leituras do corpo: ciÊncia, experiÊncia e enigma. a construÇÃo do conhecimento À procura da sua...

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LEITE,  C.  (2007)  Leituras  do  corpo:  ciência,  experiência  e  enigma.  A  construção  do conhecimento  à  procura  da  sua  sombra.  In,  V.  Trindade,  N.  Trindade  &  A.A.  Candeias (Orgs.).  A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora. 

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desadequação, nomeando as margens que sempre transbordam, as da ignorância e

do enigma.

Se tomarmos o corpo como campo de interrogação – essa realidade tãoamplamente partilhada – e a ciência (ou a arte?) médica como campo de resposta,podemos confrontar a nossa experiência com as leituras, por vezes múltiplas, não

raras vezes contraditórias, dos discursos autorizados, cuja autonomia e autoridadese encontram caucionadas, quer pelo conhecimento quer pela força corporativa,

quer por ambos. E nem sempre o ponto de vista da experiência encontra um lugar

nesta mecânica do saber que se reduz, na nossa sociedade, a um privilégio de

especialistas.

De facto, nada nos impede de ler o corpo, mas onde encontrar os instrumentos

que nos dão acesso a esse texto, familiar e enigmático, previsível e capaz das

surpresas mais desconcertantes, obediente e rebelde, ora sofredor ora exultante?O que faz o corpo individual com a sua pequena história de gerações familiares?Onde esconde os segredos que se abafaram, os medos que se reproduziram ou a

demasiada injustiça de repetidas opressões? Que sinais a revelar a intensidade daalegria vivida ou sonhada?

E o corpo comum, isto é, a parte colectiva que habita o nosso corpo individual e

não apenas a sua memória, que inscrições restam nele da sua longa história demilénios? Onde estão os sinais de todas as perseguições à ideia e ao exercício de se

ser livre no pensar e no agir? O que resta do paraíso prometido? Como se traduz,

num corpo, a síntese de itinerários tão diversos, complexos e díspares? Trazemossinais mais declarados e outros mais adormecidos? O que nos faz dizer de alguém

ou de alguma situação que não faz parte do nosso mundo...e como reconhecemos osseres de uma mesma constelação, e quem escolhe? As afinidades electivas, quem as

decide? Onde se inscreve o reconhecimento destas genealogias incertas? E quantoscorpos, distintos na singularidade da sua herança, resultaram destes itinerários do

diverso?

Então o que é um corpo ou, como perguntava Espinosa, “o que pode um corpo”?

Dito de outro modo, como aprender a ler?

O CORPO FÍSICO E O CORPO DA ALMA, QUANTOS CORPOSAFINAL?

Pensar o corpo 

Roland Barthes, em Le plaisir du texte, interroga‐se a dado momento sobre a

natureza do corpo: “Quel corps? Nous en avons plusieurs; le corps des anatomisteset des physiologistes, celui que voit ou que parle la science: c’est le texte des

grammairiens, des critiques, des commentateurs, des philologues (c’est le phéno‐

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texte). Mais nous avons aussi un corps de jouissance fait uniquement de relationsérotiques, sans aucun rapport avec le premier: c’est un autre découpage, une autre

nomination» (1973: 29).

A reprodução do saber e das práticas académicas pede aos seus membros um

determinado modo de disciplinar o pensamento que cada um tenta seguir, na

expectativa de poder construir, uma linha que seja, de conhecimento. Mas fazemo‐lo sempre, numa certa medida, fora de nós mesmos. Isto é, faz parte do exercício, a

tentativa de nos excluirmos dele, pelo menos aquilo que em nós ameaça a supostaobjectividade do conhecimento. Este deve, idealmente, ser construído sem

ingerências ou, em última analise, deve ser capaz de antecipar e minimizar os seus

efeitos. E os manuais rivalizam nas receitas, mas também nos paradoxos, paraatingirmos este patamar da tão desejada transparência. Este princípio, sagrado nas

ciências sociais, tem engendrado um sem número de efeitos perversos com os

quais nos confrontamos no quotidiano e de que evocaremos exemplos ao longo dotexto. Não que o saber científico negue a experiência individual, pelo contrário, asua fundamentação essencial passa justamente pela experiência – assim é, pelo

menos a partir do séc. XVII2. Acontece que uma vez consagrado um qualquer

princípio de saber, a imprevisibilidade da experiência individual tende a serarrumada na categoria de excepção e menos na de móbil de curiosidade...científica.

