leroux - a autoficcao como genero de formacao

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Resumo/ Abstract A autoficção como gênero de formação: a “criação de si” nas experiências de produção audiovisual das periferias O presente texto inspira-se em experiências de produção audiovisual das periferias na ten- tativa de elucidar como, juntamente com a criação cinematográfica, com a possibilidade do relato e da descoberta da “versão”, os novos autores apossaram-se de um instrumento para a fabricação de si, para a invenção de novos sentidos que permitem que, em alguma medida, possam deixar para trás a fatalidade do “que são”, dar as costas para o que é esperado de suas vidas. Nossa opção foi por não seguir o caminho mais em voga para tais análises, que partem dos (hoje) famosos “romances de formação”, mas percorrer um caminho mais incerto, que leva aos limites entre a biografia, a autobiografia e o romance – território recentemente de- nominado de “autoficção”. Assim, testaremos a força heurística da ideia de que a possibilidade de construir uma “versão” sobre a própria vida, através da produção cinematográfica, impli- cando em uma construção de si pela expressão, caracteriza um dos modos mais poderosos da autoformação. Palavras-chave: autoficção; cinema de periferia; autoformação. Autofiction as a gender of formation: the “creation of itself” in the experi- ences of audiovisual production of the peripheries is paper draws on the experiences of popular audiovisual production (“films from the ghet- to”) in an attempt to elucidate how, along with film-making, with the possibility of “version”, the new authors take possession of an instrument for self creation, for the invention of new meanings that allows them, to some extent, to leave behind the fate of “what they are”, turning their backs on what is expected of their lives. Our decision was not to follow the most com- mon path for such analysis, that lead to the (now) famous “formation novels”, but to glance over a more uncertain path that leads to the boundaries between biography, autobiography and novel – the territory recently called “autofiction”. us, we will test the idea that the pos- sibility of building a “version’ of their lives through film making, implying the production of themselves by expression, can result in one of the most powerful means of self formation. Keywords: autofiction; films from the ghetto; auto formation.

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Leroux - A Autoficcao Como Genero de Formacao

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Resumo/ Abstract

A autoficção como gênero de formação: a “criação de si” nas experiências de produção audiovisual das periferias

O presente texto inspira-se em experiências de produção audiovisual das periferias na ten-tativa de elucidar como, juntamente com a criação cinematográfica, com a possibilidade do relato e da descoberta da “versão”, os novos autores apossaram-se de um instrumento para a fabricação de si, para a invenção de novos sentidos que permitem que, em alguma medida, possam deixar para trás a fatalidade do “que são”, dar as costas para o que é esperado de suas vidas. Nossa opção foi por não seguir o caminho mais em voga para tais análises, que partem dos (hoje) famosos “romances de formação”, mas percorrer um caminho mais incerto, que leva aos limites entre a biografia, a autobiografia e o romance – território recentemente de-nominado de “autoficção”. Assim, testaremos a força heurística da ideia de que a possibilidade de construir uma “versão” sobre a própria vida, através da produção cinematográfica, impli-cando em uma construção de si pela expressão, caracteriza um dos modos mais poderosos da autoformação.Palavras-chave: autoficção; cinema de periferia; autoformação.

Autofiction as a gender of formation: the “creation of itself” in the experi-ences of audiovisual production of the peripheriesThis paper draws on the experiences of popular audiovisual production (“films from the ghet-to”) in an attempt to elucidate how, along with film-making, with the possibility of “version”, the new authors take possession of an instrument for self creation, for the invention of new meanings that allows them, to some extent, to leave behind the fate of “what they are”, turning their backs on what is expected of their lives. Our decision was not to follow the most com-mon path for such analysis, that lead to the (now) famous “formation novels”, but to glance over a more uncertain path that leads to the boundaries between biography, autobiography and novel – the territory recently called “autofiction”. Thus, we will test the idea that the pos-sibility of building a “version’ of their lives through film making, implying the production of themselves by expression, can result in one of the most powerful means of self formation.Keywords: autofiction; films from the ghetto; auto formation.

ApresentaçãoO presente trabalho nasceu de nossa atuação no Nós do Cinema, atual Cinema Nosso, e de nosso crescente interesse não só por esta, como por outras “escolas” de formação audiovisual em atividade na cidade do Rio de Janeiro, que permitiram que jovens das periferias e favelas da cidade passassem, da condição de personagens de filmes de grandes diretores, ou de testemunhas privilegiados de docu-mentários ou projetos com “temáticas sociais”, ao lugar de autores de suas próprias produções.

