ler o amor
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Textos sobre o amor que foram lidos no dia de S. Valentim ou Dia dos NamoradosTRANSCRIPT
14.02.2013
A Instrução dos amantes, Inês Pedrosa
Estou no convento de Santa Clara onde, perante a recusa estupefacta das madres, mando quebrar a
tua sepultura.
É campo santo, Senhor, não podeis – dizem-me
O rei de Portugal pode tudo madre.
E os meus homens cavam a terra sob as minhas ordens, levantam o caixão, abrem-no, saco-
dem as tuas vestes que se esfarrapam, prendem melhor ao corpo com faixas de seda a tua cabeça
que as irmãs atabalhoadamente enterraram, deitam-te no palanquim forrado dos melhores veludos,
reclinam-te nos coxins de damasco que nenhuma imperatriz desdenharia.
Cubro-te o corpo com um manto riquíssimo, componho-te os cabelos longos, longos que, se
perderam brilho, guardam o seu simbolismo de sedução.
Estás viva.
Por isso não trajo de luto. As minhas vestes são vermelhas, da cor do sangue derramado que
as minhas mãos tocaram.
Atravessaremos os dias e as noites, numa marcha lenta que o cortejo fúnebre, com vinte lé-
guas de comprimento, irá aguentar. Significa que, quando chegares a Alcobaça, o final do cortejo
ainda estará saindo de Coimbra.
Assim se foi formando, lentamente, dia após dia, o préstito da tua última viagem.
O povo, que tudo sabe, acorreu em massa à beira dos caminhos. Trouxeram archotes que
transformaram a noite em dia. E o Reino de Portugal fica transfigurado de luzes porque a sua Rai-
nha vai passar.
Não quero tristezas nem cânticos nem rezas. Quero alegria. Por isso à noite pousamos, er-
guemos tendas, acendemos fogueiras, comemos, bebemos e folgamos. As damas lamentam-se de
cansaço, desconforto, fadigas, incómodos de mulheres. Que não cheguem até mim esses queixu-
mes, pois não sofrerei da corte o mais ténue descontentamento. Levamos Inês de Castro a passeio
e se ela não se queixa é porque a jornada é aprazível.
Murmura-se que haverá beija-mão em Alcobaça e há já quem pretexte males de estômago,
culpando algum pedaço de perdiz mal salgada.
Deixo-os sofrer deliberadamente por antecipação, deixo que se convençam que beijarão, um a um,
a tua doce mão destruída pela escuridão e pelo tempo. Talvez o ordene. É a homenagem que exige
a tua realeza.
Até lá faço-me folgazão com o povo que acorre atraído pelo cheiro da carne de boi, de cervo,
de javali a assar nos enormes braseiros. Baila-se e canta-se como numa festa.
É uma festa. Inês está de novo comigo e o fogo omnipresente, simboliza a luz e o incêndio
da nossa incomparável paixão.
Guardo as lágrimas para as minhas horas secretas. Porque elas são a minha companhia, o
Estou no convento de Santa Clara onde, perante a recusa estupefacta das madres, mando quebrar a
tua sepultura.
É campo santo, Senhor, não podeis – dizem-me
O rei de Portugal pode tudo madre.
E os meus homens cavam a terra sob as minhas ordens, levantam o caixão, abrem-no, sacodem as
tuas vestes que se esfarrapam, prendem melhor ao corpo com faixas de seda a tua cabeça que as irmãs
atabalhoadamente enterraram, deitam-te no palanquim forrado dos melhores veludos, reclinam-te nos
coxins de damasco que nenhuma imperatriz desdenharia.
Cubro-te o corpo com um manto riquíssimo, componho-te os cabelos longos, longos que, se per-
deram brilho, guardam o seu simbolismo de sedução.
Estás viva.
Por isso não trajo de luto. As minhas vestes são vermelhas, da cor do sangue derramado que as
minhas mãos tocaram.
Atravessaremos os dias e as noites, numa marcha lenta que o cortejo fúnebre, com vinte léguas de
comprimento, irá aguentar. Significa que, quando chegares a Alcobaça, o final do cortejo ainda estará
saindo de Coimbra.
Assim se foi formando, lentamente, dia após dia, o préstito da tua última viagem.
O povo, que tudo sabe, acorreu em massa à beira dos caminhos. Trouxeram archotes que transfor-
maram a noite em dia. E o Reino de Portugal fica transfigurado de luzes porque a sua Rainha vai passar.
Não quero tristezas nem cânticos nem rezas. Quero alegria. Por isso à noite pousamos, erguemos
tendas, acendemos fogueiras, comemos, bebemos e folgamos. As damas lamentam-se de cansaço, des-
conforto, fadigas, incómodos de mulheres. Que não cheguem até mim esses queixumes, pois não sofre-
rei da corte o mais ténue descontentamento. Levamos Inês de Castro a passeio e se ela não se queixa é
porque a jornada é aprazível.
Murmura-se que haverá beija-mão em Alcobaça e há já quem pretexte males de estômago, cul-
pando algum pedaço de perdiz mal salgada.
Deixo-os sofrer deliberadamente por antecipação, deixo que se convençam que beijarão, um a um, a tua
doce mão destruída pela escuridão e pelo tempo. Talvez o ordene. É a homenagem que exige a tua rea-
leza.
