leia flordelis

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Superando perdas Foi com certa angústia guardada no peito que fui dormir naquela noite de 24 de outubro de 1976. Era domingo, e durante o culto na Assembleia de Deus, onde eu congregava, enquanto eu cantava, senti de repente que muitas pessoas iam morrer. Parei de cantar e fui para casa chorando muito, porque para mim meu pai era um dos corpos naquela imagem que não saía da minha cabeça. Não havia sido a primeira vez que eu recebia aquele sinal; tampouco seria a última. Pouco antes de me recolher, assistindo a televisão, vi uma reportagem sobre um acidente grave envolvendo meu pai. Minha reação de desespero não foi entendida por minha mãe, D. Carmozina, que estava sentada ao meu lado. Segundo ela, o que eu tinha visto era uma revelação — dom concedido a mim pelo Espírito Santo —,

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testemunho de fé da cantora flor de lis

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Superando perdas

Foi com certa angústia guardada no peito que fui dormir naquelanoite de 24 de outubro de 1976. Era domingo, e durante o culto na Assembleia de Deus, onde eu congregava, enquanto eu cantava, senti de repente que muitas pessoas iam morrer. Parei de cantar e fui para casa chorando muito, porque para mim meu pai era um dos corpos naquela imagem que não saía da minha cabeça.

Não havia sido a primeira vez que eu recebia aquele sinal; tampouco seria a última. Pouco antes de me recolher, assistindo a televisão, vi uma reportagem sobre um acidente grave envolvendo meu pai. Minha reação de desespero não foi entendida por minha mãe, D. Carmozina, que estava sentada ao meu lado. Segundo ela, o que eu tinha visto erauma revelação — dom concedido a mim pelo Espírito Santo —,uma vez que estava passando na tela, na verdade, uma reportagem sobre os jogos de futebol daquele dia.

Meu pai, Sr. Francisco dos Santos, e meu irmão caçula, Fábio,estavam em viagem de retorno para casa depois da festa de inauguração de uma Assembleia de Deus em Guarulhos, São Paulo. Havia pouco mais de trinta dias que tínhamos recebido o convite para participar daquela comemoração. Estávamos todos muito empolgados, mas, ao longo do mês, comecei a ter um pressentimento que Flordelis não era dos melhores.

Certamente, era um aviso divino, o que, naépoca, eu chamava de “pressentimento”. Foram sonhos recorrentes, pensamentos que vinham na minha cabeça e me assustavam, pois indicavam o acidente.Formávamos, junto com outras quatro pessoas, o grupo evangélico Angelical. Eu era vocalista, meu pai sanfoneiro, e meu irmão baterista. Era comum viajarmos naquela época para várias cidades no Rio de Janeiro e também para outros estados.

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Sempre íamos na kombi da igreja, e eu nunca havia tido qualquer pressentimento como esse nas viagens anteriores. Coloquei no meu coração que não era para eu ir e, por diversas vezes, pedi a meu pai e às demais pessoas que também não fossem, que desistissem. Cheguei a implorar.

A minha impressão era a de que quem fosse não sobreviveria. Meu pai, ao mesmo tempo que respeitava a minha aflição, não acreditava muito que aquilo que eu dizia pudesse de fato acontecer. Mas, por precaução, ele próprio definiu que eu não seguiria naquela derradeira viagem. Segundo a minha mãe, ele também fi cou receoso,“com a pulga atrás da orelha”, mas não se deixou impressionar. E, como éramos muito ligados, preferiu sair de casa para seguir viagem enquanto eu ainda dormia. Ele sabia que, se eu o visse saindo, não o deixaria seguir, iria chorar, tentaria segurá-lo, faria tudo para impedir, a qualquer preço, que ele fosse ao encontro da morte.

Segundo meu irmão, a ida para Guarulhos seguiu tensa, mastranscorreu sem sobressaltos. A apresentação foi ótima e estavam todos muito felizes. No caminho de volta para o Rio de Janeiro, aconteceu o acidente. Um ônibus interestadual bateu na kombi, que capotou, mas ninguém morreu. Na hora, todos pensaram em mim e nos meus avisos e chegaram a orar, agradecendo que o pior não tivesse acontecido. Meu irmão foi quem mais se feriu, mas, como não tinha sido nada grave, apenas alguns cortes, os policiais resolveram colocá-lo dentro da patrulha enquanto esperava socorro médico. A kombi foi empurrada até o acostamento e, enquanto todos retiravam a bagagem de dentro do veículo, uma carreta em alta velocidade os atingiu, arrastando-os por alguns metros. Ao todo, nove pessoas morreram, entre elas o meu pai.