Como cedo pudemos perceber, no cenário do cinema brasileiro – onde “dar a voz” aos desfavo-recidos foi um movimento que marcou época e instituiu um gênero – a conquista da autoria impli-cou, para os novos “realizadores”, muito mais do que o acesso a um novo gênero, uma verdadeira promoção pessoal em direção à autonomia. Isso porque, juntamente com a criação cinematográfica, com a possibilidade do relato e da descoberta da “versão”, os novos autores apossaram-se de um ins-trumento para sua própria “ficção” – para a fabricação de si, para a invenção de novos sentidos que permitem que, em alguma medida, possam deixar para trás a fatalidade do “que são”, dar as costas para o que é esperado de suas vidas, em uma palavra para o questionamento da ficção desigualitária que os condena a um destino inexorável, determinado por sua condição social de nascença.

A autoficção como gênero de formação: a “criação de si” nas experiências de produção audiovisual das periferias

Liliane LerouxDoutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, Comunicação e Cultura em Periferias Urbanas – Faculdade de Educação da Baixada Fluminense, Universidade do Estado do Rio de [email protected]

88 ] Liliane Leroux

Encontramos na relação entre autoformação e autonomia a definição que mais se aproximava da prática que buscávamos significar: a da descoberta de si pela decisão dos sentidos para sua vida e de sua expressão, a do encontro com a paixão de se dizer.

Verificamos essa paixão já em diferentes práticas de escritas de si, cuja observação nos permitiu elucidar a relação entre um autor, seu compromisso com a verdade e sua ânsia por desvio; e optamos por não seguir o caminho mais em voga para tais análises, que partem dos (hoje) famosos “romances de formação”, mas percorrer um caminho mais incerto, que leva aos limites entre a biografia, a auto-biografia e o romance – território recentemente denominado de “autoficção”.

Examinamos, por fim, os movimentos que “dão a palavra” às classes excluídas, outorgando-lhes a condição de autores e favorecendo sua aproximação com a narrativa autoficcional.

Assim, buscamos testar a força heurística da ideia de que a possibilidade de construir uma “versão” sobre a própria vida, através da produção cinematográfica, implicando em uma construção de si pela expressão, caracteriza uma das formas mais poderosas da autoformação.

IntroduçãoA sala não é muito grande, mas bem iluminada por um janelão que vai de ponta a ponta. Está vazia. Quatro jovens terminam de forrar as paredes, o teto e a janela com tecido preto. Ficou pronta! Ab-solutamente escura e sombria.

– Fala pra gravar logo, porque vai soltar toda a fita durex que está prendendo os sacos de lixos no teto do cenário!!!– ‘Tá bom o enquadramento, Caio?– Galera que vier ao banheiro, pelo amor de Deus, não usa a descarga que a gente ‘tá gravando!!!!– Olha o silêncio aí no corredor, pô!!!– Som, câmera, gravando!!!

É assim, com poucos recursos técnicos, mas com muita vontade, criatividade e trabalho duro que uma produção acontece dentro de uma escola audiovisual comunitária. Nestes espaços, jovens assistem e refletem sobre o instituído, desmascarando-o e experimentando a criação de novos sentidos a partir do mundo que deixam entrar pelas lentes de suas câmeras e do mundo que dizem, depois, em forma de filme.

Lembro, então, de Gide, que, tal como Nietzsche, afirmava que o livro, deixando seu autor, o trans-forma e modifica também a marcha de sua vida: e não se poderia dizer o mesmo de todo produto da expressão humana?

A autoficção como gênero de formação [ 89

A autocriação nas narrativas de si: o compromisso com a verdade e a ânsia de desvio

…o homem é um animal criador por excelência, condenado a tender conscientemente para um objetivo… isto é, abrir para si mesmo um caminho eterno e incessante, para onde quer que seja. Mas talvez precisa-mente por isso lhe venha às vezes uma vontade de desviar…

Fiódor Dostoievski1

A narrativa de si caracteriza um gênero específico, que teve na autobiografia sua forma dominante. Polissêmica e conflituosa, a autobiografia une, mascarando as dificuldades, a experiência íntima e a exposição pública, a ânsia de extravio e o rigor do compromisso com a verdade. Confrontada ao projeto de autonomia e de autoformação, é evidente que a escrita de si não pode reduzir-se à busca de uma “verdade” monolítica, que aparece como prestação de contas feita submissão à opinião estabe-lecida, nem como resignada aceitação de um destino inexorável, ou como trágica confissão de uma culpa a ser expurgada. Assim, é na escrita de si definida como “autoficção”, que buscaremos as relações entre autocriação do um sujeito autônomo – entendido aqui não, idealizadamente, como um ser in-teiramente livre e emancipado, mas como o ser comum que descobre a vontade e com ela o poder de questionamento, de reflexão, de decisão e de expressão dos sentidos que constrói ele próprio, a cada vez, para o mundo e para si – e a exigência de expressão, como forma de instituição, para si e para os outros, desses sentidos. Um ser que, sem estar certo do que encontra a cada vez, não deixa de desco-brir a paixão de se buscar.

