letícia maria passos corrêa

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Faculdade de Educação Programa de Pós-Graduação em Educação Mestrado em Educação Ensino de Filosofia no Colégio Municipal Pelotense: uma análise histórica e crítica da disciplina de filosofia de 1960 a 2008 Letícia Maria Passos Corrêa Pelotas, 2012

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Page 1: Letícia Maria Passos Corrêa

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTASFaculdade de Educação

Programa de Pós-Graduação em EducaçãoMestrado em Educação

Ensino de Filosofia no Colégio Municipal Pelotense: uma análise histórica e crítica da disciplina de filosofia de 1960 a 2008

Letícia Maria Passos Corrêa

Pelotas, 2012

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Letícia Maria Passos Corrêa

ENSINO DE FILOSOFIA NO COLÉGIO MUNICIPAL PELOTENSE:uma análise histórica e crítica da disciplina de filosofia de 1960 a 2008

Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pelotas, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Educação.Orientadora: Profª.Drª. Neiva Afonso Oliveira

Pelotas, 2012

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação:

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Banca examinadora:

Profª Drª. Neiva Afonso Oliveira (UFPel) – Orientadora

Prof. Dr. Antônio Joaquim Severino (USP)

Profª Drª. Giana Lange do Amaral (UFPel)

Prof. Dr. Robinson dos Santos (UFPel)

Page 5: Letícia Maria Passos Corrêa

Para as pessoas que dão sentido à minha vida:Kauã, filho imensamente amado;

Jesuz, companheiro de todas as horas;Gracia, querida e amiga mãe;

Marli, tia do meu coração;Ari, pai sempre lembrado.

Page 6: Letícia Maria Passos Corrêa

AGRADECIMENTOS

Há momentos na vida em que não é possível agir de forma onipotente e solitária.

Precisamos da ajuda de outros seres, pessoas que auxiliam, contribuem, enriquecem e possibilitam

nosso crescimento e o percurso da caminhada a que nos propomos. Assim foi para mim nesses últimos

dois anos. Uma pesquisa acadêmica não é escrita de forma isolada do mundo. Nos bastidores dela,

recebemos auxílios que são determinantes e fundamentais para que possamos chegar ao objetivo final.

Desta forma, recebi ajuda de muitas pessoas que se prontificaram a facilitar minha caminhada e

possibilitaram que eu pudesse hoje escrever estas linhas.

Agradeço primeiramente à Profª Drª Neiva Afonso Oliveira, minha querida orientadora.

Agradeço por ter acreditado no potencial da pesquisa, pela confiança em mim depositada, pelas

leituras atentas, pela prontidão em seus auxílios, pela sabedoria e contribuições valiosas. Sou grata

também pela amizade, compreensão e carinho no tempo em que convivemos juntas.

Aos professores que compuseram a banca examinadora, Prof. Dr. Antônio Joaquim

Severino, Profª Drª Giana Amaral e Prof. Dr. Robinson dos Santos, muito obrigada por terem aceito

nosso convite. Obrigada pelas sugestões e avaliações realizadas, pelas leituras rigorosas e pelas

contribuições pertinentes.

Ao Prof. Dr. Avelino da Rosa Oliveira, um agradecimento especial pelos diálogos, pelos

sábios conselhos e por seu envolvimento e colaboração com esta pesquisa. Agradeço ainda às

contribuições dos professores doutores Gomercindo Ghiggi e Magda Damiani em suas aulas.

Aos professores entrevistados, sujeitos desta pesquisa, muito obrigada! A participação de

cada um foi fundamental e sem vocês esta pesquisa seria totalmente inviável. Meus sinceros

agradecimentos pela maneira como fui recebida, pelas conversas, pela vontade de contribuir para este

estudo e por terem aceitado meu convite e acreditado na seriedade desta dissertação.

À direção do Colégio Municipal Pelotense, por ter autorizado a pesquisa. Aos

coordenadores do Museu do Colégio Municipal Pelotense, Professores Luís Cláudio e Profª Marisa,

pelo auxílio na etapa de coleta de dados.

Aos colegas da disciplina “Seminário de Dissertação e Tese”, pelas discussões e pela

oportunidade de trocarmos experiências, estímulos e ajuda mútua.

Aos funcionários do Programa de Pós-Graduação em Educação e da Faculdade de

Educação.

À CAPES, pela bolsa de estudos que tornou viável a execução deste trabalho.

Page 7: Letícia Maria Passos Corrêa

E, por último, meu principal agradecimento à minha família que me deu a base para que

eu chegasse até aqui. Agradeço à minha mãe, Gracia Maria, pela educação que me foi dada, pela vida,

por tudo o que sempre fez e faz por mim e pelos cuidados com meu filho quando eu me ausentava

para assistir às aulas do mestrado. Agradeço ao meu pai, Ari Carlos (in memorian), que mesmo

ausente se fez presente em minhas memórias e sua lembrança me estimulou para a conclusão desta

caminhada. Agradeço à minha tia, Marli Luiza, pelo incentivo, pelos estímulos, pelas conversas e pela

compreensão. Agradeço ao meu irmão Marcelo e minha cunhada Michelle pela amizade e pelos

suportes nas viagens a Porto Alegre. Agradeço ao Jesuz, meu amado marido e companheiro, pelo

apoio e por acreditar em mim e nunca ter duvidado que este momento seria possível. Finalmente, meu

agradecimento à compreensão de meu filhinho Kauã, que apesar de pequenino, valorizou meu trabalho

e soube o quanto este era um sonho para mim. Enfim, mais do que agradecer, peço-lhes desculpas pela

minha ausência e pelas horas que dediquei ao estudo e deixei de dedicar a eles, pessoas da minha vida.

E agradeço, enfim, a todos que contribuíram, direta ou indiretamente, de alguma forma,

para a execução desta pesquisa.

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“É inegável que todo grupo social que esquece o seu passado, que apaga sua memória, acaba por perder sua identidade, tornando-se uma presa fácil das artimanhas das relações de poder. Certamente a compreensão do presente é incompleta sem a inserção do passado, da experiência vivida e consolidada. Portanto, o presente acaba perdendo o sentido se não se tem, na consciência histórica, um instrumento para a construção do futuro.”

(Amaral, 2002, p. 21)

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RESUMO

CORRÊA, Letícia Maria Passos. Ensino de Filosofia no Colégio Municipal Pelotense: uma análise histórica e crítica da disciplina de filosofia de 1960 a 2008. 2012. 340f. Dissertação de Mestrado – Programa de Pós-Graduação em

Educação. Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, RS.

Este estudo apresenta o Ensino de Filosofia desenvolvido no Colégio Municipal

Pelotense, desde 1960 até 2008. Nele, se analisa qualitativamente, através de

análise documental e entrevistas, como foram os processos de ensino da disciplina

de Filosofia na instituição, bem como o histórico percorrido pela mesma. O texto é

dividido em duas partes. Na primeira parte, são apresentadas as delimitações e

delineamentos da dissertação, através de um memorial descritivo de minha trajetória

profissional, a revisão de literatura dos assuntos abordados e os procedimentos

metodológicos e teóricos utilizados para a concretização da pesquisa. São

abordados aspectos acerca da categoria criticidade e a relevância da perspectiva

histórico-crítica para o Ensino de Filosofia. Na segunda parte do trabalho, é

desenvolvida a pesquisa através dos dados coletados no Colégio Municipal

Pelotense e em entrevistas com professores da instituição. No primeiro capítulo, é

abordado o Ensino de Filosofia no CMP de 1960 a 1964, ano do Golpe Militar.

Posteriormente, é apresentado o período de 1964 a 1972. O terceiro capítulo segue

a delimitação cronológica de 1972 a 1985, ano da redemocratização do Brasil. O

capítulo seguinte, que apresenta os anos de 1985 a 2000, trata da reinserção da

Filosofia no Colégio Pelotense. O último capítulo apresenta o Ensino de Filosofia no

CMP no período de 2000 a 2008, ano em que ocorreu a obrigatoriedade do Ensino

de Filosofia e Sociologia nas escolas de Ensino Médio. A pesquisa intenciona

perceber o papel do Ensino de Filosofia desenvolvido na instituição e seu potencial

formador de consciências críticas e conclui que o Colégio Municipal Pelotense foi

inovador em relação ao ensino da disciplina.

Palavras-chave: Ensino de Filosofia, Colégio Municipal Pelotense, Criticidade.

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ABSTRACT

CORRÊA, Letícia Maria Passos. Philosophy Teaching in Pelotense High School: a historical and critical analysis of the Philosophy discipline from 1960 to 2008.

2012. 340p. Master’ s Thesis – Education Post-Graduation Program. Universidade

Federal de Pelotas, Pelotas, RS.

This paper describes the teaching of Philosophy from the 1960's to 2008 at

Pelotense High School. The study makes a qualitative analysis of Philosophy

teaching processes at this institution by means of documentation research and

interviews. The text has been divided into two parts. The first one deals with the

boundaries and outlines of the thesis by describing my professional path, and

includes a literature review of the issues in question as well as the methodological

and theoretical procedures used to implement the research. Aspects referring to

criticality and the historical-critical outlook in the teaching of Philosophy are

mentioned. In the second part of the study, data collected both at Pelotense High

School and interviews with the teaching staff are researched. The first chapter

addresses the teaching of Philosophy at Pelotense High School from 1960 to the

year of the military coup d’état in Brazil in 1964. Following, the 1964 – 1972 period is

discussed. The third chapter extends from 1972 to 1985, the year of Brazilian

redemocratization. The chapter that follows includes the 1985 – 2000 period and

focuses on the Philosophy teaching reintegration into the school curriculum. The last

chapter presents the teaching of philosophy at Pelotense High School between 2000

and 2008, on which occasion the teaching of Philosophy and Sociology at secondary

school level became compulsory. This research aimed to understand the role of

Philosophy teaching at the institution and its potential for shaping critical awareness,

and concluded that Pelotense High School has been innovative in the teaching of this

Course.

KEY-WORDS: Teaching of Philosophy, Pelotense High School, Criticality

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.............................................................12PARTE I – DELINEAMENTOS DA PESQUISA...................18PARTE II – ENSINO DE FILOSOFIA NO COLÉGIO MUNICIPAL PELOTENSE DE 1960 A 2008.......................60CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................133REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................141APÊNDICES ..............................................................148ANEXOS...................................................................276

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INTRODUÇÃO

O presente texto apresenta uma pesquisa que investiga o histórico do

Ensino de Filosofia no Colégio Municipal Pelotense (Rio Grande do Sul) de 1960 até

o ano de 2008. A dissertação apresentada integra o trabalho desenvolvido no

Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pelotas, em

nível de Mestrado. O estudo nasce de um profundo sentimento, engajamento e

vontade de saber mais, conhecer, ampliar e desenvolver a temática sobre o Ensino

de Filosofia.

Ao pensar em como se poderia desenvolver processos de aprendizagem

em Filosofia ou em como deveria ser esse ensino, surge o sentimento de querer

conhecer e saber mais sobre o que já foi realizado e desenvolvido aqui nessa

região, especialmente na cidade de Pelotas. Pesquisar sobre acontecimentos

ocorridos no passado, certamente, poderá contribuir para que se possa aprender,

retomar, criticar e discutir o atual Ensino de Filosofia.

Ao refletirmos sobre história, é possível pensar erroneamente em fatos

distantes e acontecidos em um passado longínquo. No entanto, se houver uma

reflexão sobre determinados acontecimentos, facilmente percebe-se a importância

dos mesmos e suas influências sobre nosso contexto atual. Pesquiso, então, sobre

como se deram os processos históricos de Ensino de Filosofia em Pelotas, através

de estudo de caso, o caso do CMP, que contribuiu significativamente para a história

da educação pelotense. Investigo quais categorias filosóficas influenciaram este

ensino, traçando uma linha do tempo (apresentada abaixo para melhor visualização)

onde poderá ser mostrada a importância dos estudos de filosofia e suas influências

desde o início da década de 1960, a partir da Lei de Diretrizes e Bases de 1961,

passando em 1964 pela Ditadura Militar1, pela implementação da Lei de Diretrizes e

1 A Ditadura Militar se caracteriza por uma forma de governo em que o país é liderado por militares. Representou no Brasil um período antidemocrático, em que não se tinha liberdade, nem para escolher nossos representantes, tampouco para expressão de pensamentos e ideias que fossem

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Bases de 1971, pela extinção de disciplina Filosofia no CMP em 1972, pela

restituição do Regime Democrático em 1985, pelo retorno da Filosofia como

disciplina curricular em 1989, pela instauração da Lei de Diretrizes e Bases vigente

até os dias de hoje, promulgada em 1996, até a chegada ao contexto atual, quando

poderá ser traçado um paralelo entre a Filosofia e sua importância para a História da

Educação de Pelotas.

Figura 1 – Linha do tempo – Ensino de Filosofia no CMP

A educação, devido às exigências da contemporaneidade, passa por um

período de desafios. Formar adultos críticos, éticos, lógicos e comprometidos com o

coletivo perante o contexto caótico em que se encontra a sociedade brasileira, soa

quase como utópico. É neste meio que a Filosofia reaparece e vem ganhando cada

vez mais espaço nos currículos escolares. Diante de um momento de crise, onde

não se tem mais modelos educacionais a serem seguidos e os valores humanitários

também se perderam, a Filosofia atualmente é lembrada como algo que, mesmo

longe de se comprometer a solucionar todos os problemas universais, ainda se

apresenta, devido a sua capacidade reflexiva e de formulação de conceitos, como

contrárias às propostas pelos dirigentes do país. Esse período aconteceu na História do Brasil a partir do Golpe Militar de 1964 e se estendeu até 1985, quando iniciou-se, a partir da sociedade civil organizada, um processo de mobilização com vistas à instauração da Democracia no país.

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uma esperança no que concerne à formação de sujeitos mais éticos, conscientes e

indagadores.

Ao mesmo tempo em que hoje se fala muito em um retorno da Filosofia

justamente pelas circunstâncias deste momento de crise, em outros momentos, o

mesmo não aconteceu. A partir da implementação da Ditadura Militar no Brasil, a

Filosofia, em outro período de crise, por representar fonte de perigo em uma época

em que o pensar era proibido, foi banida dos currículos escolares. Esse processo de

extinção se deu a partir da dita Reforma de 1971, quando houve uma mudança

significativa na estrutura do ensino brasileiro.

Em decorrência da eliminação da Filosofia dos currículos escolares,

várias gerações a ela não tiveram acesso. No Colégio Municipal Pelotense, de

acordo com documentos arquivados na instituição, a extinção da disciplina de

Filosofia se deu no ano de 1972. Frente a isto, em geral, o conhecimento filosófico

se tornou uma experiência educacional pouco acessível e um conhecimento

elitizado, em termos da educação brasileira. Felizmente, hoje, 25 anos após o fim da

Ditadura Militar, a reinserção da Filosofia no conteúdo programático das escolas

acontece através da Lei nº 11.684/08, que estabelece as diretrizes e bases da

educação nacional, para incluir a Filosofia e a Sociologia como disciplinas

obrigatórias nos currículos do ensino médio. Entretanto, passados quatro anos da

instauração da lei, o que se percebe na conjuntura das escolas é que ela ainda está

longe de ser efetivada conforme a sua proposta. Algumas escolas não oferecem o

Ensino de Filosofia e Sociologia em todos os anos do Ensino Médio, outras

intercalam Filosofia e Sociologia e muitas não possuem profissionais capacitados

para o ensino dessas disciplinas. Não é rara a contratação de professores de outras

áreas e as ausências de Licenciados em Filosofia e em Sociologia nas salas de

aula. Outro problema ainda é em relação ao que se deve ensinar. Na visão de

professores não capacitados, as aulas de Filosofia podem servir como

oportunidades para discussões sobre atualidades, autoajuda e outros temas que

estão longe de ser filosóficos.

Todavia, para que possamos entender os processos pelos quais o Ensino

de Filosofia passou, certamente se faz importante investigar os contextos históricos

passados, até alcançarmos o momento próximo ao presente quando consideramos

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ser viável identificar e reconstituir/traçar paradigmas com vistas a contribuir para

uma continuidade da prática filosófica.

A pesquisa visa enriquecer e contribuir com três segmentos: Ensino de

Filosofia, História de Pelotas e Memorial do Colégio Municipal Pelotense. Investigo a

memória da História da Educação local e regional através de diversos tipos de

materiais e acervos documentais temáticos (História de Pelotas, do Colégio

Pelotense, etc) e acredito que, através desta reconstrução, torna-se possível

perceber aproximações e distanciamentos em relação a embasamentos

pedagógicos, principalmente o relacionamento muito próximo entre História e

Filosofia da Educação.

Desta forma, é possível perceber que Filosofia e História da Educação

não representam campos isolados e distantes um do outro. Não há Educação que

não necessite de pensamentos, seja na criação de novos conceitos ou na reflexão

crítica de conceitos já existentes, instrumentais de trabalho da Filosofia, seja na

própria prática docente, onde o professor pode assumir o papel de um sujeito que

pensa e avalia sua própria prática

Assim, Educação, Filosofia e História se relacionam justamente por terem

como foco o homem. A Educação, por se preocupar com a formação humana; a

Filosofia, por lidar com a especificidade do homem, que o diferencia dos animais: a

razão; e a História, por registrar os acontecimentos percorridos pela humanidade.

Todas estas áreas têm em comum o pensar sobre o humano e, a partir de diferentes

abordagens, contribuem para suas vidas enquanto formação, pensamento e

trajetória da humanidade. Então, uma dissertação que investiga o histórico do

Ensino de Filosofia do Colégio Municipal Pelotense lida com as três áreas de

conhecimento, pois pretende conhecer a formação dos estudantes de Filosofia, a

trajetória do ensino na instituição escolhida e intenciona, ainda, filosofar sobre o (os)

método(s) filosófico(s) trabalhado(s) nas salas de aula de Filosofia do educandário

no período proposto.

O trabalho foi dividido em duas partes. Na primeira parte, mostro os

delineamentos da pesquisa, que guiaram os caminhos metodológicos que percorri

até aqui e que deram origem à dissertação. Apresento uma breve descrição da

minha trajetória profissional e as motivações que me impulsionaram a investigar a

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temática proposta neste trabalho. Na sequência, mostro a Revisão de Literatura

sobre os temas pesquisados. E, em Referencial teórico-metodológico, esclareço o

método utilizado na confecção da pesquisa; elucido o meu entendimento sobre a

categoria criticidade; e explico o referencial teórico escolhido para sustentar a

pesquisa: a Perspectiva Histórico-Crítica.

Por fim, na segunda parte, passo à pesquisa de fato: os dados que

coletei, as análises realizadas e as pesquisas bibliográficas feitas no processo de

síntese. Penso que esses itens integram um texto que apresenta três elementos -

relativos às fontes históricas, à Filosofia da Educação e ao referencial teórico

utilizado – concomitantemente, um se intercalando com o outro, dando origem a um

texto que ora é crítico, ora é histórico, ora é pedagógico, mas que também é, em

alguns momentos, um todo, analisado por suas diversas faces. O primeiro capítulo

fala da situação da disciplina Filosofia no Colégio Municipal Pelotense partindo do

ano de 1960 até o Golpe Militar de 1964. No capítulo seguinte, explico os

acontecimentos relativos ao período de 1964 a 1972. Na continuidade do trabalho, o

terceiro capítulo trata do período de extinção da Filosofia dos currículos escolares,

que se deu entre 1972 a 1985, ano de redemocratização do Brasil. O penúltimo

capítulo apresenta o retorno da Filosofia no Colégio Pelotense, tendo como

delimitação cronológica as datas compreendidas entre 1985 a 2000. Por fim, o

capitulo final apresenta a presença da Filosofia no educandário e os movimentos de

obrigatoriedade da disciplina para as escolas de Ensino Médio, que ocorreu em

2008.

O trabalho aqui apresentado é um estudo de caso e foi desenvolvido

através de pesquisa empírica (a partir de entrevistas com professores da instituição

e fontes impressas arquivadas no Colégio Pelotense) e de pesquisas teóricas sobre

os temas propostos. Através dele, torno a conhecer o ensino desenvolvido em uma

escola local da cidade de Pelotas e avalio as influências de um contexto “macro”, o

referente aos acontecimentos nacionais e mundiais que abalaram o trabalho

realizado no colégio estudado.

Pretendo contribuir com elementos esclarecedores para que os atuais

professores de Filosofia tenham possibilidades de (re)conhecer o histórico do ensino

da sua disciplina e, desta forma, possam entender os processos filosófico-

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educativos, avaliar suas práticas, conhecer diferentes metodologias de diferentes

épocas, para, assim, poderem pensar seus contextos atuais, com olhos de quem

conhece o caminho percorrido até então e, cientes dessa trajetória, consigam ser

capazes de dar continuidade a essa história.

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PARTE I – DELINEAMENTOS DA PESQUISA

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CAPÍTULO 1. SOBRE A PESQUISA

Este estudo possui como tema principal o histórico do Ensino de Filosofia

no Colégio Municipal Pelotense, de 1960 a 2008.

A partir da coleta de dados realizada através de documentos históricos

arquivados no Colégio Municipal Pelotense e entrevistas realizadas com pessoas

que vivenciaram e praticaram o Ensino de Filosofia na instituição, analiso o percurso

desenvolvido no período proposto através do referencial teórico a partir dos escritos

de Dermeval Saviani, desde os quais extraio as categorias a ser investigadas. A

partir de então, proponho contar a história do ensino no educandário, com o

propósito de observar o papel da criticidade nas diferentes épocas da pesquisa.

Trabalho com a ideia de que a História Brasileira nesse período influenciou

diretamente o Ensino de Filosofia desenvolvido na escola e procuro pesquisar sobre

que influências foram essas, que ensino era esse, e lanço meu olhar para a

categoria criticidade a fim de dar subsídio às análises e sínteses. No decorrer da

análise dos dados, apresento minhas impressões, observações, constatações e

contribuições para que a história do Ensino de Filosofia não se perca e para que

possamos entender as dificuldades encontradas até o momento. Todas essas ações

possuem o propósito de apresentação de argumentos que visam consolidar

novamente o papel importantíssimo da disciplina de Filosofia na Educação Básica.

A questão norteadora que deu impulso à pesquisa foi Qual o enfoque

dado ao Ensino de Filosofia no Colégio Municipal Pelotense, na cidade de Pelotas?.

A partir daí, foram estabelecidos objetivos, tendo como foco geral o de

investigar sobre o Histórico do Ensino de Filosofia na cidade de Pelotas/ RS, de

1960 até 2008, no Colégio Municipal Pelotense. Como objetivos secundários, mas

não menos importantes, foram determinados os de apresentar a história do Ensino

de Filosofia, a partir do contexto sóciopolítico da História da Educação Brasileira,

através de diversos tipos de materiais e acervos documentais; conhecer quais

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discursos, mídias e linguagens permearam o Ensino de Filosofia desde 1960, anos

que antecederam o Golpe Militar de 1964, passando pela Ditadura Militar, até chegar

ao contexto educacional próximo do atual no ano de 2008, no Colégio Municipal

Pelotense; traçar aproximações e perceber os distanciamentos em relação a

embasamentos pedagógicos utilizados no passado e as ferramentas metodológicas

utilizadas atualmente; e analisar o papel da criticidade no Ensino de Filosofia levado

a termo na instituição.

Visando uma melhor compreensão por parte do leitor, acredito que seja

relevante uma breve apresentação de minha vida e dos motivos que me fizeram

“despertar” para esta temática. Desta forma, creio que seja possível um

entendimento maior acerca dos meus objetivos e acredito que uma avaliação do

leitor em relação à junção do tema com minha pessoa possa acontecer.

1.1 Origem da Pesquisa: um pouco de mim e dos porquês deste estudo

Esta investigação surge imbricada com minha trajetória pessoal,

estudantil e profissional. Como pessoa, não sou um ser isolado, ora estudante, ora

profissional, sou um ser humano completo. Sou uma totalidade dessas coisas, uma

soma das experiências que vivi e daquelas que espero vivenciar. Em meio a isso

tudo, penso ser importante apresentar um pouco de minha história, para que

possam ser entendidas minhas motivações e escolhas nesta pesquisa. Walter

Benjamin (1985, p. 197) diz que “O narrador conta o que ele extrai da experiência – sua

própria ou aquela contada por outros. E, de volta, ele a torna experiência daqueles que

ouvem sua história”. Compartilho, então, um pouco da minha história.

Nasci e cresci na cidade de Pelotas. Fui uma criança que sempre gostou

muito do ambiente escolar. Ao lembrar de minha infância, tenho presente recordações

de momentos de inquietude em que eu gostava de ficar, por alguns momentos,

embevecida por questionamentos, tais como: Quem sou eu?, Por que estou neste

mundo?, entre outros. Algo semelhante a “Em que hei de pensar? Que sei eu do que

serei, eu que não sei o que sou? Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!”

(Pessoa, 1998). Hoje, passados os anos, tenho claro em minha mente que nesse

período da minha vida, a Filosofia já começava a “brotar” em mim.

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Cursei o Ensino Médio no Colégio Municipal Pelotense. Lá, descobri o

verdadeiro espírito Gato Pelado2. A identificação com o colégio aliada à proposta de

aprendizagem foram determinantes para o seguimento de minha formação. Entretanto,

apesar da escola já oferecer a disciplina de Filosofia para os terceiros anos dos cursos de

Segundo Grau, fui aluna de outro curso, o de Auxiliar de Escritório, que não oferecia a

disciplina de Filosofia em seu planejamento curricular. Desta forma, apesar de ter sido

estudante do CMP nos anos 1996 e 1997 e da instituição oferecer a disciplina de Filosofia

neste período, no curso por mim cursado, que possuía uma proposta com tendências

tecnicistas, privilegiando disciplinas como Mecanografia, Contabilidade e Técnicas

Comerciais, não tive acesso a ensinamentos filosóficos.

Aos dezoito anos, ingressei no Curso de Psicologia, na Universidade

Católica de Pelotas. A passagem pelo Curso de Psicologia, apesar de rápida, foi

determinante. Das poucas disciplinas que tive a oportunidade de cursar, entre elas fui

agraciada com Sociologia e Antropologia Filosófica. O encantamento nas aulas de

Antropologia Filosófica foi imediato e crescente ao decorrer daquele semestre.

Fascinava-me demais conhecer os pensamentos de determinados filósofos e, com eles

também pensar filosoficamente. Oriunda de um sistema de ensino que não oferecia

disciplinas de Filosofia e Sociologia no seu currículo, eu não havia tido contato prévio

com esses conhecimentos (filosóficos e sociológicos). Dessa forma, começava assim a

me tornar o que sou, parafraseando Nietzsche. Decidi, então, ao fim desse semestre,

que faria vestibular na Universidade Federal de Pelotas para o Curso de Licenciatura

Plena em Filosofia. Desde então, desenvolvi um deslumbramento que crescia

progressivamente a cada disciplina que se iniciava e a cada filósofo que me era

apresentado. Senti, durante alguns dos meus melhores momentos na Universidade,

certo prazer ao pensar em coisas sobre as quais, até aquele momento não havia

cogitado pensar. Tive muitos momentos de profunda admiração por alguns filósofos em

especial que marcaram a minha visão e minhas referências teóricas, tais como: Platão,

2 Referência ao Gato Pelado, mascote e símbolo do Colégio Municipal Pelotense. O termo Gato Pelado era utilizado para identificar os alunos do Colégio Municipal Pelotense, que, em sua fundação se chamava Gymanasio Pelotense, ou seja, suas iniciais G e P, davam origem ao apelido dado. Na época, o colégio disputava, ideologicamente e através de campeonatos esportivos, com outro colégio de excelência em Pelotas, o Ginásio Gonzaga, originando as inicias GG, que davam origem ao apelido de Galinha Gorda, para os estudantes desta instituição. O Gymnasio Pelotense é uma escola pública, onde não se precisa de posses para estudar, originando o termo Gato Pelado, (Pelado no sentido de sem luxos materiais); enquanto o Galinha Gorda se referia a uma escola particular, onde seus alunos no geral eram de origem mais abastadas (Gorda, no sentido de riqueza).

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Santo Agostinho, Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Nietzsche, entre outros. Aos

poucos, tornava-se claro também que, apesar de amar a Filosofia, não pretendia ser

uma filósofa, ou seja, alguém interessada especificamente em pesquisa filosófica e, sim,

fazer jus ao título que me seria concedido ao final daquela jornada, o de Licenciada em

Filosofia. Minha identidade está relacionada com a figura docente, com a propagação

dos saberes filosóficos para que outras pessoas possam ter acesso ao que vem a ser a

Filosofia. Assim, meu foco sempre foi o de como eu me tornaria uma professora de

Filosofia, adquirindo vasto interesse sobre pesquisas e escritos de Ensino de Filosofia e

Filosofia da Educação. Ao concluir o Curso de Graduação em Licenciatura em Filosofia,

estaria assumindo uma posição de futura educadora.

No ano de 2003, prestei concurso público para a Prefeitura Municipal de

Pelotas e tive a felicidade de ser aprovada. Tomei posse no cargo de Oficial

Administrativo, sendo lotada na Secretaria Municipal de Educação e destinada a um

feliz retorno ao colégio tão querido por mim: Colégio Municipal Pelotense.

Em abril de 2007, a Escola Nossa Senhora da Luz, pertencente à

Universidade Católica de Pelotas, lançou um processo seletivo disponibilizando uma

vaga de docente para a disciplina de Filosofia, para trabalhar com crianças. Para

ingressar no cargo, foi solicitado um projeto de ensino a ser trabalhado na escola.

Escrevi o projeto Educar para o pensar: por uma ação imprescindível para a formação

de cidadãos plenos. Tive a alegria de ter meu plano de trabalho escolhido. Comecei,

assim, a desempenhar de maneira efetiva o ofício de professora. Utilizei como

referencial teórico principal o método de Mattew Lipman (1922-2010) e comecei a

ministrar as aulas. Senti nesse período da minha vida inúmeras dificuldades em virtude

da carência de materiais didáticos para o Ensino de Filosofia, da pouca valorização na

cultura educacional da disciplina no currículo escolar, da não-obrigatoriedade do ensino

no currículo do Ensino Fundamental, entre outras.

Acredito que minha história pessoal e profissional experimentadas até aqui

justifiquem a escolha pela dissertação, o tema sobre o qual me propus a pesquisar e a

escrever. Minha proposta surge de inquietações enquanto Professora de Filosofia e

também enquanto aluna, privada de ter tido o Ensino de Filosofia em minha formação

inicial. Indigna-me bastante o fato de não ter tido acesso ao ensino de filosofia, quando

comprovo reflexos que esta ausência causou até os dias de hoje. Provoca muito minha

Page 23: Letícia Maria Passos Corrêa

23

curiosidade desejar saber o que os professores de Filosofia ensinavam antes da

ocorrência do Golpe Militar de 1964. Também, a possibilidade de aprender com essas

práticas é algo que motiva bastante. A escolha pelo Colégio deu-se tanto com base em

minha vida pessoal, por ter vivido boa parte dela dentro desse educandário e também

por ser indubitável que o CMP é uma escola que conta com atividades e atitudes de

algumas pessoas que por lá trabalharam que servem de modelo para outras instituições

públicas; como inclusive o fato de ser uma escola municipal que oferece o ensino

secundário, entre outros exemplos que poderiam ser dados. Vejo o CMP desta forma

porque, além de contar com uma bela estrutura física, de ser um colégio de grande

porte, com amplo corpo docente e discente, que conta com duas bibliotecas e com vários

recursos em comparação a outras instituições, conheço o trabalho humano que é

desempenhado por alguns dos profissionais que lá atuam, e que fazem da escola uma

referência na educação pública pelotense.

Conforme nos fala Antônio Joaquim Severino:(…) o homem tem seu ser definido pela sua prática real efetiva. Ele é aquilo que ele se faz, ao fazer as coisas. E, para fazer as coisas, para agir, ele se coloca em relação com a natureza, com os outros homens e com os produtos simbólicos da sua subjetividade.Cada uma dessas dimensões impregna as atividades desenvolvidas nas outras, de tal modo que as atividades desenvolvidas no âmbito da prática produtiva trazem também marcas políticas e simbólicas.Por isso, podemos concluir que o homem é um ser de relações efetivadas mediante uma prática complexa e ao longo de um tempo histórico. É o que se pretende dizer quando se afirma que o homem é um ser histórico-social. (SEVERINO, 1994, p. 108)

O que percebo, então, é que não sou um ser distante e separado do

restante do mundo. Sou a integração das minhas impressões subjetivas, das minhas

inquietações, das minhas relações com os outros e comigo mesma. Sou esse ser

histórico, que é totalmente impregnado pelos acontecimentos sociais, políticos e

culturais da minha época. A partir desses acontecimentos e dessas vivências

surgem inquietações com as quais me construo, ajo e atuo nas práticas acadêmicas

e profissionais.

Ao observar o meio social do qual faço parte, percebo a necessidade

urgente de uma formação consistente e sólida de cidadãos críticos, pensantes,

questionadores e capazes de estar em sociedade, de agir e refletir sobre a mesma.

Ligamos nossos aparelhos de televisão todas as noites e percebemos o caos

avassalador tomando conta da humanidade em geral; constatamos que pessoas

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matam por banalidades e notamos que o ser humano parece ter perdido sua

capacidade racional e de respeito ao próximo. Para tanto, a Filosofia é apresentada

nas escolas, através de discursos de alguns educadores, como uma “salvadora”

desse e de diversos processos, como um conhecimento que é capaz de despertar a

sociedade das armadilhas do senso comum e de devolver a essa mesma sociedade

o caráter moral e reflexivo que temos perdido ao longo dos anos. Enxergamos a

Filosofia, então, como uma ferramenta capaz de causar mobilizações e influenciar a

história da humanidade. Desta forma, a Filosofia tem um caráter político, se

considerarmos que o pensamento antecede a ação humana. Severino (In GALLO,

2000, p. 13) nos fala:A humanidade, como sujeito coletivo pensante, busca explicitar/construir sentidos que tenham a ver com o direcionamento do agir histórico de seu conjunto. É sempre prenhe de universalidade, por mais que seja um exercício individual. Ora, isso transforma toda atividade intelectual, e de modo direto e explícito a filosofia, numa explícita pedagogia política. A filosofia se torna uma paidéia, na medida em que, necessariamente, se destina a formar a coletividade humana. Por isso mesmo, e na exacerbação, todo filósofo é um educador da cidade. Não sem razão, impõe-se insistir em que o compromisso fundamental do conhecimento é com a construção da cidadania, entendida esta como uma forma adequada de existência no âmbito da pólis, adequada porque realizando uma necessária qualidade de vida, que o próprio conhecimento, ferramenta privilegiada da espécie, lhe permite configurar historicamente.

Todavia, não basta colocarmos novamente o currículo dos estudos

filosóficos nas escolas; é necessário também que se pense sobre o Ensino de

Filosofia, é importante que não se esqueça do seu histórico, da sua trajetória até

aqui como uma disciplina que já esteve presente nas salas de aula escolares, que

foi extinta por ser considerada perigosa e subversiva aos olhares do poder

dominante da época, e que retorna como obrigatória somente há quatro anos.

Assim, esta dissertação surge cercada da carência de materiais

acadêmicos e produções relativas à área, bem como a ausência de estudos

históricos do Ensino de Filosofia na cidade de Pelotas. Cabe explicitar ainda que a

pesquisa nasce de um sentimento profundo de vontade de aprendizado e de buscar

e trazer à tona velhas e esquecidas práticas docentes com a intenção de aprender

com o antigo e ser capaz de transformar o novo. Questionamentos sobre o que

ensinar e como ensinar certamente instigaram nossos docentes passados e se

apresentam como questões atuais, pertinentes e permanentes, pois, ao termos

Page 25: Letícia Maria Passos Corrêa

25

conhecimento do que já foi feito, podemos (re)tomar antigas práticas, (re)pensar e

aprimorarmos outras.

Tive a intenção de pesquisar ainda sobre uma Filosofia da Educação,

sobre o próprio Ensino de Filosofia e trazer questões relativas ao modo como

realizar um Ensino de Filosofia que seja realmente expressivo e transformador.

Como realizar experiências significativas com os alunos em vez de simplesmente

ministrar aulas previstas pelo currículo escolar? Com relação a esse tema, Jorge

Larrosa Bondía nos diz:A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir-se-ia que tudo o que se passa está organizado para que nada nos aconteça. Walter Benjamin, em um texto célebre, já observava a pobreza de experiências que caracteriza o nosso mundo. Nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara. (2002, p. 21).

Para que um acontecimento se torne experiência, é necessário que tenha

sentido para quem está experimentando. Caso contrário, é simplesmente um

acúmulo de informações. Desta forma, percebe-se a relevância de estudar sobre

como foi, como é e como deveria ser o ensino da disciplina de Filosofia. Será que a

conjuntura do ensino atual, do currículo selecionado, dos planos de ensino fazem

sentido para os estudantes? Como produzir aulas de Filosofia que sejam,

literalmente – e com o pedido de perdão por um possível pleonasmo – filosóficas?

Como realizar experiências permeadas de sentido com os alunos, que sejam

capazes de transpor os limites da sala de aula e de acompanhá-los no processo de

construção do sujeito que está sendo formado? Interrogações como essas

pretendem ser abordadas, investigadas e, se possível, respondidas no decorrer

deste trabalho e se tornam justificáveis pela importância de se pensar a prática

educativa e realizar um trabalho que tenha como foco central o aluno.

A pesquisa justifica-se ainda pela contribuição que possa vir a dar para

docentes da área da Filosofia, da Educação, para o corpo docente e discente do

Colégio Municipal Pelotense e ainda para o magistério e a comunidade pelotense

em geral.

A escolha do Colégio Municipal Pelotense se dá de forma estratégica, em

virtude do fato de ser, além das excelentes condições em termos de infra-estrutura,

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uma instituição de ensino capaz ainda de mostrar muito da História da Educação de

Pelotas.

Segue uma breve apresentação da instituição:

Na cidade de Pelotas/RS, encontra-se uma das maiores escolas públicas da América Latina – o Colégio Municipal Pelotense. Contando com uma área total de 17.500m², o educandário possui 50 salas de aula, diversos laboratórios por área de ensino, dois auditórios, ginásio coberto, canchas de esporte e 2 laboratórios de informática, entre outros espaços e setores didáticos. Destaca-se pela qualidade de seu ensino, contribuindo para isso, um quadro de 223 professores, 93 funcionários e mais de 3.500 alunos. (Conforme informação disponível no site COLÉGIO MUNICIPAL PELOTENSE)

Figura 2 – Colégio Municipal Pelotense

Fundado em 1902 pela Comunidade Maçônica de Pelotas, o colégio

passou em seus 110 anos de história por diversas transformações e atualizações até

chegar à realidade atual.

O Colégio Municipal Pelotense possui características peculiares. É a

maior escola pública municipal da América Latina e oferece os cursos de Educação

Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio e Curso Normal. Vale ressaltar que,

perante a lei, as escolas municipais não possuem a obrigação de oferecer cursos

que vão além do Ensino Fundamental. Todavia, as peculiaridades que dizem

respeito à instituição, não remetem somente à situação atual em que o colégio se

Page 27: Letícia Maria Passos Corrêa

27

encontra. Para uma melhor compreensão por parte do leitor, apresentarei,

brevemente, alguns elementos da história deste colégio.

Em Pelotas, a Maçonaria ganhou ênfase em função de que muitas

famílias em boas condições financeiras, que tiravam seu sustento através da

indústria do charque, mandavam seus filhos para estudarem na Europa. Alguns

destes, ao retornarem à cidade, traziam consigo as ideias maçônicas. Assim, a

fundação do então Gymnasio Pelotense3 se deu através de uma ação concreta da

Maçonaria pelotense com a finalidade de propor uma educação de qualidade que

representasse uma alternativa oposta ao modelo educacional proposto por outra

instituição de destaque: o Colégio Gonzaga, criado em 1894 por católicos jesuítas.

Os maçons enxergavam a educação como um excelente meio para difundirem seus

princípios de liberdade, igualdade e fraternidade. Propunham uma educação laica e

anti-dogmática através do ensino oferecido em um colégio “aberto a todos que

desejassem freqüentá-lo, sem qualquer injunção filosófica ou religiosa e sem

preceitos raciais de qualquer espécie” (Histórico do C. M. Pelotense apud AMARAL,

2005, p. 111). Vale salientar que, enquanto pertenceu à maçonaria, o Gymnasio

Pelotense era uma instituição particular, que cobrava mensalidades para o custeio

de suas necessidades.

Em 1902, o Gymnasio Pelotense foi inaugurado em um prédio que

pertenceu ao Dr. Miguel Barcellos. No ano seguinte, passou para sede própria, em

um casarão situado na rua Félix da Cunha, esquina com a rua Tiradentes. Nesse

período, funcionou com os regimes de internato e externato. A partir de 1913, a

instituição passou a aceitar como discentes membros de ambos os sexos,

caracterizando-se em um colégio que oferecia oportunidade também para que

meninas pudessem frequentá-lo.

Em 1911, através da lei Rivadávia Correa, acontece uma grande

modificação no ensino brasileiro. Esta lei permitia que os estabelecimentos de

ensino criassem cursos de Ensino Superior, onde bastava apenas um teste de

admissão para o ingresso nas universidades, sem que existisse a necessidade de

qualquer grau de ensino anterior. Esta lei afetou diretamente o Gymnasio Pelotense,

que passou a enfrentar um período de intensa crise e desentendimentos entre os

3 Denominação dada ao atual Colégio Municipal Pelotense no período de sua fundação.

Page 28: Letícia Maria Passos Corrêa

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administradores do colégio, resultando em descontentamentos e exonerações em

massa no corpo docente da instituição, que quase levaram ao fechamento do

estabelecimento de ensino. A solução encontrada foi designar um Conselho Escolar

que passou a dirigir a escola, permanecendo, nestas condições, até 1917, onde o

Gymnasio passou para a jurisdição da Prefeitura Municipal de Pelotas. Sobre o

processo de municipalização do Colégio Pelotense, cito Amaral (2005, p. 165):O processo de municipalização da escola só pode ser compreendido levando-se em conta todo o contexto vivido naquele período, relacionado basicamente à legislação de ensino, aos problemas administrativos do Gymnasio e ao próprio interesse da Maçonaria de que ele passasse ao poder público. É importante salientar que, nessa época, a Maçonaria assume uma postura totalmente favorável ao ensino público, e seria bastante contraditório que continuasse a ser proprietária de um estabelecimento de ensino.

Vale ressaltar que, mesmo após a municipalização do Gymnasio, que

posteriormente passou a chamar-se Colégio Municipal Pelotense, os maçons

mantiveram durante um bom tempo expressiva influência na direção do

educandário. Ressalto ainda que, anos após e até mesmo nos dias de hoje, a

instituição possui ainda alguma autonomia em suas decisões em relação à

Secretaria Municipal de Educação de Pelotas.

Em 1961, o Colégio foi transferido para a atual sede, em um prédio

construído especificamente para abrigar a escola, situada na Rua Marcílio Dias,

esquina com Avenida Bento Gonçalves. As memórias daqueles que por ele

passaram bem como os registros históricos arquivados são capazes de mostrar e

contar muito sobre antigas práticas pedagógicas, planos de ensino, hábitos e

realidades discentes e movimentos estudantis de diversas épocas. Salienta-se ainda

que, além de ser até hoje uma instituição de destaque, foi e ainda é um colégio

muito querido pela comunidade pelotense.

Entender os processos históricos que antecederam o contexto atual

certamente se faz importante para que possamos entender, questionar e debater o

presente. Memórias serão instrumentais desta pesquisa: através de relatos de

professores, estudantes e de pessoas que viveram em tais épocas. Por que

trabalhar com memórias? PINTO (1998, p. 206) enxerga a memória como uma

“Memória histórica que (re)cria o passado, operando temporalidade como

textualidade, fundindo referências que estabilizam o presente”. Memórias culturais

Page 29: Letícia Maria Passos Corrêa

29

mantêm-se vivas em virtude de terem deixado marcas positivas ou negativas e

certamente não devem ser esquecidas e apagadas. Fazem parte de um tempo que

foi e já não é. Um tempo que passou e que tem muito a acrescentar a outros tempos

que virão. Todavia, o que acontece com esse tempo passado, construído

anteriormente? Jô Gondar diz que:

Se quisermos, porém, colocar mais luz sobre a construção do quê sobre o já construído, devemos buscar um outro modo de pensar o tempo que não o da prefiguração de uma origem ou de um fim. Esse tempo não seria visto como degradação nem evolução, e tampouco como um meio neutro e exterior aos acontecimentos. Trata-se de um tempo que não é; ele seria, ao contrário, a permanente alteração do que é, o processo de diferenciação intrínseca de tudo o que existe. Se é preciso lhe dar um nome, podemos chamá-lo de devir, concebendo-o como puro processo, e não como algo que parte ou se dirige necessariamente para uma forma, imagem ou representação. Evidentemente, novas figuras, imagens ou formas podem emergir desse processo, mas não se confundem com ele. Assim pensado, o processo é a própria alteração, mais do que aquilo que dela resulta; um movimento de tornar-se mais do que a coisa tornada. O que nele encontramos são os jogos de força e o calor das lutas: diferenças potenciais lutando para se afirmar, desejos e interesses agindo e reagindo diante de outros desejos e interesses, em tensão permanente. (2005, p. 20)

Trazer à tona velhos conceitos, práticas e categorias além de conhecer o

processo, a trajetória do que já foi realizado por educadores de décadas anteriores e

que norteou o ensino de Filosofia em Pelotas podem proporcionar novos paradigmas

e perspectivas para novas construções tanto no hoje quanto no amanhã.

Quanto à questão do tempo, do porquê investigar o passado, avaliar o

presente e projetar o futuro, lembremos o que o filósofo medieval Santo Agostinho

tem a dizer sobre memórias:Realizo interiormente todas essas ações, no grande palácio da memória (...) Aí estão também todos os conhecimentos que recordo, seja por experiência própria ou pelo testemunho alheio. Dessa riqueza de idéias me vem a possibilidade de confrontar muitas outras realidades, quer experimentadas pessoalmente, quer aceitas pelo testemunho dos outros; posso ligá-las aos acontecimentos do passado, deles inferindo ações, fatos e esperanças para o futuro, e, sempre pensando em todas como estando presentes.(AGOSTINHO, 1988, Livro X, 8,14)

Para que se possa entender de forma mais adequada os

questionamentos acerca da temática proposta e expandir tais questionamentos, é

que este texto apresenta sua justificativa de realização.

Adiante, apresento uma Revisão de Literatura, que visa situar meu

trabalho acadêmico dentro das grandes áreas em que ele se encontra localizado,

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possibilitando ao leitor tomar conhecimento de uma revisão dos trabalhos

congêneres e de outras obras que possibilitaram embasamento teórico para a

dissertação aqui apresentada.

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CAPÍTULO 2. REVISÃO DE LITERATURA

Revisão de literatura é um espaço do texto em que apresento como está a

discussão acerca das temáticas propostas por outros autores no momento. Consiste

em um trabalho que exigiu tenacidade, por ser uma das partes mais importantes do

trabalho científico, por envolver leituras e pesquisas. Expõe o que está sendo feito

atualmente no campo estudado.

A Revisão de literatura deverá mostrar as principais investigações

relacionadas ao tema e produções sobre Ensino de Filosofia e, em alguns

momentos, aquelas relativas à História da Educação. O objetivo deste capítulo

consiste em mapear os trabalhos relacionados ao tema e identificar se houve

pioneirismo nesta pesquisa. Ressalto o fato de apresentar uma pesquisa que mostra

um objeto bifacial: pesquiso, por um lado, a situação da disciplina Filosofia no

Ensino Médio brasileiro e, por outro, como foi desenvolvido o ensino desta disciplina

no Colégio Municipal Pelotense. Assim, minha Revisão de Literatura visa mostrar o

que outros autores iniciaram, as pesquisas que realizaram traçando um paralelo com

o meu trabalho dissertativo, mostrando que parto destes textos para apresentar algo

novo, que não foi desenvolvido por nenhuma outra pessoa anteriormente.

Inicialmente, é relevante apresentar uma produção de Mario Sergio

Cortella, desenvolvida para o Ministério da Educação, em 1988, intitulada Filosofia.

Neste texto, o autor apresenta uma breve proposta de retorno da disciplina de

Filosofia nos currículos de segundo grau.

Atualmente, Walter Omar Kohan se apresenta como uma grande

autoridade em pesquisa sobre Ensino de Filosofia. Em várias de suas obras, o autor

problematiza questões sobre como ensinar, o que ensinar e que tipo de Filosofia

ensinar. Entre algumas de suas publicações, é relevante citar Políticas do Ensino de

Filosofia (2004), Ensino de Filosofia – Perspectivas (2005) e Filosofia – Caminhos

para seu Ensino (2007).

Page 32: Letícia Maria Passos Corrêa

32

Entre outros professores que apresentam contribuições nesta área estão

Sérgio Sardi, Vanderlei Carbonara e Draiton Souza. Na obra Filosofia e Sociedade:

Perspectivas para o Ensino de Filosofia (2007), os autores pensam sobre a Filosofia

sobre o Ensino de Filosofia e em relações com a sua práxis a aplicabilidade social.

No artigo O professor de filosofia: o ensino de filosofia no ensino médio

como experiência filosófica (2004), Renata Pereira Lima Aspis problematiza a

questão do Ensino de Filosofia. A autora pergunta sobre o modo como deve ser esse

ensino e como ensinar no contexto da nossa contemporaneidade. Em interrogações

sobre “qual filosofia ensinar?”, fala também Ricardo Nascimento Fabbrini, em O

ensino de filosofia: a leitura e o acontecimento (2005).

Alessandro Pimenta realiza uma breve iniciação sobre o histórico do

Ensino de Filosofia no Brasil, no escrito O ensino de filosofia no Brasil: um estudo

introdutório sobre sua história, método e perspectiva (2009). Trata-se de um texto de

relevância que traça um panorama nacional para a proposta de pesquisa regional

que aqui está sendo apresentada.

Ronai Rocha trata de questões curriculares na obra Ensino de Filosofia e

Currículo (2008). O autor discute os conteúdos a serem trabalhados nas aulas de

Filosofia, bem como uma didática mínima para a disciplina, entre outros assuntos

importantes para a área.

No campo da História da Educação, Paulo Ghiraldelli problematiza a

relação entre Filosofia e História da Educação na obra Filosofia e História da

Educação Brasileira (2003).

Não posso deixar de mencionar Mattew Lipman, professor de filosofia

norte-americano. Falecido recentemente, Lipman foi docente da cadeira de Lógica

da Universidade de Columbia (EUA) e observou que certos alunos passavam por

processos de aprendizagem e levavam consigo diversos problemas de raciocínio e

abstração. A partir dessas constatações, desenvolveu, com o auxílio e a colaboração

de Ann Margareth Sharp, um programa de Ensino de Filosofia para Crianças. Suas

principais obras são A Filosofia vai à escola (1994) e O pensar na educação (1995).

Sobre a escola escolhida para ser analisada na dissertação, o Colégio

Municipal Pelotense, há obras que são de profunda relevância para se entender o

contexto desta comunidade escolar local. Essas foram escritas e organizadas por

Giana Lange do Amaral, intituladas O Gymnasio Pelotense e a Maçonaria: uma face

da história da educação em Pelotas, onde a autora trata do período de formação do

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colégio; Gymnasio Pelotense, Colégio Municipal Pelotense: uma face da história da

educação em Pelotas, também organizado pela professora Giana, traz diversos

relatos de pessoas de diferentes épocas que passaram pela instituição escolar. Cito,

também a sua tese de doutorado, que tem como título Gatos Pelados X Galinhas

Gordas: Desdobramentos da Educação Laica e da Educação Católica na cidade de

Pelotas (Décadas de 1930 a 1960), onde é apresentada a “disputa” ideológica que

existia na época entre duas escolas de excelência em Pelotas: o Colégio Municipal

Pelotense e o Colégio Gonzaga.

Foi apresentado aqui um panorama inicial, de autores/professores que se

dedicam ao Ensino de Filosofia e que pode servir de “ponto de partida” para o leitor,

instigando novas leituras que possam ser realizadas e que mostrem um balanço

geral e inicial de como as questões propostas nesta dissertação estão, atualmente,

sendo trabalhadas por autores diversos. Preocupei-me em mostrar o que outros

autores fizeram com a finalidade de justificar que, embora existam outras pesquisas

com temas correlatos, minha pesquisa trás algo novo ao historicizar sobre o

percurso histórico da disciplina Filosofia de 1960 a 2008 no ambiente nacional e ao

abordar o Ensino de Filosofia no Colégio Municipal Pelotense. Assim, com a

finalidade de contribuir cientificamente, exponho uma pesquisa com um objeto de

estudo novo, que não foi pesquisado anteriormente por nenhum outro autor.

Adiante, mostro o Referencial Teórico-Metodólogico, que tem como

intenção apresentar as escolhas em relação à metodologia e aos autores que deram

base para uma sustentação teórica nas diferentes áreas que esta pesquisa se

propõe a tratar. Pretendo expor também a escolha por alguns conceitos e meu

entendimento sobre eles.

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CAPÍTULO 3. REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO

As discussões e análises são realizadas tendo como base pressupostos

teóricos oriundos da perspectiva histórico-crítica. Nesta perspectiva, Dermeval

Saviani aparece como um expoente, dada sua contribuição para a formulação da

teoria em questão. Entre os escritos de Dermeval Saviani, cito obras que foram

fundamentais para a execução do trabalho, como História das Idéias Pedagógicas

no Brasil (2007), Educação: do senso comum à consciência filosófica (1985), Escola

e Democracia (1999) e Pedagogia Histórico-Crítica (2008) que são textos

extremamente relevantes para todos aqueles que se preocupam com a educação

brasileira. A partir de uma Pedagogia Histórico-Crítica, o autor apresenta a sua

concepção de educação, traduzida por ideais democráticos e que valorizam a

formação de alunos questionadores e aptos a serem agentes de sua própria história

no âmbito social em que se encontram inseridos, sendo esta uma das principais

obras que utilizei em meu referencial teórico. Entretanto, não foram utilizadas

somente fontes relativas ao autor, o que justifica que se adote uma perspectiva

histórico-crítica ao invés de usar a teoria como o único referencial teórico.

São aqui utilizadas, também, as referências de autores que trabalham

com o Ensino de Filosofia e com a Filosofia da Educação. Entre esses, cito Antônio

Joaquim Severino, Silvio Gallo, Walter Kohan e outros.

Como a dissertação apresenta uma faceta ligada ao caráter histórico,

utilizo também autores que contribuem com aspectos que dizem respeito ao uso de

entrevistas, que são relativos às narrativas de memórias e que se utilizam da

História Oral, tais como: Verena Alberti e Julio Pimentel Pinto, entre outros.

Assim, o resultado final de escrita pretende apresentar referências

históricas, filosóficas e pedagógicas. A categoria principal utilizada no decorrer dessa

dissertação é o conceito de crítica, da forma como o compreendo. Visto que, em

minha pesquisa, utilizo frequentemente os termos crítica e criticidade, creio que seja

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35

relevante dedicar uma parte do texto a descrever a definição operacional do que

entendo por crítica.

Crítica é uma palavra comumente associada à presença da Filosofia,

contudo, qual é a origem dessa associação? Tendo como base que para os

Professores de Filosofia, o conceito aparece como uma exigência fundamental e

como uma fala constante em seus discursos, o escrito pretende explorar e investigar

sua definição. Apresenta a etimologia da palavra, bem como conceituações do termo

por filósofos e pensadores, tais como Immanuel Kant, Karl Marx, Michel Foucault,

Gilles Deleuze, Félix Guattari e Paulo Freire; relacionando constantemente a ligação

da criticidade com a prática filosófica.

Assim, apresento a seguir três pontos que podem auxiliar o leitor a uma

melhor compreensão para o entendimento do texto. São eles:

− a metodologia utilizada para a construção da pesquisa;

− a conceituação da categoria crítica e

− a definição do que representa uma perspectiva histórico-crítica.

3.1. O trabalho por detrás da escrita: metodologias e ações desenvolvidas

Como possíveis procedimentos metodológicos utilizados na consecução

do estudo proposto, utilizei pesquisas bibliográficas de embasamento teórico e

pesquisas documentais através de fontes em arquivos históricos que compõem e

guardam a memória das antigas práticas de Ensino de Filosofia realizadas no

Colégio Municipal Pelotense, tais como:

- arquivos disponíveis na Biblioteca Jorge Salis Goulart (Biblioteca do

Colégio Municipal Pelotense)

-planos de ensino da instituição a ser pesquisada;

-documentos do colégio, arquivados em setores diversos – Coordenação

Pedagógica, Museu e Arquivo Morto;

-referências em legislações nacionais vigentes em cada época da

pesquisa – Lei de Diretrizes e Bases (1961), Plano Nacional de Educação (1962),

Plano Complementar de Educação (1966), Lei de Diretrizes e Bases (1971), Lei de

Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394 – 1996), Plano Nacional de

Educação (1998), Lei nº 11.684/08;

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36

-entrevistas com professores de Filosofia que prestam depoimentos

através de memórias sobre as épocas propostas.

A pesquisa é de cunho qualitativo e explicativo e dialoga com as tradições

de Estudo de Caso. Segundo Antonio Carlos Gil, o estudo de caso “consiste no

estudo profundo e exaustivo de um ou poucos objetos, de maneira que permita seu

amplo e detalhado conhecimento, tarefa praticamente impossível mediante outros

delineamentos já considerados.” (2002, p. 54). A dissertação não pretende

apresentar um aspecto amplo da realidade, mas visa mostrar um recorte dos

acontecimentos ocorridos em Pelotas através do caso de uma instituição muito

importante na cidade de Pelotas: o Colégio Municipal Pelotense. Intenciona-se que a

partir dessa pequena contribuição, possam surgir outras pesquisas que deem

continuidade ao estudo.

São utilizados dois métodos em especial: Análise Documental e

Entrevistas Semi-estruturadas (perguntas abertas, sem alternativas, dissertativas e

com roteiro prévio), Temáticas e Observacionais para diferentes etapas da pesquisa.

A coleta de dados se deu através de entrevistas, fontes impressas, manuscritas,

iconográficas, orais e procurou retomar informações que possam sustentar a

pesquisa proposta.

Presumo que tanto a Análise Documental quanto as Entrevistas

realizadas se complementem e deem o embasamento necessário à credibilidade da

pesquisa. Para Gamboa, “investigação vem do verbo latino Vestígio, que significa

‘seguir as pisadas’”. “Investigação significa a busca de algo a partir de vestígios”

(2007, p. 25). Assim, somados os vestígios encontrados, é que pretendo apresentar

como foi ocorrendo o Ensino de Filosofia nos diferentes períodos e extrair as

devidas conclusões que a investigação enseja.

Sobre as pessoas a serem entrevistadas, vale salientar que os sujeitos

foram escolhidos intencionalmente. Entrevistei todos os professores no período de

1960 a 2008 que aceitaram participar da pesquisa. Os relatos dessas pessoas nos

permitiram aprofundar e entender os sentidos que os sujeitos entrevistados podem

mostrar. A escolha por entrevistas também se deu pela necessidade de um

instrumento que pudesse desencadear revelações, fatos, emoções e subjetividades

nos entrevistados. No “Apêndice”, mostro o roteiro utilizado para dar margem às

entrevistas com tais pessoas. Encaminhei aos entrevistados um documento de

identificação como aluna do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPel,

Page 37: Letícia Maria Passos Corrêa

37

bem como outro documento em que o sujeito entrevistado autoriza a publicação da

sua entrevista. Em relação ao CMP, também encaminhei um documento me

certificando da autorização da escola para a publicação do nome do colégio bem

como da pesquisa. Trago, ao final deste texto, como anexo, algumas das entrevistas

realizadas e algumas cópias de documentos coletados no colégio. Os nomes dos

entrevistados foram divulgados em virtude da autorização dos mesmos, mediante

documento assinado por eles. Verena Alberti (2005, p. 31), sobre a escolha dos

entrevistados, afirma:A escolha dos entrevistados não deve ser predominantemente orientada por critérios quantitativos, por uma preocupação com amostragens, e sim a partir da posição do entrevistado no grupo, do significado de sua experiência. Assim, em primeiro lugar, convém selecionar os entrevistados entre aqueles que participaram, viveram, presenciaram ou se inteiraram de ocorrências ou situações ligadas ao tema e que possam fornecer depoimentos significativos. O processo de seleção de entrevistados em urna pesquisa de história oral se aproxima, assim, da escolha de "informantes" em antropologia, tomados não como unidades estatísticas, e sim como unidades qualitativas – em função de sua relação com o tema estudado –, seu papel estratégico, sua posição no grupo etc.

Foram obtidos dados documentais importantes, como planos de

disciplinas, relações de alunos e turmas, entre outros. Foi possível também

conhecer um pouco da fala de pessoas que viveram estas épocas e que puderam

dar suas contribuições enquanto sujeitos dessa história e enquanto seres

questionadores do trajeto percorrido.

Em relação ao período de tempo proposto, apesar de 50 anos representar

um espaço temporal muito grande para ser analisado em uma dissertação de

mestrado, justifico a escolha da seguinte forma: em alguns períodos, tenho acesso a

uma forte presença de dados e, em outros, infelizmente, não. Em visitas aos setores

pesquisados no Colégio Municipal Pelotense, em especial ao Museu e ao Arquivo

Morto da instituição, observei que em alguns períodos não foram arquivados dados

pedagógicos sobre o Ensino de Filosofia na escola. Seja por uma imposição da

ditadura ou por simplesmente terem se perdido no tempo, há períodos nos quais

foram encontrados somente dados administrativos, tais como custos, manutenções

e livro-ponto de funcionários e professores. Nesses períodos em que não tive

acesso à análise documental de dados pedagógicos significativos para a pesquisa,

apresento as entrevistas como um complemento.

Por outro lado, existe o período em que não ocorre o Ensino de Filosofia

na instituição; logo, nesse período, não há muitos dados a ser pesquisados.

Page 38: Letícia Maria Passos Corrêa

38

Sendo assim, foi possível trabalhar com um período longo de tempo, o

que possibilitou deter-me nos pontos mais significativos para a pesquisa e nos

dados coletados. Outro ponto a destacar é que a história nem sempre acontece de

forma linear, tampouco é etapista; ela parte de um ponto e segue seu curso

naturalmente, nos mostrando os fatos que a ocasionaram, os motivos e seus

contextos. E isso é um pouco do que pretendo apresentar.

A temática de estudo é o Ensino de Filosofia no Colégio Municipal

Pelotense. A partir daí, possuo alguns dados através de documentos históricos

arquivados na instituição e realizo entrevistas com pessoas que possam

complementar as informações a que não consegui ter acesso através dos

documentos. Essas pessoas foram professores da instituição (alguns da disciplina

de Filosofia), alunos das épocas investigadas, diretores e pessoas que, de uma

maneira ou de outra, têm suas histórias e memórias para contar e para contribuir

com relatos orais sobre o que presenciaram no educandário.

