lenio streck- o q É isto - cap 5 a 7

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o QUE É ISTO- DECIDO CONFORME MINHA CONSCIÊNCIA?, primeiro volume desta nova coleção, questiona o tradicional mo- delo de decisão judicial que perpassa o Imaginário jurídico. O livro mostra como as decisões são caudatárlas do paradlgma da filosofia da consciência e o modo pelo 'lual reproduzem aquilo que mais pre- tondern combater e superar: o poslnvisrno ]urldICO. m esse novo livro, Lenlo Streck demonstra I .orno determinados setores da teoria do IItrotlo, ao fazerem a crítica do posltlvlsrno, Iltr li to confundem o posltlvísrno primitivo (u)(uyótlco) com o posltlvlsrno semântico. "'"li n, nem sempre dizer que "o juiz não está I III1IHpreso à letra da lei" é "ser um jurista I IlIh :0" ... 1 Nessa linha, faz uma sofisticada I Ilth:( I à dlscrlclonarledade posltlvlsta e à lah IllIO desta com a "ponderação de v. 110 ",,"', que se tornam responsáveis pelo "1' .11 lunnlsmo e pelo atlvlsmo Judicial. A , " IIlh do umo dura crítica ao ensino Jurídico I', • IIl1llfO manualesca que se Instalou no '11IllI,() outor aponta (e lamenta) o enfra- l"al "nul1to do doutrina, que "não mais ~'1lhh111",sondo, na verdade, doutrinada " ••11" hll llJl1als. 1111' I. 111 luntolmente, o livro é um libelo ,"h.1 fi" (IIvorsas formas de declslonlsmo. li, í~l' I, ( IH ooclsões Judiciais não devem ser 1111' " I" (I partir de critérios pessoais, Isto é, ,. "11"1lónelo pslcologlsta" do Intérprete. 11IUIIIII( Inelo - diz Lenlo - não cabe mais Illitl'Ullhu o 101e a minha consciência",. I••I 11th I mou "sentimento do justo" que 1(, 1111 "I ninho consciência". É por tais '1"1' otllulo é uma Indagação, que 111.1 "111lospondlda no decorrer desta I I 1i til (I livraria do Advogado Editora '•• I 1'1 çjlsposlção da comunidade 110" • de um sub-jectum que, sustentado gia" , alcança essa "certeza", que, entre várias". Veja-se: aquilo que te o era in abstracto ...; diante dos as ser múltiplas, Orª,....Q..g1le_P.arceÍa entende é que é na -"abstrátalida- r múltiplos, em face da porosidade " nisso: os sentidos não podem ser simples razão de que não se pode ção e aplicação. Eis o papel da di- cia o ingresso do mundo prático no ue, uma vez que passamos da epis- primeira "fase" e teoria do conhe- a hermenêutica (fundada na virada (e esperar) que essa ruptura pa- a ampla recepção nessa complexa o direito, mormente se parti(r)mos indissociávelligação entre o posi- ueremos combater- - e o esquema admite, principalmente no Brasil, COLEÇÃO o Q1JE É 151(11 Lenio Lui: S".,,( A temática da interpretação, embora tenha assumido um lu- gar cimeiro, continua atrelada à cisão ou às cisões próprias da hcrmenêutica clássica e, portanto, ao paradigma representacio- nal, Isso gera uma porção de mal-entendidos, mormente quando SI.! confunde as noções de pré-compreensão com "visões de mun- dos", "subjetividades", etc., ou se pensa a applicatio gadameria- 1111 como uma fase posterior do "processo" interpretativo. Problemas semelhantes ocorrem quando, invocando o cír- 1110hermenêutico, continua-se afazer interpretações em etapas. () Imito para a superação desses delicados pontos no campo do ,IIII'ito exige o entendimento acerca da diferença entre os diver- 1I~ puradigmas filosóficos que conformam o conhecimento ea 1111111' convicção de que o direito não está imune a essas rupturas 1IlIIlll\lllálicas. Iissc fenômeno, como vem sendo explicitado no decorrer 11I'IIl't'lcxões,pode ser adequadamente compreendido a partir I kldl'gger e Wittgenstein (com a reelaboração feita por Ga- 1111'1. I1partir da especificidade do direito), embora sob pers- 11\lI'jdilcrcnciadas. A utilização da filosofia hermenêutica e 1i'\III\I'Il~lIticafilosófica (Gadamer) dá-se na exata medida da 11111 [unudigmática introduzida principalmente por l lcide Itll1lhl'lIl, mais tarde, pelo segundo Wiugcusrein). 111'111'11 III,"III~II() do mundo prático na filosofia. l'Íll'IIIlNlfim:11I 'I 11111 li" dois filósofos. S. A IMPOSSIBILIDADE DE CINDIR INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO: DE COMO O DIREITO NÃO É UMA (MERA) RACIONALIDADE INSTRUMENTAL

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Page 1: LENIO STRECK- O Q É ISTO - CAP 5 A 7

o QUE É ISTO- DECIDO CONFORME MINHACONSCIÊNCIA?, primeiro volume desta

nova coleção, questiona o tradicional mo-

delo de decisão judicial que perpassa o

Imaginário jurídico. O livro mostra como as

decisões são caudatárlas do paradlgma

da filosofia da consciência e o modo pelo

'lual reproduzem aquilo que mais pre-

tondern combater e superar: o poslnvisrno

]urldICO.

m esse novo livro, Lenlo Streck demonstra

I .orno determinados setores da teoria do

IItrotlo, ao fazerem a crítica do posltlvlsrno,

Iltr lito confundem o posltlvísrno primitivo

(u)(uyótlco) com o posltlvlsrno semântico.

"'"li n, nem sempre dizer que "o juiz não está

I III1IHpreso à letra da lei" é "ser um jurista

I IlIh :0" ... 1 Nessa linha, faz uma sofisticada

I Ilth:( I à dlscrlclonarledade posltlvlsta e àlah IllIO desta com a "ponderação de

v. 110",,"', que se tornam responsáveis pelo

"1' .11lunnlsmo e pelo atlvlsmo Judicial. A

, " IIlh do umo dura crítica ao ensino Jurídico

I', • IIl1llfO manualesca que se Instalou no

'11IllI,() outor aponta (e lamenta) o enfra-

l"al "nul1to do doutrina, que "não mais

~ '1lhh111",sondo, na verdade, doutrinada

" ••11" hll llJl1als.

1111'I. 111luntolmente, o livro é um libelo

,"h.1 fi" (IIvorsas formas de declslonlsmo.

li, í~l'I, ( IH ooclsões Judiciais não devem ser

1111'" I" (I partir de critérios pessoais, Isto é,,. "11"1lónelo pslcologlsta" do Intérprete.

11IUIIIII( Inelo - diz Lenlo - não cabe mais

Illitl'Ullhu o 101e a minha consciência",.

I••I11thI mou "sentimento do justo" que

1(, 1111"I ninho consciência". É por tais

'1"1' otllulo é uma Indagação, que

111.1"111lospondlda no decorrer desta

I I 1itil (I livraria do Advogado Editora

'•• I 1'1 çjlsposlção da comunidade

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de um sub-jectum que, sustentadogia" , alcança essa "certeza", que,entre várias". Veja-se: aquilo que

te o era in abstracto ...; diante dosas ser múltiplas, Orª,....Q..g1le_P.arceÍaentende é que é na -"abstrátalida-r múltiplos, em face da porosidade

" nisso: os sentidos não podem sersimples razão de que não se podeção e aplicação. Eis o papel da di-

cia o ingresso do mundo prático no

ue, uma vez que passamos da epis-primeira "fase" e teoria do conhe-a hermenêutica (fundada na virada

(e esperar) que essa ruptura pa-a ampla recepção nessa complexao direito, mormente se parti(r)mosindissociávelligação entre o posi-ueremos combater- - e o esquemaadmite, principalmente no Brasil,

COLEÇÃO o Q1JE É 151(11Lenio Lui: S".,,(

A temática da interpretação, embora tenha assumido um lu-gar cimeiro, continua atrelada à cisão ou às cisões próprias dahcrmenêutica clássica e, portanto, ao paradigma representacio-nal, Isso gera uma porção de mal-entendidos, mormente quandoSI.! confunde as noções de pré-compreensão com "visões de mun-dos", "subjetividades", etc., ou se pensa a applicatio gadameria-1111como uma fase posterior do "processo" interpretativo.

Problemas semelhantes ocorrem quando, invocando o cír-1110hermenêutico, continua-se a fazer interpretações em etapas.

() Imito para a superação desses delicados pontos no campo do,IIII'ito exige o entendimento acerca da diferença entre os diver-

1I~ puradigmas filosóficos que conformam o conhecimento e a1111111'convicção de que o direito não está imune a essas rupturas

1IlIIlll\lllálicas.Iissc fenômeno, como vem sendo explicitado no decorrer

11I'IIl't'lcxões,pode ser adequadamente compreendido a partirIkldl'gger e Wittgenstein (com a reelaboração feita por Ga-

1111'1.I1partir da especificidade do direito), embora sob pers-11\lI'j di lcrcnciadas. A utilização da filosofia hermenêutica e1i'\III\I'Il~lIticafilosófica (Gadamer) dá-se na exata medida da11111[unudigmática introduzida principalmente por l lcide

Itll1lhl'lIl,mais tarde, pelo segundo Wiugcusrein). 111'111'11III,"III~II()do mundo prático na filosofia. l'Íll'IIIlNlfim:11I'I

11111li" dois filósofos.

S. A IMPOSSIBILIDADE DE CINDIRINTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO:DE COMO O DIREITO NÃO ÉUMA (MERA) RACIONALIDADEINSTRUMENTAL

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Essa alteração radical na estrutura do pensamento propor-cionou a ruptura com os paradigmas essencialista-objetivista eda filosofia da consciência (subjetivista). Veja-se que Heideg-ger, buscando superar a fenomenologia trascendental de Husserl,desloca a questão da hermenêutica de Dilthey na direção de umanova ontologia, de uma ontologia fundamental, no interior daqual o ser é pensado não mais da perspectiva de um ente absolu-to e eterno, mas, sim, nas estruturas precárias e finitas da própriacondição humana (a faticidade), deixando para trás a ideia daredução transcendental de Husserl.

Com isso se supera a metodologia como "uma terceira coi-sa" com objetivo de dar certeza ao conhecimento. O método nãoé, nem de longe, o fator determinante para a preparação e forma-ção de conhecimento válido. Há estruturas que se situam antes dequalquer aporte metodológico que já constituem conhecimento.E mais: são estas estruturas que determinam os espaços inter-subjetivos de formação de mundo. Sobremodo, advirta-se: essaautêntica revolução hermenêutica não foi apenas relevante parao direito, mas para a totalidade da estrutura do pensamento dahumanidade. A partir daí, já não se fala emfundamentum incon-cussum - eis a presença dos princípios epocais - e, sim, no com-preender e nas suas condições de possibilidade.

Nesse contexto, há uma pergunta que se torna condição depossibilidade: por que o direito estaria "blindado" às influên-cias dessa revolução paradigmática? Aliás, talvez por assim sepensar - e parece não haver dúvida de que a dogmática jurídica caté mesmo algumas posturas que se pretendem críticas apostamna presença da filosofia no campo jurídico tão somente como"capa de sentido" - é que o direito continua até hoje refém dosolipsismo próprio da filosofia da consciência. Ou seria possívelconceber o direito isolado das transformações ocorridas na fi10sofia (da linguagem)?

Por tais razões, penso que os críticos - e me refiro l~Spl'cialmente àqueles advindos de alguns campos da filosofia í.' 1111sociologia e que olham de "soslaio" o crescimento do liSO 1111hermenêutica filosófica (fenomenologia hermenêutica) 110lIil'l'j

to - deveriam observar melhor esse fenômeno, buscando III1UImaior aproximação com o direito, assim como fazem os .i"ri~11I

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cada vez mais em relação à filosofia e à sociologia, o que hoje jáé facilmente perceptível no campo jurídico.

Nesse sentido, textos como de Merold Westphal" con-firmam o acerto da "incorporação" que venho fazendo. Comefeito, de há muito sustento que a crítica do "mito do dado"feita por Heidegger é um dos pontos centrais para que se possaelaborar uma crítica consistente às Súmulas Vinculantes e aomodus interpretativo dominante no plano da doutrina e da ju-risprudência. Relembro que, muito antes de serem transforma-das em "vinculantes", já sustentava (e denunciava) que há(via)nelas uma nítida pretensão objetivista, que nos joga(va) de voltaao "mito do dado". Trata-se da construção de enunciados asser-tóricos que pretendem abarcar, de antemão, todas as possíveishipóteses de aplicação. São respostas a priori, "oferecidas" an-tes das perguntas (que somente ocorrem nos casos concretos).lsto é, as súmulas são uma espécie de "antecipação de sentido",uma "tutela antecipatória das palavras" ou, ainda, uma atribuiçãode sentido inaudita altera partes ... ! Mais ainda, são o produtoele um neopandectismo, represtinando a pretensão de constru-ção de "realidades supra-legais", em que os conceitos adquirem"vida autônoma". As súmulas, assim como os ementários que(pré)dominam as práticas judiciárias, tem a pretensão de pos-xufrcm uma substância comum a todas "as demandas" (causas),IflSO explica as razões pelas quais não mais discutimos causas1/(/ direito e, sim, somente teses. Essas teses - transformadas emupcr-enunciados - proporcionam "respostas antecipadas". No

lruulo, trata-se de um "sonho" de que a interpretação do direito"111 isornórfica."

I)0 mesmo modo, para além da visão "analítica" que parce-1IIIIIIINideráveldos juristas tem acerca da hermenêutica filosófica

ulnuu-riuna, tenho deixado claro que textos são eventos, na es-1111 11\'filósofos como Ernildo Stein. E mais: desde Hermenêuti-

ttu ulk-a e(m) Crise saliento que ':questão de fato" e "questão

111 I 111"11(111 Iicu enquanto epistemologia. In: Greco, John; Sosa, Ernest (orgs.). Com-'" ,I, II"I,,'II'"/Ologia. São Paulo: Loiola, 2008, p. 645 e segs.

, 'oIlIlldll, vale referir o que disse a Ministra Elen Gracie, do STF: "a Súmula é111' 111111 .h-ve ser passível de interpretação, deve ser suficientemente clara para ser,,1,,01 111 11111101' tergiversação" (Afirmação feita por ocasião do julgamento da pro-01" ,,111111 NI1,,",ln Vinculante n" 14, disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/

/1111"1"111 It'llI'IIISlIl11ulaVinculante/anexolPSV _l.pd>

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de direito" não podem ser cindidas, havendo, ali, apenas uma di-ferença, que é ontológica (ontologische Differenz), assim como arelevante circunstância de que a interpretação do direito implicaessa "diferença", porque, como diz Heidegger, "não lançamosum 'significado' sobre algo nu objetivamente presente em si".Com isso, damos um passo importante para a desmi(s)tificaçãoda interpretação como um ato de "colocar" capas de sentidos aos"fatos" ... !

Do mesmo modo, venho deixando claro que a "explícita-ção do compreendido" é uma "questão epistemológica", o queé fundamental para a compreensão da applicatio. Enfim, nuncative dúvidas de que, como bem assinala Westphal, a hermenêuti-ca é um "universo de três andares" - questão fundamental para acompreensão do fenômeno da interpretação do direito -, em quea proposição é duplamente derivativa: ela se apóia na interpre-tação, que, por sua vez, se apóia na compreensão. É dizer, esta- a compreensão - sempre acontece antes (antecipação de senti-do);" os métodos (de interpretação) sempre chegam tarde ... Essaaproximação/imbricação, à evidência, não objetiva, sob hipótesealguma, transformar a filosofia em um discurso otimizador dodireito, mas, sim, alçá-Ia à condição de possibilidade (filosofiaentendida não como lógica ou "capa de sentido").