Diferentemente da ideia de autobiografia, definida por Philippe Lejeune (1996, p. 14) como um pacto entre leitor e autor onde a narrativa é conduzida por um eu (autor, narrador e protagonista) que relata sua vida real, o termo “autoficção” foi criado por Serge Doubrovsky para representar a interseção entre a autobiografia e o romance. Para esse autor, a autoficção seria “uma ficção de acon-tecimentos e fatos estritamente reais”, onde “descrevo o gosto íntimo de minha existência e não sua impossível história” (DOUBROVSKY, 1988, p. 67). Ainda segundo Doubrovsky, a autoficção,

ao despertar a memória do narrador, que rapidamente toma o nome de autor, conta uma história em que apare-cem e se mesclam recordações recentes, distantes e também problemas cotidianos… Autobiografia? Não, esse é um privilégio reservado às pessoas importantes desse mundo, no ocaso de sua vida, e com um estilo eloquente. E sim, ficção de acontecimentos e de feitos estritamente reais – se assim se quiser: autoficção (Idem, p. 69).

1 DOSTOIEVSKI, Memórias do subsolo, p. 146-7.

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Não nos interessa aqui discutir a autoficção como falsificação do gênero autobiográfico, mas sim – e por isso a elegemos – como um tipo modelar de atividade de livre disposição de si, de autoconstrução que, visando o presente e futuro, recorre ao passado; mas, ao fazê-lo, reescreve, concomitantemente, o que já se passou para melhor elaborar o projeto do que ainda está por vir. Se a autoficção nos interessa, é porque nela reside uma intensa produção de si, exercício de ficcionalização, nos termos em que co-loca Lemasson: “A ficção se desvia da realidade para criar outra realidade, enquanto a ficcionalização parte da realidade para recriá-la”2.

Na autoficção, estariam dadas as condições para construir e afirmar o que se é e o que não se é, sem fatalismos e experimentando um pouco da liberdade da imaginação, como ilustra o trecho de Gide, que viveu e se expressou através de seus personagens:

Eu nunca sou apenas aquilo que creio ser – e isso varia o tempo todo, de forma que, muitas vezes, se eu não estivesse lá para aproximá-los, meu ser da manhã não reconheceria o da noite. Não há nada mais diferente de mim do que eu mesmo. […] Meu coração só bate por simpatia; vivo apenas por outrem; por procuração, poderia dizer, por núpcias, e é quando saio de mim mesmo para me tornar qualquer um que sinto viver mais intensamente que nunca (GIDE, 1983, p. 43).

Autobiografia, ficção, ou, melhor dizendo: autoficçãoAlçada, a partir da modernidade, à condição de gênero específico, a escrita de si tem sido tema de polêmicas relativas, antes de qualquer outra coisa, a seu estatuto. Os principais eixos em torno dos quais divergem os que tomam esse tema como objeto de estudo referem-se ao caráter verídico ou ficcional do que é narrado; à relação entre autor, narrador e personagem, entre esses e seu leitor; ou, ainda, à diferenciação desse tipo específico de escritura face ao “pacto” romanesco; às distinções que fazem do sujeito da autobiografia um autor de sua escrita (portador de uma identidade já elaborada que ele expressa), um simples efeito textual (criado discursivamente no e pelo ato autobiográfico); ou, mesmo, uma mistura dos dois – causa e consequência de sua expressão; e, por fim, à possibili-dade da manifestação autobiográfica através de outros suportes que não a literatura. Mas todas es-sas questões que o gênero levanta acabam, em última instância, por remeter a uma única e antiga indagação – inquietude maior que nos acompanha neste trabalho – relativa à legitimidade do que é apresentado como verdade.

2 LEMASSON, Ne rien laisser derrière soi. Disponível em: <http://www.uhb.fr/alc/cellam/soi-disant/01Question/0.html>. Acesso em: 20 jan. 2007.

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No levantamento bibliográfico que realizamos sobre o gênero, a tentativa de Philippe Lejeune de identificar um corpo coerente de critérios capaz de distinguir e caracterizar o que poderia ser conside- rado como escrita autobiográfica dentro do campo literário, nos parece ser, ao mesmo tempo, um marco e um limitador3. Marco, já que sua iniciativa coloca em destaque e lança no debate um tipo de escrita desprezada e marginalizada como forma literária; mas, por outro lado, limitação, ao submetê-la a rigor de categorização que resulta em novo estigma e em inesgotáveis querelas. Trata-se de um pacto de verdade, explícito e consensual, entre autor e leitor, no qual a identidade entre autor, nar-rador e personagem é assumida na forma da repetição do mesmo nome próprio do autor na capa da obra, no personagem e no narrador – diferentemente do “pacto romanesco”, que, firmado justamente na negação dessa identidade, afirma-se como ficção.