Gadamer explicita bem esta tentação do conhecimento científico para estender o

seu paradigma de verdade a todos os domínios da realidade: “L’expérience,renouvelée dans les sciences, ne présente pas seulement l’avantage d’être

vérifiable et accessible à tout un chacun, elle revendique également de son proprechef et fonde sur sa démarche métodique la prétention d’être à la fois l’unique

expérience certaine et le seul savoir qui confère à toute expérience sa légitimité. Lesavoir humain qui s’accumule en dehors de la «science» sur le mode de

l’expérience pratique et de la tradition (…) il lui faut aussi (…) entrer de lui‐même

dans le domaine de la recherche scientifique. En principe, il n’est rien qui ne soit soumis ainsi à la compétence de la science» (1990: 12).

Um corpo sem alma, o que pode ser? 

Ora o corpo é um dos objectos que mais faz correr a ciência. E é longa a históriada tutela exercida sobre o corpo e reforçada na cultura ocidental pelo efeito

combinado da religião, da política e da ciência. Doutrina e ideologias, filosofiacompreendida, conjugando‐se num discurso de poder, único, destinavam a todos

os outros e seus autores o papel de bodes expiatórios de uma ordem que atribuíaao corpo o lugar de confluência de todos os medos. Corpo e espírito foram sendo

progressivamente entendidos como duas realidades de natureza incompatível, o

espírito suscitando uma atitude de reverência face ao corpo que desmere tão

2 Edgar Morin, no seu ensaio Science avec conscience, lembra a importância da autonomia que ganhou a ciência

nesta altura face aos poderes instituidos: «(...) il était fécond que la science au XVIIe siècle s’autonomise par

rapport à la religion, par rapport à l’Etat et par rapport aux conséquences morales qu’entraîne la conaissance

elle‐même. La science devait émanciper son impératif éthique propre et unique, «connaître pour connaître»,quelles qu’en soient les conséquences» . (1990 : 116).

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ilustre co‐habitante e mais não espera do que o momento de consumar a infalível

separação:

«Par  

un 

tour  

de 

 force 

spéculatif  

remarquable, 

les 

 philosophes 

ont  

réussi 

à 

accréditer  la réalité  de l’âme et  à discréditer  celle du corps, de sorte que ce qui  fait   l’objet  d’une évidence  familière  pour   le  sens commun devient  obscur  et   problématique  pour  le sujet  qui désire sérieusement  vaquer  à la 

recherche de la vérité» (Jaquet,  2001: 3). 

Vale a pena lembrar que esta ordem teve excepções. As dissidências tiveram

lugar mesmo se muitas delas foram apagadas pelo fogo da intolerância. Masfilósofos como Espinosa, por exemplo, fazem um entendimento do corpo que não

exclui a alma, interrogando‐se à margem de qualquer rejeição do corpo e

afirmando: “l’ignorance  de  la  nature  exacte  de  la  structure  du  corps  et   de  sa 

 puissance»; e acrescenta: “Personne, il  est  vrai, n’a  jusqu’à  présent  déterminé  ce que  peut   le  corps  (…)”  (Jaquet, 2001: 6). Esta apreciação terá suscitado interesse eadeptos. Mas não foi este o ponto de vista que prevaleceu no tempo; hoje mesmo,

são por certo raros os que partilham a intuição que esta interrogação supõe. Muitomais tarde, Nietzsche dirá que “Sans  le  fil   conducteur   di  corps,  je  ne  crois  à  la 

validité   d’aucune  recherche”, insistindo na debilidade da nossa consciência se

comparada ao corpo, «à  l’extraordinaire  sûreté   fonctionnelle  du  jeu  des  pulsions!  C’est   qu’elle  [la conscience]  est   encore  enfant.   Ayons  donc  l’indulgence  de  lui  pardonner  ses enfantillages» (Wotling, 2005: 188, 189) Afirmação que não invalida

a possibilidade de que a consciência pode crescer.

O corpo

 doente,

 um

 corpo

 que

 fala?

