legoff
DESCRIPTION
documentoTRANSCRIPT
REVISTA LITTERIS No 2 ISSN: 1982-7429www.revistaliteris.com.br Maio 2009
O QUE FALTOU A LE GOFF
resenhado por: Filipe Azevedo 1
Livro: Os Intelectuais na Idade Média
Autor: Jacques Le Goff
Editora: José Olympio
Ano: 2003
1 (Bacharel e Licenciado em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, Brasil) e-mail: [email protected]
REVISTA LITTERIS No 2 ISSN: 1982-7429www.revistaliteris.com.br Maio 2009
O intelectual na Idade Média, no Ocidente,
nasce com as cidades. A divisão em classes sociais
na Idade Média, não expressava uma verdadeira
especialização do trabalho, como queria Adalbéron
de Laon.
“Os clérigos podiam assumir em dado
momento, a figura de professores, sábios,
escritores”.
Sinal de novos tempos em pesquisa histórica:
“Os magníficos manuscritos da época – carolíngia –
são obras de luxo. O tempo que se despende em
escreve-los, com uma bela escrita – a caligrafia é
sinal, mais ainda do que a cacografia, de uma época
inculta, quando a demanda de livros é muito fraca –
a orna-los esplendidamente, seja para o Palácio, seja
para alguns grandes personagens laicos ou
eclesiásticos, demonstra que a velocidade de
circulação dos livros é ínfima”.
Próprio da época era a idéia de copiar os
antigos a fim de superá-los. Nos antigos, eles
buscavam especialistas em ciência, enquanto os
Padres da Igreja e a Escritura eram reservados, de
preferência, à Teologia. Como exceção, podemos
citar o Gênesis, que poderia ser considerado uma
obra de ciências naturais e cosmologia.
As obras dos antigos foram conhecidas no
Ocidente cristão medieval, através dos muçulmanos,
e em muitos casos traduções árabes. “As cidades são
centros de irradiação na circulação dos homens, tão
plena de idéias como de mercadorias, lugares de
trocas, mercados e encruzilhadas do comércio
intelectual”.
REVISTA LITTERIS No 2 ISSN: 1982-7429www.revistaliteris.com.br Maio 2009
“Junto com as especiarias e as sedas, os
manuscritos trazem a cultura greco-árabe para o
Ocidente cristão”.
Espanha e Itália foram os grandes centros
onde se fazia a tradução dos tratados científicos
gregos e árabes. Já a França, com destaque para
Paris, funcionou como o local onde essa cultura era
incorporada ao Ocidente e redistribuída – “A França
se encontra em uma zona especial de trocas e de
elaboração de produtos acabados, para onde
convergem o mundo do Norte e o mundo do Sul”.
Os meios monásticos nesse momento
reclamavam um retorno ao espiritualismo do
Oriente, o que entrava em choque com as tendências
dominantes entre os intelectuais urbanos. Mas é este
mesmo espírito oriental, que fará com que os
monges deixem o espaço livre para os intelectuais” .
“É significativo que a poesia goliárdica
atacasse – antes mesmo que isso se tornasse um
lugar-comum dentro da literatura burguesa – todos
os representantes da ordem na Alta Idade Média: o
eclesiástico, o nobre e até o camponês”.
Na Igreja, os goliardos tomam por alvo
favorito aqueles que, social, política e
ideologicamene, estão mais intimamente ligados às
estruturas da sociedade: o papa, o bispo e o monge”.
“No pontífice romano e sua corte, eles visam
o chefe e os responsáveis por uma ordem social,
política e ideológica, ou melhor, por toda a ordem
social hierarquizada, pois, por mais revolucionários ,
os goliardos são antes anarquistas”.
“Homem da cidades, o goliardo manifesta
também seu desprezo pelo mundo rural, e não
REVISTA LITTERIS No 2 ISSN: 1982-7429www.revistaliteris.com.br Maio 2009
demonstra senão abominação pelo camponês
grosseiro, conforme a célebre Declinação do
Rústico”.
Apesar de terem influenciado os
universitários do século XIII e de terem lançado
temas precursores, os goliardos foram relegados para
a periferia do mundo intelectual. A sua natureza
libertina entrava em choque como a “fixação do
movimento intelectual em centros organizadores –
as universidades”.
Por ironia do destino, a primeira grande
figura de intelectual moderno é um professor e
goliardo chamado Abelardo, que foi um mestre na
arte da dialética e travou vários embates intelectuais.
O tema do qual ocupou-se foi a Teologia e a Moral.
Mas o grande centro científico do século XII
é Chartres, cujos intelectuais estudavam a natureza
em si mesma, desligada de Deus, ou seja, onde se
dava o florescimento de uma ciência racional.