Talvez Lejeune tenha tomando por base apenas o autorretrato clássico, cuja justificação se en-contra, precisamente, em sua função de verdade; daí talvez tenha nascido a opção metodológica que o levou a buscar os critérios capazes de conferir à designação de “relato autobiográfico” uma identidade que difere da biografia e do romance – ao invés de buscar, na autobiografia, seu sentido e sua originalidade. Houvesse Lejeune considerado a primorosa distinção entre diferença e alteridade elaborada por Castoriadis (1992, p. 282), talvez não propusesse tal “pacto”. E isso porque, como Cas-toriadis destaca, a emergência da alteridade (alloiosis), deve ser entendida como criação de novas formas e destruição das antigas; assim sendo, podemos afirmar que dois objetos são “diferentes” (e não simplesmente outros) quando é possível isolar um conjunto de transformações predetermina-das, de tal forma que se possa deduzir um a partir do outro, ou produzir um a partir do outro. Se tal conjunto de transformações não existe – como é o caso da criação artística, por exemplo – caberá então afirmar que, entre tais objetos, ergue-se não uma mera diferença, mas uma alteridade4. Melhor seria, talvez, uma definição da narrativa de si elaborada a partir da alteridade em relação aos demais gêneros, em sua criativa polissemia.

Para dar conta das escritas de si que se apresentam como “intensidade narrativa” em que os fatos da vida estariam em segundo plano, diante do curso da escrita, Serge Doubrovsky, assumidamente inspirado pela obra de Marguerite Duras – marcada pela liberdade com a qual atualiza seu passado, conferindo-lhe novos sentidos, dando a si mesma uma nova versão – cria o termo autoficção (DOU-BROVSKY, 1977, p. 9-10). Com isso, pretende chamar a atenção para o fato de que a vida não é por 3 Este intento de Lejeune de definir uma forma comum para o gênero autobiográfico foi realizado, primeiramente, em seu livro L’autobiographie en France. Paris: Armand Colin, 1998, depois, revisto em Le Pacte autobiographique. Paris: Editions du Seuil, 1996.4 “A Ilíada e o Castelo não são diferentes – eles são outros” (CASTORIADIS, 1992, p. 282).

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nós percebida como um todo, e sim como pedaços, fragmentos, fases desmembradas, tornando pos-sível que, no intuito de dar conta de uma existência, seja possível “apenas” que se descreva “o gosto íntimo de minha existência, e não sua impossível história”. No entanto, o termo por si só é bastante sugestivo do movimento pelo qual o indivíduo, respondendo à exigência de unificação e contra essa impossibilidade, recria livremente sua vida.

Talvez por isso mesmo Doubrovsky afirme, no capítulo sugestivamente intitulado “Autobiografia/Verdade/Psicanálise” de seu livro Autobiographiques de Corneille à Sartre, que a escrita autoficcional seria um discurso que se revela a partir… da neurose (Idem, p. 282). Não nos incluímos, é evidente, entre os que aderem a esta perspectiva, ou ao menos não a elegemos como a que nos interessa apro-fundar para os fins do nosso estudo. A autoficção, na abordagem que tentamos elucidar, não seria um mergulho em uma experiência puramente psicanalítica.

Contrariamente a essa observação de Doubrovsky e mais na linha do que propõe Deleuze (2008, p. 4), entendemos que a invenção da própria vida pela escrita pode, mais do que remeter à doença, revelar-se um sintoma de saúde. Vale aqui o que Castoriadis enfatiza para a cura psicanalítica, que deve ser definida menos pela supervalorização do sintoma eliminado, e que tomava a forma do dis-curso neurótico, do que pela experiência de transformação que subjaz à produção de novos sentidos, por meio de um trabalho autorreflexivo sobre si mesmo (CASTORIADIS, 1982, p. 95).

A autoficção será aqui compreendida, portanto, e ainda dentro dos termos de Doubrovsky, como uma decisão sempre precária e provisória: a ficção que decido, enquanto autor, fabricar como sentido eleito para minha própria vida.

A autoficção como gênero de formação

Tenho agora vontade de vos contar, senhores, queirais ouvi-lo ou não...Fiodor Dostoievski 5

Falar é uma bela doidice: com ela o homem dança sobre todas as coisas.Friedrich Nietzsche6

“Bela doidice”: tal é, de fato, o poder do discurso, que fabrica a cada vez o humano e o mundo, seja pelo antagonismo entre Bem e o Mal – como na autobiografia confessional e clássica – seja pela afir-

5 DOSTOIEVSKI, Memórias do subsolo.6 NIETZSCHE, Assim Falou Zaratustra: parte 3 – O Convalescente, p. 259.

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mação de seu valor de uso e sentido próprios, como na ficção. Pela expressão, em geral, e mais espe-cificamente com as palavras, o mundo nos conta histórias, nos conta a nossa história; mas é também com elas que, em retribuição, podemos criar as nossas próprias histórias do mundo e de nós mesmos, nessa bela doidice da qual fala Nietzsche.