Na etapa de análise das entrevistas e dos documentos históricos, foi

possível ter uma visão geral sobre como foram as experiências com aulas de

Filosofia no Colégio e encontrei o universo de significações e relações que a

pesquisa se propõe a desvendar. Vale lembrar que, por se tratar também de uma

pesquisa filosófico/histórica, a mesma não é acabada, pois a cada momento, novos

acontecimentos ocorrem e dão sequência a essa história que por aqui percorrerá

seu ciclo e não há de cessar.

Nos Apêndices e Anexos deste trabalho trago os termos de autorização

da pesquisa, as entrevistas e depoimentos dos professores e alguns dos

documentos coletados no Colégio Municipal Pelotense. Os critérios de escolha para

cópias de documentos foram entre aqueles que traziam a palavra Filosofia em seus

registros.

Consegui muitas relações de turmas e documentos diversos e os

mantenho arquivados nos documentos sobre a pesquisa. No entanto, considero

mais relevante apresentar, neste momento, os Planos de Ensino da disciplina de

Filosofia de diversas épocas. Creio serem documentos valiosos para que possamos

ter uma visão de como era o Ensino de Filosofia em diferentes épocas, a partir de

conteúdos condizentes com seus períodos históricos.

Espero que os dados coletados possam embasar e fornecer fidelidade

aos compromissos qualitativos que a dissertação exige e que possibilitem

Page 39: Letícia Maria Passos Corrêa

39

referências para novas pesquisas a serem feitas a partir do objeto de estudo aqui

apresentado.

Passo, então, a uma exposição do que pretendo dizer quando me refiro ao

conceito de crítica. Exponho minha compreensão acerca do assunto, com a

finalidade de esclarecer o leitor sobre a categoria eleita para centrar meu olhar para

este trabalho acadêmico. Conforme Walter Kohan (2011), (…) costumamos dizer coisas tal como: a Filosofia vai contribuir para a formação de cidadãos críticos ou para formar o pensamento crítico dos alunos ou, ainda, para fazer com que eles sejam mais críticos. Mas quase nunca explicitamos o que entendemos por “crítica”, e essa palavra, com a qual se costuma sintetizar, como uma mágica, as qualidades da Filosofia, foi apropriada por tantos discursos e para dizer coisas tão distintas que ficou esvaziada de um sentido mais preciso e elaborado, sentido que a própria tradição filosófica esforçou-se por determinar (KOHAN, 2011, p. 42).

A fim de que, ao usar o termo “crítica”, este texto não caia no

esvaziamento mencionado pelo autor, pretendo tornar explícita minha compreensão

acerca do conceito em questão, que consiste na categoria que escolho para realizar

meu olhar e minhas análises filosóficas sobre o tema pesquisado. Esclareço,

preliminarmente, que minha concepção acerca do caráter crítico do Ensino de

Filosofia possui um cariz muito próximo a uma pedagogia histórico-crítica, nos

moldes que mencionei anteriormente.4

3.2. Crítica: elemento indispensável ao Ensino de Filosofia

Nossa época, é propriamente a época da crítica, a qual tudo tem de submeter-se.

Immanuel Kant

Ao pensarmos em uma sala de aula onde se ministra a disciplina de

Filosofia, que ideias nos vêm à mente? Possivelmente, as relacionadas a alunos

questionadores, que debatem, criam e reveem conceitos, pensam o mundo em que

vivem e lutam contra a impregnação das ideologias estabelecidas? Se

respondermos “sim” a esta pergunta, estamos, certamente, levando em

consideração uma ferramenta, um tópico, um conceito, em especial: a crítica.

Crítica soa como uma palavra que “casa” e é facilmente associada à

presença da Filosofia. E qual a origem desta associação? Talvez a combinação 4 Conforme mencionado na p. 25.

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40

ocorra em virtude de a crítica apresentar-se como uma característica fundamental da

Filosofia ou ainda de representar um elemento que se diferencia dos conhecimentos

científicos, ou ainda, de argumentos falaciosos, inconsistentes. Todavia,

indubitavelmente, temos uma evidência: para os educadores dessa disciplina, há o

desejo de ser capaz de formar alunos críticos e com consciência crítica que

empreendem um esforço sistemático em direção ao desocultamento dos fenômenos

cotidianos. Criticidade é, então, algo indispensável para o filosofar, para o despertar

do homem de um entorpecimento, de uma visão ingênua diante do mundo, dos

outros homens e de si mesmo.

Conforme Moacir Gadotti:A Filosofia pode servir para a formação do espírito crítico, com exceção da filosofia dogmática, essencialmente afirmativa; pode servir à análise reflexiva da situação do nosso estudante e do nosso professor e, sobretudo, daqueles a quem é negado pensar ou freqüentar a escola. Mas para isso é preciso que ela abandone a tradição de se perder no impessoal, no abstrato em si, para escutar e perceber o trabalho pelo qual o homem se constrói a si e a sociedade. (GADOTTI, 1985, p. 28)

Contudo, a crítica não é uma ferramenta da qual somente a Filosofia

apropria-se. Outras disciplinas que integram o currículo escolar dela se utilizam, ou

seja, a crítica também está presente no ensino de Artes Visuais, de Literatura, de

Sociologia e de tudo o que for possível conhecer e especular. Entretanto, em uma

aula de Filosofia, há o convite específico à crítica, há um espaço todo a ela

reservado e uma extrema valorização do chamamento à reflexão e às posturas que

envolvem criticidade. Sobre esta relação entre Filosofia e crítica, nos falam Gallo e

Kohan:

(…) o pensamento filosófico é marcado pela crítica radical. Nascida da necessidade existencial de colocar perguntas, por incomodar-se com o status quo, a filosofia incomoda pela crítica que exerce. A pergunta é a chave da crítica, e o incômodo frente ao dado é o seu motor. Sendo pensamento desviante, que não se contenta com o dado, que não se satisfaz com a mera opinião, a experiência filosófica deve ser radical. O pensamento filosófico é aquele que busca compreender o vivido em suas raízes, percebendo as inter-relações que se estabelecem e podendo agir sobre elas. É também o pensamento que, não satisfeito com o estado das coisas, age sobre elas produzindo conceitos críticos que são essencialmente transformadores. Assim, a filosofia parte de um incômodo existencial para tornar-se, ela mesma, um incômodo para a sociedade estabelecida. (GALLO, KOHAN, 2000, p. 193)

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41

A palavra crítica tem sua origem na língua grega, através do termo5

crinein, que remete à ideia de julgar, separar. Desta forma, crítica está intimamente

ligada a avaliações qualitativas que se pode fazer acerca de algo. A crítica julga e

questiona se algo é ou não aceitável, se é bom ou mau, se é válido ou inválido.

Assim, a crítica nos tira de uma situação de ingenuidade e de aceitação pacífica

sobre todas as ditas “verdades” estabelecidas ideologicamente. Ao passarmos por

uma experiência que envolva criticidade, estaremos deixando de lado o senso

comum e partindo para uma avaliação pormenorizada e minuciosa sobre fatos,

pensamentos e argumentos do que se queira pesquisar e criticar.

Assim, existe uma relação antagônica entre ideologia e crítica. A ideologia

ocupa seu lugar em virtude da ausência de crítica. A ideologia se mantém através da

alienação com uma força imensurável. Não seremos ingênuos ao ponto de acreditar

que a Filosofia é capaz de “destruir” todos os conceitos ideológicos. Entretanto, não

podemos negar que, através da crítica, é possível identificar, questionar e lidar com

outro olhar para as ditas “verdades ideológicas”. Chauí (1982, p. 87) diz que

(…) enquanto não houver um conhecimento da história real, enquanto a teoria não mostrar o significado da prática imediata dos homens, enquanto a experiência comum da vida for mantida sem crítica e sem pensamento, a ideologia se manterá.

Sobre a possibilidade de nos valermos da crítica como um instrumento

para avaliarmos os pensamentos ideológicos, não posso deixar de mencionar que

valorizo na criticidade a possibilidade de se buscar os fundamentos de um

determinado problema, de se valer da faculdade de julgar. Não proponho

necessariamente que o processo educacional carregue consigo a “bandeira” de

combater toda e qualquer ideologia. Agindo desta forma, estaríamos colaborando

com a criação de contra-ideologias, e esta não é a aposta, dado que a contra-

ideologia, contraditoriamente, é, também, uma ideologia. Severino (1994, p. 74)

analisa a relação entre ideologia e contra-ideologia no processo educacional:

Assim, se de um lado a educação contribui para a reprodução da sociedade por meio da produção, da sistematização e da divulgação de uma ideologia, de outro, ela pode contribuir para a transformação da mesma sociedade através da produção, da sistematização e da divulgação de uma contra-ideologia. Ela pode proceder a uma crítica da ideologia vigente, desmascarando-a, denunciando seus compromissos com os interesses dos

5 Quando emprego “termo”, me refiro à palavra, signo; com a finalidade de distinguir de conceito, que remete a uma ideia abstrata que remete ao significado, à definição, ao sentido, etc.

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grupos dominantes no interior da sociedade e gerando, então, uma nova consciência social entre os sujeitos. Evidentemente isso vai depender, em grande parte, do esclarecimento crítico dos agentes educacionais e de seu compromisso político no contexto histórico em que se encontram (grifos do autor).

Todavia, como se constrói a crítica? Como se adquire uma atitude de

crítico? E como este conceito aparece na História da Filosofia? Ao explorarmos o

conceito e sua ligação com o que vem a ser Filosofia, percebemos que tais questões

são de extrema relevância, pois não há como investigar sobre o que é crítica, sem

construirmos críticas, agirmos como críticos e sem levarmos em consideração as

formas como o conceito foi trabalhado por filósofos e teóricos que nos antecederam.

Desta forma, torna-se visível que a crítica tem ligação direta com a práxis, com a

aplicabilidade e com a ação que ela provoca. Longe de ser um conceito abstrato,

podemos observar visivelmente atitudes e comportamentos críticos.

Começarei, então, a investigar tais questões através da própria definição

de filosofia. Filosofia, segundo Marilena Chauí, pode ser definida como uma

“Fundamentação teórica e crítica dos conhecimentos e das práticas” (Chauí, 2000,

p. 15). Conforme Maria Lúcia de Arruda Aranha, “A Filosofia é, portanto, a crítica da

ideologia, enquanto forma ilusória de conhecimento que visa a manutenção de

privilégios” (Aranha, 1993, p. 75). E ainda, de acordo com Antonio Xavier Teles, ela

“é uma reflexão sistemática e crítica sobre certos problemas que não caem sobre a

alçada das ciências e especificamente sobre os problemas do conhecimento e da

ação” (Teles, 1974, p. 66). Desta forma, fica evidente o quanto a crítica está inclusa

na Filosofia. Não há Filosofia sem crítica. A crítica é um ingrediente primordial para

um Ensino de Filosofia que pretenda ser congruente com o conceito de Filosofia.

Uma aula de Filosofia que não utilize a criticidade é apenas um mero convite a

decorar e memorizar conceitos presentes na história do pensamento filosófico. E

isto, nem de perto, é o que se espera de uma aula de Filosofia. Enquanto

professores de Filosofia, desejamos contribuir na formação de alunos críticos,

pensantes e filosofantes, capazes de posicionarem-se perante aos problemas

apresentados e de agirem de forma contrária a falácias e argumentos inválidos.

Aqui, percebemos a relação entre Epistemologia, Filosofia e Crítica. Dado

que a epistemologia é um campo da Filosofia que se preocupa com a origem, com o

processo e com a validade do conhecimento, verificamos que só é possível criticar o

que é possível conhecer. Almejamos que nossos alunos de Filosofia tenham acesso

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ao conhecimento, que possam de fato ter experiências significativas. Nesse sentido,

a crítica apresenta-se como um “divisor de águas” na diferença entre uma aula que

estimula a memorização e uma aula que estimula o raciocínio e um mergulho no

mundo epistêmico. De acordo com Antônio Joaquim Severino:

A criticidade situa o conhecimento num contexto mais envolvente do que a relação entre um sujeito e um objeto. Todo conhecimento se engendra num âmbito de totalidade do existir humano e, como tal, precisa ser sempre reavaliado. Para além de sua transparência imediatamente epistêmica e expressão lógico-conceitual, o conhecimento resulta da trama dos relacionamentos sócio-culturais. O conhecimento é fruto de uma prática histórica e traz essa marca. Por isso, nunca estamos diante de verdades absolutas, mas ante certezas provisórias cuja consolidação nasce da aplicação sistematizada de recursos também aperfeiçoáveis. A criticidade oferece a vigilância na percepção e superação das aderências ideológicas em nossas atividades subjetivas e objetivas. (2001, p. 151)

A possibilidade de conhecimento e sua relação com o criticismo são bem

explicadas por Johannes Hessen em:

O criticismo examina todas as afirmações da razão humana e não aceita nada despreocupadamente. Onde quer que seja, pergunta pelos motivos e pede contas à razão humana. O seu comportamento não é dogmático nem céptico, mas sim reflexivo e crítico. É um meio termo entre a temeridade dogmática e o desespero céptico. Existem sinais de criticismo onde quer que apareçam reflexões epistemológicas. (1987, p. 54)

O conceito crítica foi teorizado por vários filósofos e teóricos. Entre eles,

não poderíamos deixar de mencionar Immanuel Kant, fundador do criticismo que

emprega a crítica como um verdadeiro tribunal formado unicamente para realizar

julgamentos sobre a razão. Segundo Nicola Abbagnano, a crítica foi um “termo

introduzido por Kant para designar o processo através do qual a razão empreende o

conhecimento de si: "o tribunal que garanta a razão em suas pretensões legítimas,

mas condene as que não têm fundamento" (Abbagnano, 1998, p. 232). Desta forma,

a razão seria posta em xeque, pensada, avaliada e questionada através da crítica.

Kant leva as questões filosóficas para este tribunal nas suas três críticas: as obras

Crítica da Razão Pura (1781), onde avalia o conhecimento; Crítica da Razão Prática

(1788) em que examina a moral e a Crítica da Faculdade do Juízo (1790) onde a

crítica da faculdade de julgar estética e teleológica são examinadas.

No Prefácio à Segunda Edição da Crítica da Razão Pura, Kant traça uma

oposição da crítica em relação ao dogmatismo, como podemos perceber:

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A crítica não é contraposta ao procedimento dogmático da razão no seu conhecimento puro como ciência (pois esta tem que ser sempre dogmática, isto é, provando rigorosamente a partir de princípios seguros a priori), mas sim ao dogmatismo, isto é, à pretensão de progredir apenas com um conhecimento puro a partir de conceitos (o filosófico) segundo princípios há tempo usados pela razão, sem se indagar contudo de que modo e com que direito chegou a eles. Dogmatismo é, portanto, o procedimento dogmático da razão pura sem uma crítica precedente da sua própria capacidade. Essa oposição da crítica ao dogmatismo não deve por isso defender a causa da superficialidade verbosa, sob o pretenso nome da popularidade, ou mesmo do ceticismo (KANT, 1999, p. 47).

Percebemos, então, o quanto a crítica se contrapõe ao dogmatismo, que

professa a crença e opiniões sobre determinados assuntos sem abrir margem para

possíveis questionamentos. O dogmatismo afirma determinadas verdades e as

mantém como saberes autoritariamente inquestionáveis. Algo é como é e não pode

ser de outra forma. O conhecimento é acabado e não está aberto para novas

verdades, por ser incontestável.

A crítica é composta por duas características:

A primeira característica da atitude filosófica é negativa, isto é, um dizer não ao senso comum, aos pré-conceitos, aos pré-juízos, aos fatos e às idéias da experiência cotidiana, ao que “todo mundo diz e pensa”, ao estabelecido. A segunda característica da atitude filosófica é positiva, isto é, uma interrogação sobre o que são as coisas, as idéias, os fatos, as situações, os comportamentos, os valores, nós mesmos. É também uma interrogação sobre o porquê disso tudo e de nós, e uma interrogação sobre como tudo isso é assim e não de outra maneira. O que é? Por que é? Como é? Essas são as indagações fundamentais da atitude filosófica. A face negativa e a face positiva da atitude filosófica constituem o que chamamos de atitude crítica e pensamento crítico (CHAUÍ, 2000, p. 9).

Desta forma, primeiramente, negam-se as verdades pré-estabelecidas e

posteriormente se investiga o que é, e por que, de fato, algo é. Assim, se estabelece

uma postura crítica perante algo. Nos despimos das nossas crenças e partimos para

um olhar novo, um olhar de quem não acredita cegamente em tudo o que vê ou

como vê, de quem quer enxergar com os olhos da razão, do pensamento.

Certamente, esta não é uma atitude fácil. Por acomodação, é muito mais

simples nos entregarmos aos braços da ideologia6. Porém, esta atitude crítica pode

6 Marilena Chauí explica o conceito ideologia nessa passagem: “... os homens produzem idéias ou representações pelas quais procuram explicar e compreender sua própria vida individual, social, suas relações com a natureza e com o sobrenatural. Essas idéias ou representações, no entanto, tenderão a esconder dos homens o modo real como suas relações sociais foram produzidas e a origem das formas sociais de exploração econômica e de dominação política. Esse ocultamento da realidade chama-se ideologia. Por seu intermédio, os homens legitimam as condições sociais de exploração e de dominação, fazendo com que pareçam verdadeiras e justas” (CHAUÍ, 1982, p. 21).

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e deve ser estimulada e construída através de um ensino de filosofia que desperte,

que retire o aluno da quietude e da aceitação, dos pré-conceitos e o faça pensar por

si, que o liberte e o faça autônomo para poder ir contra as ideias massificadas e

enraizadas socialmente.

O conceito de crítica também aparece na obra de Karl Marx que emprega

o termo em várias de suas obras, entre elas: O Capital: crítica da economia política,

Crítica à Filosofia do Direito de Hegel e Contribuição à Crítica da Economia Política,

entre outras. Numa visão geral, Marx utilizava a crítica para analisar a realidade de

uma forma ontológica, para vê-la no seu processo de formação e desenvolvimento e

para buscar possíveis alternativas de transformação, como podemos perceber no

artigo escrito por Elaine Cristina dos Santos Lima, Estevam Alves Moreira Neto e Ivo

Tonet:

(…) para Marx, crítica é: a) análise genética das entificações (o que é), b) busca histórico-social dos pressupostos (como se formou), c) explicitação da processualidade do ser em si mesmo (como se desenvolve) e d) exposição dos limites e possibilidades de transformação do real (como ir radicalmente adiante). (LIMA; NETO; TONET, 2009, p. 5)

Assim, podemos perceber o caráter não somente conceitual do termo,

mas também a sua relação com o social. E, desta forma, fica evidente que a partir

de uma atitude crítica, a partir de uma mudança de pensamentos, o indivíduo pode

tornar-se capaz de efetivar ações e comportamentos sociais mais conscientes,

maduros e transformadores, visto que, quem critica algo não aceita de imediato as

“verdades” enraizadas socialmente: tenta compreendê-las e, se for o caso,

transformá-las.

Outro filósofo que enfatiza o senso crítico é o francês Michel Foucault. Na

introdução da História da Sexualidade 2 - O uso dos prazeres, o autor fala sobre o

filosofar:

De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição dos conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto quanto possível, o descaminho daquele que conhece? Existem momentos na vida onde a questão de saber se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar ou a refletir. Talvez me digam que esses jogos consigo mesmo têm que permanecer nos bastidores; e que no máximo eles fazem parte desses trabalhos de preparação que desaparecem por si sós a partir do momento em que produzem seus efeitos. Mas o que é filosofar hoje em dia - quero dizer, a atividade filosófica - senão o trabalho crítico do pensamento sobre o próprio pensamento? Se não consistir em tentar saber de que maneira e até onde seria possível pensar diferentemente em vez de legitimar o que já se

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sabe? Existe sempre algo de irrisório no discurso filosófico quando ele quer, do exterior, fazer a lei para os outros, dizer-lhes onde está a sua verdade e de que maneira encontrá-la, ou quando pretende demonstrar por positividade ingênua; mas é seu direito explorar o que pode ser mudado, no seu próprio pensamento, através do exercício de um saber que lhe é estranho. O “ensaio” - que é necessário entender como experiência modificadora de si no jogo da verdade, e não como apropriação simplificadora para fins de comunicação - é o corpo vivo da filosofia, se, pelo menos, ela for ainda hoje o que era outrora, ou seja, uma “ascese”, um exercício de si, no pensamento. (FOUCAULT, 1998, p. 13) (Grifos meus)

Nessa perspectiva, percebemos o quão crítica é a Filosofia. Por vezes,

necessitamos construir, desconstruir e reconstruir conceitos. E estes passos estão

sempre inclusos em um processo de crítica: fazem parte de uma atitude de avaliar,

reavaliar, passar pelo crivo do julgamento e formular novamente os conceitos que

nos são dados. Este “jogo” torna-se incessante ao assumirmos uma postura crítica.

Tudo o que se sabe está sujeito a reformulações, mesmo as nossas verdades mais

legítimas. Nada é permanente, pois há um devir, há a possibilidade de revermos

nossos conceitos e existe sempre a chance de nos reapropriar de nossos

conhecimentos.

Nota-se que há, no senso comum, uma certa confusão entre criticar, no

sentido pejorativo, de discutir, nomear defeitos, etc., com o que estamos querendo

expressar aqui. Quanto a isso, falam e esclarecem muito bem Deleuze e Guattari:

Criticar é somente constatar que um conceito se esvanece, perde seus componentes ou adquire outros novos que o transformam, quando é mergulhado em um novo meio. Mas aqueles que criticam sem criar, aqueles que se contentam em defender o que se esvaneceu sem saber dar-lhe forças para retornar à vida, eles são a chaga da filosofia. São animados pelo ressentimento, todos esses discutidores, esses comunicadores. Eles não falam senão deles mesmos, confrontando generalidades vazias. A filosofia tem horror a discussões. Ela tem mais que fazer. (DELEUZE; GUATTARI, 2000, p.42)

A crítica envolve criação e movimento. Este movimento implica também

no método dialético, que envolve, em seu processo, três momentos: tese, antítese e

síntese. Ao confrontarmos uma tese com sua antítese, é possível obter uma síntese

e esta síntese pode vir a ser uma nova tese. Esse movimento gera uma

circularidade em que é viável pensar e repensar criticamente nossas relativas

“verdades”. Retornando às questões propostas no início do texto, podemos pensar

esses elementos em uma aula de filosofia embasada por um currículo crítico. Não

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basta simplesmente questionar, porquanto a crítica exige ainda que se crie e inove

conceitos, conforme nos fala Paulo Freire (1996, p. 86)

Estimular a pergunta, a reflexão crítica sobre a própria pergunta, o que se pretende com esta ou com aquela pergunta em lugar da passividade em face das explicações discursivas do professor, espécies de respostas a perguntas que não foram feitas. Isto não significa realmente que devamos reduzir a atividade docente em nome da defesa da curiosidade necessária, a puro vai-e-vem de perguntas e respostas, que burocraticamente se esterilizam. A dialogicidade não nega a validade de momentos explicativos, narrativos em que o professor expõe ou fala do objeto. O fundamental é que professor e alunos saibam que a postura deles, do professor e dos alunos, é dialógica, aberta, curiosa, indagadora e não apassivada, enquanto fala ou enquanto ouve. O que importa é que professor e alunos se assumam epistemologicamente curiosos.”

A dialogicidade é capaz de estimular a curiosidade e a criticidade. Um

indivíduo curioso vai atrás dos conhecimentos que pretende descobrir e desvendar,

indaga, questiona e pensa consistentemente. Assume, enfim, a postura de um

sujeito crítico, de alguém que está na sociedade e que reconhece a si, aos fatos e

aos outros com olhos ingenuamente curiosos. Um ser que se torna um agente

transformador, ao invés de um espectador passivo. Desta forma, percebemos,

então, que a crítica é algo que não pode faltar em uma aula de Filosofia que

pretenda formar, como diria Freire, em sua Pedagogia da Autonomia, “gente mais

gente”. Gente que possa ir além e buscar verdades que estão por detrás das

aparências e que consigam ser cada vez mais independentes, autônomas e

emancipadas.

É na esteira da pedagogia freiriana e de outras teorias filosóficas

contemporâneas que o termo crítica passa a ostentar um semblante social, fazendo

aparecer a pedagogia crítica que, de acordo com Porto (2006), “ ... é uma junção do

marxismo humanista, da Escola de Frankfurt, com a pedagogia do oprimido, de

Paulo Freire” (p.26).

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Ainda, relativamente à teoria crítica frankfurtiana, a importante herança

que nos deixa é a de trazer à tona um tipo de dialética crítica persistente, em

especial da sociedade industrial e tecnológica. Segundo alguns autores, em

especial, destaco Habermas7, talvez tenha sido excessivo o empenho da Escola de

Frankfurt em reduzir tecnologia à ideologia. Porém, é inegável que o tom crítico dos

frankfurtianos conferiu a sua sociologia uma intensidade inequívoca de consciência

crítica do capitalismo.

Como educadora, penso que a educação possui um compromisso com a

crítica. E a Filosofia, nesse meio, não pode abster-se da tarefa de formação de

mentes críticas. Um educador que esteja interessado em formar pessoas que

inovam, ousam e vão além da reprodução daquilo que a sociedade lhes apresenta,

que buscam aptidão para questionar o status quo que vivem e que não se rendem

aos apelos alienadores das ideologias e de um pensamento massificado, certamente

manterá uma relação com a criticidade. Nas palavras de Streck:

O objetivo principal da educação é criar pessoas que são capazes de fazer coisas novas, não de simplesmente repetir ... O segundo objetivo da educação é formar mentes que sabem ser críticas, sabem verificar e não aceitam tudo que lhes é oferecido. O grande perigo, hoje, é de slogans: opiniões coletivas, correntes de pensamento prontas para o consumo. Nós temos que ser capazes de resistir individualmente, de criticar, de distinguir entre o que pode e o que não pode ser provado... (1994, p. 122).

Desta forma, ao aceitarmos a premissa de que a Filosofia consiste em

buscar a elaboração de um pensamento que pensa a si mesmo e que leva o sujeito

a uma reflexão e a um pensar elaborado, interrogado e maduro; ao levarmos em

conta que seu ensino deve estar de acordo com tais fundamentos, concluímos que a

criticidade é uma competência que necessita estar presente em todo e qualquer

ensino que se diga filosófico e reflexivo.

Na sequência do texto, apresento o que vem a ser uma perspectiva

histórico-crítica, o referencial teórico aqui escolhido para dar sustentação e base

filosófica à pesquisa.

7 Sobre este tema, ver Pedro Demo em Solidariedade como efeito de poder, p. 31.

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49

3.3. A Perspectiva Histórico-Crítica no contexto do Ensino de Filosofia

Porque a Filosofia não se exerce no vazio, da mesma forma que a História não se dá em abstrato; quer dizer, a Filosofia é uma atitude que se dirige a algo e a História é

uma história concreta, portanto, história de alguma coisa.

Dermeval Saviani

Assumir o compromisso de realizar um trabalho condizente com a

perspectiva histórico-crítica de Dermeval Saviani, é, no mínimo, provocador para

mim, enquanto pesquisadora e docente. Como pesquisadora, considero um desafio

escrever um trabalho acadêmico a partir de um referencial tão relevante como esta

perspectiva o é, tendo em vista a responsabilidade que me cabe e que de mim pode

ser exigida. Como docente, também, por defender o engajamento da prática

educativa em que é proposta uma educação transformadora, que leva em conta

seres históricos e que valoriza a formação de mentes críticas.

Em linhas gerais, a Pedagogia Histórico-Crítica

(…) surgiu no início dos anos de 1980 como uma resposta à necessidade amplamente sentida entre os educadores brasileiros de superação dos limites tanto das pedagogias não-críticas, representadas pelas concepções tradicional, escolanovista e tecnicista, como das visões crítico-reprodutivista, expressas na teoria da escola como aparelho ideológico do Estado, na teoria da reprodução e na teoria da escola dualista. (SAVIANI, 2008, p. XIV)

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Assim, Dermeval Saviani, professor e pesquisador brasileiro, atento às

necessidades teóricas de sua época, propõe essa forma de conceber a educação.

Ao contrário de outros educadores, refuta formas não-críticas de docência e coloca-

se como contrário à Teoria Tradicional de Currículo8, ao Tecnicismo9 e às propostas

de uma Educação Redentora10; bem como todas as suas práticas, que elegem o

professor como detentor da verdade, que valorizam a memorização, afastam toda a

possibilidade de uma reflexão por parte do aluno e que elegem a educação como

um meio para redimir a sociedade à sua forma (perfeita) e original, respectivamente.

Mas, Saviani não parou por aí. Além de analisar as Teorias Tradicionais de Currículo,

ainda reservou um olhar atento para as Teorias Crítico-Reprodutivistas, que afirmam

a educação como uma reprodução da sociedade. Estas teorias traçam diagnósticos

do que acontece na educação inserida no âmbito social e a enxergam como mera

reprodutora dos problemas (e também dos aspectos positivos) dessa mesma

sociedade. De uma forma um tanto determinista, a educação funciona como um

reflexo do social, ou seja, ela encontra-se num processo de dependência e de

causalidade em relação ao seu meio social. Nas palavras do autor, a Teoria Crítico-

Reprodutivista

(…) revela-se capaz de fazer a crítica do existente, de explicitar os mecanismos do existente, mas não tem proposta de intervenção prática, isto é, limita-se a constatar e, mais do que isso, a constatar que é assim e não pode ser de outro modo.

8 A Teoria Tradicional de Currículo refere-se a uma concepção de ensino em que a crítica reflexiva, análises sociológicas e psicológicas da educação na sociedade são evitadas. Trata os conteúdos passados aos alunos como verdades inquestionáveis, onde o professor aparece como uma figura detentora de poder e como alguém que meramente transmite conhecimentos e reforça valores, sem a preocupação de problematizá-los.

9 O Tecnicismo é uma corrente pedagógica que tem inspirações behavioristas e busca adequar o ensino às exigências do mercado de trabalho capitalista. O aluno é, assim, “treinado” para o trabalho. O ensino, para esta tendência, é um mero condicionamento do aluno, através de reforços positivos ou negativos, visando à adaptação deste num futuro ambiente trabalhista. Para dar origem à produtividade, valorizam-se os métodos e as técnicas e evitam-se práticas de ensino de origem crítica.

10 A Educação Redentora é uma tendência filosófico-política que tem inspirações religiosas e confere à Educação a tarefa de “salvar” a sociedade e fazê-la retornar à sua verdadeira forma harmônica e orgânica. Para tal concepção, o que importa é manter e conservar a sociedade, regenerando os desvios que a mesma possa apresentar. De acordo com Cipriano Luckesi (1990, p.38), a Educação Redentora prioriza a formação da personalidade dos indivíduos e a veiculação dos valores éticos necessários à convivência social.

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(…) segundo ela, é impossível que o professor desenvolva uma prática crítica; a prática pedagógica situa-se sempre no âmbito da violência simbólica, da inculcação ideológica, da reprodução das relações de produção. (SAVIANI, 2008, p. 67)

Saviani concorda com os autores crítico-reprodutivistas no sentido de que

estabelecem e prioriizam a importância de se perceber a sociedade tal qual ela é,

com suas mazelas, suas peculiaridades e suas reproduções. O autor valoriza ainda

o fato de essas teorias realizarem a crítica ao existente e explicitarem os

mecanismos de como isto acontece, pois a percepção do que está dado pode ser

um primeiro passo para uma transformação social. No entanto, a diferença entre o

pensamento do criador da Pedagogia Histórico-Crítica e dos teóricos reprodutivistas

se dá pelo fato de esses últimos apontarem somente para a análise da educação no

meio social, sem, entretanto, proporem nenhum tipo de ação pedagógica para

transformar o meio social. Os crítico-reprodutivistas não apontam um caminho ou

uma saída para o problema da reprodução, simplesmente a mostram e apresentam

uma visão um tanto pessimista dos fatos sociais. Saviani, por sua vez, não se

contenta com a determinação da reprodução. Procura estratégia teórica a fim de ir

além, de procurar romper com as barreiras existentes no ambiente educacional e de

contribuir para a transformação social. Assim, para dar conta de uma teoria que

contemple a crítica, e que apresente proposições e indícios para a educação,

Dermeval Saviani propõe a Pedagogia Histórico-Crítica que, por sua vez,

(…) vai tomando forma à medida que se diferencia no bojo das concepções críticas, [ela] diferencia-se da visão crítico-reprodutivista, uma vez que procura articular um tipo de orientação pedagógica que seja crítica sem ser reprodutivista. (Idem, Ibidem, p. 65)

É relevante ressaltar que a pedagogia de Dermeval Saviani valoriza

constantemente o espírito crítico na prática pedagógica. Outro aspecto a se destacar

é o de que sua teoria deve ser trabalhada desde uma ótica histórico-social, em que

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se dá ênfase aos sujeitos inseridos numa sociedade; inserção esta que acontece

por meio de toda uma construção historicamente dada e que ainda salienta a

possibilidade de transformação da sociedade e da construção de novos momentos

históricos. E, não podemos esquecer, do papel da dialética no contexto educacional.

Esta teoria possui características peculiares que considero importantes e

adequadas para analisar a educação brasileira. Entre elas, ressalto o papel já citado

da dialética, onde se parte da síncrese, passa-se pela análise e chega-se à síntese.

E para o referencial teórico da Pedagogia Histórico-Crítica, este movimento de ideias

que ocorre no pensar dialético acontece também nos espaços educativos. João Luiz

Gasparin, na obra Uma didática para a Pedagogia Histórico-Crítica, aponta para o

fato de que:

Essa metodologia dialética do conhecimento perpassa todo o trabalho docente-discente, estruturando e desenvolvendo o processo de construção do conhecimento escolar, tanto no que se refere à nova forma de o professor estudar e preparar os conteúdos e elaborar e executar seu projeto de ensino, como às respectivas ações dos alunos. A nova metodologia de ensino-aprendizagem expressa a totalidade do processo pedagógico, dando-lhe centro e direção na construção e reconstrução do conhecimento. Ela dá unidade a todos os elementos que compõem o processo educativo escolar. (GASPARIN, 2009, p. 5)

Nessa metodologia, então, a dialética se dá da seguinte forma: parte-se

da prática (síncrese, tese, visão caótica do todo), teoriza-se sobre esta prática

(análise, antítese, momento de abstração e pensamento) e se retorna à prática

visando transformações (síntese, momento de ação sobre a totalidade). E esse

movimento se dá continuamente. A síntese dá origem a uma nova tese, que dá

origem a uma nova antítese e pode gerar uma nova síntese, dando margem para

novas (trans)formações. O próprio Dermeval Saviani afirma que a “pedagogia

histórico-crítica pode ser considerada sinônimo de pedagogia dialética” (SAVIANI,

2008, p. 87). Essa teoria só não foi assim denominada em função das diferentes

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53

conotações que a palavra dialética poderia causar nos leitores, como aproximações

com o dialógico, entre outras. Entretanto, o sentido empregado aqui para o termo

“dialético” seria o de um “movimento objetivo do processo histórico” (Idem, Ibidem,

p. 87).

O Ensino de Filosofia “encaixa-se” nesta perspectiva por vários aspectos.

Entre eles, o fato de a disciplina de Filosofia ser um exemplo de um saber que, na

realidade curricular brasileira, sofreu um enorme movimento dentro de seu processo

histórico, em função de sua exclusão dos currículos escolares e de seu recente

retorno. E esse movimento não se deu somente no plano das ideias, das abstrações

filosóficas e da dialética propriamente dita. Deu-se, também, em seu caráter visível,

social, humano e cultural.

A Filosofia, nesses cinquenta anos a que a pesquisa se refere, já foi vista

de várias formas, passou por diferentes etapas, o que configura, sem dúvida, um

processo dialético, tanto no seu acontecer/aparecer quanto no seu ressurgimento. A

Filosofia, enquanto disciplina escolar, no caso que aqui relatamos, está, sim,

impregnada da dialética.

No início da década de 1960, ela ocupava um espaço na grade curricular

e ainda era valorizada como uma disciplina cujas contribuições eram muito

relevantes para a formação dos alunos dentro do espaço pedagógico. Este

pensamento pode ser entendido como uma tese, como uma proposição inicial de

onde partimos para analisar os processos a partir dos quais essa disciplina é

analisada dentro do contexto desta pesquisa, ou seja, o ponto de saída, o

pensamento primeiro, que consistia no fato de a Filosofia ser vista como disciplina

relevante para o âmbito educacional.

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Visto que, no movimento dialético, uma tese pode gerar uma antítese, um

pensamento oposto e contrário ao anterior, a Filosofia, passa a ocupar, assim um

lugar totalmente oposto nas ideias e na realidade educacional brasileira. De

disciplina obrigatória e valorizada, passa a ser vista como perigosa, subversiva,

comunista e proibida nos espaços escolares em função do Golpe Militar de 1964 e

de todo o contexto ditatorial que o país se encontrava na época.

Enfim, através de uma tese e de uma antítese, a dialética nos proporciona

a capacidade de síntese, de uma junção dessas duas visões antagônicas de forma

que se possa ter uma visão geral da questão, de forma mais elaborada, pensada e

refletida e, ainda, de transformação das visões anteriores. Desta forma, depois de

36 anos de extinção e esquecimento da disciplina de Filosofia nos ambientes

escolares brasileiros, hoje temos o retorno da Filosofia nas escolas; e esta volta do

filosofar como uma atividade presente na grade curricular certamente acontece de

uma forma diferente daquele filosofar que tínhamos na década de 1960, pois, no

meio do caminho dialético, houve transformações que fizeram com que nossa visão

do filosofar nos dias de hoje venha impregnada desse trajeto, dessa caminhada – de

tese e antítese – e que, por sua vez, não se dá de forma dicotomizada.

Desta forma, esta dissertação pretende analisar o Ensino de Filosofia

desenvolvido no Colégio Municipal Pelotense, a partir dos elementos norteadores

oriundos de uma Filosofia da Educação que parte de pontos da Perspectiva

Histórico-Crítica, uma perspectiva que considera a educação como um elemento

que “interfere sobre a própria sociedade, podendo contribuir para a sua

transformação” (Idem, Ibidem, p. 93). Concordo com a Perspectiva Histórico-Crítica

e acredito que o Ensino de Filosofia possui o potencial de contribuir com a formação

da criticidade, de acrescentar elementos para que os alunos sintam-se mais

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conscientes de seu papel histórico-social e motivem-se a despertar para o sentido

de transformação intrínseco a cada cidadão.

E de qual transformação estamos falando? De uma espécie de conversão

que acontece desde o momento em que o homem modifica a natureza a partir da

intervenção nela realizada. Transformação a partir da valorização do trabalho, do

papel que cada um desempenha dentro da sociedade. Transformação que se dá

desde os primeiros instantes de vida, pois, a todo momento, somos seres em

mudança. Somos seres em desenvolvimento, em constante devir, em contínuo

processo de aperfeiçoamento. Seres que já se converteram, que já cresceram,

deixaram de ser crianças, adolescentes e jovens. Seres que ainda se modificarão e

que, por possuir a marca da transformação em suas existências, podem modificar o

meio em que vivem e em que estão inseridos. Esta é uma marca do

desenvolvimento histórico, a marca da mudança e da cultura. Nas palavras de

Saviani:

(…) o homem necessita produzir continuamente sua própria existência. Para tanto, em lugar de se adaptar à natureza, ele tem que adaptar a natureza a si, isto é, transformá-la. E isto é feito através do trabalho. Portanto, o que diferencia o homem dos outros animais é o trabalho (Idem, Ibidem, p. 11).

O trabalho ocupa, então, um lugar central da vida humana. É através do

trabalho que o homem age, modifica a natureza, transforma o mundo ao seu redor.

O trabalho dignifica o homem e através dele o homem constrói sua identidade, se

reconhece e se educa. Nesse sentido, a educação deve estar sempre acompanhada

de um trabalho produtivo, que se opõe ao trabalho alienado, realizado de forma

mecânica e sem reflexão. O trabalho alienado faz com que o homem não se

reconheça nos produtos resultantes de seu trabalho, como algo vindo de si mesmo.

Desta forma, produzir é educar e vice-versa. Quem produz, o faz porque aprendeu

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algo, pois não há produção sem um aprendizado prévio. Da mesma forma que quem

educa espera uma transformação no educando, almeja que este possa apresentar

tanto produções apre(e)ndidas no processo educativo quanto uma transformação no

seu todo enquanto ser humano. Quem aprende algo se modifica, se transforma, pois

possui um conhecimento que antes não tinha. Assim, todo processo educativo

envolve o fazer técnico, pois não há aprendizado sem ação, sem atividades tanto

concretas, quanto no âmbito da abstração.

Neste ponto, Saviani parte de influências marxianas, onde há a

valorização do trabalho como princípio educativo. O princípio da educação marxiana

é desenvolver a omnilateralidade do ser humano, tendo como princípio de síntese o

trabalho. O ser humano necessita produzir para ser essencialmente humano. A

Pedagogia do Trabalho11 é, então, uma marca marxista. O trabalho produtivo é

aquele em que o indivíduo produz a si mesmo e alimenta o próprio ser. O trabalho

possui também uma dupla face: a de dignificar a existência humana (trabalho

produtivo) e a de desumanizar o homem (trabalho alienado).

Partindo da perspectiva do trabalho como um princípio educativo e

levando em consideração que a abstração, o raciocínio lógico e outras habilidades

de pensamento com que a Filosofia lida se constituem em trabalhos, ainda que no

âmbito intelectual, percebe-se que a aula de Filosofia é um espaço onde se pode

pensar determinadas questões em sala de aula e produzir subsídios teóricos para a

ação na práxis social, pois “A teorização é um processo fundamental para a

apropriação crítica da realidade, uma vez que ilumina e supera o conhecimento

imediato e conduz à compreensão da realidade social” (GASPARIN, 2009, p. 7).

11 Existe, na literatura marxista, a expressão Escola do Trabalho, expressão cunhada pelo autor alemão Georg Kerschensteiner (1852-1932).

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Outro pedagogo que se enquadra na tendência histórico-crítica é o

francês Georges Gusdorf. Ao tratar do papel do professor de Filosofia, na obra

“Professores para quê? Para uma pedagogia da pedagogia”, é interessante a sua

consideração acerca da questão, englobando a criticidade e a importância do

espaço global, onde se situam a consciência histórica e social. Para ele:

A aula de filosofia é esse momento privilegiado numa existência onde o espaço mental se alarga até coincidir com o espaço vital inteiro. Sócrates conta, no Fédon, a sua aula de filosofia com Anaxágoras; ao jovem, perplexo e perturbado perante a desordem, a contradição das aparências, o filósofo ensina que só a intervenção do espírito pode introduzir a ordem por toda a parte. Revelação surpreendente e maravilhosa: o mundo repousa no pensamento (2003, p. 252).

Moacir Gadotti e suas ideias pedagógicas podem ser mencionados como

pertinentes à Perspectiva Histórico-Crítica. Ao formular a Pedagogia do Conflito,

Gadotti expõe a forma como concebe a educação. A Pedagogia do Conflito traz

elementos da categoria dúvida, em seu sentido cartesiano. Semelhante aos demais

autores trazidos nesse escrito, a proposta de Gadotti também valoriza as questões

relativas à criticidade, às relações da educação com o âmbito político e com a

historicidade. Analisa, ainda, com um olhar mais atento, questões relativas à

Filosofia da Educação. O autor define sua abordagem da seguinte forma:

Uma pedagogia do conflito é essencialmente crítica e revolucionária. Isso significa que ela não esconde as relações existentes entre educação e sociedade, entre educação e poder, ou seja, ela não esconde o papel ideológico, político , da educação (1985, p. 59).

Assim, ao tratarmos de uma Perspectiva Histórico-Crítica e não somente

da Pedagogia Histórico-Crítica, a dissertação pode basear-se em vários autores que

fazem parte de uma linha de pensamento afim, a partir de possíveis comparações e

categorizações de elementos em comum de uma teoria com a outra. Ao compartir

dos pressupostos desta perspectiva, Antônio Joaquim Severino aparece também

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como um autor que possui elementos em seus escritos que podem aproximá-lo

muito do paradigma Histórico-Crítico. Assim como Saviani, situa esses e outros

elementos no universo educacional. Sua obra mantém como axioma a ideia de que

o homem é definido por uma tríplice prática, em que se relaciona com o trabalho,

com a sociabilidade e consigo próprio, através da cultura simbólica. Nas palavras do

educador:

(…) o homem tem o seu ser definido pela sua prática real efetiva. Ele é aquilo que ele se faz, ao fazer as coisas. E para fazer as coisas, para agir, ele se coloca em relação com a natureza, com os outros homens e com os produtos simbólicos de sua subjetividade.

(…) o homem é um ser de relações efetivadas mediante uma prática complexa e ao longo de um tempo histórico. É o que se pretende dizer quando se afirma que o homem é um ser histórico-social (1994, p. 108, grifos do autor).

Por fim, gostaria de citar Paulo Freire como um autor que possui os

requisitos para ser classificado como pertencente à perspectiva da qual falamos.

Freire, ao valorizar a criticidade, a importância de se respeitar o “mundo”, os

saberes dos educandos (seus contextos histórico-culturais-políticos), ao apostar na

possibilidade de transformação e ao trazer inspirações marxianas da mesma forma

com que Saviani as carrega, mostra que tem muita coisa em comum com os demais

autores aqui citados. Nas palavras de Freire, identifico o método dialético na sua

definição do que vem a ser um bom professor:

Neste sentido, o bom professor é o que consegue, enquanto fala, trazer o aluno até a intimidade do movimento de seu pensamento. Sua aula é assim um desafio e não uma “cantiga de ninar”. Seus alunos cansam, não dormem. Cansam porque acompanham as idas e vindas de seu pensamento, surpreendem suas pausas, suas dúvidas, suas incertezas (1996, p.86, grifos do autor).

Dessa forma, a pesquisa realizada foi norteada por diversos olhares,

mantendo presentes alguns princípios e pressupostos centrais, que serviram para

nortear os caminhos metodológicos percorridos. Dentre os quais se destacam:

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− a valorização de um pensar crítico nos ambientes pedagógicos;

− a consciência de que os envolvidos na pesquisa (professores, alunos,

funcionários) são indivíduos dialeticamente histórico-políticos;

− a importância do trabalho produtivo como um elemento pedagógico e

como um elemento de transformação social; entre tantos outros pontos presentes na

perspectiva da Pedagogia Histórico-Crítica.

Tais pressupostos influenciaram os processos, tanto de busca de dados,

quanto de análise. Dados e análises que, acredito, possam contribuir para que a

história do Ensino de Filosofia no Colégio Municipal Pelotense seja contada e possa

representar uma contribuição para aqueles que porventura se lancem a pesquisar

sobre a temática em questão.

O Ensino de Filosofia é aqui pesquisado pelo exemplo de uma escola

local. Entretanto, mesmo se tratando da análise de um caso, os processos filosófico-

formativos não acontecem de modo estanque e isolado, mas no contexto de uma

educação que clama por seres mais críticos e conscientes de seu papel histórico

dentro da sociedade da qual fazem parte.

Assim, minha opção pela visão histórico-crítica se dá pelo fato de

contemplar os princípios elencados, os quais considero apropriados e relevantes

para tratar do assunto em questão.

A seguir, passo à pesquisa de fato. Inicio pelo Ensino de Filosofia no início

da década de 1960, nos anos que antecederam o Golpe Militar de 1964 e,

posteriormente, passo aos períodos subsequentes, intencionando contar a história

da disciplina no período que me proponho retratar.

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PARTE II – ENSINO DE FILOSOFIA NO COLÉGIO MUNICIPAL PELOTENSE

DE 1960 A 2008

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CAPÍTULO 1. O ENSINO DE FILOSOFIA NO COLÉGIO MUNICIPAL PELOTENSE: PERÍODO ANTERIOR AO GOLPE MILITAR DE 1964

Num mundo destinado ao silêncio, a Filosofia, que é discurso, talvez deva ser

defendida e talvezvalha a pena lutar pela liberdade de

interrogar.

Marilena Chauí

1.1. Contextualização histórica

1960. Início de uma nova década. Jânio Quadros é eleito presidente do

Brasil. Com uma campanha bem popular, traz, como símbolo, sua “vassourinha” e,

como objetivo, apresenta o desejo de “varrer” toda a corrupção do país. Contudo, os

ideais imaginados por Jânio Quadros não se concretizam de modo tão fácil. Esse

período representa um momento de crise e de grandes mudanças, tanto no Brasil,

quanto em outros países. Em 13 de agosto de 1961, fora construído o Muro de

Berlim, na Alemanha. A construção do muro se dá como uma forte tentativa de

implantação do comunismo no país, representava uma ideia inspirada nos princípios

de Karl Marx e simbolizava a divisão do país em dois mundos. De um lado, estava

Berlim Ocidental com seu sistema político capitalista e, de outro, Berlim Oriental com

o sistema comunista, baseado no pensamento marxiano.

Dias após a construção do Muro de Berlim, em 25 de agosto de 1961,

acontece no Brasil a renúncia de Jânio Quadros. No dia 7 de setembro desse

mesmo ano, ocorre, depois de muita polêmica, a posse do vice-presidente João

Belchior Marques Goulart, popularmente chamado de “Jango”.

Era um período conturbado, em que ideais opostos mediam forças. De um

lado, Jango, com suas tendências ideológicas e de outro, representantes de direita,

que se opunham e temiam que o modelo socialista se implantasse no Brasil, como

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ocorrera em outros países. Um exemplo disso pode ser visto no manifesto que os

senhores Silvio Heck, ministro da Marinha, em conjunto com o marechal Odílio

Denys, ministro da Guerra e com o brigadeiro Grün Moss encaminham na época à

nação:(…) no quadro da grave tensão internacional em que vive, dramaticamente, o mundo de nossos dias, com a comprovada intervenção do comunismo internacional na vida das ações democráticas e, sobretudo, nas mais fracas, avultam, à luz meridiana, os tremendos perigos a que se acha exposto o Brasil. (…) Estão as Forças Armadas profundamente convictas de que, teremos desencadeado no país um período inquietador de agitações, de tumultos e mesmo de choques sangrentos nas cidades e nos campos, de subversão armada, enfim através da qual acabarão ruindo as próprias instituições democráticas e, com elas, a justiça, a liberdade, a paz social, todos os mais padrões da cultura cristã. Na Presidência da República, em regime que atribui ampla autoridade e poder ao chefe do Governo, o Sr. João Goulart constituir-se-á, sem dúvida alguma, no mais evidente incentivo a todos aqueles que desejam ver o país mergulhado no caos, na anarquia, na luta civil. As próprias Forças Armadas, infiltradas e domesticadas, transformar-se-iam, como tem acontecido noutros países, em simples milícias comunistas. Arrostamos, pois, o vendaval já esperado, das intrigas e das acusações mais despudoradas, para dizer a verdade tal como é, ao Congresso dos representantes do povo e, agora, ao próprio povo brasileiro. As Forças Armadas estão certas da compreensão do povo cristão, ordeiro e patriota do país (Apud SILVA, 1975, p. 47).

Jango era visto como alguém que despertava um certo grau de

instabilidade e receio para os interesses dos representantes das forças militares.

Mesmo assim, através da Campanha da Legalidade, coordenada por Leonel Brizola,

conseguiu tomar posse e assumir o cargo da presidência do país até 1964.

Nesse período, uma Guerra Fria estava consolidada no ambiente global.

Sem armas bélicas, nem disputas sangrentas, esta guerra se traçava no âmbito

ideológico e social. De um lado, havia os países que defendiam que o socialismo

fosse o regime vigente e, de outro, aqueles que eram a favor de sociedades

capitalistas.

O contexto desenhado, no campo da educação brasileira, trazia uma

reforma. Era criada a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) de 1961. Através da Lei 4.024,

de 20 de dezembro de 1961, havia a possibilidade dos Conselhos Estaduais de

Educação de indicar disciplinas complementares e optativas aos estabelecimentos

de ensino, dita desta forma:§1º – Ao Conselho Federal de Educação compete indicar, para todos os sistemas de ensino médio, até cinco disciplinas obrigatórias, cabendo aos conselhos estaduais de educação completar o seu número e relacionar as de caráter optativo que podem ser adotadas pelos estabelecimentos de ensino (BRASIL. Decreto de lei no 4.024, de dezembro de 1961).

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A Filosofia passa, de disciplina obrigatória ao posto de disciplina

complementar, ou seja, optativa aos estabelecimentos de ensino. Esta era, então, a

situação da disciplina de Filosofia no contexto que antecedia o Golpe Militar de

1964. Os fatos que se sucederam nos anos seguintes, relativos à retirada da

Filosofia dos currículos escolares, não aconteceram de um instante para o outro,

foram o mais claro reflexo de um processo que já vinha acontecendo nos anos

anteriores e que sofreu influência de todos os acontecimentos ocorridos tanto no

restante do Brasil quanto em outras partes do mundo.

Cruz Costa pode ser visto como um “visionário” desses fatos. Em sua

obra, Panorama da História da Filosofia no Brasil, escrita no ano de 1960, o autor já

nos fornece algumas pistas do que estava para acontecer nos próximos anos:Discutiu-se, e continua a ser discutida, a posição da Filosofia no currículo secundário. Há quem hoje queira eliminá-la dêste currículo como ontem também houve quem assim pensasse (COSTA, 1960, p. 112).

Adiante, o autor volta a falar sobre a iminência da extinção do Ensino de

Filosofia no Brasil, que se daria alguns anos após: ”Proponho, desde logo, (…) uma declaração, firme e decidida a favor da manutenção do ensino da Filosofia no currículo do ensino secundário, hoje ameaçado por uma nova reforma que, parece, pretende eliminá-lo” (Ibidem, p. 113).

Os acontecimentos que viriam a seguir foram intuídos de alguma maneira

por professores atentos aos acontecimentos sóciopolíticos de seu país, como foi o

caso do prof. Cruz Costa.

Sobre o Decreto-Lei nº 4.024, também chamado de Lei de Diretrizes e

Bases de 1961, e a posterior extinção do Ensino de Filosofia no contexto brasileiro,

Marilena Chauí fala:Cumpre lembrar, antes de tudo, que a supressão é facilitada pelo fato de ter sido precedida pela passagem da Filosofia à condição de optativa, de sorte que sua quase inexistência anterior preparou gradativamente um consenso difuso acerca de sua abolição necessária (1978, p. 8).

Assim, a retirada do Ensino de Filosofia das escolas não foi um processo

que se deu de um instante para o outro. Aconteceu através de pequenas mudanças

iniciais nos currículos, até o momento do ato derradeiro, o da implantação de um

sistema de ensino que não mais privilegiava o pensar e a reflexão filosófica.

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1.2. Ensino de Filosofia no CMP – Início dos Anos 60

Podemos dizer que o início da década de 1960, período de tempo

escolhido para dar início à história do Ensino de Filosofia no educandário pelotense,

foi o “começo do fim”, o ponto de partida para todo o processo que irá se desenrolar

pelas próximas décadas, chegando até o ano de 2008. Felizmente, podemos dizer

que este “fim” foi ocasional e não definitivo. Todavia, merece que nos debrucemos a

desvendar todos os seus processos, a fim de que possamos estar esclarecidos com

relação aos episódios que culminam com a suspensão do Ensino de Filosofia na

história brasileira.

Diante dos fatos, o Ensino de Filosofia realizado no Colégio Municipal

Pelotense, logicamente, não poderia dar-se de forma isolada. O Colégio não era

uma “ilha”, distante e isolada do que acontecia em relação à legislação e ao contexto

de seu país e da história mundial. Uma instituição escolar é composta por pessoas

que vivenciam uma conjuntura; e estas pessoas sofrem influências ideológicas e

políticas que afetam suas relações no meio social do qual fazem parte. E a escola,

depois da família, é o grupo social em que os estudantes por mais tempo convivem,

consistindo no espaço onde são construídas visões, amizades e direcionamentos

diversos. De acordo com Camargo,As sociedades buscaram estabelecer o que deveria constituir a educação em uma determinada época e, a partir do aparecimento do Estado Moderno, foi sendo normatizada através das constituições nacionais e de legislações específicas. Essas leis tinham a intenção de definir os objetivos, os meios e as finalidades da educação, originando diversas ideologias e formas de conceber a educação, como também refletindo os anseios e o projeto político e social de cada sociedade. As instituições, via de regra, estiveram quase sempre submetidas ao controle centralizador do Estado. Entretanto, considerando a dinamicidade e a complexidade social, a educação foi sendo permeada por movimentos, anseios e desejos. Cada indivíduo, grupo, comunidade e instituição corroboram afirmando/ negando/ reconstruindo/ cultivando a educação e, com isso, transformando-a e sendo transformado por ela. Não há como restringir a educação como mera mantenedora, reprodutora, redentora ou transformadora da vida social (CAMARGO, In CORSETTI; TAMBARA, 2008, p. 253).

Assim, o Colégio Municipal Pelotense teve suas peculiaridades, seus

aspectos característicos e, mesmo sofrendo as influências inevitáveis do Estado,

ainda é capaz de revelar sua riqueza, além de representar, enquanto espaço

escolar, os anseios e desejos daqueles que por lá passaram.

Na esteira deste pensamento, Amaral (2003, p.12) nos fala:A compreensão de nossa realidade atual, suas características e possibilidades futuras nos remetem sempre à busca da compreensão dos

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65

percursos trilhados, às origens do processo que estamos vivenciando. Um caminho necessário à contextualização deste processo leva à necessidade de regionalizar os estudos históricos, limitando no tempo e no espaço o trabalho de investigação histórica.

A partir desse objetivo, podemos enxergar o Ensino de Filosofia como um

processo que muito tem a nos contar não apenas para que possamos compreender

como se ensina e se aprende a filosofar. O ensino da disciplina foi profundamente

afetado por fatores diversos que nos fornecem indícios dos aspectos sociológicos,

políticos, culturais e pedagógicos de cada época.

Como o colégio é uma instituição municipal, penso que seja relevante

citar os nomes dos governantes de cada época. Nesse período, Pelotas tinha como

prefeito o Sr. João Carlos Gastal (PTB). No Colégio Municipal Pelotense, o diretor

da escola, de 1960 a 1963, foi o Prof. Rafael Alves Caldela.

A disciplina de Filosofia foi ministrada pelo Prof. Dr. Silvino Lopes Neto.

Em entrevista realizada na ocasião da pesquisa, através de memórias riquíssimas

que muito me ajudaram a compreender “aqueles tempos”, o professor Silvino

mostrou-me diversos elementos que nos ajudam a entender como acontecia o

ensino e como acontecia a condição de ser o professor de Filosofia no CMP naquela

época.

O professor Silvino Lopes Neto começou sua carreira docente aos

dezesseis anos, lecionando Língua Portuguesa no Colégio Gonzaga.

Posteriormente, cursou paralelamente os cursos de Direito e Licenciatura em

Filosofia, ambos oferecidos pela Universidade Católica de Pelotas. Após sua

formatura no curso de Filosofia, que se deu em 1955, em data não lembrada pelo

entrevistado, o professor foi contratado pelo município de Pelotas para lecionar as

disciplinas de Filosofia para os cursos Clássico e Científico, e Literatura para o

Curso Clássico. O professor não recorda exatamente até que ano permaneceu

como docente na instituição, mas estima-se que sua saída tenha se dado entre os

anos de 1962 e 1963, através de seu pedido de demissão, em função do desejo de

se dedicar de forma mais sistemática aos estudos relativos a sua formação em Livre

Docência na área do Direito. A carga horária dedicada à disciplina de Filosofia era

de três aulas de 45 minutos por semana, a serem oferecidas a cada turma, o que

nos mostra claramente uma valorização significativa em relação ao espaço

reservado ao ensino da disciplina na grade curricular do colégio nesta época.

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Questionado sobre suas recordações relativas a estas aulas e ao

ambiente em que se desenvolvia o Ensino de Filosofia naquela instituição, o

professor respondeu-me que “são as melhores possíveis”12. Lopes Neto relatou-me

que “no Pelotense, havia um clima muito interessante”. Mesmo tendo muito apreço e

admiração pela escola que estudou e que na época mantinha uma espécie de

rivalidade com o Pelotense13, o Colégio Gonzaga, o professor manifesta o gosto

que teve em fazer parte do corpo docente do CMP. O educador ainda ressalta

inúmeras qualidades relativas aos discentes dessa época. Em anos em que o

acesso ao ensino era ainda muito elitizado para a população brasileira, poucos

ainda eram os que ocupavam espaços no Ensino Superior, os alunos “sabiam que

precisavam estudar muito para terem êxito. E eu tive alunos de elite lá no

Pelotense”. Outro ponto que o professor nos conta é que sua idade na época, em

torno de 23 anos, era próxima da idade dos alunos, então com 16, 17 anos, o que

facilitava a relação professor-aluno, sem, no entanto, prejudicar sua figura de

autoridade enquanto professor, bem como influenciar a disciplina necessária em

sala de aula.

A metodologia utilizada pelo docente para nortear suas aulas é descrita a

seguir:Eu trabalhava com exposição participativa. Provocação mediante questionamentos embaraçantes, para criar problemas para eles. As coisas que eles faziam, se era bem, se era mal ... Ênfase na necessidade de desenvolver um senso crítico sobre si próprio e suas atitudes. Exercício sobre a postura correta na convivência. Cosmovisão racional, reflexão sobre o projeto existencial. Aquela história que deixava os adolescentes enlouquecidos: “Da onde eu vim? Para onde vou?” E viam textos selecionados também que eram interpretados por eles e discutidos.

É possível observar que o professor trabalhava o Ensino de Filosofia

através de temas selecionados da própria Filosofia. Sua opção era a de não ensinar

a disciplina através da História da Filosofia, mas a partir de temáticas de interesse

dos alunos. Sem desprezar a História nem seus representantes, o professor fazia as

inserções relativas à História da Filosofia e aos filósofos que desenvolveram teorias

que sustentam temas, como ele mesmo nos fala “Ao longo das apresentações e

discussões dos conteúdos, remissão aos sistemas historicamente destacados e

seus protagonistas”.12 Todas as citações selecionadas da fala do professor Silvino Lopes Neto foram extraídas de entrevista coletada

por mim tendo como finalidade a contribuição nesta dissertação, disponível integralmente no item denominado “Apêndice” da dissertação.

13 Denominação pela qual popularmente se menciona o Colégio Municipal Pelotense nos dias atuais. Vale lembrar que o mesmo também é chamado pelas suas atuais iniciais, as letras “CMP”.

