá-la: superadas as necessidades que me compelem ao labor e ao
trabalho, volto-me ao que pode ser chamado de fútil justamente por não ser obrigatório, e
de livre exatamente por não ser imperativo. Nada mais cogente do que inspiração é o que
encontro no que Arendt chama de princípios, referindo-se ao que se mostra digno de
orientar o meu agir − sem se impor sobre ele como verdade evidente, ou sem me
constranger a um programa de condutas previamente estipuladas. Minha ação se torna
dessa maneira uma epifania da honra ou glória, do amor à igualdade ou vertu, da distinção,
da excelência e, porque a liberdade também transita por regiões sombrias, e pode dar
origem a seu contrário, eventualmente de medo, desconfiança ou ódio.24
Arendt acentua que “a manifestação de princípios
somente se dá através da ação, e eles se manifestam no mundo enquanto dura a ação e não
198
mais”25− o que significa que minha inspiração não pode vir senão da ação de outros
homens e que, da mesma forma, minha ação pode a outros inspirar. Segue-se daí a
necessidade de uma permanente audiência para que os princípios se transmitam e para que
os atores se aprimorem na respectiva execução.
Agir, portanto, é agir em público; e ser dominado, nos
termos de Pettit e Skinner, é ser privado desse encontro que possibilita a ação, e
permanecer confinado ao que sem ela resta da condição humana − o labor e o trabalho. É
exatamente desse jugo que o convite à participação me liberta: se de início me vejo
enredado em uma batalha que não desejei lutar, a ocasião se descortina de súbito para que
eu possa mostrar o meu valor − e inspirar, quem sabe, homens outros que virão depois.
Na civitas, entretanto, não sou o único a atuar − e tanto
ajo quanto testemunho ações, sou emissor e receptor, comunico-me em vários pólos, colho
e transmito inspiração. Os outros todos fazem o mesmo: sem abrir mão de nossa
pluralidade individual, formamos um conjunto de homens livres. E se o campo em que nos
aprimoramos no exercício da liberdade é o da deliberação sobre os processos de controle
da vida em civitas, nada autoriza supor que neste possa medrar o automatismo: sempre há
199
espaço, na voz de algum de nós, para se diga o que ainda não foi dito, se revele o que ainda
não foi notado, se antecipe o indesejado acontecimento até agora não previsto e ainda
passível de ser evitado, ou se traduza o velho texto de uma forma absolutamente nova, e
mesmo redentora, expondo-se à apreciação e ulterior ação dos outros algo que fará
interromper, como por milagre, no dizer de Hannah Arendt,26 a repetição daquilo que nos
petrificara e conduzia à ruína − embora até aqui não o soubéssemos.
Se coube a mim ser a pessoa que a inspiração por
primeiro alcançou, procuro esmerar-me ao máximo na busca de dar efetividade ao que
tenho a dizer. Devo ampliar meus horizontes até o que hoje são os limites da língua, ou da
situação comunicativa: tudo o que se tenha vertido nela pode ser retomado, se possuir
relação com as questões presentes, e haverá de ser pesado. No timbre de minha vox o novo
traz portanto o eco de séculos; e mesmo se sou derrotado, esse timbre e minha marca
moldam o discurso que os rejeita, e dali continuam a se fazer ouvir. Sou vencido, mas não
sou calado; submeto-me sem que isso signifique sucumbir. Meu pathos não se confunde
com o de quem vive sub potestate: não sou dominado, estou e me reconheço sub
200
auctoritate. E sub auctoritate sou minoria, voto vencido, parecer dissonante − mas não o
habitante de um gueto. Posso falar, e falo; ouvir, e ouço; e além disso espero.