Meu irmão assistiu a tudo. Durante a madrugada, quando bateram à porta da nossa casa, minha mãe já imaginava o porquê de a estarem chamando do lado de fora. Depois do que

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aconteceu naquela noite, todos nós meio que já esperávamos pela morte de meu pai. Eram as pessoas da igreja que estavam avisando do acidente, uma vez que o pastor principal também estava entre as vítimas.

Minha mãe sempre foi uma mulher muito forte, determinada,uma guerreira mesmo. Até hoje é ela quem resolve todas as questões da família e sempre é chamada nos momentos difíceis. Ela recebeu a notícia com fi rmeza e, para nos poupar, decidiu que iria nos comunicar o acontecido aos poucos.Quando ela entrou em casa, percebi que estava com um semblante tenso. Mas foi com a força de uma leoa protegendo seus filhotes que ela começou a nos falar sobre o acidente. Primeiro, disse que ainda não sabiam o que de fato havia acontecido. Aquela notícia foi como uma bomba. Era um sentimento confuso, entre a constatação do que eu já tinha previsto e a esperança de que todos tivessem escapado da morte. Depois, disse que meu pai estava no hospital e que meu irmão não corria risco de vida. Durou cerca de duas horas o intervalo entre a primeira notícia do acidente e aquelaem que nós não queríamos acreditar, mas que no fundo do coração já sabíamos: meu pai estava morto.

Todos se preocuparam muito com a minha reação. Mas, de certa forma, eu já estava preparada para a notícia. Tive um mês para isso. O meu coração me dizia que aqueles sonhos se transformariam em realidade. Claro que eu senti e chorei, como todo filho que chora a morte de um pai. Uma perda na família é sempre dolorosa. Eu estava com 16 anos na época e participava ativamente do grupo de jovens da igreja. Reuni o nosso grupo e passamos a tarde definindo e ensaiando os louvores que seriam cantados durante a cerimônia de sepultamento. O Fábio compôs uma música para o meu pai chamada Multidão. Também fiquei responsável por ensaiá-la durante o dia com os outros jovens da igreja, pois ela seria cantada durante o cortejo no Cemitério de

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Inhaúma, para onde os corpos foram levados após serem velados na Assembleia de Deus do Jacarezinho.

Todas as vítimas do acidente foram sepultadas no mesmo cemitério,no dia 28 de outubro, três dias após o acidente, porque levou-se um tempo para transportar os corpos para o Rio de Janeiro e liberá-los pelo Instituto Médico Legal. Não sei sequer falar quantas pessoas acompanharam o cortejo. Facilmente passavam de mil. O grupo Angelical era muito conhecido e, como o acidente foi amplamente divulgado na televisão e nos jornais, atraiu gente dos mais diversoslugares do País para sua despedida.

Foram dias difíceis os que se sucederam. Foi a primeira grandeperda que sofri na vida. Precisávamos nos acostumar com a ausência do meu pai, nos desfazer de seus objetos pessoais e ainda dar atenção e carinho para o meu irmão Fábio, que estava traumatizado. Mas a união de nossa família e a nossa fé nos ajudou a seguir em frente e a enfrentar a saudade e as lembranças. É impossível não passar por um período de nostalgia após a perda de um ente querido. Mal sabia eu que ainda iria passar por muitas e significativas perdas em minha vida.

Meus irmãos — Laudiceia, Eliane, Amilton e Fábio — e eunascemos e fomos criados em uma pequena casa de dois quartos no Jacarezinho, uma favela que hoje conta com mais de 100 mil habitantes, encravada no subúrbio carioca. Sempre fomos muito pobres, mas vivíamos em clima de harmonia e de muita felicidade.

A minha mãe nunca permitiu que nós, crianças, participássemosdos problemas da família. Talvez por isso eu tenha guardado até hoje boas recordações da nossa infância, mesmo em sua simplicidade. Enfrentávamos necessidades, apesar de nunca termos passado fome. Durante a semana, nossas refeições

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eram à base de arroz,feijão e ovo. As compras eram restritas ao que havia de mais barato nas feirinhas da comunidade. Comprávamos carne apenas para a refeição de domingo, o dia mais especial da semana para nós. Ainda consigo sentir o cheiro de nossos almoços de domingo em família.