No entanto, ainda que sendo pela expressão que o ser humano se faz, não se pode afirmar que ele seja redutível à linguagem, qualquer linguagem que seja. O paradoxo não se deve, é claro, à existência de algum sentido intangível de que a linguagem não pudesse dar conta – e, mesmo que assim o fosse, jamais o saberíamos… mas, pelo contrário, por ser o humano eterno devir singular, pura contingên-cia e, apesar de historicamente determinado, continuamente algo novo. É exatamente essa a definição de autocriação que pretendemos enfatizar na experiência da autoficção.

Mas é claro que há uma diferença entre a contingência muda que define o humano como devir descontrolado e a experiência intencional de si. A desconfiança em relação a qualquer verdade que não seja sua própria interpretação faz-se a exigência de autocriação e de autonomia: a prática, através da expressão, do ato de ensaiar formas próprias e sempre precárias, como artistas de si mesmo. Essa ação criadora requer, em qualquer caso, um distanciamento que torne possível estar permanentemente em face do que Castoriadis chama, a partir dos gregos, de “Abismo”, de “Caos”: o nada que antecede e possibilita a criação. Agarrar-se na borda do Abismo é submeter-se à realidade – ficção que nos foi imposta. Desprender-se, ainda que provisoriamente, é ter a coragem de enxer-gar na vida o trágico, tal como o fez Gide – leitor de Nietzsche – para quem a criação artística e pessoal se apresenta como experiência sempre renovada; remetendo-nos ao jogo discursivo do so-fista que plasma realidades diferentes para testar seus efeitos. Esse artifício poderia ser comparado, ainda, à escrita de Marguerite Duras, que, recomeçando mais de uma vez o mesmo relato, sempre escreve uma outra história: “…deixe-me contar de novo, tenho quinze anos e meio…” (DURAS, 1995, p. 8).

A narrativa de si, na perspectiva da autoficção, ultrapassa os limites do vivido pela liberdade do desvio. A noção de ficção que funda o romance é a própria ideia do desvio. Segundo Käte Hambur-ger, o termo ficção deriva inicialmente do latim fingere, que assume significados tais como: compor, imaginar, ou mesmo fingir, alegação falsa, simulação ou imitação. Mas, ao passo que o verbo fingere permanece, em suas derivações nas línguas vivas ocidentais, com sua significação original que o rela-ciona ao falso, o substantivo – ficção – assume uma definição bem próxima àquela que encontramos na teoria literária, relativa à função criativa, ao ato de afastar-se conscientemente de um modelo her-dado (HAMBURGUER, 1986, p. 40).

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Segundo Marthe Robert (2007), a força de um romance advém não apenas da facilidade com a qual a mentira e a ação a ele se integram, mas do estabelecimento de um elo de dependência entre este forjar próprio do gênero e seus efeitos, que chega quase, segundo a autora, a uma relação de causalidade. Tendo a realidade como algo inacessível, o romance se encarrega de criá-la segundo seus próprios critérios. Ao escritor cabe, portanto, em função de sua ânsia por fabricar uma realidade outra, contestar as hierarquias, escapar de suas próprias origens, remanejando sua biografia.

Dessa forma, na proposta da autora, não haveria uma distância tão grande entre escrever e fazer (“faz-se ou escreve-se um livro?”), nem tampouco, supomos, entre escrever e escrever-se. Isso porque, a expressão, fora do automatismo cotidiano, refletidamente, em forma de objeto artístico, exige um trabalho estético, que acaba também por reconfigurar o sentido e o próprio autor: a sonoridade das palavras, a beleza do texto, a imagem segundo a qual eu quero me mostrar. A criação como arte, re-conciliada com a própria natureza do humano, foi a proposta de Nietzsche (2001):

O que devemos aprender com os artistas. – (…) Afastarmo-nos das coisas até que não mais vejamos muita coisa delas e nosso olhar tenha de lhes juntar muita coisa para vê-las ainda – ou ver as coisas de soslaio e como que em recorte – ou dispô-las de forma tal que elas encubram parcialmente umas às outras e permi-tam somente vislumbres em perspectivas – ou contemplá-las por um vidro colorido ou à luz do poente – ou dotá-las de pele e superfície que não seja transparente: tudo isso devemos aprender com os artistas, e no restante ser mais sábios do que eles. Pois neles esta sutil capacidade termina, normalmente, onde termina a arte e começa a vida; nós, no entanto, queremos ser os poetas-autores de nossas vidas, principiando pelas coisas mínimas e cotidianas.

Para Deleuze, a literatura só começa quando se atinge a potência de um impessoal, uma “terceira pessoa que nos retira o poder de dizer eu” e que, ao contrário de ser generalidade, é a singularidade ao extremo: “um homem, uma mulher, um animal, uma molécula…”. Escrever é, para esse autor, um devir sempre inacabado; mas “devir” não significa atingir uma forma – identificação, imitação ou mímesis – e sim encontrar o que ele chama de “zonas de vizinhança” (DELEUZE, 2008, p. 12).