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67

Cabe salientar que a escolha do professor (a de trabalhar com temas) é

uma corrente vigente até os dias hodiernos quando se trata de ensinar Filosofia. Há

os professores que preferem ensinar este saber a partir da ordem cronológica da

disciplina, ou seja, a partir de sua construção histórica. E há os que se identificam

com uma abordagem diferente, que preferem tratar, primeiramente, de temas

filosóficos e, a partir daí, apresentar seus processos históricos, como nos mostra o

exemplo do professor Silvino Lopes Neto. É importante a consideração de Lorieri

(2002, p. 51) acerca desta questão, da metodologia de trabalhar Filosofia a partir de

temas:Os conteúdos da Filosofia são temáticas que se apresentam na forma de certas perguntas e para as quais há diversas respostas, algumas das quais presentes com mais força no cultural de cada época histórica. Essas temáticas precisam estar sempre sendo examinadas, avaliadas e, eventualmente, reelaboradas ou mesmo substituídas. Não só: faz parte dos conteúdos da Filosofia uma maneira própria de trabalhar as temáticas, as perguntas e as respostas. Essa maneira própria, ou o método, torna-se conteúdo à medida que é constantemente examinado, estudado, avaliado e reconstruído. Há, aqui, algumas ideias importantes e, ao mesmo tempo, problemáticas – como tudo na Filosofia. No entendimento dos conteúdos do ensino da Filosofia, incluímos certas temáticas, questões ou perguntas, respostas diversas, exame, avaliação, reelaboração e substituição de respostas, métodos de investigação filosófica...

A partir do relato do professor, penso que sua forma de trabalhar segue

nessa linha de planejamento didático. Outro ponto a salientar é a preocupação do

educador com que suas aulas não fossem dogmáticas e em que nelas houvesse um

incentivo ao pensar crítico. Nas palavras do Professor Lopes Neto:Eles ficavam realmente interessados e [eles] debatiam muito, entre eles também. O Pelotense tinha essa situação de que é como se eles fossem livres pensadores, aquele sistema francês dos livres pensadores. Então, eles eram assim, libertários e tudo mais e eu insistia em não serem dogmáticos. Não serem dogmáticos ... eu exaltava muito o senso crítico.

Em relação às escolhas por parte do Professor Lopes Neto de trabalhar a

partir de temas centrais da Filosofia e de manter o objetivo de formar alunos críticos,

libertários e não-dogmáticos, Elisete Tomazetti, em seu artigo Ensino de Filosofia e

Formação do Pensamento Crítico, nos fala:(...) uma das perspectivas mais salientadas, escritas e apresentadas por aqueles que vêm pesquisando e refletindo sobre o ensino de filosofia tem sido a superação da tradicional aula de História da Filosofia ou da aula como um mero exercício de verbalização de opiniões, sem qualquer sustentação crítica e teórica (In: GHIGGI, PITANO, PIZZI, 2009, p. 34).

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Ou seja, é possível dizer que, já em 1960, o educador responsável pela

disciplina de Filosofia no CMP trabalhava com uma concepção de ensino filosófico

que é defendida por estudiosos da área, nos dias atuais. Vale ressaltar que o fato de

ensinar Filosofia e filosofar a partir de temas não é algo novo. Os próprios filósofos

clássicos, na Grécia Antiga, tinham por metodologia filosófica esse princípio. Os pré-

socráticos, por exemplo, indagaram tendo como tema norteador o problema

cosmológico. Sócrates, Platão e Aristóteles também partiam de temas diversos para

iniciar suas indagações filosóficas. Como ainda não existia uma História da Filosofia

consolidada, como temos hoje, a tendência de ensinar Filosofia e filosofar a partir de

temas era uma corrente forte. Nos pensamentos dos filósofos que vieram

posteriormente, foi possível uma nova forma de filosofar: questionar a partir do que

outros pensadores já o fizeram para, assim, ser possível novos pensamentos,

dialeticamente falando; o que acredito que seja um dos objetivos da abordagem de

se ensinar a partir da História da Filosofia .

O método de trabalhar Filosofia a partir de temas vai ao encontro de uma

recusa aos métodos tradicionais de ensino. A escolha por não se trabalhar

diretamente com a História da Filosofia se dá também em função da não-intenção de

exigir dos alunos memorizações a respeito de datas, nomes de filósofos, escolas

filosóficas, títulos de obras e citações prontas. Pretende-se justamente o contrário,

intenciona-se que os alunos possam pensar filosoficamente e logrem adquirir uma

certa habilidade de questionamento em relação ao mundo em que vivem. No

entanto, como nos adverte Tomazetti, uma aula assim também não deve resumir-se

a simples manifestações vazias de opiniões, partindo em direção ao universo da

doxa. Os elementos que fazem com que uma aula filosófica não se resuma

simplesmente à doxa ou ao dogmatismo são a crítica e a sustentação teórica, o

conhecimento de certos conteúdos. Ao conhecer certos conteúdos apresentados na

História da Filosofia, o aluno é capaz de identificar correntes de pensamento e de

entender o método de trabalho filosófico. Como nos diz Paulo Freire,O melhor aluno de filosofia não é o que disserta, ipsis como na universidade, não é o que mais memorizou as fórmulas, mas sim o que percebeu a razão destas. O melhor aluno de filosofia não é o que disserta, ipsis verbis, sobre a mudança em Heráclito; sobre o problema do Ser em Parmênides; sobre o “mundo das idéias” em Platão; sobre a metafísica em Aristóteles; ou mais modernamente, sobre a “dúvida” cartesiana; a “coisa em si” em Kant; sobre a dialética do Senhor e do Escravo em Hegel; a alienação em Hegel e em Marx; a “intencionalidade da consciência” em Husserl. O melhor aluno de

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filosofia é o que pensa criticamente sobre todo este pensar e corre o risco de pensar também (1983, p. 35, grifos do autor).

O aluno de Filosofia do Colégio Pelotense daquela época, se não era “o

melhor”, como nas palavras de Freire, apresentava algumas peculiaridades.

Conforme as lembranças do professor entrevistado, o aluno do CMP era dotado de

um perfil característico. Tinha o verdadeiro “espírito Gato Pelado”, da forma mais fiel

possível. Eram muito interessados nas aulas, eram politizados e com intenções

libertárias. Como características principais do Colégio Municipal Pelotense, o

professor enumera os fatos de o colégio ter sido criado pela Maçonaria14 e também

de, na época, ser o único colégio misto, aceitando meninos e meninas que

frequentavam o mesmo espaço. A classe média-baixa o buscava em função da

instituição ser pública; a Classe “A”, por sua vez, escolhia o CMP em função da

qualidade do ensino e por não ter um direcionamento religioso específico. As

famílias não católicas o preferiam para a educação dos seus filhos e a ausência da

religiosidade influenciava a formação do espírito crítico nos alunos. O Colégio

mantinha ainda um Grêmio Estudantil com muita representatividade, que organizava

passeatas e festivais que escandalizavam os setores conservadores da sociedade.

No Curso Científico, os alunos eram interessados em carreiras como Medicina,

Odontologia, Agronomia e Engenharia e eram muito dispostos para debates em sala

de aula. No Curso Clássico, as turmas eram pequenas, predominantemente

femininas e as alunas tinham intenções de seguir carreiras em cursos mais

direcionadas às áreas das Ciências Humanas, como Direito, História, Geografia e o

Magistério em geral. Amaral (2005, p. 133) reforça a observação do entrevistado em

relação à participação discente do educandário:As atividades políticas e culturais do Grêmio de Estudantes foram reconhecidamente marcantes na vida da cidade nas décadas de 40, 50 e 60, período em que o Brasil viveu um processo de democracia e intenso populismo. Os alunos, neste período, organizados pelo grêmio, manifestavam-se através dos Festivais dos Gatos Pelados, de passeatas que realizavam pela cidade e de jornais e revistas literárias. O humor,

14 A Maçonaria consiste em um instituição filosófica e filantrópica que preza pelos princípios de liberdade, igualdade e fraternidade. Os ideais da Maçonaria casam com a proposta de ensino no Pelotense pelo fato do colégio ter sido fundado por maçons, que passaram ao educandário a proposta de uma escola condizente com o que eles acreditavam e que viam na Educação uma forma eficaz de propagar suas ideias. O Pelotense, anos depois, mesmo não tendo mais influências diretas e nenhuma ligação com qualquer Loja Maçônica, conservou esses princípios e os manteve como uma identidade do educandário. Para maiores esclarecimentos sobre a relação entre o CMP e a Maçonaria, indico a leitura de AMARAL, Giana Lange do. O Gymnasio Pelotense e a Maçonaria: uma face da história da educação em Pelotas. Pelotas: Seiva Publicações, 2005.

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geralmente refinado e irônico, era a tônica de todas estas manifestações que tinham um forte conteúdo político de protesto. É preciso ressaltar, entretanto, que essa atuação dos alunos já era uma prática que remontava aos primeiros anos do século XX, só que dentro de um outro contexto histórico, mas tendo sempre como pano de fundo os ideais maçônicos de liberdade, patriotismo, culto à verdade e à justiça. Esta seria, segundo os maçons, a única forma de criar cidadãos capazes de defender seus direitos e de reconhecer seus deveres, assim como os interesses de sua pátria.

É interessante perceber que todos esses elementos culturais, históricos,

sociais e políticos, narrados pelo professor e contextualizados no início deste

capítulo, influenciavam diretamente e refletiam na dinâmica das aulas e no cotidiano

escolar, de acordo com o ex-professor do Colégio.

Como referências teóricas e instrumentos de trabalho para suas aulas, o

professor Silvino Lopes Neto adotava os seguintes livros didáticos:Na Introdução à Filosofia, Ortega y Gasset (Que es filosofía e Rebelião das Massas), que também entrava no Socialismo, na rebelião das massas, em Marx e no marxismo. Garcia Morente que tem uma introdução muito boa à filosofia e Julian Marias, isso na área de introdução. Usava-se na época também o Charles Lahr, que é um padre francês, que tinha uma obra muito boa. E era atualíssimo para a Filosofia Cristã ... Jacques Maritain, Filosofia Romana. O Hessen, por causa da Teoria do Conhecimento. Os Existencialistas e Marxistas naquelas implicações da vida mesmo e do ser. Na História da Filosofia, eu usava o Abbagnano. Usava muitos outros, mas estou só citando estes porque estes dois eram muito acessíveis pra eles. O Leonel Franca era um jesuíta tinha uma “História da Filosofia” muito conhecida no Brasil. É uma síntese, mas ele é francamente escolástico, como jesuíta, mas é um homem intelectualmente com uma pesquisa muito boa. E tinha um outro menos profundo que era o Theobaldo Miranda Santos. Se usava também. Mas, esse era livro didático mesmo, as normalistas usavam e tudo mais. O Leonel Franca se usava muito na faculdade de filosofia por causa do tomismo. Jacques Maritain era um tomista intransigente. E esses dois eram em português, então era muito fácil para eles consultarem. Na pedagogia, elas usavam largamente o Theobaldo Miranda Santos porque ele também tratava de outros dados, de outros aspectos da Filosofia vinculados à Pedagogia e não só História da Filosofia. Mas esses eram livros de divulgação acessíveis para eles. Mas eles não compravam livros porque não tinham dinheiro para isso.

Perguntado se havia algum filósofo ou escola filosófica especialmente

enfocados nas aulas e qual(is), o professor aponta que:

Quando eu falava em Lógica Formal, eu falava em Aristóteles. Em Gnosiologia, eu falava em Descartes, por causa do método, da busca pela verdade. E Kant, nos limites do conhecimento. Depois, eu dava Axiologia. Na hierarquia dos valores, a bipolaridade, a presença inevitável das valorações existenciais, e aí começava a trabalhar com esses filósofos dos valores e tudo mais. Aqui na definição de Direito, Johannes Hessen. Na Teoria do Conhecimento, também Johannes Hessen, na Gnosiologia, que tem uma obra muito boa e que é uma obra acessível, que se chama “Teoria do Conhecimento”. Quando entrava em Ontologia, aí também falava de Aristóteles. Ser e não ser, falava também em Tomás de Aquino por causa da linha aristotélica. Mas aí era indispensável falar também sobre Platão. Vinha o Livre-arbítrio, a pressão determinista, todos esses elementos. E Platão

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sobretudo na Ética. Além de Aristóteles com a “Ética a Nicômano”, também os diálogos de Platão, sobretudo por causa do bem. Como o bem era a essência do pensamento de Platão, a ideia era a de agir com correção e de acordo com a decência imprescindível. Eu batia muito com eles na decência.

Em relação aos conteúdos trabalhados em sala de aula, como dito

anteriormente, eram selecionados temas da Filosofia. Dentre os assuntos, eram

trabalhados os já citados e outros de conveniência com a necessidade dos alunos.

Acredito que estes mereçam nossa atenção. Em meio a todos os temas clássicos do

filosofar, apareciam nas aulas de Filosofia do CMP do início da década de 60, outros,

próprios daquela época. Segundo documentos arquivados no colégio, como Listas

de Pontos Organizados para avaliações15 e de acordo com informações confirmadas

pelo professor, eram discutidos no ambiente desta disciplina curricular os conteúdos

de Parlamentarismo, Fases do Nirvana, Psicologia (Métodos, Conceito, Objeto e

Atualidade), Estudo do Eu, Discussão Sobre o Instituto da Pena de Morte, Budismo,

O Poder Executivo (Atribuições), Presidencialismo, O Desquite na Legislação

Brasileira, Personalidade (Sínteses) e Faculdades Psíquicas.

Vale observar que esses pontos pendiam para algumas áreas,

particularmente. Em meio a essas áreas, estava a Psicologia, bem como conteúdos

que são de sua alçada, como os de Estudo do Eu, Personalidade e Faculdades

Psíquicas. Como motivos pertinentes aos da Psicologia adentrar as aulas de

Filosofia, vale observar que nesse período a Psicologia consolidava-se enquanto

ciência e que, na cidade de Pelotas, ainda não havia nenhum curso superior de

Psicologia, o qual foi criado pela Universidade Católica de Pelotas (UCPel) somente

na década de 1980. Assim, eram tratados, no curso de Filosofia, alguns pontos

relativos à Psicologia, na instituição formadora do professor da época.

Sobre temas sociais e políticos, aparecem os conteúdos de

Parlamentarismo, Presidencialismo, O Poder Executivo (Atribuições), O Desquite na

Legislação Brasileira e Discussão Sobre o Instituto da Pena de Morte. A respeito dos

temas envolvendo regimes políticos, Lopes Neto nos fala:Isso tudo era exatamente por causa da discussão que havia no contexto político, porque nós estávamos saindo de um contexto de ditadura, se imaginava e se falava muito em se colocar, e aliás se colocou o parlamentarismo, pois não sei se você se lembra que o João Goulart é que foi um presidente parlamentarista, porque o João Goulart assumiu o governo e a oposição não permitiu que ele exercesse a presidência no regime presidencialista, porque ele teria muito poder.

15 Disponíveis nos anexos deste trabalho.

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(…) Mas agora, depois nós vínhamos discutindo de novo se viria ou não o parlamentarismo, daí o interesse dos alunos. E como a gente vive procurando o interesse dos alunos, nós chegamos também a isso.

Assim, temas que a princípio não são do campo da Filosofia, eram

também tratados pela mesma. Fica, então, a seguinte questão: como um professor,

atento ao seu tempo, pode desconsiderar temas candentes no contexto de suas

aulas? Ao perceber o interesse e as necessidades dos alunos, o ex-professor de

Filosofia levantava os temas, instigava o debate e fazia as inserções filosóficas.

Acredito que o tema sobre O Desquite na Legislação Brasileira tenha sido capaz de

despertar diálogos interessantes sobre questões de gênero e o papel da mulher na

sociedade, em anos em que movimentos feministas estavam em seu auge, após a

publicação d'O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, na França. A discussão

sobre a implementação ou não da pena de morte no país e a Bioética podem ter

levado a discussões inclusive desde o âmbito jurídico.

E, por fim, na lista de áreas não-filosóficas incluídas nas aulas de Filosofia

do CMP, mas nem por isso “não-filosofáveis”, aparece ainda o debate sobre

Budismo e Fases do Nirvana. O professor Lopes Neto, em entrevista realizada, se

revela como alguém que, pessoalmente, não possui uma identificação religiosa.

Dessa forma, procurava se abster de discussões relativas à Metafísica ou Filosofia

da Religião, por não ter a intenção de demonstrar suas crenças em relação à

religião. Como o próprio professor nos fala:(…) você imagina, agarra um menino ou uma menina de dezesseis anos, ou dezoito, dezenove, sem nenhuma fundamentação e que está consciente de que professa uma religião que pode levar à felicidade, que o tranquiliza, desenvolve um sistema de solidariedade e de justiça, etc e tal , como todas as religiões fazem, aí você chega lá, tira isso da cabeça deles e não coloca nada de volta. Como é que fica? Então, eu nunca assumi esta responsabilidade e acho que isso é antiético.

Assim, a escolha pelo Budismo se dava em função da doutrina budista

não estabelecer ligações com divindades e dar muita ênfase ao autoconhecimento.

Outro conteúdo ministrado em sala de aula nesta época, já no âmbito da

Filosofia propriamente dita, foi o marxismo. Penso que seja relevante apresentar

que, no início da década de 60, no Pelotense, ainda era possível falar sobre a teoria

de Karl Marx e sobre autores marxistas, sem qualquer problema, sem que este

fosse considerado um conteúdo “proibido” ou “subversivo”, conforme foi considerado

anos depois pelo Regime Militar.

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Perguntado sobre – em 1961, quando foi a LDB modificada, e a Filosofia

passou de disciplina obrigatória ao status de disciplina complementar ou optativa –

como o colégio reagiu a esta modificação, se houve alguma discussão sobre a

retirada da disciplina da grade curricular do colégio, o educador respondeu-me que,

de maneira alguma, cogitou-se a possibilidade da retirada da disciplina do currículo.

Questionado ainda sobre se havia valorização por parte da direção da escola em

relação à disciplina de Filosofia, o professor Silvino Lopes Neto respondeu:Enquanto eu estive no Pelotense, muito, muito. Eu, enquanto professor de Filosofia, no caso, era exigente, reprovava, frequência obrigatória e tinha o mesmo status das mesmas disciplinas. Era uma congregação, eu era uma voz autorizada, como qualquer outra, [era] ouvido...

Assim, em síntese, os dados coletados nos indicam que a Filosofia no

início da década de 60 no Colégio Municipal Pelotense era uma disciplina valorizada

perante à comunidade escolar e muito bem trabalhada através do ensino e do

comprometimento de um docente dedicado e competente com seu trabalho. Os

conteúdos de Filosofia eram ministrados através de uma carga horária considerável

(três aulas de 45 minutos por semana). Ao fim e ao cabo, a Filosofia manteve-se no

educandário mesmo com a alteração na lei que a tratava como uma disciplina

optativa.

Penso que o Ensino de Filosofia no CMP, nesse período, tenha sido

congruente com a afirmação de Saviani (1985, p. 40): “O homem é um ser situado”.

Parafraseando o autor, digo que esse ensino foi um ensino situado. Ou seja, não foi

e nem poderia ter sido “descolado” de seu espaço e de seu tempo. E, em meio a

isto, aparecem como “atores” do processo, um professor e seus alunos, ou seja,

gente, pessoas, inseridas no desenvolvimento de ensino e de aprendizagem. E a

disciplina de Filosofia aparece como uma possibilidade de pensar a situação e de

estabelecer uma atitude crítica sobre as determinações impostas, levando à

possibilidade de formação de seres mais humanos, mais aptos a conviver com as

situações e de contribuir para as épocas futuras.

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CAPÍTULO 2. A TRANSIÇÃO, RUPTURA E EXTINÇÃO DO ENSINO DE FILOSOFIA NO CMP

No que diz respeito à Filosofia, podemos argumentar que ela é uma área singular de

reflexão que se ocupa de temas fundamentais na experiência humana e que

sua ausência no currículo escolar priva o estudante de um espaço de formação a que

ele tem direito, sem o qual surge uma lacuna em sua vida.

Ronai Rocha

2.1. Contextualização Histórica – o Brasil depois do Golpe Militar de 1964

Existem, desde o início dos tempos e de todas as sociedades, anos

pacatos e anos marcantes, historicamente falando. Logicamente, a passagem de

cada ano, mesmo se tratando dos anos mais calmos, sempre deixa a memória de

acontecimentos e características de sua época. Todavia, não podemos negar que

alguns anos apresentam-se de forma mais significativa, geralmente por

apresentarem mudanças e revoluções, grandes alterações políticas, sociais e

culturais, que abalam vidas dos cidadãos que vivem tal realidade. E, no cenário do

Brasil, não poderia ser diferente.

O ano de 1964 se apresenta na História Brasileira como um marco, um

“divisor de águas”, um período em que os fatos ocorridos abalaram definitivamente

tanto as gerações desta época, quanto as futuras.

O dia primeiro de abril de 1964, ironicamente conhecido na cultura

popular como o “dia da mentira” ou “dia dos bobos”, marca decisivamente o

chamado Golpe Militar no Brasil, que se deu através de vários acontecimentos

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iniciados em 31 de março, que culminaram no Golpe de Estado acontecido no dia

seguinte, que deu fim ao governo do presidente João Goulart e marca o início de 21

anos de Governo Militar no país.

Jango foi um presidente com ideais democráticos, que liderou o país

através de dois regimes distintos em um mesmo mandato. De 61 a 63, governou

através do Regime Parlamentarista, que concedia ao chefe de Estado pouco poder,

em função da dependência do plenário. Em plebiscito realizado em janeiro de 63, o

povo decidiu democraticamente a instauração do Regime Presidencialista. A partir

de então, e até o Golpe de Estado, Jango governou com poderes amplos, pintando

um quadro a favor de Reformas de Base, entre as quais estavam incluídas

modificações nos âmbitos bancários, fiscais, urbanos, eleitorais, agrários e

educacionais. Defendia ainda o direito de voto para os analfabetos.

Em meio a essas mudanças por nós referidas, outros setores da

sociedade sentiram-se intimidados e rejeitaram suas propostas reformistas. Jango

começou, assim, a perder apoio popular, como nos mostra Nelson Piletti (1992,

p.167), devido aos seguintes fatores:

(…) ao êxito da propaganda do segmento mais conservador da Igreja Católica e das organizações reacionárias, que convenceram a classe média de que o presidente pretendia implantar uma República sindicalista, abolir a propriedade privada e a religião, etc.

Em meio a isto, as Forças Armadas também se sentiram ameaçadas no

que diz respeito à disciplina e à hierarquia militar. Assim, organizaram um esquema

chamado por eles de “revolução”, através da deposição de João Goulart, com a

finalidade de instaurar um modelo governamental que fosse de acordo com os

preceitos relativos aos interesses da ordem e da organização militares, resultou em

uma severa ditadura que se estendeu aos anos seguintes, alterando a vida de todos

os brasileiros. Os processos repressivos verificaram-se de forma controladora,

autoritária e, muitas vezes, inconstitucional.

No ambiente mundial, o “clima”, a partir de 1964, também era tenso. Os

anos sessenta foram, sem dúvida alguma, tempos de revolução, de protestos e de

movimentos estudantis, não só no Brasil, mas, também, no restante do mundo.

No Brasil, os estudantes universitários mobilizavam-se e lideravam

resistências à opressão realizada pelos militares. Censura, prisões, torturas e mortes

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a toda e qualquer pessoa que se opusesse ao Regime Ditatorial eram comuns, mas

nem por isso essas imposições barraram a luta armada que se daria entre militantes

políticos e o Exército.

Na França, o movimento que ficou conhecido como “Maio de 68” também

se deu a partir dos movimentos estudantis. As ideias revolucionárias de Herbert

Marcuse, bem como os escritos de Karl Marx corriam o mundo e influenciavam

aqueles que lutavam por modelos diferentes de sociedade. O guerrilheiro argentino

Che Guevara aparece como um ícone. Líder da Revolução Cubana, representava

uma espécie de modelo para pessoas que almejavam um tipo de sociedade mais

justa. No campo das artes, as músicas e o teatro eram instrumentos de protesto,

com a intenção de exprimir sentimentos de indignação contidos. Em poucas

palavras, esse era, então, o quadro geral que caracteriza o período do qual estamos

tratando neste escrito.

No ramo educacional, o período que vai de 1964 até 1971, pode ser

resumido como um espaço curto de tempo em que muitas reformas foram realizadas

na legislação que regulamenta a educação brasileira. Entre elas, podemos citar,

especialmente, a Lei nº 5.540/68, que se refere à Reforma do Ensino Superior; o

Decreto-Lei 869/69, que inclui a disciplina Moral e Cívica como disciplina obrigatória

nas escolas brasileiras; e a Lei 5.692/71, conhecida como a segunda Lei de

Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), que reformula o ensino do 1º e

do 2º graus.

Assim, volto a afirmar: a extinção da Filosofia nas escolas do nosso país não se deu ao acaso, muito menos de uma hora para a outra. O primeiro

passo foi dado no momento em que a mesma foi “rebaixada” para a situação de

disciplina complementar, enquanto antes ocupava o espaço de disciplina obrigatória.

E, ao analisar a conjuntura dos fatos, percebo que o segundo passo, preparando a

transição para sua posterior extinção, se deu no momento em que foi promulgado o

Decreto-Lei 869/69. E por que digo isto?

O Decreto-Lei 869/69 é um documento que dispõe sobre as orientações

conceituais com que a disciplina Moral e Cívica deverá tratar, bem como sua

obrigatoriedade, não somente em relação aos estabelecimentos de ensino, mas

ainda decretando que estes princípios deverão se estender ainda aos setores de

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imprensa, publicidade, teatro, cinema, entidades esportivas, organizações sindicais,

etc, através de uma então criada Comissão Nacional de Moral e Civismo (CNMC). A

CNMC tinha como função regulamentar os princípios do Moral e Civismo, controlar

os órgãos ideologizantes do Estado e escrever livros didáticos para ser utilizados em

aulas de Moral e Cívica. Fora isto, a CNMC ainda cria a “Cruz do Mérito da

Educação Moral e Cívica”, que oferecia um prêmio a personalidades que se

salientassem pregando a doutrina da Moral e do Civismo. Os princípios que a

disciplina propõe apresentam-se de forma totalmente dogmática e visando a

propagação de ideologias que serviam aos interesses do autoritarismo defendido

pelo Exército naquela época, tais como:

Art. 2º A Educação Moral e Cívica, apoiando-se nas tradições nacionais, tem como finalidade:

a) a defesa do princípio democrático, através da preservação do espírito religioso, da dignidade da pessoa humana e do amor à liberdade com responsabilidade, sob a inspiração de Deus;

b) a preservação, o fortalecimento e a projeção dos valôres espirituais e éticos da nacionalidade;

c) o fortalecimento da unidade nacional e do sentimento de solidariedade humana;

d) a culto à Pátria, aos seus símbolos, tradições, instituições e aos grandes vultos de sua história;

e) o aprimoramento do caráter, com apoio na moral, na dedicação à família e à comunidade;

f) a compreensão dos direitos e deveres dos brasileiros e o conhecimento da organização sócio-político-ecônomica do País;

g) o preparo do cidadão para o exercício das atividades cívicas com fundamento na moral, no patriotismo e na ação construtiva, visando ao bem comum;

h) o culto da obediência à Lei, da fidelidade ao trabalho e da integração na comunidade (BRASIL. Decreto-Lei nº 869, de 12 de setembro de 1969).

Dito de outra forma: o Estado pretendia formular e colocar, nos currículos

escolares, uma disciplina que formasse cidadãos que pensassem de acordo com o

sistema vigente. Enquanto a Filosofia se apresenta como uma disciplina que preza

pelo questionamento, a Moral e Cívica prima pela aceitação. Enquanto uma tem por

objetivo “retirar os alunos da caverna”, – recordando o mito platônico, – a outra

objetiva fazê-los acomodarem-se e, ideologicamente, moldarem-se às exigências do

modelo militar.

E assim, dez anos depois da criação da primeira Lei de Diretrizes e Bases

da Educação Nacional (LDBEN), acontece, em 1971, uma outra reforma, acontece a

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segunda LDB, através da Lei 5692/71. Nessa lei, a Filosofia é sutilmente extinta

através do seguinte artigo:

Art. 7º Será obrigatória a inclusão de Educação Moral e Cívica, Educação Física, Educação Artística e Programas de Saúde nos currículos plenos dos estabelecimentos de 1º e 2º graus, observado quanto à primeira o disposto no Decreto Lei n. 369, de 12 de setembro de 1969 (BRASIL, Lei 5692, de 11 de agosto de 1971).

Desta forma, a Filosofia, por não atender às solicitações tecnicistas da

época, tampouco às necessidades político-ideológicas do Estado, foi escanteada e

substituída pela Educação Moral e Cívica, provocando e desencadeando uma nova

organização dos cursos secundários. Na LDB de 71, não aparece explicitamente a

extinção da disciplina de Filosofia. Entretanto, o Estado, ao lotar a carga horária

obrigatória dos currículos escolares, através da inserção obrigatória de Moral e

Cívica e Organização Social e Política Brasileira (OSPB), não enseja criação de

espaço para a Filosofia, ocasionando a sua extinção e total desaparecimento dos

ambientes escolares. Com a Reforma de 71, o lugar da Filosofia como disciplina

optativa foi confirmado. Todavia, sua extinção se deu devido ao fato da inviabilidade

de se incluí-la na carga horária, enquanto havia a obrigatoriedade de se abrir espaço

para as duas novas disciplinas incluídas na grade curricular dos colégios. Mesmo

sendo optativa, a Filosofia não permaneceu nas escolas. Quanto aos motivos disso

ter acontecido, Silveira (1994, p. 81) contribui:

Podemos levantar algumas hipóteses a fim de tentar clarear um pouco esta questão. Em primeiro lugar, a descentralização decantada pela Lei 5.692 que permitiria às escolas organizarem parte de seus currículos de modo a adequá-los às suas peculiaridades, na realidade não se efetivou plenamente. Limitadas pelo número excessivo de matérias obrigatórias (as do Núcleo Comum mais as relacionadas nominalmente pela Lei, entre as quais estava Educação Moral e Cívica), sufocadas pelas exigências burocráticas e amarradas pela falta de professores habilitados para trabalharem com as “novas” disciplinas, muitas escolas preferiram a comodidade de deixar tudo como estava ou, quando muito, acatar sugestões vindas de instâncias administrativas superiores, as quais nunca incluíam Filosofia. Em segundo lugar, apesar do caráter profissionalizante conferido ao ensino médio, ele continuava sendo visto por muitos professores e diretores como preparatório para o vestibular. Como a Filosofia não era matéria de vestibular, não havia por que inserí-la no currículo. Em terceiro lugar, considerando-se o caráter profissionalizante do segundo grau, a Filosofia não teria função alguma visto não se tratar de matéria desta natureza.

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79

2.2. Ensino de Filosofia no CMP – de 1964 a 1972

No Colégio Municipal Pelotense, o Ensino de Filosofia no período entre

1964 e 1972, se deu da seguinte forma: os primeiros anos daquele período foram

lecionados pela Profª Drª Arabela Rota e os anos subsequentes, a partir de 1968,

foram ministrados pelo Prof. Dr. José Luiz Marasco Cavalheiro Leite.

Os prefeitos da época, que governavam e, certamente, influenciavam

direta ou indiretamente a direção do CMP foram: de 1964 a 1969, o Dr. Edmar Fetter

(ARENA); e de 1969 até 1973, o Dr. Francisco Louzada Alves da Fonseca (ARENA).

O CMP era liderado, de 1964 a 1973, pelo Prof. Platão Louzada Alves da Fonseca.

A partir de um depoimento por escrito, redigido especialmente para a

ocasião desta pesquisa, a Profª Drª Arabela Rota mostrou-me diversos elementos

importantíssimos que me ajudaram a entender de uma forma mais ampla o Ensino

de Filosofia naqueles anos.

A professora do CMP foi também aluna do colégio, ou seja, uma Gato

Pelado. Em relação à sua experiência como discente no Pelotense, em 1959, afirma

não ter tido aulas de Filosofia na sua formação:

A disciplina de Filosofia não fazia parte ainda do currículo dos cursos médios, mas ela fluía de todas as partes impregnando o clima do colégio, professores de ciências exatas faziam pregação ideológica e tratavam de temas políticos e sociais com toda a liberdade. Tínhamos professores “comunistas” e outros, absolutamente “direitistas e conservadores”. Eu era uma autêntica “gato pelado” assumida e feliz.16

Após a conclusão de seu Curso Clássico no educandário e assim como

os professores Silvino Lopes Neto e José Luiz Marasco Cavalheiro Leite, a

professora Arabela Rota cursou concomitantemente os cursos de Filosofia e Direito,

na Universidade Católica de Pelotas.

Sua primeira experiência com o Ensino de Filosofia no Colégio Pelotense

aconteceu em 1961, ao substituir o Professor Lopes Neto pelo período de trinta dias,

em função de um afastamento do professor para uma licença de saúde. Através do

bom desempenho que obteve com suas aulas, Rota foi convidada para lecionar no

ano seguinte com turmas próprias, não mais em caráter de substituição. Em 1963,

através de Concurso Público para a disciplina de Filosofia, Arabela Rota foi efetivada

16 Todas as citações selecionadas a partir da fala da professora Arabela Rota foram extraídas de depoimento escrito pela professora com a finalidade de contribuição nesta pesquisa. O depoimento encontra-se disponível na íntegra nos apêndices deste trabalho ou mais especificamente, no item 11.3.1 da dissertação.

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80

como docente na instituição, permanecendo no cargo até 1968, data que começa a

lecionar na Universidade Católica de Pelotas.

Além das áreas de Filosofia e de Direito, a professora estudou pós-

graduação (fora do Brasil), na área de Sociologia, no ano de 1965, fazendo uma

pausa no seu ofício docente a fim de se especializar. No ano seguinte, retornou ao

Brasil e retomou suas aulas de Filosofia, tendo iniciado a lecionar também a

disciplina de Sociologia. Nas palavras da educadora:

Retornei às minhas aulas de Filosofia, nessa época também recebi turmas de Sociologia, nos Cursos Clássico e Científico do Pelotense e História para alunos do Ginásio no Nossa Sra. de Lourdes. A Sociologia, naquela época, já me havia contagiado para o resto de vida. Era uma decorrência lógica de minhas tendências inquisitivas e de permanente questionamento diante das relações políticas e sociais.

Neste ponto, vale ressaltar que as disciplinas de Filosofia e de Sociologia,

se assemelham em diversos aspectos em relação ao seu espaço no ambiente

escolar. Assim como a Filosofia, a Sociologia também foi banida das escolas. Além

do mais, recentemente, através da Lei nº 11.684/08, ambas retornaram juntas em

caráter obrigatório nos currículos escolares. Ou seja, as duas disciplinas têm muita

coisa em comum: saíram juntas das grades curriculares, sofreram o mesmo

desprestígio, comemoraram a vitória no ano de 2008 e lutam ainda para que seus

lugares nas aulas de Ensino Médio permaneçam e que a história não venha a se

repetir novamente, em hipótese alguma. E o que será que ambas têm em comum?

Arrisco dizer que o principal motivo do banimento das duas dos currículos é o fato de

ambas despertarem o aluno para questionamentos. No caso da Filosofia, questionar

todo e qualquer conceito, físico ou metafísico, do mundo da vida, da ética, estética,

epistemologia, e de tantas outras áreas que seja possível investigar. No âmbito da

Sociologia, questionar e detectar aspectos do status quo, da sociedade em que

vivemos, dos sistemas de governo, das ideologias dominantes. É certo que nem uma

e nem a outra seriam úteis num sistema político ditatorial. Em síntese, vale chamar a

atenção para o fato de que as duas disciplinas andaram por muito tempo “ligadas” e

isso, certamente, não se deu por força do acaso.

A Sociologia, da mesma forma que todas as outras ciências, nasce da

Filosofia. Seu fundador foi Auguste Comte, em 1838, um filósofo francês, fundador

da Sociologia e do Positivismo. Ademais, não podemos deixar de considerar a

importância de outro grande filósofo para o campo da Sociologia: Karl Marx. Ou seja,

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81

a Filosofia e a Sociologia são duas áreas do conhecimento que se entrecruzam

mutuamente – a Sociologia nasce da Filosofia, tornando-se um campo cientifico e

delimitado, que oferece margem para o filosofar. Também a Filosofia, por não se

abster de questionar o âmbito político, oferece subsídios para pensar-se

sociologicamente.

A professora Rota nos fala sobre o papel da Filosofia e da Sociologia em

tempos de ditadura:

Havia respeito pela disciplina de Filosofia e seus professores, mesmo quando entendida por alguns como um acessório. Ousaria dizer que os teóricos do período da ditadura (leia-se Golbery do Couto e Silva) custaram a perceber o quanto o seu ensino levava a pensar o mundo e suas relações políticas e sociais. Talvez por esse motivo só em 1972 foi retirada dos currículos escolares. É obvio o porquê de sua eliminação. Mas a Sociologia assustava muito mais. Ser sociólogo era pressuposto de esquerdista e comunista. Só após a abertura política conseguimos registrá-la como profissão e eu fui uma das primeiras, já residindo em Brasília, a fazer meu registro como Socióloga.

Em relação à forma de trabalho da professora nas aulas de Filosofia e de

algumas de suas preferências, é fato que cada professor, assim como cada pessoa,

é único no mundo. E por ser único, é diferente dos demais, ricas e diversas são suas

existências e experiências nos lugares por onde passa. No caso da Profª Arabela

Rota, cabe salientar que, mesmo com muitas semelhanças com seus colegas,

algumas diferenças também são notadas. Não se objetiva neste trabalho traçar

comparações, tampouco juízos de “melhor” ou “pior”, de forma alguma. Até mesmo

porque minha admiração é comum a todos os docentes entrevistados e ouvidos

nesta pesquisa. O que me interessa é mostrar a diversidade, que se dá em função

de cada professor carregar consigo a marca da existência: suas singularidades e

suas marcas pessoais, como nos diz Cunha: “(...) a história de cada professor é

própria e única, não havendo dados que permitam generalização, a não ser de que a

experiência de vida é fundamental no encaminhamento das pessoas” (1989, p. 85).

Dessa forma, ao contrário dos demais professores, do que a antecedeu e

do que a sucedeu, que relataram o fato de suas aulas serem mais proveitosas no

Curso Científico, a professora narra ter tido uma identificação maior nas turmas do

Curso Clássico:

Contrariamente ao que eles afirmam, minha identificação total era com os alunos e alunas do Clássico. Era eu de um lado e eu do outro. Entende?Esse grupo eu não precisava conquistar, enquanto que com os alunos do Científico era necessário, antes de mais nada, situá-los no campo da

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Filosofia e o porquê daquela disciplina que, para eles, não tinha nada a ver com as matérias do famoso Vestibular. Até fazê-los entender que os primeiros filósofos foram grandes matemáticos, físicos, astrônomos etc. e que Pitágoras antes de ser um Teorema era um importante filósofo, levava tempo.

Vale ressaltar que o relacionamento entre professor e alunos não se dá

ao acaso. Vai muito além de técnicas, entra no campo das subjetividades e da

afetividade. Assim, ao trabalhar com pessoas, o trabalho docente realiza-se levando

em conta também os sentimentos e as identificações tanto de alunos quanto de seus

professores. Como afirma Paulo Freire:

Como prática estritamente humana jamais pude entender a educação como uma experiência fria, sem alma, em que os sentimentos e as emoções, os desejos, os sonhos devessem ser reprimidos por uma espécie de de ditadura reacionalista (1996, p. 145).

Como metodologias de seu ensinar, Rota fala da maneira de administrar

as aulas:

O conteúdo de minhas aulas era preparado cuidadosamente e, posso confessar que aprendi realmente Filosofia e História nessa época. Observava o Programa do Curso e cada aula tinha começo e fim, ou seja, nunca deixava o tema abordado sem uma conclusão. Apresentava o tema e suscitava a discussão e o debate. Como em todo o grupo, havia sempre alguém querendo monopolizar e eu administrava os tempos. Havia um clima de bem estar e tranquilidade, costumava sentar “na” (sobre a) mesa do professor, isto causava um certo espanto por ser inovador. Caminhava ente eles e costumava dizer que minhas aulas eram “peripatéticas” como as de Sócrates e Platão e me imaginava caminhando pelo Parthenon.

Ressalto a atitude da professora de instigar discussões e debates em sala

de aula. Ao se debater sobre determinado assunto, valoriza-se o diálogo. E dialogar,

em época de ditadura, é um grande desafio. Em tempos de silêncio e repressão,

vozes são escutadas e faladas com outras vozes, o que se permite que se

compreenda e que se troque mutuamente ideias sobre os assuntos tratados.

Hermann, sobre o diálogo, nos diz: “O diálogo possibilita condições de reflexão

sobre um entendimento ainda não disponível; ou seja, concede aos participantes a

oportunidade de fazer uma auto-reflexão sobre seus pontos de vista” (2002, p. 58).

Em relação aos conteúdos trabalhados em sala de aula, a Profª Rota

ensinava Filosofia através da própria História da Filosofia. Relata que, no Curso

Clássico, tinha um período de tempo maior para desenvolver os conteúdos, eram

dois anos reservados para o ensino da disciplina, podendo partir desde o ensino dos

pensamentos dos pré-socráticos até chegar a contemporâneos como Ortega y

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Gasset. Já no Curso Cientifico, os conteúdos eram mais básicos e resumidos,

tratando mais especificamente da Introdução à Filosofia e de uma noção mais geral

da História da Filosofia. Sobre a escolha de ensinar Filosofia através da sua história,

Rota fala:

A História da Filosofia não era uma simples narrativa cronológica e engessada, isenta de análise crítica. Era o meu prumo para, dependendo da turma e do interesse despertado, aprofundar e/ou destacar doutrinas e correlacionar com o momento vivido. Tudo com muito cuidado, sem deixar de explicar a Dialética de Hegel e a fundamentação filosófica do marxismo em Engels.

Conforme já mencionei anteriormente, em relação à maneira de

apresentar os conteúdos filosóficos aos alunos, há entre os professores dessa área

duas vertentes: os que se propõem a trabalhar a Filosofia através de temas, como

foi o caso do Prof. Lopes Neto e os que se dispõem a lecionar Filosofia a partir da

sua própria história, como o caso da Profª Arabela Rota. As duas vertentes são

aplicadas até hoje, dependendo da opção feita pelo docente ao planejar suas aulas,

ou dos conteúdos propostos pelas escolas. Sobre a opção escolhida por Rota, de

lecionar Filosofia tendo como fio condutor a sua ordem histórica, fala Nascimento:

(…) não é possível fazer filosofia sem recorrer a sua história. Dizer que se pode ensinar filosofia apenas pedindo que os alunos pensem e reflitam sobre os problemas que os afligem ou que mais preocupam o homem moderno, sem oferecer-lhes a base teórica para o aprofundamento e a compreensão de tais problemas e sem recorrer à base histórica da reflexão em tais questões, é o mesmo que, numa aula de física, pedir que os alunos descubram por si mesmos a fórmula da lei da gravitação sem estudar física, esquecendo-se de todas as conquistas anteriores naquele campo, esquecendo-se do esforço e do trabalho monumental de Newton (1986, p. 116).

Arabela Rota nos conta que sua bibliografia era mencionada nas aulas,

mas que os alunos não seguiam o roteiro de livros didáticos. Os conteúdos

aprendidos eram extraídos de anotações dos educandos nas aulas, pois os livros

tinham um valor aquisitivo que não era acessível a todos os alunos. Como

referências bibliográficas principais para o planejamento das aulas, a professora

usava as obras de Leonel Franca e Ortega y Gasset. Relata ainda que tinha por

hábito levar livros escritos pelos filósofos clássicos para as aulas, apresentar para os

discentes e deixar que os manuseassem.

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Sobre a carga horária dedicada ao ensino de Filosofia, vale ressaltar que,

mesmo após o Golpe Militar de 1964, a disciplina ainda se manteve com um bom

espaço de tempo a ela dedicado na grade curricular dos cursos de nível médio. Rota

diz: “Creio que eram duas ou três aulas semanais para o Clássico e uma ou duas

para o Cientifico”. Ou seja, se tratando do forte da Ditadura Militar, sem dúvida, era

uma carga horária considerável.

As avaliações eram realizadas da seguinte forma: “eram provas escritas,

dissertativas e exigiam uma boa análise crítica e capacidade de raciocínio, além da

comprovação de conhecimento dos conteúdos trabalhados em aula”. Questionada

sobre se algum filósofo ou escola filosófica eram enfatizados nas aulas, a professora

narra que “A Filosofia Grega e, mais adiante, a alemã, (pontificada por Kant) e o

Budismo, tinham a minha preferência”.

Em entrevista com o Prof. Dr. José Luiz Marasco Cavalheiro Leite17, pude

ter contato com informações muito valiosas que me auxiliaram na compreensão dos

acontecimentos do período. O Prof. Cavalheiro Leite assumiu a disciplina de

Filosofia no ano de 1968 no CMP. Um ano histórico, chamado por alguns de o início

dos “anos de chumbo” no país. Um dos anos mais difíceis da Ditadura Militar,

certamente. O ano em que o estudante Edson Luiz de Lima Souto foi assassinado

pela Polícia Militar durante um confronto e o ano em que o povo foi às ruas para

protestar contra a repressão e a violência, através da Passeata dos Cem Mil; e por

fim, o ano em que foi instaurado pelo Governo Federal o AI-5, o mais rígido dos

dezessete Atos Institucionais que o Exército decretou.

Ou seja, ensinar Filosofia em um tempo desses, indubitavelmente, foi

uma grande tarefa exercida pelo Professor Cavalheiro Leite no Colégio Pelotense.

O professor foi aluno do Pelotense, ou seja, um Gato Pelado. Foi o fundador do

Teatro dos Gatos Pelados, professor de Teatro e de Educação Artística. Entretanto,

seu grande desejo era o de ensinar Filosofia. Cursava Bacharelado e Licenciatura

em Filosofia na Universidade Católica e começou a lecionar ainda antes de estar

graduado na área. Permaneceu com a Regência de Classe da disciplina de Filosofia

até assumir o cargo de Orientador Educacional, alguns anos depois. O entrevistado

não recorda exatamente o ano de sua saída como docente da disciplina, mas situa 17 Todas as citações selecionadas a partir da fala do professor José Luiz Marasco Cavalheiro Leite foram

extraídas de entrevista realizada por mim. A entrevista encontra-se disponível na íntegra nos apêndices deste trabalho ou mais especificamente, é o, item 11.2.2 da dissertação.

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que isto ocorreu entre 1970 e 1971. Sua saída do CMP se deu por motivos políticos,

através da intervenção da gestão de “Ary Alcântara, um prefeito que na área da

Educação fez um ajuste de contas com as pessoas que eram dissidentes dele.

Nessa época é a minha saída”.

A disciplina era direcionada aos alunos dos três anos do “Colegial

Clássico” e do último ano do “Colegial Científico”. O professor enfatiza que mesmo

soando um tanto contraditório, suas aulas eram mais interessantes no “Colegial

Científico” do que no “Clássico”, que era mais dirigido ao ensino de conteúdos mais

afins com as Ciências Humanas.

Assim como o Professor Silvino Lopes Neto, o Professor Cavalheiro Leite

também adotava a escolha de ensinar Filosofia através de temas. Em relação aos

conteúdos abordados em sala de aula, o docente fala:

Eu não tinha muito a preocupação de ensinar a História da Filosofia, as grandes linhas do pensamento filosófico, mas eu gostava muito de falar sobre Teoria do Conhecimento, Epistemologia. A Psicanálise era muito querida pelos alunos e a Sociologia, com um viés marxista era um pouco de meu interesse. Eles também tinham bastante interesse na Filosofia Oriental. Na época tinha um autor chamado Herman Hesse, que escrevia livros de grande sucesso, o “Sidarta” é um exemplo. Os alunos gostavam, era moda. Os Beatles encontram gurus orientais, o Movimento Hippie era também orientado por essas filosofias, por essas maneiras de pensar e eu me lembro de ter estudado um pouco isso e de ter passado para os meus alunos algumas dessas coisas.

Percebe-se que, também aqui, o contexto cultural influenciava o ensino. O

professor ainda abordava outros conceitos como os de Gnosiologia, os fundamentos

da Psicanálise, Realismo Aristotélico e Idealismo Platônico. Em relação ao

Marxismo, tema dito pelo entrevistado como sendo “perigoso” para a época, relata

que era uma discussão presente nas aulas, pois apreciava que os alunos

entendessem conceitos como o de classes sociais, e compreendessem como se

formam as ideologias. Outro tema bastante enfatizado pelo educador é o

Existencialismo, em especial o de Jean-Paul Sartre.

A maneira como eram conduzidas as aulas de Cavalheiro Leite nesse

período era a seguinte: Fazia com que lessem algumas coisas, alguns textos que eu selecionava, alguns alunos eles mesmos preparavam exposições deles em aula. No geral, eram aulas expositivas, os alunos apresentavam aulas, às vezes com a minha condução. Provas com perguntas discursivas em que o aluno tinha que apresentar uma resposta dissertativa.

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A metodologia trabalhada pelo professor, embora vista pelo próprio com

algumas ressalvas a respeito de declarar-se um educador crítico, leva-me a pensar

que consistia em uma postura condizente com a criticidade. Todavia, se tomarmos

sua fala em relação ao que vem a ser uma formação crítica, notamos que Cavalheiro

Leite a define da seguinte forma: “Acho que uma formação crítica é aquela que dá

ao aluno a capacidade de fazer julgamentos”. Em suas aulas, eram apresentados

estímulos através de textos que possibilitavam a reflexão e apresentações em forma

de seminários; atividades em que os alunos tinham a oportunidade de se posicionar

em relação aos temas discutidos. Saliento, ainda, o fato das avaliações com a

finalidade de perceber os rendimentos dos alunos darem-se através de testes com

perguntas abertas, exigindo respostas dissertativas, em lugar de provas com

questões objetivas que valorizassem o “certo” ou o “errado”. As provas eram

dissertativas ao invés de objetivas, o que possibilita a reflexão, a crítica e o

argumento e elaboração teórica do pensamento sobre algum tema, ou seja, que se

desenvolva também a capacidade de fazer julgamentos e de se expressar em

relação a algo; o que, em se tratando de tempos de ditadura, era uma grande

aposta.

Sua intenção como educador era a de “despertar” os alunos para os

acontecimentos daqueles tempos. Nas palavras do professor: Na época, considerando quem eu era e o tempo em que eu vivia, eu não tenho dúvida que eu orientava meus alunos a contestarem o “status quo” e para que fossem revolucionários. Queria perpassar um pouco uma mentalidade revolucionária. Hoje, eu não faço mais isso.

Questionado sobre a possibilidade de que suas aulas auxiliaram a formar

cidadãos críticos, o professor respondeu-me:Acho que sim, algumas pessoas, que eu sei, conheço elas, me encontro com elas, não posso atribuir que tenham sido as minhas poucas aulas de Filosofia, mas eu acho que são pessoas representativas de uma certa época, de uma certa educação que naquela época se dava. É difícil dizer qual o percentual de alunos que passam pela gente que reproduzem ou que não reproduzem a maneira como a gente gostaria que eles se caminhassem, esse percentual é relativamente pouco, um percentual pequeno, mas, se numa turma de trinta alunos, houver dez que tenham um comprometimento, já está muito bom.

Sobre os livros didáticos utilizados nas aulas, o docente recorda ter

utilizado os textos de Gnosiologia de Bochenski, por ser uma obra acessível a

pessoas que não fazem parte do métier da Filosofia. Outras obras usadas na época

foram os escritos de Manuel Garcia Morente, Julian Marias e Ortega y Gasset.

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O professor Cavalheiro Leite considera que naquela época “Havia muito

mais espaço para a reflexão filosófica”. Acredita que a Filosofia estudada nos anos

60 está um tanto superada, devido ao desenvolvimento das tecnologias e do

imediatismo que a internet oferece nos dias de hoje. Atribui esta obsolescência ao

fato de que novos autores apareceram de lá para cá e a renovação da Filosofia vai-

se dando na medida do rearranjo dos cenários em geral.

Quanto ao papel que o professor de Filosofia ocupava no ambiente

escolar, Cavalheiro Leite narrou-me que “Havia um certo estereótipo do professor

de Filosofia, mas o professor de Filosofia era bastante respeitado”. Imagino que

este estereótipo a que o professor se refere seja aquele em que o professor de

Filosofia é rotulado como alguém fora da realidade, desligado de problemas

“palpáveis”, que vive somente na abstração e no “mundo das ideias”, como diria

Platão. O professor Silvino Lopes Neto disse que “Muitas vezes apresentam o

filósofo desligado dos bens materiais completamente, essa visão do filósofo

necessariamente desleixado”. Penso, então, que o estereótipo do professor desta

disciplina seja este, assim como praticamente todas as profissões possuem também

seus estereótipos. No entanto, deve-se lembrar que um estereótipo constitui-se em

uma imagem constituída a priori de alguém, ou seja, também é um tipo de pré-

conceito, de um conjunto de características que se formula a respeito de alguém

antes mesmo de conhecer esta pessoa. Entretanto, no dizer do professor

Cavalheiro Leite, mesmo com todos os estereótipos que se pode ter em relação a

um professor que lecione Filosofia, ainda assim havia respeito pela figura desse

docente assim caracterizado.

Em relação à inclusão das disciplinas de Moral e Cívica e de Organização

Social e Política Brasileira (OSPB), vale ressaltar o seguinte aspecto: as duas

disciplinas foram incluídas em 1969 através do Decreto-Lei 869/69 e a disciplina de

Filosofia foi extinta, de fato, através da Lei 5.692/71. Ou seja, as três disciplinas

conviveram por dois anos, dividindo o mesmo espaço escolar. Quanto a isto, o

educador Cavalheiro Leite conta como era o relacionamento entre os professores

dessas disciplinas no ambiente do Colégio:Sempre tive pavor dessas coisas, sempre achei isso disciplinas da Ditadura, que realizavam lavagem cerebral. E no tempo em que elas conviveram com a Filosofia, havia uma grande animosidade entre os professores e essas disciplinas eram disciplinas completamente acríticas. Nem conservadorismo, nem revolucionarismo, eram do tipo “é assim e fim de papo”. Havia uma

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dificuldade de convívio entre os professores de Filosofia, os que gostavam de Filosofia e os que davam essas disciplinas.

Gracia Passos18, ex-aluna do Colégio Pelotense em 1970, nos oferece um

panorama de como era ser aluna dessas duas disciplinas, concomitantemente. Em

relação à Filosofia, Passos avalia a disciplina como uma parte importante de sua

formação, visto que, até então, desconhecia o que vinha a ser Filosofia e os saberes

filosóficos. Afirma ainda que, em especial, o ensino da disciplina teve um papel

importante em sua vida: Pra mim foi um começo para eu saber o que eu queria escolher como futura profissão. Como a Filosofia trata de assuntos muito humanos e questiona sobre tudo, sobre a vida, sobre nós mesmos, para mim foi a primeira porta para eu descobrir quem eu queria ser futuramente.

Sobre a disciplina de Moral e Cívica, Passos fala:As aulas de Educação Moral e Cívica e OSPB eram muito boas em relação ao ensinar o respeito e a valorização à pátria, contudo, tinha o outro lado que era o de quererem fazer os alunos acreditarem em coisas que eram bem questionáveis.

Penso que realmente deva ter sido muito difícil o convívio dessas

disciplinas em uma mesma grade curricular. Fico imaginando como seria, enquanto

aluna, assistir a uma aula de Filosofia que instiga o pensamento lógico, a valorização

de questionamentos e da curiosidade e que adverte os alunos a respeito de

ideologias, etc, e logo após, assistir a uma aula de Moral e Cívica, em que é

ensinado que devemos amar a pátria, respeitar o Estado, não questionar o porquê

de certas coisas serem de um jeito e não de outro e “ponto final”. Creio que,

realizando este exercício empático, certamente eu me sentiria, no mínimo, confusa

em relação à minha formação e a qual caminho seguir. Enquanto uma das

disciplinas preza pela formação crítica, a outra valoriza o pensamento acrítico.

Jovino Pizzi, no artigo Filosofia, Ciências Sociais Críticas e Práticas

Educativas, tem um consideração importante acerca da questão da crítica dentro

deste contexto:Para nós – e me refiro particularmente ao Brasil – a recusa da crítica fez parte de uma etapa influente de nossa filosofia. Sem dúvidas, as inspirações positivistas foram decisivas para gerar um medo enorme à crítica, reduzindo a filosofia a seus pressupostos dogmáticos, a ponto de obstruir outras interpretações. No entanto, em épocas mais recentes, os regimes militares também trabalharam no sentido de impedir, derrogar e asfixiar qualquer crítica. Nesse sentido, toda e qualquer tentativa de crítica

18 Todas as citações selecionadas da fala da professora Gracia Passos foram extraídas de entrevista coletada por mim tendo como finalidade a contribuição nesta dissertação, disponível na íntegra nos apêndices deste trabalho.

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significa sempre um perigo e uma ameaça à situação e à ordem vigente (PIZZI, In GHIGGI, PITANO, PIZZI, 2009, p.104-105).

Em síntese, não tenho dúvidas de que essa era a visão dos militares em

relação à crítica e, consequentemente, à Filosofia – a de que criticar representava

um perigo à ordem vigente e ao funcionamento da sociedade. Daí a necessidade de

uma disciplina totalmente contrária, que ensinava a aceitação e “acalmava os

ânimos” dos estudantes dessa época.

E assim se deu, então, a ruptura e a extinção do Ensino de Filosofia a

partir do Regime Ditatorial. Ao que consta nos arquivos do CMP e também de acordo

com o relato do professor Cavalheiro Leite, a disciplina de Filosofia permaneceu até

o ano de 1972 no colégio dos Gatos Pelados. Acredito que seja importante ressaltar

que a Filosofia, em nossa escola, permaneceu até onde pode, até o momento em

que foi possível permanecer, enquanto que, em função do caráter optativo da

disciplina no que se refere à legislação, ela poderia ter sido extinta há vários anos

antes. Penso que o fato de manter a disciplina até o “último segundo possível” seja

uma atitude congruente com o ideal de um colégio que sempre clamou por princípios

libertários, laicos e contrários a toda e qualquer forma de dogmatismo, de acordo

com o que nos diz Renato Luiz Mello Varoto (In Amaral, 2002, p. 146) “O Colégio

Municipal Pelotense foi sempre um vanguardeiro na luta pela liberdade, em especial

a liberdade de pensar”.

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CAPÍTULO 3. A SUBSTITUIÇÃO DA DISCIPLINA DE FILOSOFIA PELAS DISCIPLINAS DE EDUCAÇÃO MORAL E CÍVICA E ORGANIZAÇÃO SOCIAL E POLÍTICA BRASILEIRA (OSPB) NO EDUCANDÁRIO

Lamentar a exclusão do ensino de filosofia no Ensino Médio e lutar por seu

retorno significa defender a inegável contribuição para a formação integral do

estudante.

Maria Lúcia de Arruda Aranha

3.1. Contextualização histórica – Do “milagre econômico” ao fim da ditadura

O Brasil do início dos anos 70 poderia ser caracterizado como um país

marcado pelo “milagre econômico”. A nação, através de grandes empréstimos e

investimentos financeiros entra em um período de desenvolvimento surpreendente.

A preocupação central dos governantes dava-se às questões relativas ao

“progresso” e à expansão do país. O Regime Ditatorial continuava a exercer seus

plenos poderes e seus representantes o levavam às últimas consequências.

Em março de 74, o presidente Ernesto Geisel anuncia a proposta de um

“gradual, mas seguro, aperfeiçoamento democrático” (Apud PILETTI, 1991, p. 181).

Começa, então, o período da “abertura política”. Uma abertura que, obviamente,

não se deu ao acaso. Foi um processo crescente, que se deu tanto através da ida

da população às ruas, para mobilizar contra os atos de tortura cometidos contra

Page 91: Letícia Maria Passos Corrêa

91

civis, como no caso da morte do jornalista Vladimir Herzog; quanto pelo

descontentamento da nação em relação a uma crise econômica que se instalara em

função do endividamento externo. A censura também se apresentava com um outro

elemento que desagradava. O regime autoritário, enfim, começava a perder força. A

abertura se apresentava para os militares não como uma escolha, mas como uma

necessidade para continuarem a governar.

No restante do mundo, em outros países, a situação econômica também

começava a apresentar momentos de recessão. Os Estados Unidos são abalados

através da crise do petróleo, que repercute no Brasil dando início a um processo de

inflação que cresceria progressivamente nos anos seguintes.

No contexto da LDB de 1971, que se manteve vigente até 1996, a

Filosofia simplesmente desaparece. Tampouco é citada na reforma de ensino que

se deu na Lei nº 5692. Não contente com a total ausência da palavra Filosofia na

segunda LDB, me debrucei a rastrear, de 1971 até 1985 (fim da ditadura) por todas

as Lei Ordinárias, Leis Complementares e Decretos-Leis da legislação brasileira

nesse período. Para um espanto ainda maior, me deparo com exatamente nada

constando sobre a disciplina de Filosofia.

Daí, aponto para a seguinte questão e total indignação: como uma

disciplina simplesmente “evapora” e desaparece da grade curricular das escolas?

Como pode ter sido sequer mencionada na legislação? O que me parece é que

houve um total desprezo pela mesma e pela categoria docente que a lecionava, isto

sem mencionarmos os alunos, privados de senso crítico e de conhecimentos que a

Filosofia pode oferecer.

Alguns estudiosos sobre o assunto afirmam que a Filosofia foi proibida

pelo sistema militar por não oferecer-lhes instrumentos úteis para a ideologização

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92

que a ditadura necessitava. Ouso dizer que preferia que assim tivesse acontecido:

que a disciplina tivesse, da fato, sido proibida. Não me contradigo quando assim

faço esta afirmativa. Acredito apenas que, se ela tivesse sido explicitamente

proibida, ao menos os professores que a lecionavam poderiam ter tido elementos

para uma luta mais enfática contra sua extinção e sua substituição pelas disciplinas

de Moral e Cívica e Organização Social e Política Brasileira. Entretanto, isto não

ocorreu. A Filosofia foi, ferindo o Princípio de Não-Contradição Aristotélico, proibida

e não-proibida. Proibida, porque seu ensino não era aconselhável aos princípios

ditatoriais, pois quem filosofasse poderia ser visto como um subversivo, comunista e

anarquista, o que de fato era totalmente proibido na época. Ao mesmo tempo, não

foi proibida, pois não há nenhuma lei que afirme esta proibição e, o que não é

proibido, teoricamente, seria permitido.

Entretanto, o que ocorreu é que todas as mudanças pelas quais a

disciplina passou deram-se de modo sorrateiro, com muito pouco alarde ou barulho.

A fim de não despertar protestos por parte da classe docente que a lecionava, os

fatos que culminaram na extinção da Filosofia foram acontecendo gradualmente e

de forma implícita. O que, certamente, pode às vezes, ser pior do que uma proibição

explícita.