***
NOTAS:
1 Vale transcrever o excerto todo, pela abrangência que Ricœur confere à idéia de tradução em domínios bem
mais amplos do que o direito: “Une bonne traduction ne peut viser qu’à une équivalence presumée, non
fondée dans une identité de sens démontrable. Une équivalence sans identité. Cette équivalence ne peut être
que cherchée, travaillée, presumée. Et la seule façon de critiquer une traduction – ce qu’on peut toujours faire
–, c’est d’en proposer une autre presumée, prétendue, meilleure ou différente. Et c’est d’ailleurs ce qui se
passe sur le terrain des traducteurs professionels. En ce qui concerne les grands textes de notre culture, nous
vivons pour l’essentiel sur de re-traductions à leur tour remises sanas fin sur le métier. C’est le cas de la
Bible, c’est le cas d’Homère, de Shakespeare (...) et, por les philosophes, de Platon jusqu’à Nietzsche et
Heiddeger.” Paul Ricœur. Le juste 2. 2001, p. 134.
2 Ferraz Jr., Introdução, cit., p. 199.
3 “A rule is an authoritative assertion, not a theorem. It may, of course, be argued about, it may be approved
or disapproved, it may be referred to ina a persuasive argument designed to ‘justify’ a performance or in
giving a ‘ruling’ about what should or not should be done, and it may be theorized in terms of its postulates,
but it is not itself argumentative and (recognized as a rule) it does not invoke approval or disapproval or offer
itself as a reason in plea of justification or as a subject of theoretical inquiry. It calls only for assent in any
performance to wich it may relate.” Oakeshott, On human conduct, cit., p. 125. E esse assentimento não
201
implica a adoção de uma determinada conduta ou a intelecção da norma num dado sentido, mas apenas a
constatação de que ela estipula “considerações a serem reconhecidas e levadas em conta ao agir”
(“considerations to be acknowledged and taken account of in acting.”Ibid., p. 126) e assim requer uma
“adesão inteligente distinta de mera obediência” (“intelligent subscription distinguished from mere
obedience.” Ibid., p. 127).
4 Ferraz Jr., Teoria da norma, cit., p. 46.
5 Ou a alta dose de indiferença em face das diferenças que, já sem que se perceba, vêm da norma: cf. Ferraz
Jr., Introdução, cit., p. 168.
6 Isaiah Berlin. Dois conceitos de liberdade. In: Berlin, Estudos sobre a humanidade, cit., pp. 226/272.
7 Ibid., p. 228.
8 Ibid, mesma página.
9 Ibid., pp. 230/231.
10 Ibid., p. 232.
11 Ibid., p. 234.
12 Álvaro Villaça de Azevedo. Teoria geral das obrigações: responsabilidade civil, 2004, p. 285.
13 Berlin, Dois conceitos de liberdade, cit., p. 228.
14 Ibid., pp. 236/237.
15 Ibid., p. 237.
16 Ibid., pp. 237/238.
17 Ibid., p. 248.
18 Ibid., p. 253.
19 Ibid., p. 267.
20 Ferraz Jr., Teoria da norma, cit., p. 46.
202
21 Benveniste assinala o peso desse reconhecimento entre os romanos, notando que a palavra latina civitas é
derivada de civis, ao contrário do que se dá em grego, língua em que polites deriva de polis − e se figura esta
como anterior a seus membros. Cf. Émile Benveniste. Problèmes de linguistique générale, 2, 2006, pp.
272/280.
22 Cf. cap. I, nota 14.
23 Arendt, Entre o passado e o futuro, cit., p. 198
24 Ibid., p. 199.
25 Ibid., mesma página.
26 Ibid., p. 218.
203
CAPÍTULO V −−−− CONCLUSÃO
Procuramos no presente trabalho refletir sobre o direito
em quadros distintos do poder, embora relacionados à vida da civitas; e a partir do
pensamento de Tercio Sampaio Ferraz Junior, seguimos indicações deixadas por Hannah
Arendt, e encontramos na idéia romana de auctoritas a codificação, em registro mítico, de
uma experiência de superação de verticalidades em conflito por meio do refreamento dos
desejos − ou de uma abnegação que, por meio do uso da palavra, possibilita o
reconhecimento de outros e uma mudança nas próprias identidades dos antagonistas do
momento anterior, à qual se segue a abertura de um espaço horizontal em que se torna
possível traçar balizas para a instituição de um novo agir conjunto: um poder que se funda,
graças ao julgamento e à ação.