Ousando uma aproximação improvável de Deleuze e Castoriadis, poderíamos afirmar que a ex-pressão seria, então, um movimento – intenção e gesto – de sair de si mesmo e tornar-se, pela exteri-orização, alteridade que, refluindo de volta sobre nós mesmos, constitui a singularidade como devir, como diferença: a repetição sempre de outra coisa e nunca do mesmo. Para Castoriadis,

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o sujeito é abertura – não quer dizer que ele é janela, ou buraco, ou muro (…) Abertura, portanto: obra do abrir, inauguração sempre recomeçada, operação do espírito selvagem, espírito da práxis. Ou ainda: o su-jeito é o que abre (1987, p. 54).

A abertura, porém, não diz respeito somente ao presente e ao futuro, mas inclui também uma volta ao passado. Porém, dentro da perspectiva da autoficção que tentamos propor aqui, não seria, essa volta, uma busca por uma “identidade autêntica”, ou, como bem a define Deleuze, um “retorno às origens” visando algum reencontro, ou o encontro com o personagem interessante que se julga ser mas uma ida ao passado com o fito de superá-lo, de excedê-lo, de se fazer outro (DELEUZE, 2000, p. 221-222, 225, 228). Afirmar o indivíduo como origem de possíveis, e consequentemente como “ori-gem parcial de sua história” (CASTORIADIS, 1987, p. 54), é destronar a fatalidade da verdade, que inclui ver também, no passado, o que nele é criação.

O que entendemos como verdade, a ordem e o sentido que damos ao mundo, é sempre uma ten-são entre o que já está socialmente instituído e nossa capacidade individual de criar. Mas, segundo Castoriadis, é por ser capaz de silenciar o sentido da cultura impresso nas coisas (logos endiathetos tornado logos proforikos) (CASTORIADIS, 1987, p. 155) que o sujeito pode dobrar de forma original o exterior, fazendo-se origem do sentido e da expressão. Podemos estabelecer uma relação com o real fundada nos discursos e práticas socialmente instituídos, alienando todo nosso poder de autocriação; mas podemos interrogar e problematizar o instituído buscando produzir interpretações próprias para o real, o que seria a marca da autonomia; ou, podemos, ainda, nos isolar do mundo social-histórico habitando tão somente a clausura de nossa psique, em um estado de alucinação. Em todo caso, existe sempre um conflito entre a coisa já pensada e definida como certa e o investimento arriscado, incerto e vulnerável de si como origem da criação de pensamentos novos, de tudo o que sempre, e ainda, se pode e se deve pensar além do já pensado.

Para Marthe Robert, a ficção singular de um autor se encarna no mundo dos leitores, nessa dupla vocação sentimental e social. E, por essa relação direta com a sociedade e por sua vontade de mu-dança, o romance possui um espírito democrático, comprovado pela sua total impossibilidade em sociedades de casta ou em povos primitivos com estruturas sociais fixadas na tradição.

Nesse sentido, as experiências de produção audiovisual popular que dão a palavra, na condição de autor, poderiam, acreditamos, se colocar, em alguma medida, como uma recuperação do es-paço público.

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A autocriação nas experiências populares de produção audiovisual

E, aliás, quereis saber de uma coisa? Estou certo de que a nossa gente do subsolo deve ser mantida à rédea curta. Uma pessoa assim é capaz de ficar sentada em silêncio durante quarenta anos, mas quando abre uma passagem e sai para a luz, fica falando, falando, falando…

Fiodor Dostoievski7

A história do audiovisual, no Brasil e no mundo, foi profundamente marcada pelo elitismo. Ter acesso aos meios de produção de filmes sempre exigiu uma boa quantidade de dinheiro para estudar em poucos e caros cursos de formação, na maioria das vezes fora do país, bem como uma cultural geral – literária, teatral e fílmica – necessária para a elaboração dos temas, narrativas e a tradução desses nos aspectos mais sutis próprios ao cinema. Raríssimos são os relatos de diretores, atores e técnicos que chegaram ao estrelato contando apenas com seu talento e esforço, sem vastos recursos próprios, ou indicações provenientes de um círculo social de alto nível, ao qual, na maioria das vezes, já tinham acesso por nascimento.

Quanto ao tipo de cinema produzido, também há uma forte dose de exclusão, principalmente em cinematografias dos grandes centros, tendo Hollywood, como sabemos, à frente. Basta pensar na ausência de negros em boa parte dos elencos norte-americanos até a década de 1960, ou na falta de roteiros com algum interesse na realidade social dos ambientes filmados, sendo o cinema encarado exclusivamente como fábrica de entretenimento e, por essa razão, a forma descuidada pela qual o “sul do mundo” era apresentado na maioria dessas produções, misturando aspectos culturais de distintos países em um grande caldeirão no qual “o latino” e “o negro” representavam generalidades, muitas vezes próximas da caricatura.