Ao se retirar a Filosofia das escolas, pergunto-me: o que aconteceu com

os professores que a lecionavam? O que fizeram? Com o que trabalharam? Penso

no seguinte: um professor, que conclui sua graduação na área, após estudar por

quatro anos para lecionar a disciplina de Filosofia, o que faz quando lhe retiram

totalmente o lugar, o espaço, o campo de sua atuação? Minha pergunta ganha

maior sentido quando o fazem de forma calada, sem que a classe de professores

perceba o que está ocorrendo.

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93

Evidentemente que, mesmo em face do descaso dos governantes para a

disciplina de Filosofia, houve professores, alunos e políticos atentos ao que

acontecia na Educação brasileira. Em Pelotas, alunos da Universidade Católica

(UCPel), organizavam-se propiciando eventos para debater a questão. Na Pontifícia

Universidade Católica (PUC) em Porto Alegre, alunos e professores do Curso de

Filosofia e Ciência Humanas elaboraram um documento entregue à Direção do

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da instituição argumentando a favor do

Ensino de Filosofia no 2º grau. No âmbito nacional, professores e pedagogos de

universidades diversas se manifestavam a favor da reintrodução da Filosofia nas

escolas.

Entretanto, a maior ação em prol da reinserção da Filosofia como

disciplina obrigatória nas escolas nesse período foi, indubitavelmente, o Projeto de

Lei Nº 356-A, de 1983. De autoria do Deputado Federal José Fogaça, o projeto

propunha que se tornasse obrigatório o ensino de Filosofia nos estabelecimentos de

ensino de 2º grau. Na justificativa do projeto, José Fogaça argumenta: “A Filosofia

conduz a uma formação integral, acentuando o espírito crítico e valorático do

estudante, para que ele, ao invés de se acostumar com as injustiças, passe a lutar

contra elas”19.

O projeto foi aprovado, em 12/05/1983, por unanimidade, pela Comissão

de Constituição e Justiça, representada pela figura do Deputado Hamilton Xavier.

Pela Comissão de Educação e Cultura, em 17/08/1983, o projeto também obteve

aprovação, sendo representado pelo parecer vencedor do Deputado João Bastos,

contra os votos dos Deputados Rômulo Galvão e Eraldo Tinoco, que deram seus

pareceres desfavoráveis à aprovação do projeto, argumentando que os

professores de Filosofia eram demasiadamente escassos para suprir a demanda

que se daria com a obrigatoriedade do ensino da disciplina nas escolas. Todavia,

não bastara a aprovação somente da Comissão de Constituição e Justiça e da

Comissão de Educação e Cultura, restava ainda a aprovação no Plenário. No

Plenário, a primeira tentativa de votação ocorre em 11/10/1984, a qual foi adiada por

falta de quórum; estendendo-se por mais outra tentativa em outubro do mesmo ano

e mais uma em março de 1985, todas sem êxito, adiadas por falta de quórum; até

chegar em 02/05/1985 quando o Deputado Darcy Passos solicitou adiamento da

19 Todas as citações do Projeto de Lei nº 356-A, de 1983 foram extraídas do documento original, disponível na íntegra nos anexos desse trabalho.

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94

votação por cinco sessões. Infelizmente, o projeto nunca chegou a ser votado em

Plenário, resultando no seu arquivamento pela Mesa Diretora da Câmara dos

Deputados em 05/04/1989.

A tentativa de José Fogaça, mesmo sem ter conseguido sucesso, foi de

suprema importância. Demonstra que havia pessoas interessadas em reverter a

situação, engajadas que estavam na luta pela valorização da Filosofia. Porém,

mesmo com tais investidas, a disciplina de Filosofia acabou transformando-se, nos

anos setenta, oitenta e noventa, uma disciplina “fantasma”. Transformou-se em algo

“quase morto”, “pairando pelo ar”. Um desrespeito a tantos professores que

encaravam o ensino de Filosofia como sua profissão, como seu modo de sustento e

de prover as necessidades à vida. O caminho, para alguns, foi partir para outras

áreas, não restando muitas outras opções para quem quisesse seguir lecionando na

Educação Básica. No Ensino Superior, a Filosofia, de alguma forma, permaneceu,

mas de que forma? Que Filosofia consegue conviver com a Ditadura e com o não

questionar?

Acontece que, citando o exemplo de um outro país, no caso o Uruguai, a

Filosofia, mesmo no contexto da Ditadura, não foi extinta dos currículos escolares.

Não me proponho, neste trabalho, fazer um estudo comparativo entre os dois

países, o que certamente, no momento, seria inviável. Entretanto, não poderia

deixar de mencionar o fato de que alguma Filosofia, em um país vizinho do nosso,

latino-americano como o nosso, permaneceu, mesmo em tempos ditatoriais. As

razões desta permanência na educação uruguaia, indubitavelmente, são distintas

das razões da exclusão no nosso país. Saliento, com este exemplo, o fato de que a

Ditadura não foi o único elemento causador do desaparecimento da Filosofia das

escolas; sem dúvida, a ausência de um governo democrático foi um dos fatores

para que houvesse a extinção, mas outros elementos também contribuíram para o

que acabou ocorrendo.

A época de 1970 foi um tempo em que o Governo Federal, movido pelos

efeitos do Milagre Econômico, priorizou o Ensino Profissionalizante. A partir do

Page 95: Letícia Maria Passos Corrêa

95

acordo Mec-Usaid, realizado entre os Estados Unidos e o Brasil, o tecnicismo se

torna a meta educacional. Maria Lúcia de Arruda Aranha nos descreve a educação

deste período, bem como os efeitos que se deram a partir da Reforma de Ensino de

1971:

Atrelada aos interesses ideológicos da ditadura, a reforma se ocupou também com a “formação do cidadão consciente”, introduzindo no currículo disciplinas sobre civismo e problemas brasileiros. Imposta de maneira autoritária e manipuladora, a reforma fracassou, provocando prejuízos que podem ser contabilizados até hoje. O projeto de profissionalização resultou em meta não-cumprida – mesmo porque o governo não se preocupou com os meios para torná-la viável – e no desmantelamento do currículo, decorrente da diminuição da carga horária de disciplinas como língua portuguesa, literatura, história, geografia, além da exclusão da filosofia. Mais ainda: nos exames vestibulares para as universidades foram adotadas provas com testes, dispensando-se as respostas discursivas. Com a desculpa de treinar seus alunos, as escolas de Ensino Médio aderiram à moda das “cruzinhas”, recurso muito cômodo para professores cuja carreira tomava rumos cada vez mais sombrios: mal-remunerados, precisavam aumentar o número de aulas para sobreviverem e, conseqüentemente, sempre tinham provas demais para corrigir (ARANHA, In: GALLO; KOHAN, 2000, p. 113).

3.2. Ensino de Filosofia no CMP – Tempos não-filosóficos ou não-filosofáveis?

No Colégio Municipal Pelotense, o Ensino de Filosofia foi extinto em 1972

e retornou somente em 1989. Ou seja, foram dezessete anos sem Filosofia no

educandário. Uma lástima, certamente. A disciplina de Filosofia foi “sufocada” pela

inserção das disciplinas de Moral e Cívica e Organização Social e Política Brasileira.

Em função da Reforma de 1971, o ensino do Colégio teve que se adequar às

exigências do tecnicismo, formando pessoas “aptas” e treinadas para o mercado de

trabalho. Frente aos fatos, Maria Isabel Cunha nos fala da situação do Pelotense

nesses anos:

O Colégio Municipal Pelotense é o mais antigo da cidade, funcionando há mais de oitenta e cinco anos. É um estabelecimento de tradição entre os pelotenses voltado, até o advento da Lei 5.692/71, ao ensino propedêutico. Sua história é permeada pelos valores liberais e sua participação na comunidade foi sempre reconhecida, em especial, pelo padrão de excelência de seus alunos vestibulandos e de seus professores. A referida

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legislação obrigou o Colégio Pelotense a assumir a profissionalização. Esta foi, entretanto realizada de forma a não ferir a sua trajetória acadêmica. A deterioração em que caiu a escola pública em geral e a escassez de recursos do município tiveram conseqüências no Colégio que até hoje tenta recuperar sua imagem e retomar o ensino acadêmico (1989, p.49).

Vale ressaltar que a autora escreveu estas palavras exatamente no ano

de 1989, ano que acontece o retorno da Filosofia na escola. Então, o período que

Cunha relata é exatamente o da extinção da Filosofia no colégio, que se dá entre

1972 e 1989. Ainda em relação à citação acima, um dado que vale atualizar é que,

em 2012, a escola completará, no dia 24 de outubro, cento e dez anos de existência

e funcionamento.

Os prefeitos desse período foram: de 1973 a 1977, o Sr. Ary Alcântara

(PDS); de 1977 a 1982, o Dr. Irajá Andara Rodrigues (MDB), de 1982 a 1983, o Sr.

Pedro Machado Filho e de 1983 a 1987, o Dr. Bernardo Olavo de Souza (MDB). A

direção do Colégio Pelotense, na época, foi através da gestão de: Prof. Walney

Joemir Hammes (1973 a 1976); Prof. Dario Francisco de Castro Ribeiro (1976 a

1977); Prof. Antonio Edgar Nogueira (1977 a 1982); Prof. Osmar Jorge Nunes (1982

a 1983); e Prof. Luiz Carlos Corrêa da Silva (1983 a 1985).

No caso específico dos docentes que lecionavam Filosofia no CMP, a

maior parte deles deixou o educandário por motivos pessoais, como o interesse em

estudar fora do país, trabalhar em uma universidade, etc. No caso dos três

professores entrevistados, que lecionavam Filosofia no Pelotense antes do período

da extinção da disciplina, suas saídas se deram da seguinte forma: o Prof. Dr.

Silvino Lopes Neto relata que “a minha história no Pelotense eu só deixei quando

me formei em Direito, comecei a advogar e aí o tempo ficou muito curto”. Saiu

também em função de seus estudos: foi para a Espanha estudar Filosofia do Direito.

A Profª Drª Arabela Rota também permaneceu um período afastada do CMP para

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97

estudar no exterior: estudou Sociologia na Itália. Retornou após seus estudos e nos

conta que “em 1968, a Universidade Católica assinou um Convênio com o Colégio

Pelotense para a cessão de cinco professores. Eu fui um deles”. Já o Prof. Dr. José

Luiz Marasco Cavalheiro Leite cessou sua atividade enquanto professor de Filosofia

para exercer a atividade de Orientador Educacional no colégio. Cavalheiro Leite fala

de sua demissão da instituição e dos porquês de sua saída do Pelotense, que se

deu alguns anos após ao término de sua atividade docente:

Eu fui demitido em 1974, por razões políticas. Saí por uma conjunção de dois motivos: ia fazer uma pós no Canadá em Sociologia e porque tinha assumido, no Governo da Prefeitura de Pelotas, um novo Prefeito e um Secretário de Educação muito “de direita”, que tinha contas a acertar com alguns professores do Colégio Pelotense. Então, ele fez uma “limpa” no Colégio Pelotense e eu fui um dos que saiu nessa ocasião. Mas o período coincidiu com meu interesse em estudar fora do Brasil, o que foi muito bom.

Ou seja, nenhum dos professores da época permaneceu na instituição no

período em que se dá a ruptura com o Ensino de Filosofia. Dessa forma, não tenho

como avaliar os efeitos da Segunda LDB na vida desses educadores enquanto

professores de Filosofia do Pelotense na época. Em outros lugares, acredito que

alguns professores de Filosofia tenham sido deslocados de suas áreas para lecionar

outras disciplinas. Todavia, no caso do CMP, não há dados que me permitam falar

mais amplamente sobre os efeitos da reforma de ensino de 1971 no Colégio,

especificamente no campo da Filosofia.

Na visão dos professores que lecionaram no colégio, há um consenso de

que a extinção da Filosofia foi um acontecimento extremamente negativo na história

da nossa educação. Alguns dos professores trazem elementos importantes para

olharmos o passado.

Lopes Neto enxerga a extinção da Filosofia como uma coação que serviu

aos interesses do Estado. Em suas palavras: “foi uma arbitrariedade. Não era

interessante. Tudo que te tira a liberdade é antijurídico”. Assim, de uma forma

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“antijurídica”, fomos privados da liberdade de um ensino crítico e de tantas outras

atividades que um governo ditatorial reprime e proíbe.

Cavalheiro Leite também lamenta a extinção da disciplina. Afirma que

“Em todos os campos, (...) a Filosofia abre a perspectiva de discussão. Filosofia é

fundamental”. Como reflexos da ausência deste ensino para uma geração, o

professor dá o exemplo de seus filhos: “(...) meus filhos também não tiveram

Filosofia e não têm gosto pela Filosofia. Então, de perguntas do tipo “o que é o

conhecimento?”, eles foram privados”. Ou seja, foi criada uma geração não-

filosofante, da qual eu, enquanto aluna na minha formação inicial, tive o desprazer

de fazer parte.

O Prof. Dr. Manoel Vasconcelos20, docente da disciplina de Filosofia já em

tempos de democracia, também considera a retirada da Filosofia uma lástima e

concorda com a posição do Prof. Cavalheiro Leite. Vasconcelos afirma que “A

Filosofia faltou e prejudicou toda uma geração”.

Luís Felipe Claus, professor de Filosofia nos anos 1990 no CMP, também

lamenta a extinção do ensino de Filosofia e percebe que uma geração inteira ficou

alijada de um conhecimento mais crítico.

O Prof. Ubirajara Velasco, docente da disciplina de Filosofia no CMP de

1998 até os dias atuais, considera que, como consequências da retirada da Filosofia

das escolas, percebe-se uma série de dificuldades herdadas por essa lacuna no

ensino:

O que se vê é uma dificuldade imensa de pensar criticamente, desenvolver um texto com uma certa lógica, de desenvolver um texto minimamente exigido pela Língua Portuguesa, com uma introdução, um desenvolvimento e uma conclusão; as pessoas têm dificuldade de fazer uma redação, por mais simples que seja. Penso que em grande parte, o Regime Militar, além de todas as outras coisas que a gente poderia dizer sobre ele, mas em termos de Educação, prestou um desserviço imenso ao desenvolvimento social do país. Evidentemente, pessoas que não pensam são muito mais

20 Todas as citações do Prof. Dr. Manoel Vasconcelos foram extraídas de entrevista realizada, disponíveis nos apêndices deste trabalho.

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facilmente dominadas. E isso ainda vigora e ainda há gente que pensa que o mundo está aí, interpretado e pronto e vamos deixar assim. Está bom do jeito que está. Eu tenho plena convicção que atrapalhou bastante essa geração que não pôde ler, que não teve acesso à Filosofia, aos grandes pensadores, a pelo menos, algumas leituras, mínimas que fossem, que pudessem jogá-los numa busca maior, numa tentativa de descoberta do mundo a partir de leituras diversas pra formar a sua própria convicção sobre as coisas.21

Uma das atuais professoras de Filosofia, que leciona para os cursos de

formação de professores no Pelotense, a Profª Me. Ana Lúcia Almeida22 salienta o

fato da saída de muitos professores do país nesse período: “Imagino que deva ter

sido uma grande perda intelectual brasileira, esse período rompe com a trajetória de

crescimento intelectual, as pessoas que pensavam aqui tiveram que ir pensar fora,

foi uma lástima”.

Sendo assim, espero, positivamente, que esse seja o único episódio de

retirada da possibilidade do Ensino da Filosofia no Brasil. O Colégio Municipal

Pelotense certamente perdeu muito nesse período que se deu entre 1972 e 1989. O

Brasil, no seu sentido geral, perdeu ainda mais: ficou com esta lacuna entre 1972 e

2008. Desta forma, a atitude dos diretores do Colégio Pelotense de extinguir a

Filosofia somente quando foi obrigada a fazê-lo e de retornar assim que as

possibilidades se fizeram presentes, é um exemplo para a nossa educação

pelotense, gaúcha e brasileira. Que esse período sem Filosofia seja, então, o único

“vácuo” na história tanto dos Gatos Pelados, quanto da educação do Brasil.

21 Todas as citações do Prof. Ubirajara Velasco foram extraídas de entrevista coletada por mim, disponível na íntegra nos apêndices deste trabalho.

22 Todas as citações do Profª Me. Ana Lúcia Almeida foram extraídas de entrevista realizada por mim, disponíveis nos apêndices deste trabalho.

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CAPÍTULO 4. O RETORNO DA FILOSOFIA APÓS OS MOVIMENTOS DE MOBILIZAÇÃO COM VISTAS À REDEMOCRATIZAÇÃO DO PAÍS – DE 1985 A 2000

O momento é importante no Brasil. Todos o são. A filosofia tem uma

oportunidade de atualizar suas possibilidades educacionais. Para tal,

precisa transformar seu presente. Como? Transformando-se a si mesma.

Como? Pensando-se a si mesma. Como? Através de si mesma.

Sílvio Gallo e Walter Omar Kohan

4.1. Contextualização Histórica – Por uma nova democracia

O ano de 1985 é um marco na história brasileira, indubitavelmente.

Depois de vinte e um anos de um regime severo e repressor, como foi a ditadura no

nosso país, finalmente, a democracia tão sonhada pelo povo brasileiro é

conquistada.

O movimento de redemocratização no Brasil, por certo, não ocorreu

automaticamente. Construiu-se através de um processo, de um enfraquecimento do

regime ditatorial, e do movimento social das Diretas Já23, que mobilizou o povo em

uma luta pelo direito de eleger seus próximos governantes através de eleições

23 O movimento social “Diretas Já” foi uma campanha popular que reivindicava o direito de eleições diretas para presidente da República. Intensificou-se nos últimos meses de 1983 e teve seu ápice em 1984, com diversas manifestações públicas nas ruas, onde o povo saía vestindo camisetas amarelas (que significavam a cor da campanha), levando bandeiras e faixas e fazendo o maior barulho possível (batendo panelas, tocando a buzina dos carros, gritando, etc). De acordo com PILETTI (1992, p. 187) “O país, em toda a sua história, nunca vira manifestações públicas tão numerosas, alegres e ordeiras, sem distúrbios, sempre terminando com o Hino Nacional entoado por todos os presentes, de mãos dadas para o alto, num clima de grande emoção”.

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diretas. No entanto, em 85, isto ainda não aconteceria. O Governo Federal

conseguiu barrar a Lei Dante de Oliveira e o próximo governante ainda foi eleito

indiretamente pelo povo, representado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado

Federal. Assim, Tancredo Neves foi escolhido para ser o próximo Presidente da

República.

No entanto, por uma fatalidade, Neves não chegou a tomar posse no

cargo, vindo a falecer em 21 de abril de 1985. Uma frustração para o povo brasileiro,

que apostava no futuro governo com esperança de tempos melhores. Dessa forma,

José Sarney, vice-presidente na chapa de Tancredo Neves, assume o poder e se

torna o presidente que consolidou em seu governo a esperada democracia

brasileira.

O Governo Sarney pouco ou quase nada avançou em relação à

diminuição da desigualdade brasileira e em suas tentativas de estabilizar o setor

econômico. Porém, é durante seu governo que, por pressão da sociedade civil

organizada, acontece a confirmação do espaço democrático e a promulgação da

Constituição de 1988, que se mantém vigente até os dias de hoje.

No ambiente mundial, acontece em 1989 a queda do muro de Berlim, que

marca a decadência do socialismo na Europa, simboliza o fim da Guerra Fria e

representa para o resto do mundo a descrença em um sistema político com ideais

marxistas de igualdade e divisão entre povos.

No Brasil, a esperança de eleger um presidente por voto direto finalmente

concretiza-se nas eleições de 1989. Fernando Collor de Mello é eleito pelo povo,

através de voto direto, ou seja, democraticamente. No entanto, seu governo deixou

muito a desejar e se tornou uma grande decepção para a nação que o escolhera.

Collor, além de não conseguir êxito em seus planos para conter a inflação que

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dominava avassaladoramente o mercado financeiro da época, foi ainda acusado de

corrupção política e desvio de dinheiro público; culminando na impugnação de seu

mandato como presidente, através de um processo de Impeachment, sendo

substituído por seu vice-presidente, Itamar Franco, que permaneceu na presidência

até o término do mandato.

O período pós-1985 pode ser caracterizado como um tempo de

reconstrução. O Brasil clamava por mudanças e já havia conquistado algumas,

como a tão sonhada trajetória inicial em direção à democracia, no sentido de uma

maior abertura política e do direito de eleger seus representantes. Mas, de fato,

muita coisa ainda teria que ser modificada. A inflação era um problema constante,

que atingia de forma acentuadíssima e diretamente a cada um dos brasileiros. A

escolha democrática ainda não fora atingida com êxito, pois o presidente eleito não

cumpriu seu mandato devido à descoberta de diversas irregularidades em sua

administração e de denúncias de corrupção e de desvio de dinheiro público. E na

Educação, a Lei de Diretrizes e Bases escrita nos anos 70 tornara-se obsoleta e

ultrapassada para um país que precisava mudar também a sua forma de educar as

atuais gerações. Ghiraldelli Júnior (2001, p. 161-162) nos fala desse período de

redemocratização:

A nova democracia tem sido, de fato, o período de maior liberdade e de maior respeito dos diversos setores sociais para com as instituições políticas democráticas brasileiras, se comparado com toda a história do país. Paradoxalmente, durante todos esses anos, a concentração de riqueza no país aumentou assustadoramente. A discussão da política educacional, o embate das ideias pedagógicas e a legislação, tudo isso, ganhou um nível de complexidade jamais visto, dada a complexidade [sic] da própria população brasileira, que depois dos anos setenta ultrapassou a casa dos cem milhões de habitantes.

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4.2. - Ensino de Filosofia no CMP – a reinserção da Filosofia

Pelotas, no período de 1985 a 2000, foi governada pelos seguintes

prefeitos: (1987-1989) José Maria Carvalho da Silva (MDB); (1989-1993) José

Anselmo Rodrigues (PDT); (1993-1997) Irajá Andara Rodrigues (PMDB); e (1997-

2000), novo mandato de José Anselmo Rodrigues. O CMP teve como diretores os

professores Luís Magno D'Ávila Bonini (1986-1989); Maria Laura Vianna Villela

(1989-1995); e Luiz Eduardo Brod Nogueira (1996-2005). Este último, é hoje

vereador na cidade de Pelotas pelo PPS, tendo seu primeiro mandato em 2005/2008

e o segundo mandato em 2009/2012.

O Colégio Pelotense, obviamente, como toda e qualquer instituição ou

lugar, era afetado culturalmente e politicamente pelos acontecimentos históricos que

ocorriam no Brasil. Sentia a necessidade de renovação e de aperfeiçoamento

constante. O espírito libertário e crítico, constantes em toda a sua história, eram

mantidos. E o momento, no final dos anos oitenta e início dos anos 90, tornava- se

propício para modificações curriculares e aberturas nos conteúdos de ensino.

Sob essa perspectiva, o diretor da época, o Professor Luiz Magno D'Ávila

Bonini, bem como sua equipe, resolveram reintroduzir a Filosofia na escola.

Convidaram, então, o Prof. Dr. Manoel Vasconcelos para lecionar a disciplina na

instituição. O Prof. Dr. Manoel Vasconcelos lecionou no colégio de 1989 até a

metade de 1991. Com sua saída, o professor Osvaldo Zolet assumiu a disciplina,

concluindo o ano letivo de 1991. Nesse mesmo ano, houve Concurso Público para

suprir a vaga de professor de Filosofia. Quem assumiu o cargo foi o Prof. Luis Felipe

Claus, em 1992, o primeiro professor de Filosofia efetivo após a reimplantação do

sistema político democrático. O professor Claus permaneceu no cargo até o ano de

1995. Em 1996, foi empossado o Prof. Ubirajara Velasco, que leciona no Pelotense

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até os dias de hoje. A Filosofia, depois de dezessete anos, finalmente retornava ao

educandário! Sem dúvida, uma atitude singular para a época, já que as escolas não

tinham a obrigação de manter um espaço para o ensino da disciplina. Vasconcelos

nos fala sobre como se deu o retorno da disciplina no CMP:

O CMP foi a primeira escola em Pelotas que retornou o Ensino de Filosofia, em 1989, depois da Ditadura. Oportunizaram duas aulas por semana na carga horária para os terceiros anos do Ensino Médio, por acreditarem que os alunos já estavam em uma fase de amadurecimento maior. Não tinham professores de Filosofia. Fui convidado e o convite se deu a partir do diretor Bonini. Eu era professor da UCPel e fui cedido através de um empréstimo de professores. O Prof. Isvani, que era do CMP foi cedido para a UCPel e eu fui cedido para o CMP; foi uma troca. Trabalhei até 1991, até passar no concurso da UFPel. Era professor da Católica cedido no Colégio Pelotense, sem vínculo com a Secretaria de Educação. Na época, eu tinha 25 anos e estava com toda vontade de trabalhar. Foi das minhas melhores experiências educacionais e tenho muito orgulho de ter participado deste processo, de ter sido o primeiro professor de Filosofia depois da Ditadura e de ter trabalhado no CMP.

Vasconcelos relata que suas lembranças dessa época são muito boas.

Afirma que os alunos eram muito receptivos, sedentos por reflexões que

conduzissem à possibilidade de crítica, apesar de haver alguns que questionassem

o ensino e a presença da disciplina na escola, já que se tratava de um conhecimento

que não era cobrado nas provas dos vestibulares da região. Conta que o apoio e a

valorização da direção do colégio foi muito importante e que ele mesmo elaborava

os planos de ensino e escolhia os conteúdos a ser trabalhados nas turmas. Relata

que suas aulas eram expositivas e que trabalhava a partir de textos e os alunos

preparavam seminários para ser apresentados aos colegas de aula, realizando o

trabalho a partir de temas filosóficos.

Chamo atenção para o fato de o professor da época propor aos discentes

a apresentação de seminários. Creio que esta metodologia é um recurso de acordo

com uma pedagogia que propõe o aprendizado e que instiga o espírito reflexivo dos

alunos. Um seminário consiste em informar um público sobre um tema determinado.

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Para isto, o(s) apresentador(es) deve(m) ter pleno domínio oral do assunto tratado,

pois não se consegue uma comunicação com a plateia que o(s) assiste(m) se não

se conhecem os temas a serem apresentados. O professor interfere atuando como

um mediador entre o(s) apresentador(es) e o restante da turma que os assistem.

Ademais, uma outra vantagem do uso da metodologia consiste no diálogo que pode

ocorrer entre o(s) alunos que apresenta(m) o trabalho e os demais, podendo ser um

instrumento eficaz para se promover a criticidade, o questionamento dos

conhecimentos passados e para uma integração maior entre o(s) grupo de alunos.

Sobre a realização de seminários, Severino fala: “O objetivo último de um seminário

é levar todos os participantes a uma reflexão aprofundada de determinado

problema, a partir de textos e em equipe” (2000, p. 63). Embora Severino faça tal

afirmação direcionando a metodologia para os cursos universitários, creio que esta

metodologia possa também ser estendida para os cursos de Ensino Médio. Penso

ainda que, o quanto antes os alunos se habituarem a este tipo de trabalho, melhor

serão suas reflexões e amadurecimentos nas próximas experiências com

seminários.

Os temas trabalhados nas aulas do Prof. Vasconcelos foram Introdução à

Filosofia, História da Filosofia, Ética e Antropologia Filosófica, com destaque

principal para os dois últimos assuntos. O docente não usava nenhum livro em

especial para trabalhar em sala de aula, mas lembra de, eventualmente, utilizar a

obra Filosofando, de Maria Lúcia de Arruda Aranha. Caracteriza o ensino realizado

de acordo com os modelos críticos. Perguntado se o ensino da disciplina de Filosofia

havia contribuído para a formação de consciências críticas, Vasconcelos respondeu-

me: “Sim, mas não a Filosofia isoladamente e sim em conjunto com as outras

disciplinas. A escola era muito democrática, o que contribuía para um ambiente

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106

favorável para isso. Tudo na escola era votado, escolhido por todos. O conjunto

disso tudo é que favoreceu a criticidade”. Severino, a respeito da democracia,

afirma:

A democracia é também uma qualidade da vida dos homens, baseada no reconhecimento e no respeito mútuos, ou seja, é modalidade de convivência social, em que as relações entre os homens não sejam relações de dominação, opressão, exploração ou alienação (1994, p. 98)

Assim, percebe-se que a totalidade do ambiente escolar, através de uma

democracia efetiva, auxilia, indubitavelmente, na formação da crítica do educando. A

criticidade, apesar de ocupar um lugar de excelência nas aulas de educação

filosófica, não acontece somente no ensino da disciplina. Se o meio escolar favorece

o pensar, através de decisões compartilhadas democraticamente, do trabalho das

outras disciplinas atuando de forma contrária aos padrões tradicionais de ensino,

certamente, o ensino da Filosofia será muito mais satisfatório. A Filosofia tem a sua

importância e possui a missão de formar habilidades que possam contribuir para a

construção de alunos críticos e pensantes, mas não deve ser a “mártir” ou a grande

“salvadora” dos problemas escolares. Um ensino entrelaçado com outras disciplinas

é fundamental para um trabalho integrador, que seja contrário ao “conhecimento de

gavetas”, em que cada conteúdo acontece de forma distante e isolada dos outros.

Todos os conhecimentos que compõem a grade curricular das escolas visam um

único objetivo: a formação dos alunos para que esses possam tornar-se seres

desenvolvidos em todos os seus aspectos e potencialidades. Ou seja, o aluno é um

ser unificado, podendo (e devendo) aproveitar os conteúdos apre(e)ndidos em todos

os instantes de seu viver e desenvolvendo habilidades não apenas em uma ou outra

aula, mas no todo de suas experiências.

Vasconcelos permaneceu como docente da disciplina de Filosofia até a

metade do ano de 1991. Com sua saída, o Professor Osvaldo Zolet assumiu as

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107

turmas em que o Prof. Manoel Vasconcelos lecionava. Neste mesmo ano, houve um

Concurso Público para suprir a necessidade da vaga e a fim de que se pudesse ter a

garantia de um professor efetivo. Luís Felipe Claus foi classificado em primeiro lugar

para exercer o cargo de professor de Filosofia. Em maio de 1992, o professor

assume a vaga, permanecendo no cargo até o ano de 1995, lecionando para os

terceiros anos do Ensino Médio e para o curso de Magistério.

Para a escrita da dissertação, entrevistei o Prof. Luís Felipe Claus. Claus,

ao recordar suas aulas nos anos 90 no CMP, avalia sua experiência como

extremamente válida e relata que tinha uma grande dificuldade em relação aos

conteúdos e aos materiais utilizados nas aulas. Por serem aulas incipientes, os

temas eram abrangentes e não muito delimitados. Não existiam livros didáticos a

recomendar aos cursos de Ensino Médio, o que dificultava o planejamento do

professor em relação a escolhas de textos e materiais a serem trabalhados em aula

e o professor permanecia, assim, em uma constante busca do que e de que forma

trabalharia com os alunos.

Em relação a metodologias, Claus conta como era a sua forma de

trabalhar Filosofia no Colégio Pelotense:

Aulas expositivas, dialogadas, conteúdos no quadro, alguns textos, um pouco de leitura dos clássicos, eu gosto muito dos clássicos, a gente não pode fugir deles, não podemos menosprezar Aristóteles, Sócrates, os próprios Pré-Socráticos ... Da literatura clássica eu lia alguns textos, então, se eu falava sobre política eu lia ali um pedacinho do “Contrato Social”, alguma coisa sobre Thomas Hobbes, John Locke, pequenos textos assim, não todo, mas uma parte principal que elucidava, corroborava com o conteúdo que eu estava dando, para que o aluno criasse o amor, ou criasse ao menos a intenção de saber que existe um clássico, que foi tirado aquele conteúdo daquele clássico. Até hoje eu procuro ler pedaços de clássicos e trazer o livro e mostrar o livro pro aluno. Manusear, ver o livro ali e tal, criar amor ao livro. Gostava muito disso.

Saliento a posição do professor de ensinar Filosofia através dos clássicos

da Filosofia. Perguntado se preferia trabalhar a disciplina através de temas

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filosóficos ou da própria História da Filosofia, o docente respondeu-me: “Eu prefiro

através da História da Filosofia. Eu sou bem conteudista. Eu pego uma linha de

pensamento e eu venho por ali”. Claus se preocupava com o cumprimento dos

conteúdos propostos e estes conteúdos eram organizados de forma que pudessem

contribuir com o ensino posterior que alguns alunos teriam: o Ensino Superior.

Devido ao fato de trabalhar com terceiros anos, o educador considerava importante

preparar os estudantes para o que veriam nos anos seguintes dentro da

universidade. Nas palavras de Luís Felipe Claus, os conteúdos eram selecionados

“tentando usar a Filosofia como utilidade dentro da universidade. Para que eles não

chegassem na universidade e ouvissem termos e vissem filósofos que eles nunca

tinham visto. Tem que ter um conhecimento prévio”. Ademais, eram trabalhados

também nas aulas do docente, o Existencialismo, com ênfase nas teorias de Jean-

Paul Sartre e de Soren Kierkegaard.

Quanto à posição do professor de trabalhar Filosofia de forma conteudista

e através da História da Filosofia, cito as palavras de René José Trentin Silveira,

extraídas do artigo “Um sentido para o Ensino de Filosofia no Ensino Médio”, que

auxiliam a elucidar a proposta pedagógica de Claus:

A ênfase nos conteúdos, vale dizer, não significa que se deva transformar o ensino de filosofia em transmissão mecânica, fixa e abstrata das ideias dos filósofos. Antes, é preciso que esses conteúdos estejam em conexão com os problemas concretos escolhidos como objeto da reflexão filosófica e que sejam apresentados em sua dimensão histórica, isto é, como resultado do esforço dos filósofos de responderem aos problemas de seu tempo, muitos dos quais se conservam pertinentes e relevantes ainda hoje. De fato, a reflexão não deve partir do zero, ainda que seu objeto seja um problema atual, mas sim do conhecimento historicamente acumulado sobre ele, pois é essa referência histórica que fornecerá aos alunos a base histórica para uma reflexão radical, rigorosa e de conjunto, evitando que permaneçam no nível do senso comum (In: GALLO, KOHAN, 2000, p.142).

Silveira, ao visar uma “reflexão radical, rigorosa e de conjunto" remete à

definição de Reflexão Filosófica postulada por Saviani. Para o autor, a “reflexão

filosófica, para ser tal, deve ser radical, rigorosa e de conjunto” (SAVIANI, 1985, p.

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24). Radical, no sentido de “que se opere uma reflexão em profundidade” (Idem,

Ibidem). Rigorosa, como um sinônimo de sistematizada; e de conjunto, ou seja, sem

que o contexto seja menosprezado.

Assim, o professor de Filosofia do CMP nos anos 1990, relata que os

alunos gostavam da disciplina de Filosofia. Apesar do rigor, da lógica e das

atividades de pensamento que a Filosofia propõe, o docente acredita que os

estudantes apreciavam a disciplina por considerarem algo diferente das demais e,

de certa forma, mais “fácil”. Cito as palavras de Claus ao se referir à Filosofia no

CMP naquela época: “Era um 'refresco' para eles, uma coisa diferente assim das

agruras da Matemática e da Física, a Filosofia era um 'refresco'”. Todavia, se houver

uma reflexão filosófica que seja congruente com a definição de Saviani exposta

anteriormente, “radical, rigorosa e de conjunto”, a disciplina poderá servir, dentro do

espaço escolar e fora dele, para algo além de um “lustro” ou um “ornamento” que

possa visar a um conhecimento elitizado e intelectualizado. Acredito no poder que a

Filosofia tenha de contribuição para que se possa pensar sobre o mundo da vida. No

mundo da vida24 se lida com política, ética, lógica, metafísica, ontologia, entre tantos

outros campos. Por isso, defendo o ensino da disciplina para crianças, jovens,

adultos e idosos: a Filosofia não requer idade mínima nem máxima, requer apenas

que se aprenda a refletir com radicalidade, rigorosidade e levando em consideração

o contexto em que se está inserido. A Filosofia deve contribuir para a formação da

cidadania. Severino define o cidadão da seguinte forma:

O homem só é plenamente cidadão se compartilha efetivamente dos bens que constituem os resultados de sua tríplice prática histórica, isto é, das efetivas mediações de sua existência. Ele é cidadão se pode efetivamente

24 De acordo com Abbagnano (1998, p. 689), “Mundo da Vida” ou Lebenswelt é um: “Termo introduzido por Husserl em Krisis, para designar "o mundo em que vivemos intuitivamente, com suas realidades, do modo como se dão, primeiramente na experiência simples e depois também nos modos em que sua validade se torna oscilante (oscilante entre ser e aparência, etc.)" (Krisis, § 44). Husserl contrapõe esse mundo ao mundo da ciência, considerado como um "hábito simbólico" que "representa" o mundo da vida, mas encontra lugar nele, que é "um mundo para todos" ((Ibid., Beilage, XIX)”.

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usufruir dos bens materiais necessários para a sustentação de sua existência física, dos bens simbólicos necessários para a sustentação de sua existência subjetiva e dos bens políticos necessários para a sustentação de sua existência social (1994, p.98).

De acordo com o conceito de cidadania exposto acima, em dezembro de

1996 o Congresso Nacional aprovou a Lei Nº 9394/96, a chamada Lei de Diretrizes

e Bases de 96, ou apenas LDB de 96. As transformações esperadas, a atualização

da legislação para o campo da educação, enfim, aconteciam. No entanto, para a

Filosofia, uma frustração: a disciplina não era indicada como disciplina obrigatória no

presente documento. Era apenas citada e havia a indicação de que, ao final do

Ensino Médio, esperava-se que o aluno fosse capaz de desenvolver o “domínio dos

conhecimentos de Filosofia e de Sociologia necessários ao exercício da cidadania”

(Lei Nº 9394/96). Paradoxalmente, esperava-se que o aluno desenvolvesse o

domínio dos conhecimentos, mas a disciplina não era obrigatória nas instituições de

ensino. A LDB/96 representou, para o ensino de Filosofia, um pequeno avanço, que

daria margem para as modificações que aconteceram em 2008.

O CMP, antes mesmo da promulgação da LDB de 1996, já oferecia a

disciplina na escola e permaneceu oferecendo, mesmo sem qualquer obrigação

legal para isso.

Para a ocasião desta pesquisa, tive a oportunidade de entrevistar o Prof.

Ubirajara Velasco, o professor de Filosofia com mais tempo de docência no ensino

de Filosofia do Colégio Municipal Pelotense, atualmente. As informações prestadas

pelo professor foram de fundamental importância, bem como todas as outras

entrevistas coletadas.

Velasco começou a lecionar no Pelotense em 1996 e foi nomeado para a

função de professor através de concurso público. Foi empossado para lecionar para

o curso de Magistério, todavia, como sua carga horária era maior do que o número

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de aulas que o curso de Magistério necessitava, Ubirajara Velasco assumiu também

as turmas de Ensino Médio. Os conteúdos abordados eram sobre a origem da

Filosofia, o que é Filosofia, o estudo da Filosofia, a Filosofia – uma atitude natural do

homem, o homem e a utopia, análises ético-antropológica do homem da sociedade

o liberalismo, o socialismo, a perspectiva existencialista, a Filosofia e a realidade

latino-americana. Como temas de Antropologia Filosófica, a Filosofia e Ciência,

questão da liberdade, Filosofia e o amor, o homem e a morte, e a dimensão política

do homem eram tratados. Também Filosofia e trabalho, as principais concepções

sobre trabalho, a civilização primitiva, as civilizações gregas, capitalismo,

socialismo, o homem e o trabalho, trabalho e dignidade humana e a dimensão ético-

antropológica do problema do trabalho.

Em relação à valorização da inclusão da disciplina pela comunidade

escolar, o professor relata: “Era uma coisa a mais no currículo. Nem os próprios

professores das disciplinas chamadas “humanas” (História, Geografia e tal), nem

eles viam com bons olhos. (…) O professor de Filosofia era algo estranho dentro do

colégio”.

Perguntado se preferia trabalhar a Filosofia a partir da sua história ou

através de temas filosóficos, o Prof. Velasco respondeu-me: “(...) eu trabalhava com

primeiros e segundos anos, então, eu trabalhava com História da Filosofia no

primeiro ano e trabalhava temáticas, temas de Filosofia no segundo ano. Sempre

dei muita importância pra História da Filosofia”. Penso que a escolha do professor

esteja de acordo com a proposta de um ensino que organiza seus conteúdos de

uma forma “equilibrada”; pois não despreza nenhuma abordagem, nem outra. Utiliza

as duas formas de ensinar a disciplina, no qual ambas possam se complementar.

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Ubirajara Velasco, apesar das dificuldades encontradas em sua carreira

docente, considera sua prática interessante e avalia de forma positiva sua trajetória.

Sobre sua maneira de trabalhar em aula, seus métodos de ensino, Velasco também

aposta na proposta de seminários nas aulas de Filosofia. Avalia os alunos dando

especial atenção à participação destes nas aulas, o desempenho oral nas

apresentações dos seminários, o trabalho escrito resultante da pesquisa para o

seminário e utiliza também, como instrumento de avaliação, uma prova escrita, por

ser esta uma obrigação legal. O professor considera fundamental o papel do diálogo

e do debate nas aulas de Filosofia.

Com a finalidade de fazer ainda mais do que a sua prática docente em

sala de aula, o Prof. Velasco, de 2000 a 2008, desenvolveu um projeto extraclasse

com seus alunos do segundo ano do Ensino Médio. O projeto intitulado

“Filosofando” tinha como lema “É possível construirmos juntos a cidade que

queremos e a sociedade que merecemos?”. O tema principal deste projeto era “a

cidade que estamos construindo – Utópolis”.

Com o olhar voltado para a aplicabilidade da Filosofia à práxis, o docente

propunha aos seus alunos, em turno inverso ao horário de aulas, o reconhecimento

da cidade que esses alunos habitavam, a nossa Pelotas. A partir daí, foram

selecionados temas para se pensar sobre a cidade, tais como: Educação, Saúde,

Meio Ambiente, Habitação, Transporte e Segurança Pública. Os assuntos,

primeiramente, foram desenvolvidos através de diversos grupos, cada um

trabalhando um tema. No decorrer do projeto, os alunos solicitaram que todos

pudessem trabalhar sobre todos os temas, com a finalidade de perceber a cidade no

seu todo e não de forma isolada. O trabalho era desenvolvido no decorrer do ano

letivo. Um dos objetivos do projeto era fornecer um retorno à comunidade pelotense,

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através da apresentação dos dados coletados e das propostas para uma cidade

utópica, imaginária, que foi batizada de “Utópolis”. O termo “Utópolis”, com a original

junção dos termos Utopia e Pólis, acabou, ao meu ver, fornecendo fiel identidade ao

projeto, tanto que, por vezes, o projeto foi mais chamado de Utópolis do que pelo

seu nome original, Filosofando. Ou seja, primeiramente, era idealizada a cidade que

poderíamos ter, de forma fictícia, (Utópolis) e, posteriormente, era feito um

diagnóstico da cidade que temos (Pelotas) para a realização de uma comparação

entre a ficção e a realidade. Na fase de identificação da cidade que se tem, os

alunos faziam entrevistas com a população, nas ruas de Pelotas. O principal texto

filosófico que embasava o projeto era a obra “Utopia” (1516) de Thomas More.

Sobre a relação entre escola e comunidade, Ubirajara Velasco fala:

O projeto é voltado para a comunidade. É a relação escola e comunidade. Como é que nós vamos transformar um aluno num sujeito autônomo, livre, crítico se ele não se envolve com a sua comunidade? Não adianta ser crítico em relação ao problema financeiro da Grécia. Nós temos que olhar para a nossa cidade. O mundo em que vivemos e sobre o qual nós podemos agir de maneira a transformar alguma coisa, a melhorá-lo. Melhorando a nós mesmos, evidentemente. Uma Filosofia que não pensa a si mesma pode ser qualquer coisa, menos Filosofia.

Assim, o que percebo é que a prática de trabalhar Filosofia ampliando os

limites do espaço e do tempo da sala de aula, de trabalhá-la através de projetos

extraclasse, possibilita que os alunos possam muito mais do que simplesmente ler

os clássicos textos filosóficos. A prática de Velasco nos mostra claramente que, ao

proporcionar um espaço de aplicabilidade dos conhecimentos filosóficos visando

transformações reais e não abstratas na vida dos estudantes, propicia-se ainda um

espaço para a conscientização, o engajamento e a formação crítica desses jovens.

Em síntese: um espaço mais amplo para o filosofar. Desidério Murcho, no artigo “A

divulgação da Filosofia”, nos fala sobre a importância do filosofar, como uma

habilidade a ser desenvolvida:

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Talvez seja possível ensinar e divulgar a filosofia de um modo que dê às pessoas a capacidade para apreciar os grandes escritos dos filósofos do passado e do presente. Mas, ensinar e divulgar a filosofia de um modo que dê às pessoas a experiência do filosofar, que lhes faça sentir a força e a realidade dos problemas e a dificuldade de lhes dar a resposta, parece uma estratégia muitíssimo mais adequada. Ao fazer isso, estaremos a dar aos estudantes e ao grande público capacidades analíticas e críticas transversais, que podem depois ser aplicadas em qualquer área da vida (In: HENNING, 2010, p. 346, grifos do autor).

Percebo, tanto na atuação de Velasco quanto na citação de Murcho, a

tese kantiana, “não se ensina Filosofia, se ensina a Filosofar”. Esta é uma proposta

defendida por vários educadores de Filosofia e teóricos da área, tese que mostra a

Filosofia não como um conhecimento meramente abstrato, com ideias longínquas e

fora da realidade. Consiste em uma habilidade, em uma capacidade de pensamento,

em algo que se constrói e que se aprende. Nesta linha de pensamento, Velasco

mostra outros benefícios, congruentes com a tese kantiana, que o projeto

desenvolvia:

(…) este projeto aqui ele não só fez com que alguns deixassem de usar uma droga à tarde para ir ao projeto, para se ocupar com alguma coisa válida, alguma coisa significativa, importante para ele, para a família, para a comunidade, não só trouxe um certo despertar, um certo amadurecimento, como fez com que o aluno da tarde fosse para a aula da manhã no outro dia mais esperto, mais livre, mais solto, pronunciando-se melhor, dizendo o que pensa sobre as coisas.

A prática filosófica vai muito além de teorias abstratas. Contribui para a

formação de um raciocínio lógico mais burilado, de uma capacidade de

argumentação mais ampla e embasada, do desocultamento das ideologias

massificadas e aceitas como “verdades” pelo senso comum, entre tantos outros

benefícios para o aluno. Em entrevista para o jornal “Diário Popular”, a aluna Paola

Vasques, com 17 anos na época, participante do Projeto “Filosofando” afirma: “Muita

gente pensa que nas aulas de Filosofia a gente fica só falando, falando, e não é

assim. Discutimos a realidade e tentamos fazer alguma diferença” (Diário Popular, 4

de abril de 2004, p. 7).

O Projeto Filosofando tinha como objetivo geral:

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Construir um espaço revigorado da vida escolar e da prática pedagógica, estimulando o debate dentro e fora do ambiente escolar, permitindo uma maior conexão com a realidade dos educandos visando uma ação consciente das posturas em relação ao mundo e aos semelhantes. 25

E, de fato, era o que acontecia. Filosofando oferecia um ambiente

democrático para os alunos, onde os mesmos podiam manifestar-se, colocando em

prática os conhecimentos adquiridos nas aulas de Filosofia, oportunizando um lugar

onde se possibilitava o pensar sobre o lugar que se tem, o que se pode conquistar

e o que seria ideal que pudessem ter. Assim, o espírito de Filosofando ou Utópolis

era exatamente esse: o de propiciar aos estudantes a compreensão de que filosofar

não é somente um mero exercício intelectual e abstrato, mas que carrega consigo a

possibilidade de, a partir desse pensamento filosófico, investigar, analisar, projetar o

ideal e constatar que mudanças são possíveis.

Uma participante do projeto, a aluna Larissa Caldeira, afirma: “A utopia é

uma forma de sociedade ideal, talvez seja impossível de realizar na Terra, mas é

nela que um sábio deve depositar todas as suas esperanças”26. Percebo, a partir do

dizer da aluna, que a utopia é um elemento importantíssimo para identificarmos o

quanto a nossa atual sociedade se distancia daquela que temos como ideal para se

viver.

Os alunos do Projeto Filosofando pensaram e estabeleceram como seria

Utópolis, a cidade perfeita. No dizer do Prof. Velasco:

Então, nós pensamos numa cidade, pensamos um perfil de um prefeito, um prefeito que tem sua sala, o seu gabinete, que toma café pela manhã, que caminha pela feira livre, que conversa com as pessoas humildes e o seu partido é o “Partido da Criatividade Social”. E esse prefeito tem uma relação de amor e ódio com determinados vereadores, também ouve críticas fortes da comunidade, alguns chegam a chamá-lo de demagogo, e esse prefeito faz coisas boas mas ele também, enfim, enfrenta problemas sérios por aí, ele chama-se Heráclito Fontes e ele aumentou em 20% o número de vagas nas escolas, ele diz que quem trabalha trabalha silenciosamente, não é

25 Texto extraído do Projeto Filosofando, de Ubirajara Velasco, disponível nos anexos deste trabalho.26 A afirmação da aluna Larissa Caldeira está presente no relato do Prof. Ubirajara Velasco, em entrevista

realizada por mim, disponível nos apêndices deste trabalho.

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necessário grandes propagandas, o trabalho é divulgado na medida em que as pessoas vêm “Aqui há uma obra pública”. E ele diz, o prefeito, que os bilhetinhos acabaram e com eles também as indicações para cargos e empregos. O clientelismo, o conchavo e a corrupção foram banidos da cidade. Hoje em “Utópolis” o prefeito atende reivindicações por meio da Associação de Moradores, além disso, as contratações emergenciais obedecem critérios que no primeiro momento são liberados pela comunidade, sem entretanto, ignorar o serviço público. Ele tem um desafeto na Câmara de Vereadores com o vereador Ulisses, o vereador Ulisses ele diz que: “Tudo é uma questão de discurso”. Pois o filósofo Górgias já ensinava que o bom orador é capaz de convencer qualquer um sobre qualquer coisa. Então, em que pese todas as suas ideias colocadas em prática, sempre há uma crítica também severa a respeito do que ele faz. Um projeto habitacional e uma tentativa de auxílio para com os mais idosos também. Há quem fale em impeachment e ele lembra que Sócrates ensinou: “Conhece-te a ti mesmo e conhecerás o universo e os deuses da cidade”.

Entretanto, Velasco propunha ir além da utopia. Num segundo momento

do projeto, os alunos saíram às ruas numa pesquisa de campo, procurando

identificar aspectos da realidade pelotense. Nesta fase do projeto, ficava explícito

que Filosofando era um projeto voltado para a comunidade. Os dados colhidos eram

organizados, analisados e publicados na imprensa local. E, certamente, comparados

com o ideal de cidade que se tinha traçado anteriormente.

A Filosofia com aplicabilidade social, conforme propunha Velasco,

representou uma aposta pioneira e de extrema originalidade. Contrário ao

argumento de que a Filosofia bastaria por si e que não deve ser instrumentalizada,

Velasco fez com que seus alunos filosofassem, conhecessem a sua realidade social

e política, propusessem alternativas de melhorias para os problemas diagnosticados

e que saíssem mais maduros, críticos e conscientes depois desta vivência. Que

pudessem utilizar os conhecimentos adquiridos nas aulas de Filosofia nas suas

vidas, que percebessem que a Filosofia é útil em todos os segmentos da vida.

Assim, ao conhecermos o trabalho dos professores de cada época, é

possível percebermos as peculiaridades de cada período e as produções que o

relacionamento entre professores e alunos é capaz de apresentar. Cada um dos

docentes, ao fazer o seu trabalho, deixa a sua “marca” na instituição e na vida de

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cada aluno. Todavia, a vida tem sua continuidade, enquanto os trabalhos por vezes

são concluídos. Vasconcelos atualmente leciona no curso de Licenciatura em

Filosofia da UFPel e o Projeto “Filosofando”, de Velasco, teve seu fim no ano de

2008. Atualmente, Ubirajara Velasco ainda leciona no CMP para o curso de Ensino

Médio, além de atuar na rede estadual e na Educação à Distância da UFPel. E Luis

Felipe Claus retornou em 2010 ao Colégio Municipal Pelotense, sendo, atualmente,

um dos professores de Filosofia da escola.

Enfim, ao reinserir a Filosofia no colégio muito antes da sua

obrigatoriedade, o CMP mostrou, mais uma vez, que é uma escola diferenciada,

aberta para a crítica e para o filosofar. Depois de muitos anos de ausência da

Filosofia nas escolas, o Pelotense manteve seu espírito inovador, recolocando-a em

seu currículo. Uma atitude totalmente de acordo com os ideais cantados no hino da

escola, que, em um de seus versos, diz: “Avante, Avante, para vencer... E no campo

da luta, Vai mostrar teu valor”... Uma instituição com 110 anos de história como essa,

segue adiante, supera as intempéries do caminho e, da mesma forma que supera os

problemas cotidianos, ainda revela-se capaz de mostrar por que é uma instituição

que valoriza o espírito crítico de seus alunos. E a reinserção da disciplina de

Filosofia neste período, é mais um fato que comprova tal afirmação.

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CAPÍTULO 5. OS MOVIMENTOS DE LUTA PELA OBRIGATORIEDADE DA DISCIPLINA DE FILOSOFIA NOS CURRÍCULOS DE ENSINO MÉDIO

O novo surge do velho. A sociedade nova é forjada a partir desta que está aí. Acontece que, sendo contraditória,

a sociedade existente traz em seu bojo as forças do novo e as forças do velho

em choque.

Dermeval Saviani

5.1. Contextualização histórica (2000-2008)

Uma virada de milênio carrega consigo mitos e esperanças. E não poderia

ter sido diferente com a chegada dos anos 2000. Se o mundo avançava no

desenvolvimento de novas tecnologias, trazia a popularização da internet e, através

dela, a possibilidade de novos hábitos, culturas e comunicações virtuais, os anos

2000 trouxeram também um universo de incertezas e crises.

Entramos na era da Modernidade Líquida, como diz Zygmunt Bauman.

Nas palavras do autor:

Los fluidos se desplazan con facilidad. “Fluyen”, “se derraman”, “se desbordan”, “salpican”, “se vierten”, “se filtran”, “gotean”, “inundan”, “rocían”, “chorrean”, “manan”, “exudan”; a diferencia de los sólidos, no es possible detenerlos fácilmente – sortean algunos obstáculos, disuelven outros o se filtran a través de ellos, empapándolos -. Emergen incólumes de sus encuentros con los sólidos, en tanto que estos últimos – si es que siguen siendo sólidos tras el encuentro – sufren un cambio: se humedecen o empapan. (…) Estas razones justifican que consideremos que la “fluidez” o la “liquidez” son metáforas adecuadas para aprehender la naturaleza de la fase actual –

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en muchos sentidos nueva – de la historia de la modernidad (2003, p.8, grifos do autor).

O contexto de crise a que me refiro remete ao estado de liquidez de que

Bauman fala. Passa-se a viver em um estado que se apresenta de forma líquida: ao

mesmo passo em que tudo é muito rápido, também é tudo muito fugaz, muito

efêmero. Para Bauman, a Modernidade Sólida cessa de existir e em seu lugar surge

a Modernidade Líquida. A primeira seria a que tem início com as transformações

clássicas e o advento de um conjunto estável de valores e modos de vida cultural e

política. Já na Modernidade Líquida, tudo é volátil, as relações humanas não são

mais tão tangíveis e a vida em conjunto, ou seja - familiar, de grupos, de afinidades

políticas - perde a consistência e a estabilidade.

Em tempos de Modernidade Líquida, o mundo se apresenta de forma

caótica. Os Estados Unidos da América e o Oriente Médio entram em conflito e, sem

dúvida alguma, o principal acontecimento mundial da primeira década do ano 2000

foi o ataque feito por terroristas da Al-Qaeda aos Estados Unidos no dia 11 de

setembro de 2001, deixando o mundo inteiro estarrecido com o que ocorrera e com

o terrorismo que se instalava.

No Brasil, situações de grande instabilidade social também

predominavam (e predominam). Violência urbana, miséria, individualismo,

desigualdade e tantos outros problemas sociais mostram o quão “dissolvidas” estão

as relações humanas, principalmente quando tais problemas são vistos como

“banais e cotidianos”. E esta situação não acontece somente no nosso país.

Estende-se a outros lugares, como sintomas e sinais típicos dos tempos

contemporâneos do qual fazemos parte. A contemporaneidade e os sentimentos que

derivam dela, são bem caracterizados por Carla Gonçalves Rodrigues, no artigo

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“Educação nesta contemporaneidade: ainda podemos traçar perspectivas e

limites?!”:

Por ora, resta a forte sensação de perda de toda e qualquer mediação. Em estado de puro estranhamento, os olhos têm as pupilas dilatadas quando suportam ver, escutar e dizer diante dos movimentos velozes que arrebatam os modos cotidianos de estar no mundo. Sem maiores dúvidas, esta contemporaneidade pode ser dita como uma nova época. Desse modo, produz questões desse momento, problematizações expostas a céu aberto com a crueza daquilo que a razão sozinha não pode entender. Há urgências neste presente insistindo em pulsar no dia a dia. Por vezes, perturbadoras elas se fazem, exigindo outra atenção, quem sabe mais redobrada (In: GHIGGI; OLIVEIRA; OLIVEIRA, 2010, p. 293)

No campo da educação, os problemas sociais, políticos e

contemporâneos, obviamente, se refletem nas escolas brasileiras; que são cada vez

mais acometidas seja por alunos que praticam e sofrem bullyng, quanto por

professores que apresentam sintomas e que desenvolvem a “Síndrome de

Burnout”27.

O Brasil fora governado, de 1995 a 2003, pelo sociólogo Fernando

Henrique Cardoso; e de 2003 a 2011, pelo ex-metalúrgico e ex-sindicalista Luís

Inácio Lula da Silva.

A Lei de Diretrizes e Bases de 1996 continua vigente até os dias de hoje,

embora com muitas modificações. Entre as principais, destaco às referentes à

Educação Básica. Atualmente, as crianças de seis anos devem ir obrigatoriamente

para as escolas; o Ensino Fundamental passou a ser oferecido em nove anos; e as

disciplinas de Filosofia e Sociologia passaram a ser obrigatórias em todos os anos

do Ensino Médio.

Entretanto, para que se chegasse à situação atual das disciplinas de

Filosofia e Sociologia no Brasil, hoje obrigatórias em toda as escolas de Ensino

27 A Síndrome de Burnout consiste em um distúrbio psíquico, caracterizado por um forte esgotamento do indivíduo em sua prática profissional. O termo foi definido pelo psicanalista norte-americano Herbert Freudenberger. Em inglês, to burn out quer dizer “queimar por completo” e esta síndrome se relaciona diretamente ao trabalho docente, causando nos professores um grande mal-estar, tendo tanto consequências físicas (dores de cabeça, distúrbios do sono, etc) quanto psicológicas (depressão, etc).

Page 121: Letícia Maria Passos Corrêa

121

Médio do país, um caminho difícil e tortuoso foi percorrido. Em 2000, foi proposto o

Projeto de Lei nº9 (nº 3178/97 na Câmara dos Deputados) que objetivava alterar a

Lei de Diretrizes e Bases de 1996, colocando as disciplinas de Filosofia e Sociologia

como obrigatórias para o Ensino Médio. Todavia, em 8 de outubro de 2001, através

da Mensagem nº1073, o projeto foi vetado, ironicamente, pelo Presidente da

República da época, o sr. Fernando Henrique Cardoso, sociólogo e professor de

Sociologia.

Os argumentos a favor do veto, redigidos pelo MEC, representado pelo

Ministro da Educação da época, o Sr. Paulo Renato Costa Souza, foram os

seguintes:

(…) o projeto de inclusão da Filosofia e da Sociologia como disciplinas obrigatórias no currículo do ensino médio implicará na constituição de ônus para os Estados e o Distrito Federal, pressupondo a necessidade da criação de cargos para a contratação de professores de tais disciplinas, com a agravante de que, segundo informações da Secretaria de Educação Média e Tecnológica, não há no País formação suficiente de tais profissionais para atender a demanda que advirá caso fosse sancionado o projeto, situações que por si só recomendam que seja vetado na sua totalidade por ser contrário ao interesse público (BRASIL, Mensagem nº1073, de 8 de outubro de 2001).

Porém, ao analisar a conjuntura, percebo que os dois argumentos

expostos acima são falaciosos e não condizem com a realidade. Em primeiro lugar,

não se trataria de aumentar a carga horária dos cursos, tampouco gerar ônus com a

contratação de novos professores a mais no quadro docente: o que caberia ser feito

é uma reavaliação das grades curriculares, diminuindo a carga horária de algumas

disciplinas em favor da inserção da Filosofia e da Sociologia, portanto, a verba para

o pagamento dos professores seria a mesma, sem gerar aumento nos custos da

Educação Básica. Em segundo lugar, o argumento que afirma não haver número

suficiente de professores para suprir a demanda é mentiroso, pois existem inúmeras

universidades no país que oferecem os cursos de Licenciatura em Filosofia, com

número de egressos de tais cursos, aptos ao ingresso no mercado de trabalho.

Page 122: Letícia Maria Passos Corrêa

122

Assim, em tempos de crise e Modernidade Líquida, a Filosofia mais uma

vez, no âmbito nacional, foi rejeitada. Passo, então, à análise de como se deu esse

período no Colégio Municipal Pelotense, com a constatação de que ainda existem

escolas onde, mesmo que as condições nacionais não sejam as preferíveis, ainda é

possível fazer escolhas que privilegiam a formação do aluno em seu sentido amplo e

humanizador.

5.2. Ensino de Filosofia no CMP de 2000 a 2008 – da presença à obrigatoriedade da Filosofia

Pelotas, dos anos 2000 a 2008, foi governada por Otelmo Demari Alves

(PDT - 2000-2001), Fernando Stephan Marroni (PT - 2001-2005), Bernardo Olavo

Gomes de Souza (PP - 2005-2006) e Adolfo Antônio Fetter Júnior (PP - 2006 – dias

atuais). O Colégio Municipal Pelotense foi dirigido pelos professores Luiz Eduardo

Brod Nogueira (1996-2005) e Marita Nebel (2005 - dias atuais).

O Colégio Municipal Pelotense, em 2002, foi marcado pelas

comemorações de seu centenário; com diversas festividades relativas à data.

Seguiu, nesses anos, sua trajetória, comum a de tantas outras escolas, com o

compromisso de educar em todos os setores de seu espaço escolar. Acompanhei

esse período da história do CMP ao assumir o cargo de Oficial Administrativo na

biblioteca da escola. Ingressei no cargo em 2003 e permaneci até 2010. Embora

não tenha exercido efetivamente a docência nessa época no Pelotense, posso falar

sobretudo do que eu observava ao trabalhar no colégio. E o que tenho a dizer é que

vi de perto o trabalho exercido por vários setores, atendendo a professores e alunos.