Para ajudar em nosso sustento, minhas irmãs mais velhas,Laudiceia e Eliane,começaram a trabalhar fora muito cedo comodomésticas em casas de família. As minhas irmãs sempre contam isso, mas eu era muito pequena e não lembro direito. Laudiceia acabou abandonando os estudos por conta da vida que levava. Logo que ela começou a trabalhar, aos 12 anos apenas, transferiu a escola para o turno da noite. Mas o cansaço era tanto que ela não conseguia aprender muita coisa. A rotina dela era muito pesada: saía muito cedo para trabalhar, só retornava no fi m da tarde e, quando chegava, ainda ajudava a minha mãe a cuidar da gente e a arrumar a casa. Eu acho que, nas comunidades, muitas vezes os irmãos mais velhos se preocupam muito em dar uma vida melhor para os caçulas, superprotegendo os menores. Aquilo que eles nãotiveram, querem que os mais novos tenham, por isso vivem muito em função deles.

Naquela época, nos anos 1960 e 1970, ao contrário do quemuita gente pensa, já existia muita violência na favela. A diferença é que nada era noticiado. A imprensa não tinha acesso ao morro como tem hoje. A polícia confrontava bandidos, tinha tiroteio, mortes, muitas mortes, domínio de facções, mas nada aparecia nos jornais. Foram incontáveis as vezes que escutei os tiros, os gritos de mães desesperadas e de crianças em pânico. E vi a maioria dos meus amigos de infância entrando para o crime, em busca do dinheiro fácil, e morrendo muito cedo. As perdas nas comunidades são rotineiras, e os moradores das favelas aprendem na marra a conviver com isso.Eu costumo dizer que a diferença entre a minha vida e a dessesamigos que eu vi morrer no crime era a minha criação. Eu

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tenho noção de que a minha rotina era muito diferente da maioria das crianças do Jacarezinho. Eu ia para a escola, tinha uma vida normal, mas com algumas ressalvas: tinha uma mãe presente, que me impunha limites, ensinava o certo e o errado, não me deixava brincar na rua e não permitia a aproximação de pessoas que bebiam, fumavam e levavam uma vida errada. Era uma educação muito rígida, mas ela era incapaz de nos bater. Além disso, ela entrou para a Assembleia de Deus quando eu ainda tinha dois anos, e cresci com os ensinamentos da Bíblia, com os meus pais me mostrando a diferença entre o bem e o mal. Ao contrário de muitas mães da favela, que tinham de trabalhar fora, se ausentar da casa e deixar seus filhos serem criados pela vida, sem regras, sem limites, sem fé. Sim, porque a fé em Deus é capaz de mudar uma vida. A necessidade tira dessas mães a noção do perigo que seus filhos passam a correr quando são deixados sozinhos em casa.Em busca do alimento para garantir a subsistência da família, elas esquecem o mais importante: a educação, os limites, o cuidado diário com o filho, a responsabilidade de tomar conta, de cuidar,de proteger da violência na comunidade. E é nessa hora, em que a criança está sem o respaldo de um adulto, que ela é apadrinhada pelo tráfico. Os trafi cantes passam a ser os protetores e fazem o papel de pai, mãe e até de heróis.Eu frequentava a igreja com a minha mãe e os meus irmãos. E,enquanto os adultos ficavam no culto, nós, crianças, participávamos da escola bíblica dominical (EBD) e da escola bíblica de férias (EBF), onde nos eram ensinados os valores da família e aprendíamos sobre o perigo de ficar na rua, do assédio dos bandidos, de aceitar de coisas que estranhos oferecem. Por isso, penso que o fato de ter sido criada dentro da igreja foi muito importante e fez toda a diferença.

Mesmo dentro da favela, vivíamos em um ambiente muito saudável. A minha mãe é o tipo de pessoa que gosta de ter amizades,que ajuda a todos, tira de si para dar aos que necessitam. Eu cresci vendo-a agir assim. Na igreja, era

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chamada “mulher da oração”. Ela era procurada para orar pelas pessoas quando estavam em situações de desespero, como em casos de doenças, briga e desunião. O movimento lá em casa era tão grande que era como se fosse uma mini-igreja. E, uma vez por semana, D. Carmozina ministrava um culto dentro de casa, que fi cava lotada. Eu era responsável pela parte do louvor, cantando e tocando guitarra.

Contudo, não quero deixar transparecer aqui que vivíamos emum conto de fadas. Na minha família também havia problemas, mas não nos deixávamos abater. A minha mãe, por exemplo, tinha irmãos alcoólatras — alguns até tinham sido presidiários —, mas ela sempre nos manteve longe dessas coisas, crendo muito em Deus, tendo muita fé na mudança e em alcançar as graças de Deus mediante o esforço e a luta. Pois, para um milagre acontecer, você tem de se esforçar, batalhar por isso, como a própria palavra “oração” indica: é preciso orar, mas também é necessária a ação. Ficar sentado, esperando queDeus faça tudo, não vai fazer com que as coisas aconteçam.