“Os chartrianos vêem o homem antes de tudo
como um ser racional. É nele que se opera a união
ativa entre a razão e a fé, que é um dos ensinamentos
fundamentais dos intelectuais do século XII”.
“Sem dúvida, a última palavra desse
humanismo é que o homem, que é natureza e que
pode compreendê-la por meio da razão, pode
também transformá-la por sua atividade”.
“Chartres formou sobretudo pioneiros. Em
Paris, após as tempestades provocadas por Abelardo,
espíritos moderados buscam incorporar aos
ensinamentos tradicionais da Igreja tudo que se
pudesse tomar de empréstimo aos inovadores sem
provocar escândalo”.
REVISTA LITTERIS No 2 ISSN: 1982-7429www.revistaliteris.com.br Maio 2009
O espírito de livre discussão e crítica
inaugurado pelos goliardos e os chartrianos,
constituíam em si mesmos a essência da
Universidade.
“É como um artesão, como um profissional
comparável aos demais citadinos, que se sente o
intelectual urbano do século XII. Sua função é o
estudo e o ensino das artes liberais(...)Arte é toda
atividade racional e justa do espírito, aplicada tanto à
produção de instrumentos materiais como
intelectuais: é uma técnica inteligente do fazer”.
“Resta a esses artesãos do espírito,
engendrados no desenvolvimento urbano do século
XII, organizarem-se dentro de um grande
movimento corporativo, coroado pelo movimento
comunal. Essas corporações de mestres e estudantes
serão, no sentido estrito da palavra, as
universidades. Esta será a obra do século XIII”.
As Universidades surgem no século XIII
como corporações de ofício, dentro do espaço físico
eclesiástico. A Universidade conquistou sua
autonomia através de greves; secessões e do
prestígio que possuía nos meios laicos e eclesiásticos
– conselheiros e funcionários eram recrutados nas
universidades. Mas a principal ajuda veio do papado,
que assegurou essa autonomia e expandiu o ensino
universitário para a cristandade, malgrado a
Universidade ter ficado submetida à Santa Sé e os
intelectuais do Ocidente terem se tornado, de alguma
forma, agentes pontificiais.
REVISTA LITTERIS No 2 ISSN: 1982-7429www.revistaliteris.com.br Maio 2009
“Nascidos de um movimento que tendia à
laicidade, eles pertencem à Igreja, mesmo quando
procuram institucionalmente sair dela”.
“O poder da corporação universitária se
baseia em três privilégios essenciais: a autonomia
jurisdicional – no quadro da Igreja, com certas
restrições locais e poder de apelação ao papa – , o
direito de greve e secessão e o monopólio na colação
dos graus universitários”.
Os rituais iniciáticos pelos quais passavam os
jovens recém admitos na Universidade, expressavam
o caráter urbano da instituição, pois eram cerimônias
que deixavam entrever que o “calouro” deixava a
rusticidade do campo para ingressar na urbanidade.
O livro torna-se um instrumento de trabalho
do intelectual, algo que não acontecera na Alta Idade
Média, quando era mais um objeto de adorno e
distinção. Isto pode se verificar na mudança do tipo
de letra empregado – cursiva. O século XIII, é
também a era dos manuais, do livro manuseável e
manuseado.
Um dos problemas enfrentados pelos
intelectuais medievais e os estudantes, era o do
sustento. Havia, para resumir, duas opções para os
primeiros: salário ou benefício. De preferência,
escolhiam ser pagos pelos estudantes, pois esta
forma de pagamento lhes oferecia liberdade
intelectual, principalmente. Além de ser um hábito
comum da área urbana da qual se consideravam
membros. Já no caso dos estudantes, ou eram
sustentados pela família ou um benfeitor; ou
recebiam uma bolsa. O papado procurou resolver
esse problema proclamando a gratuidade do ensino.
REVISTA LITTERIS No 2 ISSN: 1982-7429www.revistaliteris.com.br Maio 2009
“Ao mesmo tempo, deveria ser criada, junto a cada
catedral, uma escola cujo mestre teria sua existência
assegurada pela atribuição de um benefício”. Isso
era desfavorável para os intelectuais, pois os tornava
mais ligados à Igreja. “O resultado foi que somente
podiam ser professores nas universidades aqueles
que aceitassem essa dependência material em
relação à Igreja”. As escolas laicas que foram
fundadas nesse período ministravam um ensino
técnico, destinado essencialmente aos comerciantes.
A entrada das Ordens mendicantes nas
universidades, que de uma maneira geral, sempre foi
corroborada pelos papas, era já uma contradição em
si. Já vimos que o intelectual definia-se por alguém
que fazia do ensino seu sustento. As disputas deram-
se tanto no campo corporativo como no intelectual.