Nesse sentido, releva registrar que, efetivamente, a denún-cia de Gadamer de que a interpretação (compreensão) não se fazpor partes ou por etapas continua sem a necessária recepção noplano de algumas concepções baseadas nas teorias discursivas--procedimentais (embora seja "moda" a referência a Gadamerquando se fala em "interpretação" e "pré-compreensão"). KlausGünther, v.g., insere-se nesse contexto" ao dizer que "entre a fun-damentação situacionalmente independente de uma regra e o seudescobrimento situacionalmente dependente, ainda, há, porém,o estágio particularmente autônomo da justificação da sua ad.quação situacional".

O mesmo Günther assevera que o significado de uma normou aquilo que se pretenda dizer com as "circunstâncias inaltcr

94 Como bem diz Gadamer, aquele que compreende não elege arbitrariamente um punde vista; seu lugar lhe é dado com anterioridade.95 Cf. Teoria da Argumentação no Direito e na Moral: justificação e aplicação. SI11110: Landy, 2004, p. 400.

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das" de modo nenhum está estabelecido: "muitas vezes o signi-ficado deverá primeiro ser fixado por meio de uma regra de usolexical, a qual, por sua vez, deverá ser fundamentada. Porém, sósaberemos quais são os significados relevantes na situação. Emvirtude disso, o princípio da aplicação imparcial da norma afirmaque, neste caso, a norma deverá ser aplicada depois de esgotadastodas as possibilidades de significados que puderem ser obtidosem uma descrição situacional completa".

Percebe-se, mais uma vez, além da divisão da interpretaçãoem partes, a cisão que Günther faz entre o texto e a busca de seusignificado e a situação fática, como se fosse possível estabelecersentidos apartados da questão fática. Na verdade, Günther ignorao sentido hermenêutico da antecipação de sentido que se dá emum vetor de racionalidade estruturante ("como" - ais - herme-nêutico).

Note-se que, mutatis, mutandis, isso está presente na ponde-ração em etapas defendida por diversos autores no Brasil. Ora, a"ponderação em etapas" é um exercício argumentativo-procedu-11I1, de caráter nitidamente analítico. Assim, parece inegável que11\ etapas ponderativas repristinam o antigo problema da interpre-liI\'ào por partes ou fases (as três subtilitates) tão bem denuncia-Ilus por Gadamer.

Numa palavra: interpretar é compreender. E compreenderrplicar. A hermenêutica não é mais metodológica. Não mais

IlIh'lprctamos para compreender, mas, sim, compreendemos para11111'1 prctar. A hermenêutica não é mais reprodutiva (Auslegung);

IIplll'a,produtiva (Sinngebung). A relação sujeito-objeto dá lu-11 fi( I círculo hermenêutico.

( 'orn efeito, as críticas - e tenho insistido nisso - de que não11111'1 preta por fases ou etapas dão-se em face do rompimentoIIllll'squema sujeito-objeto; enfim, é a superação da epistemo-

111 111'111 Icnomenologia hermenêutica (por isso, repita-se, Ver-AI/1lodoé lido como Verdade contra o Método).

IlIlpOl'lante notar o modo pelo qual as diversas teorias dis-I\'II~proccdurais (veja-se, por todos, a preocupação de Klaus111"1 IUIll <I matéria) não "abrem mão" do círculo herrnenêu-

" //,\',\'1/11 se transforma em álibi teórico para superar (/.1'

•• ".,,11"'/1' armadilhas da metaftsica clássica. Com efeito, nun

IIHtl I)J'CIDOCONFORMEI "I~I, 11 NelA?

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é difícil perceber a maneira pela qual as teorias que colocam naponderação (nos seus diversos modelos) o modus de resolver asincertezas linguísticas (enfim, os casos difíceis) têm, ao longodo tempo, sustentado que o resultado do processo interpretati-vo aparece em uma "circularidade hermenêutica", utilizando-sedesse teorema hermenêutico para superar o dualismo "interpre-tar-aplicar" ou entre "questão fática-questão normativa".

Penso que isso necessita melhor esclarecimento, ou seja, épreciso compreender que o círculo hermenêutico caracteriza umadeterminada concepção hermenêutica, que tem origem em Hei-degger (aliás, esse autor acaba sendo - no mais das vezes - es-quecido ao se fazer referência ao hermeneutische Zirkel, como se"o círculo" fosse uma criação de Gadamer).

De fato, "assumir" o círculo hermenêutico implica um ca-minho que vai da filosofia hermenêutica à hermenêutica filosófi-ca, portanto, para além de qualquer postura epistemo-analítica.Isto porque Heidegger, corifeu da tese hermenêutico-filosóficade Gadamer, deve ter sua teoria analisada no contexto de umaruptura paradigmática, e não apenas como' um adorno para jus-tificar posturas que, com ele, são completamente incompatíveis.Observe-se: Heidegger constrói uma teoria fundada na ontologiafundamental, que não se compatibiliza com teses/posturas episte-mo-dualísticas (aliás, no mais das vezes, quando é feita referên-cia a Heidegger, é olvidada a - devida - referência à ontologiafundamental). Quando Heidegger entrou em contato com a feno-menologia de Husserl, rapidamente percebeu que ali se apresen-tava o início de uma possibilidade de um recomeço da filosofia,desde que fossem feitos alguns corretivos na fenomenologia vigorante, ainda prisioneira do esquema sujeito-objeto.

Este é ponto. A hermenêutica não deveria mais ser umuteoria das ciências humanas, e nem uma expressão da teoria dusubjetividade. Com isso, não mais se poderia repetir o erro ('confusão que as teorias metafísicas faziam entre ser e ente. A rnomenologia heideggeriana terá um duplo nível: no nível hcrmnêutico, de profundidade, a estrutura da compreensão; no nfvapofântico, os aspectos lógicos, expositivos. É nesse sentido quHeidegger pensa as bases da diferença ontológica tontolouínDifferenz).

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Na medida em que se constrói sobre a interpretação e a her-menêutica, a diferença ontológica só é possível dentro do con-texto do círculo hermenêutico (hermeneutische Zirkel). Portanto,diferentemente do que se tem visto no campo das diversas tenta-tivas de recepcionar as teses de Heidegger e Gadamer no direito,a diferença ontológica e o círculo hermenêutico se articulam emum mesmo movimento, que se tornarão a chave do pensamentofilosófico de Heidegger e de todos os que o seguiram, mormentepara compreender a viragem hermenêutica produzida por Gada-mer no campo da hermenêutica jurídica.

Portanto, é inapropriado colocar uma ênfase no círculo her-menêutico sem vinculá-lo à diferença ontológica. Ora, isso signi-fica também que compreender, em Heidegger, é um existencial e,em Gadamer, é um acontecer (Ereignen). Logo, não é um méto-do. Não pode ser um método e não pode ser dividido em partes.

Compreender é primeiro um modo de ser e um modo deacontecer. Por isso - e essa circunstância ficará bem explicita-da na hermenêutica gadameriana desenvolvida em Wahrheit undMethode -, compreender, e, portanto, interpretar (que é explicitarII que se compreendeu) não depende de um método. Existe umprocesso de compreensão prévio (pré-compreensão) que anteci-pu qualquer interpretação e que é fundamental, levando-nos para11111:\ ideia de duplo sentido da compreensão.

Quando Heidegger identifica um duplo nível na fenome-IHllogia (o nível hermenêutico, de profundidade, que estrutura anntprcensão, e o nível apofântico, de caráter lógico, meramen-

h' vxplicitativo), abre as possibilidades para a desmi(s)tificaçãoIII~h'orias argumentativas de cariz procedimental. Na verdade,

/," '" rm xeque os modos procedimentais de acesso ao conheci-/f", questão que se torna absolutamente relevante para aqui-I"" //'11I dominado o pensamento dos juristas: o problema doi••dll, considerado como supremo momento da subjetividade e

I11111 ill 11""correção dos processdSinterpretativos".11t'l'illitivamente, uma hermenêuticajurídica que se preten-

Ittilll, hoje, não pode prescindir dos dois teoremas funda-11111'1 (11 expressão é de Stein) formulados por Heidcggcr: ()111 •• lu-nncnêutíco, de onde é possível extrair a C()Il(.:IIIS:llldl'11 IIIl·ftulo (ou o procedimento que pretende controlur 11 plll

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cesso interpretativo) sempre chega tarde, porque o Dasein já sepronunciou de há muito, e a diferença ontológica, pela qual oser é sempre o ser de um ente, rompendo-se a possibilidade desubsunções e deduções, uma vez que, para Heidegger, o sentidoé um existencial, e não uma propriedade "colada" sobre o ente,colocado atrás deste ou que paira não se sabe onde, em uma espé-cie de "reino intermediário". A menos que se entenda que os sen-tidos e os entes (que, assim, estariam à espera do "acoplamentosignificativo") existam independentemente um do outro; a menosque seja possível argumentar a partir de "categorias metafísicas"(significantes primordiais-fundantes, espécie de "universais") ouque se acredite na existência de proposições que possam repre-sentar o mundo.

Enfim, a diferença ontológica funciona como contrapontoaos dualismos metafísicos que ainda povoam o imaginário dosjuristas, como essência e aparência, teoria e prática, questão defato e questão de direito, texto e norma, para citar apenas algu-mas que assumem uma relevância incomensurável na aplicaçãodo direito.

Aliás, foi por isso que cunhei a expressão "filosofia no di-reito", para diferenciá-Ia da tradicional "filosofia do direito".Afinal, o direito é um fenômeno bem mais complexo do que sepensa. E, novamente, permito-me insistir na tese de que o direitoé um fenômeno complexo e que não pode ficar blindado/imuneàs transformações ocorridas no campo da filosofia.

Essas críticas, evidentemente, dirigem-se aos setores maissofisticados da doutrina jurídica. Explico: por vezes, sob pntexto da busca da superação de um exegetismo vetusto aindreinante em alguns setores da doutrina e da jurisprudência. 111gumas correntes críticas correm o risco de incentivarem IUII

"busca dos valores", como se a Constituição fosse uma ordpositivada desses valores. Nesses casos, por vezes esses scuucríticos confundem o combate ao velho positivismo sinlrtl(exegético) com as novas formas de positivismo (p.ex., () !lI

tivismo normativista, que avançou em relação ao "velho" 1tivismo exegético). O resultado é a troca de uma "metodokpor outra.

78

5.1. Para além da cultura standard ou"compreendendo melhor o positivismo"

Porém, existem ainda setores da dogmática jurídica - oude certa dogmática jurídica que não consegue sequer chegar aopatamar do velho senso comum teórico denunciado de há muitopor Luis Alberto Warat - que (ainda) teimam em "simplificar" ofenômeno jurídico, buscando transformar a doutrina em um con-junto de prêt-à-porters e frases com pretensões assertóricas. Per-gunte-se, por exemplo, a um filósofo se é possível escrever sobreAristóteles, Kant ou Heidegger de "forma descomplicada" ou"simplificada" ... ; pergunte-se a um cirurgião se é possível fazerum manual "descomplicado" acerca de como se faz uma opera-ção cardíaca ou um transplante ... ; entretanto, parece que o direitose transformou no locus privilegiado das (ou dessas) simplifica-ções, como se o jurista não estivesse inserido em um "modo deser-no-mundo", enfim, em um mundo que existe a partir de para-digmas de conhecimento.

Olhando por esse ângulo, a situação hermenêutica da dou-trina e da jurisprudência de terrae brasilis não é nada animado-1"1I.É evidente que há consideráveis avanços. Construímos umau-oria da Constituição que representou expressivos progressos1111concretização dos direitos fundamentais-sociais. Darwiniana-11I1'lltC,as diversas disciplinas jurídicas foram se adaptando àsdl'lllllndas de uma sociedade complexa. Efetivamente, a teoria dodlll'ito cresceu. E muito. A teoria do direito (lato sensu) pratica-ílll 1111Brasil talvez seja, em todo o mundo, a que mais pratique a1111'1(ou trans)disciplinariedade. Sobre esse conjunto de juristas-1I1111tliuadores-autores não é necessário falar no espaço limitadoh·~tll"reflexões.

Assim, o que nos deve preocupar são os setores "pragmá-n~' que produziram uma doutrina empobrecida e/ou estan-

IIlilllllll, provocando um distanciamento abissal com o que seIIhll IlIlSacademias. Dito de outro fuodo, o direito vem sendo111\1'/ hnnalizado e tratado de forma simplificada por setores111j!lllIltit'lljurídica, que, nestes tempos de tecnologias pós-h'IIIIIS,nparcce revigorada, tecnificada.

dllgllllÍlica jurídica, entendida como sellso (,'011111111(('li

111111xulu-r não crítico-reflexivo), vem sol"n'lIdll IIIIVII~111

11

11

I)

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fluxos decorrentes da massificação do direito. Nessa linha, vemcrescendo em importância os setores ligados aos cursinhos depreparação para concursos. É o que se pode denominar de "ne-opentescostalismo jurídico", em que juristas, à semelhança dealguns pastores/pregadores que podem ser vistos em congressos,sites e até mesmo na televisão, fazem a apologia da estandartiza-ção/simplificação do direito.

Essa cultura standard vem acompanhada da indústria quemais cresce: a dos compêndios, resumos e manuais, muito delesjá vendidos em supermercados e outras casas do ramo. Apare-cem obras de todo o tipo, com "verdadeiros" "pronto-socorrosjurídicos" (SOS do direito ),96 ao lado de livros que buscam sim-plificar os mais importantes ramos do direito. Tenho receio que,em seguida, surjam livros denominados, por exemplo, de "direitopenal (já) mastigado", inclusive com o charme do parênteses ... !De todo modo, para um país em que o Programa Fantástico daRede Globo tentou "ensinar" a filosofia heraclítica (do filósofogrego Heráclito!) a bordo de um caminhão em movimento noTriângulo Mineiro, e o mundo das ideias de Platão no interiorde uma caverna em Tubarão/SC, nada mais pode causar surpresa(lembro como se fosse hoje a repórter-filósofa no interior da ca-verna, ensinando o "mito da caverna" e na bolei a do caminhão,

96 Há coisas "interessantes" em publicações desse tipo. Por todas, cito S.O.S. Hermenêu-tica Jurídica, n.32, ano 2009, na qual nos é dito que a filosofia reinante no liberalismo.apresentado como vigorante no século XVII. era o "absolutismo de Schleierrnacher ... (.1'11'):o modelo interpretativo do neoliberalismo (final do século XX e início do século XXI) l~ 11

tópico-indutivo (sic); a "visão do direito" (sic) no liberalismo era a partir de um "sistcrunde lógica pura", no welfare state, tem-se o "sistema de natureza social" e, no ncolihornlismo, o "sistema de direitos humanos" ... ; as escolas de interpretação, segundo () s.nsHermenêutica Jurídica, seriam a "dogmática", a "histórico-evolutiva", a "livre CI'iIll;i111dodireito" (sic); entre as advertências da publicação plastificada, lê-se como "i 111(11\1 1111111'"o leitor não esquecer que "parte da doutrina entende que nenhuma das duas 1~'orlIlN1~lIhjetiva e objetiva) é suficiente e absoluta", porque a subjetiva "favorece o lIUllldlllllHIIIOpor preponderância da vontade do legislador" e a objetiva "retira a rcsponsnhllhhuh- 110legislador e favorece o anarquismo" (...) - sic. Por outro lado, a atuno/lclro: ~ 1111'1111110para o fato de que "o STF retira a eficácia da norma (controle difuso) c 1'1)111(111'111\SI'III1III1Federal para que este retire a validade da lei" ... (sic). Trata-se, efetivurucuu-, di' 11111I1111Iportante "dica" acerca da diferença entre vigência, validade e eficácia ••...• ('111111111111111permito dizer - que o consumidor não a siga, para que não responda d~ lillllllll'ljlllvOI'"I!,eventual questão em concurso público ... ! De todo modo, há uma eSlwl'llIl,1I 1111(11111que o S.O.S. trata das antinomias no Código Civil de 2002, os uulOI'(INIINNIIlIlIIlIlIIjIlalguma norma civil confrontar com a Constituição, "por certo 1'lI'~vllh'I'I'II\1\ 11'11111'111titucional". Alvíssaras!