 

E chegamos assim ao paradoxo que explica a situação actual3, onde cada um de

nós se sente impotente para compreender  o seu próprio corpo, inclusivamente nalinguagem dos seus sintomas, dos mais benignos aos mais ameaçadores. No desejo

de ver o corpo restabelecido ao seu estado “natural”, a tendência vai no sentido defazer ou, pelo menos, de tentar fazer a economia da sua leitura.  Atacando os

sintomas, como tantas vezes ouvimos dizer, tentamos vencer a guerra e muitasvezes com sucesso. E nesta guerra em que vencemos cada vez mais batalhas, o que

se deve ao desenvolvimento científico e tecnológico, bem como à progressiva

democratização dos serviços de saúde, somos forçados a concluir que, muitasvezes, o inimigo, afinal, não vinha declarar a guerra, apenas trazia uma mensagem,um texto a pedir a atenção de uma leitura. Mas uma falsa ideia de eficácia,“conquistada pelo combate”, acaba por engendrar um novo sintoma, reiniciando‐se

3 Edgar Morin, interrogando‐se sobre a predisposição para o seguidismo e a ausência de consciência critica

sobre as nossas acções, sejam as do homem comum ou do cientista, afirma: «Le diagnostic a été fait il y a

cinquante ans par Husserl dans une conférence sur la crise de la science européenne. Il a alors montré qu’il y

avait un trou aveugle dans l’objectivisme scientifique : c’était le trou de la conscience de soi. A partir du

moment où s’est opérée la disjonction entre d’une part la subjectivité humaine réservée à la philosophie ou à

la poésie, et d’autre part l’objectivité du savoir qui est le propre de la science, la connaissance scientifique a

développé les modes les plus raffinés pour connaître tous les objets possibles mais elle est devenue

complètement aveugle sur la subjectivité humaine; elle est devenue aveugle sur la marche de la science elle‐même…» (1990: 117, 118).

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um novo ciclo de incompreensão. Como é conhecido, a lógica da “guerra” produzuma litania de efeitos perversos, nem sempre visíveis num primeiro tempo. Este

inimigo imaginário que habita o mesmo corpo, merece ser identificado, lido etraduzido, como nos sugerem alguns médicos avisados e cada dia mais raros,

podendo‐se, nalguns casos, negociar , isto é, dar à palavra um papel de mediação ede tomada de consciência, um dos caminhos para prevenir a “guerra”.

A leitura do corpo é inseparável do seu itinerário; na presença do médico, a

narrativa de um percurso, em particular, da sua dimensão emocional, é a matéria‐prima do diálogo, e este é parte integrante da própria noção de consulta, isto é, doencontro entre o médico e o paciente. A distância que os separa, o paciente do

especialista, pode ser ultrapassada se ambos forem capazes de criar um diálogo –“La  langue  ne  sera  jamais  tout   ce  qu’elle  peut   être  que  dans  le  dialogue  (...)  Le dialogue  est   déjà  un  traitement”  (Gadamer, 1998: 137). Mas são muitas as

dificuldades que impedem a prática desta arte que é a ciência médica/práticaclínica. As condições materiais do seu exercício, num momento em que os serviçospúblicos se debatem com o insustentável aumento das despesas, sem um

equivalente aumento da riqueza, constrangem os médicos a “mostrar elevados

níveis de produtividade”, sem que a qualidade do seu trabalho mereça igualexigência e reconhecimento. Este esgotamento da ideia fundadora do processo deconhecimento e de  cura do corpo acompanha a proliferante invasão de recursos

tecnológicos e a pressão de consumo da poderosa, e muito saudável, indústriafarmacêutica.

Então, por que não devolver a cada um a capacidade de se iniciar na leitura eaprendizagem do seu próprio corpo? Despoja‐lo de um vocabulário mínimo que o

inicia nesta leitura serve algum dos interessados? A consulta com o especialistanão podera sair enriquecida com uma maior consciência do paciente?

Se é verdade que a escolha da “guerra” como meio para entender o corpo,

corresponde a um gesto historicamente compreensível, vale a pena lembrar que,hoje, já nada nos impede de procurar, de inventar e de partilhar um outro ponto de

vista pois a sua verdade, há muito deixou de ser única.

O CORPO QUE FALA, E QUEM NOS ENSINA A LER?A diversidade ou mesmo a incompatibilidade das respostas fazem parte do

processo de qualquer procura, tal como o reconhecimento da ignorância, sem oqual não nos é possivel avançar para uma nova questão. No entanto, cada um de

nós já experimentou a dificuldade de explicar para si proprio uma determinada

reacção ou sinal do seu corpo ‐”Le corps a  pourtant  beau être  familier,  il  demeure d’une  profonde  étrangeté”  (Jaquet, 2001:1) ‐ e de secretamente não reconhecer

validade ao discurso do especialista que nos fala e que nem sempre nos ouve. Ofacto de uma dada explicação não corresponder à nossa convicção intuída não

significa, contudo, que cada um possa, de imediato, compreender o processo queestá a viver. Apenas nos cria um embaraço suplementar: ao sintoma junta‐se