E conheci muitas pessoas que desempenhavam seu trabalho com compromisso e

afinco, da melhor maneira possível. Acredito que a educação e formação acontecem

em todos os seus espaços físicos. E o trabalho desenvolvido na Biblioteca Salis

Goulart era realizado nesta perspectiva: não apenas de empréstimo de livros e

periódicos, mas de educação e conscientização quanto à importância da leitura e da

responsabilidade quanto aos prazos de entrega dos materiais emprestados. Falando

mais especificamente do meu trabalho lá nesses anos, posso dizer que tentei

Page 123: Letícia Maria Passos Corrêa

123

contribuir para a formação de leitores de obras filosóficas, indicando livros e

incentivando a leitura dos alunos que se interessavam por esta área.

A Filosofia, mesmo em tempos de veto nacional, no Colégio Municipal

Pelotense já encontrara um espaço consolidado. Presente desde 1989 para o

Ensino Médio, nos anos 2000 amplia seu papel. O pensamento de Mattew Lipman,

com seus estudos sobre Ensino de Filosofia para crianças, nessa época começa a

ser difundido no Brasil e o CMP resolve adotar o Ensino de Filosofia também para

os alunos das séries finais do Ensino Fundamental. De acordo com Vânia Alves

Martins Chaigar, coordenadora pedagógica na gestão 2000-2002, a Filosofia passou

a ser ensinada para os alunos de quintas, sextas, sétimas e oitavas séries em 2002.

A inserção da disciplina para estas séries dá-se através do interesse, da mobilização

e da valorização do diretor da escola nessa época, o Prof. Luiz Eduardo Brod

Nogueira, popularmente conhecido como Professor Adinho, e do trabalho dos

representantes das áreas das Ciências Sociais do Serviço de Orientação

Pedagógica (SOP). Nas palavras de Chaigar:A crise da vida moderna com a destruição do planeta em níveis alarmantes e o afastamento do homem de valores como a cooperação e a solidariedade, só para citar dois exemplos, está a evidenciar a falência desse modelo. Isto gerou a re-significação de currículo, no Colégio, como sendo:“Conjunto de habilidades, competências e conhecimentos desenvolvidos, preferencialmente, de forma integrada pelas diferentes áreas de saber de modo a possibilitar ao/a aluno/a a compreensão dos fenômenos do cotidiano em sua totalidade e o exercício de uma cidadania ativa” (Regimento Escolar do Colégio Municipal Pelotense, Pelotas, RS, p. 12, 2001).Essa visão de currículo escolar levou-nos, no Colégio, a uma distribuição mais equilibrada entre as cargas horárias das Ciências Exatas, Ciências Humanas e Artes. Levou-nos também a incluir a Filosofia em todo o ensino fundamental, da 5ª a 8ª série; criar as disciplinas de Literatura, e incluí-la da 5ª série até o 3º ano do ensino médio, Sociologia, no 1º e '2º ano do ensino médio noturno e Língua Espanhola, da pré-escola à 5ª série do ensino fundamental, mantendo-se as demais disciplinas tradicionais (CHAIGAR, In: AMARAL, 2002, p. 197/198, grifos meus).

Considero este ponto mais um item a favor da inovação do Colégio em

termos do Ensino de Filosofia. Em tempos em que a disciplina sequer era solicitada

no Ensino Médio, o Pelotense já havia inserido a disciplina, também no Ensino

Fundamental. Vale ressaltar que o Ensino de Filosofia para o Ensino Fundamental

até hoje não é obrigatório por lei e a instituição ainda o mantém, sem que esteja

legalmente obrigado a isso, mas, pelo simples fato de valorizá-lo em seu Projeto

Político Pedagógico.

Page 124: Letícia Maria Passos Corrêa

124

O Ensino de Filosofia, certamente, logrará maior êxito se for iniciado o

mais cedo possível. De acordo com Lipman:(…) a filosofia oferece às crianças a oportunidade de discutir conceitos, tais como o de verdade, que existem em todas as outras disciplinas mas que não são abertamente examinados por nenhuma delas. A filosofia oferece um fórum no qual as crianças podem descobrir, por si mesmas, a relevância, para suas vidas, dos ideais que norteiam a vida de todas as pessoas. Com o passar do tempo, a presença da filosofia nas escolas é mais aceita, mais aprovada, e o que cada vez mais surpreende é o fato de ter estado ausente até agora (1990, p,13).

O Colégio Pelotense, no período de 2000 a 2008, contou com o trabalho

de sete professores de Filosofia. Procurei, ao longo da pesquisa, entrevistar ou

recolher depoimentos por escrito de todos os professores da instituição, com a

finalidade de que não houvesse dúvidas em relação à escolha dos sujeitos da

pesquisa. As pessoas entrevistadas foram todas aquelas que se dispuseram a

participar do estudo proposto; com a intenção de valorizar cada docência por igual,

ao invés de recolher relatos de um professor e não de outro, o que poderia valorizar

o trabalho do colaborador e não valorizar o daqueles que pudessem não ter sido

escolhidos ou convidados para participarem da pesquisa. Desta forma, foram, ao

todo, entrevistados dez professores e uma aluna no decorrer da pesquisa.

Todavia, a participação na pesquisa é livre e os docentes têm o direito de

não querer fornecer os dados necessários ao estudo, sem quaisquer ônus ou

prejuízo aos que não participaram. Nos outros períodos (de 1960 e 2000), consegui

a colaboração de todos os docentes da disciplina de Filosofia. Entretanto, no

período de 2000 a 2008, dos sete professores de Filosofia que integraram o quadro

docente da instituição, apenas quatro se dispuseram a participar da pesquisa.

Quanto a isto, acredito que a não participação destes docentes seja um dado

também a ser avaliado. Possuo algumas hipóteses em relação à não-participação:

em função da falta de tempo disponível para que fosse respondido um questionário

com perguntas semi-estruturadas, já que o docente atual é sobrecarregado por uma

jornada exaustiva de trabalho, aliando duas ou mais escolas e atividades

concomitantes para garantir um sustento digno para si e sua família; em função do

desinteresse e desmotivação para pensar e refletir sobre suas práticas, ou ainda,

por motivos pessoais de cada professor, que nada têm a ver com as hipóteses

anteriores.

Pois bem, dos sete professores de Filosofia neste período, me deterei

aqui em relatar os dados que possuo, através dos relatos dos quatro professores

Page 125: Letícia Maria Passos Corrêa

125

que se dispuseram e autorizaram a publicação de seus nomes na escrita da

dissertação. Em relação aos demais, opto por não divulgar nomes e não mencionar

atividades desenvolvidas na escola.

Os professores que integraram o quadro docente da disciplina de

Filosofia, no período de 2000 a 2008, e que aceitaram participar desta pesquisa

foram os seguintes: Prof. Ubirajara Velasco, Profª Me. Ana Lúcia Almeida, Prof.

Maurício Cunha e Profª Flávia Schaun.

Sobre a atuação de Ubirajara Velasco, penso que não seja necessário

apresentá-la novamente, visto que, no capítulo anterior, já expus sua trajetória

docente na escola, bem como minhas análises sobre sua prática como professor.

Gostaria apenas de enfatizar que o professor Ubirajara Velasco desenvolveu suas

atividades em dois períodos estudados pela minha pesquisa: Velasco atuou tanto

nos anos 90, período de reintegração da disciplina de Filosofia no CMP, quanto nos

anos 2000, desenvolvendo um trabalho com grande participação dos alunos através

do Projeto Extra-Classe intitulado Filosofando. Velasco, até os dias atuais, ainda

leciona Filosofia na instituição.

A Profª Me. Ana Lúcia Almeida ingressou no corpo docente do CMP em

2003, lecionando, inicialmente, para uma turma do Ensino Médio e tendo sua carga

horária dividida entre o Pelotense e outra escola do município; através de um

contrato com a Secretaria de Educação de Pelotas. No ano seguinte, passou a ser

efetiva na instituição, através de nomeação realizada a partir de um concurso

público para o cargo de professora de Filosofia. Nesse ano, em 2004, lecionou

turmas de 6ª série. E em 2005, foi convidada pela direção do colégio para lecionar

no curso de formação de professores em Educação Infantil, função que exerce até

os dias atuais.

Através de entrevista realizada para a pesquisa, a Profª Ana Lúcia

Almeida relatou-me diversos elementos importantes que fazem parte das memórias

de seu trabalho no CMP. Entre eles, a docente relata a dificuldade que tinha em

lecionar para os alunos surdos, em função deles não terem um vocabulário

diversificado como a Filosofia exige. Neste ponto, ressalto que o Colégio Pelotense

é uma escola que propicia a inclusão no que se refere ao acesso e à presença de

alunos com necessidades especiais. A escola é toda adaptada com rampas, portas

largas e lugares amplos. Conta com vários intérpretes de LIBRAS e atende alunos

surdos, cadeirantes, portadores da Síndrome de Down, entre outros. No Pelotense,

Page 126: Letícia Maria Passos Corrêa

126

encontra-se um número expressivo de alunos surdos e a escola promove políticas

educacionais direcionadas a uma educação que ensine para a diversidade e para as

diferenças, em que todos os alunos possam viver de forma integrada, respeitando

ao próximo. Como funcionária da instituição, lembro-me também da dificuldade de

me comunicar com os alunos surdos. Atenta à isto, a Secretaria de Educação

ofereceu, aos docentes e funcionários do Pelotense, cursos em vários níveis, da

Linguagem Brasileira de Sinais. No início, para toda a comunidade, as diferenças

assustavam a todos. Entretanto, aos poucos elas foram se naturalizando, fazendo

parte de nossos cotidianos e as adaptações de ambos os lados foram se efetuando,

da melhor forma possível.

Almeida, ao falar de sua prática como professora de Filosofia, afirma:Eu gosto de ser professora e gosto de ser professora de Filosofia, então quase sempre, meu discurso é o mesmo para meus alunos, que fui ser professora de Filosofia para “botar minhoca na cabeça dos outros”. Sempre explico pros meus alunos qual é a função da “minhoca”, que a minhoca da terra serve para arejar, ela mexe com aquela terra que está endurecida, fazendo com que ela respire, para que assim possam brotar coisas novas. E essa é muito a função do professor de Filosofia, pelo que me proponho, não me preocupo tanto com a questão da História da Filosofia ou de conceitos muito prontos de Filosofia, me preocupo com que eles construam, que eles se ponham a pensar as coisas e comecem a pensar por eles mesmo. É cansativo, é difícil, mas eu gosto muito de fazer isso.

Suas metodologias de Ensino de Filosofia são diversificadas e adaptadas

a cada público de alunos. Com as crianças, a educadora prefere trabalhar Filosofia

através de contos e histórias que levam o aluno a pensar sobre os temas

apresentados, seguindo o referencial e as propostas de Mattew Lipman. Para alunos

maiores, aulas expositivas são a opção preferencial da professora. Trabalha ainda

com projetos. Para as avaliações, Ana Lúcia Almeida opta por não aplicar provas.

Propõe trabalhos que levem o aluno a raciocinar, com um grau de complexidade que

exige tanto quanto uma prova escrita em relação ao nível de dificuldade, mas que

não tenha perguntas tão “prontas”, que levem a respostas decoradas, como por

vezes se observa em provas. Sobre os conteúdos escolhidos para suas aulas, a

docente enfatiza questões de Cosmologia, que acredita envolver o aluno iniciante no

universo filosófico. Trabalha ainda com Teoria do Conhecimento, Antropologia

Filosófica, Política e Mitologia Grega. Afirma que seus alunos se identificam bastante

com os filósofos pré-socráticos e que Aristóteles também é um filósofo que costuma

atrair a atenção dos estudantes.

Page 127: Letícia Maria Passos Corrêa

127

Em relação à escolha de livros didáticos, Almeida afirma: “Gosto muito do

“Filosofando” (de Maria Lúcia de Arruda Aranha) “casado” com o “Pensando Melhor”

(de Angelica Sátiro e Ana Miranda Wuensch)”.

Sobre a opção entre trabalhar Filosofia através de sua história ou a partir

de temas filosóficos, Ana Lúcia Almeida afirma que usa a História da Filosofia como

uma ferramenta quando necessária, mas que suas aulas não seguem a História da

Filosofia. Acredita que, hoje em dia, seja possível trabalhar dessa forma devido à

abertura social e política que temos no momento, o que proporciona um ambiente

capaz de tornar possível aulas mais questionadoras e críticas.

Questionada se a Filosofia é valorizada pela comunidade escolar do

Colégio Municipal Pelotense, Almeida fala:São vários colegas, com vários olhares. Tem o olhar do colega que acha a filosofia inútil, tem o olhar de alguns colegas que respeitam e pedem para trabalhar junto. De modo geral, acho que a Direção do Colégio valoriza a Filosofia. De parte dos alunos, acho que eles ainda têm um pouco de preguiça, mas têm muita curiosidade. Pego alunos muito bons. Se aprende melhor com o professor que tu gostas, o vínculo afetivo é importante, tento trabalhar bem dessa forma. A Filosofia é uma área humana e deve ter tolerância com a questão do humano.

Almeida, no final da consideração exposta acima, além de avaliar o olhar

da comunidade escolar para a disciplina de Filosofia, chama a atenção para um

ponto de extrema importância para a prática docente. Valoriza a afetividade, o

contato entre professor e alunos de uma forma que ambos enxerguem-se como

pessoas, seres humanos. Acredita ainda no potencial humanizador da Filosofia. Por

tratar de questões que são comuns a todos os homens, a Filosofia é capaz de

humanizar e abrir os olhos dos alunos para questões éticas, solidárias e

congruentes com a coletividade do mundo e da sociedade que todos nós vivemos.

Em relação aos conteúdos, a professora também se preocupa com o envolvimento

dos alunos com a disciplina e com a contribuição, o sentido, que a Filosofia possa

fazer para cada estudante. Visto dessa forma, um conteúdo não é apenas um saber,

mas algo do que o aluno apropria-se, que passa a fazer parte de si, do seu eu, de

sua formação enquanto humano. E só carregamos para nossas vidas aquilo que

realmente nos toca, nos faz sentido; da mesma maneira que o vínculo afetivo

também é essencial: por vezes um aluno passa a gostar do conteúdo exposto em

função do relacionamento com o professor, da maneira como é tratado durante as

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128

relações pedagógicas. Na esteira deste pensamento, trago as palavras de René

José Trentin Silveira:(…) se a filosofia é um trabalho sério de reflexão, é também amor, desejo (philo) pelo saber. Nesse sentido, é importante que as aulas de filosofia consigam seduzir os alunos e despertar neles o prazer da reflexão, da busca da verdade, da crítica rigorosa, para que tomem gosto pela prática do filosofar e se disponham a continuá-la após o término do processo pedagógico (In: GALLO; KOHAN, 2000, p. 143).

Ana Lúcia Almeida enxerga o retorno da Filosofia dos tempos hodiernos

como algo difícil. Percebe que os dias atuais são marcados pela evolução da

informática e das tecnologias e que a Filosofia ainda é muito presa a livros. Diz

também que o mundo age de uma forma muito rápida e que a Filosofia é um

processo lento, que exige um certo tempo para que se possa pensar sobre certas

questões. Almeida descreve a capacidade que a Filosofia possui de se atualizar,

pois a cada dia surgem novas questões possíveis para o filosofar. Como exemplos,

a professora cita a Bioética, a Inteligência Artificial, a Eutanásia, a Estética

Contemporânea e as questões relativas à linguagem. Almeida indica sugestões para

um melhor Ensino de Filosofia, que apontam para as dificuldades de ser professor

na realidade brasileira. Penso que as palavras de Almeida, embora aqui estejam

sendo direcionadas ao professor de Filosofia, sejam cabíveis aos demais

professores da Educação Básica. No dizer da educadora:Acho que tem que haver cursos de formação pra quem está na rede28, a carga horária de Filosofia deveria aumentar para os alunos, mas diminuir o número de turmas que o professor de Filosofia tem. É muito estressante o cotidiano e as questões da Filosofia são profundas, é um desafio.

No ano de 2004, o Prof. Maurício Cunha passou a fazer parte do quadro

de professores de Filosofia do CMP. É efetivo no cargo que ocupa, tendo sido

empossado através de concurso público. Atualmente é também o Coordenador da

disciplina de Filosofia do Colégio Pelotense. Leciona, no momento atual, turmas de

8ª série, mas já foi docente de turmas de 7ª séries do Ensino Fundamental e de 2º

anos do Ensino Médio.

Através de depoimento escrito pelo professor com a finalidade de

contribuir para este trabalho dissertativo, Cunha cita os conteúdos trabalhados em

suas aulas. Os principais pontos abordados pelo professor são: Ética, Percepção,

Senso Comum, Senso Crítico, Nascimento da Filosofia, Política, Lógica, Estética,

Verdade, Pensamento, Razão, Discriminação e Violência. Ressalto a abordagem

28 Neste ponto, Ana Lúcia Almeida se refere à rede municipal de ensino.

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dos dois últimos conteúdos: Discriminação e Violência. São temas que não são

especificamente filosóficos, mas passíveis de reflexões filosóficas e que, ao meu

ver, surgem nas aulas de Filosofia como problemas sociais típicos dos nossos

tempos de crise e de Modernidade Líquida. Questionado se algum filósofo ou escola

filosófica em especial são abordados em suas aulas, o docente respondeu-me que

“Dependendo do assunto são trabalhadas várias visões para que o aluno tenha uma

percepção global do assunto”.29

Maurício Cunha utiliza as obras de Gilberto Cotrim, Marilena Chauí e

Maria Lúcia Arruda Aranha como material didático. Tenta, no exercício de sua

função docente, aliar o cumprimento dos conteúdos com a prática de debates e

discussões em sala de aula. Crê que o Ensino de Filosofia tenha o potencial de

contribuir com a formação do cidadão crítico em nossa sociedade e enxerga a

obrigatoriedade do Ensino de Filosofia como “um ato que tenta fazer o nosso

cidadão ser mais consciente no mundo”.

Em 2007, a Profª Flavia Schaun tomou posse no cargo docente para a

disciplina de Filosofia do CMP. A educadora também é efetiva na atividade que

desempenha e leciona atualmente turmas de 5ª e 6ª séries do Ensino Fundamental.

Schaun relata que, no início de sua docência no CMP, teve dificuldades

em relação à falta de interesse dos alunos pela disciplina de Filosofia. Acredito que

isto se deva às dificuldades com que todo professor se depara quando inicia uma

nova atividade em uma instituição. A professora avalia-se como alguém que tem

muito a aprimorar e se considera uma pessoa em constante busca de novas

maneiras de trabalhar os assuntos filosóficos que as aulas exigem. Em suas aulas,

como recursos didáticos, utiliza textos para reflexão, debates e filmes. Ressalta o

uso de filmes como uma ferramenta que atrai a atenção dos alunos e facilita o

entendimento sobre o conteúdo. Confesso que compartilho com Schaun a opção de

trabalhar desta forma o ensino da Filosofia. Gosto de expor a teoria clássica de um

pensador e, posteriormente, ilustrá-la com algum recurso audiovisual e/ou

multimídia que venha a atrair a atenção dos estudantes e despertá-los para a

temática proposta. Sobre a escolha de ousar em filosofar com recursos diferentes

dos clássicos textos filosóficos, Gallo e Kohan falam:(…) há diversas posturas em relação ao espaço propriamente filosófico. Embora a grande maioria dos professores de filosofia atuantes no Ensino

29 Todas as citações do Prof. Maurício Cunha foram extraídas de depoimento escrito pelo próprio docente, disponível no Apêndice desta pesquisa.

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130

Médio brasileiro considere que a filosofia se encontra nos textos, as perguntas “o que é um texto?” e “o que é um texto adequado para ensinar filosofia?” podem ser compreendidas de forma muito diversas, desde uma postura mais restritiva, concentrada nos textos escritos pelos filósofos clássicos, até formas menos tradicionais, que propõem a utilização de outros instrumentos, como filmes, estórias em quadrinhos, literatura, músicas e outras produções culturais não desenvolvidas pelos filósofos profissionais (2000, p. 180).

A Profª Flávia Schaun relata que os conteúdos com mais ênfase nas suas

aulas são os relativos à Origem da Filosofia, aos Períodos da Filosofia, ao

pensamento dos filósofos gregos (Sócrates, Platão, Aristóteles) e a

questionamentos sobre o conhecimento. Adota como principais livros didáticos para

o trabalho em aula, as obras de Cotrim e Chauí. Procura, no decorrer de suas aulas,

expor e cumprir os conteúdos propostos; entretanto, mantém-se atenta às reações

da turma em relação ao interesse dos alunos para os temas apresentados por ela.

Na opinião da professora, a Filosofia não é muito valorizada pela

comunidade escolar. Acredita que a Filosofia é vista como algo desnecessário, que

se mantém somente por sua obrigatoriedade no Ensino Médio. Para a educadora, a

Filosofia tem o seguinte papel no contexto social: “(...) contribui para desenvolver a

capacidade dos alunos de criticar, de pensar, de ter opiniões sobre os

acontecimentos do mundo, e não apenas assistirem e aceitarem tudo como está”30.

Schaun percebe que, depois da obrigatoriedade do Ensino de Filosofia nas escolas

brasileiras, através da Lei nº11684/08, aos poucos, as pessoas estão conhecendo e

vendo o quanto a Filosofia é algo importante. É um processo novo e lento, que no

olhar da docente, “a lei só se fez cumprir algo que já deveria existir”. Acredita que,

no momento atual, não sejam necessárias mudanças relativas ao ensino da

disciplina e acredita que basta cada professor gostar da atividade que

desempenha. No olhar da professora, o importante é que cada docente que leciona

Filosofia comprometa-se com sua função, esforce-se para aprimorar sua prática e

seja capaz de tornar os conteúdos da Filosofia mais atraentes para os alunos.

Enfim, é dentro dessas variações e contextos que o Ensino de Filosofia

acontece, até o ano de 2008. Entretanto, de 2008 para 2012, passaram-se quatro

anos e o Ensino de Filosofia nas escolas segue e se mantém até hoje. Embora não

seja o meu objetivo nesta pesquisa apresentar o ensino até os dias atuais, não

posso deixar de mencionar algumas coisas que percebi nos últimos tempos.

30 Todas as citações da Profª Flávia Schaun foram extraídas de depoimento escrito pela educadora para a contribuição desta pesquisa. O depoimento está disponível no Apêndice deste trabalho.

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Algumas das questões que me acompanham para olhar para a disciplina de

Filosofia são: “A Filosofia está aí, mas como, de que forma?”, “O Ensino de Filosofia

realmente encontrou uma posição consolidada na educação brasileira?”, “Qual é a

identidade da disciplina de Filosofia nos dias de hoje?”. Tentarei expor algumas das

minhas observações.

Acredito que de 1960 para cá muito se avançou, certamente. Um avanço

extremamente significativo, que eu gostaria de mencionar, é o fato que o Prof. Luís

Felipe Claus relatou-me em sua entrevista: que, em 2012, cada aluno de Ensino

Médio receberá do Governo Federal o seu livro didático da disciplina de Filosofia.

Um ganho de suprema importância, sem dúvida alguma. No caso do Pelotense, os

professores escolheram a obra “Filosofando”, de Maria Lúcia de Arruda Aranha e

Maria Helena Pires Martins.

No mais, acredito que ainda há muito trabalho a ser feito por nós,

professores de Filosofia. A disciplina ainda precisa se consolidar efetivamente, dizer

a que veio, mostrar a sua “cara”, a sua verdadeira identidade. E esta não é uma

tarefa fácil. É um trabalho longo, mas que deve ser feito de forma permanente. E

por qual motivo digo isto? Mencionarei dois exemplos.

Walter Omar Kohan retoma o histórico do Ensino de Filosofia nas escolas

brasileiras e fala de uma deliberação aprovada no estado de São Paulo e que, ao

meu ver, é um indício de alerta para o restante dos Estados brasileiros:A Filosofia e a Sociologia fizeram parte do currículo escolar no Brasil até a década de 1970, quando a ditadura militar as excluiu da grade e colocou em seus lugares as disciplinas Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política Brasileira (OSPB). Em 2001, um projeto de lei complementar, proposto pelo deputado federal Padre Roque (PT-PR), tentou incluir novamente Filosofia e Sociologia no currículo escolar do ensino médio, mas foi vetado por Fernando Henrique Cardoso, na ápoca presidente do Brasil. Em 2008, o deputado federal Ribamar Alves (PSB-MA) retomou a tentativa e teve sucesso. Ele é o autor da Lei nº11.684 de 2 de junho de 2008, que incluiu Filosofia e Sociologia como disciplinas obrigatórias em todas as séries do ensino médio. Entretanto, essa obrigatoriedade passa por alguns revezes. A deliberação nº77/08 do conselho Estadual de Educação de São Paulo (CEESP) permitiu que as aulas fossem diluídas no currículo, não precisando se configurar como matérias específicas. Entidades representativas articulam forças para revogar o parecer (2011, p. 40).

Penso que, embora este seja um fato isolado que diz respeito ao Estado

de São Paulo, não pode ser menosprezado. Se lembrarmos dos acontecimentos de

1961, que tornou a Filosofia disciplina optativa nos estabelecimentos de ensino,

podemos ver como os fatos se articulam de maneira sutil até culminarem em

deliberações a nível nacional.

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132

O outro exemplo que considero importante trazer é o de um infeliz

comentário publicado por uma revista de circulação nacional, formadora de opinião

e de ideologias e lida por grande parte da população. Refiro-me à Revista Veja. Na

edição de 28/09/11, a revista publicou uma reportagem sobre as leis mais “inúteis” e

“ridículas” implantadas no Brasil. Entre elas estava a Lei nº11.684/08, para minha

total indignação e de tantos professores de Filosofia que leram a reportagem, que se

manifesta da seguinte forma:

(…) os brasileiros figuram nas piores colocações em disciplinas como ciência, matemática e leitura, no rancking do Programa Internacional de Avaliação de Alunos. Em vez de empreender um esforço para melhorar o quadro lastimável da educação brasileira, o governo se empenha em tornar obrigatórias disciplinas que, na prática, só vão servir de vetor para aumentar a pregação ideológica de esquerda, que já beira a calamidade nas escolas (CARELLI; SALVADOR, 2011, p. 93).

Assim, torna-se explícito que nós, enquanto educadores e professores de

filosofia, temos ainda muito trabalho pela frente. A aprovação da Lei nº11684/08

representa somente o início de muito trabalho que ainda temos pela frente para

consolidação dessas disciplinas que já têm um espaço garantido por lei, mas que

ainda precisam fortalecer-se e mostrar suas verdadeiras identidades e suas

relevâncias, para que a história não venha a repetir-se e a exclusão aconteça uma

vez mais.

Em relação ao CMP, acredito que na escola há iniciativas individuais de

certos professores que contribuem positivamente na formação de alunos críticos e

questionadores da sociedade em que vivem. Assim, a instituição segue de acordo

com seu ideal, disponível no site do colégio:

As ações desenvolver-se-ão, no sentido de construir uma cidadania participativa, através de um ensino crítico, que signifique o conhecimento, valorize o lúdico e estimule a cooperação, reconhecendo o aluno como um sujeito concreto e capaz de (re)fazer sua história (COLÉGIO MUNICIPAL PELOTENSE, 2011).

Assim, é com o prenúncio deste lema que a escola segue seu curso e

ainda educará muitos Gatos Pelados; que percorrerão seus verdes espaços para,

dali em diante, irem rumo aos coloridos cenários de suas vidas.

Page 133: Letícia Maria Passos Corrêa

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho visou apresentar a história da disciplina Filosofia, no Colégio

Municipal Pelotense, de 1960 a 2008. Nele, procurei apresentar o ensino

desenvolvido no CMP, com os objetivos de mapear o trabalho realizado na

instituição e de perceber a presença da criticidade nas aulas de Filosofia do

educandário.

Em relação ao meu percurso na pesquisa, tenho a nítida impressão de

que muito ainda teria a ser dito sobre a temática proposta. No projeto de qualificação

do projeto da pesquisa, tinha a intenção de perceber o Ensino de Filosofia no CMP

em sua ampla totalidade: através do testemunho de alunos, diretores, funcionários e

demais envolvidos com a disciplina no período proposto. No entanto, por razões de

delimitação e da necessidade de rigor quanto ao cumprimento do prazo estabelecido

para a execução da pesquisa, optei por perceber o ensino através da visão dos

docentes que a lecionavam. Assim, resta a possibilidade de que novos trabalhos

possam surgir a partir do início que foi dado através da dissertação.

De minha parte, penso que seja importante ressaltar que este trabalho

exigiu de mim um grande esforço e dedicação, em função de ser uma pesquisa

inovadora e inédita quanto ao seu objeto de estudo, pois não havia estudos sobre o

Ensino de Filosofia na cidade de Pelotas, tampouco no Colégio Municipal Pelotense.

Devido a esta razão, a dissertação mostra-se de maneira a suscitar outras e novas

questões. Contudo, acredito que o objetivo de apresentar o trabalho desenvolvido no

Colégio Pelotense tenha sido cumprido.

Na primeira parte do trabalho, apresentei os delineamentos da pesquisa.

Tive a necessidade de me apresentar enquanto pessoa e de tornar explícitas as

minhas motivações enquanto pesquisadora. Dentre elas, minha ligação com o

Pelotense contribuiu para que eu conhecesse melhor o colégio e pudesse relatar

com maior embasamento o trabalho desenvolvido dentro da escola. E pertencer à

geração que foi privada do ensino da Filosofia me instigou para que eu pudesse, de

Page 134: Letícia Maria Passos Corrêa

134

alguma forma, através do estudo, preencher esta lacuna da minha vida estudantil,

acadêmica e profissional.

Posteriormente, julguei que seria relevante apresentar ao leitor um

panorama geral de obras e autores que possam ampliar as visões desta pesquisa.

Preocupei-me ainda em tornar claro os procedimentos metodológicos e

teóricos do estudo apresentado. Com a finalidade de elucidar os conceitos utilizados

na pesquisa, escrevi um subcapítulo sobre a categoria “crítica”, visando situar o

leitor sobre o que eu pretendia dizer quando me referia a um ensino crítico. Percebo

a crítica como um ingrediente fundamental a um Ensino de Filosofia que pretenda

formar alunos questionadores, pensantes e aptos a “filtrarem” as ideologias que o

senso comum dita como verdades incontestáveis; diferenciando os pensamentos

ideológicos daqueles construídos com o auxílio da razão e do pensamento reflexivo.

Sobre a possibilidade de instrumentalizar a Filosofia, mesmo que possa parecer um

tanto pragmatista, não vejo problema algum ao afirmar que a Filosofia pode, sim,

representar um conhecimento de grande utilidade na formação dos jovens. O fato

dela servir como um “filtro” não quer dizer que se queira formar um cidadão

resistente em relação às ditas “certezas”, mas que este possa ser capaz de

encontrar as suas próprias verdades, ou seja, pensar e discernir por conta própria e

cultivar a faculdade de realizar julgamentos.

Sobre o referencial teórico escolhido para dar sustentabilidade à

pesquisa, julguei importante explicar o que seria uma perspectiva histórico-crítica;

como esta perspectiva pode fornecer embasamento para o Ensino de Filosofia; e

quais autores seriam os principais representantes de tal panorama teórico. Percebi

que a Filosofia, no contexto brasileiro, sofreu diretamente um processo dialético em

relação à sua presença nos currículos escolares.

Na segunda parte da dissertação, desenvolvi a pesquisa de fato. Em

todos os capítulos, procurei, primeiramente, descrever uma contextualização

histórica do período apresentado e, posteriormente, relatar o Ensino de Filosofia no

Colégio Municipal Pelotense.

O primeiro capítulo seguiu a delimitação cronológica da situação da

Filosofia partindo de 1960 até 1964, ano que ocorreu o Golpe Militar. Em 1961, de

disciplina obrigatória a Filosofia passou a ser oferecida em caráter optativo, através

do Decerto de Lei nº4024/61. No Colégio Pelotense, a disciplina foi ministrada pelo

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135

Prof. Dr. Silvino Lopes Neto, que contribuiu para um ensino crítico e de excelência

na instituição.

No capítulo seguinte, tratei do Ensino de Filosofia de 1964 a 1972.

Através do Decreto-Lei 869/69, as disciplinas Educação Moral e Cívica e

Organização Social e Política Brasileira foram incluídas na grade curricular das

escolas. Concluo que a Filosofia não foi extinta das escolas de maneira precipitada

ou devido à conjuntura dos fatos da época. Defendo o pensamento relativo a que

sua extinção tenha sido algo planejado estrategicamente, que se deu, em uma

primeira instância através da retirada de seu caráter obrigatório em 1961 e, num

segundo momento, através da inserção das disciplinas EMC e OSPB; com a

finalidade de substituição dos pressupostos filosóficos pelos pensamentos cívicos,

dogmáticos e alienantes que serviriam de acordo com as proposições do exército

brasileiro. No Pelotense, a Filosofia foi ensinada pelos professores doutores Arabela

Rotta e José Luiz Marasco Cavalheiro Leite, que a lecionaram de maneira

extremamente competente e que nos levam a deduzir que suas práticas docentes

eram de acordo com os ideais da perspectiva histórico-crítica. Outro ponto a ser

enfatizado é o fato da disciplina de Filosofia ter permanecido no CMP até o ano de

1972, momento que ocorreu a segunda Lei de Diretrizes e Bases Brasileira.

O capítulo seguinte tratou da situação da Filosofia no período de 1972 até

1985, ano da redemocratização do Brasil. A Filosofia, nesse tempo, foi proibida e,

contraditoriamente, permitida. Digo que a melhor definição para o estado da

disciplina nessa época é que a possibilidade de seu ensino nas escolas brasileiras

foi “sufocada” pelas circunstâncias e pelas direções de um tempo ditatorial que não

proporcionava nenhuma condição para que seu ensino fosse desenvolvido. Houve,

nessa época, uma tentativa de reinserção da Filosofia nas escolas, através do

Projeto de Lei Nº 356-A, de 1983, redigido pelo deputado José Fogaça. Todavia, o

projeto acabou sendo arquivado, o que comprova o “sufocamento” do qual eu falava

anteriormente. No Pelotense, nesses anos, a Filosofia, infelizmente, não pôde ser

ensinada. Assim, confesso que senti dificuldades de falar de algo que não ocorreu,

de falar da ausência, do que não foi. Me detive, então, às visões dos docentes da

instituição: os de antes da extinção e os que vieram depois dela; com a finalidade de

demonstrar o sentimento e as consequências percebidas pelos docentes de Filosofia

do Colégio Municipal Pelotense.

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No penúltimo capítulo, parti do ano de 1985 até a chegada do ano 2000.

Relatei o processo de redemocratização no Brasil e de reinserção da Filosofia no

Colégio Pelotense, que aconteceu em 1989. Destaco que a reinserção da Filosofia

no Pelotense nessa época é um fato extremamente significativo e que comprova a

visão da equipe diretiva da época comprometendo-se com a formação de alunos

críticos. Nesse espaço de tempo, a Filosofia foi ensinada no CMP pelos professores

Manoel Vasconcelos, Osvaldo Zolet, Luís Felipe Claus e Ubirajara Velasco. Nesse

período aconteceu também a promulgação da Lei nº 9394/96, nossa atual Lei de

Diretrizes e Bases da educação brasileira.

Enfim, no capítulo final desta pesquisa, retratei o período de 2000 a 2008,

ano que foi aprovada a Lei nº 11684, que torna obrigatório o Ensino de Filosofia e

Sociologia nos cursos de Ensino Médio. Caracterizo esses tempos, próximos do

nosso contexto atual, de acordo com a Pós-Modernidade e com a Modernidade

Líquida. São tempos em que parece haver uma ausência de fortes paradigmas

filosóficos e que, em função disso, um momento de instabilidade acontece. Não há

mais um fundamento último, uma metanarrativa para explicarmos a sociedade,

tampouco grandes discursos. Há um rompimento com a ideia de fundamento, não

havendo mais os critérios ou a razão e sim, uma pluralidade de critérios e razões, ou

seja, um certo relativismo. Penso que, embora a delimitação desta pesquisa tenha

se dado até o ano de 2008, ainda estamos dentro deste modelo de sociedade, ou

seja, não avançamos e nem modificamos este arquétipo social. A era que estamos

inseridos é aquela que valoriza o quanto um indivíduo possui, ao invés do quão ele

possa ser. As pessoas são vistas nesse modelo como mercadorias, descartáveis e

coisificadas. A imediatez é uma ordem social e tudo que necessitar de um certo grau

de tempo para amadurecer e enriquecer é visto como obsoleto e ultrapassado.

Nesse ínterim, a Filosofia no ano de 2001 foi vetada pelo ex- Presidente da

República e Sociólogo Fernando Henrique Cardoso. Entretanto, em 2008, em uma

outra tentativa, finalmente foi obtida a aprovação do projeto e a Filosofia retornou em

caráter obrigatório nas escolas. Deixo então as seguintes questões, longe de serem

respondidas nesta dissertação: “Qual o papel da Filosofia em tempos de

Modernidade Líquida?” e “Que contribuições de fato a Filosofia pode dar para uma

superação deste modelo social?”. No Colégio Pelotense, nos últimos anos a que a

pesquisa refere-se, a Filosofia foi ensinada por vários professores. Destes, cito os

nomes daqueles que concordaram em participar da pesquisa. São eles: Prof.

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Ubirajara Velasco, Profª Me. Ana Lúcia Almeida, Prof. Maurício Cunha e Profª Flávia

Schaun. Ressalto o fato de a Filosofia, no CMP, em 2002, passar a ser também

oferecida aos alunos de 5ª a 8ª séries do Ensino Fundamental. Por fim, menciono

alguns exemplos de como está a situação da Filosofia no contexto nacional,

alertando para possíveis desvalorizações e tentativas de dissolução da disciplina em

outras localidades brasileiras.

Com a escrita deste texto, pretendo apontar para que a continuidade do

Ensino de Filosofia aconteça da melhor forma possível. Não pretendo traçar

nenhuma fórmula mágica, tampouco nenhuma receita de como será possível o

continuar dessa caminhada. Mais do que trazer alguma orientação propositiva em

relação ao método, tenho a intenção de que esta pesquisa possa contribuir para um

melhor entendimento do que aconteceu com a disciplina de Filosofia no contexto

brasileiro, exemplificado pelo histórico de uma escola local, o Colégio Municipal

Pelotense. Em função da pesquisa ser do tipo “Estudo de Caso”, meus resultados

são parciais, específicos do contexto investigado. Todavia, mesmo tratando de um

caso particular, mantive a pretensão de que o exemplo da escola investigada

pudesse contribuir para um campo maior, ou seja, para a situação nacional da

disciplina Filosofia nas escolas do Brasil.

Assim, os direcionamentos que escolho indicar como tendências para os

novos tempos da Filosofia, remetem diretamente aqueles que encontram-se de

acordo com um ensino crítico. Proponho um ensino que vá além de simplesmente

“desmontar” conceitos, que se faça preocupado com a historicidade e com o

contexto social. Penso em processos educacionais que ultrapassem a doxa e

remetam aos limites da razão. Aponto, ainda, para uma educação que saiba lidar

com as subjetividades trazidas por cada aluno para o campo da sala de aula e que

possa transformar esta bagagem em conteúdos a serem trabalhados, entrecruzados

com os conteúdos propostos pela disciplina. Saliento a importância de aulas que

façam sentido aos alunos, portadores de tantas impressões subjetivas distintas.

Sugiro que os conteúdos programáticos das aulas de Filosofia possam contribuir

para a formação destes mesmos alunos, que possam levar a Filosofia para a vida

deles, adquirindo tanto a habilidade que Kant nos fala, de aprender a filosofar,

quanto àquela proposta por Hegel, de aprender a Filosofia, a apreciar seus sistemas

filosóficos, a lógica, etc.

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138

Penso que uma das discussões mais enfatizadas nesta dissertação girou

em torno de como ensinar a Filosofia. Ensinar a Filosofia ou ensinar a filosofar? Dito

de outra forma: o que queremos (devemos ou pretendemos) ensinar aos nossos

alunos? Ensinar conteúdos ou ensinar uma habilidade? É inegável que esta é uma

questão paradoxal que se apresenta a todos os docentes desta disciplina. Não irei,

contudo, propor ou partir em defesa de uma ou outra abordagem. Creio que ambas

possuem seu valor e que, em momentos distintos, o professor pode e deve utilizá-

las em sua prática enquanto professor de Filosofia. Parafrasendo Kant31, eu diria que

“Filosofar sem o suporte histórico é vazio e que estudar somente a História da

Filosofia sem filosofar, é cego”.

Para isto, ressalto algo que me parece redundante, mas que considero

primordial. No caso do Colégio Pelotense, todos os professores entrevistados

possuem graduação em Filosofia. Entretanto, sabemos que em outras tantas

escolas o mesmo não acontece. Não quero, com este comentário, desvalorizar o

trabalho de docentes que não são graduados em Filosofia e que lecionam a

disciplina. Alerto, apenas, para o fato de que isto não é o ideal; que para a execução

de um ensino crítico de Filosofia, torna-se mister o preparo quanto à formação dos

professores da área. É fato que avançamos em relação à situação atual da Filosofia

no momento atual brasileiro. De excluída à obrigatória, a Filosofia faz-se presente

novamente nas escolas. Contudo, para garantir que sua identidade atual seja

construída da melhor maneira possível, é fundamental o preparo dos profissionais

que a lecionam.

No cenário geral do Brasil no ramo educacional, é evidente que, se

avançamos em alguns segmentos, regredimos em tantos outros. A educação pública

brasileira, sob muitos aspectos é decadente. Tanto na valorização dos professores,

que recebem uma remuneração demasiadamente baixa para o exercício da função,

quanto no fato de as condições de trabalho apresentarem-se de forma

extremamente precária. Chamo atenção ainda para a superlotação das salas de

aula e para a necessidade dos nossos docentes precisarem lecionar em várias

instituições para garantir um salário que lhes garanta a remuneração mínima para

manter suas necessidades pessoais. No caso do Colégio Municipal Pelotense,

saliento que, em nível de ensino público, o colégio é uma referência muito positiva

31 A frase original kantiana é “Pensamentos sem conteúdo são vazios, intuições sem conceitos são cegas”. (KANT, 1999, p. 92)

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no cenário pelotense. Sua estrutura física é excelente, com laboratórios de várias

áreas, ginásio, amplos pátios, pracinha, duas bibliotecas (uma delas específica para

o público infantil), salas de informática, anfiteatro, etc. Seu ensino também apresenta

bons resultados em sua ampla totalidade. A procura por matrículas na instituição é

muito grande, fazendo com que o ingresso na escola se dê através de sorteio

público pois o colégio não suporta a enorme procura de pessoas interessadas em

estudarem lá. Entretanto, por ser uma escola pública municipal, o Pelotense

apresenta também os problemas comuns às demais escolas públicas no que se

refere à baixa remuneração dos professores e funcionários que trabalham na

instituição, fato que certamente influencia negativamente as relações educacionais

que lá acontecem.

Sobre a carga horária da disciplina de Filosofia, no contexto atual, que

oferece uma ou duas aulas semanais dependendo da organização curricular de

cada instituição, penso ser esta também uma grande dificuldade em relação ao

ensino da disciplina. Partindo do princípio defendido por mim nesta dissertação, que

indica que a Filosofia tem o compromisso de formar alunos mais críticos e

conscientes das suas realidades, podemos ser levados a perguntar-nos se este

objetivo realmente é possível diante das inúmeras dificuldades que temos ao ensinar

a disciplina. Entretanto, mesmo concordando que as limitações são inúmeras, penso

que, enquanto professores de Filosofia, não podemos nos esquecermos do nosso

papel e da função social que exercemos. Se simplesmente culparmos o sistema

educacional brasileiro por todas as falhas, se nos eximirmos da nossa

responsabilidade enquanto docentes e se concordarmos que está tudo perdido e

que não há o que fazer, não temos porque ensinarmos conhecimento algum. Mas

se, dentro do que é possível fazer, assumirmos o compromisso de modificar a

educação existente e de ensinar aos alunos os conhecimentos filosóficos e a

habilidade de filosofar e pensar criticamente, estaremos avançando em direção à

formação de uma sociedade mais consciente e crítica de seu papel social, humano e

transformador.

Enfim, o que ocorre é que a história do Ensino de Filosofia do Colégio

Municipal Pelotense não acaba em 2008. Desta época para cá, já se passaram

quatro anos e a história da disciplina no educandário segue seu curso. E espero que

prossiga numa linha contínua: sem cortes ou extinções. Que a disciplina se

consolide no cenário nacional e que o CMP possa ensiná-la da melhor forma

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possível, contribuindo para a formação de cidadãos críticos e filosofantes. Desta

forma, confesso que sinto dificuldade em concluir algo que não está concluído, que

não acaba no ano de 2008, com a delimitação de minha pesquisa. Então, opto pela

não conclusão. Escolho dizer que a história segue seu curso e que este trabalho

encontra-se em aberto para quem se disponibilizar a atualizá-lo, pois novos tempos

virão e, com eles, a necessidade de olhares atentos aos acontecimentos presentes e

futuros. Por ora, penso que um primeiro registro do percurso da Filosofia no colégio

foi realizado e com ele, o propósito da pesquisa foi atingido. Assim, encerro este

trabalho com a certeza de que muito com ele aprendi e com a esperança de que

este estudo possa contribuir e instigar para que outros tantos possam acontecer.

Page 141: Letícia Maria Passos Corrêa

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Page 148: Letícia Maria Passos Corrêa

APÊNDICES

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APÊNDICE A - Roteiro para entrevistas com professores e alunos da disciplina de Filosofia no Colégio Municipal Pelotense, no período de 1960 a 2008

1. Qual foi a sua ligação com a disciplina de Filosofia no período?

2. Quando (em que período) você teve a experiência com o Ensino de

Filosofia?

3. Quais são suas recordações dessas aulas?

4. Como você avalia o Ensino de Filosofia experienciado?

5. Que didáticas e práticas de ensino eram desenvolvidas em aula?

6.Quais conteúdos você lembra terem sido trabalhados na disciplina?

7. Algum filósofo ou escola filosófica em especial foi enfocado? Qual?

8. O professor usava algum livro didático? Qual?

9. Se professor, você, ao elaborar seus planejamentos de aulas, priorizava

o cumprimento dos conteúdos a serem trabalhados ou preferia considerar o

contexto, através de discussões, diálogos, etc?

10.Qual foi a influência do contexto histórico nessas aulas?

11. Você foi aluno ou professor no período democrático ou ditatorial?

12. Como era vista a Filosofia nesta época?

13. O Ensino de Filosofia era valorizado perante a comunidade escolar?

14. Se aluno, em que pontos o Ensino de Filosofia contribuiu para a sua

formação enquanto pessoa, profissional e cidadão pertencente a uma sociedade?

15. Se você não teve a disciplina de Filosofia, quais são os reflexos da

ausência desse ensino para a sua formação?

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16. Se você não teve contatos com a disciplina de Filosofia, o que pensa

sobre as aulas de Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política

Brasileira?

17. Você concorda com a extinção da Filosofia no período ditatorial?

18. Como você enxerga o retorno da Filosofia nos dias atuais?

19.Que mudanças ou melhorias seriam pertinentes ao Ensino de Filosofia

nos dias de hoje?

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APÊNDICE B - Entrevistas

Entrevista com o Prof. Dr. Silvino Lopes Neto

(Ex-Professor de Filosofia do Colégio Municipal Pelotense em 196032)

(Inicio nossa conversa, mostrando ao Prof. Silvino os planos de aula feitos

por ele, em 1960, arquivados no Colégio Municipal Pelotense, disponíveis nos

anexos deste trabalho)

- O material que fez com que eu chegasse até o senhor são os planos de

lá do Colégio Municipal Pelotense, assinados pelo senhor, em 1960. (Letícia Corrêa)

- Risos (Prof. Silvino)

- Esse material ainda existe, arquivado no colégio, no arquivo da

instituição, e foi através daí que eu consegui localizar que o senhor foi o professor

que ensinava Filosofia no início da década de 1960.

- Então foi assim que a senhora me achou?

- Exatamente.

- Isso eram pontos organizados, não era o plano de ensino, era uma lista

de pontos.

- Eu achei muito interessante, temos uns três planos, se o senhor quiser

olhar melhor. Eu achei realmente muito interessantes esse planos e até gostaria que

o senhor começasse falando sobre eles. Claro, que a gente identifica pontos que

são comuns na História da Filosofia, como Lógica, Epistemologia, mas eu achei

interessante que tinham pontos que eram característicos da época, discussões do

contexto que se aplicava àquela época, onde o senhor fala sobre divórcio,

parlamentarismo...

- Isso tudo era exatamente por causa da discussão que havia no contexto

político, porque nós estávamos saindo de um contexto de ditadura, se imaginava e

se falava muito em se colocar, e aliás se colocou o parlamentarismo, pois não sei se

você se lembra que o João Goulart é que foi um presidente parlamentarista, porque

32 Realizada em 14/07/2011, no escritório do Professor, em Porto Alegre.

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o João Goulart assumiu o governo e a oposição não permitiu que ele exercesse a

presidência no regime presidencialista, porque ele teria muito poder. Então, eles

montaram um sistema, inspirado no Santiago Dantas, que foi um grande jurista em

que haveria um primeiro ministro e um conselho de milícia. O presidente perdia a

sua força executiva, ficava como chefe de Estado, apenas. O primeiro foi esse

próprio Santiago Dantas que era um grande jurista, um homem famoso, tinha sido

Ministro da Fazenda e ele conseguiu habilidosamente criar o sistema

parlamentarista e como ele era um deputado de alta expressão intelectual, ele

ascendeu à chefia de governo. Mas foi um parlamentarismo esdrúxulo, porque nós

vínhamos de um regime presidencialista desde a Proclamação da República. E mais

do que isso, com presidentes muito fortes; por exemplo, o Floriano Peixoto, que

sucedeu o Deodoro, era um marechal de ferro, muito forte.

E depois tivemos um governo fortíssimo que foi o do Getúlio Vargas,

que era presidencialista, mas que na realidade era uma ditadura. Começou como

um governo revolucionário, em 30, com o título de provisório, mas que de provisório

não teve nada, porque o Getúlio ficou quinze anos no poder. Mas o Getúlio

governou como o chefe de governo revolucionário, houve a Revolução

Constitucionalista de São Paulo em 32, que o Getúlio esmagou, mas o germe ficou.

Em 34, o Getúlio convocou uma Constituinte. Então, a Revolução Constituinte de

São Paulo, a de 32, foi vitoriosa afinal, derrotada nas armas, mas alcançou seu

objetivo, de criar uma constituição para o país. Getúlio fez a constituição, quer dizer,

a constituinte fez a constituição, e uma constituição muito curiosa porque ela estava

com a moda europeia, transplantada para cá, como sempre era. Mas foi curiosa

porque ela foi muito inovadora para a época, porque copiou as constituições mais

recentes da Europa. E aí, Getúlio não se sentiu muito bem com essa constituição e

deu um Golpe de Estado e impôs uma constituição em 37, chamada “Polaca”,

porque ela se assemelhava um pouco à Constituição Polonesa. Mas aí não era um

regime nem presidencialista, nem parlamentarista, era uma Ditadura, porque

dissolveu o Congresso. Tendo dissolvido o Congresso, ele governou até 45, mas

havia muita pressão por eleições.

Por que havia essa pressão? Porque a Guerra tinha terminado e as

democracias tinham vencido os regimes totalitários da Alemanha e da Itália. Então,

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com a vitória dos aliados, que eram democracias, os líderes eram os Estados

Unidos, a França,a Inglaterra e o Reino Unido, a Grã-Bretanha, ou o Império

Britânico, que também era democracia, embora império, também era democracia, a

democracia nessa gangorra entre regimes ditatoriais fortes e regimes democráticos,

a democracia estava em alta com a vitória sobre a Alemanha, sobre a Itália e sobre

o Japão, que formavam o eixo. E o resto, eram os aliados. Com isto, os ventos

mudaram e assim como os regimes totalitários tinham na sua ascendência

possibilitado o Golpe do Getúlio, porque a Alemanha tinha um regime forte, que

estava muito bem sucedido, a Itália também tinha um regime forte que estava muito

bem sucedido, então estavam sendo exemplos para o mundo e o Getúlio que tinha

uma vocação autoritária aproveitou essa onda de sucesso antes da guerra e criou o

governo provisório, pela Revolução de 30 e que foi a instauração de uma ditadura. A

princípio, um pouco disfarçada porque era provisório, depois porque convocou uma

Constituinte, então tudo indicava que iríamos para uma democracia constitucional e

depois ele golpeou em 37. Aí de 37 a 45 ele ficou no governo, mas a derrota do eixo

já era previsível em 44, porque os americanos só entraram na Guerra em 42, por

causa daquele ataque do Japão, lá no Havaí. E aí, claro que já havia uma pressão

enorme pela redemocratização do país. E o Getúlio foi golpeado. Mas já estava com

eleições fixadas já, pelo próprio Getúlio.

Getúlio era uma figura carismática e incrível de poder de sedução, por

vários motivos. Primeiro porque ele realmente criou, sendo conservador, um

fazendeiro, criou as condições para um arremedo de socialização do país

favorecendo as classes mais populares, com a CLT, com a consolidação das leis do

trabalho. E com isto, ele tinha uma popularidade extraordinária. Ele era um ícone,

não se usava essa expressão para isto, mas ele era um ícone para a época, com

um carisma fantástico. E muito discreto, porque o carisma do Getúlio não era como

o do Lula. O Lula falava a todo instante, estava sempre em toda parte. Claro, que

ele era uma figura midiática e na época do Getúlio não havia assim. Mas Getúlio era

muito discreto e muito conservador, até na forma de se vestir e tudo mais. Mas era

demagogo, demagogo naquele sentido grego de quem conduz o povo. E era um

condutor do povo. E os militares sempre o prestigiaram muito, porque ele

prestigiava muito as Forças Armadas. Mas a pressão foi tão grande, em face da

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154

redemocratização que ele, a contragosto, naturalmente, convocou eleições e tinha

um candidato. E o candidato dele era o Ministro da Guerra dele, desde 1936. Mas o

Getúlio inspirou um novo Golpe, com um movimento chamado Queremismo

(Queremos o Getúlio). E as pessoas usavam na lapela um “quezinho”, de

“queremos o Getúlio”. E ele não dizia que não. Ele sempre jogou muito com isso, ele

se reservava muito, mas fazia só o que ele queria. E aí começaram a achar que ele

iria golpear de novo, porque em 37 ele golpeou nomeando o irmão dele, Benjamin,

chefe de polícia do Rio de Janeiro, que era a capital e com isso ele controlaria a

situação. Como ele não tinha a oposição do exército, deu o golpe, ele era

presidente, não houve problema nenhum. Em 45, ele iria golpear de novo, tudo

indicava. E nomeou o irmão outra vez. Quando ele nomeou o irmão, não suportaram

e o exército se rebelou e eu me lembro claramente de tudo o que aconteceu, eu

tinha uns 13 anos, porque a gente via no Jornal, chamava-se Jornal essa parte

documentária que aparece no cinema, havia jornais do Brasil e jornais americanos;

e no jornal o que se viu? O Getúlio no Palácio Guanabara, no Rio de Janeiro,

cercado por tanques do Exército, tropas e ele decidindo o que faria. De charuto, na

janela, assim... Que coisa incrível, uma revolução, com essa tranquilidade! Ele era

intangível, praticamente. E ele achou que não era o caso de resistir. Aliás, até acho

que foi muito sensato para evitar mortandades, etc e tal. E ele foi embora. Desistiu

do governo, renunciou ao governo. Agora veja a coisa espetacular do Brasil: Getúlio

foi para a fazenda dele. Em vez de ser banido do país, ele foi para a fazenda dele. E

na fazenda dele, aqui no Rio Grande do Sul, lá, em São Borja, de lá ele comandava

a política do país, continuou comandando. Tanto que, em 50 ele voltou para o poder,

eleitoralmente, democraticamente. E conseguiu ser presidente do PTB, que era o

Partido dos Trabalhadores e do PSD que era o Partido de Centro,

concomitantemente. Presidente dos dois! Só no Brasil e com Getúlio! E ele ficou lá,

ele não saiu de lá , nem o prenderam lá, ele ficou lá, em casa. E uma romaria de

políticos iam lá tomar benção dele. De lá ele arquitetou tudo, mas o candidato dele

ganhou a eleição, o Presidente Dutra.

- Então o parlamentarismo era uma discussão que estava efervescente

nesta época...

- Sim, porque a Itália era parlamentarista.

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- Era uma tendência, então, que as aulas de Filosofia, por ter esse caráter

interdisciplinar falasse sobre este assunto.

- Só os Estados Unidos é que eram presidencialistas. Os outros todos

eram parlamentaristas. E o Brasil tinha sido parlamentarista no Império. De 22 a 89

era parlamentarista. Com a República é que ficou presidencialista, modelo

americano, montado pelo Rui Barbosa, que foi o mentor da constituição da

República. Aí o Getúlio voltou em 50 e depois se matou em 54. Mas agora, depois

nós vínhamos discutindo de novo se viria ou não o parlamentarismo, daí o interesse

dos alunos. E como a gente vive procurando o interesse dos alunos, nós chegamos

também a isso.

- Eu achei um aspecto muito curioso, muito interessante, que dá para

visualizar bem. Tem algum outro ponto que o senhor coloca também sobre o

divórcio, desquite...

- Pois é, sobre a dissolução da família, que era uma outra grande

discussão. Outro ponto também era sobre a discussão sobre a pena de morte.

- E como o senhor fazia isso? Ao mesmo tempo em que o senhor falava

sobre Leibniz, sobre Bergson e outros tantos filósofos, o senhor entrava nessas

discussões...

- As aulas, modéstia à parte, eram muito ricas.

- Sim, porque relacionar um filósofo com o contexto atual...

- E eles se interessavam muito. A emoção estética, o belo,

Existencialismo, Heidegger, Jaspers, Sartre, Budismo... Eu estudei muito Budismo.

O Presidencialismo, o Rousseau com o Contrato Social... Eu estou com uma

lembrança muito interessante disso porque eu não tenho este material aqui comigo.

O regime capitalista, onde nós discutíamos o marxismo na aula...

- E como era isso? Vocês conseguiam ainda nesta época falar em Marx

sem ser subversivo?

- Nada, nada! Ainda era possível. Nem se pensava em golpe.

- Bem, como o senhor leu no meu trabalho, me interessa muito é saber o

histórico do Ensino de Filosofia, que sofreu esta extinção, esta lacuna e como agora

ela está retornando...

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- Quando eu estava no exercício da docência, o que acontecia era o

seguinte: os alunos eram muito interessados. Depois, uma outra característica, que

você chama atenção no seu trabalho e eu vou enfatizar, é que o aluno do Colégio

Pelotense era um libertário. Era extremamente politizado. O Gato Pelado, são as

iniciais do Ginásio Pelotense, daí vem o Gato Pelado. O GG, que era o Ginásio

Gonzaga, eram os Galinhas Gordas. Bom, então, o que acontecia era o seguinte, os

alunos do Pelotense, como eles eram os herdeiros da maçonaria, o colégio no seu

corpo docente em grande parte era anticlerical, porque a criação do colégio foi

maçônica. E os maçons eram anticlericais. Pois há um sintoma interessante de

Pelotas e do Colégio Municipal Pelotense, que eu vou lhe chamar atenção, é que

você conhece a Catedral de Pelotas, evidentemente. E sabe em que praça fica a

Catedral de Pelotas?

- Na Praça José Bonifácio.

- José Bonifácio era o líder da Maçonaria do Brasil. Então foi um desaforo

colocar o nome e um monumento, houve uma discussão muito grande. Ninguém era

contra colocar o José Bonifácio, mas não defronte à Catedral. O fato de colocarem

defronte à Catedral, no largo da Catedral foi um acinte à Igreja Católica. É preciso

entender que Pelotas não era uma cidade com uma religiosidade muito alta, muito

diferente das comunidades de imigração italiana, onde a religiosidade era muito

grande. Como é que eu posso aferir isso? É porque as vocações sacerdotais de

Pelotas eram nulas. Tanto de sacerdotes quanto de freiras. Muito baixa.

Comparando com a colonização italiana e com a colonização alemã. Tanto que os

padres eram importados para Pelotas. Por exemplo, os padres mais conhecidos de

Pelotas eram o Monsenhor Queiroz, o José Antônio de Queiroz, que foi diretor da

Faculdade de Filosofia quando ela ainda se chamava faculdade, não era

universidade, a Faculdade Católica de Filosofia, e também era muito prestigioso na

cidade o Monsenhor Silvano de Souza, ambos do Ceará. E havia outros padres

também nordestinos, depois veio o Otávio Gurgel, Monsenhor Otávio Gurgel, que foi

diretor da Católica, acho que já na época da universidade e isso demonstrava o

pouco interesse do pelotense, não pela crença religiosa, mas pelo exercício da

religião. Os homens de Pelotas eram meio arredios à Igreja. As mulheres sempre

foram mais chegadas à Igreja, mas os homens eram mais arredios à Igreja. Então,

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157

não haviam vocações sacerdotais. Um dos que veio para Pelotas e que tinha um

nome de família pelotense, que foi muito conhecido, foi o Padre Balomar Lundt, da

família Lundt, de Pelotas, que ainda existe. O Padre Balomar foi diretor da Filosofia,

um homem muito inteligente com uma grande formação psicológica, em Viena, era

uma figura dissonante do clero, não só porque era muito intelectualizado, mas

porque era um Doutor em Psicologia. E uma Psicologia muito próxima da Psicologia

Freudiana, que nunca foi uma coisa muito do agrado da Igreja por causa da questão

da importância do sexo na formação da mente das pessoas. Então esse era um

outro dado interessante. E por que isso refletia no Pelotense? Porque o Pelotense

acolhia as pessoas não religiosas de Pelotas, as famílias não religiosas. Outro dado

interessante é que como era um colégio barato, mesmo quando era pago, as

pessoas religiosas e que tinham poder aquisitivo colocavam os homens, filhos

masculinos, no Gonzaga, meu caso. E as meninas, no Colégio São José, que era,

acho, que de franciscanos, de freiras. E o Pelotense era misto. E a minha tia, Maria

Luiza Lopes, foi a primeira aluna do sexo feminino a ingressar no Pelotense, e se

tornou uma conhecida professora de francês lá, passou a vida ligada ao Pelotense.

Então, mas o que acontecia? Outro dado: os filhos de judeus, de ascendência

judaica, iam todos para o Pelotense. Não importava para os judeus, os judeus ricos

de Pelotas que os filhos fossem para outras escolas. Havia também outras famílias

de alto nível social que colocavam os filhos no Pelotense, mas porque o Pelotense

tinham muito prestígio pelo corpo docente. Eram professores extraordinários. Não

todos, evidentemente, mas haviam aqueles que eram fundamentais, como o

Professor Joaquim Alves, que era um grande professor de Matemática, e assim

havia uma série de outros professores renomados na cidade e a classe docente era

muito respeitada. Era muito diferente do que é hoje. O professor era uma figura

socialmente valorizado. A família prestigiava muito quando tinha um professor. E é

interessante que eles nem eram formados. Por exemplo, o professor Joaquim, era

chamado “Seu Joaquim”. Mas eles eram exímios nas suas disciplinas. Exímios! Não

estou exagerando, eram exímios. Tanto que o Professor Joaquim é um dos

melhores didatas que eu conheci. E olhe, estou com 62 anos de magistério. Era

extraordinário. O filho dele, o Platão, foi diretor lá também.