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pretendendo mostrar o "movimento" heraclítico)." Afinal, comose diz na "pós-modernidade", imagem não é tudo?

Esse culto ao prêt-à-porter do conhecimento já era denun-ciado há mais de 30 anos por Luis Alberto Warat e hoje reforça-do pelo "imaginário twitter" (não há mais "segredos" no direito;com meia hora de Google, constrói-se um novo "gênio", logotransformado em conferencista, escritor, pregador, para dizer omenos).

Que tempos vive(ncia)mos .., A maior parte da produçãodoutrinária, com aspas e sem aspas, coloca-se como caudatáriadas decisões tribunalícias. Parcela considerável dos livros ape-nas reproduz o que o judiciário diz sobre a lei. Esse "já dito"é condensado/resumido em verbetes (ou, se quisermos ser maissofisticados, "enunciados assertóricos"). Mas, então, por que es-crever livros?

Insisto; temos que redefinir o papel da doutrina. Nós pode-mos mais do que isso ... ! E temos que aprender a criticar as deci-sões dos tribunais, principalmente quando se tratar de decisõesfinais, daquelas que representam o "dizer final", E temos queser veementes. Caso contrário, podemos fechar os cursos de pós-

raduação, as faculdades, etc. E parar de escrever sobre o direi-In, Afinal, se o direito é aquilo que o judiciário diz que é, paraque estudar? Para que pesquisar? Doutrina(r)? Para quê(m)? Va-III()Sestudar apenas "case-law" ... !

evidente que esse tipo de "percepção" acerca do direitoI/Ifl/ {I dominante, mas são facilmente detectáveis os prejuízosl'IIIINlldosno ensino do direito, de norte a sul de terrae brasilis. O1"'111-10 é que, por vezes, tudo se torna "cinzento", sendo pratica-lÍu'lIll' impossível separar o joio do trigo, isto é, fica difícil saber'1lIluldo se está diante de uma dogmáticajurídica séria (indispen-

\1' I 1\operacionalização do direito) e quando se está diante de, \llhl'I' dogmático corroído pela estandardização. Nesse sen-

./

Ildil, 11111'111\examinar a literatura utilizada nas faculdades e nos

"i ~I'11"hnpnrtância" da tentativa de "isomorfia", própria dos meios de comunicação,1"" ,I 11111hlnrcrn uma enchente, colocam o repórter com água pelo pescoço. Basta falar

lIilll dll 1'11V1\l11/1e .. , pronto! Aparece o interior da caverna! Para mostrar o movimentoI~.p111'111111111'11,nnda "melhor" que mostrar um caminhão em "movimento". De todoIit, 1"11'11\11111\1IIII11cclidaem que Heráclito disse "não nos banhamos na mesma água dohhl~ '1'"IN",llIlllhol' seria se a cena fosse gravada no meio de um caudaloso rio,,,1

" I 1'111 !)liCIDOCONFORMEI~ I I 1t'-1\1'I rNt...:It\ 81

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cursos de preparação para concursos. Nessa "zona cinzenta",(muit)os gatos tornam-se pardos.

Tais questões são subsidiárias de um problema maior, re-presentado pelo fato de que não se conseguiu ainda construir osalicerces para a compreensão do que seja efetivamente um para-digma e o papel do positivismo jurídico (afinal, o que é uma pos-tura positivista? O que é isto, o positivismo jurídico?). Um olharatento mostra a confusão que tem sido feita entre os vários tiposde positivismos." Em julgamentos de tribunais e em empolgadasconferências, lemos e ouvimos que os juízes não devem "cumprira letra 'fria' (sic) da lei" e que há(veria) dois tipos de juizes: "opositivista, que se apega à lei" e o "crítico pós-positivista, que seutiliza dos princípios" (que seriam a "positivação dos valores").Segundo essa tese, o primeiro tipo de juiz deve "desaparecer"; osegundo, o dos princípios, é/seria o modelo ideal de juiz ... ! Ora,nesse último caso, olvida-se que, ao incentivarem a "busca dosvalores", seus autores mal sabem que o que estão fazendo é umavulgata do velho positivismo fático (realismo jurídico).

98 Um exemplo dessa confusão pode ser vista em polêmica envolvendo homenagem quea Associação dos Juízes pela Democracia prestou a um líder do MST, por ocasião do Fé-rum Social Mundial. Houve fortes críticas à AJD. O cerne das críticas: os juízes devemser "neutros" em face da política e das questões sociais. A resposta - advinda de outrocampo ideológico (progressista) - apenas reproduziu as velhas dicotomias da teoria dodireito. Com efeito, enquanto em contundente artigo os "conservadores" exigiam dos juí-zes essa postura "clássica" montesquiana, o "progressisrno", em sua resposta no mesmodiário, mostrava ares de vencedor, ao "denunciar" que, nesta altura, já não mais se podiufalar em "juiz boca da lei", etc., e que, para além de qualquer "neutralidade", hoje o atode julgar ou decidir, que é ato intelectivo, tem cunho ideológico ... , uma vez que "juiz Inzopção, sendo a sentença dialética ...". Na sequência, a "crítica" da "crítica" deixou clnruque "o juiz inspira os sentimentos do mundo e os reproduz na realidade em que vive", Ideu-se por encerrado o debate (jornal Zero Hora, Porto Alegre, edições de 30.01.20 (()e 02.02.2010, disponível em www.clicrbs.com.br).Veja-se.aqui.umavezmais.comllodireito é um fenômeno complexo. A "crítica" da "crítica" apelou para o reducionismo,como se "positivismo" fosse apenas o que ocorreu no velho positivismo exegético. ('1111Iisso, a "crítica" caiu na armadilha positivista, uma vez que - e fiquemos em Kclsen, ~'O

rifeu do positivismo pós-exegético - jamais se exigiu dos juízes qualquer ncutrnlkhulMuito pelo contrário, conforme se pode ver pela leitura do famoso capítulo da 1'1'1), 1'0tanto, reivindicar a possibilidade de os juízes proferirem julgamentos ideolégicu« 1'1I11Ise isso fosse uma crítica à "neutralidade", nada mais é do que colocar no lugar tio "1'~/lI,juiz" um "agora juiz ativista", não mais "escravo da lei" e, sim, "senhor dos NI'IIIIda lei". O que é isto, senão uma forma de solipsismo? Nesse contexto, OCOITl' III1UI PIIUvalência de argumentos realistas, pragmaticistas, discricionaristas, etc. E '1111'111vrlll'debate, ao fim e ao cabo, é o positivismo. Numa palavra: a crítica aos juízcs dll AJIIequivocada; mas a crítica da crítica, também!

82 COLEÇA

Daí a pergunta: desde quando obedecer a uma lei nos seusmínimos detalhes é "ser um positivista"? Na verdade, confun-dem-se conceitos. Vejamos: positivismo exegético (que era aforma do positivismo primitivo) é uma coisa distinta, porque se-parava direito e moral, além de confundir texto e norma, lei edireito, ou seja, tratava-se da velha crença - ainda presente noimaginário dos juristas - em torno da proibição de interpretar,corolário da vetusta separação entre fato e direito, algo que nosremete ao período pós-revolução francesa e todas as consequên-cias políticas que dali se seguiram. Depois veio o positivismonormativista, seguido das mais variadas formas e fórmulas, que- identificando (arbitrariamente) a impossibilidade de um "fe-chamento semântico" do direito - relegou o problema da inter-pretação jurídica a uma "questão menor" (lembremos, aqui, deKelsen): o problema do direito não está no modo como os juizesdecidem, mas, simplesmente, nas condições lógico-deônticas devalidade das "normas jurídicas".

Nesse ponto cabe uma explicação mais detalhada: quandoralamos em positivismos e pós-positivismos, torna-se necessário,já de início, deixar claro o "lugar da fala", isto é, sobre "o quê" es-turnos falando. Com efeito, de há muito minhas críticas são dirigi-das primordialmente ao positivismo normativista pós-kelseniano,11'110 é, ao positivismo que admite discricionariedades (ou deci-ionismos e protagonismos judiciais). Isto porque considero, nouubito destas reflexões e em obras como Verdade e Consenso."III/i('t'adoo velho positivismo exegético. Ou seja, não é (mais) ne-Il'ssúrio dizer que o "juiz não é a boca da lei", etc., enfim, pode-/11"'" ser poupados, nesta quadra da história, dessas "descobertas!III/I'()/ares".Isto porque essa "descoberta" não pode implicar umIII!I('/';Ode decisões solipsistas, das quais são exemplos as postu-

li\', ruudatárias da jurisprudência dos valores (que foi "importada"li' lnrma equivocada da Alemanha), os diversos axiologismos, o

""tI'''IIIO jurídico (que não passa 1e um "positivismo fático"), a111111111'/11<,;110 de valores (pela qual o juiz literalmente escolhe um1111, Illllldpios que ele mesmo elege prima facie), etc.

I':x plicando melhor: o positivismo é uma postura científicaIlHi 111' solidifica de maneira decisiva no século XIX. O "positi-

/,/",/,. t' Consenso, op. cit.

lil I I~I() DECIDO CONFORMEI í••.I ( IN~(:I I!NCIA? S:J

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vo" a que se refere o termo positivismo é entendido aqui comosendo osfatos (lembremos que o neopositivismo lógico tambémteve a denominação de "empirismo lógico"). Evidentemente,fatos, aqui, correspondem a uma determinada interpretação darealidade que engloba apenas aquilo que se pode contar, medirou pesar ou, no limite, algo que se possa definir por meio de umexperimento.

No âmbito do direito, essa mensurabilidade positivista seráencontrada num primeiro momento no produto do parlamento,ou seja, nas leis, mais especificamente, num determinado tipo delei: os Códigos. É preciso destacar que esse legalismo apresentanotas distintas, na medida em que se olha esse fenômeno numadeterminada tradição jurídica (como exemplo, podemos nos re-ferir: ao positivismo inglês, de cunho utilitarista; ao positivismofrancês, onde predomina um exegetismo da legislação; e ao ale-mão, no interior do qual é possível perceber o florescimento dochamado formalismo conceitual que se encontra na raiz da cha-mada jurisprudência dos conceitos). No que tange às experiên-cias francesas e alemãs, isso pode ser debitado à forte influênciaque o direito romano exerceu na formação de seus respectivosdireito privado. Não em virtude do que comumente se pensa - deque os romanos "criaram as leis escritas" -, mas, sim, em virtudedo modo como o direito romano era estudado e ensinado. Issoque se chama de exegetismo tem sua origem aí: havia um textoespecífico em torno do qual giravam os mais sofisticados estudossobre o direito. Este texto era - no período pré-codificação - oCorpus Juris Civilis. A codificação efetua a seguinte "marcha":antes dos códigos, havia uma espécie de função complementaratribuída ao Direito Romano. A ideia era simples, aquilo que nãopoderia ser resolvido pelo Direito Comum, seria resolvido segundo critérios oriundos da autoridade dos estudos sobre o Direito Romano - dos comentadores ou glosadores. O movimenucodificador incorpora, de alguma forma, todas as discussões romanísticas e acaba "criando" um novo dado: os Códigos Civl(França, 1804, e Alemanha, 1900).

A partir de então, a função de complementariedade do dlrlto romano desaparece completamente. Toda argumentação judica deve tributar seus méritos aos códigos, que passam a pONa estatura de verdadeiros "textos sagrados". Isso porque eles

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o dado positivo com o qual deverá lidar a Ciência do Direito. Éclaro que, já nesse período, apareceram problemas relativos à in-terpretação desse "texto sagrado".

De algum modo se perceberá que aquilo que está escritonos Códigos não cobre a realidade. Mas, então, como controlar oexercício da interpretação do direito para que essa obra não seja"destruída"? E, ao mesmo tempo, como excluir da interpretaçãodo direito os elementos metafísicos que não eram bem quistospelo modo positivista de interpretar a realidade? Num primeiromomento, a resposta será dada a partir de uma análise da própriacodificação: a Escola da Exegese, na França, e A Jurisprudênciados Conceitos, na Alemanha.

Esse primeiro quadro eu menciono, no contexto de minhaspesquisas - e aqui talvez resida parte do "criptograma do posi-tivismo" -, como positivismo primevo ou positivismo exegéti-co. Poderia ainda, junto com Castanheira Neves, nomeá-lo comopositivismo legalista. A principal característica desse "primeiromomento" do positivismo jurídico, no que tange ao problema dainterpretação do direito, será a realização de uma análise que, nostermos propostos por Rudolf Carnap, poderíamos chamar de sin-1~lico. Neste caso, a simples determinação rigorosa da conexão1(lgicados signos que compõem a "obra sagrada" (Código) seriaII su ficiente para resolver o problema da interpretação do direito.Assim, conceitos como o de analogia e princípios gerais do direi-11.devem ser encarados também nessa perspectiva de construçãoIIt' 11111quadro conceitual rigoroso que representariam as hipóte-

.xtremamente excepcionais - de inadequação dos casos àsIIlptlll~scS legislativas.

Num segundo momento, aparecem propostas de aperfei-IItlllll'Il10 desse "rigor" lógico do trabalho científico proposto

!I,-I" pnsitivismo. É esse segundo momento que podemos chamarh- I'",ll/llismo normativista. Aqui há uma modificação signifi-uivu eom relação ao modo de trab~lhar e aos pontos de partida

I,,"poyitivo", do "fato". Primeiramente, as primeiras décadas do11'" "X viram crescer, de um modo avassalador, o poder rcgu-1111 tltI I~slado - que se intensificará nas décadas de 30 c 40

111I1I'III'j:l dos modelos sintático-semânticos de inICI'j)n;tu,'I111du111 11,Il'fln, que se apresentaram completamente 1'1'011)!tlS l' til'

11 i 1~llt 1)1\(;100 CONFORMEli tI,I~1'1I1NCIi\? R,)

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gastados. O problema da indeterminação do sentido do Direitoaparece, então, em primeiro plano.

É nesse ambiente que aparece Hans Kelsen. Por certo, Kel-sen não quer destruir a tradição positivista que foi construídapela jurisprudência dos conceitos. Pelo contrário, é possível afir-mar que seu principal objetivo era reforçar o método analíticoproposto pelos conceitualistas de modo a responder ao crescen-te desfalecimento do rigor jurídico que estava sendo propagadopelo crescimento da Jurisprudência dos Interesses e à Escola doDireito Livre - que favoreciam, sobremedida, o aparecimento deargumentos psicológicos, políticos e ideológicos na interpreta-ção do direito. Isso é feito por Kelsen a partir de uma radicalconstatação: o problema da interpretação do direito é muito maissemântico do que sintático. Desse modo, temos aqui uma ênfasena semântica.

Mas, em um ponto específico, Kelsen "se rende" aos seusadversários: a interpretação do direito é eivada de subjetivismosprovenientes de uma razão prática solipsista. Para o autor aus-tríaco, esse "desvio" é impossível de ser corrigido. No famosocapítulo VIII de sua Teoria Pura do Direito, Kelsen chega a falarque as normas jurídicas - entendendo norma no sentido da TPD,que não equivale, stricto sensu, à lei - são aplicadas no âmbitode sua "moldura semântica". O único modo de corrigir essa ine-vitável indeterminação do sentido do direito somente poderia serrealizada a partir de uma terapia lógica - da ordem do a priori -que garantisse que o Direito se movimentasse em um solo lógicorigoroso. Esse campo seria o lugar da Teoria do Direito ou, emtermos kelsenianos, da Ciência do Direito. E isso possui uma rc-lação direta com os resultados das pesquisas levadas a cabo peloCírculo de Viena.