Essa situação, em parte, foi abalada por movimentos surgidos após a Segunda Guerra Mundial – que têm seu ponto de partida com o neorrealismo italiano e se difundem pelo mundo através dos “cinemas novos” de países como Brasil, Argentina, Cuba, Alemanha, França, Japão e, mesmo, das produções independentes nos EUA. O objetivo comum a essas manifestações era o de romper com a linguagem glamorosa imposta pela estética hollywoodiana e filmar “a realidade”, entendendo-se o cinema como um veículo, acima de tudo, político. Deve-se lembrar também que, antes dessas ondas revolucionárias, a União Soviética já produzira, nas décadas de 1920 e 1930, um cinema que

7 DOSTOIEVSKI, op. cit., p. 50.

A autoficção como gênero de formação [ 97

se pretendia estética e politicamente engajado, que havia inspirado boa parte desses jovens realiza-dores da década de 1950 e 1960. Mas, ainda assim, esses movimentos caracterizavam um cinema feito pelas e para as classes média e alta, atingindo minimamente as classes baixas. Era uma ex-pressão que se afirmava como política e que remodelou em profundidade a estética cinematográ-fica; mas ela consistia, na maioria das vezes, de um discurso de fora ou, até mesmo, de cima, que pretendia falar para excluídos, ou falar pelos excluídos, visando revelar a condição de opressão que os próprios oprimidos não seriam capazes de perceber sozinhos, sem a fala conscientizadora do intelectual. Seja como for, tratavam-se de iniciativas de caráter formativo – que pretendiam formar a elite intelectual ou os próprios excluídos – nas quais raras vezes permitia-se aos próprios excluídos falarem.

Desses movimentos, porém, nascem, nos anos 1980, algumas iniciativas que dão voz à população através de repórteres locais, ou cabines públicas. Atualmente, com uma tecnologia de imagem a cada dia mais acessível, no que diz respeito tanto ao preço quanto ao manuseio, surgem iniciativas que pa-recem tentar corrigir os rumos do cinema social, buscando não somente conceder voz, mas autoria, reconhecendo o poder de criação e, em uma palavra, autonomia das classes mais desfavorecidas, que passam assim a ter direito à perspectiva e a assumir, pela produção audiovisual, o posto narrativo que lhes foi até então negado.

No início do século XXI, o desenvolvimento e a difusão de uma tecnologia de imagem de baixo custo e fácil manipulação possibilitaram a multiplicação de iniciativas que fizeram da expressão cine-matográfica o cerne de sua ação social. Experiências como Cinema Nosso, TV Morrinho e Nós do Morro, entre outras, parecem pretender retomar, retificando-os, os rumos do cinema político, for-necendo finalmente autonomia aos interessados, para que eles próprios assumam a autoria de seus filmes, experimentando a liberdade de interpretar o mundo, criar e expor seus sentidos próprios.

Ora, ao promoverem junto a integrantes das classes populares, não somente o acesso aos novos meios técnicos, mas o interesse em criar narrativas cinematográficas, essas novas iniciativas – em grande medida espontâneas e ainda bem pouco refletidas – parecem ter um papel cujas dimensões permanecem desconhecidas até mesmo por seus responsáveis.

É preciso ressaltar que, sem dúvida em virtude do percurso já realizado por outros movimentos, essa nova aventura de difusão do cinema toma a forma declarada de “escolas”. As “escolas de audio-visual popular” são, portanto, fenômeno bastante recente, e surgem para inverter a relação até então estabelecida entre o cinema e a pobreza: ao invés de buscar retratar e expor a exclusão, elas preten-dem contribuir para que aqueles que até aqui permanecem excluídos de formas mais sofisticadas de expressão cultural possam ter, eles também, direito ao posto narrativo.

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As experiências concretas que pudemos analisar nos mostram os limites e as possibilidades atuais dos movimentos que buscam “tomar a palavra”, compostos por aqueles que dela mais visivelmente estiveram despossuídos. Para esses últimos, a vontade de “se dizer” não se configura, porém, como rebeldia que toma a forma de culto à transgressão e necessidade do desvio: essas características cor-respondem, sem dúvida, muito mais à experiência daqueles a quem a palavra jamais faltou, embora talvez ela jamais tenha sido bastante; daqueles para quem a autoficção é a recusa de um pertencimen-to que ninguém contesta. Nos casos que emergem das produções populares, a palavra é conquista que se mistura com a autoficção: não há culto ao desvio, mas busca de uma via que não seja aquela que conduz inexoravelmente à perda de si.

Buscamos, então, com base nesse exame, estabelecer alguns ângulos a partir dos quais a experiên-cia de construção da autonomia se deixa entrever, de maneira decerto sutil, porém inegável.