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- E como foi a sua ligação com a disciplina de Filosofia no período? O

senhor era contratado, que turmas o senhor lecionava e como era a sua ligação com

a instituição?

- A minha carreira de professor começou porque eu era um bom aluno no

Gonzaga. Eu não era um aluno excepcional, mas era um bom aluno. E era

conhecido, porque eu desde pequeno escrevia bem, fazia boas redações e fui uma

vez escolhido para ser orador numa solenidade. E me deram um texto para eu fazer.

E eu reescrevi o texto e fiz como se fosse de improviso. E tinha onze anos e aquilo

chamou muito atenção, porque era um auditório cheio e tal. E o colégio começou a

me dar encargos.

- O Colégio Gonzaga?

- Sim, sempre o Gonzaga. Minha mãe era extremamente católica e meu

pai, maçom. O meu avô foi líder da maçonaria. E o meu pai, antes de se casar,

pertenceu à maçonaria também. Mas a minha mãe era muito religiosa. E o meu pai

se afastou da maçonaria. Se afastou porque não era o feitio dele sociedade secreta,

ele não gostava muito disso, ele era muito democrata também. E ele não se

interessou em continuar na maçonaria. Minha mãe era Congregada Mariana, depois

ficou prefeita das congregações, minha mãe era muito religiosa. Não era assim do

tipo beata, não, mas era religiosa, militante. E depois meu pai foi se aproximando da

religião, porque levava minha mãe à igreja e se aproximou da igreja. Nunca chegou

a ficar um homem religioso, um devoto, e meu pai se formou no Pelotense, era

irmão desta senhora que ficou aluna lá, e era muito bom aluno no Pelotense,

adorava o Pelotense. Mas minha mãe, pela influência em casa, me colocou no

Gonzaga, que até era mais longe da minha casa do que o Pelotense. Mas a gente

era criança e andava com oito anos pela cidade a hora que quisesse, não tinha

nenhum problema. Eu ia sempre sozinho para o colégio, umas vinte e tantas

quadras, a cidade era completamente pacata, não havia nenhum risco, não. As

portas ficavam abertas, era completamente diferente. Então, fiz o colégio todo no

Gonzaga e quando eu estava no Científico um dia o diretor me chamou e disse

“Silvino, nós estamos abrindo um curso aqui, comercial, noturno e nós vamos fazer

um exame de admissão. Temos uma turma que vai este exame de admissão” (que

era um preparativo para o Ginásio e para o correspondente, o homólogo do

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159

Comercial). Tinha um curso comercial, que dava acesso ao Contador, ao curso de

Contabilidade. Então era assim: quatro anos de Comercial, que era o básico, quatro

anos de Ginásio, três anos de Contabilidade, três anos de Científico ou Clássico,

mas o Gonzaga não tinha Clássico, só tinha Científico. O Pelotense tinha. Ele me

chamou no gabinete, me explicou isso, que ia iniciar um exame de admissão e que

ele queria me convidar para professor de Português no curso. Eu tinha dezesseis

anos. Porque eu falava em publico, desde os onze anos, até os dezesseis, no

mesmo colégio e em solenidades de Semana da Pátria, que o Getúlio criou a

Semana da Pátria, aquilo era muito importante no colégio e então ele me botou lá e

todos os meus alunos eram mais velhos do que eu. Todos. E eu conservei amizade

com alguns deles a vida toda. Alguns foram muito bem sucedidos, fizeram cursos, e

dois ficaram tabeliães, sem serem formados em Direito, que na época não tinha

essa necessidade. E outros, me lembro de um rapaz que trabalhava numa obra, e

vinha da obra com as mãos queimadas pela cal. Ele lavava as mãos, mas não

usavam luvas, não usavam nada, então suas mãos ficavam queimadas. Ele era

negro, então ficava bem claro, assim. E anos depois, encontrava alguns em postos

de serviços e nunca tive nenhum desrespeito na aula, nada.

- E em relação à disciplina de Filosofia...

- Isso ainda muito longe, eu ensinava português. E no Gonzaga eu nunca

ensinei Filosofia. Depois eu fiz o Exame de Suficiência. Na época não haviam

professores formados. A Secretaria de Educação montava cursos e as pessoas

faziam exames de suficiência, para ver se tinham competência. Eu fiz, fui aprovado

e fui então contratado primeiro no Gonzaga, dei aulas de português no Gonzaga e aí

já formado no científico e aluno no Direito e na Filosofia, porque naquela época,

bem na oportunidade em que eu estava fazendo Direito criaram a Faculdade de

Filosofia. Eu fiz as duas simultaneamente. E o curioso é que a Faculdade de Direito

não exigia frequência. A frequência era livre. Qual era a regra? É que quem

passasse por média não precisava a frequência. Como eu sempre passei por média,

não ia a exame oral, então a frequência não era contabilizada, não interessava

porque a pessoa mostrou que apesar de não ir a aula ou ir pouco a aula estava em

condições. Então eu dava aulas e me mantinha dando as aulas no Gonzaga e fazia

a Filosofia de tarde, o Direito de manhã e dava aulas de noite.

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- De Filosofia, o senhor começou a lecionar só depois de formado?

- Só depois de formado. Aí eu me formei em Filosofia e fui para o

Pelotense para dar Filosofia e Literatura no Clássico. Era Português, mas o Clássico

preparava para o vestibular do Direito e no vestibular do Direito caía Literatura. E eu

dei também Literatura no Clássico. Aí começou a minha história no Pelotense. Uma

coisa que chamou um pouco a atenção, porque eu era Gonzagueano e acabei

sendo professor. E um colega meu, que faleceu recentemente, o Pascoal Müller,

que foi professor de História, extraordinário professor, da Católica e do Pelotense,

ele dizia “agora basta se formar no Gonzaga para ser professor no Pelotense”. E o

Pascoal, um pouquinho mais velho do que eu, entrou no Pelotense junto comigo.

Era a rivalidade que havia lá, havia um certo ciúme que se formasse no Gonzaga e

fosse professor no Pelotense, e alguns do Pelotense não eram escolhidos. Mas é

que o Pascoal e eu já tínhamos carreira no magistério, já tínhamos a licenciatura. E

aí começou a minha história no Pelotense que eu só deixei quando me formei em

Direito, comecei a advogar e aí o tempo ficou muito curto. Depois eu me demiti do

Pelotense. Eu me formei em 57 em Direito, já estava formado em Filosofia, porque

eu me formei dois anos antes em Filosofia e depois em Direito. Em 52 eu entrei pra

Filosofia e pro Direito, em 57 eu me formei e depois eu fiz concurso pro Estado e fui

aproveitado no Colégio Monsenhor Queiroz, que funcionava lá onde é o Assis Brasil,

de dia era o curso de formação do Magistério, o Curso Normal, que chamavam e de

noite funcionava outro colégio, que era o Colégio Monsenhor Queiroz. Nesse colégio

eu dava aulas à noite. E eu então preferi dar aulas à noite por causa da advocacia.

- E o senhor era contratado no Colégio Municipal Pelotense?

- Eu era contratado. E aí, eu não me lembro quanto tempo eu fiquei no

Pelotense, mas eu fiquei uma porção de anos no Pelotense, dando Filosofia no

Clássico e no Científico e dando Literatura e Português no Clássico. Em 67, já fazia

muito tempo que eu tinha saído do Pelotense porque eu já era Livre Docente. Eu

fiquei Livre Docente em 63. Eu fiz concurso em 62 e eu me lembro que para estudar

para o concurso eu até diminuí muito o trabalho no escritório de advocacia, porque

eu estudava muito para fazer a tese. Fiz a tese e defendi a tese, fui aprovado na

Livre Docência e comecei em agosto de 63 a dar aulas de Filosofia do Direito no

quinto ano da Faculdade de Direito. Aí já é outro estágio, outra etapa e depois eu

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disputei uma bolsa para a Espanha e ganhei uma bolsa em que tinham três vagas

nacionais, eu disputei e ganhei, muito por intervenção do Cônsul Espanhol que era

muito influente aqui em Porto Alegre e fui para a Espanha estudar Filosofia do

Direito e acabei professor na Universidade de Madrid.

- Uma carreira linda!

- Eu sou uma pessoa de muita sorte.

- Competente e modesto...

- É preciso juntar as duas coisas. Você tem que estar preparado, mas a

oportunidade tem que aparecer. Às vezes a pessoa tem muita preparação mas não

tem oportunidade, faltam relacionamentos e tudo mais. Quando eu voltei de Madrid,

eu já não lecionava mais no Pelotense, logo depois da Revolução eu fui para

Madrid. Em 65, eu fui para Madrid. E voltei em 66, aí a Arabela já estava no

Pelotense lá em 67. Estou me lembrando da Arabela minha aluna e eu fui paraninfo

da turma dela na Filosofia e eu dava História da Filosofia. Estou rememorando isto,

eu voltei, já não estava mais no Pelotense, já não estava mais no Gonzaga, estava

no Monsenhor Queiroz, porque era estadual, me interessava mais, estava na

Faculdade de Filosofia, que me interessava na faculdade, na minha titulação e

estava no Direito, porque quando eu fui para a Europa eu já era professor do Direito,

já era Livre Docente e Doutor em Direito. Por isso, eu tive vantagem no concurso de

títulos para a Espanha, para o Instituto de Cultura Hispânica. E depois tive sucesso

na advocacia, então já não tinha tanto tempo, tive que deixar o Monsenhor Queiroz,

que era um colégio estadual e fiquei ainda um tempo na Faculdade de Filosofia

embora economicamente não fosse interessante, mas eu gostava muito e no Direito,

claro, fazia questão de permanecer. A Universidade Federal pertencia à

Universidade do Rio Grande do Sul, a Universidade Federal de Pelotas não existia,

ela era um órgão ligado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul e eu

continuei. Então, não voltei mais a dar Filosofia no secundário, que no Monsenhor

Queiroz eu só dava português. Agora podemos falar da minha vida lá no Colégio

Pelotense.

- Quais são suas recordações dessas aulas? O ambiente, a participação

dos alunos...

Page 162: Letícia Maria Passos Corrêa

162

- As minhas recordações das aulas são as melhores possíveis. Eu tenho

relações afetuosas e íntimas até com muitos alunos, que acabaram até sendo meus

alunos no Direito também. Os alunos do Clássico, o Cavalheiro Leite foi meu aluno

no Direito.

- Foi outro professor que fez Filosofia e Direito paralelamente, uma

carreira semelhante à sua...

- Era corrente isso. Como um curso era de manhã e o outro era de tarde,

e começava às quatro da tarde o Curso de Filosofia, ia até às oito da noite. Então,

eu gostava imensamente do Pelotense, embora eu não fosse Gato Pelado. Eu

gostava imensamente do Gonzaga também. Mas no Pelotense, havia um clima

muito interessante. Primeiro, no Científico, os alunos que eram mais numerosos,

tinham de se preparar muito bem para os vestibulares, porque as vagas eram muito

escassas. Os cursos eram fora de Pelotas, não havia Curso de Medicina em

Pelotas, não havia Curso de Engenharia, então eles vinham disputar aqui em Porto

Alegre. O acesso era muito difícil. Nós tínhamos em Pelotas um curso muito bom de

Direito, muito bom de Agronomia, muito bom de Odontologia e Veterinária, porque

era subsidiado pela Agronomia Eliseu Maciel. Então, esses vestibulares eram muito

disputados porque também vinha gente de fora para disputar em Pelotas. E

sobretudo de Medicina, era muito concorrido, muito difícil no Rio Grande do Sul,

porque havia só a faculdade aqui de Porto Alegre. Para Santa Maria conseguir, foi

uma luta porque o grupo daqui queria o monopólio, o corporativismo funcionava a

todo vapor. Dificultaram muito a criação do Curso de Medicina lá em Santa Maria,

que foi anterior ao de Pelotas, aos dois de Pelotas. Então, no Científico eles sabiam

que precisavam estudar muito para terem êxito. E eu tive alunos de elite lá no

Pelotense. Quando o aluno é bom, mesmo que ele se interessasse muito por

aquelas matérias que iriam integrar o programa do vestibular, o aluno quando é bom

estuda tudo. O bom aluno é responsável, assiste às aulas e vai ser exigido nas

provas, ele se prepara. E como as aulas eu tinha uma idade muito próxima deles,

tinha 23 anos e eles tinham 17, 18. Naquela época entravam um pouquinho mais

tarde no colégio, então era comum eu ter alunos de 19 anos no terceiro ano. Nós

tínhamos uma diferença de quatro, cinco anos. Claro que era uma diferença porque

havia sobre isso a hierarquia do professor e o aluno, que era muito mais respeitada

Page 163: Letícia Maria Passos Corrêa

163

do que hoje. O professor era muito acatado. E depois, como você sabe, a disciplina

na aula depende muito do professor, do apreço que o aluno tem pelo professor, e

pela autoridade que o professor tem, pelo pulso que o professor tem na aula. E o

interesse que a disciplina desperta, então eu nunca tive problemas de disciplina na

aula, nunca, em lugar nenhum. E as aulas eram muito produtivas porque eu

trabalhava com, a técnica na realidade era essa de exposição participativa.

Trabalhava com exposição, mas provocando com perguntas, com questionamentos.

E focando temas que eles tinham interesse. E, como eram bons alunos, não é que

todos fossem bons alunos, mas você não precisa ter todos bons alunos. Se você

tem seis, sete bons alunos na aula, levanta o nível porque as perguntas são muito

bem feitas. As indagações, as dúvidas, as perplexidades que eles externam aos

professores são de muito bom nível. Então o professor pode trabalhar com isto. E

outros aproveitam também, todos aproveitam esse nivelamento. Embora alguns,

você sabe, ficam alheios, não que houvesse assim um alheamento físico, assim,

mas não estavam muito interessados, sobretudo em Filosofia , mas sempre é assim.

Mas o nível era muito bom, os alunos muito interessantes, gostava muito de dar

aulas lá. E eles tinham muito apreço por mim também.

- Como o senhor avalia o Ensino de Filosofia experienciado? O senhor

avalia então de uma forma muito positiva essa sua experiência?

- Muito, muito. Para mim foi extremamente benéfica e eu percebo que

com eles também era muito bem-vinda porque eles eram muito cordiais comigo,

muito queridos comigo e onde nos encontrávamos sempre muito gentis e tal. As

coisas eram um pouco mais formais do que são hoje. Estamos falando de cinquenta

anos passados, isso pesa muito, sobretudo na velocidade que nós temos de

desenvolvimento social hoje. Então, era muito interessante. E como você vê u usava

a Filosofia com muitos aspectos diferentes. As coisas não eram aprofundadas, mas

era uma cultura geral que eles tinham.

- E qual a carga horária que o senhor tinha, o senhor lembra?

- Eu tinha três aulas por semana.

- Ah, uma grande diferença de hoje em que o professor tem uma aula de

45 minutos por semana... É uma grande diferença, né?!

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164

- Ah não, eu tinha três aulas por semana, aulas de 45 minutos,

compreende? E às vezes a gente avançava um pouquinho na aula e tal. Você

imagina que eu dava aulas sábado de tarde, com a aula repleta de alunos? Sábado

de tarde! Olha, eu me lembro dos moços com as chuteiras para jogar depois da

aula, você já imaginou? Vê se isso acontece hoje?! Eles levavam um pacotinho

assim, botavam ali na classe e tal, depois eles iam jogar futebol. Mas assistiam a

aula até às quatro horas, quatro e meia da tarde. Quatro e meia da tarde eles saíam.

E a aula cheia de gente. Era muito interessante. E depois o seguinte: como o

Pelotense era um colégio de alunos muito politizados, e outro aspecto muito

importante: o Grêmio Estudantil era muito forte, então a politização interna era

grande também entre os alunos, eles eram muito debatedores, muito polemistas. E

estas ideias que eu levava lá eram muito polêmicas.

- Cabiam para o que eles queriam e esperavam...

- Claro. Era o aspecto político, os aspectos jurídicos do momento, que

era o desquite, etc, aspectos políticos em relação a presidencialismo,

parlamentarismo, formas de estado, a democracia, e tudo isso interessava muito a

eles. E depois o seguinte, as partes históricas da Filosofia, eles se interessavam

também, porque aquela História da Filosofia Grega é lindíssima. Eles ficavam

realmente interessados e eles debatiam muito, entre eles também. O Pelotense

tinha essa situação de que é como se eles fossem livres pensadores, aquele

sistema francês dos livres pensadores. Então, eles eram assim, libertários e tudo

mais e eu insistia em não serem dogmáticos. Não serem dogmáticos, eu exaltava

muito o senso crítico. Então, nós fazíamos aquele trabalho de História da Filosofia e,

de vez em quando, íamos intercalando coisas. E jogando, como você vê aqui,

coisas bem diferentes. O desquite, o Regime Capitalista, porque alguns eram

marxistas na aula. Depois o livre-arbítrio e o determinismo, que os deixavam assim

empolgados, porque uns eram deterministas. Eles não sabiam que eram

deterministas, mas quando aprenderam que eram deterministas se filiavam àquela

linha. E outros eram livre-arbitristas. Então, havia toda essa questão. Olhe lá, o

capitalismo, o socialismo, a formação da sociedade, a liberdade, os graus da

consciência, a pena de morte, Kant, o Imperativo Categórico, a noção do fatalismo

dentro do determinismo...

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165

- E como era a sua didática? Que didáticas e práticas de ensino eram

desenvolvidas em aula? O senhor já disse que a sua aula “expositivo-participativa”,

como era isso?

- Eu trabalhava com exposição participativa. Provocação mediante

questionamentos embaraçantes, para criar problemas para eles. As coisas que eles

faziam, se era bem, se era mal... Ênfase na necessidade de desenvolver um senso

crítico sobre si próprio e suas atitudes. Exercício sobre a postura correta na

convivência. Cosmovisão racional, reflexão sobre o projeto existencial. Aquela

história que deixava os adolescentes enlouquecidos: “Da onde eu vim? Para onde

vou?” E viam textos selecionados também que eram interpretados por eles e

discutidos. Eu fazia sempre uma introdução à filosofia para o conceito, mostrava

para eles o que é um saber sem pressupostos, sem preconceitos, sem pré-

conceitos. E eu dizia que isto era característico da Filosofia. Tudo pode ser

investigado, nada está absolutamente certo, não há nada intocável e a crítica pode

ser exercida sobre qualquer aspecto do conhecimento. Sempre vale a crítica. Então

essa era a ideia. Depois eu trabalhava muito com as relações entre a Ciência e a

Filosofia. Saber sem pressupostos e a crítica universal com antidogmatismo. Eu me

encaixava numa postura crítica, que eles não fossem dogmáticos, questionando

tudo. Mas o Pelotense não era dogmático. O Gonzaga era dogmático. Por quê?

Porque o Gonzaga era um colégio católico. E um colégio católico-tomista. Eles nem

sabiam que eram tomistas, mas o fato é que eles eram tomistas, porque era a tônica

da religião, da Filosofia Católica. Depois eu insistia muito para eles na utilidade da

Filosofia. Dois aspectos: a formação cultural, em si, e o sentido humanístico da

Filosofia. Humanístico no sentido não apenas de ter um lustre cultural, era de

humanidade, de reconhecimento. Isso que se fala hoje de inclusão e de não-

segregação, nós trabalhávamos muito isso. Aplicação no dia a dia do constante

discernimento das melhores opções de vida. Então, fazia isso com eles. Isso era o

princípio do curso que eu me lembro. Que é para seduzir com a Filosofia, eu estava

vendendo a ideia de estudar Filosofia. Então, isso servia para eles. Por exemplo,

que eu uso ainda hoje quando dou Filosofia, uso muito essa de trabalhar muito com

a Axiologia. Eu sou muito ligado à Teoria da Justiça. E a Teoria da Justiça ela está

centrada na Axiologia. Porque a Justiça é o valor presidencial do Direito.

Page 166: Letícia Maria Passos Corrêa

166

Então, aí já para Mestrado em Direito, eu dou Filosofia do Direito, eu

chamo atenção para eles do seguinte, que há bipolaridade no valor. Um valor

sempre corresponde a um desvalor. Só porque há possibilidade de desvalor é que

há valor, só por isso, por isso que é bipolar. Então, eu ensinava lá no Pelotense e

discuto aqui que o valor está a cada momento da vida da gente. Por exemplo, você

está me dando valor, está dando valor ao seu tempo, e eu estou dando valor a você.

Porque se eu não lhe desse valor, eu não lhe receberia. E se você não estivesse

achando que fosse útil, você tinha dado uma desculpa para a chuva e não viria, ou

então viria, ficava pouco e iria embora e pronto. Então, eu digo a eles que o valor

está na nossa vida minuto a minuto. Eu não estou pensando nunca no valor, mas se

eu estou gastando o meu tempo com uma atividade é porque ela está sendo

valiosa. E eu digo a eles o seguinte: se eu não estou gostando de fazer e estou

fazendo, estou dando mais valor a ela. Porque se eu não gosto e faço, por que

acontece isso? Porque eu estou valorizando muito. Porque é muito diferente de eu

gostar imensamente de uma coisa e fazer essa coisa. O sujeito que gosta de futebol

e esporte, claro que dá valor, porque gosta e faz. Agora se você consegue fazer até

sistematicamente coisas de que não gosta, é porque acha que é muito importante

fazer aquilo. Então você está dando o valor a uma coisa que lhe parece desvaliosa.

Mas ela não é desvaliosa na tomada do seu tempo, ela é desvaliosa no seu

interesse, mas você faz contrariado. Então, eu jogo com esses elementos de

Axiologia, claro que com eles eu não jogava nesse nível, mas eu jogava com eles e

eles ficavam impressionados com aquilo. Toca! Como você bota minhocas na

cabeça deles...

- Aquela foi a fala de uma outra professora entrevistada, a Professora Ana

Lúcia Almeida, não é minha aquela fala...

- Realmente aquilo é interessante. Porque a gente areja a cabeça deles.

E eles ficam perturbados. Agora eu me furtava um pouco de discutir religião com

eles na aula. Me furto muito de discutir religião. Eu tenho uma posição kantiana a

respeito disso. Existe ou não existe? Provar que existe? Provar que não existe?

Kant dizia que é conveniente que se acredite, porque você sempre tem uma

esperança. As suas desventuras atuais podem ser compensadas. Então, você

sempre é movido pela esperança. Você está sofrendo injustiça, mas há uma justiça

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167

sobrenatural, na pessoa que pensa isso. Então ela tem essa segunda instância, em

que as coisas podem ser reformadas. Aliás, o que é interessante observar é o

seguinte: o Direito Natural, em Filosofia do Direito agora, o Direito Natural ele tem

duas ramificações, dois campos. O Direito Natural de base teológica, e há o Direito

Natural de base racional.

O Direito natural de Base Teológica, ele é muito antigo e já aparece na

Antígona de Sófocles. Quando Creonte, que era tio da Antígona, irmã do Édipo, um

trecho da tragédia é o seguinte: o Édipo teve quatro filhos com a Jocasta, com quem

ele esteve em incesto não sabido. Tinha a Antígona, tinha a Ismênia, Etéocles e

Polinice. Dois homens, duas mulheres. E tinha o Creonte que era irmão da Jocasta

e tio do Édipo e tio-avô destes meninos. Creonte era cunhado do Édipo. E tio

desses meninos. Então, o Creonte era irmão do Laio, Laio era o pai do Édipo.

Quando aconteceu aquela desgraça toda, que o Édipo ficou sabendo pelo Tirésias,

o adivinho, que ele era casado com a própria mãe dele, a Jocasta se suicidou e ele

vazou os olhos. E como era uma maldição, ele foi expulso de Tebas. E os filhos não

o acompanharam. Inclusive, o enxotaram também, porque queriam se livrar da

maldição. Mas Antígona ficou com ele. Foi embora com ele, para Colono, uma outra

cidade, onde ele acabou sendo recebido. Ele morreu em Colono e Antígona, voltou

para Tebas. Em Tebas, quem tomou conta do poder que era do Édipo, foi o Creonte.

Mas o Polinice e o Etéocles, os dois, um aderiu ao Creonte e o outro, não. Então, o

que aconteceu? Eles entraram em guerra. E eles se mataram um ao outro, sob as

muralhas de Tebas. O Creonte era amigo do Etéocles. E inimigo político do Polinice.

Os dois morreram em campo de batalha. Ele mandou dar honras militares ao

Etéocles. E deixou Polinice insepulto. Na religião grega significava uma desgraça

eterna. Se não tinha honras funerárias, ele não iria para o Hades, que era o inferno

e tal. Só que Antígona, fez um édito proibindo de darem sepulturas aos inimigos. E

incluía o Polinice. A Antígona falou com a Ismênia, isso tudo é a tragédia do

Sófocles, chamada Antígona, e a Ismênia se sentiu traída. E ela foi ao campo de

batalha à noite, secretamente, e ela deu honras funerárias ao Polinice, para que a

alma dele pudesse ter descanso. E como é que se descobriu isso? Porque ela teve

que fazer, mesmo precariamente, a cobertura com galhos e flores e tudo mais,

porque era como se homenageava o cadáver, o morto. Claro que perceberam isto

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de manhã e avisaram ao Creonte. E o Creonte, discutiu com a Antígona e iria

condená-la à morte. E ela, então, disse a ele, “Nem tu, nem ninguém, nem os

Deuses, podem derrogar as leis que foram criadas para toda a eternidade e que

estão escritas no céu”. Essa é uma tradução livre “escrita no céu”, porque eles não

usavam isso, mas e por isso ela não podia obedecer a ordem, porque ele estava

derrogando uma lei natural. E ela foi executada por causa disso. Bom, esta é a

primeira manifestação literária do Ocidente sobre o Direito Natural, Direito Natural

Teológico. Vinha dos deuses. Mas havia um Direito Natural racional que aí já era

criação por volta de 1300, 1400, por aí. Então, é um Direito Racional, que não era

dos deuses, ainda que Deus não existisse. É a expressão que se usa depois, o

Dostoiéviski utiliza essa expressão também, em “Crime e Castigo”: “Se Deus não

existisse tudo seria permitido”.

E esse Direito Racional, como a gente encontra esse Direito? Nas forças

da razão. Aí, há muitas explicações, é o espírito da comunidade, o espírito do povo,

mas não tem nada a ver com Deus. Bom, isso gera discussões na aula,

evidentemente. Porque que eu não insisto nas discussões religiosas? Não fujo

delas, mas não insisto. Não insisto pelo seguinte: eles têm, todos têm uma formação

que vem de casa, contra a qual eles podem rebelar-se ou não. Em geral, não se

rebelam. Se rebelam politicamente, mas não religiosamente. Porque a política e a

religião não estão mais ligadas como já foram. Então, eles têm aquelas ideias. E

aquilo lhes dá uma certa tranquilidade. Se chega um professor treinado como eu,

que não é religioso, embora tenha muito boa formação religiosa pelo colégio e pela

minha mãe, mas que realmente hoje, cheguei a uma situação que eu não tenho

nenhuma vinculação com divindades, porque, a meu ver, tudo é mitológico. Assim

como nós chamamos mitologia as histórias gregas, mitologia também pode ser a

Bíblia. Como é que você vai aceitar que no fim de uma batalha o líder hebreu

levante os braços pro céu, invoque a Deus e peça a Jeová que pare o sol, porque

eles não podem lutar numa sexta-feira de noite? E o sol parou. Até que os hebreus

bateram nos filhos teus em Jericó. O que é isso? E a inércia? E o universo todo

parou por causa dessa batalha? A Bíblia... a começar colocou todos os tipos de

animais na Arca... Que tamanho teria que ter esta arca? E como é que iriam recolher

todos esses animais? Isso é fábula, foram criadas. Como os evangelhos de Lucas,

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Lucas viveu 300 anos depois de Cristo... Que testemunho ele tem sobre isso? Agora

se você começa a discutir com meninos e meninas nestas condições, sem nenhum

contra-argumento, eles estão serenos achando que a sua crença é real. Mas isso é

proveitoso, ter isso, porque se eles estão sossegados, é proveitoso. Agora, se você

não substitui por nada... Porque se pudesse fazer assim: tira esta pilha que está

descarregada e bota outra e tudo funciona... Agora deixar no vácuo completo?

Schopenhauer fez isso, o que levou àquela onda de suicídios e Nietzsche depois.

Mas então você entra num niilismo, que se você não tem a formação para ser

niilista, você sofre muito e não encontra mais sentido em nada. Agora se você

consegue ter essa formação calcada num conhecimento filosófico, se você se

convence que as coisas são assim e não há outra coisa... A questão da

meritocracia, que não tem nada a ver com Deus, mas com seu trabalho... Agora não

significa se você não tem Deus não significa que você seja indecente, como faziam

na Idade Média, “não pensa como nós, mata, bota na fogueira, bota na Inquisição,

etc”... Quando é que Cristo aceitaria isto? Nunca! Ele que era o criador do amor ao

próximo na Filosofia... Como é que ele aceitaria a Inquisição, aquela maldade

incontrolável da Inquisição? A Noite de São Bartolomeu, etc, contra os Protestantes,

já muito depois... Eu tenho muito escrúpulo em entrar nesses assuntos.

- O senhor tem muita sabedoria... Mas só o Budismo que o senhor trazia

um pouquinho, não é?

- Com o Buda aconteceu uma coisa curiosíssima. O Buda nunca

pronunciou a palavra “Deus”. Ele tinha aquelas quatro verdades: viver é sofrer, a

origem da dor é o desejo, só se encontra felicidade desligando-se dos desejos e aí

se alcança o Nirvana que é uma tranquilidade, que é uma felicidade negativa. No

Nirvana eu não me interesso por nada. Meu ponto de vista é o seguinte: o Buda

traiu a sua doutrina. Porque se ele realmente estivesse desinteressado, ele não teria

ensinado a ninguém. Ele tinha um interesse extraordinário pela humanidade. Ele é

uma versão do São Francisco de Assis, lá no Nepal. Porque ele estava interessado

que as pessoas conhecessem a verdade para deixarem de sofrer. Se ele não se

interessasse por ninguém, ninguém saberia. Ele foi iluminado, ele recebeu a

iluminação, que veio a dar o nome de Buda para ele, ele ficaria só como Sidarta

Gautama Shakyamuni e nada mais. Então por que ele foi apóstolo? Porque ele

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queria que as pessoas conhecessem a verdade, porque ele estava interessado na

felicidade dos outros. Então, é essa contrariedade que existe nele. Agora, você

imagina, agarra um menino ou uma menina de dezesseis anos, ou dezoito,

dezenove, sem nenhuma fundamentação e que está consciente de que professa

uma religião que pode levar à felicidade, que o tranquiliza, desenvolve um sistema

de solidariedade e de justiça, etc e tal , como todas as religiões fazem, aí você

chega lá, tira isso da cabeça deles e não coloca nada de volta. Como é que fica?

Então, eu nunca assumi esta responsabilidade e acho que isso é antiético.

- Algum filósofo ou escola filosófica em especial era enfocado? Qual?

- Depois, eu comecei a dar Lógica Formal. Quando eu falava em Lógica

Formal, eu falava em Aristóteles. Em Gnosiologia, eu falava em Descartes, por

causa do método, da busca pela verdade. E Kant nos limites do conhecimento.

Depois eu dava Axiologia. Na hierarquia dos valores, a bipolaridade, a presença

inevitável das valorações existenciais, e aí começava a trabalhar com esses

filósofos dos valores e tudo mais. Aqui na definição de Direito, Johannes Hessen. Na

Teoria do Conhecimento, também Johannes Hessen, na Gnosiologia, que tem uma

obra muito boa e que é uma obra acessível, que se chama “Teoria do

Conhecimento”. Quando entrava em Ontologia, aí também falava de Aristóteles. Ser

e não ser, falava também em Tomás de Aquino por causa da linha aristotélica. Mas

aí era indispensável falar também sobre Platão. Vinha o Livre-arbítrio, a pressão

determinista, todos esses elementos. E Platão sobretudo na Ética. Além de

Aristóteles com a “Ética a Nicômano”, também os diálogos de Platão, sobretudo por

causa do bem. Como o bem era a essência do pensamento de Platão, a ideia era a

de agir com correção à decência imprescindível. Eu batia muito com eles na

decência. Os desvios de conduta moral e suas nefastas consequências sociais e

individuais (no caso de individuais, trazia para a família). Ao longo das

apresentações e discussões dos conteúdos, remissão aos sistemas historicamente

destacados e seus protagonistas. Então, eu não dava História da Filosofia.

- O senhor trabalhava através de temas?

- Claro. E fazia as inserções. Discussão sobre situações sociais e

políticas geradoras de crises e discriminações intoleráveis. Na parte da Ética,

necessidade de controle do egoísmo natural e ênfase das vantagens da

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solidariedade. Virtudes cívicas a desenvolver em favor do bem comum, que nada

tinha que ver com a Moral e Cívica.

- Tinha alguma influência positivista neste ponto?

- Tinha. Agora já vou lhe mostrar porque. Então, a metodologia está aqui,

como eu já lhe disse. 33 Aqui está a bibliografia. Na Introdução à Filosofia, Ortega y

Gasset (Que es filosofía e Rebelião das Massas), que também entrava no

Socialismo, na rebelião das massas, em Marx e no marxismo. Garcia Morente que

tem uma introdução muito boa à filosofia e Julian Marias, isso na área de introdução.

Usava-se na época também o Charles Lahr, que é um padre francês, que tinha uma

obra muito boa. E era atualíssimo para a Filosofia Cristã, Jacques Maritain, Filosofia

Romana. O Hessen, por causa da Teoria do Conhecimento. Os Existencialistas e

Marxistas naquelas implicações da vida mesmo e do ser. Na História da Filosofia, eu

usava o Abbagnano. Usava muitos outros, mas estou só citando estes porque estes

dois eles eram muito acessíveis pra eles. O Leonel Franca era um jesuíta tinha uma

“História da Filosofia” muito conhecida no Brasil. É uma síntese, mas ele é

francamente escolástico, como jesuíta, mas é um homem intelectualmente com uma

pesquisa muito boa. E tinha um outro menos profundo que era o Theobaldo Miranda

Santos. Se usava também. Mas esse era livro didático mesmo, as normalistas

usavam e tudo mais. O Leonel Franca se usava muito na faculdade de filosofia por

causa do tomismo. Jacques Maritain era um tomista intransigente. E esses dois

eram em português, então era muito fácil para eles consultarem. Na pedagogia elas

usavam largamente o Theobaldo Miranda Santos porque ele também tratava de

outros dados, de outros aspectos da Filosofia vinculados à Pedagogia e não só

História da Filosofia. Mas esses eram livros de divulgação acessíveis pra eles. Mas

eles não compravam livros porque não tinham dinheiro para isso.

Vou lhe dizer a ideia que eu tenho em relação ao Pelotense. O

Pelotense e Pelotas. O ambiente era de religiosidade menos atuante que nas áreas

de forte imigração italiana e alemã. Muita indiferença por parte dos homens em

Pelotas em relação à religião. Influência decisiva da Maçonaria, criadora do Colégio

Municipal Pelotense. Foco de Positivismo era Pelotas, sobretudo a Faculdade de

Direito. O professor de Introdução ao Direito foi um homem que inclusive ficou cego,

33 Refere-se a material escrito de próprio punho, preparado especialmente para a ocasião desta entrevista, disponível nos anexos deste trabalho.

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o professor José Francisco Dias da Costa, que foi quem deu, já aposentado, a aula

inaugural quando eu ingressei na faculdade, já cego também, ele dizia “a luz da

biblioteca tirou a luz dos meus olhos”. Ele era francamente positivista, porque o Rio

Grande do Sul era fortemente positivista por causa do Júlio de Castilhos e depois do

Borges de Medeiros.

Aqui tem um templo positivista, conhece? Tem um guardião. É um

templo. Porque o Conte no final ele criou uma religião desnorteado. E o imóvel

nunca está abandonado, o imóvel está sempre bem cuidado, bem pintado e é

grande. Fica na Avenida João Pessoa, quase esquina Venâncio Aires. Então, havia

um foco de Positivismo lá e havia exemplos de anticlericalismo em Pelotas, porque

os positivistas eram contrários ao catolicismo, radicalmente contrários ao

catolicismo. Elenquei o seguinte: episódio do monumento e praça José Bonifácio

(desafio à Igreja). Raríssimas vocações sacerdotais – idem com relação a freiras.

Outro dado: padres nordestinos (Monsenhor Silvano de Souza, Monsenhor

Queiroz). Nenhum dos bispos de Pelota nasceu em Pelotas, nenhum deles.

- E todos esses elementos históricos e culturais, isto tudo influenciava e

refletia nas aulas?

- Claro, diretamente! Isso é que é interessante. Então, nenhum dos bispos

nasceu lá. Um era de São Paulo, o outro era do Nordeste e da Colônia Alemã e

Italiana. O Dom Chemello, o Dom Antônio Zattera, todos italianos. Agora o que

aconteceu com Pelotas? A Indústria Saladeril, da carne salgada, ela perdeu muita

riqueza. E a riqueza velha se transforma em refinamento cultural. Trabalha muito

para enriquecer. Depois que ele enriquece, na segunda ou terceira geração, aí já

viveram na opulência, e vivendo na opulência eles têm lazeres, têm bagagens e se

refinam educacionalmente, se aculturam e a classe alta bem educada tem

ambições. E fica intelectualizada. E foi o que aconteceu com Pelotas.

Você imagina o seguinte: há cem anos, mais de cem anos, Pelotas tinha

quatro faculdades. E quatro faculdades era o número mínimo para criar uma

universidade. Já podiam ter criado, porque o Direito tem mais de cem anos, a

Odonto também e a Agronomia também. A Odonto tinha Farmácia e a Agronomia

tinha a Veterinária. Nenhuma cidade do interior, mas nenhuma, nem se pensava!

Por quê? Por causa desta riqueza que envelheceu e que se aculturou e as pessoas

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criaram ambições intelectuais. Então, um ambiente com uma faculdade cheia de

positivistas, estudiosos, não faziam mais nada do que isso, só estudavam, liam, liam

muito. Liam muito bem o Francês. Se falava muito bem francês em Pelotas. A minha

tia, por exemplo, acabou sendo professora de francês porque na minha família se

falava francês fluentemente. E liam em francês também.

Depois, o bairrismo de Pelotas. Criou um bom ensino. Criou um ensino

superior precoce. Na Eliseu Maciel, a Agronomia, tinha também o curso de Odonto,

que tinha a Farmácia e tinha o Direito. Mas particulares todos! Conhece a história do

leilão da Agronomia? Isso era uma das coisas mais incríveis de Pelotas. A

Agronomia era particular. E foi doação do Eliseu Maciel, um homem muito rico, que

fez aquele prédio, conhece o prédio da Eliseu Maciel? Na cidade, defronte ao

Mercado, atrás da Prefeitura, um Palacete.

- Eu achava que era o prédio que fazem atualmente as formaturas, lá na

Agronomia...

- Não. Aquele foi mais tarde, foi muito mais tarde. Aí já com a

Universidade Rural do Sul, foi o Governo Federal que fez, porque lá tinha o Instituto

Agronômico do Sul, que era um instituto fortíssimo, que criou as variantes de trigo

que permitiram que o Brasil produzisse trigo, porque não produzia. Lá é que criaram,

porque o clima era muito desfavorável e dava peste sempre. Lá fizeram pesquisa,

pesquisa, pesquisa até conseguir variantes que sobrevivessem ao nosso clima

úmido. O Eliseu Maciel fez aquele prédio naquela forma grega assim, que os gregos

não conheciam o arco, o arco é romano, aquela forma assim que é do Partenon,

aquilo é grego. Eliseu Maciel fez e deu para a cidade, para a Escola de Agronomia,

por isso é que ela se chama Eliseu Maciel. Não se chamou no tempo dele, só

depois que ele morreu. Mas ela teve muitas dificuldades. E um dia ela foi a leilão. E

estava cheio de gente lá. E era um prédio importantíssimo na cidade. E o leiloeiro

botou em leilão e ninguém fez lance. Havia uma convenção comunitária que

ninguém podia lançar. Porque se alguém lançasse ficava dono e não tinha mais

escola. Ninguém lançou e ele quebrou o martelo. E esse martelo existe na

Agronomia dentro de um quadro com uma moldura com vidro, é um martelinho

quebrado, os dois pedaços do martelo. Para ver o que era o bairrismo de Pelotas!

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Para tu teres uma ideia, a Companhia Telefônica era local. A CTMR,

Companhia Telefônica de Melhoramento e Resistência. Não havia. Os outros no

Estado era a Ganz, estrangeira, essa era local.

O Theatro Sete de Abril, pioneirismo no Estado. O mais antigo do

estado.

Gás encanado. Nós tínhamos em casa, já desde o meu avô, gás

encanado. Em vez de ter os botijões, não havia, tinha o Gasômetro em Pelotas,

encanado por toda a cidade e você chegava, ligava o gás, sem ter fogão. Era um

fogareirinho assim, então, por exemplo, a gente não fazia comida nesse fogareiro,

era de duas bocas, a gente fazia café, doces, etc e tal. E o fogão era aquele à lenha

grande que tinha que passar o sapólio todos os dias, fazia almoço e jantar. Não

havia lanche. Lanche é uma criação posterior. O jantar faziam todo de novo. Não era

o chamado “almoço ajantarado”. Uma comida era do almoço, a outra era do jantar.

Não tinha nada requentado. E de noite, tinha o café da noite. Na minha casa, por

exemplo, o meu avô, tinha a sala de jantar e a copa. A copa era pro café, da manhã

e da noite. Almoço e jantar era naquela outra sala. A sala grande e a outra era uma

sala menor. Na sala menor, tinha um fogareiro a gás, igual a um fogãozinho a gás. E

na cozinha tinha um fogão enorme e outro fogão a gás. Gás encanado, você já

imaginou?! Nós não temos até hoje, nós temos no edifício encanado mas é lá

embaixo que tem. Eles chegam lá e trocam.

Então, esse era o clima de Pelotas. Viagens contumazes das Classes A

e B ao exterior. Pegavam o navio em Rio Grande. Passavam verões no Rio de

Janeiro, os ricos de Pelotas. E havia, na família Xavier, ele alugava um vagão, ia a

Santa Maria, de Santa Maria ia pro Rio de Janeiro, no vagão especial, passava o

inverno e depois voltava. Era completamente diferente. Nos 150 anos de Pelotas,

sesquicentenário, o Clube Comercial, que era uma beleza e está uma ruína, eu me

lembro dele em pleno fastígio, vem uma verba especial agora para ele, porque estão

recuperando muitas daquelas casas, a cidade está muito melhor agora de novo.

Teve muito caída, por causa do Banco Pelotense também, o Getúlio

deixou quebrar o Banco Pelotense, porque a Dona Darcy Vargas, a mulher do

Getúlio, tinha ódio de Pelotas porque o Banco Pelotense demitiu o pai dela. Quando

o banco esteve em dificuldades não havia Banco Central para segurar os bancos,

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houve uma corrida ao banco e o Getúlio não socorreu porque a Dona Darcy queria

se vingar do banco. E além disso, o que aconteceu foi que o patrimônio do Banco

Pelotense passou para o Rio Grande do Sul. E o Banco do Estado ganhou muito

com isso. O Banco Pelotense tinha em Copacabana chácaras quando Copacabana

não era nada. Vê que patrimônio colossal! Então isso assim era um retrato de

Pelotas.

E uma politização centrada no Estado. Até bem pouco tempo, a situação

não ganhava, ganhava sempre a oposição. Sempre a oposição, sempre a oposição.

Quer dizer, o povo politizado, não está satisfeito, bota outro, tenta outro.

Agora sobre o Pelotense: então era o Ginásio Pelotense, colégio da

maçonaria, único misto, também essa é uma diferença importante. Mensalidades

mais baratas. Classe Média Baixa o buscava. Pela qualidade do ensino, classe A o

elegia para a educação de seus filhos. Então, aí criava no Pelotense uma coisa

diferente dos colégios particulares, porque lá estavam muitos alunos ricos e muitos

alunos pobres. E havia uma visão social diversa, porque não eram só “filhos do

papai”. E depois tinha um outro ingrediente, que eram os judeus. Muitos alunos

judeus, muito exigentes e muito interessados. Então, famílias não-católicas

preferiam aos colégios religiosos. Os comunistas, por exemplo, da cidade

colocavam os filhos no Pelotense. Os comunistas da época eram ateus e contra a

Igreja. Depois, os judeus que eram a opção natural, porque os judeus eram

anticatólicos e os católicos antijudeus. Os filhos deles para onde iam? E os judeus

tinham uma elite intelectual porque estudavam muito e são muito inteligentes, todo

mundo sabe. E precisavam fazer carreira porque eram muito discriminados. A

ascensão deles se faria ou pelo dinheiro ou pela intelectualidade, como foi sempre

em toda parte com os judeus. Não havia formação ou doutrinação religiosa no

Pelotense, diferente do São José. Alunos eram mais liberais e críticos. Grêmio

estudantil muito independente. Organizavam uma passeata e um festival que

escandalizava os setores conservadores da comunidade, era incrível. Quadros

incríveis. Críticas à Igreja, ao Bispo... Uma vereadora era especializada em atirar

ovos podres na passeata do Pelotense (risos)... Que era a vereadora Rose Maria

Campos, que era beata. E eles passavam pelo Gonzaga com a passeata. Para

provocar. E ela ia lá e atirava ovos neles, então era uma loucura! Alunos críticos,

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politização interessante, Clássico e Científico diurno e noturno. Científico

interessados em carreiras como Medicina, Odonto, Agronomia e Engenharia. Muitos

alunos realmente interessados já em Filosofia. Clássico era Direito, História e

Geografia e Magistério. As turmas do Clássico eram muito pequenas e

predominantemente femininas.

- E o que o senhor me diria sobre a extinção que ocorreu depois? O

senhor concorda com a extinção da Filosofia no período ditatorial? Eu sei que é

uma pergunta quase óbvia, já que o senhor é um professor de Filosofia, mas como o

senhor vê este processo de ruptura, de extinção?

- Em primeiro lugar, o seguinte: eu não gostava da sindicalização, da

“Cubanização” do Brasil que estava sendo feita pelo João Goulart. Houve até um

famoso comício da central que determinou a revolução. A revolução não foi

revolução. Foi um golpe de Estado. Uma vez eu fui convidado para falar no Quartel

para oficialidade. E falar sobre revolução, etc. E eu disse que a revolução era fonte

de Direito. Que a revolução era antijurídica, era uma fratura da ordem jurídica. E um

moço lá disse “o senhor não pode dizer isto”. Mas como não posso? Eu já disse

isso! Claro, qualquer revolução. Mesmo que seja um Golpe de Estado, é uma fratura

da ordem jurídica. Porque há uma constituição, houve a quebra da constituição,

para o bem ou para o mal, é uma fratura jurídica. E a revolução ela se torna fonte de

Direito porque ela cria o Direito. O Ato Institucional é Direito. Então, ela é Fonte do

Direito. Agora, aquele Direito é injusto? Pode ser. Não importa. A dificuldade com o

Direito é que o Direito pode ser injusto. E o que o Direito precisa é estar perfilado,

submisso à justiça. O Direito só vale enquanto ele está orientado pela justiça. Se o

Direito deixa de se orientar pela justiça, ele é nefasto, porque ele só é bom enquanto

ele é justo. Quando ele passa a ser injusto, ele passa a ser péssimo. Isso é Filosofia

do Direito. O Direito que a gente chama Direito que é a lei, é chamado de Direito

Positivo. O Direito Positivo pode ser bom ou pode ser mal. Por exemplo, quem é que

acha que o Direito Positivo de Imposto de Renda, com essa quantidade de impostos

que nós temos é bom? Não é bom. Acha isso justo? Não é justo. Entretanto,

prevalece. Porque ele tem a força cogente do Direito. O Direito vive em função da

coação. O Direito sem coação não funciona.

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- Então o senhor considera a extinção do Ensino de Filosofia uma coação

que serviu aos interesses do Estado?

- Claro, foi uma arbitrariedade. Não era interessante. Tudo que te tira a

liberdade é antijurídico. Todo valor gera um desvalor. Nós temos como valores

jurídicos a segurança e a insegurança. Essa insegurança é um desvalor e precisa

ser contido. Então surge a ordem para devolver a segurança. A ordem é um valor e

cria dois valores: um por falta e um por excesso. Essa falta de ordem, é desordem,

outro desvalor. E esse excesso de ordem se chama ritualismo. Quer dizer, a pessoa

só faz o rito, mas não progride, não faz nada. É só rito. Regra e regra. Outro valor é

a paz. Mas a paz cria um desvalor que é a discórdia. A discórdia é um desvalor.

Então você precisa obstar este desvalor com outro valor. O excesso de poder é a

prepotência e a impotência é a falta de poder. Para a cooperação, você não precisa

estar ligado intimamente. Você pode cooperar sem estar vinculado à causa. O

programa da Globo, as pessoas fazem doações , naquele da infância, é

cooperação. Mas você não está ligando para a infância. No horário nobre da

televisão, a minha firma vai aparecer de uma forma muito simpática, é uma

cooperação. Mas não é aquela cooperação desinteressada, que está me faltando a

expressão agora. A gente está interessado no êxito do outro, mesmo que você não

possa ajudar. Alienação é quando você não liga para o outro, não está dando a

mínima. Agora a cooperação às vezes ela é massificação, por excesso. Há um

incêndio. Vai um monte de gente ajudar os bombeiros. Morre gente lá. Ou então, é a

minimização. Porque é uma cooperação tão pequena que não significa nada, só

atrapalha. Por exemplo, criaram aqui uma coisa para pagar a dívida do Brasil. As

pessoas iam no banco, davam um dinheirinho, mas para fazer um sleep ou outra

coisa, era mais caro, não valia a pena. Esses aqui são os valores jurídicos. Mas

onde é que está a liberdade? A liberdade está aqui...

- Em tudo isso...

- É um valor pré-jurídico. Você só pode usar essas coisas, se se tem

liberdade. Se lhe tiram a liberdade, não adianta lhe darem segurança.

- E num processo ditatorial...

- Não tem. Depois e essa conjugação de liberdade mais segurança, mais

paz, mais ordem, mais poder, mais cooperação é a justiça, que é o valor

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presidencial do Direito. E para você ter Justiça, essas coisas têm que estar

asseguradas. E no momento que tiram, prejudicam todas. O poder, em vez de ser

um valor, para botar ordem na sociedade, passa a ser prepotência. O poder como

nós temos agora, que os bandidos estão soltos aí, prende e solta, prende e solta, o

poder se torna impotente. E o onipotente impotente é um desastre socialmente,

porque você confia no poder. A sua segurança está nas mãos do poder, que é o

Estado. E se o estado não cumpre, então essa é a situação. Então o que aconteceu

em 64? O Jango estava criando uma republica sindicalista, que o empresariado

odiava e realmente ia transformar o país numa Cuba; Cuba é um desastre, eu estive

lá.

Fazem toda uma encenação com Cuba, Cuba é um fiasco. É uma coisa

horrorosa, você não imagina o que é aquilo. Estive lá há dez dias, é uma coisa

horrorosa... sabe quanto ganha um professor lá? Vinte dólares. Você imagina que

nós chegamos lá, éramos reitores e tudo mais, chegamos lá, fomos recebidos e

designaram um professor para acompanhar cada um de nós, porque não se pode

andar sozinho, era uma gentileza ter sempre alguém conosco. Então, nós ficamos

num hotel de cinco estrelas lá, espanhol, o Brasil é que pagava, nós fomos ver as

experiências cubanas lá. Aí, nós fomos pro hotel. E chegamos lá, estávamos

conversando e tudo mais e nós começamos a perceber que quando a gente

terminava as visitas, íamos pro hotel, algumas pessoas iam conosco, ficavam

conversando, a gente mandava buscar sanduíches e coisas, aperitivos e coisas

assim, e eles separavam sanduíches, a senhora que estava comigo colocava na

bolsa. Eu não, não faço muito o gênero, não, mas um outro confrontou: “o que está

acontecendo”? Aí, foi um negócio assim desagradável e responderam “é que a

gente fica com culpa de estar aqui usufruindo e em casa nós não temos nada, nós

recebemos um ovo a cada quinze dias e eu estou comendo estes sanduíches aqui

maravilhosos e na minha casa nunca se tem uma coisa dessas”. Então, o que nós

fizemos? Mandávamos buscar, como se nós fossemos, guardávamos e eles

levavam. Os convidamos para almoçar conosco. Eles não podiam subir no primeiro

andar. “O restaurante é no primeiro andar e nós não podemos subir”.

Esse é o regime que o Chico Buarque acha ótimo. Sabe o que acontece?

O Chico Buarque é cercado de carinho lá e não mostram nada para ele. Foi um

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governo violentíssimo, que matou gente sumariamente, paredão, paredão,

paredão... Eles não enxergam isso, falta isenção.

O problema do político é que eles não têm isenção. Você vê agora, por

exemplo: roubalheira desgraçada no Ministério dos Transportes, a Dilma botou uma

porção de gente na rua, mas continua com indicação do partido. Por quê? Porque

ela tem 47 deputados nesse partido que não podem sair da aliança. Os Estados

Unidos fazem coisas horrorosas? Fazem coisas horrorosas. Mas a União Soviética

também fazia. Então, todos fazem coisas horrorosas. Você tem que ter isenção para

saber quando fazem bem e quando fazem mal, não pode ser maniqueísta, só o bem

de um lado e o mal de outro... Não... Não existe isso. Agora o que aconteceu com a

revolução? A chamada “revolução” deu um Golpe de Estado, evitou a socialização

sindicalista do país que não estaria de acordo com a maioria, certamente e depois,

não seguiu os seus padrões, tornou-se violenta, criou o problema da liberdade, com

isto, todo o Direito foi arraso, a justiça desapareceu... essa foi a ditadura no Brasil.

Mais suave que outras, a do Franco foi muito pior, a do Fidel foi muito pior, a da

Argentina foi muito pior, porque pegavam os filhos e isto aqui não aconteceu, mas

todas elas são maléficas. No momento em que você sacrificou a liberdade, afastou a

justiça. O poderoso pode estar bem intencionado, mas daí a pouco, desanda tudo. É

que eu acho a Dilma cheia de boas intenções e firmes. E por que ela está vacilando

agora? Isto é um vacilo, ela tinha que ter demitido. Então, demite toda a cúpula do

ministério e Ideli não sabia de nada? Então, ela obrigou a ele a se demitir. Mas

ainda está sofrendo a pressão do partido porque ela manteve o PR no governo. Não

podia botar ninguém do PR. Sim, pois a quantidade de corrupção é imensa. E o que

está prejudicando muito o país é a corrupção. A corrupção e a violência estão

terríveis.

- E como o senhor enxerga o retorno da Filosofia nos dias atuais?

- Eu acho altamente salutar. É o que se fazia antigamente. Com toda a

liberdade, se ensinava. Eu não fazia pregação religiosa, nem ideológica, mas queria

que eles tivessem do ponto de vista ético uma noção clara da necessidade de ser

decente. Isso eu batia insistentemente. E bato toda a vida nisso. Dessa ética com

Deus, sem Deus, ética, fazer o bem, nos moldes do Imperativo Categórico. Eu sou

compelido a fazer o bem. Universal. Agora, por que motivação eu faço o bem? Aí é

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subjetivo. Qual é o bem? O que a comunidade acha que é o bem? O que eu acho

que é o bem? O que é correto? Então, eu me submeto à minha consciência e faço o

bem. Agora, o problema são os desvios egoísticos que todos têm.

Você vê o seguinte: eu fui desembargador, sou desembargador

aposentado e eu, com relação a valores num julgamento, eu posso ser imparcial,

quer dizer, não favorecer nenhuma parte. Mas não posso ser isento. Porque eu não

posso ser isento aos valores. Eu não posso ter isenção em relação a um crime, por

exemplo, a um estupro. Eu posso ser isento em relação a um estupro? Não posso.

Posso ser imparcial. Quer dizer, deixar que a pessoa se defenda, apresente as

provas, o Estado quer condenar, a pessoa quer se defender, dou oportunidade a

que ele se defenda, mas eu não estou compactuando com a ação do criminoso. Eu

não sou isento em relação a valores, nunca sou. Sempre estou de um lado. Sempre

estou comprometido com algo, com aquilo que me parece justo. Ou então, com

nenhum dos dois, porque cansei de julgar de modo a desagradar as duas partes. É

muito comum acontecer isto. Porque cada uma das partes quer tudo para si. E o juiz

às vezes entende que em parte procede a queixa e em parte não procede. Também

não vai ser sempre salomônico. Como é que você vai estabelecer mesótes em uma

situação em que uma pessoa é completamente inocente e a outra é completamente

delinquente? Aí, tem que ser rigorosamente a favor daquele que é inocente. E

rigorosamente contra o que é delinquente. Agora, em jogo patrimonial, por exemplo,

quem sabe, os dois tenham parte da razão. E outros também estão abusando das

suas próprias razões. Isso é curioso.

- E que mudanças ou melhorias seriam pertinentes ao Ensino de Filosofia

nos dias de hoje?

- Eu estou há muitos anos focado na Filosofia do Direito. E o meu foco é

justamente a Teoria da Justiça.

- Mas assim, numa situação hipotética, se o senhor fosse lecionar

Filosofia novamente...

- Eu trabalharia, com trabalhei, para a juventude esclarecer os objetivos

da Filosofia, nesses objetivos mostrar a utilidade da Filosofia, que não é uma coisa

para sábios, não é uma coisa para pessoas fora de série, ou por sua sapiência ou

por serem desligados do bom senso. Muitas vezes apresentam o filósofo desligado

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dos bens materiais completamente, essa visão do filósofo necessariamente

desleixado, nada disso. Eu iria dizer que ela é uma coisa que pode ser pragmática

no sentido da gente aplicá-la no dia a dia. Depois desse conceito, ingressaria numa

axiologia, eu não me preocuparia tanto com a metafísica, porque a metafísica vai

levar necessariamente à alma, vida futura, é evidente que haverá a religiosidade.

Por isso é que eu não dava Metafísica mas dava Ontologia, que é uma forma da

Metafísica , pois trabalha com o ser, o não-ser, etc. Mas que eu evitava certamente

esse foco na religião, que é um outro setor da vida. Coloco fora do âmbito da

Filosofia estrita.

Eu trabalharia imensamente com Ética, pois estamos todos muito

necessitados, muito carentes. Agora você vê o seguinte: hoje colocaram os

containers na cidade, que já tem em Pelotas. Vandalizaram os containers,

incendiaram os containers, fizeram tudo. Agora, a troco de quê? Completamente

sem sentido. Uma coisa que é feita para o bem comum, quem é que pode ser

prejudicado por isto? Os telefones públicos, na vila, um único telefone público,

quebram todo. Não tem sentido. O único sentido está na revolta. Na inadaptação da

pessoa ao meio social.

Então, no colégio tem que se mostrar isto. E a Filosofia não precisa ser lá

em cima, a Filosofia tem que começar embaixo, como estão fazendo agora. O que

seria importante é que a pessoa desenvolvesse o altruísmo, um freio ao egoísmo.

Se você deixar o egoísmo desenfreado, nunca vai haver paz. Porque se você

entrega a Justiça à vontade de cada um, entrega o bem comum à regras de cada

um, o teor de justiça vai cair extraordinariamente, porque o egoísmo vai prevalecer

sobre o altruísmo. E o egoísmo não se interessa em ser justo.

A Irmã Dulce nunca seria um exemplo do egoísmo, São Francisco de

Assis, etc. As pessoas que são realmente maravilhosas independentemente ou não

de serem religiosas. As pessoas que se doam, que dão de si, isso é que é

fundamental. Porque se vê muitas pessoas religiosas, que são imensamente

egoístas. Não significa nada. O sujeito é malvado e acha que é religioso. Se diz

cristão quando ele age exatamente contrário à doutrina cristã. Exatamente contrário.

Imagina que São Francisco de Assis teve grande problemas com a Santa Sé, que

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não era tão santa assim. Se ele não tivesse “seduzido” o Papa ele teria um destino

terrível.

Então, isso é uma coisa que eu acho: se a gente pudesse incutir nas

crianças que é bom fazer o bem, seria fundamental. E esse é o papel da Filosofia.

Ela é que pode fazer isto. Os professores de Filosofia, só que eles têm que serem

exemplares. E todos nós, para sermos exemplares, é muito difícil. A maturidade nos

deixa melhores, eu acho. Nos deixa melhores porque a gente já superou muitos

problemas, muitas dificuldades. Mas depende, porque você pode ter uma

maturidade amarga e você fica pior. É uma questão de como vou usar a minha

liberdade.

- Uma última questão: é o seguinte, na LDB de 1961 a Filosofia passou de

disciplina obrigatória para uma disciplina optativa nos estabelecimentos de ensino. O

Colégio Municipal Pelotense, por isso também é o objeto da minha pesquisa, porque

valorizou durante todo esse período o Ensino de Filosofia e só deixou de ministrar o

Ensino de Filosofia quando realmente foi proibido, tanto que em 89, quando

nenhuma escola tinha Filosofia, o Pelotense já tinha retornado. E, no passado, só

deixou de ministrar em 71, foi até as “últimas”. Em 61, já era optativa e algumas já

estavam retirando a Filosofia.

- Agora, se você bota como optativa a Filosofia, nas escolas particulares

ela não vai funcionar nunca. Tem que pagar mais um professor, mais material

didático, conflita com o horário, é muito problemático. Eu acho que ela deve fazer

parte de um currículo obrigatório. Os fundamentos filosóficos têm que transitarem

entre os alunos desde pequenos. Que é para ver se a gente fica melhor do que é.

Porque as pessoas com conhecimentos filosóficos, sobretudo de Axiologia e de

Ética, ficam melhores, têm a consciência disso.

- E assim, lá em 1961, quando ela passou de disciplina obrigatória ao

posto de disciplina complementar, ou seja, optativa, mais especificamente, no

contexto do Colégio Pelotense, como o colégio reagiu a esta modificação? Houve

alguma discussão em se retirar? Ela se manteve até 71, mas eu queria saber se

houve alguma discussão, do tipo “vamos tirar, não vamos”... Ela tinha valorização

por parte da Direção, esse apoio em querer que ela ficasse, permanecesse?

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- Enquanto eu estive no Pelotense, muito, muito. Eu, enquanto professor

de Filosofia, no caso, eu era exigente, reprovava, frequência obrigatória e tinha o

mesmo status das mesmas disciplinas. Era uma congregação, eu era uma voz

autorizada, como qualquer outra, ouvido...