Com efeito, como já mostrou Warat em priscas eras, Kelscntem um tributo epistemológico principalmente com Carnap c issofica muito claro quando ele, Kelsen, escolhe fazer ciência apcnnna ordem das proposições jurídicas (ciência), deixando de ladoespaço da "realização concreta do direito". Com efeito, nos Imos propostos por Manfredo Oliveira, também Carnap cxclude sua construção teórica a análise dos enunciados chamndpragmáticos: para Carnap, apenas e sintaxe e a semântica eramdimensões da linguagem que interessavam ao labor filosóficr

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pragmática, sendo uma ciência empírica, estava excluída da filo-sofia."? Kelsen, portanto, privilegiou, em seus esforços teóricos,as dimensões semânticas e sintáticas dos enunciados jurídicos,deixando a pragmática para um segundo plano: o da discriciona-riedade do intérprete. Esse ponto é fundamental para podermoscompreender o positivismo que se desenvolveu no século XX eo modo como encaminho minhas críticas nessa área da teoria dodireito. Sendo mais claro: falo desse positivismo normativista,não de um exegetismo que, como pôde ser demonstrado, já haviadado sinais de exaustão no início do século passado. Numa pala-vra: Kelsenjá havia superado o positivismo exegético, mas aban-donou o principal problema do direito: a interpretação concreta,no nível da "aplicação". E nisso reside a "maldição" de sua tese.Não foi bem entendido, quando ainda hoje se pensa que, para ele,o juiz deve fazer uma interpretação "pura da lei" ... !

Uma coisa todos esses positivismos têm até hoje em co-mum: a discricionariedade, E isso se deve a um motivo muitosimples: a tradição continental, pelo menos até o segundo pós-

urerra, não havia conhecido uma Constituição normativa, inva-sora da legalidade e fundadora do espaço público democrático./.1'.1'0 tem consequências drásticas para a concepção do direitot"IIl/I.O um todo!

Quero dizer: saltamos de um legalismo rasteiro que redu-111o elemento central do direito, ora a um conceito estrito de lei

Inllll() no caso dos códigos oitocentistas, base para o positivismopuruitivo), ora a um conceito abstrato-universalizante de norma1'1111' se encontra plasmado na ideia de direito presente no positi-

1·,11111 normativista), para uma concepção da legalidade que sóconstitu! sob o manto da constitucionalidade. Afinal - e me

11'11111111 uqui de Elias Dias -, não seríamos capazes, nesta quadra111 lIi••I(lIiH, de admitir uma legalidade inconstitucional.

IIls o "ovo da serpente". Obedecer "à risca o texto da leihqillll 1111icamente construída" (já superada - a toda evidência

IlIIll'NII1o ela distinção entre direito e moral) não tem nada a ver11 I1 "cxegcse" à moda antiga (positivismo primitivo). No pri-1111 I 'IINII, a moral ficava de fora; agora, no Estado Dernocrá-

I 111111 1111, Munfredo Araújo de. Reviravolta Lingutstico-pragmáttru 11I/ tI""II'//'/",111.'., Silo Paulo: Loyola, 2001, p. 82-83.

CONFORME x

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tico de Direito, ela é co-originária. Falamos hoje, pois, de uma"outra" ou de uma nova legalidade. Como exemplo, cito a "lite-ralidade" (sic) do art. 212 do CPP (na nova redação trazida pelaLei n" 11.690/08, que inverte a ordem das perguntas às testemu-nhas). Ora, aplicar o dispositivo em tela é não só obedecer (tam-bém) "literalmente" (sic) à Constituição (o que não nos pareceruim, pois não?), como institucionalizar o sistema acusatório, tãoreclamado pelos processualistas penais. A legalidade reclamada,neste caso, é uma legalidade constituída a partir dos princípiosque são o marco da história institucional do direito; uma legali-dade, enfim, que se forma no horizonte daquilo que foi, prospec-tivamente, estabelecido pelo texto constitucional. Simples, pois!

Por tudo isso, "cumprir a letra da lei" significa sim, nosmarcos de um regime democrático como o nosso, um avançoconsiderável. A isso, deve-se agregar a seguinte consequência:tanto aquele que diz que texto e norma (ou vigência e validade)são a mesma coisa, como aquele que diz que estão "descolados"(no caso, as posturas axiologistas, realistas, etc.), são positivistas.Para ser mais simples: Kelsen, Hart e Ross foram todos positi-vistas. Do mesmo modo que são positivistas hoje os juristas queapostam na discricionariedade judicial...! Ou em ativismos judi-ciais irresponsáveis (o que dá no mesmo). Seja isso para o bemou para o mal.

5.2. A hermenêutica antirrelativista e a aposta naantidiscricionariedade

Em definitivo: o direito não é uma mera racionalidade ins-trumental. Isso implica reconhecer que fazer filosofia no direitonão é apenas pensar em levar para esse campo a analítica da lin-guagem ou que os grandes problemas do direito estejam na merainterpretação dos textos jurídicos. Mais importante é perceberque, quando se interpretam textos jurídicos, há um acontecimcnto que se mantém encoberto, mas que determina o pensamentodo direito de uma maneira profunda.

Dito de outro modo, fazer filosofia no direito não exprcsuma simples "terapia conceitual", mas sim um exercício constate de pensamento dos conceitos jurídicos fundamentais de moda problematizar seus limites, demarcando seu campo correio

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atuação. Enfim, filosofia no direito implica construção de possi-bilidades para a correta colocação do fenômeno jurídico que, naatual quadra da história não pode mais ser descolado de um con-texto de legitimação democrática.

A opção pela hermenêutica filosófica acarreta compromis-sos teóricos, devendo ser evitada qualquer forma de mixagensteoréticas. Assim, quando Gadamer diz que não se interpreta poretapas, isso quer dizer que compreensão e aplicação são incin-díveis. Por isso a sua contundente crítica às três subtilitates. Eisso não é mera observação de Gadamer ou capricho retórico domestre de Tübingen. Com a hermenêutica, tem-se a ruptura comqualquer possibilidade de prevalência do esquema sujeito-objeto,seja pelo paradigma metafísico-clássico, seja pelo paradigma dafilosofia da consciência. Trata-se da superação da epistemologiapela fenomenologia hermenêutica (por isso, repita-se, Verdade eMétodo pode ser lido como Verdade contra o Método).

A impossibilidade da cisão entre compreender e aplicar im-plica a impossibilidade de o intérprete "retirar" do texto "algo que() texto possui-em-si-mesmo", numa espécie de Auslegung, comoNl' fosse possível reproduzir sentidos; ao contrário, para Gadamer,luudado na hermenêutica filosófica, o intérprete sempre atribuicntido (Sinngebung). Mais ainda, essa impossibilidade da cisãoque não passa de um dualismo metafísico - afasta qualquer pos-ihilidade de fazer "ponderações em etapas", circunstância, aliás,

qlll' coloca a(s) teoria(s) argumentativa(s) como refém(ns) do pa-IIlIlIgll1ado qual tanto tentam fugir: a filosofia da consciência.

O que deve ser dito é que o problema do sentido do direito,'1//(/ antes do problema do conhecimento. O jurista não "fa-

111hn" () seu objeto do conhecimento. A compreensão, pela sua!ill·•.•,·",·o antecipada", é algo que não dominamos. O sentido não

111" nossa disposição! Por isso é que - e de há muito venho in-IIlIdo nisso (e me permito repetir a esta altura destas reflexões)111,1 tntrnrretamos para compreender, e, sim, compreendemosI tntrrnretar. A interpretação, como bem diz Gadamer, é a

plhllll,':10 do compreendido. Com isso, são colocados em xe-11'. IlIndos procedimentais de acesso ao conhecimento.

NII pluno da teoria do direito (contemporânea), é possível1111111 1\11(' o modelo excessivamente teórico de abordagem

CONFORME 89

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gera uma espécie de asfixia da realidade (mundo prático). Ouseja, o contexto prático das relações humanas concretas, de ondebrota o direito, não aparece no campo de análise das teoriaspositivistas. Mas, mesmo quando aparece, esse "aparecimento"vem sob a forma de cisão: fato e direito. Isso gera problemas dediversos matizes, porque, mesmo quando as teorias que podemser denominadas de críticas sustentam que "não é mais possívelseparar interpretação de aplicação", estas não conseguem perce-ber a dupla estrutura da linguagem (a dobra da linguagem de quefala Stein): o como apofântico e o como hermenêutico. De nadaadianta dizermos que "interpretar é aplicar" se continuarmos apensar que os sentidos podem se dar antes da aplicação. Por issoé que, para a hermenêutica que proponho - fruto da imbricaçãoHeidegger-Gadamer-Dworkin -, quando afirmo que interpretaré aplicar, estou reafirmando que os sentidos somente se manifes-tam no ato aplicativo. E essa não é uma afirmação retórica. Ossentidos jurídicos se dão somente na applicatio.

Aqui, faz-se necessária uma advertência: como tenho dei-xado claro em outros textos (mormente em Verdade e Consenso,op. cit.), a Nova Crítica do Direito ou a Crítica Hermenêutica doDireito é uma nova teoria que exsurge da fusão dos horizontes dafilosofia hermenêutica, da hermenêutica filosófica e da teoria in-tegrativa dworkiniana. Dela exsurge a tese de que há um direitofundamental a uma resposta correta, entendida como "adequa-da à Constituição" .101

Portanto, já não há espaço para discutir as eventuais contradições ou contrariedades entre, p. ex., Dworkin e Gadamer,percepção da moral dworkiniana ou a ausência (sic) dessa diNcussão em Gadamer, etc. Esses temas ficam "subsumidos" ninterior da uma nova concepção, adequada às especificidadcsum pós-positivismo que deve se dar no seio do constitucionalmo democrático.

101 De se ressaltar que, por certo não estou afirmando que, diante de um cuso \'1111I'1dois juízes não possam chegar a respostas diferentes. Volto a ressaltar que IIRII •••• '

afirmando, com a tese da resposta correta (adequada constitucionalmente) 1[111' 1'_1respostas prontas a priori, como a repristinar as velhas teorias sintãtico-aouum]!tempo posterior à revolução francesa. Ao contrário, é possível que dois j11(II'N 1'11

a respostas diferentes, e isso o semanticismo do positivismo normativistu I~hnvlfendido desde a primeira metade do século passado. Todavia, meu arMI/II/I'II'" I'rmafirmar que, como a verdade é que possibilita o consenso e não o contrarlo, /1111

respostas divergentes, ou um ou ambos os juizes estarão equivocados.

90

A tese por mim defendida somente tem sentido na demo-cracia e sob a égide de uma Constituição compromissória. Aliás,neste sentido, é preciso assinalar as relevantíssimas contribuiçõesde Marcelo Cattoni, que, quanto à resposta correta, adverte parao fato de que "pressupõe, indissociavelmente, uma reconstruçãoacerca do que é Direito moderno de uma sociedade democráticacompreendida como comunidade de princípios: o Direito não sereduz a um conjunto de regras convencionalmente estabelecidasno passado, nem se dissolve em diretrizes políticas a serem legi-timadas em razão de sua eficácia ótima". 102

Por isso, para mim, o principal problema aparece quando seprocura determinar como ocorre e dentro de quais limites deveocorrer a decisão judicial. As teorias argumentativas - que seenquadram no âmbito das teorias analíticas - continuam apostan-do na vontade do intérprete, gerando a discricionariedade judi-cial. Tais teorias sofrem, assim, de um letal déficit democrático.

É nesse sentido que, ao ser antirrelativista, a hermenêuticafunciona como uma blindagem contra interpretações arbitrárias e.liscricionariedades e/ou decisionismos. Veja-se: alguns críticos.ln hermenêutica acusam-na de "irracionalista" (sic). Nesse sen-lido, afirmo, uma vez mais, que minhas críticas ao decisionismo,Iltl discricionarismo, etc., não estão assentadas apenas nisso (a1'11" compreensão como limite). Essa é uma das teses (conclu-OI'H) que defendo. Criticar-me por isso é fazer pouco caso da

luuucnêutica. Registro, por exemplo, que minha aposta na pré-ruurprcensão dá-se em face desta ser condição de possibilidade

11I'1/1 que reside o giro ontológico-linguístico). Minha cruzada11/1111I discricionariedades e decisionismos se assenta no fato de

1',1111'111 dois vetores de racionalidade (apofântico e hermenêu-11. , irrunstãncia que alguns de meus críticos não percebem"'tI "I/tendem.

'I' compararmos a "teoria da moda" (teoria da argumenta-I 1111uliru) com a hermenêutica filosófica (na perspectiva que

111111), veremos a distância que existe entre tais posturas. A1\'111,11 lundarnental talvez esteja no fato de que a hcrrncnêu

111111 110 âmbito de um mundo compartilhado (pOdt'1I10S dUI

l'OIlullol I rworkin: De que maneira o Direito se asscmclhn ~ 1111'111111111') 111' 'l"lIllIlIlh,' 10. ""'111, (Iubcrl, Roberta Magalhães; Copcui N1111I, AII"'d,, I"I~. t l)

11/"1/,,.\ rrlticos. Porto Alegre: Livrnriu dll Adv"p"d", .'IHIH,I' )1

CONFOrtMI'

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mar a isso de intersubjetividade), enquanto as teorias procedurais(como a teoria da argumentação jurídica) não superaram o es-quema sujeito-objeto (S-O).

É evidente - e compreensível - que qualquer teoria que es-teja refém do esquema sujeito-objeto acreditará em metodologiasque introduzam discursos adjudicadores no direito (Alexy é um tí-pico caso). Isso explica também por que aponderação repristina avelha discricionariedade positivista. E fica claro também por queAlexye seus seguidores não abrem mão da discricionariedade.Com efeito, a teoria da argumentação não conseguiu fugir do ve-lho problema engendrado pelo subjetivismo: a discricionariedade,circunstância, aliás, que é reconhecida pelo próprio Alexy:

"Os direitos fundamentais não são um objeto passível de serdividido de uma forma tão refinada que inclua impasses es-truturais - ou seja, impasses reais no sopesamento -, de formaa torná-los praticamente sem importância. Neste caso, então,existe uma discricionariedade para sopesar, uma discricio-nariedade tanto do legislativo quanto do judiciário" .103

Esse é o ponto que liga a teoria alexyana - e consequente-mente, de seus seguidores - ao protagonismo judicial, isto é, osub-jectum da interpretação termina sendo o juiz e suas escolhas.É também nesse sentido que concordo com Arthur Kaufmann,ao negar qualquer interligação entre hermenêutica e teoria daargumentação jurídica: "A teoria da argumentação provém, es-sencialmente, da analítica. Esta proveniência pode vislumbrar-sainda hoje em quase todos os teóricos da argumentação. Não 110S

é possível, nem necessário, referir todas as correntes da temida argumentação, até porque, como nota Ulfrid Neumann, nCIsequer existe a teoria da argumentação jurídica. Assim, já é quetionável que se possam considerar a tópica e a retórica como 1"0

mas especiais da teoria da argumentação". Agregue-se, adcmudiz Kaufmann, "que a teoria da argumentação não aC()//11IIII//i

a hermenêutica na abolição do esquema sujeito-objeto, 11/'I'I'tll,cendo-se da objetividade" .104

103 Cf. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Luis Virgilio A. Silvu. Silo 1'1111111lheiros, 2008, p. 611.

104 Ver, para tanto, Introdução àfilosofia do Direito e à Teoria do Dirrltu I'",,,neas. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2002, p. 154 e segs.

92

6, UMA ADVERTÊNCIA: CONTROLARAS DECISÕES JUDICIAIS É UMAQlJESTÃO DE DEMOCRACIA, OQlJE NÃO IMPLICA uPROIBIÇÃODE INTERPRETAR' ...!