A decodificação dessa experiência nos levou a abordar
em ótica diversa, com apoio em Cicero Araujo, a relação que em autores como Bobbio e
Kelsen se desenha − ou se retrata − como uma unidade plena e constante entre a norma
jurídica e o poder; e na teoria da interpretação de Tercio Sampaio Ferraz Junior, centrada
204
na idéia de tradução, encontramos os elementos da dramaticidade característicos da
experiência da auctoritas, mas modernamente jungidos à figura de um legislador cuja
racionalidade consiste em oferecer aos comunicadores jurídicos uma linguagem em que se
torna possível a compreensão de uns pelos outros, a apreciação dos vários empenhos em
traduzir as normas e atualizar-lhes o sentido, e a permanência no diálogo sob a condição de
se levar em conta tudo o que é versado pelos interlocutores no idioma comum.
Vimos que essa peculiar estrutura da comunicação
jurídica introduz na contínua troca de mensagens − ou situação comunicativa − da qual ela
faz parte muito mais do que aquilo que oficialmente vem a ser declarado como o sentido de
uma norma jurídica: na medida em que a recusa de toda interpretação divergente tem de ser
fundamentada, a própria afirmação de um dado sentido não se separa da indicação, ainda
que em forma negativa, de pontos de partida para a sua crítica. E esse ancoramento no
discurso oficial permite que as soluções divergentes venham a constituir uma literatura, e
que sob essa forma prossigam em comunicação com os falantes da lingua franca, como
questionamentos dirigidos à solução predominante.
205
Considerando o crédito de confiança para a tradução do
sentido das normas como o equivalente a um mandato, abordamos em seguida o tema da
representação política, encontrando em Bobbio dois sentidos de representação,
correspondentes grosso modo a “substituição” (rappresentanza) e “espelhamento”
(rappresentazione), e um regresso dos interesses particulares a uma arquitetura
institucional imaginada para afastá-los; e em Jellinek, a distinção entre a população e sua
articulação como órgão para a escolha de representantes, ou povo, e a presença, nas regras
que dão forma a este, de dispositivos destinados a assegurar que os representantes
procurem espelhar os representados.
Nadia Urbinati nos mostrou entretanto que, se não se
concebe a representação a partir do Estado, nota-se que a população nunca deixa por
completo de ser povo, seja porque conserva um poder negativo com o qual procura corrigir
os rumos de seus representantes, seja porque mantém com estes um diálogo contínuo,
estabelecido pela repetição periódica de eleições − o que ativa linhas de coerência
narrativa a partir das quais os representantes passam a ser julgados pelos eleitores, e as
demandas sociais têm acesso à cena política.
206
O reconhecimento do caráter aproximativo da
manifestação eleitoral e de seu fundamento em questões que a um tempo persistem em uma
longue durée e não expressam divisões irreversíveis no eleitorado reduz ademais o peso de
vitórias e derrotas no jogo das urnas, e estimula os respectivos atores a procurar antes
melhor sintonia com os votantes do que o estabelecimento de dissidências do próprio
sistema institucionalizado. Nesse contexto mais duradouro, a rappresentanza deixa de ser
vista como “substituição” para ser tratada como uma forma de exercício da “advocacia;” e
a rappresentazione passa de “espelhamento” rígido a “semelhança de perspectivas”
estabelecidas entre identidades passíveis de comunicação e mudanças − num processo de
abertura à opinião e ao julgamento que confere narratividade a elas próprias.
Voltando-nos em seguida a Kelsen, pudemos observar
que, se em seu pensamento o direito corresponde ao método fundado na coação pelo qual
se transforma em uma ordem de condutas desejáveis a política em estado bruto, esta nunca
deixa entretanto de existir como tal, nem nunca se suprime por completo a liberdade
humana. Ante tais premissas, e à luz das considerações kelsenianas sobre a interpretação,
pudemos concluir que o processo pode ser visto como uma estrutura que se alimenta do
207
que não deixa de ser um exercício político das partes − tendo por fim transformá-lo em
parte da ordem, ao canalizá-lo para o seu interior.
Sob essa perspectiva, pudemos aplicar ao processo os
desenvolvimentos sobre a representação política; e assim identificamos nele um
movimento da rappresentazione para a rappresentanza e desta para a formalização, numa
dimensão da vida da civitas em que as figuras do advogado e do juiz atuam como
representantes, e as partes constituem a manifestação do representado.