- Quem era a Direção no seu período, o senhor lembra?

- Era o Raul Iruzun. O pai dele, Gregório Iruzun, foi diretor do Pelotense

por muitos anos. E o Raul era professor de Geografia, chegou à Direção e ficou

alguns anos na Direção. E era uma pessoa muito razoável e inteligente, que

considerava muito os professores. Era uma pessoa apreciada pelos alunos e pelos

professores. O pai dele fazia parte daqueles professores que eu te disse, Palla

Alves, o Prof. Joaquim, dava francês. Mas eles substituía qualquer professor de

qualquer disciplina. Faltava professor, ele ia lá e dava História, Geografia, aquele

tipo de professor que conhecia razoavelmente, pela cultura humanística, o

conteúdos das disciplinas. Como hoje uma pessoa bem informada em vários setores

pode fazer. Só que hoje há muito mais especialização do que havia. Depois, tiraram

o Latim também, tiraram o Francês...

O professor Felisberto Machado é que era o nosso latinista. Depois, o

Victorino Piccinini e o Professor “Machadinha”, era um grande latinista e um

professor muito bom. O Victorino Piccinini, que tinha sido seminarista, que em geral

dos professores de latim eram ex-seminaristas. Eles iam pro Seminário, saíam do

seminário e vinham trabalhar na manutenção e trabalhar como professores. Os

alunos gostavam do latim do Piccinini. Você imagina: um professor de latim e os

alunos gostavam das aulas dele? Ele também foi meu aluno, porque se formou em

Direito. Acho que ele ainda está em Pelotas ainda. Extraordinário professor, notável

professor. Era um homem muito culto, jovem. A cultura a gente tem que medir um

pouco em relação à idade. Se a pessoa é muito jovem tem pouco tempo para

amealhar tanto conhecimento. E ele já era muito bem informado e muito bom

professor. Depois, com a base que ele tinha do Latim, ele também era muito bom

professor de português. Então, no Pelotense, havia um clima muito sério de

trabalho, muito bom. Professores muito bons, claro que tínhamos alguns negativos.

E tínhamos pessoas de muita representatividade social, até nas profissões liberais,

advogados... mas a grande maioria dos professores era muito séria, muito exigente

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e muito exigida também. Mas também, alguns não precisava exigir. Por exemplo,

tinha um professor de português, de física e matemática, o professor Rafael

Caldellas. Um homem extraordinário e de uma responsabilidade funcional notável.

Foi Diretor também, depois do Iruzun. Outro que trabalhou muito lá e muito bem foi

o Paulo Marcant Gonçalves. Chamavam de Marcant. Imagina que ele era formado

em Direito e chamavam ele de “Seu Paulo”...

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Entrevista com o Prof. Dr. José Luiz Marasco Cavalheiro Leite

(Ex-Professor de Filosofia do Colégio Municipal Pelotense em 1968)

1. Qual foi a sua ligação com a disciplina de Filosofia no período?

Terminei o segundo grau em 63. Fui aluno de Arabela Chiarelli no CMP,

professora de Filosofia no início da década de 1960, que atualmente está residindo

em Brasília. Ingressei no curso de Direito na UFPel e Filosofia na UCPel em 64,

paralelamente.

Me formei em Filosofia em 68 e comecei a trabalhar no Pelotense em

1966, na disciplina de Educação Artística. Assumi a disciplina de Educação Artística

porque, quando aluno, eu era muito ligado ao teatro dos Gatos Pelados; fui o

fundador do teatro dos Gatos Pelados. Tinha uma certa experiência na área teatral,

a disciplina de Educação Artística era uma disciplina nova e não havia pessoas

tecnicamente habilitadas a lecioná-la ou formalmente habilitadas; fui convidado a

trabalhar lá, na matéria de Teatro, a partir de 1966.

Mas eu queria mesmo era lecionar Filosofia. Em 68, me graduei em

Bacharelado e Licenciatura em Filosofia e comecei a dar aulas de Filosofia ainda

antes de estar graduado.

Depois, o novo diretor, Platão, me chamou para o cargo de Orientador

Educacional. Nessa época, essas profissões de Orientador Educacional não

estavam ainda regulamentadas, então, de um modo geral eram ocupadas por

pessoas que tinham um bom relacionamento com os alunos. E eu era bem jovem,

tinha sido aluno do colégio, trabalhava em grupos extra-classe, me identificava

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muito com o Colégio Pelotense, então fui trabalhar no Serviço de Orientação

Educacional (SOE) e larguei a disciplina de Filosofia.

Tive pouco tempo trabalhando com a disciplina de Filosofia, não me

lembro bem exatamente os anos, foram dois ou três anos, depois de 1968, que foi o

ano do AI-5 (Ato Institucional Nº 5), quando já havia muitas restrições à liberdade.

Então, essa é a maneira como eu entrei nessa disciplina.

Essa disciplina era ministrada no curso clássico. Antes era dividido em

“Ginásio” e “Colégio”, o “Ciclo Ginasial” e o “Ciclo Colegial”. O “Ciclo Ginasial”

terminava na quarta série e depois começava o “Ciclo Colegial”. O “Ciclo Colegial”

tinha diversos encaminhamentos, um se chamava “Científico” para aqueles que

queriam cursar disciplinas exatas, Engenharia, Medicina, coisas desse tipo, era

direcionado ao estudo das ciências biológicas, químicas, físicas. E o “curso

Clássico” que era aquele que direcionava às humanidades. A disciplina de Filosofia

existia nos três anos do “Colegial Clássico” e no último ano do “ Colegial Científico”.

Eu achava interessante perceber que os alunos do “Científico”, – talvez por uma

seleção a que eles já se impunham porque os vestibulares para as faculdades de

ciências chamadas exatas eram mais exigentes –, eram os melhores.

As minhas aulas de Filosofia, eu tenho bem essa recordação, eram mais

interessantes nos cursos “Científicos”, que, teoricamente, seriam os menos

interessados, meio contraditório. Os alunos das humanidades não eram tão

interessados pelas questões filosóficas como os alunos do “Científico”. Era um

pouquinho paradoxal, mas é assim que era. Acho que os alunos do “Científico”

eram mais estudiosos, a competição nos vestibulares era muito forte. Os das

humanidade eram alunos, em uma visão geral, com exceções, que tinham menos

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pretensões, uma espécie de auto-exclusão. Percebia que os alunos do “Científico”

eram mais dispostos a aprender e mais capazes de aprender, embora para eles era

uma espécie de um “lustro” intelectual, não era tão operacionalizável.

2. Quando (em que período) você teve a experiência com o Ensino de

Filosofia?

Já respondida pelo entrevistado.

3. Quais são suas recordações dessas aulas?

Já respondida pelo entrevistado.

4. Como você avalia o Ensino de Filosofia experienciado?

Dentro dos cursos da Católica,(...) não havia o curso de Psicologia em

Pelotas. O curso de Filosofia da UCPel, não era muito voltado pros seminaristas,

naquele tempo. Era um curso aberto, a maior parte das pessoas eram moças, havia

um pouco essa questão de gênero, havia só dois colegas homens. Não havia o

curso de Psicologia e uma boa parte do curso eram cadeiras de Psicologia e

Sociologia. Até porque a Filosofia estava um pouco “embrulhada” com a Psicologia

e com a Sociologia, eram coisas que participavam, digamos assim, do mesmo

universo científico e cultural. Eram matérias das Ciências Humanas, tidas como

não-experimentais, já eram vistas como ciências, mas no Brasil a coisa foi mais

devagar. Assim como uma boa parte dos sociólogos do Brasil eram juristas ou

professores de Direito. Não eram áreas bem delimitadas. Essas ciências sociais e

psicológicas custaram um pouco mais a se desenvolver e a se fixarem dentro das

universidades. Estudei muito a Psicanálise naquele tempo. Os alunos que pendiam

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para Medicina, eram os que mais queriam conhecimentos de Psicanálise, me

lembro bem.

Estudei também muita Sociologia, as Ciências Sociais, em geral. Aprendi

muito sobre o Marxismo, porque era uma curiosidade grande dos alunos nesse

tempo. E isso era um pouquinho perigoso.

Eu fui demitido em 1974, por razões políticas. Saí por uma conjunção de

dois motivos: ia fazer uma pós no Canadá em Sociologia e porque tinha assumido,

no Governo da Prefeitura de Pelotas, um novo prefeito e um Secretário de

Educação muito “de direita”, que tinha contas a acertar com alguns professores do

Colégio Pelotense. Então, ele fez uma “limpa” no Colégio Pelotense e eu fui um dos

que saí nessa ocasião. Mas o período coincidiu com meu interesse de estudar fora

do Brasil, o que foi muito bom.

Eu não tinha muito a preocupação de ensinar a História da Filosofia, as

grandes linhas do pensamento filosófico, mas eu gostava muito de falar sobre

Teoria do Conhecimento, Epistemologia. A Psicanálise era muito querida pelos

alunos e a Sociologia, com um viés marxista era um pouco de meu interesse. Eles

também tinham bastante interesse na Filosofia Oriental. Na época tinha um autor

chamado Herman Hesse, que escrevia livros de grande sucesso, o “Sidarta” é um

exemplo. Os alunos gostavam, era moda. Os Beatles encontram gurus orientais, o

Movimento Hippie era também orientado por essas filosofias, por essas maneiras

de pensar e eu me lembro de ter estudado um pouco isso e de ter passado para os

meus alunos algumas dessas coisas.

Nesse meu tempo, havia duas formas de protesto em que a juventude se

engajava: uma era a política, através da militância política e que fazia uma

Page 189: Letícia Maria Passos Corrêa

189

contestação do regime e de todo o sistema político ocidental e econômico. E outra

era o movimento de contra-cultura. O pessoal da esquerda achava que isso era

alienação. Eu estava mais no primeiro, mas olhava de longe e simpatizava com

essa outra visão, em um tempo em que eu contestava tudo e todos.

5. Que didáticas e práticas de ensino eram desenvolvidas em aula?

Fazia com que lessem algumas coisas, alguns textos que eu

selecionava, alguns alunos – eles mesmos – preparavam exposições deles em

aula. No geral, eram aulas expositivas, os alunos apresentavam aulas, às vezes

com a minha condução. Provas com perguntas discursivas em que o aluno tinha

que apresentar uma resposta dissertativa.

6.Quais conteúdos você lembra terem sido trabalhados na disciplina?

Teoria do Conhecimento, Gnosiologia, Filosofia Oriental, Marxismo, eu

gostava que eles entendessem o que eram Classes Sociais, como se formavam as

Ideologias, os fundamentos da Psicanálise, Realismo Aristotélico, Idealismo

Platônico.

Por uma questão pessoal, me vinculei muito ao Existencialismo, li muito

sobre Sartre, sou um sartriano, fiquei muito impregnado de Sartre, porque o Sartre

fez uma “ponte” entre a Filosofia e o Marxismo e eu gostava muito disso.

Não lembro bem de todos os conteúdos, mas acho que era isso.

7. Algum filósofo ou escola filosófica em especial foi enfocado? Qual?

Eu gostava muito de problematizar o conhecimento. Na UCPel, meus

professores alguns eram despreparados, outros eram humildes e estudavam junto

com os alunos e outros eram excepcionais, conhecedores da Escolástica. O Padre

Egídio conhecia o Tomismo profundamente. Líamos livros de modo geral de

jesuítas. Um outro professor excelente que eu tive foi o Padre Guilherme, cujo

sobrenome não me lembro. Esse falava com um sotaque alemão e penetrou

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190

profundamente na Filosofia Medieval, Guilherme de Ockham e outros tantos e eu

acho que ele me elegeu como a pessoa que queria que aprendesse ali. Então

ficamos muito amigos, ele foi embora do Brasil e depois disso eu sinto muitas

saudade dele. (O entrevistado se emocionou). Emprestei livros do Sartre a ele. Ele

achava o Sartre um horror, é claro. Emprestei Sartre e Marcuse para ele. Ele queria

aprender esses autores e nunca me devolveu os livros. (Risos)

Fui orador de turma da formatura do curso de Filosofia e falei sobre

liberdade dias depois do AI 5, quase saí preso. E Marcuse estava presente no meu

discurso. Marcuse foi nessa época que apareceu, eu fiquei muito fascinado e o

interessante é que o Padre Guilherme, um jesuíta, escolástico, tomista, quis

aprender Marcuse, eu achei isso uma coisa fantástica. Hoje, olhando as habilidades

que tenho, que eu acho que tenho, entre as quais um bom raciocínio jurídico (o

entrevistado é também Advogado), eu acho que devo a esses professores da

Escolástica, porque não há nada melhor para organizar um pensamento do que a

Escolástica, é incrível, impressionante. Tudo está dentro de categorias pré-

determinadas e eu acho que como um instrumento para o pensamento, eles foram

muito importantes para mim esses dois professores, o Padre Egídio e o Padre

Guilherme.

8. O professor usava algum livro didático? Qual?

Havia um livro que eu mandava lerem, de Gnosiologia, que era o

Bochenski. Esse livro era muito bom porque era acessível a pessoas que não eram

do campo da Filosofia.

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191

Também tinha um livro muito bom, que eu tirava os textos para os alunos,

que era o Manuel Garcia Morente, de Introdução a Filosofia, era de uma certa

tendência na Espanha a Julian Marias, Ortega y Gasset e havia também um

existencialismo católico, havia alguns existencialistas acolhidos pela igreja.

9. Suas recordações são de uma aula tradicional ou crítica?

Tenho muitas dúvidas sobre o que é uma aula crítica; às vezes, eu penso

que as pessoas que querem fazer uma aula crítica querem fazer uma crítica de

acordo com o que eles acham que é certo. Acho que uma formação crítica é aquela

que dá ao aluno a capacidade de fazer julgamentos. Quem fala em Educação

Crítica de modo geral quer se dirigir à esquerda, quer impregnar a educação de

acordo com uma perspectiva ideológica que é a sua. Fico pensando, se um aluno

se inclina pra um pensamento conservador, que ele tem todo o direito de pensar,

dizem que ele não é crítico. Essa categoria, tal como ela é colocada hoje, a partir de

uma ideia que eu vejo de quem fala isso quer orientar para um determinado

direcionamento ideológico.

Na época, considerando quem eu era e o tempo em que eu vivia, eu não

tenho dúvida que eu orientava meus alunos a contestarem o “status quo” e para que

fossem revolucionários. Queria perpassar um pouco uma mentalidade

revolucionária. Hoje, eu não faço mais isso.

Naquele tempo, havia uma bipolarização: a juventude ou estava engajada

nessas coisas ou estava no movimento de contra cultura e claro, havia também

aqueles outros que passavam sem se preocupar, os mais alienados. Eu, na época,

gostava de tudo que era de protesto. Eram músicas de protesto, era educação de

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protesto, era protestar contra os professores, essa coisa toda. Hoje não existe mais

isso. Não sei se foi bom ter terminado com isso, mas hoje certamente não existe

mais isso. Isso também, por outro lado, cria novas prisões porque é verdade que a

gente sofria tolhimento por parte das autoridades no que a gente quisesse dizer e

cantar, mas nós também tolhíamos os outros. Éramos tão anti-liberdade quanto os

outros. Na época, tinha a expressão “patrulhamento ideológico”, mais ou menos

equivalente ao “politicamente correto” de hoje. Minha simpatia mesmo pelo

movimento hippie sofria patrulhamento ideológico, era tida como alienação. Gostar

de música americana também era tido como alienação. Estávamos sempre nos

policiando: não pode! As pessoas tinham que ser feias, no mundo da cultura

sempre é assim, as pessoas têm que se encaixarem, quem não se encaixa, sofre

um patrulhamento ideológico. Assim como tinha a patrulha do exército, havia

também a patrulha ideológica.

10.Você acredita que essas aulas contribuíram para a formação de

consciências críticas? Por quê?

Lembro de alguns desses alunos que se tornaram psicanalistas. Tenho

impressão, no clássico, de que as alunas, eram quase só gurias, muitas foram ser

professoras e levaram a capacidade de julgamento. Acho que sim, algumas

pessoas, que eu sei, conheço elas, me encontro com elas, não posso atribuir que

tenham sido as minhas poucas aulas de Filosofia, mas eu acho que são pessoas

representativas de uma certa época, de uma certa educação que naquela época se

dava. É difícil dizer qual o percentual de alunos que passam pela gente que

reproduzem ou que não reproduzem a maneira como a gente gostaria que eles se

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caminhassem, esse percentual é relativamente pouco, um percentual pequeno,

mas, se numa turma de trinta alunos, houver dez que tenham um

comprometimento, já está muito bom. Sempre têm aqueles que não estão

interessados. Mas algumas pessoas que passaram por mim do tempo do

Pelotense, que eu me lembro, algumas que eu conheço e preservo amizade com

elas até hoje são pessoas de boa qualidade moral e intelectual.

11.Qual foi a influência do contexto histórico nessas aulas?

Já respondida pelo entrevistado.

12. Você foi aluno ou professor no período democrático ou ditatorial?

Eu fui professor na Ditadura, peguei bem o momento dos “anos de

chumbo” e fui vítima dessa perseguição que começou no governo Ary Alcântara (ex-

prefeito de Pelotas). Quando veio a Revolução em Pelotas, o prefeito era o Edmar

Fetter, tio do atual prefeito, que depois veio a integrar a ARENA e foi bem pacífico,

até atribuem a ele a salvação de muitos perseguidos pelo Regime Militar. Ele era

um cara bem democrático mesmo, não se aproveitou do Regime pra acertar contar

com seus adversários. Mas depois dele, veio o Ary Alcântara, um prefeito que na

área da Educação fez um ajuste de contas com as pessoas que eram dissidentes

dele. Nessa época, é a minha saída.

13. Como a Filosofia era vista nesta época?

Havia muito mais espaço para a reflexão filosófica. Havia mais aletheia,

esse espanto.

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Não sou mais um professor de Filosofia e acabei indo pra Sociologia no

Canadá (Pós-Graduação), a Filosofia eu realmente deixei de lado, depois trabalhei

como professor de Sociologia e Política na UCPel e na UFPel.

No campo da ciência, da tecnologia, tantas coisas novas acontecem e em

parte diminuíram a predileção filosófica, o interesse por essas coisas. A

possibilidade de conhecimento instantâneo que a internet tornou, no campo das

Ciências Biológicas, o controle cada vez maior da vida, sendo quase que

inteiramente devassada a mesma, a reprodução em laboratório e o domínio dessas

técnicas, falando na década de 70. Já se passaram 40 anos e 40 anos é uma coisa

impressionante, incrível a aceleração da mudança. Tenho 64 anos e, nos dez

últimos anos, a aceleração é impressionante. Essas coisas todas, pelo menos a

Filosofia que eu estudava no tempo que era estudante ficou muito prejudicada.

Deve haver hoje uma nova Filosofia, novos autores devem estar refletindo sobre

isso, mas aquela linha daquele tempo ficou muito prejudicada. Hoje tudo é muito

fugaz, muito acelerado. A Filosofia que chamavam de Filosofia Pura, a Escolástica,

em que se estabeleciam as premissas e o resto era tudo dedução racional, por isso

chamava Filosofia Pura considerava que a realidade estava fora daquilo, o erro era

da realidade, o pensamento estava correto. (Risos) Na minha opinião, aquela

Filosofia hoje não teria a mínima chance, aquela Filosofia que eu aprendi

certamente está completamente superada hoje.

14. O Ensino de Filosofia era valorizado perante a comunidade escolar?

Havia um certo estereótipo do professor de Filosofia, mas o professor de

Filosofia era bastante respeitado.

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15. Se aluno, em que pontos o Ensino de Filosofia contribuiu para a sua

formação enquanto pessoa, profissional e cidadão pertencente a uma sociedade? -

16. Se você não teve a disciplina de Filosofia, quais são os reflexos da

ausência desse ensino para a sua formação?

Tenho três filhos, dois bacharéis em Direito e outro Agrônomo, meus filhos

também não tiveram Filosofia e não têm gosto pela Filosofia. Então, de perguntas

do tipo “o que é o conhecimento?”, eles foram privados .

17. Se você não teve contatos com a disciplina de Filosofia, o que pensa

sobre as aulas de Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política

Brasileira?

Sempre tive pavor dessas coisas, sempre achei isso disciplinas da

Ditadura,que realizavam lavagem cerebral. E no tempo em que elas conviveram

com a Filosofia, havia uma grande animosidade entre os professores e essas

disciplinas, eram disciplinas completamente acríticas. Nem conservadorismo, nem

revolucionarismo, eram do tipo “é assim e fim de papo”. Havia uma dificuldade de

convívio entre os professores de Filosofia, os que gostavam de Filosofia e os que

davam essas disciplinas.

18. Você concorda com a extinção da Filosofia no período ditatorial?

A Filosofia do meu tempo foi a Filosofia da Metafísica. Hoje a Metafísica

está jogada fora. Filosofia sem Metafísica não é Filosofia, é outra coisa. Por outro

lado, a Metafísica ficou muito atingida pelo desenvolvimento das ciências. As

perguntas que se faziam na Cosmologia hoje parecem que ficam meio sem sentido

quando a gente coloca naves aí, observatórios espaciais dando informações que a

gente ficava especulando sobre elas. Sei que existem grandes reflexões sobre a

comunicação, sobre a linguagem, grandes pensadores que eu não conheço, ouço

falar, acho que tem muita gente que fala a Filosofia de uma maneira que todo

mundo sabe, mas que ninguém entenda, é um problema dos professores de

Filosofia de tornar difícil aquilo.

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Seja lá o que for, tu chegares numa sala de aula e, até para refletir sobre

o caráter ético, isto é correto, isto não é correto, o que é o correto. Nesse campo da

moral, os estudantes de Direito mesmo, que não tenham a capacidade de julgar

para lá do Direito, para lá da lei, ficam muito presos.

Eu acho fundamental a Filosofia. Em todos os campos, a Medicina, um

professor de Matemática, a Filosofia abre a perspectiva de discussão. Filosofia é

fundamental.

19. Como você enxerga o retorno da Filosofia nos dias atuais?

Vejo com bons olhos, acho que é bom. Às vezes, essas matérias

curriculares são enxertadas sem muito comprometimento. Têm que ser colocadas

com comprometimento; se não houver um verdadeiro comprometimento, não sei.

20.Que mudanças ou melhorias você acredita que seriam pertinentes ao

Ensino de Filosofia nos dias de hoje?

O questionamento filosófico, a indagação, a visão crítica das coisas eu

tenho, achar que por detrás daquilo que parece há alguma coisa que não se mostra

e que a gente tem que ir buscar, eu gostaria, se fosse professor de Filosofia hoje, de

questionar certas coisas, essas coisas todas que são questionáveis, se isso é bom,

mal, correto, incorreto, isso é decente, indecente, hoje até mesmo se vendo o

debate político que aconteceu recentemente nas eleições, está tudo muito

estandartizado, isso é bom, isso é mal e as pessoas não discutem nada, a Filosofia

poderia dar essa boa mexida. Não só a Filosofia, todos os professores, todas as

disciplinas, desde as mais técnicas até as mais humanísticas deveriam desenvolver

aquilo que está na aparência e buscar as coisas que estão lá, mais escondidas, são

as mais interessantes. Mas a Filosofia é a que tem o papel mais importante nesse

sentido. Mas isso, eu não estou habilitado a falar, deixo bem claramente isso, sou

um professor de Filosofia “arquivado”.

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Entrevista com a Profª Gracia Passos

(Ex-aluna do Colégio Municipal Pelotense em 1970)

1. Qual foi a sua ligação com a disciplina de Filosofia no período?

Minha ligação foi por um curto espaço de tempo, no 1º ano do antigo

Curso Científico. Em 1970.

2. Quando (em que período) você teve a experiência com o Ensino de

Filosofia no CMP?

Em 1970.

3. Quais são as suas recordações dessas aulas?

O Ensino de Filosofia para mim, foi muito importante, pois até então eu

não sabia bem o que era Filosofia. A partir desse contato que eu tive, desenvolvi um

gosto todo especial pelas Ciências Humanas, comecei a questionar mais as coisas

e a ver de um outro modo a vida e comecei a pesquisar por mim mesma livros

sobre Filosofia, porque gostei de Filosofia e fiquei com “sede” de aprender mais.

4. Como você avalia o Ensino de Filosofia experimentado?

Pra mim foi um começo para eu saber o que eu queria escolher como

futura profissão. Como a Filosofia trata de assuntos muito humanos e questiona

sobre tudo, sobre a vida, sobre nós mesmos, para mim foi a primeira porta para eu

descobrir quem eu queria ser futuramente.

5. Que didáticas e práticas de ensino eram desenvolvidas em aula?

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A professora dava uma aula expositiva e pedia leituras. Lembro de ter

lido “O Pequeno Príncipe”, de Antoine de Saint-Exupéry, a pedido da professora de

Filosofia.

6.Quais conteúdos você lembra terem sido trabalhados na disciplina?

Lembro de alguma coisa relacionada ao belo, a conceitos relacionados à

estética.

7. Algum filósofo ou escola filosófica em especial foi enfocado? Qual?

Lembro de a professora ter mencionado Sócrates nas aulas.

8. O professor usava algum livro didático? Qual?

Não lembro de nenhum em especial.

9. Suas recordações são de uma aula tradicional ou crítica?

Aula tradicional.

10.Você acredita que essas aulas contribuíram para a formação de

consciências críticas? Por quê?

Para a minha formação pessoal, contribuiu, não como pessoa crítica, mas

como pessoa, em geral.

11.Qual foi a influência do contexto histórico nessas aulas?

Nessa parte política, lembro que existiam determinados temas que a

gente não podia falar. Não se podia ter um diálogo aberto sobre tudo, em função do

regime ditatorial.

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12. Você foi aluno ou professor no período democrático ou ditatorial?

Fui aluna no Período Ditatorial.

13. Como a Filosofia era vista nesta época?

Davam muito pouco valor para a Filosofia, a maioria das pessoas achava

que ela era desnecessária.

14. O Ensino de Filosofia era valorizado perante a comunidade escolar? -

15. Se aluno, em que pontos o Ensino de Filosofia contribuiu para a sua

formação enquanto pessoa, profissional e cidadão pertencente a uma sociedade?

Comecei a me questionar sobre quem eu era, como eu queria ser e a

partir daí se deu a contribuição da Filosofia na minha formação humana.

16. Se você não teve a disciplina de Filosofia, quais são os reflexos da

ausência deste ensino para a sua formação? -

17. Se você não teve a disciplina de Filosofia, o que pensa sobre as aulas

de Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política Brasileira

As aulas de Educação Moral e Cívica e OSPB eram muito boas em

relação ao ensinar o respeito e a valorização à pátria, contudo, tinha o outro lado

que era o de quererem fazer os alunos acreditarem em coisas que eram bem

questionáveis.

18. Você concorda com a extinção da Filosofia no período ditatorial?

Não, de maneira nenhuma. Não concordo porque era de interesse do

governo da Ditadura que, quanto menos os alunos aprendessem a pensar, seria

melhor e quanto mais pudessem ser usados como objetos em vez de pessoas e

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mais manipulados fossem, melhor. O Ensino da Filosofia era visto como perigoso

para os governos da época.

19. Como você enxerga o retorno da Filosofia nos dias atuais?

Acho que é um grande avanço para o bem do aluno e para o bem de

todas as ciências, já que todas elas têm suas origens nas indagações filosóficas.

20.Que mudanças ou melhorias você acredita que seriam pertinentes ao

Ensino de Filosofia nos dias de hoje?

A mudança fundamental é fazer o aluno pensar criticamente e tirar a

Filosofia somente do mundo das ideias e trazê-la para o mundo concreto do nosso

dia-a-dia.

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Entrevista com o Prof. Dr. Manoel Vasconcelos

(Ex-professor de Filosofia no CMP em 1989 e o primeiro professor de Filosofia após a volta da Democracia)

1. Qual foi a sua ligação com a disciplina de Filosofia no período?

Nasci em 1964. Formei-me em Filosofia em 1983 e, nessa época, a

Filosofia era totalmente ausente do Ensino Médio. Algumas poucas escolas tinham

Filosofia. Comecei a trabalhar com Filosofia em 1986 na UCPel nos cursos de

Estudos Sociais, História e Geografia.

2. Quando (em que período) você teve a experiência com o Ensino de

Filosofia no CMP?

O CMP foi a primeira escola em Pelotas que retornou o Ensino de

Filosofia, em 1989, depois da Ditadura. Oportunizaram duas aulas por semana na

carga horária para os terceiros anos do Ensino Médio, por acreditarem que os

alunos já estavam em uma fase de amadurecimento maior. Não tinham professores

de Filosofia. Fui convidado e o convite se deu a partir do diretor Bonini. Eu era

professor da UCPel e fui cedido através de um empréstimo de professores. O Prof.

Isvani, que era do CMP, foi cedido para a UCPel e eu fui cedido para o CMP; foi

uma troca. Trabalhei até 1991, até passar no concurso da UFPel. Era professor da

Católica cedido no Colégio Pelotense, sem vínculo com a Secretaria de Educação.

Na época, eu tinha 25 anos e estava com toda vontade de trabalhar. Foi das minhas

melhores experiências educacionais e tenho muito orgulho de ter participado desse

processo, de ter sido o primeiro professor de Filosofia depois da Ditadura e de ter

trabalhado no CMP.

3. Quais são as suas recordações dessas aulas?

Os Alunos eram muito receptivos. Estavam um pouco angustiados pelo

vestibular e alguns questionavam um pouco as aulas de Filosofia no currículo, por

não cair Filosofia no vestibular. Mas a grande maioria era muito receptiva e aberta.

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Os alunos estavam sedentos por crítica e participavam bastante. As lembranças são

muito boas.

4. Como você avalia o Ensino de Filosofia experimentado?

Muito bom e mais ainda por ter sido algo novo. Não existia programa, eu

mesmo fazia meus planos de ensino e escolhia os conteúdos. Tive ainda todo apoio

possível da direção da escola.

5. Que didáticas e práticas de ensino eram desenvolvidas em aula?

As aulas eram expositivas, eu trabalhava com textos e os alunos

apresentavam seminários; tudo a partir de temas filosóficos.

6.Quais conteúdos você lembra terem sido trabalhados na disciplina?

Introdução à Filosofia, Ética, Antropologia Filosófica e História da

Filosofia.

7. Algum filósofo ou escola filosófica em especial foi enfocado? Qual?

Não, foi trabalhado mais a partir de temas mesmo. Os conteúdos que

tiveram mais destaques foram os de Ética e Antropologia Filosófica.

8. O professor usava algum livro didático? Qual?

Não, nenhum em especial. Mas lembro de já trabalhar com a obra

“Filosofando”, de Maria Lúcia de Arruda Aranha. Os demais, nunca gostei de

trabalhar e a Chauí ainda não tinha escrito “Convite a Filosofia” nessa época.

9. Suas recordações são de uma aula tradicional ou crítica?

Crítica. Especialmente pelo contexto da época. Era a época do Governo

Sarney e depois do Governo Collor.

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10.Você acredita que essas aulas contribuíram para a formação de

consciências críticas? Por quê?

Sim, mas não a Filosofia isoladamente e sim em conjunto com as outras

disciplinas. A escola era muito democrática, o que contribuía para um ambiente

favorável para isso. Tudo na escola era votado, escolhido por todos. O conjunto

disso tudo é que favoreceu a criticidade.

11.Qual foi a influência do contexto histórico nestas aulas?

Era a época de abertura política e o fim da Ditadura. Influenciou

diretamente. O pessoal queria questionar. Era também o período do Governo

Sarney e teve ainda o processo de eleições do Collor, primeiro presidente eleito

pelo povo a assumir o cargo, já que com as Diretas Já, não foi possível pela morte

de Tancredo Neves.

12. Você foi aluno ou professor no período democrático ou ditatorial?

Fui professor no período da Democracia. O primeiro professor depois da

volta Democracia.

13. Como a Filosofia era vista nesta época?

Já respondida pelo entrevistado.

14. O Ensino de Filosofia era valorizado perante a comunidade escolar?

Era, tanto era valorizado que davam duas horas por semana para o

professor trabalhar. No terceiro ano, ainda, que é um ano difícil por causa do

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vestibular. A Direção argumentava a escolha pelo 3º ano em virtude do

amadurecimento do aluno.

15. Se aluno, em que pontos o Ensino de Filosofia contribuiu para a sua

formação enquanto pessoa, profissional e cidadão pertencente a uma sociedade?

16. Se você não teve a disciplina de Filosofia, quais são os reflexos da

ausência deste ensino para a sua formação?

Não tive Filosofia na minha formação inicial.

17. Se você não teve a disciplina de Filosofia, o que pensa sobre as aulas

de Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política Brasileira?

A Filosofia faltou e prejudicou toda uma geração. OSPB e Moral e Cívica,

no final, já eram dadas de uma forma mais crítica pelos professores. Estudei no São

Vicente de Paula e no Colégio Gonzaga e o ensino no Gonzaga era bem crítico.

18. Você concorda com a extinção da Filosofia no período ditatorial?

Não, óbvio que não.

19. Como você enxerga o retorno da Filosofia nos dias atuais?

Enxergo como um processo que tende cada vez mais a melhorar.

Professores de Filosofia estão trabalhando, o que já é um grande avanço, pois

muitos não eram habilitados pra exercer a função. Por mais que muitos professores

fossem muito bons, não é a mesma coisa que professores habilitados pra função,

por terem mais preparo. Inclusive muitos professores formados aqui na nossa

instituição (UFPel) estão atuando lá no CMP hoje.

20.Que mudanças ou melhorias você acredita que seriam pertinentes ao

Ensino de Filosofia nos dias de hoje?

O desafio é manter um meio termo entro o rigor filosófico e os anseios

dos estudantes. Esse é o grande desafio. Tem que despertar os alunos, mas não se

pode perder a essência da Filosofia.

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Entrevista com o Prof. Luis Felipe Claus

(O primeiro professor concursado a assumir a disciplina de Filosofia após o retorno da democracia, em 1992.)

Iniciamos, então, a entrevista com o Prof. Luis Felipe Claus, em 10/11/2011.

Professor, qual foi a sua ligação com a disciplina de Filosofia no período

de 1960 a 2008? Eu queria que o senhor me contasse um breve relato... (Letícia

Corrêa)

É eu fui regente, fui titular, vamos dizer assim, da disciplina de Filosofia

no Colégio Municipal Pelotense de 92 a 1995. Fui o único professor de Filosofia

concursado e primeiro professor concursado no município de Pelotas, era uma coisa

inédita um concurso para a Filosofia, no Colégio Municipal Pelotense em 1992. Fiz o

concurso em 1991 e assumi em maio de 1992 a disciplina de Filosofia, em especial

para os terceiros anos e o Magistério, recém que o Magistério estava começando no

Pelotense.(Luis Felipe Claus)

E quais são as suas recordações dessas aulas?

Eram aulas muito incipientes, nós não tínhamos ainda uma ideia precisa

ou mais rebuscada de conteúdos, os conteúdos eram muito abrangentes, eu ajudei

a fazer os conteúdos... Eu me lembro que era assim, por exemplo, “Filosofia e

Ciência”, “Filosofia e Poder”, “Filosofia e Política”, “Filosofia e Amor”, este tema até

fui eu que introduzi. Temas muito abrangentes, então tínhamos que estar “catando”,

buscando conteúdos, não tinham muitos livros, não havia livro didático de Filosofia

como existem hoje, os livros eram mais teóricos e direcionados ao Ensino Superior,

nós tínhamos que estar adaptando a uma linguagem de Ensino Médio e “pescando”,

“pinçando” os conteúdos que achávamos importantes pra época.

E como o senhor avalia o Ensino de Filosofia experienciado, a sua própria

experiência?

Naquele tempo?

Isto.

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206

Foi uma coisa válida, extremamente válida porque era uma coisa nova no

Colégio Municipal Pelotense até então, tinha desde 89, e [era] uma disciplina

diferente para os alunos. Eles queriam conteúdo, conteúdo, conteúdo. Se dava

alguma coisa de conteúdo, claro, mas se levava o aluno a procurar refletir sobre

este conteúdo. Eu sempre digo que nós não podemos fazer “tábula rasa” dos

conhecimentos da humanidade, a gente não pode ver o que o aluno acha, Filosofia

não é isso. Não é o que o aluno acha, ele tem que ter um conhecimento prévio ,

conhecimento da História da Filosofia ou da Filosofia do Aristóteles para, a partir daí,

refletir então. Não dá pra fazer “tábula rasa”, tem que ter um conhecimento basal,

um conhecimento prévio pra poder refletir, pra poder desenvolver o seu

pensamento.

E que didáticas e práticas de ensino eram desenvolvidas em aula?

Aulas expositivas, dialogadas, conteúdos no quadro, alguns textos, um

pouco de leitura dos clássicos, eu gosto muito dos clássicos, a gente não pode fugir

deles, não podemos menosprezar Aristóteles, Sócrates, os próprios Pré-

Socráticos... Da literatura clássica eu lia alguns textos, então, se eu falava sobre

política eu lia ali um pedacinho do “Contrato Social”, alguma coisa sobre Thomas

Hobbes, John Locke, pequenos textos assim, não todo, mas uma parte principal que

elucidava, corroborava com o conteúdo que eu estava dando, para que o aluno

criasse o amor, ou criasse ao menos a intenção de saber que existe um clássico,

que foi tirado aquele conteúdo daquele clássico. Até hoje eu procuro ler pedaços de

clássicos e trazer o livro e mostrar o livro pro aluno. Manusear, ver o livro ali e tal,

criar amor ao livro. Gostava muito disso.

Que conteúdos o senhor lembra terem sido trabalhados na disciplina com

mais ênfase?

Como eu dava aulas para os terceiros anos e até hoje eu dou para os

terceiros anos do Ensino Médio, naquela época, Segundo Grau, eu sempre procurei

encaminhar os conteúdos de maneira que eles usassem aqueles conteúdos na

universidade. Na época eu fazia Direito, sou Bacharel em Direito também, eu sabia

o que os professores cobravam nos primeiros anos na universidade, então a Política

a gente tratava bastante da questão da Política, como Trabalho, Karl Marx, muitos

iriam ingressar na universidade em cursos de tendência marxista, então deveriam

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saber ou deveriam ter ouvido falar em Karl Marx, nos neomarxistas, então a gente

trabalhava por aí, essa parte de Política, tentando usar a Filosofia como utilidade

dentro da universidade. Para que eles não chegassem na universidade e ouvissem

termos e vissem filósofos que eles nunca tinham visto. Tem que ter um

conhecimento prévio. E funcionou. Anos posteriores eu encontrei alguns alunos que

me falaram: “Ah, professor, o senhor tinha razão, era aquilo mesmo, nós tratamos

sobre John Locke, nós vimos o Liberalismo, vimos Política, Karl Marx”... Muitos

voltavam depois e diziam: “Não, era isso aí mesmo, foi legal, foram boas as suas

aulas”.

Algum filósofo ou escola filosófica em especial era enfocado? Seria Marx?

Marx também. Mas em especial, eu particularmente gosto muito do

Existencialismo. Gosto de Jean-Paul Sartre, em especial, gosto de Heidegger, gosto

do Kierkegaard, Soren Kierkegaard, que ele coloca a essência como possibilidade.

Então, eu sempre trabalhei o Existencialismo, a ideia de “O que vou fazer da minha

vida?”, a vida como sentido, “Para quê eu vivo?”, a existência, a essência como

possibilidade, como um gancho no sentido de que eles no terceiro ano ou no

primeiro ano médio poderiam escolher ser o que eles quisessem na medida que eles

trabalhassem para isto, estudassem, se esforçassem, realizassem seus projetos de

vida. Então, eu trabalhava em especial o Sartre, sempre trabalhei porque é uma

coisa que eu gosto muito, e o Kierkegaard. Até este ano, nós fizemos um trabalho

com os terceiros anos de “Cápsula do Tempo”, está enterrada no pátio da escola

uma “Cápsula do Tempo” que será aberta daqui há cinco anos. E aí, o que

acontece? Dentro tem o projeto de vida de 150 alunos, todos os meus terceiros

anos. O que eles pretendem ser, fazer, realizar, dentro de cinco anos. Dia

18/05/2016 eles retornarão à escola, serão convidados para abrir a “Cápsula” e ver

se seus projetos se realizaram. E isto a partir de um estudo do Kierkegaard, a

existência como possibilidade. Possibilidade de sim ou de não. De realização ou

não. Depende do que nós fizermos hoje. Isso sempre trabalhei.

Bem, o senhor já falou que na época tinha uma dificuldade quanto aos

livros didáticos, mas assim, tinha algum livro em especial que o senhor usava,

mesmo que fosse de forma mais teórica?

Page 208: Letícia Maria Passos Corrêa

208

Um livro bem básico, bem “pão, pão, queijo, queijo”, que não é muito

aconselhável a nível de Ensino Superior, mas para Ensino Médio funcionava, é o

Montin, “História da Filosofia”. E na escola nós temos o Michele Frederico Sciacca,

“Volume 1 e Volume 2”, ele é bastante denso assim, mas dava pra pegar algumas

coisas, pra fazer alguma pesquisa, é um livro raro, Michele Frederico Sciacca, muito

bom, “História da Filosofia”, na perspectiva existencialista, ele é um italiano,

Sciacca, eu tenho dois volumes dele, mas aqui na escola também tem mais dois, eu

tenho o 1 e 2, aqui tem o 1 e o 3. Bem interessante pra dar uma pesquisada.

Naquela época nós não tínhamos internet, não tínhamos a facilidade do Google, da

Wikipédia, não tínhamos nada disso, então era na base da pesquisa mesmo. Ou

eles iam na Biblioteca Pública ou pesquisavam na escola, e dificilmente teriam em

casa algum livro de Filosofia, a escola também não fornecia, então era por aí a

pesquisa, na Biblioteca ou Biblioteca Publica.

O senhor, ao elaborar seus planejamentos de aulas, priorizava o

cumprimento dos conteúdos a serem trabalhados ou preferia considerar o contexto,

através de discussões, diálogos, etc?

Eu sempre procurei desenvolver todo o conteúdo, até porque demora

muito tempo, como eu disse, “Filosofia e Política”, “Filosofia e Existência”, “Filosofia

e Ciência”, eu procurava trazer todos os elementos possíveis que conseguia juntar

daquele ponto, eu procurava sempre [abordar] o trabalho no final dos terceiros

anos, porque eles estão naquela encruzilhada: “Que vestibular fazer?”, porque tinha

vestibular ainda e vestibular escrito, não tinha ENEM, mostrar pra eles o mundo do

trabalho. Esse é o conteúdo primordial que eu fechava o ano. E um pouco antes

trabalhava um pouquinho da felicidade, do amor, que o mundo não é só trabalho, é

felicidade, é amor também. Mas em geral eu conseguia terminar os conteúdos. Não

eram muitos, cinco ou seis, mas conseguia terminar.

Qual foi a influência do contexto histórico nessas aulas? Estamos tratando

de anos 90, período Itamar, pós-Collor... Qual foi a influência mais específica, o

senhor sentia alguma influência?

Eles não tinham muito embasamento político, até os terceiros anos não

estão engajados politicamente. Eu costumo dizer que os alunos querem transformar

o mundo depois que entram na universidade, porque aí eles vão manter contato

Page 209: Letícia Maria Passos Corrêa

209

com várias áreas do conhecimento e aí eles vão se dar conta do mundo e de seu

papel no mundo. Naquele período de Itamar era uma coisa mais tranquila de certa

forma, então não era como na época do Collor, os caras -pintadas e tal, eu não

estava aqui neste período. Mas eles não tinham muito engajamento [político]. Tinha

o grêmio da escola que era bem ativo, de certa forma movimentava os alunos...Que

até, acima de seu trabalho, os terceiros anos estão muito preocupados com

formatura, em passar de ano, em aprender e ir para a universidade. E na

universidade que eles ficam bem mais críticos e querem transformar o mundo.

Depois, com o sentido de que não vão conseguir, se voltam para os estudos para se

formar e garantir o “pão nosso de cada dia”.

Como era vista a Filosofia nesta época, como era vista pela comunidade

escolar, pelos alunos?

Com uma certa estranheza, porque é mais fácil o aluno receber o

conteúdo. Aonde ele tem que questionar, aonde ele tem que refletir, flexionar o

pensamento daquele conteúdo, como eu digo assim: “do sabão, fazer bolinha de

sabão”, é mais complicado. O aluno é muito preguiçoso, daquela ideia das coisas

dadas, vão ter que argumentar sobre isso, até hoje eu dou um tempo: “Gente,

vamos refletir sobre o texto, vamos fazer um contratexto, um texto em cima deste,

argumentando prós e contras, colocando posições pós e contras”, e aí o aluno fica

um pouco indolente. É mais fácil uma pessoa saber que 2+2=4. É quatro e pronto,

não precisa questionar isto. Saber que pode haver um outro sistema lógico aonde

2+2 não seja quatro, seja uma coisa diferente. Então o aluno sente uma certa

estranheza, um pouco de preguiça, de certa forma. Mas iam bem, depois com o

tempo se acostumavam a refletir, a escrever. Eu sempre procurei auxiliar outras

disciplinas, auxiliar História, auxiliar o Português, a produção de textos. Eu sou

professor de História também, então eu trago muitos conhecimentos históricos

[junto] com a Filosofia e aí fica uma aula bastante abrangente.

Bom, mas o senhor sentia que era valorizado?

Com certeza, gostavam. Eles gostavam. Era um período por semana,

pouco, muito pouco, só que o período era um pouco maior, era de 50 minutos. Mas

eles gostavam, em geral eles gostavam. Era um “refresco” para eles, uma coisa

Page 210: Letícia Maria Passos Corrêa

210

diferente assim das agruras da Matemática e da Física, a Filosofia era um

“refresco”.

Em que pontos o Ensino de Filosofia contribuiu (contribui) para a

formação de alunos enquanto pessoas, profissionais e cidadãos pertencente a uma

sociedade?

No sentido de refletir mais um pouco e ter uma ideia mais abrangente das

coisas. De estar os preparando para o mundo da universidade, para o discurso

universitário, para o discurso da universidade; muitos fizeram cursos na área das

Ciências Humanas e mesmo que não façam, que façam Medicina, se alguém quer

ouvir falar em Movimento Estudantil, em Marx, em protestos contra a reitoria e

protestos contra o custo de vida e tal e aí vai entrando questões da Filosofia. Então,

acho que ajudou e até hoje ajuda de prepará-los para o mundo da universidade. Um

pouco mais críticos, mais conscientes, refletindo sobre a sua própria vida, da vida

dos outros e da sociedade, acho que é importante. Importante neste sentido.

O que você pensa sobre as aulas de Educação Moral e Cívica e

Organização Social e Política Brasileira no período em que não teve o Ensino de

Filosofia?

Eu vivi esse período, eu tive TGE (Teoria Geral do Estado) na

universidade, como eu fiz dois cursos superiores concomitantes, eu fiz Pedagogia e

Filosofia, sou Pedagogo também, concomitante, um de manhã, um à tarde e um à

noite e depois fiz Direito também, aparecia algumas dessas coisas ainda. Eu fiz

Direito em 97, estava saindo. Era uma tremenda “encheção de linguiça”. Era só pra

realmente suprir o papel do professor mais questionador, do conteúdo mais

questionador, mais elucidativo, era uma “encheção de linguiça”, sobre a pátria,

sobre o “não sei o quê”, sobre o Estado, o poder... Temos que saber que eles

existem e que estão aí, temos que criticá-los e saber até onde vão a sua influência e

esse é o papel da Filosofia.

O que você pensa sobre a extinção da Filosofia no período ditatorial?

Quais são os reflexos da ausência desse ensino para a formação dos alunos que

vieram depois? O senhor teve Filosofia na sua formação básica?

Tive porque eu fui seminarista, tive Filosofia desde o Ensino Médio. Mas

era um curso especial, era um curso seminarístico, bem específico. Eu vejo que

Page 211: Letícia Maria Passos Corrêa

211

uma geração ficou “aleijada”, uma geração toda nesse período ficou “aleijada” de

um conhecimento mais crítico. Além do conhecimento universal que a Filosofia

propicia, ficou “aleijada” no conhecimento crítico. “Aleijada” da perspectiva de

refletir, tiraram isso da geração, a perspectiva de refletir, de ser mais crítico. Mas

como toda, como diz o Hegel, toda a antítese tem a “antítese”, toda a tese tem a

“antitese”, a geração dos caras pintadas foi uma explosão, uma revolta contra a

situação toda, que se manifestou pela política e ela veio se espraiando pelos

conteúdos do Ensino Médio, na universidade, com disciplinas mais críticas, como

Filosofia, Sociologia, agora temos “Relações Humanas”, aqui na escola, é uma

coisa bem interessante trabalhar valores. A gente não pode deixar isto só para a

Filosofia. A gente trabalha valores de certa forma, mas tem que ter uma disciplina

que trabalhe os valores, honestidade, sinceridade, amizade, vontade, tem que ter

uma disciplina que trabalhe isso. Então eu vejo que esta geração que ficou

“aleijada” deste conhecimento crítico explodiu lá nos caras pintadas de certa forma

pra revolta toda. Como aconteceu em outra vezes, em maio de 68 na França, a

revolta de estudantes, no início da década de 60 lá com o movimento hippie, rock’ n

roll e tal, sempre se acha uma válvula de escape para explodir as revoltas e aí há a

mudança social. Agora estamos vendo a primavera árabe e tal, a revolta política.

Então não há período de ditadura, não há período ruim que dure pra sempre, tem

um momento que explode a coisa e aí se canaliza para um outro setor.

Como o senhor enxerga o retorno da Filosofia nos dias atuais?

Eu vejo pelo Pelotense. Nós hoje temos quase que um departamento,

temos o departamento da área de Ciências Humanas e tal, mas temos tantos

professores de Filosofia aqui que daria pra fazer um departamento. Porque ela

perpassa desde o Fundamental até o final do Médio, tem o Magistério também. Nós

temos muitos professores de Filosofia aqui e isso é uma coisa muito boa. Está se

criando uma geração de pessoas críticas. De pessoas que têm um maior

conhecimento. Maiores possibilidades de conhecimento. Porque a gente oferece

pros alunos a possibilidade de conhecimento, se eles querem ou não aí é outra

história.

O senhor prefere ensinar a Filosofia através de temas filosóficos ou

através da História da Filosofia?

Page 212: Letícia Maria Passos Corrêa

212

Eu prefiro através da História da Filosofia. Eu sou bem conteudista. Eu

pego uma linha de pensamento e eu venho por ali. Como eu tenho dois segmentos,

tenho primeiros e terceiros anos, não dá pra fazer muito isso, mas dentro daquele

segmento, se eu vou falar sobre Política, vou pagar lá o Aristóteles, até chegar na

Idade Moderna, na Idade Contemporânea, aí é tranquilo.

Que mudanças ou melhorias seriam pertinentes ao Ensino de Filosofia

nos dias de hoje?

Mudanças de nós termos um livro didático. No ano que vem, 2012, nós

teremos um livro didático, nós escolhemos o livro da Maria Lúcia de Arruda Aranha e

a Maria Helena Pires Martins, bem completo, “Introdução à Filosofia – Filosofando”.

Na minha época este livro era pequeninho, uma brochura, hoje é um livro aí de 500

páginas.

E os alunos vão receber cada um, um exemplar?

Os alunos do Pelotense vão receber cada um o seu exemplar que nós

escolhemos.

Que interessante, que legal! Um avanço!

Nós tínhamos entre este, o Cotrim, a Marilena Chauí, escolhemos

“Filosofando”. É o mais abrangente. Então, claro, vai ser dividido os conteúdos

conforme os três segmentos que nós temos, primeiros, segundos e terceiros anos.

Cada segmento vai pegar uma parte do livro, temas específicos, mas no final,

começando no primeiro ano e sai no terceiro vai ser visto todo o livro. Então o

Governo Federal está disponibilizando e é um tremendo de um avanço, porque aí

você não precisa ficar “catando” conteúdo aqui, “catando” conteúdo ali,

pesquisando... Claro que tu vais fazer uma pesquisa extra-livro, tu nunca vais te ater

ao livro, mas neste sentido é um avanço. Porque o aluno vai ter mais conhecimento

à sua disposição, digamos, à mão. Não que ele não tenha hoje, claro que tem. Mas

ele é um pouco preguiçoso, pede pra pesquisar um tema: “Ah, pois é”... Então ele

copia do Google. Complicado, né?! Com o livro não, ele vai abrir e vai ter o

conteúdo ali, vai ter a gravura, vai ter o texto, vai ficar mais fácil. Acho que é um

avanço nesse sentido.

O que mudou depois da implantação da LDB de 96, dos PCN's, o senhor

acha que teve alguma modificação?

Page 213: Letícia Maria Passos Corrêa

213

Eu falo mais da minha área de Ciências Humanas e os professores estão

trabalhando mais interdisciplinariamente. Interdisciplinariedade, eles estão mais

ligados, há mais intersecção de conteúdos. Então, de repente, o professor está

falando lá de 64 e puxa alguma coisa de Filosofia nesse sentido, de História, de

Literatura, então... A gente conversa muito aqui no recreio e é preferível trocar

ideias, tocar figurinhas neste sentido.

E quais foram as maiores dificuldades ao ensinar a disciplina? E quais os

avanços mais significativos?

A dificuldade está em termos de conteúdo. Praticamente tinha que se

buscar o conteúdo e dar pro aluno, sói escrever no quadro, dar folhas, xerox, ele

tinha que ter aquele acesso. A dificuldade foi a reflexão o pessoal não estava muito

acostumado a refletir. Eu também trabalhei à noite num ano e o aluno à noite é um

pouco mais cansado, tem mais dificuldade e tal. Uma coisa que pra mim era

pacífica, tranquila, texto, mais texto, refletia, pensava, analisava, escrevia, pro aluno

era mais complicado. Sempre é mais complicado pro aluno, porque somos

professores e eles são alunos. Mas consegui uns bons avanços. Inclusive consegui

influenciar , uma coisa inédita, influenciei dois alunos a fazerem Filosofia no Ensino

Superior. Dois se formaram, um ficou vice-diretor de uma escola depois e o outro é

meu chefe hoje: o Professor Maurício, foi meu aluno de Filosofia no terceiro ano,

trabalha Filosofia no Pelotense e hoje é meu coordenador. (Risos). O aluno hoje é

meu coordenador, o discípulo supera o mestre.

Não sei se o senhor teria mais algum comentário, mais alguma

consideração a fazer que não foi contemplada pelas perguntas anteriores?

Acho que tá tranquilo, é bem por aí. Só pra dizer que de 92 pra cá, dos

anos 90 pra cá, nós avançamos bastante, avançamos muito. A própria

regulamentação da lei de 2008 foi um tremendo avanço, porque agora se tem a

possibilidade de se ter uma disciplina mais crítica, que faz pensar, mas repito,

Filosofia não é achismo, onde me perguntam assim: “Professor, é o que eu acho?”,

eu digo: “Não! Não é o que tu acha. Eu te dei um texto, temos um texto, temos um

autor aqui, reflete, pensa sobre a proposta dele, vê se concorda, vê se está certa.

Está certa? É isso? É isso. Acha que está errada? Então me argumenta, me

escreve o porquê que está errada”. Ele tem que refletir, flexionar o pensamento,

Page 214: Letícia Maria Passos Corrêa

214

reflexão é isso, e aí pro aluno é mais difícil. Eu digo: “Escrevam, escrevam muito!”.

Como tempo eles aprendem. Têm alguns alunos que fazem trabalhos maravilhosos

de reflexão, outros nem tanto.

Então, está. Eu lhe agradeço pela sua participação. O senhor foi

professor, só recapitulando...

De 92 a 95. Eu saí para assumir a direção de uma escola e estou

retornando agora.

Page 215: Letícia Maria Passos Corrêa

215

Entrevista com o Prof. Ubirajara Velasco

(Professor de Filosofia do CMP desde 1996.)

Iniciamos então a nossa entrevista com o Prof. Ubirajara Velasco, em oito

de outubro de 2011.

Bem, professor, qual foi a sua ligação com a disciplina de Filosofia no

período da pesquisa, entre 1960 e 2008, no Colégio Municipal Pelotense? (Letícia

Corrêa)

- Eu ingressei na Universidade Católica de Pelotas para fazer o curso de

Filosofia em 1982, mas como eu estudei no Pelotense, eu tive o prazer de ser aluno

de um grande professor de inglês chamado Walney Hammes, que nos incentivava

no caminho da Filosofia. Também fui aluno do professor, antes de 82, é claro, do

Professor João Manoel Cunha. E o João Manoel Cunha admirava as minhas

redações e, por vezes, usava como exemplo nas outras turmas. E eu achava que

seria professor de Literatura, mas com a influência do Professor Walney e com as

minhas leituras iniciais no campo da Filosofia, eu acabei optando mesmo por esse

caminho e não pela Literatura, embora eu tivesse já no Ensino Médio lido “Dona Flor

e seus dois maridos”, de Jorge Amado, tivesse tido contato com todos os romances

de José de Alencar e uma influência muito grande nesse sentido. Eu adorava os

romances indigenistas. Bom, mas eu ingresso na Católica mesmo é para a Filosofia.

Eu tinha já um irmão estudando Letras, o Miguel, Miguel Arcanjo Velasco, e eu

entendia que tinha que fazer uma outra coisa também, não seguir o caminho dele

porque eu já não tinha seguido o caminho da família que é a Música, todos os meus

irmãos são músicos e inclusive tiveram um conjunto que se chamava “Velascos”,

que é o nosso sobrenome de família, os irmãos Velascos. Então eu, tendo saído de

certa forma, tendo fugido da Música e auxiliado por eles em alguns momentos,

também fugi da Literatura que era o caminho do Miguel. Miguel era apaixonado pela

Literatura. E aí, com essa influência da Filosofia, eu disse “olha, eu sei que isso não

é fácil, mas eu vou fazer vestibular pra Filosofia”. Não tinha na Federal, eu tinha que

passar na Católica, comecei a trabalhar pra tentar me sustentar na faculdade, mas

Page 216: Letícia Maria Passos Corrêa

216

não era suficiente e minha mãe me pagava a faculdade, apesar das dificuldades. Na

faculdade eu ingresso no Diretório Acadêmico, convidado por alguns colegas como

o Amilton, eu não me lembro do sobrenome dele, mas Amilton. Ingresso no Diretório

Acadêmico, me envolvi com esporte e cultura e depois acabei sendo Presidente do

Diretório Acadêmico e já existia uma luta pela Filosofia no Ensino Médio quando eu

cheguei lá. Pessoas como o Avelino,a própria Neiva, eu inclusive presenciei o

casamento deles, na época eu estava dentro da Universidade, o Gomercindo Ghiggi

era um dos grandes incentivadores, o Professor Jandir, nem se fala, era o professor

de todos eles e nosso. Então, havia um pessoal que a Vera chamava de “Velha

Guarda”, apenas uma referência. “Velha Guarda” que trazia essa luta pela volta da

Filosofia no Ensino Médio. Então, a luta já existia. Eu, uma vez Presidente do

Diretório Acadêmico, disse “é por esse caminho que eu vou”. Daí eu comecei a ler

tudo o que podia sobre os impedimentos da Filosofia e sobre as razões pelas quais

ela teria saído do Ensino Médio como disciplina participante, partícipe do currículo

das escolas do Segundo Grau, que era assim que se chamava na época. E aí eu

percebi que o Regime Militar retirou a Filosofia do Ensino Médio e incluiu OSPB,

Organização Social e Política do Brasil e Educação Moral e Cívica com os objetivos

de provocar a obediência a Deus, ao Estado e à ordem estabelecida, entenda-se, ao

Governo. Isso, evidentemente, despersonalizava. Afinal de contas, eu tenho que

obedecer a Deus, eu tenho que cumprir todas as normas, tenho muitos deveres e eu

não devo saber dos meus direitos. Então, 1982, eu cheguei à Universidade. Em

1992, eu estava no Colégio Gonzaga. E cheguei no Colégio Gonzaga para trabalhar

com essas disciplinas, no caso, Moral e Cívica e OSPB. Então, isso

despersonalizava e fazia com que a gente obedecesse sempre e cada vez mais.

Bem, existindo essa luta com o Osório, Avelino, Neiva, o Professor Jandir

incentivando, o Gomercindo, Oscar, uma figura importante, a própria Vera Espíndola

e tantas outras pessoas que participaram dessa luta e não cabia outra coisa senão

dar continuidade àquilo que os outros haviam começado. É importante dizer isso: já

havia um trem andando e nós, na primeira estação, entramos, embarcamos.

Partindo daí, planejamos uma Semana Acadêmica onde nós pudéssemos

falar justamente de todas essas coisas porque as informações eram

desencontradas. Um dizia uma coisa, outro dizia outra... Nós sabíamos por exemplo

Page 217: Letícia Maria Passos Corrêa

217

que, durante a Ditadura Militar, havia encontros de Filosofia aqui em Pelotas, um

deles, pelo menos, eu sei que foi no Colégio Gonzaga, no Auditório do Colégio

Gonzaga, e os professores palestravam pela manhã e discutiam com os alunos e à

tarde eram levados para Rio Grande para prestar esclarecimentos na Polícia

Federal, que na época tinha sede apenas naquele município, por razões que os

militares entendiam, chamavam de Instância Hidromineral, por questões de

segurança, assim eles chamavam. Então, fizemos essa Semana Acadêmica,

organizamos a Semana Acadêmica e pensamos na relação de temas com a

Filosofia, a alienação, o poder, a adolescência, que nós iríamos lidar com

adolescentes e não entendíamos nem a nós mesmos, como é que iríamos trabalhar

com adolescentes outros com a carga de problemas que a gente tinha, ainda não

resolvidos, inclusive, nem se sabia se nós teríamos por exemplo mercado para

trabalhar como professores de Filosofia. O objetivo da Universidade Católica era

esse, haviam dois: o curso foi criado para formar pessoas dedicadas ao clero, mas

havia uma abertura para formar professores. Então, queríamos também relacionar a

Filosofia com o Direito. Por que tantos deveres? Vamos trazer alguém que pense no

Direito. E depois também essa relação da Filosofia com a ideologia e o poder e

como estava a perspectiva do retorno da Filosofia ao Ensino Médio em termos de

Brasil. Então, foi pensando nisso, com esse tema central “A volta da Filosofia ao

Ensino Médio”, nós convidamos para abordar os temas “Filosofia, Alienação e

Poder”, o deputado estadual Ruy Carlos Ostermann, que é formado em Filosofia,

trabalhou muitos anos com a Filosofia e inclusive teve seus problemas lá cm a

Ditadura, teve as suas dificuldades e cerceamentos vários. Depois, convidamos

também para falar dessa relação Filosofia e Adolescência, o Professor Osmar

Schaefer que também nos ajudou a entender o que é a adolescência e um pouco

daquilo que nós éramos ou estávamos deixando de ser e que iríamos encontrar logo

ali adiante. Depois convidamos Renato Varoto para nos falar sobre Filosofia,

Sociologia e Direito. O quarto encontro foi com o Prefeito Bernardo de Souza que

palestrou sobre o tema “Filosofia, Ideologia e Poder”. E, finalmente, no nosso quinto

encontro, nós encerramos com “Filosofia e Educação no Brasil”, com o Deputado

Federal José Fogaça, esse que tinha um projeto de reinclusão da Filosofia no

Page 218: Letícia Maria Passos Corrêa

218

Ensino Médio. O Projeto 356A que obrigava o retorno da Filosofia no Ensino Médio.