Por tudo isso - e permito-me insistir nesse ponto -, discutirIIS condições de possibilidade da decisão jurídica é, antes de tudo,lI/11aquestão de democracia. Consequentemente, deveria ser des-piciendo acentuar que a crítica à discricionariedade judicial não,1 uma "proibição de interpretar". Ora, interpretar é dar sentidoIS/lIngebung). É fundir horizontes. E o direito é composto por"'Was e princípios, "comandados" por uma Constituição. Assim,ri j Imar que os textos jurídicos contêm vaguezas e ambiguidadesque os princípios podem ser - e na maior parte das vezes sãoIIl1liS"abertos" em termos de possibilidades de significado, não

s vustltui novidade, uma vez que até mesmo os setores mais atra-1111I/<da dogmáticajurídicajá se aperceberam desse fenômeno.

() que deve ser entendido é que a realização/concretização"/> textos (isto é, a sua transformação em normas) não depen-" nflo pode depender - de uma subjetividade assujeitadora

lI'II'llIa S-O), como se os sentidos a serem atribuídos fossem111 I 1/11 vontade do intérprete. Ora, fosse isso verdadeiro, tería-'li '1"" dar razão a Kelsen, para quem a interpretação a ser fei-

/,'\ jl/('l,(!Sé um ato de vontade. Isso para dizer o mínimo!NII verdade, o "drama" da discricionariedade que critico re-

lill 11110 ele que esta transforma os juizes em legisladores. E.1t~11Idisso, esse "poder discricionário" propicia a "criução"1'IIIIIIIljcto de "conhecimento", típica rnanifcstuçnn do po!!lil (hl seja, a razão humana passa a ser 11"rollt" UUIIl!1l11

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dora" do significado de tudo o que pode ser enunciado sobre arealidade. As coisas são reduzidas aos nossos conceitos e às nos-sas concepções de mundo, ficando à dis-posição de um protago-nista (intérprete lato sensu). Consequências disso? Inúmeras.

Talvez aquilo que melhor simboliza a aposta no sujeito-juiz--protagonista é o projeto que pretende introduzir um novo Có-digo de Processo Civil em terrae brasilis. Ideologicamente sus-tentado na escola instrumentalista, entre outras coisas, reconheceem favor do juiz o poder de adequar o mecanismo às especifici-dades da situação, além de reforçar a transferência das decisõescolegiadas para o monocratismo. Há, entretanto, questões maisgraves ainda. Com efeito, no art. 108 do Projeto, exsurge uma in-trigante questão que aponta para um sintoma gravíssimo de nãosuperação dos paradigmas novecentistas de interpretação do di-reito. Com efeito, embora a exposição de motivos do projeto donovo CPC faça ode à Constituição de 1988 e descreva, constan-temente, a necessidade de se adaptar o processo aos problemastipicamente contemporâneos, vemos o dispositivo em epígrafesustentar que o juiz não pode deixar de decidir alegando lacuna(sic) ou obscuridade (sic) da Lei. Por mais incrível que possaparecer, está-se diante do vetusto imperativo do non liquet, queaparece também no art. 4° da LICC. Além de repristinar, dessemodo, discussões acerca daquilo que podemos chamar de "sensosemântico" (semantic sense) nas discussões sobre a interpretaçãodo direito - desconsiderando assim as conquistas da hermenêuti-ca filosófica e da própria teoria integrativa dworkiniana -, o projeto do CPC ainda faz menção à necessidade de "utilizar", IUIsolução da demanda, os princípios constitucionais e princtpiosgerais do direito (para ficar apenas nesse ponto).

É espantoso vermos colocados lado a lado os princfplnconstitucionais e os velhos princípios gerais do direito. (( COIl1se não tivéssemos aprendido nada nesses duzentos anos (k trodo direito. Ora, há um sério equívoco neste tipo de incorporuçlegislativa, visto que, como demonstrei em meu verdade» .,senso - não há como afirmar, simultaneamente, a ('X;,\'II'IIt'1llprincípios constitucionais (cujo conteúdo deôntico p.fi 1/'11:\',\'com os princípios gerais do direito, que nada mais .I'aoinstrumentos matematizantes de composição dasfalluts til

ma. Vale dizer, os princípios gerais do direito não p(lSNII~t

94

deôntica, mas são acionados apenas em casos de "lacunas" ou deobscuridade da previsão legislativa (esses dois fatores -lacuna eobscuridade - decorrem muito mais da situação hermenêutica dointérprete do que exatamente da legislação propriamente dita).São axiomas criados para resolver os problemas decorrentes dasinsuficiências ônticas dos textos jurídicos. Os autores do projeto,dessa forma, não compreende(ra)m que os princípios constitucio-nais - na senda da revolução copernicana do direito público efetua-da pelo constitucionalismo do segundo pós-guerra - representamuma ruptura com relação aos velhos princípios gerais do direito.Essa ruptura implica superar a velha metodologia privativista e in-troduzir um novo modelo de pensamento da ideia de princípios.

Todavia, o espanto não termina nisso, eis que o mesmo art.l08 opõe, ainda, "princípios constitucionais" e "normas legais".Cabe perguntar: o que são normas? E o que são normas legais?Elas se confundem com as leis ou com o texto das leis? Permi-to-me insistir na pergunta: os princípios constitucionais não pos-suem caráter normativo?

Não fosse isso suficiente, tem-se o art. 472, que, indo nalinha daquilo que estabelece a instrumentalidade do processo eIh1candente reforço do protagonismo judicial que ancora o Pro-jl'to, dispõe que o juiz, na fundamentação da sentença, deveráproceder à ponderação dos princípios colidentes à luz do casoI .nureto, numa alusão quase explicita à teoria da argumentaçãoII/ddica proposta por Robert Alexy. Ora, como se sabe, Alexy11'1'IHlheceque princípios - assim como as regras - são espéciesI1IIgl"nero norma, fator que o anteprojeto evidentemente descon-1111'1'11,

Ademais, também no art. 472 é possível perceber como1'/!I('(lssualística brasileira ainda não conseguiu ir além

fll f'l'ofJfemas metodológicos que foram instituídos no finalI 1"111/0 XIX e no início do século XX, mesmo em tempos de,,',d,(II/,\'lilucionalismo e todas as. consequências paradig-11111, "I' (11Iedaí se seguem. Consciente ou inconscientemente,

II!'III nU não os autores do projeto, o novo CPC propõe 1111I\lllll (SI' quisermos, um retrocesso) ao poxitivismo SI'1ll0"tlumuuulvo de cariz kelseniano. Deixar tudo [uuu 11/1 illt

II Kelscn já havia deixado 1,;01110111'1'1111\'111111I1111111pUII.l'IiIHIII~ li HS consequências disso todll/l 1'011111'1'\'1111'"11(\I!tll

ItI 111:(;11)0C()NI'()HMII'I~I'11NelA'!

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cial não demorariam a ser sentidos: a doutrina se contenta com"migalhas significativas" ou "restos dos sentidos previamente

produzidos pelos tribunais". Com isso, a velha jurisprudênciados conceitos atravessa o rio da história e acaba chegando aosnossos dias paradoxalmente a partir do lugar que era o seu des-tinatário: as decisões judiciais, ou seja, são elas, agora, que pro-duzem a conceitualização. E com uma agravante: o sacrifício domundo prático.

De todo modo, o ponto fulcral não está no exegetismo, nopositivismo fático (por todos, basta examinar as teses do realis-mo jurídico nas suas variadas perspectivas) e nem nas teorias queapostam na argumentação jurídica como um passo para além daretórica e como um modo de "corrigir as insuficiências do direitolegislado". Na verdade, o problema, em qualquer das teses queprocuram resolver a questão de "como se interpreta" e "como seaplica", localiza-se no sujeito da modernidade, isto é, no sujeito"da subjetividade assujeitadora", objeto da ruptura ocorrida no.ampo da filosofia pelo giro ontológico-linguístico e que não foirocepcionado pelo direito. Esse é o nó górdio da questão.

Isso significa poder afirmar que qualquer fórmula herme-IH'utico-interpretativa que continue a apostar no solipsismo esta-111 fadada a depender de um sujeito individual(ista), como que arvpristíuar o nascedouro do positivismo através do nominalismo.IIsI6-se, pois, diante de rupturas paradigmáticas e princípios epo-l'IIi,~que fundamentam o conhecimento em distintos períodos dahl'i16ria.

nos queixamos das súmulas vinculantes ... ! Ou seja, primeiro, in-centivamos atitudes ativistas-protagonistas; depois, quando tudoparece incontrolável, apelamos aos enunciados metafísico-sumu-lares ... ! A pergunta que fica é: quando é que os juristas se darãoconta disso tudo?

Eis a complexidade do problema, que deve ser devidamen-te entendido: historicamente, os juízes eram acusados de ser aboca da lei. Essa crítica decorria da cisão entre questão de fato equestão de direito, isto é, a separação entre faticidade e valida-de (problemática que atravessa os séculos). As diversas teoriascríticas sempre aponta(ra)m para a necessidade de rompimentocom esse imaginário exegético. Ocorre que, ao mesmo tempo,a crítica do direito, em sua grande maioria, sempre admitiu - ecada vez admite mais - um alto grau de discricionariedade noscasos difíceis, nas incertezas designativas, enfim, na zona de "pe-numbra" das leis.

Assim, quando questiono os limites da interpretação - aponto de alçar a necessidade desse controle à categoria de princí-pio basilar da hermenêutica jurídica -, está obviamente implícitaa rejeição da negligência do positivismo "legalista" para com opapel do juiz, assim como também a "descoberta" das diversascorrentes realistas e pragmatistas que se coloca(ram) como antí-tese ao exegetismo das primeiras.

Na verdade, a questão que está em jogo ultrapassa de lon-ge essa antiga contraposição de posturas, mormente porque, noentremeio destas, surgiram várias teses, as quais, sob pretextoda superação de um positivismo fundado no sistema de rcgrn«,construíram um modelo interpretativo calcado em fórmulas e/ouprocedimentos, cuja função é(ra) descobrir os valores prcscnt(implícita ou explicitamente) no novo direito, agora "eivado liprincípios e com textura aberta".

Sob várias roupagens, as diversas teorias ou correules flll'lleceram o protagonismo judicial, fragilizando sobremodo li 1'1\1da doutrina. Em terrae brasilis, esta problemática é flld I11I01notada no impressionante crescimento de uma culuuu juacuja função é reproduzir as decisões tribunalfcius. /(' o i,odos enunciados assertóricos que se sobrepõe à /'(:/1,'\/10nária. Assim, os reflexos de uma aposta no protHi101l1"'1II

6.1. A discricionariedade (e suas derivações) como uma"fatalidade" positivista

I,'it:tl claro que a histórica aposta na discricionariedade, comtlll/"'1I1 bem definida em Kelsen e Hart, tinha o objetivo, ao mes-IIh. trrupo, de "resolver" um problema considerado insolúvel, re-II"H"lIllIdopela razão prática "eivada de solipsismo" (afinal, o1111'1111 d" modernidade sempre se apresentou consciente-de-si ('

1/111 rcrteza-pensarues, e de reafirmar o modelo (k 1'l'W'IlNdo1I1i1lvINIIIO,110 interior do qual os princfpio» (/ott'l'lIiN11111111'(1110)

1!IIPIlI'lHlos a "valores" - I'I/O,\'I/"l/I'IIII/',I'I' 1'/111/" '""'1/,,,'('111/(1'/7 - d "/' I "í/ , '011 l'II/flÇ'ClO esse ,('C /(11I1,'''10

I , 1', I () I lPCII)() C()N I ( 111MI11\ li Itl~I'11 NelA'196

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Aliás, a referência reiterada aos "valores" demonstra bemo ranço neokantiano que permeia o imaginário até mesmo da-queles que pretendem fazer uma dogmática crítica. De fato, nãoé exagero afirmar que, em termos teóricos, a grande maioria dosjuristas brasileiros permanece atrelada, de algum modo, ao para-digma filosófico que se formou a partir do neokantismo oriundoda escola de Baden (e da noção de moral pós-convencional).

Em outras palavras, continuamos reféns de um culturalismodefasado que pretendia fundar o elemento transcendental do co-nhecimento na ideia sintética de valores, que representariam, porsua vez, o complexo destes valores que comporia o mundo cultu-ral. Chega a ser intrigante o fato de que toda tradição constituídadepois do linguistic turn - inclusive alguns setores da filosofiaanalítica - tenha criticado o objetivismo ingênuo dessa concep-ção do neokantismo valorativo, demonstrando que a questão dosvalores não dava conta radicalmente dos fundamentos linguisti-co-culturais que determinam o processo de conhecimento.

A própria formação da cultura é algo muito mais propria-mente ligado à linguagem e à constituição de contextos signi-ficativos, do que propriamente ao problema da formação etransformação deste enigma chamado "valores". Isso fica bemrepresentado na formulação daquilo que Steiri'" denomina "para-doxo de Humbolt": nós possuímos linguagem porque temos cul-tura ou temos cultura porque possuímos linguagem? Portanto, odiscurso axiológico no interior do direito deveria ter sucumbidojunto com o paradigma filosófico que o sustentava. A despeitodisso, continua-se a falar - acriticamente, por certo - em "valo-res", sem levar em conta a sua conhecida e problemática origemfilosófica. Aqui também é possível dizer que a palavra "valores"assumiu uma dimensão "performativa", bastando que se a invoque para que as portas da "crítica" do direito se abram .... !

O que devemos opor a esse "estado de coisas"? Na verdade.o que ocorre é que, com o advento da "era dos princípios comititucionais" - consequência não apenas do surgimento de novotextos constitucionais, mas, fundamentalmente, decorrentes liuma revolução paradigmática ocorrida no direito -, parcela cosiderável da comunidade jurídica optou por os considerar COI

105 Antropologi~ Filosófica. Questões Epistemológicas. Ijuí: Unijuí, 2009.

98

um sucedâneo dos princípios gerais do direito ou como "suportedos valores da sociedade" (o que seria isso, ninguém sabe).

As consequências todos conhecemos: sob o pretexto de osjuízes não mais serem a boca da lei, os princípios passaram aser a "era da abertura interpretativa", a "era da criação judiciá-ria" ... Em decorrência, estabeleceu-se um verdadeiro "estado denatureza hermenêutico", que redundou em uma fortíssima e durareação do establishment jurídico-dogmático: mudanças legislati-vas introduzindo, cada vez com mais força, mecanismos vincu-latórios. Em outras palavras, o establishment jurídico-dogmáticoprocedeu a uma adaptação darwiniana.

Por tudo isso é que procuro denunciar o estado de poluiçãosernântica'P e anemia significativa a que o significado do termopás-positivismo foi submetido, confundindo-se-o com "aberturainterpretativa", "ativismo" ou "protagonismo dos juizes-que-já--não-são-a-boca-da-lei" .

Importante frisar: isso não é uma peculiaridade do pensa-mento jurídico brasileiro, podendo também ser notado em váriasmanifestações teóricas do direito comparado. Naquelas vertentesteóricas em que se nota uma preocupação com a determinação de11m novo paradigma para o direito, parece haver certo consensoquanto ao esgotamento teórico dos modelos positivistas de teoriado direito.

Registre-se, entretanto, que, ao mesmo tempo, há uma1//II'IISadificuldade de libertação de toda carga conceitual queItll lcgada pelos anos de predomínio do positivismo. O resultado" 1111111 espécie de repristinação das velhas teses das teorias positi-\'I ••las clássicas e das do neopositivismo que, evidentemente, tra-

('111 consigo o mesmo vírus que contaminava o legatãrio.!" emplt'lIl1 paradigma da intersubjetividade (giro ontológico-linguís-111 11), coruinua-se a apostar na discricionariedade judicial para

'/'{I'I'/' () problema da decisão. A discricionariedade passou a

""I I 1~1i'~liIIlIlIJr, Wolfgang. A Filosofia Contemporânea. São Paulo: EPU, 1977. v.I,'11.