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também a desadequação da resposta de quem é suposto tê‐la e dá‐la como

verdadeira. A confiança nos especialistas que caracteriza o nosso tempo4, tidacomo um indicador da qualidade de vida, é‐nos apresentada como a única

mediação possível face ao complexo, caro e movediço mundo da tecnologia, veiocriar novas desigualdades e assimetrias ‐ “Se  nada  é   tão  bem  sucedido  como  o 

sucesso, também nada engana como o sucesso. Ofuscando em  prestigio e esgo-tando 

em recursos qualquer  outra coisa que  pertença à  plenitude do homem, a expansão do 

seu  poder  é  acompanhada  por  uma retracção da concepção que ele tem de si mesmo 

e do  seu  ser.”  (Jonas, 1994: 42) ‐ agravando‐as mesmo em relação à experiênciaprivada que é a de ter um corpo. Esta usurpação do direito individual a

compreender o seu próprio corpo e a dispor dos instrumentos que permitem a sualeitura, parece encontrar um antídoto fecundo num conceito de corpo que procura

contemplar uma maior amplitude, mesmo se este é um caminho que supõe a

surpresa de muitas e novas interrogações. Independentemente dos benefícios que

a grande tecnologia e outros dispositivos trazem à prática do entendimento docorpo e, em particular, do corpo doente, não parece existir nenhuma boa razão que

invalide o conhecimento de si, logo, do seu próprio corpo. No início de uma dassuas conferências sobre os problemas relativos à saúde, Gadamer, citando Kant,

lembra “Que  toute  notre  connaissance  commence   par   l’expérience,  cela  ne   fait  absolument   aucun  doute”  (1998: 11). O valor atribuído à experiência supõe a

consciência de outros factores. Gadamer, chama‐lhe natureza: “Et   le  médecin 

raisonnable  et   le  patient   savent   bien  tous  deux   que,  s’il   y   a  rétablissement,  c’est  toujours à la nature qu’ils le doivent”  (1998: 136) enquanto outros autores tornam

a noção de amplitude extensível a outros domínios. No seu texto, «Em busca doMirocórdio», Augusto Joaquim chama a atenção para certos sinais físicos

recorrentes, associados a experiências de espiritualidade. Explicitando o seuconceito de mirocórdio, isto é, “olhar ou auscultar o coração”, diz o autor que ele

“ produz  efeitos  físicos, mexe com os sensores da  percepção, altera os corpos e orienta 

as vontades  para a des‐medida”; e concretizando, afirma adiante, “Em suma, os dons são conaturais ao corpo. No meu estudo, identifiquei 36, mas  garanto que são muitos mais. Devo acrescentar  que, na  sua  grande maioria, não  provocam qualquer  efeito 

visível,  embora  transformem  irreversivelmente  a psicossomatica.  Na  realidade alteram a  própria noção do que  seja um  corpo. Podemos ainda  considerar  que as chamadas  ascese  e  mistica  são  apenas  balbuciamentos  no   processo  da  sua 

apreensão”   (2002: 6). Se olharmos a partir de outras tradições culturais, o corpo

físico é entendido como o mais denso de uma série de outros corpos que nosacompanham. Segundo certas concepções, o nível de experiência mais exterior é

vivido pelo corpo físico, seguindo‐se o corpo emocional, o mental, o astral, o etéreo,

o búdico e o causal, correspondendo este à experiência interior mais profunda(Brofman, 1999: 133). Diferentes interpretações confirmam que estes diferentes

corpos subtis correspondem a bandas de energia que rodeiam e interpenetram aparte física. A fotografia resolveu, já a partir dos anos 50, graças ao casal Kyrlian,

esta intrigante realidade, a partir de uma folha cortada: através de um

4 ‐ E o nosso tempo inclui o século passado, desde o seu inicio, basta pensarmos nas referências de Ortega y

Gasset aos perigos da especialização que já então se anunciava; mais recentemente autores como Hans Jonas

(1994) ou Edgar Morin (1990), entre muitos outros, denunciam os riscos desta“ortopedia humana”organizada..

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LEITE,  C.  (2007)  Leituras  do  corpo:  ciência,  experiência  e  enigma.  A  construção  do conhecimento  à  procura  da  sua  sombra.  In,  V.  Trindade,  N.  Trindade  &  A.A.  Candeias (Orgs.).  A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora. 

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procedimento novo, a banda de energia mantinha‐se intacta apesar da fractura dafolha. A ciência moderna, na sua linguagem própria, dirá que o corpo humano é

composto de campos energéticos. Estas emanações energéticas do corpo incluemcampos eléctricos, magnéticos, sonoros, luminosos, electromagnéticos e de calor.