Havia outras contradições na escolástica medieval,
advindas do fato de prestigiarem Aristóteles como O
filósofo. Esta atitude desembocou em duas
tendências: tomista e averroísta. A primeira tentando
conciliar Aristóteles e as Escrituras, enquanto a
segunda seguia tanto um quanto outro.
É na faculdade de Artes – que antecedia o
doutorado e a licenciatura – que se encontrava a
alma da Universidade. Era onde vigorava o espírito
laico, pois seus componentes eram “os eruditos
pobres que não chegaram a obter a licenciatura e,
menos ainda, o dispendioso doutorado, mas que
animam os debates com suas questões inquietas. É
ali que se está mais próximo da população das
cidades e do mundo exterior, e que há menor
preocupação com a obtenção de prebendas ou com o
risco de desagradar à hierarquia eclesiástica”.
REVISTA LITTERIS No 2 ISSN: 1982-7429www.revistaliteris.com.br Maio 2009
“Foi no meio averroísta da faculdade de Artes
que se elaborou o mais rigoroso ideal de intelectual”.
Os intelectuais acabaram se afastado da
massa laica, pois mergulharam na abstração da
procura da Verdade, além de terem permanecidos
reclusos no latim.
Outra tendência dos intelectuais escolásticos
é a de constituírem uma tecnocracia intelectual. De
fato, “os mestres universitários se apoderam, em fins
do século XIII, de altos cargos eclesiásticos e
laicos”.
Com o declínio da Idade Média e o
surgimento dos Estados Nacionais, as Universidades
vão se fechando cada vez mais para o povo e se
elitizando. Enquanto isso, os professores vão se
unindo “aos grupos sociais que vivem de rendas de
tipo feudal, senhorial ou capitalista”. Os membros
das universidades passam então a investir sua
fortuna em casas e terras, tornando-se inclusise
usurários. Porém, devido ao próprio declínio pelo
qual passava o mundo medieval ocidental, essas
propriedades tiveram que ser vendidas, e esses
intelectuais buscaram outras formas de conservar
suas riquezas. Procuraram então, as cortes de
príncipes e séquito de mecenas eclesiásticos e laicos.
Outro fator que ajudou na elitização – e no
declínio qualitativo – da Universidade foi a
formação de uma aristocracia hereditária, formada
por filhos de doutores que ingressavam
gratuitamente e recebiam com facilidade o título de
doutor. O meio universitário tornava-se mais e mais
uma nobreza. O estilo de vida de seus membros e a
REVISTA LITTERIS No 2 ISSN: 1982-7429www.revistaliteris.com.br Maio 2009
adoção de diversos símbolos, como luvas, togas e
capuzes, os diferencia como classe social de elevado
nível.
“Compreende-se que personagens tornados
tão eminentes não aceitem mais o risco de serem
confundidos com trabalhadores. Seria renunciar à
nobreza em virtude do princípio da perda de
dignidade, tão forte, sobretudo na França, onde Luís
XI lutará em vão contra ele”.
A escolástica desse período cede lugar à um
retorno do antiintelectualismo – a “santa
ignorância”. O que não ocorreu de uma hora para
outra, pois todo processo iniciara-se bem antes
durante as querelas entre tomistas e averroistas.
Com o advento dos Estados Nacionais, a
Igreja perde boa parte do seu poder e as
universidades tornam-se mais laicas, acabando com
a distinção entre o temporal e o espiritual, tornando-
se ambos assuntos de Estado.
Com a influência das universidades italianas,
mais ligada ao mundo clássico que Paris e Oxford, o
Humanismo se difunde pela Europa. O humanismo é
um movimento radicalmente oposto ao dos
intelectuais dos séculos XII e XIII. Para começar,
não havia para eles, nenhum compromisso da
ciência com o ensino. Em segundo lugar,
desprezavam a cidade e exaltavam a vida no campo.
Seu ambiente não é a universidade, mas os círculos
fechados; um ambiente aristocrático de corte. A
ligação com o campo, se dá tanto pela identificação
deste com o ócio distinto e estudioso, como pelo fato
da elite econômica investir seus capitais em terras,
mandando construir vilas ou palácios.
REVISTA LITTERIS No 2 ISSN: 1982-7429www.revistaliteris.com.br Maio 2009
É interessante lermos este livro juntamente
com aquele outro do mesmo autor, intitulado “A
Civilização do Ocidente Medieval” vol.II, pois neste
último ao discorrer sobre os centros de sociabilidade
das cidades medievais, o autor não cita as
universidades. O fato chamou-me a atenção pois a
imagem que ele constrói da Universidade medieval
no seu apogeu, é a de um centro de efervescência
intelectual não-elitizado. Notamos isso ao lermos as
páginas finais de seu livro, quando o intelectual
medieval é contraposto ao humanista, representante
de uma cultura elitista e não-comprometida.