1111111111111~ possível trazer para esta discussão as críticas que s()rí1o f('illlN 11 ,~I'I1I1" ti

111""1'/",/" 110 tocante à ideia de princípios. Ou seja, se cnll'n(!"1I110N 1IIII'III'IIIINIIIIUlu'1lhlllll 11111111IIIl1B continuidade do constitucionulismo nutcrku, 1I111'IIIU~ 11111I111111111111

il;.!" \'1.11111problema positivista da discricionurk-dmh-, 11111/111111'111 1111'1111"1\•••1111,"I 111',111111'111111111s 11I0 somente adquire sIJ1I111I1I1111lNI' "1111'111111111111'111111Ih' 1111111.1"" ""

"I, 1'1111111110.de ruptura.

tlll I 1\1() I) I:C IJ)O ('tlNIIIIII\\1"'II{l1 II~N:II~NCIi\'

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ser a condição de possibilidade da decisão. Ou seja, no fundo,não conseguimos sair de um velho dilema: o que fazer para con-trolar a atuação da jurisdição?

O positivismo sequer se preocupava em responder tal ques-tão. Para ele, a discricionariedade judicial era umafatalidade. Arazão prática - que o positivismo chama de discricionariedade- não poderia ser controlada pelos mecanismos teóricos da ciên-cia do direito. A solução, portanto, era simples: deixemos de ladoa razão prática (discricionariedade) e façamos apenas epistemo-logia (ou, quando esta não dá conta, deixe-se ao alvedrio do juiz- eis o ovo da serpente gestado desde a modernidade). E tudocomeça de novo!

A hermenêutica de cunho fenomenológico procura superaresse(s) equívoco(s), demonstrando que a ideia de razão prática sedissolve com a morte daquele que a sustenta: o sujeito solipsis-ta. A fenomenologia hermenêutica supera, no que tange ao pro-blema do conhecimento, o solipsismo monadológico do sujeitomoderno a partir da demonstração das estruturas existenciais doser-no-mundo e dos existenciais do ser-em e do ser-com. E a her-menêutica filosófica complementa essa "operação", mormenteno plano da hermenêutica jurídica, superando o esquema sujeito--objeto e qualquer possibilidade de subsunção.

É preciso compreender que a intersubjetividade - e essaquestão é ruptural - manifesta-se no conceito de significânciaque se apresenta como o responsável pela formação dos projetosde sentido e significados que se articulam no Discurso.

Portanto, é dessa dimensão de significância que emerge Upossibilidade do significado. Isso quer dizer que, quando produzimos um enunciado - que, por sua vez, foi resultado da intpretação da compreensão afetivamente disposta - é porque .1<

nos movemos antes compreensivamente nesta estrutura lI/1il/(ll

ca, chamada significância. Esta estrutura não tem o sentido liver teórico contemplativo, mas sim o sentido da lida colidiul(mundo compartilhado).

Desse modo, Heidegger inverte a polaridade clássicureconhecia um privilégio teórico na formação do conhcchto, demonstrando o significado prático da compreensão 'lude-sempre temos do mundo. O aparecimento de conhccim

100

mais sofisticados, como é o caso do conhecimento científico,será demonstrado pela relação - igualmente circular - entre o 10-gos hermenêutico e o logos apofântico, sendo que sempre restaráuma dimensão prática acentuada no nível hermenêutico, com-preensivo.

Disso exsurge que a relação entre prática e teoria terá essacaracterística circular, mas ambas estarão articuladas numa uni-dade, que é a antecipação do sentido. Ocorre que, desse modo,não podemos mais falar em "razão teórica" ou "razão prática",uma vez que o termo "razão" vem imbuído da ideia solipsista querevestia o sujeito moderno.

É por isso que, a partir de Heidegger, ocorre uma(re)introdução do mundo prático na filosofia. Note-se: mundoprático e não razão prática. Mundo aqui implica transcendência.Aponta para o fato de o ser-aí estar sempre "fora" de si mesmona relação cotidiana que tem com os entes.

É sempre necessário lembrar que Gadamer apenas irá des-cobrir o sentido prático que há na hermenêutica porque ele jáuossuia esta antevisão do projeto heideggeriano.í" De algummodo, todas estas questões irão repercutir no pôs-positivismo dekonald Dworkin e de Friedrich Müller. Este último chega, inclu-ivc, a um belíssimo diagnóstico acerca do que seja uma teoria

1111 direito pós-positivista. Com efeito, para Müller, o termo pós-l'll.\'itivismo refere-se não a um antipositivismo qualquer, mas a

1111111postura teórica que, sabedora do problema não enfrentado111'10 positivismo - qual seja: a questão interpretativa concreta,

PII,() da chamada "discricionariedade judicial" - procura apre-'1'/'(1/1' perspectivas teóricas e práticas que ofereçam soluçõesI,,,,, ()problema da concretização do direitor"

III"I~II' se aqui no seguinte ponto: matrizes teóricas implicam comprometimentos." 1"/1"1'1' ndcquado - como já frisei anteriormente - que o precursor da ruptura filosó-I 1"11 1III\'I'médio do hermeneutic-turn, Martin Heidegger, seja, "convenientemente",

'.,111•• di' lado nas discussões acerca da hermenêl\tica jurídica contemporânea, princi-1,," 111, 1)IIIIIldo se articulam conceitos já universalizados e de domínio público, como

,"III/'II'I'II,I'f/O, circulo hermenêutico, pré-juizos, fusão de horizontes, etc. Afigura-11111'_1/1111110quando determinadas análises críticas sobre o esquema sujeito-objeto e11'11I1'~lIkN obstaculizadoras de um novo olhar sobre a interpretação do direito, PI'('S

!'"II dll "'1111" ou da menção daquele que foi o criador e inspirndur Iil' (1,,11111111'1',I'NII'1'''' "111111\1'"problemas políticos", citado à sncicdude.

I I /1111'1/l'nrodigma do Direito. lntroduçn« ~ \('1>1111I' IIII'II)rllrll /,,,1/111111111I11'rll' rll1111'111I111:Revista dos Tribunais, 200H, p I I

I 1',)( I ))I;CII)() CONIOI\MII I tI'.I~('II'NCIA· 101

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Daí a necessária atenção do leitor: é em Dwork:in - comele e indo além dele - que podemos projetar de modo mais sig-nificativo uma teoria hermenêutica do direito num sentido pós--positivista. Há pontos comuns entre o que Dwork:in propõe parao direito e a hermenêutica filosófica gadameriana, V.g.: além dacoincidência entre a correção da interpretação em Gadamer ea tese da resposta correta em Dwork:in, podemos apontar, tam-bém, o papel que a história desempenha em ambas as teorias,bem como o significado prático dado à tarefa interpretativa; deigual modo, o enfrentamento da discricionariedade positivista ea construção da integridade do direito são questões que passampela superação da razão prática pelo mundo prático operada pelatradição hermenêutica.

7. APORTES FINAIS OU DE COMOIIpARA UMA TEORIA SERPÓS-POSITIVISTA, É NECESSÁRIOSUPERAR O IDECIDO CONFORMEMINHA CONSCIÊNCIA'''

De tudo o que foi dito, para se realizar uma efetiva teoriapós-positivista dois elementos são, inexoravelmente, necessá-rios:

a) ter a compreensão do nível teórico sob o qual estão as-sentadas as projeções teóricas efetuadas, ou seja, uma teoria pós--positivista não pode fazer uso de mixagens teóricas;

b) enfrentar o problema do solipsismo epistemológico queunifica todas as formas de positivismo (aqui, como já se viu, o.arnpo jurídico brasileiro é fértil nessa perspectiva, por seu ex-cessivo arraigamento à epistemologia e à filosofia da consciên-cia).

Em síntese - e quero deixar isso bem claro -, para superarII positivismo, é preciso superar também aquilo que o susten-111: o primado epistemológico do sujeito (da subjetividade as-ujcitadora) e o solipsismo teórico da filosofia da consciência

(NI'1Il desconsiderar a importância das pretensões objetivistas do11li J( lo-de- fazer-direito contemporâneo, que recupera, dia a dia,I1 pnrtir de enunciados assertóricos, o "mito do dado"). Não há, 11/110 escapar disso. Apenas com a sbperação dessas teorias que1IIIIdllapostam no esquema sujeito-objeto é que poderemos esca-1'111 dos armadilhas positivistas.

Pois, de efetivo, a hermenêutica se apresenta nesse contex-11111I1110 um espaço no qual se pode pensar adequadamente urnah'lllllI du decisão judicial, livre que está, tanto das amarras rI(I,\'.W

! 11" I ISTO- DECIDO CONFORMElIÍ'IIIA ('ONSCltNCIA?102 IO:~

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sujeito onde reside a razão prática, como daquelas posturas quebuscam substituir esse sujeito por estruturas ou sistemas. Nissotalvez resida a chave de toda a problemática relativa ao enfrenta-mento do positivismo e de suas condições de possibilidade.

É tarefa contínua, pois, que se mostre como persistem equí-vocos nas construções epistêmicas atuais e como tais equívocosse dão em virtude do uso aleatório das posições dos vários au-tores que compõe o chamado pâs-positivismo. Com efeito, issofica evidente no conceito de princípio. O caráter normativo dosprincípios - que é reivindicado no horizonte das teorias pós-po-sitivistas - não pode ser encarado como um álibi para a discricio-nariedade, pois, desse modo, estaríamos voltando para o grandeproblema não resolvido pelo positivismo.

Com isso quero dizer que a tese da abertura (semântica) dosprincípios - com que trabalha a teoria da argumentação (e outrasteorias sem filiação a matrizes teóricas definidas) - é incompatí-vel com o modelo pás-positivista de teoria do direito.

Nessa medida, é preciso ressaltar que só pode ser chamadadê pós-positivista uma teoria do direito que tenha, efetivamente,superado o positivismo. Parece óbvio reforçar isso. A superaçãodo positivismo implica enfrentamento do problema da discricio-nariedade judicial ou, também poderíamos falar, no enfrenta-mento do solipsismo da razão prática.

Importa dizer sobremodo - para uma melhor compreensãodo que até aqui foi dito - que as teorias do direito e da Constituição, preocupadas com a democracia e a concretização dodireitos fundamentais-sociais previstos constitucionalmente, ncessitam de um conjunto de princípios que tenham nitidamentfunção de estabelecer padrões hermenêuticos com o fito de:

a) preservar a autonomia do direito;b) estabelecer condições hermenêuticas para a realiza

de um controle da interpretação constitucional (ratio final, 1\ 11posição de limites às decisões judiciais - o problema da dicionariedade );

c) garantir o respeito à integridade e à coerência do did) estabelecer que a fundamentação das decisões é III

ver fundamental dos juízes e tribunais;

104

e) garantir que cada cidadão tenha sua causa julgada a partirda Constituição e que haja condições para aferir se essa respostaestá ou não constitucionalmente adequada. 110

A tese que venho propondo em Hermenêutica Jurídica e(m)Crise e Verdade e Consenso, obras que servem de substrato paraas presentes reflexões, é uma simbiose entre as teorias de Gada-mer e Dworkin, com o acréscimo de que a resposta (decisão) nãoé nem a única e nem a melhor: simplesmente se trata "da respos-ta adequada à Constituição", isto é, uma resposta que deve serconfirmada na própria Constituição, na Constituição mesma (nosentido hermenêutico do que significa a "Constituição mesma",problemática sobre a qual venho me debruçando de há muito).

Essa resposta (decisão) não pode - sob pena de ferimentodo "princípio democrático" - depender da consciência do juiz,do livre convencimento, da busca da "verdade real", para falarapenas nesses artifícios que escondem a subjetividade "assujei-tadora" do julgador (ou do intérprete em geral, uma vez que aproblemática aqui discutida vale, a toda evidência, igualmentepara a doutrina).

Para os efeitos do que estou debatendo neste livro, é precisodeixar claro que existe uma diferença entre Decisão e Escolha.

uero dizer que a decisão - no caso, a decisão jurídica - nãopode ser entendida como um ato em que o juiz, diante de váriasitossibilidades possíveis para a solução de um caso concreto, es-ralhe aquela que lhe parece mais adequada. Com efeito, decidir/lao é sinônimo de escolher= Antes disso, há um contexto ori-

inririo que impõe uma diferença quando nos colocamos dianted('lItcs dois fenômenos. A escolha, ou a eleição de algo, é um atodI' opção que se desenvolve sempre que estamos diante de duas1111 mais possibilidades, sem que isso comprometa algo maior do1111' () simples ato presentificado em uma dada circunstância.

11moutras palavras, a escolha é sempre parcial. Há no direi-uuuuu palavra técnica para se referir &f€scolha:discricionarieda-

/', quiçá (ou na maioria das vezes);arbitrariedade. Portanto,

-'1' ~1\IIt1do,ver meu Verdade e Consenso, op. cit., em especial o posfácio.I 1:__ 11I,,~IIINurgiu a partir de uma exposição que Rafael Tomaz de Oliveira fez sobre oI~,'li dll IIII.\UVerdade e Consenso, em mesa redonda no seminário PROCAD - Her-1~1I1i11111'I'(lol'ia da Decisão, ocorrido em 16 de outubro de 2009, na UNISINOS/RSflll_II"I~N: 1.\11110 Luiz Streck, Marcelo Cattoni e Rafael Tomaz de Oliveira).

I I '" I () DECI DO CONFORMEIIÁ r 11~~~C:lnNCIA? 105

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quando um jurista diz que "o juiz possui poder discricionário"para resolver os "casos difíceis", o que quer afirmar é que, diantede várias possibilidades de solução do caso, o juiz pode escolheraquela que melhor lhe convier...!

Ora, a decisão se dá, não a partir de uma escolha, mas, sim,a partir do comprometimento com algo que se antecipa. No casoda decisão jurídica, esse algo que se antecipa é a compreensãodaquilo que a comunidade política constrói como direito (ressal-te-se, por relevante, que essa construção não é a soma de diversaspartes, mas, sim, um todo que se apresenta como a melhor inter-pretação - mais adequada - do direito).

É por isso que a hermenêutica, no modo como aqui vem tra-balhada, contribui sobremodo para a correta colocação deste pro-blema. Esse todo que se antecipa, esse todo que se manifesta nadecisão, é aquilo que mencionamos sempre como pré-compreen-são (que não pode ser confundida, como muitas vezes acontecena doutrina brasileira, com a mera subjetividade ou pré-concei-tos do intérprete).

E esse ponto é absolutamente fundamental! Isso porque éo modo como se compreende esse sentido do direito projetadopela comunidade política (que é uma comunidade - virtuosa - deprincípios) que condicionará a forma como a decisão jurídicaserá realizada de maneira que, somente a partir desse pressu-posto, é que podemos falar em respostas corretas ou respostasadequadas.

Sendo mais claro, toda decisão deve se fundar em um compromisso (pré-compreendido). Esse compromisso passa pclreconstrução da história institucional do direito - aqui estamofalando, principalmente, dos princípios enquanto indícios fomais dessa reconstrução - e pelo momento de colocação do eujulgado dentro da cadeia da integridade do direito. Não h~ dsão que parta do "grau zero de sentido".

Portanto, e isso é definitivo, a decisão jurídica não SI' tilsenta como um processo de escolha do julgador das dtvrr«possibilidades de solução da demanda. Ela se dá como 1111I Icesso em que o julgador deve estruturar sua interpretação ,,'Ia melhor, a mais adequada - de acordo com o sentido do tiprojetado pela comunidade política.

106

Nesse sentido, e uma vez mais visando a evitar mal-enten-didos, é preciso compreender que - do mesmo modo que Ga-damer, em seu Wahrheit und Methode - Dworkin não defendequalquer forma de solipsismo (a resposta correta que ele sustentanão é produto da atitude de um Selbstsüchtiger); Dworkin supe-rou - e de forma decisiva - a filosofia da consciência. Melhor di-zendo, o juiz "Hércules" é apenas uma metáfora para demonstrarque a superação do paradigma representacional (morte do sujeitosolipsista da modernidade) não significou a morte do sujeito quesempre está presente em qualquer relação de objeto.