O advogado exerce em primeiro lugar uma função de
rappresentanza: ao procurar uma semelhança de perspectivas entre os interesses de quem o
consulta e o discurso jurídico, ele molda a pessoa como parte, e se torna representante do
próprio discurso antes de ser da parte − colocando-se no lugar de seus possíveis
interlocutores nessa seara e avaliando o que poderiam reconhecer como frases do idioma
comum a todos.
É apenas perante esses falantes que o manejo do código
partilhado tendente a expressar o que se possa dizer em favor da parte se apresenta como
rappresentazione. Em contrapartida, o que eles notam na voz do advogado é o timbre da
208
parte, que constitui para o direito algo novo, um augere em relação ao que antes havia.
Esse augere preenche o aspecto do relato de sua fala e remete ao cometimento a auctoritas
derivada do emprego da lingua franca; mas a operação desta e a efetividade de que o
advogado dota sua fala conduzem o discurso da parte à esfera de consideração obrigatória
por parte do juiz, levando-o a argumentar em pé de igualdade com os demais falantes − ou
a ingressar em uma relação na qual, sem lançar mão de poderes de magistrado, tem de
avaliar como judex as questões que lhe são dirigidas.
Antes de exercer sua rappresentanza, o juiz se abre à
rappresentazione das partes; e ao fazê-lo, tem acesso a todo o repertório do sistema
normativo e a todo o fluxo de mensagens emitidas e recebidas pelos falantes do sistema,
incumbindo-se de haurir força, nesses domínios e na mais ampla porção da vida social que,
perpassando-o, pode ser traduzida em lingua franca, para a sua resposta ao problema − que
se incorpora como tal ao sistema, e poderá ser acessado ulteriormente por outros falantes
em toda a sua riqueza − e não apenas em vista do aspecto resumido na solução que lhe foi
dada.
209
Nesse plano, finalmente, identificamos as partes como
manifestações do representado, que na defesa de seus interesses cobram soluções dos
representantes jurídicos, avaliando seu desempenho como intérpretes da legislação. O
processo pode ser visto como uma sede de exercício do poder negativo de que o populus
dispõe; e a efetividade de que esse exercício se vê dotado − por força da advocacia − chega
a se comunicar com as regras de calibração do sistema, a que os juízes têm de recorrer se o
caso se mostra ensejador do risco de insucesso na resposta a ser proferida de acordo com as
vias ordinárias de imunização, isto é, se pelo que se depreende do conjunto da situação
comunicativa, a resposta pragmaticamente válida corre o risco de ser desconfirmada como
resposta − malogrando portanto como comunicação normativa.
O ato de potestas que a sentença é mostra-se portanto
fundado essencialmente em auctoritas; e o exercício desta confere ao pólo normativo da
comunicação jurídica as feições e a polifonia de um tribunal, em cujas câmaras a contínua
atividade de tradução do sentido das normas resulta no fortalecimento de plúrimas séries de
coerência narrativa, e no reforço da capacidade do sistema de responder convincentemente
às demandas que lhe são endereçadas.
210
A garantia da imperatividade do sistema pelo conjunto
articulado dessas séries, em que é uma constante a possibilidade de disputa entre elas pelo
sentido de uma dada norma, nos leva ao exame do tema do vigor da norma, que se
estabelece de forma igualmente plural. Propusemos desdobrá-lo em três aspectos:
associada ao plano do cometimento, uma dimensão negativa, que corresponde à percepção
de que a norma possui um sentido obrigatório (normativo) que requer uma atitude de
assentimento, simetricamente oposta à desconfirmação; e ligadas ao plano do cometimento,
em que a norma é um dubium, duas dimensões: antes de ser uma diretriz a requerer
obediência − ou seja, antes de seu vigor lhe emprestar um caráter irrecorrivelmente
prescritivo −, a norma se desdobra em um convite à participação na definição de seu teor.