No entanto, cada indivíduo tem um sistema energético próprio; também o modocomo cada um interage e opera com as influências subtis circundantes varia de

indivíduo para indivíduo (Andrews, 1991: 18,21).

Estudos recentes dão conta de experiências de relaxamento corporal e mental

que conduzem o indivíduo a um estado modificado de consciência, sendo‐lhe

possível trazer à consciência factos e decisões de vida que podem estar na origem

de comportamentos de padrão negativo e repetitivo. Este movimento deidentificação, através de uma tomada de consciência, de transtornos de tipo diverso

bem como das suas causas permite, segundo os autores (Peres, 1999: 215 e ss.),

reprogramar a decisão que desencadeava o comportamento repetitivo indesejado.Este é neutralizado através de uma redecisão tornada possível pelo processo detomada de consciência.

Num texto anterior (Leite, 2002) demos conta de outros exemplos que nos

colocam face a um entendimento do corpo que desloca as suas actuais fronteiras. Euma vasta literatura, vinda das mais diversas áreas, permite‐nos hoje sondar ou

mesmo aprofundar algumas interrogações; da medicina (Simões, 1997; Fenwick,

1997; Lommel, 2001; Caldas, 2004, entre muios outros) à Psicologia (Hellinguer,2001; Masson, 2006) à Antropologia (Durand, 1996), passando pelo ensaio

teológico (Joaquim, 2000) ou a filosofia (Dinis, Curado, 2004).

CONCLUSÃO

Também a literatura tem aqui uma  palavra a dizer. Na sua primeira lição no

Collège de France, Roland Barthes dizia, em determinado momento, “La science est   grossière, la vie est  subtile, et  c’est   pour  corriger  cette distance que la littérature nous importe”  (Barthes, 1978: 18). Se tomarmos o conhecimento como um vastoterritório indiferente ao género que o produz, vale a pena confirmar a convicção de

Barthes e concluir com um texto literário ‐ Maria Gabriela Llansol, Um  falcão no 

 punho (1998). 

A liberdade do dom poético projecta‐nos aqui no fulgor de umpensamento capaz de interrogar o corpo no intimo da sua subtileza e potência,

como se, na realidade, um outro corpo daqui pudesse nascer:

Olhando uma parede branca, é-me muito dificil pensar. 

Mas eu sei que a parede está guardando o meu olhar. 

 Acordar alguém é acordar o qué? Dormindo, não estará na sua fase de lua 

cheia? 

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LEITE,  C.  (2007)  Leituras  do  corpo:  ciência,  experiência  e  enigma.  A  construção  do conhecimento  à  procura  da  sua  sombra.  In,  V.  Trindade,  N.  Trindade  &  A.A.  Candeias (Orgs.).  A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora. 

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Pintar uma parede branca é esconder-lhe o olhar, ou permitir-lhe olhar-

me com alguns dos seus matizes? 

Para 

pensar, 

não 

é 

preciso 

ter 

vigor? 

Que faz ao corpo um mau pensamento? 

 A recta intenção faz parte do corpo, ou do espírito? 

Se o pensamento não ama o corpo, que forma terá o pensamento? 

Quando  dou  uma  forma  escrita  intensa  ao  meu  sofrimento,  não  estarei ainda a pesar mais sobre ele, como se houvesse um fundo e nele uma saída 

luminosa? 

Quando  o  corpo  e  o  espírito  são  dois  amantes  experimentados,  surge  a 

proporção  escondida,  sabem  extraír  de  quase  nada  o  ardor  imenso  de 

criar. 

Um  belo  corpo  e  um  pensamento  justo  poderão  coexistir  num  contexto 

caótico? 

Escrever na sombra é ir à busca de que potência? O visivel segue a curva 

do dia? O invisivel seguirá a curva inversa? 

Que ser

 é esse

 que

 escreve

 sobre

 uma

 mesa

 onde

 todo

 o

 vegetal

 está

 

ausente? 

O contexto é do corpo e do texto; o que está doente no homem se este só 

olha o corpo? Se só cuida do texto? O pensamento que abstrai do contexto 

não terá a intenção de definir o corpo? 

O corpo vivo é uma forma ininterrupta. 

Dizer-se que é matéria de imagens feita, como quando o medo sobrevém, e 

o paralisa.

 O

 medo

 vem

 de

 si,

 a paralisia

 é sua.

 

Estou certa de que o Texto modificou o corpo dos homens. 

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