Outra falta que se nota ao se ler os dois
textos, é de que nos “Intelectuais da Idade Média”,
Le Goff não discorre sobre as origens dos estudantes
pobres, nem a sua trajetória universitária. No outro
livro, “A Civilização do Ocidente Medieval”, fala-se
muito nos embates entre os camponeses, citadinos e
senhores. É claro, depreendemos alguma coisa ao
vermos a descrição de um ritual de iniciação
universitário, mas mesmo assim fica algo vago.
Tudo que sabemos é que no plano das mentalidades,
a Universidade se opunha ao campo, o que não
significa necessariamente que tenha sempre ficado
contra os camponeses quando ocorria alguma revolta
ou embate físico. Talvez a contradição seja aparente,
pois numa iniciação, supõe-se que o iniciado
“morre” para uma vida e começa uma nova
existência. Mesmo assim, a posição dos intelectuais
em relação aos embates físicos que não condiziam
com a sua instituição não são estudados.
REVISTA LITTERIS No 2 ISSN: 1982-7429www.revistaliteris.com.br Maio 2009
A tendência mística-oriental que dominava
nos meios monásticos antes da afirmação da
Universidade, parece ter sido retomada mais à frente
no declínio desta. Vemos aí como mudanças
estruturais podem determinar o predomínio desta ou
daquela idéia.
Um ponto muito interessante do livro “Os
Intelectuais na Idade Média”, é que pela sua leitura
temos algumas “dicas” da metodologia utilizada por
Le Goff. É maravilhoso constatarmos como uma
mudança na forma de escrita pode indicar uma
mudança de mentalidade. Sem falar nas análises do
modo de confecção dos livros na época carolíngia,
comparados com o do período analisado por ele.
Citando essas passagens constato um problema: o
autor não especifica em nenhum momento se esta ou
aquela constatação, é fruto de seu trabalho pessoal
ou de leituras de outros pesquisadores. É visível a
falta de notas de rodapé nas páginas. Tudo o que
temos é uma bibliografia comentada ao final do
livro, o que não ajuda muito nesta questão em
particular. De qualquer forma, creio ser as notas de
rodapé um exercício de humildade acadêmica.
Também não fica muito clara a importância
dos goliardos a não ser como precursores de um
espírito crítico-universitário – e boêmio. Neste ponto
podemos até fazer um “link” com o outro livro de Le
Goff que venho citando até aqui. As tabernas
segundo o autor, eram um dos meios de
sociabilidade daquela época. Algo importantíssimo
para os intelectuais – segundo a concepção de
intelectual do autor. Não é admissível que o único
local de encontro para os universitários seja a
REVISTA LITTERIS No 2 ISSN: 1982-7429www.revistaliteris.com.br Maio 2009
própria Universidade. É claro que pelo seu caráter
inicialmente internacional, os estudantes e
professores tinham ali um grande centro de
efervescência cultural. Mas só isto não basta para
opor o meio universitário àquela espécie de erudito
aristocrata – o humanista – criticado pelo autor ao
final do livro. A Universidade seria mais um
claustro, mesmo estando localizado num local de
sociabilidade como a Igreja – malgrado o acesso
“universal” que a Universidade possibilitava através
da concessão de bolsas, pela própria iniciação dos
novos membros, vemos como aquele meio
procurava diferençar-se dos camponeses e afirmar-se
urbano.
Estaria incorrendo em erro se não citasse
aqueles que habitavam as cidades, como os
comerciantes e funcionários. De qualquer maneira,
não fica clara a relação entre o meio universitário e
os citadinos – a não ser a formação técnica que a
Universidade fornecia e na qual especializou-se com
o passar do tempo e a crescente laicização do seu
ensino.
Um ponto importantíssimo que faltou ao
longo do livro, e que só é posto no início e no final,
é o papel das universidades e intelectuais italianos.
Elas são postas como difusoras do humanismo, mas
aparentemente essa tendência não existia antes,
quando as cidades italianas eram apenas difusoras da
ciência greco-árabe. O livro, como um todo, é muito
centrado em França e Inglaterra – talvez pelas
origens do autor.
No mais, o livro é correto e mais não se
poderia exigir dele pelo seu próprio caráter
REVISTA LITTERIS No 2 ISSN: 1982-7429www.revistaliteris.com.br Maio 2009
ensaístico. Uma ressalva apenas para a tendência de
Le Goff em citar exemplos, o que feito em exagero,
prejudica a leitura. Mas enfim, trata-se de um
trabalho científico e não de uma peça de literatura –
malgrado a tendência da História hoje ir na direção
contrária e buscar elementos de obras literárias.