O sucesso pragmático da norma se estende afinal ao
que podemos chamar de desarmamento dos cives, e tem um momento crucial no êxito
correspondente à aceitação desse convite, que confere estabilidade ao sistema jurídico e
desestimula a busca de soluções em outras instâncias (formais ou políticas, informais ou
mesmo conflitivas). Não se pode equiparar portanto o vigor positivo-prescritivo da norma à
obediência a uma única de suas interpretações: as formas de seguir uma norma não são
211
dadas de antemão, mas se revelam na própria (e plural) atividade de traduzi-la, e nos vários
resultados a que se chega ao cabo desse processo. A redução dessa pluralidade por um
esforço de poder desautoriza o sistema e dele desinteressa os cives − que podem passar a se
valer de outros meios para resolver suas diferenças.
Pudemos enfim avaliar em referência aos cives o que do
ponto de vista da norma se mostra como vigor, refletindo sobre a liberdade; e nesse aspecto
observamos que o vigor positivo-prescritivo interfere na esfera de liberdade negativa,
enquanto que o vigor negativo restringe a liberdade positiva. A procura de especificação do
modo pelo qual o vigor positivo-participativo se relaciona à liberdade nos conduziu ao
exame da liberdade republicana, conceituada como não-dominação por Philip Pettit e
Quentin Skinner; mas apenas conseguimos sair do registro negativo dessa idéia e nela
abrangermos a atividade positiva de precisar o sentido de uma lei, a partir da idéia
arendtiana da liberdade como ação, resultante do não-confinamento do homem às
dimensões do trabalho e do labor, e da interrupção dos automatismos característicos dessas
duas condições.
212
Apenas na ação, em que o homem se encontra diante da
possibilidade de se inspirar em princípios desvelados em ações pretéritas, ele tem ocasião
de se mostrar à altura delas, e de deixar sua própria marca na memória coletiva. É
justamente na futilidade desse empreendimento que reside a sua grandeza: sem ser
necessário, sem imposição, cada um dos cives que se veja em um conflito pode se voltar ao
direito e interpelá-lo; e nesse plano alargado, a própria derrota pode não ser experimentada
apenas como perda − havendo possibilidade de ser reformulada como parte de uma gesta −,
e há sempre a possibilidade de encontro com vozes que se aliem a uma dada tese,
tornando-a vitoriosa.
Para resumir em poucas palavras nossas conclusões,
poderíamos nos valer, desde que nos fosse assegurado retraduzi-la, da conhecida máxima
hobbesiana: auctoritas, non veritas, facit legem. Os resultados a que se chega em direito
não têm, jamais, a força compulsória da verdade definitiva, e não se empresta a eles
semelhante potência sem violentar o delicado equilíbrio entre sua autoridade, a auctoritas
que provém da língua comum do legislador racional, e o reconhecimento que esta logra
obter, pelo virtuoso desempenho de seus falantes.
213
De outra parte, auctoritas não é potestas, e menos ainda
imperium: se o direito possui uma imprescindível dimensão de verticalidade, na complexa
articulação da vida da civitas em que ele e a política se diferenciam, se entrelaçam e −
esperamos havê-lo mostrado − se complementam, e na temporalidade dilatada em que lhe
cabe também oferecer respostas duradouras para questões fundamentais, por vezes mais
duradouras do que as que surgem da competição política, a vocação nem sempre enfatizada
de suas instâncias é antes de fundar novas bases do agir conjunto do que de consumir as já
existentes; e antes de se oferecer como espaço para o encontro de pessoas que julgam,
agem, e por isso são capazes de inspirar umas às outras, do que de tentar substituí-las por
ícones de granito − em desolada uniformidade.