Até lá faço-me folgazão com o povo que acorre atraído pelo cheiro da carne de boi, de cervo, de
javali a assar nos enormes braseiros. Baila-se e canta-se como numa festa.
É uma festa. Inês está de novo comigo e o fogo omnipresente, simboliza a luz e o incêndio da
nossa incomparável paixão.
Guardo as lágrimas para as minhas horas secretas. Porque elas são a minha companhia, o meu re-
frigério, o meu vício.
A trança de Inês, Rosa de Lobato Faria
E avançamos como um cortejo de sombras, uma procissão de fantasmas e há nisto um não sei quê
de feitiçaria arrepiante. Cada passo do meu cavalo me leva para longe de ti, para uma separação irreversí-
vel. Até ao fim dos tempos, até ao dia do juízo final.
O povo com os seus archotes, depois de nos ver passar à beira do caminho, junta-se ao préstito. Já
que o seu rei é louco não querem perder nenhum pormenor da sua loucura. E é como se todo o reino de
Portugal tivesse endoidecido. Agora estamos prestes a chegar e ordeno que cantem. E ergue-se contra o
céu estrelado um coro potentíssimo de vozes, desarticulado, desafinado, mais gritado que cantado, como
um mar em fúria onde cada um coloca o barco da sua desesperança.
Se Deus se dignar olhar-nos dirá, que povo é este, que entre o fogo e o grito leva a morte a passear.
Elogio ao Amor, Miguel Cardoso Pires
(…)
O que quero é fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apai-
xona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém acei-
ta amar sem uma razão. Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de
prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque
se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato,
por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das
contas da lavandaria.
Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de ante-
mão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em “diálogo”. O amor
passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios. Reú-
nem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa
variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem. A paixão, que devia ser
desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O
resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam
“praticamente” apaixonadas.
Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do
amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto
de compreensões, farto de conveniências de serviço. Nunca vi namorados tão
embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje. Incapazes de
um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de
telefoneiros e capangas de cantina, malta do “tá bem, tudo bem”, tomadores de
bicas, alcançadores de compromissos, bananóides, borra-botas, matadores do
romance, romanticidas. Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão
pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a
doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito
ao mesmo tempo?
O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não
é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa
que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida,o nosso “dá lá um
jeitinho sentimental”. Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso.
Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance,
gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespas-
sada ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor é amor. É essa beleza. É es-
se perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar,
não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma
questão de azar.
O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo
ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto. O amor é uma coisa, a vida é
outra. A vida às vezes mata o amor. A “vidinha” é uma convivência assassina. O
amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O
amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima.
O amor não se percebe. Não é para perceber. O amor é um estado de quem se
sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás
do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende.
O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não
faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida
é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se
lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se al-
guém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração
guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando
não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha – é o nosso amor, o amor
que se lhe tem. Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar
e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver so-
zinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não
se pode resistir. A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a Vida inteira, o
amor não. Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também.
Todas as Cartas de Amor são Ridículas, Álvaro de Campos
(Fernando Pessoa)
Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.
Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.
As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.
Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.
Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.
A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.
(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)
O AMOR É…, Joaquim Pessoa
O Amor é...O amor é o início. O amor é o meio. O amor é o fim. O amor faz-te pensar, faz-te
sofrer, faz-te agarrar o tempo, faz-te esquecer o tempo. O amor obriga-te a escolher, a separar,
a rejeitar. O amor castiga-te. O amor compensa-te. O amor é um prémio e um castigo. O amor
fere-te, o amor salva-te, o amor é um farol e um naufrágio. O amor é alegria. O amor é tristeza.
É ciúme, orgasmo, êxtase. O nós, o outro, a ciência da vida.
O amor é um pássaro. Uma armadilha. Uma fraqueza e uma força.
O amor é uma inquietação, uma esperança, uma certeza, uma dúvida. O amor dá-te asas, o
amor derruba-te, o amor assusta-te, o amor promete-te, o amor vinga-te, o amor faz-te feliz.
O amor é um caos, o amor é uma ordem. O amor é um mágico. E um palhaço. E uma criança.
O amor é um prisioneiro. E um guarda.
Uma sentença. O amor é um guerrilheiro. O amor comanda-te. O amor ordena-te. O amor rou-
ba-te. O amor mata-te.
O amor lembra-te. O amor esquece-te. O amor respira-te. O amor sufoca-te. O amor é um su-
cesso. E um fracasso. Uma obsessão. Uma doença. O rasto de um cometa. Um buraco negro.
Uma estrela. Um dia azul. Um dia de paz.
O amor é um pobre. Um pedinte. O amor é um rico. Um hipócrita, um santo. Um herói e um dé-
bil. O amor é um nome. É um corpo. Uma luz. Uma cruz. Uma dor. Uma cor. É a pele de um
sorriso.
Se te Abaixasses, Montanha, Cecília Meireles
Se te abaixasses, montanha,
poderia ver a mão
daquele que não me fala
e a quem meus suspiros vão.
Se te abaixasses, montanha,
poderia ver a face
daquele que se soubesse
deste amor talvez chorasse.
Se te abaixasses, montanha,
poderia descansar.
Mas não te abaixes, que eu quero
lembrar, sofrer, esperar.