Uma leitura apressada de Dworkin (e isso também ocorrecom quem lê Gadamer como um filólogo, fato que, aliás, ocorrecom frequência na seara do direito) dá a falsa impressão de queHércules representa o portador de uma "subjetividade assujeita-dora". Ora, como já referido, enquanto as múltiplas teorias quepretendem justificar o conhecimento buscam "superar" o sujeitodo esquema sujeito-objeto propondo a sua eliminação ou a suasubstituição por estruturas comunicacionais, redes ou sistemas ealgumas, de forma mais radical, até mesmo por um pragmatismofundado na Wille zur Macht (por todas, vale referir as teorias des-construtivistas e o realismo dos Critical Legal Studies), Dworkin~Gadamer, cada um ao seu modo, procuram controlar esse sub-

[ctivismo e essa subjetividade solipsista a partir da tradição, douno relativismo, do círculo hermenêutico, da diferença ontológi-1'11, do respeito à integridade e da coerência do direito, de manei-fll que, fundamentalmente, ambas as teorias são antimetafísicas,porque rejeitam, peremptoriamente, os diversos dualismos que atrndição (metafísica) nos legou desde Platão (a principal delas é11 lncindibilidade entre interpretação e aplicação, pregadas tanto11111' Dworkin como por Gadamer).

Parece, assim, que o equívoco recorrente acerca da com-1"('('l1sãodas teses de Gadamer e de Dworkin - em especial, seunuirrclativismo e a aversão de ambos à discricionariedade - re-idl' 110 fato de se pensar que a derró~~~dado esquema sujeito-ob-

11'111 l'Iignificou a "eliminação" do sujeito (presente em qualquerlI'III~,.10de objeto), cuja consequência seria um "livre atribuir de"IIIIt!os".

Por assim pensarem - e por temerem a falta de racional ida-lil 1111 iurcrpretação -, muitas teorias acabaram, di.' IIIIl IlIdo, 1'('

NFOI\MI: 10

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tornando àquilo que buscavam combater: o método; e, de outro,construindo discursos que desoner(ass)em o sujeito-intérprete doencargo de elaborar discursos de fundamentação (Begrundungs-diskurs). Tudo por acreditarem na eliminação do sujeito ou nasua pura e simples substituição por sistemas ou teorias comuni-cativas.

De tudo o que foi dito, não é demais recordar que tanto emGadamer como em Dworkin é possível distinguir boas e más de-cisões (pré-juízos autênticos/legítimos e inautênticoslilegítimos)que, quaisquer que sejam seus pontos de vista sobre a justiça eo direito a um tratamento igualitário, os juizes também devemaceitar uma restrição independente e superior, que decorre daintegridade nas decisões que proferem. Mais do que isso, tenhosustentado que decisões emanadas de "últimas instâncias", em-bora inegavelmente devam ser obedecidas, devem, entretanto,sofrer de fortes "constrangimentos epistemológicos" ou, se sequiser chamar assim, de "censuras significativas". Esse é o papelda doutrina em um país democrático.

Na especificidade, Dworkin, ao combinar princípios jurí-dicos com objetivos políticos, coloca à disposição dos juristas/intérpretes um manancial de possibilidades para a construção/elaboração de respostas coerentes com o direito positivo - o queconfere uma blindagem contra discricionariedades (se assim sequiser, pode-se chamar a isso de "segurança jurídica") - e coma grande preocupação contemporânea do direito: a pretensão delegitimidade. E aqui, a toda evidência, parece desnecessária aadvertência de que não se está a tratar de simples ou simplistatransplantação de uma sofisticada tese do common law paraterreno do civillaw. Há, inclusive, nítida vantagem em falar emprincípios - e na aplicação destes - a partir da Constituição brusileira em relação ao direito norte-americano.

Do mesmo modo, há uma vantagem na discussão da reluç"direito-moral" desde o imenso e intenso catálogo principiológlco abarcado pela Constituição do Brasil, questão bem caructerlzada naquilo que vem sendo denominado de institucionalituda moral no direito, circunstância, aliás, que reforça a autorudo direito, mormente se não for entendido a partir de umu (1(

ra jurisprudencialista (mesmo nesta, há uma grande prcocutpara não permitir que a jurisdição substitua a legislação).

108 coiscx

Fundamentalmente - e nesse sentido não importa qualo sistema jurídico em discussão -, trata-se de superar as tesesconvencionalistas e pragmatistas a partir da obrigação de osjuizes respeitarem a integridade do direito e a aplicá-lo coe-rentemente.

Numa palavra: a resposta correta (adequada à Constituiçãoe não à consciência do intérprete) tem um grau de abrangênciaque evita decisões ad hoc. Entenda-se, aqui, a importância dasdecisões em sede de jurisdição constitucional, pelo seu papel deproporcionar a aplicação em casos similares. Haverá coerênciase os mesmos princípios que foram aplicados nas decisões foremaplicados para os outros casos idênticos; mas, mais do que isso,estará assegurada a integridade do direito a partir da força nor-mativa da Constituição.

Tudo isso deve ser compreendido a partir daquilo que ve-nho denominando de "uma fundamentação da fundamentação",traduzida por uma radical aplicação do art. 93, IX, da Constitui-ção. Por isso é que uma decisão mal fundamentada não é sanávelpor embargos (sic); antes disso, há uma inconstitucionalidade ab)\10, que a torna nula, írrita, nenhuma! Aliás, é incrível que, emhavendo dispositivo constitucional tornando a fundamentação11111 direito fundamental, ainda convivamos - veja-se o fenômenodu "baixa constitucionalidade" que venho denunciando há duasd(-t:adas - com dispositivos infraconstitcuonais pelos quais sen-u-nças contraditórias (sic), obscuras (sic) ou omissas (sic) pos-

111\ ser sanadas por embargos ... !Se o método, para o paradigma da filosofia da consciência,

I'Iloi o supremo momento da subjetividade, decretar a sua supe-111\,110, corno magistralmente fez Gadamer, não quer dizer que, apllltll' de então, seja possível "dizer qualquer coisa sobre qual-1/11'/ coisa" ou "qualquer coisa que a consciência nos 'impõe'",II ,'olllrário: se o método colocavâ a linguagem em um plano

\'1 ruulririo (terceira coisa entre o sujeito e o objeto), manipulável1",1" ,,"jl'ilO solipsista, a intersubjetividade que se instaura com o'"H"/,I'/iI' turn exige que, no interior da própria linguagem, seja"li,,, II necessário controle hermenêutico.

'U N I( )lUv\ I 100

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Entre outras coisas, devemos levar o texto a sério, 112 cir-cunstância que se coaduna perfeitamente com as Constituiçõesna segunda metade do século XX e confere especial especifici-dade à interpretação do direito, em face do vetor de sentido as-sumido pelo texto constitucional, além de reafirmar a autonomiado direito.

Combater a discricionariedade, o ativismo, o positivismofático, etc. - que, como se sabe, são algumas das várias facesdo subjetivismo - quer dizer compromisso com a Constituiçãoe com a legislação democraticamente construí da, no interior daqual há uma discussão, no plano da esfera pública, das questõesético-morais da sociedade. Portanto, não será o juiz, com base nasua particular concepção de mundo, que fará correções morais deleis "defeituosas" (afasto, pois, a tese - e cito, por todos, a de Ro-bert Alexy - expressa na sua conferência em Pequim em 2007113

- de que a) "defeitos morais invalidam a lei"; b) que a dimensãoideal do direito encontra a sua expressão na moral corretiva; e c)que o direito pode ser corrigido pelo argumento da injustiçaj.!!'

Mas, atenção: essa crítica ao subjetivismo - que é, funda-mentalmente, uma crítica ao pragmati(ci)smo - não implica asubmissão do Judiciário a qualquer legislação que fira a Cons-

112 Nessa linha, são importantes as palavras de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho(Dogmática crítica e limites linguísticos da lei. In: Miranda Coutinho, Jacinto Nelson(org.). Diálogos Constitucionais: Direito, Neoliberalismo e Desenvolvimento em PaísesPeriféricos. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 229.): "As palavras da lei, porém, nãosão desprovidas de um valor que já antes se aceitava, razão por que foram utilizadns- em detrimento de outras -, sempre na doce ilusão de terem a capacidade de segurur 11sentido. Nada seguram, todavia, como demonstram os infindáveis exemplos. Há. S('IIIembargo, um conteúdo na lei, que se não pode ignorar". Igualmente importantes sUo IINcontribuições de Alexandre Morais da Rosa (O Judiciário entre garantia do merendo 1111dos direitos fundamentais: a "resposta correta" com Lenio Streck. Revista de li.l'/l/d/l.1

Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Estado, São Leopoldo, v. 1, n.l, p. 01 UH.jan./jun. 2009) que - na linha da tese exposta no meu Verdade e Consenso - IIpn'~l'lIlnuma crítica certeira ao problema da economia como critério (unilateral) de racionnlhlm]no âmbito das decisões judiciais.

113 Cf. Alexy, Robert. The dual nature of Law. IVR 24th. WORLD CONGRESSo (111111"'Harmony and Rule of Law. Papers Plenary Sessions. September 15-20, J)olJllIlI. 11MPgs. 257 to 274.

1I4 É importante frisar que do mesmo modo que aAED (Análise Econômica tlo/ll/fl/r,1uma espécie de "marxismo invertido" - porque, nela, o direito é uma mOI'{lI"III'1I111111111instrumental (portanto, a economia é a infra-estrutura do sistema jurfdicn, ('11111111'11111"'"o direito) - a moral, quando usada para fins "corretivos", repete essa rnN~IIII", 1111111que assume a função de infra-estrutura do "edifício do sistema jurfdico",

110 c

tituição, entendida no seu todo principiológico. Legislativos ir-responsáveis - que aprovem leis de conveniência - merecerãoa censura da jurisdição constitucional. No Estado Democráticode Direito, nenhum ato do Poder Executivo ou Legislativo estáimune à sindicabilidade de cariz constitucional!

Nesse sentido, assume relevância uma concepção adequadaacerca do que é um "princípio constitucional", que introduz omundo prático no direito. Ou seja, o princípio recupera o mun-do prático, o mundo vivido, as formas de vida (Wittgenstein). Oprincípio "cotidianiza" a regra. "Devolve", pois, a espessura aoôntico da regra. É "pura" significatividade e desabstratalização.Trata-se de uma espécie de "redenção da existência singular daregra" (veja-se que a regra é feita com caráter de universalidade/abstratalidadel generalidade).

Com efeito, ao contrário do que se diz na tese da distin-ção enunciativa sobre a "abertura semântica dos princípios", éa regra que "abre a interpretação", exatamente em razão de suaperspectiva universalizante (pretende abarcar todos os casos e,na verdade, não abrange nenhum, sem a cobertura densificató-ria fornecida pelo mundo prático da singularidade principioló-lica).

A regra jurídica (preceito) não trata de uma situação con-creta, uma vez que diz respeito às inúmeras possibilidades. Aregra "matar alguém" não diz respeito a um homicídio, mas, sim,de como devem ser tratados os casos em que alguém tira a vidade outrem. É nesse sentido que o princípio individualiza a appli-ratio. Princípio é, assim - insisto -, a realização da applicatio. O.llrcito não cabe na regra, assim como as inúmeras hipóteses derplicação do art. 97 da CF não cabem na súmula vinculante n° 10do STF; tampouco os casos de uso abusivo de algemas cabem naumula vinculante n° 11. Do mesmo modo, as inúmeras hipóte-1'/'1 de legítima defesa não cabem no enunciado jurisprudencialh'gflima defesa não se mede milimdtricamente". Somente a re-

I uustrução da situação concreta de um determinado caso daráIHlli ücatividade (Bedeutsamkeit) ao precedente ou à regra. EmIlIlt'SC, é esse o papel dos princípios.!"

"'1'11111lima análise aprofundada em torno dos princípios e a feição que estes assumem111li' IMNIIquadra da história, conferir o posfácio do meu Verdade e Consenso, op. cit.

1111111 11ISTO-DECIDO CONFORMEIIIIIIA CONSCIÊNCIA? II 'I

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Portanto, o combate a ser travado não é contra a jurisdiçãoconstitucional ou ao contramajoritarismo. 116 Tampouco a teseque venho propondo é um retomo ao "juiz boca da lei". Pelocontrário: o constitucionalismo do Estado Democrático de Direi-to produz as ferramentas para as respostas a essas questões. Oconstitucionalismo - esse do qual estamos falando - é antitéticoa qualquer postura positivista. E o problema fulcral do senso co-mum teórico do direito é a não superação do positivismo jurídiconaquilo que é o seu principal elemento - a discricionariedade,sustentada, por sua vez, no solipsismo do sujeito da modernida-de. Ou seja, o problema é, fundamentalmente, filosófico.

Está na (falta de uma) teoria da decisão o ponto nodal da(não) superação do positivismo e de seus elementos fundantes(fontes sociais, cisão entre direito e moral e discricionariedade).Por isso, discutir o direito e suas possibilidades democráticas éuma questão umbilicalmente ligada à discussão dos paradigmasfilosóficos que conformam o modo de ser do mundo do jurista.

Na especificidade do direito brasileiro, a grande conquistafoi a Constituição - sem dúvida a mais democrática do mundo.Esse é o vetor que deve conformar a atividade do jurista. Seuconjunto principiológico é tão denso que, mesmo com alteraçõessubstanciais em seu texto, ainda continuaremos com amplas pos-sibilidades de impedir atos jurídicos antidemocrâticos prove-nientes do Executivo e do Legislativo.

116Mais uma vez é preciso alertar para os possíveis mal-entendidos: controle das dcclsões judiciais (veja-se o que escrevo em Verdade e Consenso) não quer dizer diminuiçãudo papel da jurisdição (constitucional). Esse mesmo controle deve ser feito em reluçüuàs atividades do Poder Legislativo. O Estado Democrático de Direito é uma conquistuÉ, portanto, um paradigma, a partir do qual compreendemos o direito. Quando prt'lI1111cumprimento da Constituição e o direito fundamental à obtenção de respostas adcqllllllll_(à Constituição), quero dizer que, mesmo em face de o Parlamento realizar arnplus Il'IlIImas e (visar a) desvirtuar a Lei Maior, ainda assim poderemos continuar a .1'11.\'1/'1/1",. /1.1

mesmas teses. Há uma principiologia constitucional que garante a continuidade du IImocracia, mesmo que os princípios não tenham visibilidade ôntica. Ora, o dirclro p"._1I1uma dimensão interpretativa. Essa dimensão interpretativa implica o dever rll' (/lrll"1/1práticas jurídicas o melhor sentido possível para o direito de uma comunidrulr ",,111'1A integridade e a coerência garantem o DNA do direito nesse novo paradignur, 1'11I1\mais claro, quero dizer com isso que, em última ratio, levando em conta IISIlInlll~v,,1possibilidades de o Parlamento aprovar leis ou emendas constitucionais "d,' 1II"1I0lRIIjurisdição constitucional deve se constituir na garantia daquilo que é o 1'1'111I' du ]constituinte de 1988. Entretanto, isso não depende (e não pode depender) dll vl.nll .1111sista de juízes ou Tribunais. Dependeirá), sim, daquilo que se COIIV('II('Í!lIItlll '/"lItllIIde "sentimento constitucional".