***
214
RESUMO
Examinando-se a idéia romana da auctoritas, encontra-se nela o
registro, em linguagem mítica, da experiência de superação do conflito de vontades antagônicas e da
instalação de um espaço horizontal em que se torna possível, graças ao julgamento e à ação, fundar as bases
de um novo agir conjunto. Tal perspectiva permite analisar em chave distinta as relações entre direito e
poder, abrindo espaço para a compreensão do direito como um fenômeno plural e dotado de dramaticidade,
em cujo centro a figura do legislador racional, forjada a partir da experiência jurídica, não comunica potestas
aos interlocutores jurídicos, mas sim a auctoritas de uma linguagem em que as mensagens de uns a outros
podem ser traduzidas, nenhuma delas pode ser ignorada, e mesmo aquelas que não se traduzem em decisões
prosseguem dotadas de força comunicativa. Investiga-se em seguida o direito como palco de representação,
confronto, reformulação e ajuste de interesses, identificando-se o processo como órgão de que a civitas se
vale para captar o político, e o populus representado para expressar o seu julgamento a respeito dos
resultados globais da representação jurídica e política – eventualmente ensejador da mobilização de regras de
calibração para a emissão, pelos comunicadores normativos, de respostas dotadas de auctoritas, e afinadas
com os problemas apresentados pelas partes. Passa-se então ao exame da relação entre o vigor das normas
jurídicas e a liberdade dos cives, mostrando-se que o êxito pragmático da comunicação normativa não se
relaciona à imposição potestativa de um sentido único, mas à manutenção de um espaço em que se oferece
aos cives, como alternativa aos riscos de violência e dominação do campo político, a possibilidade – e a
liberdade – da ação dentro do sistema jurídico.
En examinant l'idée romaine d'auctoritas, on y trouve le rapport,
en langage mythique, de l'expérience du dépassement du conflict des volontés antagoniques et de
l'tablissement d'un espace horizontal où il devient possible, grâce au jugement et à l'action, fonder les bases
d'un nouveau agir conjoint. Cela rend possible une analyse distincte des rélations entre le droit et le pouvoir,
et la compréension du premier comme un phénomène pluriel et doué de la dynamique d'un drame, au cœur
duquel la figure du legislateur rationnel, bâti au sein de l'experience juridique, ne communique point de
potestas aux interlocuteurs juridiques, mais si l'auctoritas d'un langage où les uns peuvent traduire ce que les
autres leur disent, où aucune message ne peut pas être ignorée et où même celles qui ne réussissent pas à
fonder des décisions conservent leur force communicative. On examine ensuite le droit comme scène de
représentation, confrontation, reformulation et ajustement d'interêts, et l'on reussit à identifier le procés
comme organe dont la civitas se sert pour saisir le champ politique, et dont le populus representé se vaut
pour exprimer son jugement sur les resultés de l'activité des representants des champs juridique et politique.
Ce jugement peut, à la limite, mettre en mouvement des règles de calibrage, qui assurent l' auctoritas des
reponses des communicateurs normatifs et leur consonance avec les problèmes soulevés par les parts du
procés. L'on reflet ensuite sur la relation entre la vigueur des règles de droit et la liberté des cives,et l'on voit
215
que le succès pragmatique de la communication normative n'equivaut pas à l'imposition potestative d'un
sens unique, mais plutôt à la manutention d'un espace où les cives jouissent de la possibilité et de la liberté
de l'action dans le systhème juridique, comme voie alternative aux risques de violence et de domination du
champ politique.
When examining the Roman idea of auctoritas, it is found, in her,
the register, on a mythical language, of an experience of overcoming a conflict between antagonistic ideas
and also the installation of a horizontal space in which it becomes possible, thanks to judgment and action,
to establish the bases of a new act together. This perspective allows one to analyze in another way the
relations between the law and the power and to understand the law as a plural phenomenon, endowed of a
dramatic aspect, in the center of which the figure of the rational legislator, forged from the legal experience,
does not communicate potestas to the legal speakers, but the auctoritas of a language in which the messages
from ones to the others can be translated, none can be ignored, and even the messages that do not evolve to
decisions retain a communicative force. It is investigated afterwards the law as a stage of representation,
confrontation, reformulation and adjustment of interests, identifying the legal proceedings as an organ of
which the civitas makes use to seize the politic field, and which the populus represented uses to express his
judgment about the global results of legal and political representation – sometimes providing the
mobilization of shift rules to the emission, by the normative communicators, of answers endowed with
auctoritas, and consonant with the problems presented by the litigants. One examines then the relation
between the biding force of legal norms and the cives' liberty, revealing that the pragmatic success of
normative communication is not related to the imposition by potestas of a unique sense, but to the
maintenance of a space in which it is offered to the cives, as an alternative to the risks of violence and
domination on the politic field, the possibility – and the liberty – of the action inside the legal system.
216
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