O primeiro deles refere-se à vontade de se autoconstruir pela expressão, que tem sua raiz nas próprias exigências do processo de autoformação humana, sempre constituído por um movimento que é, ao mesmo tempo, individuação e socialização. Isso porque, existir socialmente implica em ver e, por sua vez, ser visto; em aparecer; em falar, assim como ouvir. Tanto quanto inventar-se como individualidade compreende não apenas se dizer, mas dizer o mundo de uma forma própria; não apenas ouvir o mundo como uma novidade, mas fazê-lo, igualmente, em relação a si. A construção de si está intimamente ligada, pois, à construção do mundo que, sendo comum, suporte a existência de individualidades.

Diferentemente do que ocorre com os jovens que procuram as “escolas” de audiovisual, como o Cinema Nosso e o Nós do Morro, a experiência dos meninos do Morrinho não parte da “necessidade” de serem vistos e reconhecidos: no máximo, de se verem e se reconhecerem a eles próprios em um contexto social recriado. A busca do olhar do outro foi instituída pelos resultados tangíveis de uma expressão cinematográfica quase involuntariamente produzida, que tomaram a forma de aceitação e de valorização por parte dos adultos – e, ressaltam eles, mesmo daqueles que antes condenavam a brincadeira! Foram, a rigor, os efeitos dessa autoexpressão que trouxeram a novidade, fazendo do reconhecimento pelo outro uma nova exigência.

No caso dos jovens que buscam formação audiovisual, dá-se exatamente o contrário: eles par-tem da intenção de falar de si e “se mostrar”, mas acabam por perceber que expressar-se é também construir as condições de expressar o mundo; fazer ouvir falar de si traz como consequência ouvir o mundo, a vida, os outros.

O segundo ângulo a privilegiar é o fato de que essas experiências transformam a expressão es-pontânea e irrefletida de si em discurso e ação obrigatoriamente explícitos e conscientes. Passando a

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demandar maior elaboração e reflexão, as narrativas de si envolvem, a cada vez, decisões de sentido: o que quero expressar? Como quero fazê-lo? Nessas condições, a autocriação se faz uma permanente tensão entre os sentidos instituídos, seu questionamento e recriação e a recepção dos outros. Vimos que os jovens – mesmo quando afirmam explicitamente querer deixar no mundo a sua marca pessoal – sempre se fazem veículos dos valores de seu meio, o que já trazem na cabeça, o que acolheram da mídia, da família, da comunidade, da sociedade; mas, aos poucos, o processo de elaboração de uma narrativa e de sua transformação em filme os confronta com a necessidade de transformar impulsos em decisões intencionais, de questionar suas “verdades”, de fornecer argumentos para suas posições. Tudo isso cria condições favoráveis para a emergência de subjetividades capazes de exercer consci-entemente seu poder de reflexão e de deliberação.

Outro ângulo a destacar refere-se ao gesto autobiográfico – que tem início quando o sujeito desco-bre que sua vida e destino podem ser independentes da sorte comum e, ao mesmo tempo, dignos de narração. Por si só, o relato cinematográfico – como qualquer relato – fornece à existência muda uma dignidade que antes lhe era negada; para os jovens envolvidos nos programas de ação examinados, o cinema permitiu romper com a cruel alternativa entre o silêncio de uma existência precária e sem perspectivas ou a versão não menos sombria que é habitualmente fornecida pela mídia. Além disso, como procuramos ressaltar ao longo da pesquisa, somente a narrativa transforma a existência em projeto, ensejando, com a nova versão, a atividade de autocriação.

E esse é o último ângulo que gostaríamos de ressaltar – entre tantos que certamente enriqueceriam mais nossa análise: o que nos permite considerar a força de reinvenção que a narrativa de si introduz. Frente à necessidade de “escapar de suas origens” pela denegação e pelo silêncio, o romance, como bem percebeu Marthe Robert, opõe infinitas possibilidades de remanejamento da própria biografia, de livre recriação de seu passado, obedecendo a uma lógica que só o projeto do futuro explica. O primeiro passo para a superação da fatalidade que vem sob forma de passado é poder narrar e partilhar os senti-dos de sua existência. Em seguida, a força do romance é a de arrastar a obra para além disso: como, no caso, essa obra é a própria existência, a criação autônoma – que foge cada vez mais de determinações e modelos culturais e sociais instituídos – tem por objeto o destino do sujeito. Assim, o desvio ficcional se transforma, nas experiências cinematográficas, em contágio da própria vida pela arte.

É claro que há ainda muito a refletir acerca de um tema tão rico, que apenas começamos a abor-dar aqui. Mas se fosse preciso dizer alguma coisa à guisa de conclusão, nos arriscaríamos a dizer que talvez a principal contribuição desse trabalho tenha sido a de abrir um novo caminho a partir do qual se possam pensar as experiências de produção audiovisual dos grupos de periferia. Arriscamo-nos a reconhecer à classe popular sua faculdade de criar sentidos próprios, de interpretar as interpretações

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dadas, de se autocriar e de encarnar os seus sentidos pelo discurso – não qualquer discurso, mas o dizer cinematográfico: polissêmico e poético.

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