112 c

Com isso, quero reafirmar que a aplicação do direito - essedireito que assume um grau acentuado de autonomia - é umagarantia importante para a democracia e o desenvolvimento dasociedade, mormente se atentarmos para o fato de que é a Cons-tituição que estabelece como "dever ser" a construção de um Es-tado Social, afora os demais preceitos que tratam dos direitosindividuais, coletivos e sociais,

Por que deveríamos depender de juízos subjetivistas paraa concretização da Constituição? Veja-se o paradoxo: passa-dos mais de vinte anos da Constituição de 1988, continuamos aaplicar um Código Penal eivado de inconstitucionalidades, Daía pergunta: a aposta em ativismos serviu para quê? Continua-mos a aplicar tipos penais (que preveem penas) absolutamentedesproporcionais, a ponto de podermos' dizer que o direito pe-nal fracassou rotundamente. E quando alguns Tribunais foram(ou são) instados a declarar não recepcionados (ou inconstitu-cionais) alguns desses dispositivos, o que fizeram (ou fazem)?Nestes casos, a sua atitude tem sido antiativista (absolutamenteself restrairuing). 117 Ou seja, o problema do ativismo'" é que ele é"nominalista", isto é, pragmati(ci)sta, portanto, utilizado ad hoc.

E o Código de Processo Civil? Com a aposta no protago-nisrno!" - repristinando velhas teses do "socialismo processual"

117Por exemplo, há vários anos tramita no Supremo Tribunal Federal uma ADI contra11Lei 10.684, que estabeleceu a extinção de punibilidade para delitos fiscais em face dopugumento do "prejuízo". A ADI pende de julgamento. Ainda: em face da visível des-plOrorcionalidade entre os tipos penais, propus, sem sucesso, junto ao TJRS, em controlerllluso, a inconstitucionalidade de parte da Lei 10.259 (Lei dos Juizados Especiais Crimi-III1Is,que equiparou tipos penais de forma inconstitucional). Consequência: é mais fácil1IIJI'gurtributos que furtar botijões de gás; do mesmo modo, tipos penais como casa de

1lIllNliluição, dano, furto qualificado - cuja pena é semelhante à lavagem de dinheiro e~1I111\rillrli sonegação de tributos - continuam fazendo vítimas, sem que se questione a suaIlIlr'III1I1Ç1tOconstitucional.

11MII~ lima diferença central entre ativismo e judicialização. Naquele, ocorre a substi-IlIh,nll dos juízos políticos, morais, etc, pelo juiz, circunstância que fragiliza o direito;'1"1111111h judicialização, esta é contingencial; é inejwrável que ocorra, dadas as caracterís-111'11Mdll nossa Constituição, nosso ordenamento e a complexidade social. Nesse sentido,.• 1 1111111Verdade e Consenso, op.cit., bem como importante estudo realizado por José1I11l11NVluI!'Hc demais colaboradores, publicado sob organização de Vanice Regina Lírio01"VIIIII': Aüvismo jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal. Laboratório de Análise1IIIliljllllduI1cialdo STF. Curitiba: Juruá, 2009.

11'1I', 11IlIdos, vale referir um conjunto de autores - e cito apenas alguns, correndo o risco,10-11111111'111'graves omissões (e, portanto, injustiças) - que se colocam em clara oposiçãoI" 1"IIIIIf\OIli.~mojudicial enquanto formas de institucionalização de decisionisrnos c/ou

lI.illl I IS'I'O- DECIDO CONFORMEIIIIIIA 1:\ lNSCltNCIA? 11.3

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(Menger e Klein, para falar apenas destes) -, o que construímos?A resposta parece simples: o resultado foi um "sistema" peloqual os juízos de primeiro grau foram transformados em "ins-tâncias de passagem". E como são as fundamentações? Cada vezmais se institucionaliza um tipo de "fundamentação" em que osenunciados assertóricos (performativos) se bastam, algo como:"decido conforme a súmula X" ou "decido conforme decidi an-teriormente ...".120

O que resta do direito? Qual é o papel da doutrina? Os jul-gamentos se tornaram monocráticos ... ! Milhares de processossão "resolvidos" no atacado ... ! Não mais discutimos causas, poispassamos a discutir "teses" jurídicas ... ! Como que a repetir a len-da do "leito de Procusto", as causas são julgadas de acordo comconceitos previamente elaborados (súmulas, repercussão geral,etc). E as ações são julgadas por "pilhas". Por isso, a repergunta:as duas décadas de fortalecimento do protagonismo judicial re-dundaram em quê?

O que ocorreu é que voltamos a um lugar de onde nun-ca saímos: o velho positivismo. Isso porque apostamos em uma"autônoma razão teórica" e quando ela não é "suficiente" delega-mos tudo para a razão prática ... ! E o que é a "razão prática"? Naverdade, nem precisamos buscar auxílio na hermenêutica parafalar sobre ela. Basta ver o que diz Habermas, na abertura deseu Fakticitãt und Geltung: substituo a razão prática (eivada desolipsismo) pela razão comunicativa ... ! Claro que não concordo

ativismos, como Nelson Nery Jr., Jacinto Coutinho, Luis A. D. Araújo, Aldacy R. Coutinho, Alexandre M. Rosa, Ivan G. Cury, Fabio de Oliveira, Marcos Marrafon, MartônioBarreto Lima, Gilberto Bercovici, Marcelo Cattoni, Dierle Nunes, Alexandre Bahia, ÁIvaro Souza Cruz, José C. Moreira da Silva, Jânia Saldanha, Rafael T. de Oliveira, GcorAbboud, Wálber A. Carneiro, Nelson C. Moreira, Thiago de Carvalho, Dimitri Dimoulls,Thereza A. Wambier, André Cordeiro Leal, Flaviane Barros, Flávio Pansieri, 811111I0IMeyer, Ronaldo Brêtas de C. Dias, Adalberto Hommerding, Francisco Moua, Mllurlcio M. Reis, Menelick de Carvalho Netto, Alexandre Coura, João Maurício Adco!111111Antônio Mauês, Fernando Scaff, Maurício Rarnires, Eduardo Bittar, Jose Luis 1I01/dllde Morais, Vicente de Paulo Barretto, Leonel Severo Rocha, Claudio Pereira dI' SouÉcio Oto, Ingo Sarlet, Humberto Ávila e Daniel Sarmento (embora esses quatro 111Ihllll'professem adesão à ponderação, têm deixado claro, nos limites da matriz nu quul Nr 111serem, a sua contrariedade em relação aos "excessos principialistas" pral iClltloN(I~hjuízes e tribunais).

120 Ver, para tanto, nova redação do art. 285-A (Lei n° 11.277/2006), pelo q01l11l 1111poderá dispensar a citação, na hipótese de que a matéria seja unicamente di' "hrllll 'Itiver tramitado no juízo casos idênticos com sentença de improcedência, li '1"1' rll_rlreprodução do teor da decisão anterior prolatada.

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com a solução dada por Habermas, por razões já explicitadas emVerdade e ConsensoJ" Mas é inegável que ele tem razão quandoataca de forma contundente o solipsismo!

Despiciendo, nesta altura, lembrar que, quando critico o"solipsismo judicial" ou, o que é a mesma coisa, as "decisõesconforme à consciência do julgador", tenho em mente a tese deque as decisões judiciais não devem ser tomadas a partir de crité-rios pessoais, isto é, a partir da consciência psicologista. Insisto,pois, que se trata de uma questão relacionada à superação do pa-radigma daquilo que se denomina de "filosofia da consciência".A justiça e o Judiciário não podem depender da opinião pessoalque juízes e promotores tenham sobre as leis ou os fenômenossociais, até porque os sentidos sobre as leis (e os fenômenos)são produtos de uma intersubjetividade, e não de um indivíduoisolado. Trata-se, fundamentalmente - e busco socorro em Osdois corpos do rei, de Kantorowicz - de desmi(s)tificar uma cer-ta imagem positivista da história e das mentalidades (como bemlembra Renato Janine Ribeiro) e um certo "elemento teológico"que continua presente nessa espécie de plenipotenciariedade dosujeito da modemidade, que se manifesta tanto na política (veja-"se a "democracia delegativa-hobbesianista" própria dos regimespresidencialistas latino-americanos) como no direito, por inter-médio do solipsismo judicial.

O direito não é aquilo que o judiciário diz que é. E tam-pouco é/será aquilo que, em segundo momento, a doutrina, com-pilando a jurisprudência, diz que ele é a partir de um repertóriode cmentários ou enunciados com pretensões objetivadoras. Domesmo modo, o direito não é um dicionário recheado de concei-101'. Na verdade, pensá-lo como uma "lexicografia" é vê-lo tro-!lI'çar no primeiro vendedor de picolés ou naufragar em face doronflito entre regras e princípios (vejamos: se um contrato exigenhjcto lícito, partes maiores e capazes/ livre vontade, o que dizer.111 venda de um picolé para uma criança de oito anos?; e o que

I' I Aqui é indispensável remeter o leitor à obra Verdade e Consenso, em especial a ter-1.1111l'dlçllo, op. cit., onde mostro o pessimismo de Habermas e o modo pelo qual aIUllllllllalltica pode controlar o sujeito (não o sujeito solipsista, que foi derrotado pelo 011-

'''''I,~Ir·tlll",,.n, mas, sim, o sujeito da relação de objeto, que, ao contrário do que pensam,I' n., l Inbcrmas e Luhmann, não morreu).

11111/1 I: ISTO - DECIDO CONFORMEIIIH IA CONSCIÊNCIA? 115

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dizer do direito penal, nas coisas mais comezinhas ainda não re-solvidas pelos juristas, como o furto de bagatela?).

As tentativas de "aprisionar" o direito no interior de con-ceitos fracassaram de forma retumbante. Definitivamente, a ra-zão teórica não tem "vida autônoma", separadalcindida do modocomo lidamos com o mundo, nossas escolhas, etc. (razão práti-ca). Autoritarismos, duas grandes guerras e ditaduras: esses fo-ram os resultados da "pureza do direito". Conceitos sem mundoprático: definitivamente, o positivismo fracassou, embora conti-nue dominando o imaginário dos juristas.

Por tudo isso, em tempos de giro linguístico e Estado De-mocrático de Direito, não tem mais sentido dizer que "sentençavem de sentire" ... ! Ou tem? A resposta será uma confissão deopção por determinado paradigma filosófico. É preciso ter cla-ro que tanto o juiz como os demais partícipes da relação jurídi-co-processual, incluídos os intérpretes que constituem o que sedenomina de dogmática jurídica (de viés crítico ou tradicional),todos estão já sempre e necessariamente vinculados e sustenta-dos por um processo de compreensão que envolve o surgimen-to de qualquer enunciado teórico no direito. Há, portanto, umucircularidade que se desconhece entre o movimento interno douniverso jurídico em sua constituição e aqueles que querem fazede conta que estão fora do círculo e podem decidir, discutir, aplicar, explícitar elementos que constituem estruturas e instânciaincorporadas pela dogmática jurídica.

Consequentemente, torna-se necessário entender - e, fUIdamentalmente, reconhecer - essa circularidade entre uma situção prática em que todos os agentes do direito estão previamenvolvidos e a prática simplesmente instrumental de intcrprção/aplicação das normas: a primeira é aquela na qual Iuzc Iparte de um a priori compartilhado, como é a pré-comptsão em Heidegger ou o jogo da linguagem em Wlugcnstclnsegunda é simplesmente produto da operação instrumcnlnlintérpretes e "operadores" do direito. Pensar que a seglllldn'tica" pode substituir a primeira é o grande equívoco dn ll'O

direito na contemporaneidade.Essa "segunda prática" acaba subestimando o din-Itl

grau de autonomia, tornando-o refém de discursos insuu

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listas. Numa palavra: com isso, tem-se uma fragilização do direi-to, circunstância agravada pela conjunção de fatores endógenose exógenos. Dentre os fatores de fragilização interna, podem sere1encados o ensino jurídico fragmentado, a cultura manualesca,o panprincipiologismo, a aposta na discricionariedade e a pre-valência do esquema sujeito-objeto, para falar apenas de algunsdesses elementos. Externamente, a fragilização é consequênciade diferentes discursos que, ao pretenderem "corrigir" o direito,rebaixando-no ao patamar de "racionalidade meramente instru-mental", apostando no ativismo/acionalismo para a transforma-ção desse "instrumento".

A contaminação pelo "instrumentalismo" é visível não so-mente em discursos exógenos como também na legislação e nosrespectivos projetos que buscam reformar os mecanismos pro-cessuais em terrae brasilis. É como se o direito e tudo o que elerepresenta em termos institucionais, históricos e factuais depen-desse da sua utilização como um objeto, um instrumento, algomanipulável pelo intérprete. Ou, de forma reducionista, venha-mos a pensar que o "problema da crise do direito ou da crise daopcracionalidade do direito" se deva à incapacidade de gestãopOI' parte dos magistrados. De certo modo, repete-se a "troca"(I', lamentavelmente, a não superação) de paradigmas. Se antes olurista era um escravo da(s) estrutura(s) (lembremos do positivis-IlU) "primitivo" - de cariz exegético), portanto, era "as sujeitado àlel" (que era "igual" ao direito), agora o sujeito se transforma no'-1'111101' dos sentidos" da estrutura. Basta ver como isso está pre-1'1111' nos (projetos dos novos)!" Códigos processuais, que "não

1"11'111 mão" do "livre convencimento" ou "livre apreciação" (da1"IIVll)ti cargo dos juízes.

Por que isto é assim? Porque os juristas assumem posturas1'"l1lCloXllis.Se é possível considerar superado o paradigma obje-1I\llItl1(lembremos que Descartes e Kantjá o superaram há tan-

" Illullllo do novo Código de Processo Civil, isso está plasmado categoricamente,1"11111dll 11111111.)1110dos poderes do juiz para, a seu critério: chamar amicus curiae, sem

111"II~nll do competência; adequar as fases e atos processuais às especificidades do1111111I \'IIIII-NCli cloro presença das teses do instrumentalismo defendidas por autorestiO I III'IIIIII"t', Dlnumarco e Grinover, para falar apenas destes) e a previsão de que a

oIl1ll1dll1I1I1'('ClIrsorepetitivo passa a ser de obediência obrigatória para os TribunaisI. 1111~I'III,1111contramão da evolução paradigmática, passados tantos séculos, retor-t,•• 11'111111\1(11\\lusmurou a modernidade.

11\11) I)I1CIDOCONFOI1..MEI Ilt~~t~lrNCIA 1 I

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tos séculos), ao mesmo tempo, aposta-se cada vez mais no mitodo dado, como é o caso específico das súmulas vinculantes e osefeitos de uma decisão sobre outras (como consta no projeto donovo CPC e já prevê o CPC em vigor). Melhor dizendo, quer-sesuperar o mito da plenipotenciariedade da lei (onde a lei é igualao direito) com outras (novas) tentativas objetivistas e objetifica-doras. Mas, ao mesmo tempo, o mais incrível é que, para chegara esse novo "belvedere epistêmico de sentido", aposta-se no sen-timento individual (sic) do juiz.

Na verdade, está-se diante de um sincretismo ad hoc: quan-do interessa ao establishment dogmático (aos detentores da fala),lança-se mão da filosofia da consciência; quando já não há como"segurar" esse "estado de natureza hermenêutico" decorrentedessa "livre convicção", "livre convencimento", "íntima convic-ção" (e suas decorrências, como o panprincipiologismo, o axio-logismo, o pragmaticismo, etc), apela-se ao mito do dado ... Etudo começa de novo, como um eterno retorno ... !

O segredo deste "vai e vem" está no poder de atribuição desentido, no interior do qual objetivismo e subjetivismo são ape-nas os instrumentos da interpretação enquanto "ato de vontade":é por isso que o objetivismo e o subjetivismo conseguem convi-ver nas propostas legislativas do novo CPP e do CPC e, destarte,por óbvio, no imaginário dos juristas. Talvez o título do presentlivro não consiga dizer tudo: na verdade, a pergunta não deveriser O que é isto - "Decido conforme minha consciência" '!sim, O que é isto - mixar o objetivismo e o subjetivismo em tepos de viragem linguística?

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