(Ubirajara Velasco)

-No Rio Grande do Sul?

- Brasil. Ele era Deputado Federal e a abrangência do projeto era

nacional. A importância de ter-se presente uma pessoa como o Bernardo Olavo de

Souza e sendo ele Prefeito de Pelotas é que nós entregamos, eu tive a grata

satisfação e a oportunidade de apresentar o documento, nós protocolamos à tarde e

à noite entregamos em mãos pra que não houvesse nenhum tipo de dúvida [do tipo]

“eu não li, não sei como é que chegou”, tamanha era a nossa angústia pela falta de

perspectiva já que estávamos caminhando para o final do curso. Era o terceiro ano,

mas estávamos caminhando para o final do curso, era final do terceiro ano.

O Bernardo de Souza, mais o Jandir Zanotelli, Bernardo e Jandir,

concordaram que iriam reincluir a Filosofia no único colégio de Ensino Médio do

município, o Colégio Municipal Pelotense. Quem muito nos ajudou nesse processo

da organização foi o professor Gomercindo Ghiggi, que inclusive foi quem recebeu o

Bernardo e junto comigo pôde fazer a abertura do encontro.

Nessa presença do Fogaça nós tivemos a oportunidade de ouvir pessoas,

foi na sala 331 da Católica, dos mais diversos seguimentos e de diversos cursos,

inclusive pais de alunos que estavam chegando na universidade que foram saber o

que ia se falar sobre a Filosofia e, afinal de contas, o que isso representaria como

retorno ao Ensino Médio. Muito interessante, sala cheia, muito bom o evento,

distribuímos os materiais que o Deputado Fogaça trouxe de Brasília e com a

confiança de que nós estávamos no caminho certo. Eu e o Professor José Mattei,

depois de uma reunião com o Departamento de Filosofia da Universidade Católica

da cidade, passamos a visitar uma escola por semana, por causa dos horários dele,

principalmente, nem tanto pelos meus, para conversar com os diretores e

coordenações das escolas sobre a possibilidade de reingresso da Filosofia nesses

educandários. Foi muito interessante, fomos muito [bem] recebidos, todos os

diretores e diretoras, eu me lembro do Dom João Braga, eu me lembro do Cassiano

do Nascimento, eu me lembro do Assis Brasil, do João XXIII, do Pedro Osório,

enfim... Todos nos receberam muito bem, com sorrisos e abraços, cada um deles

tinha algo a dizer sobre a importância da Filosofia, mas nenhum deles teve a

Page 219: Letícia Maria Passos Corrêa

219

coragem de fazer a disciplina retornar mesmo que em caráter experimental como

nos falou uma das diretoras que visitamos. Aí nós vimos, deu pra perceber, que a

luta seria mais difícil do que se pensava em termos de ganharmos espaços outros

que não fosse o Colégio Municipal Pelotense. Aí nós conseguimos com que o

Pelotense fizesse, eu não sei exatamente como é que foi...

Eu tenho relatado através da entrevista do Prof. Manoel que ele começou

em 1989, ele era professor da Católica e ele foi convidado, foi cedido da Católica

para ir para o Pelotense. A convite dos diretores da época, do Prof. Bonini e da Profª

Maria Laura. No caso, a sua participação, como professor de Filosofia no

Pelotense...

É depois do concurso.

Se dá a partir de que ano?

1996.

O concurso se deu em 1992?

1992.

Foram três anos, então, até ser empossado?

É verdade.

Até assumir?

Isso. Na verdade houve um outro professor intermediário que é o Prof.

Felipe Claus.

Depois do Prof. Manoel e antes do senhor?

Isso. Antes houve uma série de dificuldades no concurso. Inclusive, havia

rumores, rumores a gente não dá muita importância, até o momento em que sente

no corpo a dor. Mas haviam rumores de que o concurso não estava sendo levado à

sério pela Prefeitura no primeiro governo de Anselmo Rodrigues e tinham que até

documentos feitos em garagens foram aceitos. Eu para assumir, fiz quase nada. Eu

dei uma entrevista num importante jornal da cidade falando sobre a boataria que se

espalhava pela cidade, e não era só boato porque houve um empate técnico e o

desempate foi publicado no jornal da terça-feira, então, as pessoas supostamente

receberiam talvez no café da manhã mas o sorteio, para o desempate, foi por volta

de 9hs da manhã. Ou seja, não houve tempo hábil para que as pessoas tomassem

consciência e presenciassem o evento do sorteio que é o que daria a legitimidade

Page 220: Letícia Maria Passos Corrêa

220

ao desempate. Mas tudo bem, passado um tempo, eu, claro, estudei muito para

esse concurso, investi nisso, lutei pra isso e imaginava que iriam abrir vagas e abriu

uma vaga. Eu fui classificado extraoficialmente em terceiro lugar, muito embora,

extraoficialmente, eu fosse o primeiro. Uma pessoa que trabalhava na secretaria me

disse: “Olha, tu vais ser chamado. Mas eu não te conheço, nunca te vi e se tu

mencionares qualquer coisa a meu respeito, tu és louco, porque eu não te conheço”.

E depois, para surpresa minha, não fui eu o primeiro colocado. Então,uma outra

pessoa, esse meu colega assume, por sinal, hoje, um amigo e um excelente

professor, mas enfim, para eu assumir no Pelotense, além de denunciar no jornal,

eu conversei com a Jacema Prestes, acho que isso já é no governo do Irajá, [para]

então convencê-la de que: “Olha, a vaga existe, eu estou aqui”. Porque tinha uma

professora que ocupava o lugar do professor de Filosofia quando o Felipe saiu e

esta professora não tinha habilitação. Então, tentei convencê-la. Depois falei com o

Bachini também, que era o Secretário de Administração e ele, apelando para uma

boa relação de família que ele tinha com meu pai e meus irmãos, ele [disse]: “Me dá

mais um tempo, e tal” e eu vi que faltavam pouco mais de 24hs e aí eu entrei com

um Mandado de Segurança. E é por isso que eu te digo, o meu nome quando saiu

pela décima sexta vez, inclusive lá no Opinião Pública, um jornal extinto que

tínhamos no Fragata, aí eu parei de recolher papeizinhos dos jornais. E, como te

mostrei antes, eu já trabalhava desde 86 e fui nomeado de novo no governo do

Otelmo Demari Alves. Temos um documento que mostra exatamente isso, o

documento ele tem data de sete de dezembro de 98. E o secretário era José Artur

D'Ávila Dias, Secretário Municipal de Administração e o Diretor de Recursos

Humanos interino era o Jorge Augusto Dias Alves. Então, isso graças ao barulho

que eu fiz. Mas, fiz todo esse barulho e fui nomeado 12hs depois do Mandado de

Segurança porque eu me esforcei, trabalhei muito, li muito, estudei bastante, me

preparei e achava que valia a pena e depois, precisava trabalhar também. Então

essa é a minha luta.

E com relação ao Deputado Fogaça e o Projeto 356, nós continuamos

visitando as escolas e solicitando aos diretores, embora não tivéssemos nada de

confirmação, nada de positivo, porque ou as pessoas tinham medo da Ditadura ou

tinham medo de quem pensa.

Page 221: Letícia Maria Passos Corrêa

221

Mas isso já depois de 85, já em tempos de Democracia ou antes?

Não, antes. A Ditadura estava terminando mas o Figueiredo continuava

armando os cavalos e isso é um problema, pro povo isso realmente não é coisa

muito interessante.

E já no Pelotense, quando o senhor assumiu a disciplina, quais são as

suas recordações dessas aulas, depois?

Eu quando cheguei lá, no primeiro momento me disseram que eu iria dar

aula para o Magistério. Mas não tínhamos tantas aulas para o Magistério que

pudesse absorver a minha carga horária, então [ficou], Magistério e Ensino Médio.

Então, comecei a dar aulas no Magistério e usava como programa a origem da

Filosofia, o que é Filosofia, o estudo da Filosofia, a Filosofia – uma atitude natural do

homem, o homem e a utopia, depois como análise ético-antropológica do homem da

sociedade o liberalismo , o socialismo, a perspectiva existencialista, a Filosofia e a

realidade latinoamericana. Como temas de Antropologia Filosófica, a Filosofia e

Ciência, questão da liberdade, Filosofia e o amor, o homem e a morte, e a dimensão

política do homem. Também Filosofia e trabalho, as principais concepções sobre

trabalho, a civilização primitiva, as civilizações gregas, capitalismo, socialismo, o

homem e o trabalho, trabalho e dignidade humana e a dimensão ético-antropológica

do problema do trabalho.

Então o senhor prefere trabalhar a partir de temas de Filosofia do que

usando a História da Filosofia?

Como eu comecei, eu trabalhava com primeiros e segundos anos, então,

eu trabalhava com História da Filosofia no primeiro ano e trabalhava temáticas,

temas de Filosofia no segundo ano. Sempre dei muita importância pra História da

Filosofia. Mas a gente esbarra em muitas dificuldades e inclusive na reação de pais,

na resistência dos alunos, que não entendiam porque a Filosofia tinha voltado,

alguns, felizmente poucos, mas não aceitavam a Filosofia, achavam que era muito

complicado e que até perdia-se tempo com aquilo. E outros entendiam que a

Filosofia ou não reprovava e tinham professores que diziam isso e outros achavam

que a Filosofia não devia reprovar. Que deveria ser, quando muito, mais um

ornamento, mais uma disciplina a compor a grade curricular, não muito mais do que

isso. Bom, incomodado com isso, e, evidentemente, procurando agir sobre essa

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222

resistência eu inclusive cheguei a organizar um polígrafo de Filosofia. Eu tive um

janeiro e um fevereiro no Cassino e lá, embora eu fizesse as minhas caminhadas

pela manhã na beira da praia e jogasse bola, etc e tal, eu também tirei boa parte do

tempo para elaborar. Aqui eu tenho uma parte do polígrafo, isso foi em 1999, então

nós trabalhávamos com a Filosofia, os instrumentos do conhecimento, o

conhecimento filosófico e o científico, as ciências humanas de modo geral,

introdução à política, à política como categoria autônoma, o liberalismo, teoria do

Estado, concepções éticas e a liberdade.

E, no caso, os alunos faziam cópias xerocadas desse polígrafo ou a

escola dava um auxílio?

A ideia era essa. Mas as dificuldades eram tantas que todo mundo tirava

cópia de matemática, física, química, etc, e uns dois ou três tinham o polígrafo.

Esses dois ou três, talvez eu esteja sendo otimista somando todas as turmas.

E não consultavam na biblioteca ou coisa assim?

Isso sim. Mas o polígrafo custava uma única vez R$4,30 e eles gastavam

R$1,50 no bar e não tinham dinheiro para o polígrafo de Filosofia numa única vez.

E nesse período ainda era só pras alunas do Magistério?

Não, esse aqui era para o Ensino Médio.

Primeiro e segundo ano?

Isso. A gente aprende, eu cheguei lá falando em Paulo Freire, citando

Luckesi e tal, e uma vez uma professora me disse assim: “Professor, eles não são

professores ainda”. E eu disse: “Pois é, mas tu não achas que está na hora deles

começarem a ouvir e a falar nesses que são os nossos referenciais na

universidade?”.E ela repetiu: “Eles não são professores ainda!”. Então, está bem.

Mas, além disso, quero te mostrar aqui, para tu entenderes que eu

também fui suspenso do magistério. A Filosofia vive sendo suspensa, vive tomando

cicuta, nosso caminho não é dos mais fáceis. Porque a gente começa a falar em

coisas que associam ética e poder e acaba desagradando.

Eu, por exemplo, uma aluna me disse assim:Ӄ, grande coisa, o

Magistério”. Eu até fiquei contente, contente não é o termo, mas um pouco aliviado

quando me tiraram do Magistério e me arranjaram mais turmas de Ensino Médio.

Porque eu perguntei para uma aluna “O que é ser feliz?”. Isso está relatado num

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texto aqui que foi publicado por uma das minhas estagiárias de Filosofia. E ela me

disse assim: “Eu não sei o que é ser feliz, mas sei que o meu pai não é professor, eu

vou ser professora porque é a maneira que eu encontrei para conseguir a vaga aqui

no Pelotense”. Isso acontece bastante. Ela foi dizendo e aí, não sei porque cargas

d'água as reações surgiam, ela disse: “O meu pai é caminhoneiro e ganham muito

mais do que o senhor”. Mas que bom pra ele, que sejam muito felizes. Eu não quero

ser caminhoneiro e vou continuar sendo professor. E vou lutar por dias melhores,

por melhores condições de trabalho e por um salário cada vez mais digno.

Eu perguntava coisas assim, ingênuas, como por exemplo: “o que é ser

feliz?”. É não conhecer? Não pensar? Não ter consciência? É simplesmente cantar

como a pobre “sem feira” de Fernando Pessoa? E aí eu dizia pra eles, falei de

Sartre, a consciência e a infelicidade e disse: “Olha, eu não quero seduzi-los, nem

convencê-los, de modo algum para que vocês sigam, cegos, o canto das sereias.

Quero convencê-los, mas não de forma autoritária, quero que vocês aprendam a

entender que nós estamos num mundo dado, mas é um mundo dando-se também.

Um mundo que está aí, que foi transformado por outros e que cabe a nós

continuarmos esse processo de transformação.”

Então, nós temos que ter projetos, projetos políticos e eu tenho um

projeto político para a educação. E eu tenho uma visão sobre o que o que é o

Colégio Municipal Pelotense e o que ele pode fazer na educação em Pelotas tendo

a história extraordinária, fantástica, maravilhosa, que tem. E aí, eu já começo a falar,

eu, por exemplo, quero fazer e dizer aquilo em que acredito. Queremos, todos, que

vocês sejam grandes, inteiros e autônomos. Só vamos ser inteiros e autônomos, se

conseguirmos pensar. E pensar é pensar pensamentos. Pensar é refletir sobre

aquilo que os outros já disseram, fizeram; sobre o que nós estamos fazendo e sobre

o que nós estamos pensando.

Ainda sobre a minha visão política do colégio e que me trouxe problemas

de relacionamento aí dentro, eu escrevi no quadro: “A ética não deve ser

determinada pelo grupo dirigente”. Eu escrevi no quadro e chamaram pessoas para

olhar. Acharam bonita a frase. E isso me trouxe problemas. Fizeram uma reunião

para saber quem era o grupo dirigente que eu me referia. Fui chamado para explicar

Page 224: Letícia Maria Passos Corrêa

224

quem era o grupo dirigente. Então, são as nossas experiências, são as coisas que a

gente vê por aí.

Eu continuei dizendo a eles num outro dia, para essa mesma menina,

inclusive que me afrontou porque o pais dela é caminhoneiro, ganha muito bem, são

muito ricos, ganham muito bem, acham tudo isso maravilhoso, que bom que alguém

possa enriquecer trabalhando. Eu não conheço ninguém que enriqueceu

trabalhando, mas tudo bem. Então, eu disse a ela: “Quero acreditar que sim. Que os

sonhos que estamos compartilhando aqui possam iluminar um caminho para fazer,

um caminho por fazer, por construir”. E aí, eu disse: “Eu quero convencê-los de uma

tomada de consciência do que é possível construirmos juntos a escola que

queremos e a sociedade que merecemos.” Esse é o link do Projeto Filosofando, que

nós chamamos depois, eu chamei, e não há demérito nenhum em dizer que fui eu

que chamei, a escola que temos, a escola que queremos, a cidade que temos e a

cidade que queremos. E hoje é, assim, um slogan de muitas prefeituras por aí a

fora. Coisas da vida. Fui colocado a disposição no Colégio Municipal Pelotense com

a carga horária do magistério, então, eu sentava na sala dos professores e cumpria

horário fazendo leitura. Vez por outra chegava um professor e fazia brincadeiras,

dizia que eu estava em “HB”, não sei se é publicável isso, mas eu vou ter que dizer

o que é, “Horário Bunda”. Dizia que eu não fazia nada. Isso num primeiro momento

eu achei engraçado. Eu dizia: “Pois é, eu estou aqui”. Sem graça, mas está bem, foi

uma brincadeira. Aí na segunda, terceira, quarta, quinta, eu comecei a ficar

incomodado com isso. Porque estar ali, recebendo para trabalhar e não trabalhar

era profundamente desagradável pra mim. Porque eu tinha que estar dando

explicações e eu não queria isso, eu queria a sala de aula. Mas em sala de aula eu

ia falar de ética, eu ia falar, por exemplo, que eu penso que numa democracia

verdadeira é preciso que haja alternância de poder, não pode alguém se eleger e

ficar quinze, dezesseis anos dirigindo um colégio. Aliás, a atual direção do colégio,

com todos os méritos que têm e os têm, está a dezesseis anos. Professora Marita

se elegeu vice do Adinho e ainda é diretora até hoje. Eu acho isso complicado,

porque com a ocupação de tanto tempo no poder qualquer coisa que aquele ou

aquela que ocupa o cargo diz passa a ser absolutamente ético. Tem a legitimidade

do tempo. Do tempo de uso de uma cadeira, que pelo jeito deve estar se

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desmanchando. Mas eu falo dessas coisas. E isso me dá um link pro Projeto

Filosofando. Eu sempre notei, eu sempre fui muito, lá, quando eu comecei minha

carreira no Salis Goulart, lá em frente ao Correio...

Como professor de Filosofia?

Não, lá como professor de Moral e Cívica e OSPB no primeiro ano,

depois passei pra História, que eu sou professor de História também. Lá, no ano da

Assembleia Nacional Constituinte, eu acredito que 1987 porque a Constituição é de

88, não, mas a eleição foi em 1986, é ano par, claro, 86; nesse período eu já

organizei um trabalho para saber o que pensavam os nossos candidatos, os nossos

candidatos a Deputado Estadual, Deputado Federal, sobre os mais diversos temas

que sob os quais se falava, por exemplo, o destino das verbas que seriam aplicadas

em educação, em saúde pública, em habitação e assim por diante. Então,

organizamos grupos de estudo, fizemos alguns debates preliminares, organizamos

um elenco de indagações, de questões e procuramos, eu lembro do Eurico

Pegoraro, que há muito tempo não se houve falar dele, ele é de Canguçu, era

candidato a Deputado Estadual, entrevistamos Jandir Zanotelli, candidato a

Deputado Federal pelo PDT, era o PFL o Pegoraro, o Irajá Rodrigues era candidato

a Deputado Federal pelo PMDB, Flávio Coswig, era candidato a Deputado Estadual

pelo PCB, Partido Comunista Brasileiro, e está faltando mais alguém que eu não me

lembro agora, mas enfim, os candidatos mais próximos que tínhamos a

possibilidade de conversar com eles, de entrevistar, enfim, essas entrevistas

aconteceram. Então, alguns alunos fizeram, eu me lembro que com o Flávio Coswig

foi uma entrevista gravada, muito bem conduzida pelos alunos e apresentada e na

aula em que se apresentou, enquanto ouvia-se a entrevista, nós íamos, nós, eu digo

“nós”, eu também, além dos alunos, anotando afirmações ou questões que surgiram

durante a entrevista pra um debate logo em seguida. Depois, fizemos uma avaliação

geral do trabalho. Com o Jandir Zanotelli, também foi uma entrevista gravada, eu

não me lembro com quem foi, mas teve um outro que fizeram imagens, acho que foi

com Eurico Pegoraro, que fizeram imagens, com Pegoraro, foi uma entrevista que

usamos recurso de áudio e vídeo. Enfim, isso já deu o que falar dentro do colégio: “o

que esse cara está pensando, está mandando meus filhos ou meu filho saírem às

ruas e procurarem pessoas e estarem gastando telefonemas em vários horários e

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226

procurando agendar com os candidatos e, enfim, se envolvendo com problemas

políticos?!”. Mas conseguimos, já foi um princípio.

Antes do “Filosofando” no Pelotense eu tenho uma passagem pelo

Colégio Gonzaga, de quase dez anos, lá pelos anos 90, em que os professores de

Química, Biologia e Física, que eram o Peninha, Eduardo Nogueira, o Luís Paulo,

não sei o sobrenome, e o professor Ferrante. Então, eles tinham um projeto

“Biofisqui”, eles chamavam assim, de avaliação das águas, das águas do laranjal,

enfim. E eles colheram água, então, não há coisa inusitada aqui, no Filosofando,

não inventamos grande coisa. Mas fizemos um bom trabalho, isso acho que é

importante. Colheram água aqui no Porto, colheram água no Barro Duro, no Pontal

da Barra, enfim, em diversos pontos porque, uma coisa que eu não consigo muito

entender é que, por exemplo, a cem metros de um determinado local a água está

poluída e aí, a cem metros dali, onde supostamente teria uma linha, um “Tratado de

Tordesilhas”, aquelas águas ali do lado, que é a continuação, então a água é a

mesma, é a mesma água, ali já está bom pra banho, já é água suficientemente

“pura” para banho, água em condições de balneabilidade, essa é a expressão. E

daí, eles conversaram entre eles, e a gente conversava muito, eu era muito amigo

do Peninha e tal, e fui aluno do colégio também, daí eles lá: “Quem sabe a gente

convida o Bira pra fazer uma parte histórica do nosso trabalho? Que ele comece a

perguntar sobre as questões sociais, que não são diretamente do nosso

conhecimento e que são importantes mas nós talvez nem saibamos como fazê-las”.

Daí, fui convidado e eu fui com eles, me lembro de uma, tivemos no Laranjal, assisti

uma coleta de água e tudo mais, mas eu me lembro de uma visita que fizemos ali no

pessoal das Doquinhas, no chamado Quadrado, eu me lembro de uma pessoa que

morava numa casa muito humilde, muito humilde, e eu perguntei pra ela se ela se

sentia uma cidadã. E ela disse: “Olha, apesar de ser muito pobre, eu voto e pago

impostos. Pago as minhas contas em dia.”, ela disse. Os que são da competência

dela, da competência não é o termo, mas que são cobrados. Imposto de renda não

chega até ela, claro que não. Mas ela compra um pãozinho na padaria, está

pagando imposto. Compra, sei lá, um litro de leite, a mesma coisa. Bem, ela

simplesmente, nós já tínhamos falado outras coisas sobre como morar ali, sobre as

dificuldades, sobre uma tentativa que eles fizeram de criar uma associação para

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227

reforçar as suas necessidades e levarem essa demanda ao poder público, daí eu

perguntei se ela sabia que tinha condições, que tinha o direito de morar numa

habitação mais ampla, para usar um eufemismo, ela morava em duas peças de

madeira, muito velhas, muito mal cuidadas, era o que ela tinha, e um banheiro. E ela

me deu as costas e entrou para dentro chorando. Mas isso não sei como e nem por

que, acabou sendo comentado dentro do colégio e talvez na sala dos professores e

isso de manhã, numa manhã de terça-feira que eu tinha aula, depois eu tinha aula

na quarta, na quarta eu fui chamado e fui desligado do projeto. Então, foi uma

participação minúscula. Se me perguntares assim: “Mas em termos percentuais, o

que foi que tu apresentou no projeto dos professores de 'Biofisqui'?”: 0,001%, quase

nada. Mas enfim, o fato deles terem pensado que eu poderia ajudar em alguma

coisa e e eu tê-los acompanhado, pelo menos duas vezes foi bem interessante,

valeu como experiência.

E como o senhor avalia o Ensino de Filosofia, no geral, de 1996 para cá,

o senhor avalia de uma forma positiva, de uma forma difícil?

Eu acho que é interessante. Evidentemente que tive alguns tropeços

naturais da caminhada, mas aprendi muito e continuo aprendendo e avalio como

uma coisa muito positiva. Eu jamais vou dizer que alguma coisa não valeu a pena

na minha caminhada. É evidente que a gente ouve coisas desagradáveis, mas isso

faz parte, é um choque necessário para o aprendizado, faz parte do processo todo e

essa resistência, inclusive dentro dos ciclos de poder que se formam dentro das

escolas, verdadeiros castelos com propriedade e certificado de propriedade, isso

dificulta mas eu te diria que até isso também é positivo porque, por exemplo, se nós

formos pensar na Ditadura Militar, a Ditadura Militar ela foi bastante favorável ao

pensar. Aí tu vais dizer: “Mas como, a Filosofia foi retirada do Ensino Médio”. É que

ela, por ser absoluta e absurda, ela gera a sua antítese. Não é? Ela facilita o pensar

sobre ela. Então, é a dialética, né?! A tese e a antítese. Evidentemente que a

Ditadura ela própria gerou o seu contrário. Todos os movimentos, inclusive e

principalmente o das Diretas Já que foi um movimento muito forte que acabou

levando o povo às ruas e associando o Congresso Nacional lá com toda a

importância de Ulisses Guimarães e de outros grandes políticos da época, Leonel

Brizola, o próprio, que nós falávamos a pouco, o Teotônio Vilela, se falava muito da

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necessidade de se suprir a dívida social para com o povo sendo esta prioridade e

não exatamente o desenvolvimento econômico como era preconizado pelo Delfim

Neto. Se dizia: “Nós vamos fazer o bolo crescer para depois reparti-lo”. Nós

sabemos que o bolo cresceu e eles repartiram: entre eles. Todo esse processo é

muito interessante e, enfim, a Ditadura ela é bastante profícua no sentido de

favorecer o pensar sobre ela. E todos esses, quem sabe, micropoderes, como diria

Foucault, instituídos aí, legitimados por um grupo que prefere trabalhar, ou melhor,

receber sem muito trabalhar, eles desmoronam um dia e nós estamos aí para resistir

e para procurar valorizar os espaços democráticos que se têm e falar sobre isso

com os alunos.

E que didáticas e práticas de ensino eram e são desenvolvidas nas suas

aulas?

Pois é, eu tive uma aluna que, inclusive ela está aqui, Maria Quitéria

Corrêa Vinholes, essa menina foi diagnosticada com paralisia cerebral e às vezes a

gente tinha que pensar numa estratégia numa turma, como é o caso desta aqui, que

fosse, não sei se diferente, mas que pudesse contemplar alguém com essas

dificuldades, com essas necessidades especiais. Dificuldade porque é cadeirante,

né? Mas eu, além das aulas expositivas que eu ainda considero necessárias,

embora tenha gente que fale o contrário, não goste de aula expositiva, eu também

trabalho com seminários de Filosofia. Os seminários eles são um trabalho de grupo,

mas não é um trabalho de grupo qualquer. Ele exige que no grupo nós tenhamos um

coordenador, que no grupo nós tenhamos alguém que vai se comprometer de trazer

o trabalho no dia, que vai ser o relator do processo todo e nós temos o seguinte:

uma organização para o processo de avaliação que separa a avaliação no grupo

apresentador e aqui nós vamos ter uma avaliação do trabalho oral e do trabalho

escrito, então dá muito trabalho. Pra mim o que mais interessa é a apresentação

oral, então tem uma apresentação oral porque tem uma relação com o coletivo, com

o grande grupo. E eu, como professor, pergunto eles não respondendo, desconto

alguma coisa da nota e evidentemente eu tenho o dever de responder. Então, é o

momento de interação entre a turma, que precisa ficar quieta o suficiente para

prestar atenção no que está sendo dito e dirigir perguntas ao grupo apresentador.

Então essa avaliação, dentro do grupo, como é essa avaliação? Essa avaliação tem

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229

um peso individual, tem um peso para o grupo. E o que mais interessa,

evidentemente porque é um seminário, é a apresentação oral. Depois eu vejo como

é que está o trabalho escrito, mas o que realmente importa é essa relação. E eu

avalio a turma processualmente, o tempo todo. Então, por exemplo, a gente chega a

um certo grau de maturidade no exercício da profissão ou, quem sabe, como diz

alguns, estamos ficando velhos, que pela participação do aluno na sala de aula já

mais ou menos se sabe qual é a notas dele. A gente faz a prova porque é uma

questão legal , ela é obrigatória, faz um segundo trabalho, faz a prova de

recuperação, os estudos de recuperação porque também é uma exigência legal.

Mas o que realmente demonstra quem é quem numa aula de Filosofia é a

participação oral, é pra isso que nós estamos lá: para o diálogo, para o

enfrentamento das ideias, para o debate.

E assim: algum filósofo ou escola filosófica em especial é enfocado nas

suas aulas?

Agora nós estamos trabalhando o Existencialismo. Falando em

Kierkegaard, em Sartre, e o pessoal está muito interessado porque uma coisa que

eles são muito ligados e aí tem toda uma conjuntura, uma situação anterior, é que

os professores gostam de lidar muito com temas que eu não sou muito de abordar

na Filosofia como, por exemplo, Mensagens Subliminares, por exemplo, 2012 e o

fim do mundo,o calendário maia... Eu não me furto de tocar em assunto nenhum

mas tem coisas que realmente não me agradam muito. Por exemplo, um colega

defendeu que o aborto é um bom tema para a Filosofia, o aborto e a eutanásia,

questões antropológicas, não sei o quê... Tá bem, tá, mas realmente a mim não me

agrada. Os alunos gostaram muito até quando se fez um debate lá sobre esses

temas, eles colheram material, trouxeram, modificaram os textos, trocaram

informações entre eles e fomos pro debate e tal, mas eu particularmente não gosto

de lidar com isso. Eu gosto do Existencialismo, eu gosto do Essencialismo e esses

dois temas são trabalhados agora no final do segundo ano do Ensino Médio

justamente juntos para que possamos fazer o contraponto. O Existencialismo vai

dizer que Deus não existe, que o homem é liberdade, que cada um é aquilo que

constrói de si mesmo, que não há alma, que tudo o que existe é o aqui e o agora,

que o homem antes do nascimento é nada, ele nasce, tem todo um processo de

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evolução, de amadurecimento, morre e depois é nada, se houver alguma essência é

o que ele deixar por aqui, por exemplo, um livro escrito, algo que ele construiu, que

as pessoas podem ver, tocar, sentir e conhecer através dos sentidos, quem sabe.

Bom, sobre os livros didáticos...

Os livros eu gosto muito deste: “Temas de Filosofia”, de Maria Lúcia de

Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins. Eu uso este livro porque,além dele ter

uma boa abordagem de fácil compreensão do aluno e, ao mesmo tempo, profunda,

é claro, é respeitável o trabalho das professoras, ainda, ao final de cada capítulo,

temos, por exemplo, aqui tem Gramsci – Filosofia e Bom Senso, Concepção

Dialética da História, temos fragmentos de obras de escritores clássicos da Filosofia,

de grandes filósofos como Sartre, como Heidegger, como Hegel, como Jaspers,

Nietzsche, Kant, Marx, enfim...Então eu gosto muito desse tema mas uso também

“Convite à Filosofia”, de Marilena Chauí, é uma edição da Editora Ática, também

“Fundamentos da Filosofia”, de Gilberto Cotrim, da Saraiva, “Para Filosofar”, da

Editora Scipione, com diversos autores. Esse livro eu uso ele no primeiro ano da

Angélica Sátiro e da Ana Míriam Wuensch, “Pensando Melhor – Iniciação ao

Filosofar”. Esse aqui é uma referência para mim no Magistério, “Filosofia da

Educação”, de Cipriano Luckesi, da Cortez Editora. E eu uso, eventualmente, do

Battista Mondin, “Curso de Filosofia”, em três volumes, da Paulinas. Esses são,

assim, os referenciais maiores que eu utilizo.

Ao elaborar seus planejamentos de aula, o senhor prioriza o cumprimento

dos conteúdos a serem trabalhados ou preferia considerar o contexto, através de

discussões, temas atuais, debates, como o senhor já falou?

Eu penso que um professor não deve sair de casa pela manhã sem um

esquema de trabalho, sem uma proposta. Agora eu penso que tudo é discutível, eu

chego lá, no dia da prova e, às vezes, o pessoal não se sente preparado, está com

medo de fazer a prova e se discute as dúvidas e se faz a prova num outro dia.

Desculpe, como é mesmo a questão?

Se o conteúdo é seguido à risca, nos moldes assim mais tradicionais de

ensino ou se há lugar para priorizar o contexto, através de temas pertinentes, que

surjam em sala de aula, de críticas dos alunos, de outros temas que não estavam

previstos?

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231

Eu já vi situações de professores que, vamos falar de Geografia, por

exemplo, “Tu estás me perguntando sobre a América Latina e nós estamos falando

da África, vamos esperar quando chegar na América Latina tu me traz a pergunta”.

Eu penso que isso não é, eu não faço isso, eu acho que não é legal isso. Eu penso

que o aluno tem as suas motivações , tem aquele momento, aquele momento é

importante pra ele, talvez ele não volte, talvez ele não lembre a pergunta e não volte

a perguntar, eu penso que tem que se responder, dentro do possível, se não no

momento exato, porque ele pode estar perguntando no meio de uma explicação, no

quadro ou não, [mas deve ser respondido] naquela aula, naquele dia, “Já, já te

respondo. Espera um instantinho, por gentileza, já te respondo”. O conteúdo ele é

importante, mas não é tudo. Eu tenho o plano de trabalho como uma proposta, não

como algo que amordace e amarre. Uma proposta de trabalho, é respeitável, é um

plano, é um roteiro a seguir, mas... Eu vou chegar numa aula, por exemplo, como

aconteceu no Sylvia Mello, dois alunos foram até a sala dos professores, estavam

assistindo o televisor e estava passando ao vivo a queda das Torres Gêmeas. Aí

vou e digo “Olha, hoje nós vamos falar do Essencialismo”. Não! Nós vamos falar

sobre o que está acontecendo com o mundo e é as Torres Gêmeas, hoje o tema é o

que está acontecendo nos Estados Unidos, é o Terrorismo, o Terrorismo do Oriente

Médio e o Terrorismo Norte-americano. Hoje nós vamos ver o que é Terrorismo.

Vamos pensar em que, quais seriam as motivações de pessoas que moram no

Oriente Médio para, por exemplo, tentarem atentarem contra os Estados Unidos,

inclusive tentando jogar avião contra a Casa Branca, que não atingiu, o Pentágono,

que atingiu e mais os dois aviões que derrubaram as torres. Então é como eu te

disse. Eu usei um exemplo dramático porque é isso, mas de repente é o Deputado

Federal que atropelou um casal ou eu não vou deixar de comentar o fulano lá que

passou por cima de ciclistas que faziam um passeio. Enfim, aquilo que surge, que é

do momento, que tem relevância e tem importância pode ser tocado e não precisa

ser a aula inteira, ao menos comenta alguma coisa. Ouve o que os alunos tem a

dizer. Procura tirá-los do senso comum, daquelas avaliações que estão prontas, que

o Datena falou ontem, não importa. O que o Datena disse [que] ajuda? Ajuda. Mas

não é tudo. O que nós pensamos sobre o que o Datena disse? O tal lá, fulano,

economista da Rede Globo, tá bem. Mas e nós o que pensamos? E quais são os

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interesses? É porque o cara da segurança, ele está vendo que o “Tropa de Elite”

roubaram o filme e aí tem um analista que “é o próprio Capitão Nascimento”, um

analista de segurança da Globo e aí falou determinadas coisas e aí eu pergunto a

eles: “O que que esse cara tem a ver com o processo político? Qual é o grau de

liberdade que ele tem pra falar o que ele pensa numa televisão como a Rede

Globo? Será que é isso mesmo que ele pensa? Será que é só isso? Ou será que

isso é o que interessa?”. E por aí vai, mas enfim, o conteúdo é importante, mas não

é tudo.

E o contexto histórico, o senhor também como historiador, qual é a

influência do contexto histórico nestas aulas?

Sempre que possível a gente procura relacionar o tema que está sendo

abordado com as questões do nosso cotidiano. Sempre que possível. Outro dia eu

estava falando sobre, eu tenho um texto aí do Tarso Genro na aula de Sociologia

“Adolescentes na Cadeia”. E o Tarso usa um exemplo que é “marginalizados”

falando de jovens, que segundo ele, não deveriam ter a antecipação da maioridade

penal de dezoito para dezesseis anos. Então, “marginalizados”. Ele reconhece, o

atual governador, que estes jovens não tiveram muitas oportunidades e talvez por

causa disso tenham sido facilmente cooptados para o mundo da droga ou do crime.

E também ele reconhece que isso passa pela educação, que as saídas passam pela

educação. Mas isso ele dizia quando advogado. Ele até disse isso como Ministro da

Justiça; como Ministro da Educação assinou, por exemplo, o Piso Nacional dos

Professores. Mas hoje como Governador ele não paga. Onde é que está a relação

entre o discurso e a prática? Será que o discurso é só o discurso do desejo? Será

que o discurso pode ser usado de uma forma descomprometida para acessar o

poder de qualquer maneira e depois dizer: “Esqueçam”. Como disse o FHC:

“Esqueçam os meus livros”. Ele [Tarso Genro] aponta como saída a escola mas não

existe um bom trabalho com alguém descontente com a sua própria vida.

Descontente com decisões que se prolongam, que vão passando de ano para ano,

de um órgão para o outro, e que, quando se elege um governo teoricamente mais

democrático percebe-se que a teoria, na prática, até agora, é outra. Eu faço esses

links com a realidade sempre que posso.

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233

E como a Filosofia era vista, na época do retorno da disciplina, quando o

senhor começou, perante a comunidade escolar, perante os alunos?

Era uma coisa a mais no currículo. Nem os próprios professores das

disciplinas chamadas “humanas” (História, Geografia e tal), nem eles viam com

bons olhos. A Filosofia custou. O professor de Filosofia era algo estranho dentro do

colégio.

E em que pontos o Ensino de Filosofia contribuiu para a formação de

alunos enquanto pessoas, profissionais, cidadãos pertencentes a uma sociedade?

Eu penso que a Filosofia ela realmente contribui para a formação da

cidadania. Para o exercício da liberdade. Para a indignação. Para a compreensão

das amarras sociais que a gente vê por aí, as estruturas sociais, a maneira como se

comportam, por exemplo, o judiciário, por exemplo, as igrejas ou religiões, os

partidos políticos, os sindicatos, hoje, o que fazem os sindicatos no Brasil hoje?

Onde é que estão os sindicatos, o próprio MST que durante muitos anos foi maior

entidade de resistência a opressão no Brasil, também, o que tem feito? Muito pouco.

O que o senhor teria a dizer sobre a extinção da Filosofia no período

ditatorial? Quais são os reflexos desta ausência, que o senhor nota hoje, dessa

geração que foi privada pela Ditadura?

O que se vê é uma dificuldade imensa de pensar criticamente,

desenvolver um texto com uma certa lógica, de desenvolver um texto minimante

exigido pela Língua Portuguesa, com uma introdução, um desenvolvimento e uma

conclusão; as pessoas têm dificuldade de fazer uma redação, por mais simples que

seja. Penso que em grande parte, o Regime Militar, além de todas as outras coisas

que a gente poderia dizer sobre ele, mas em termos de Educação, prestou um

desserviço imenso ao desenvolvimento social do país. Evidentemente, pessoas que

não pensam são muito mais facilmente dominadas. E isso ainda vigora e ainda há

gente que pensa que o mundo está aí, interpretado e pronto e vamos deixar assim.

Está bom do jeito que está. Eu tenho plena convicção que atrapalhou bastante essa

geração que não pôde ler, que não teve acesso à Filosofia, aos grandes

pensadores, a pelo menos, algumas leituras, mínimas que fossem, que pudessem

jogá-los numa busca maior, numa tentativa de descoberta do mundo a partir de

leituras diversas pra formar a sua própria convicção sobre as coisas. Formar um

Page 234: Letícia Maria Passos Corrêa

234

pensar que seja próprio, que seja livre, que seja autônomo, que seja consciente e

que seja comprometido com esse mundo. Com a possibilidade de transformá-lo, de

fazê-lo mais justo, de torná-lo habitável, torná-lo humano.

E como o senhor enxerga o Ensino de Filosofia nos dias atuais, depois da

obrigatoriedade de 2008?

Eu penso que nós estamos numa caminhada, muito lenta. Eu sei de

professores que estão fazendo coisas interessantes por aí, fazendo trabalhos,

propondo saídas a campo, enfim, relacionando, sempre que podem a Filosofia com

a História, contextualizando a vida, enfim... A gente sabe assim muito vagamente

mas eu penso que nós estamos caminhando sim, que a Filosofia vai aos poucos

ganhando espaço, readquirindo a sua dignidade. Readquirindo porque ela existiu

um dia e nós sabemos que todo conhecimento humano nasceu da Filosofia. A

própria Sociologia. A Sociologia, a Psicologia, a História, a Matemática, o

conhecimento, a Medicina nasce da Filosofia.

E que mudanças ou melhorias seriam pertinentes ao Ensino de Filosofia

nos dias de hoje? O que o senhor acha que poderia mudar?

Duas coisas importantes que eu li num texto do Deleuze: precisamos

aprender o conhecimento e produzir sobre este conhecimento. Ou seja, trabalhar o

conceito, formar conceito. Uma aluna me escreveu um pensamento bem

interessante, ela disse assim, escreveu: “Por uma escola que nos ensine a pensar e

não apenas a obedecer”. O nome dela é Bruna, do 1º ano noturno do Assis Brasil,

deste ano, 2011.Ou seja, queremos uma escola, isso ela escreveu na minha aula,

eu imagino que ela esteja pensando, que ela reconheça que o meu propósito como

professor, não pode ser diferente, é este, de produzirmos o conceito, pois não basta

“O Fulano disse isso, o Beltrano disse aquilo”, o Jaspers, o Heidegger, o Sartre e tal,

mas e nós, o que pensamos? Como é que, com nossas palavras podemos formar

esse conceito?

E o que mudou depois da implantação da LDB de 96, dos PCN's e depois

até chegar a lei de obrigatoriedade do Ensino de Filosofia, em 2008? O que a

legislação afetou no ensino desenvolvido ali nas salas de aula do Pelotense? Teve

algum reflexo, assim, direto ou o senhor acha que não?

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235

Eu não sei, acho que sim. O Pelotense é uma escola com suas

peculiaridades. Eu ali entendia, nós começamos a Filosofia nós tínhamos ela

apenas no segundo ano. E eu defendia que nós tínhamos que ter, isso já há bons

anos atrás, há mais de dez anos, Filosofia no Ensino Médio. Eu ainda não

enxergava uma Filosofia para o Ensino Fundamental. Até porque os livros que se

tem acesso e esses autores da importância de uma Marilena Chauí não escrevem

pra crianças ou pré-adolescentes. Os textos exigem uma certa maturidade que, até

então, eu não conseguia ver em alunos de 5ª, 6ª, 7ª e 8ª séries.

E hoje o senhor leciona pra crianças ou só Ensino Médio?

Não, só [no] Ensino Médio. Mas eu defendi a Filosofia no 1º, no 2º e no 3º

ano. Defendia isso, sempre defendi. E, felizmente, a conjuntura era favorável e não

só temos a Filosofia em todos estes anos como temos na 5ª, na 6ª, 7ª e 8ª. E um

detalhe importante: não é uma aula, no Pelotense cada vez que se entra em aula

nós temos um módulo de duas aulas, dá um total de setenta minutos. São dois

encontros de trinta e cinco minutos, é sempre uma aula “dobradinha”, como a gente

chama, então trabalha-se setenta minutos e não quarenta como é no Estado. Dá

uma diferença grande e dá pra planejar melhor e desenvolver melhor o trabalho.

Porque a minha aula, e me parece que a tua pergunta é nesse sentido,ela é,

basicamente, uma aula dialogada. Eu preciso que as pessoas falem, preciso que as

pessoas perguntem para que eu não fale sozinho. Por mais que a gente use

recursos, às vezes o aluno diz: “Bah, mas que aula chata”. Por exemplo, eu estava

falando sobre Existencialismo na última quinta-feira e um aluno disse: “Bah, acho

que eu vou dormir”. Mas é um tema instigante, não estou falando apenas sobre o

conhecimento ou sobre Lógica que pra mim é uma coisa extremamente importante

mas é difícil para o Ensino Médio a Lógica e o Existencialismo a gente fala sobre as

coisas que ocorre em casa, Deus existe, Deus não existe, a liberdade é plena ou

então há destino ou eu sou um ser predestinado, vim ao mundo pra cumprir, para

passar por determinadas situações, sofrer, amar sorrir e chorar, enfim, e o

fundamento disso, “para onde vamos?”, “quem somos?”, “qual é o resultado disso

tudo?”, então, “não há essência?”, “não há um objetivo maior para o nosso existir?”,

“ será que nós não vamos voltar, reencarnar e continuar aprendendo, evoluindo?”.

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236

E quais foram as maiores dificuldades ao ensinar Filosofia? E quais foram

os avanços mais significativos na sua prática no Pelotense?

As dificuldades eu acho que elas estão relacionadas à resistência mesmo

ao trabalho filosófico, ao desconhecimento, até de colegas, da Direção, que não

sabia dar valor a isso e não é culpa deles, eles também não estudaram

Filosofia,acho que não, e de uma ignorância geral sobre o que pode a Filosofia,

sobre porque é que devemos ter consciência, o que significa ter consciência?

Conhecer o mundo, pra quê? Qual é a relação da Filosofia com a cidadania? Por

que que quando a gente conhece mais sente-se mais preparado para reclamar os

direitos? E, ao mesmo tempo, sente-se mais sujeito da sua própria vida, da sua

própria história e começa-se a pensar, quando a gente estuda Filosofia, começa a

perceber que nós estamos dentro de um grande círculo que é o planeta e que se

nós reduzirmos esse círculo para a compreensão, vamos chegar à nossa

comunidade. Nós temos uma capacidade de intervenção na comunidade. E é um

direito nosso, e mais do que isso, é um dever, porque é humano. Eu tenho que viver

bem e, dentro do possível, fazer deste mundo algo melhor para aqueles que virão

depois.

Para finalizar, eu gostaria que o senhor falasse da sua prática, do seu

projeto “Filosofando”, do projeto “Utópolis”, contasse um pouco mais da sua

trajetória e de algumas questões que não foram contempladas nas perguntas

anteriores.

Eu sempre procurei pensar alternativas para os problemas que iam

surgindo. Nós tínhamos aqui, à noite, um aluno que era muito amigo de uma moça

muito bonita, super educada e amiga de todo mundo, e ele “brincava” e chamava a

atenção dela e dos colegas, chamava atenção pra si sentando atrás dela e,

frequentemente, queimando as pontas dos cabelos dela. Ela sempre “reagia” com

um sorriso, sempre docemente, respeitosamente, até o dia em que ela disse: “Bom,

vou sair daqui, vou me sentar lá na janela, mas eu quero ficar longe de ti, preciso

ficar longe de ti”. E o pessoal, a gente conversava sobre isso nas reuniões e tinha

gente que dizia que era um caso de polícia, queriam comunicar a polícia, que o cara

tinha que sofrer um reprimenda na forma da lei. Entenda-se: pancada, polícia em

cima dele. Eram alunos do noturno, eram alunos adultos, mas ele era um guri, um

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gurizão, todos nós fomos adolescentes, todo cara com dezoito anos faz bobagem.

Nunca vi dessas, mas bobagem todo mundo faz. E um belo dia, eu vinha saindo do

colégio, parei ali e ele estava no bar da esquina ali tomando cerveja e me convidou

para eu sentar e conversar com ele. “Puxa eu estou com pressa”. E ele disse:

“Senta um pouquinho aí, professor”. Eu sentei, fiquei conversando com ele e ele

começou a me falar sobre a história dele: os pais se separaram, a namorada brigou

com ele, ele estava usando drogas, enfim...Ou seja, eu entendi aquele queimar nos

cabelos da colega como um pedido de socorro. Acima de tudo, um pedido de

socorro. Era alguém que precisava de auxílio. E daí eu conversei com ele um tempo

e tal e me ofereci pra ajudá-lo em alguma coisa, convidei-o para vir aqui em casa. E

ele me disse: “Professor, eu lhe chamei porque eu acreditei que o senhor poderia

parar pra conversar comigo, porque a maioria das pessoas foge de mim. Eu quero

lhe agradecer e quero lhe dizer que eu vou mudar o meu comportamento em aula.

Não vou mais fazer o que eu fazia. Considere aquilo uma grande idiotice”. Na

verdade eu não fiz nada de mais, eu parei para ouvi-lo. E isso acabou ajudando-o.

Realmente ele mudou, se formou, foi embora, enfim...Mas as pessoas defendiam

que isso era caso de polícia e tal. Eu estava um belo dia numa sala, lá no segundo

andar, e nós saímos, e tinha algumas mesas ali no saguão próximo da escada de

cima. E ali tinham maquetes expostas sobre as mesas. Eram pedacinhos de

papelão colados e tal e tem um sujeito que fez uma vaquinha lá, tinham fios, carro,

um trenzinho, poste de luz, tudo muito bonito. E nós paramos. Que coisa bacana,

quando entramos não tinha, quando saímos já estava ali e era recreio. Eu disse:

“Mas que coisa bonita isso”. Mas o meu comentário foi que: “É uma pena que não

tem vida aí dentro”. E a menina disse assim: “Professor, então vamos colocar vida aí

dentro. Vamos escrever a respeito?”. Eu disse: “Vamos”. Então, o projeto

Filosofando ele nasce ali. Ali nós começamos a escrever não sobre uma casa ou

uma maquete...

Em que ano?

2000. Não escrever sobre a maquete ou sobre uma área mas sobre a

cidade. Então é aquilo que eu te digo que foi publicado aqui: “É possível

construirmos juntos a cidade que queremos e a sociedade que merecemos”.

E o primeiro passo seria idealizá-la.

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Não. Não exatamente. O primeiro passo, claro que ali sai um trabalho,

mas o primeiro passo seria reconhecer. É reconhecer que nós conhecemos a nossa

cidade. Aí nós nos perguntamos: “Que temas nós gostaríamos de abordar para

escrever um texto sobre a nossa cidade?”. Daí surgiram e evidentemente que eu

não abriria mão da Educação, é claro. Então, Educação, Saúde, Meio Ambiente,

Habitação, Transporte, surgiu também, Segurança, e aí que vem aquele viés que

era pro ano seguinte, a Segurança Pública, esse tema porque ele falava sobre a

vida dos policiais, sobre que o policial saía de manhã e não sabia se ia voltar à

tarde, que quando ele era pequeno sempre beijava o pai antes do pai sair,

preocupado e com medo de que talvez o pai voltasse ferido ou não voltasse. E,

casualmente, esse mesmo aluno tem um pai que tem uma bala alojada na espinha

dorsal e que não tem como retirar. Então ele propôs segurança pública, mas isso já

era pro ano seguinte. Não durou meses como está dito nos jornais, nem naqueles

documentos que a Direção produziu no colégio. O trabalho é anual, ele começa no

início do ano e ele termina no final.

Bom, interessante esse projeto e tu me perguntavas a pouco sobre a

aprendizagem, como os alunos aprenderam. E eu tive que aprender com eles. Nós

organizamos um texto básico e, claro, cada grupo estava fazendo o seu texto, e

caberia a mim como professor organizar o trabalho, dar um corpo final ao trabalho.

Organizá-lo de maneira que ele pudesse ser apresentado à Direção do colégio e

tivesse a importância que nós desejávamos dentro do contexto escolar. E inclusive

para a comunidade, porque, afinal de contas, era esse o nosso objetivo. E daí, um

belo dia eu vou para a sala de aula e digo: “Olha, eu já escrevi”, porque nós

reuníamos à tarde, então fazíamos assim, por exemplo, digamos que eu tinha

segundos A, B, C, D e E. Todos do A, o grupo do A que trabalhava com Educação

se reunia de tarde com a Educação do B, por sua vez, A e B, na mesma sala com

C,C com D, D com E. Isso pra quê? Pra que pudéssemos misturar experiências, que

pudéssemos trocar com grupos heterogêneos e, portanto, experiências diversas, o

mesmo conteúdo. Então, o Luiz, vamos colocar um nome fictício aqui, o Luiz do E

sabia por exemplo, o que, sobre Educação pensava a Mariana do B e assim por

diante. A Mariana disse tal [coisa], o Luiz, não sei o quê, já o Joaquim disse que não

pode ser desse jeito. Então eu achei isso interessantíssimo, eu aprendi muito com

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isso. Mas quando eu fui para a sala de aula no 2ºD, onde tem uma aluna que eu

faço questão que o nome dela seja citado, é Aline Pereira, esse é o nome dela, essa

menina ela deu uma contribuição muito grande ao processo como um todo.

Empenhadíssima, fez muitas entrevistas, e no dia que nós tivemos a chance de falar

isso publicamente, por alguma razão que eu desconheço, ela não estava presente

e, enfim, fiquei devendo isso pra ela, mas por questões que nos fugiam ao controle.

Mas quando eu cheguei no 2ºD que era a turma da Aline, o pessoal me disse: “Ah,

mas nós citamos expressões como, por exemplo, “prata da casa”, que não está

contemplada no seu texto”. Usaram a expressão “santuário ecológico”, era sobre o

meio ambiente. “E tem mais, professor”, não foi ela quem levantou a mão, mas uma

outra menina, “nós queremos lhe dizer que nós não queremos mais escrever sobre

a cidade só trabalhando com Educação, só trabalhando com a Saúde ou só

trabalhando com o [Meio Ambiente], nós queremos falar sobre a cidade em seu todo

e com todos os grupos”.

A Aline Pereira é uma das [alunas] que pode ser citada que encampou

essa ideia. E ela gostava muito de mim, me admirava muito e adorava Filosofia. E

uma aluna com essa visão... Então, o Projeto “Filosofando” ele foi realmente utópico

porque o que é mais utópico do que demover o professor de uma decisão que não é

dele é dele, mas é legítima, porque é também coletiva, e porque havia sido discutida

em todas as turmas? Isso é utopia, é destituir o poder. Naquele momento, se eu

fosse um sujeito mais autoritário, mais concentrador, eu diria: “Olha, não tem mais

choro, vocês votaram para que fosse assim e assim vai ser até o fim”. Só que com

isso, além de tudo, eu sou obrigado a pensar também, além de receber esse

“tranco”, eu tinha que saber lidar com ele a ponto de ter as condições necessárias

para levar adiante o projeto. Porque o projeto não era meu, era nosso. Então, o que

eles reivindicavam tinha um peso coletivo. Nós éramos quase trezentas pessoas.

Até podia, com um ranço de autoritarismo bárbaro dizer: “Não, é assim e pronto, já

votamos”. Mas aí isso, além de ser antidemocrático, então, o projeto ele é utópico,

ele é democrático, ele é acessível na medida em que todos podem dar a sua

opinião, então sempre houve liberdade suficiente para que disséssemos: “Olha,

vamos desconstituir isso aqui e começar tudo de novo”. Agora, não sei como é que

consegui, mas eu não tive nenhuma reação, eu disse: “Se for o que vocês pensam,

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nós vamos pensar com calma e vamos começar tudo de novo”. “Mas é isso o que

nós queremos”. “Então, vamos começar agora”. Então aqui houve liberdade,

democracia, utopia, enfim, e houve aquilo que a Filosofia é chamada, houve uma

subversão do processo, porque, afinal de contas, nós tínhamos decidido

democrática, pública, abertamente, quais seriam os rumos do projeto. E eu chego

um dia em aula, começo a ler um fragmento do trabalho e a menina levanta o braço

e disse: “Professor, nós não queremos mais que seja assim”. Bah! “Por quê? O que

houve?” “Não dá, nós estamos discutindo lá e surgem outros problemas... E outra

coisa: eu não quero ser autora do projeto “Utópolis” em Educação. Eu não quero

ser autora do projeto “Utópolis” falando de Habitação. Eu quero o projeto, eu quero

participar dele na sua globalidade, na sua inteireza, na sua totalidade”. “Pô, legal.

Vocês estão me dando aula!”. Tá bom, e aí recomeçamos. Essa experiência aqui foi

interessantíssima. Aqui houve subversão, houve liberdade, democracia, utopia. Por

que utopia? Porque o que está determinado e definido, a princípio não se muda. Já

passou por votação e então entenda-se que, daqui pra diante, as coisas vão

caminhar normalmente.

Então o Projeto Filosofando tem início também porque nós resolvemos,

tem esse nome, aliás, porque nós resolvemos trabalhar com a obra “Utopia”, de

Thomas More. Aí eu fiz diversas cópias, para que nós pudéssemos trabalhar em

grupo, fazer uma leitura e pensar um outro modelo de sociedade e, a princípio, eu

não sabia o que poderia surgir a partir dali mas, por exemplo, separei uma primeira

parte que vai desde o prefácio, evidentemente, até a página 35 e da 36 em diante,

pegamos depois a descrição no terceiro fragmento, uma descrição da utopia, de

Rafael Hitlodeu,baseado nos utopianos, e assim por diante. Então, as pessoas

perguntam: “De onde surgiu o termo Utopia, Utópolis?”. Vem dessa leitura, de nós

pensarmos uma cidade grande, uma cidade maior, não grande apenas no espaço

físico, inclusive usaram, nem sei quem, “Pelotas Metrópole”. E no jornal, seu tu fores

olhar, está ali, eu uso a referência metrópole. Então é um projeto que visa estimular

a criatividade e a inteligência do aluno. A inventividade. Então na primeira fase nós

pensamos, fizemos uma avaliação da cidade, isso em 2003, procurando relacionar

educação e cidadania. Então fizemos isso. Numa segunda parte nós avaliamos a

cidade, então fizemos um “Raio X” da cidade procurando ver quais eram os serviços

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241

prestados pela cidade, os serviços prestados pela Administração Pública, e num

terceiro momento, nós trabalhamos com a Segurança Pública, também por sugestão

dos alunos. Na primeira fase, diversos temas, e depois, com a cidade minimamente

constituída como nós imaginávamos, temas outros agora cada vez um tema por

ano, a ideia era essa. Assim, inclusive, proposto por eles que a cidade, o esboço de

cidade já estava pronto.

Uma coisa interessante que fala a Larissa Caldeira, que tinha dezesseis

anos na época, ela dizia assim: “Imaginávamos um outro desfecho. Mas as

respostas à nossa pesquisa mostram claramente que existe uma enorme barreira

entre a população e o Governo”. E aqui tem uns dados sobre a cidadania, sobre o

Orçamento Participativo, para avaliação do Governo do PT nós partimos do princípio

de que eles estavam fazendo um bom trabalho e mudando a cidade para melhor e

para espanto nosso a reação da população não condizia com aquilo que nós

esperávamos como resposta. Então, esse é um pouco do trabalho, por exemplo,

nós para começar os textos e até para justificar o nome “Utópolis” uma aluna propôs

do Herbert de Souza, o Betinho, uma ideia de introdução que é a seguinte: “Eu sei

que é sonho. Mas sem sonho não se constrói a realidade”.

No texto 2, uma outra menina diz: “precisamos falar da imaginação”. E aí

ela foi encontrar em Einstein a seguinte ideia: “a imaginação é mais importante que

o conhecimento”. E de uma leitura nossa sobre um fragmento da República, de

Platão, disse a Larissa: “A utopia é uma forma de sociedade ideal, talvez seja

impossível de realizar na Terra, mas é nela que um sábio deve depositar todas as

suas esperanças”. Então, nós pensamos numa cidade, pensamos um perfil de um

prefeito, um prefeito que tem sua sala, o seu gabinete, que toma café pela manhã,

que caminha pela feira livre, que conversa com as pessoas humildes e o seu partido

é o “Partido da Criatividade Social”. E esse prefeito tem uma relação de amor e ódio

com determinados vereadores, também ouve críticas fortes da comunidade, alguns

chegam a chamá-lo de demagogo, e esse prefeito faz coisas boas mas ele também,

enfim, enfrenta problemas sérios por aí, ele chama-se Heráclito Fontes e ele

aumentou em 20% o número de vagas nas escolas, ele diz que quem trabalha,

trabalha silenciosamente, não é necessário grandes propagandas, o trabalho é

divulgado na medida em que as pessoas vêm “Aqui há uma obra pública”. E ele diz,

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242

o prefeito, que os bilhetinhos acabaram e com eles também as indicações para

cargos e empregos. O clientelismo, o conchavo e a corrupção foram banidos da

cidade. Hoje em “Utópolis” o prefeito atende reivindicações por meio da Associação

de Moradores, além disso, as contratações emergenciais obedecem critérios que no

primeiro momento são liberados pela comunidade, sem entretanto, ignorar o serviço

público. Ele tem um desafeto na Câmara de Vereadores com o vereador Ulisses, o

vereador Ulisses ele diz que: “Tudo é uma questão de discurso”. Pois o filósofo

Górgias já ensinava que o bom orador é capaz de convencer qualquer um sobre

qualquer coisa. Então, em que pese todas as suas ideias colocadas em prática,

sempre há uma crítica também severa a respeito do que ele faz. Um projeto

habitacional e uma tentativa de auxílio para com os mais idosos também. Há quem

fale em impeachment e ele lembra que Sócrates ensinou: “Conhece-te a ti mesmo e

conhecerás o universo e os deuses da cidade”.

Bem, na fase ambiental, eu não tenho aqui em mãos as fotos para te

mostrar, mas nós fotografamos no Laranjal e fizemos a coleta da água e chegamos

a conclusões que realmente são bast6ante preocupantes.

Com relação ao policiamento, as entrevistas de rua foram bem

interessantes e curiosas. Dois alunos nossos, nós estávamos na Avenida Duque de

Caxias, então, dois guris e uma guria correram para atravessar a rua. Correram uma

vez, passaram pelo canteiro da avenida e continuaram correndo para encontrar um

senhor com quem eles queriam falar. E esse senhor, com dificuldade, já velhinho,

com dificuldade para caminhar, olhou assustado a primeira corrida deles ao

atravessarem a avenida. Eles continuaram correndo, pararam um pouquinho que

passou um carro e correram de novo. Sempre olhando para ele. E ele deu uma

corridinha também com a dificuldade dele, bateu o portão e ficou assim: parado,

olhando. E eu estou junto, do outro lado da rua, mas estou junto. “Nós queríamos

conversar com o senhor, nós somos alunos do Colégio Municipal Pelotense,

estamos fazendo uma pesquisa”. Ele disse: “Pesquisa! Ah, graças a Deus, eu

pensei que era assalto”. Então, são coisas assim.

Teve uma menina que nós entrevistamos que eu acompanhei a

entrevista, ali perto da Khautz, fizemos isso em diversos lugares da cidade, e

inclusive na Praça Coronel Pedro Osório, durante o dia que é mais [seguro] para se

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manter vivo. Daí, já na fase da Segurança Pública, a gente perguntou se ela já tinha

sofrido algum tipo de violência. Eu não sei como é que eles fizeram a introdução

exatamente. Mas eu vi que ela olhou para eles, ela já tinha respondido a algumas

coisas, assim, piscou os olhos e logo em seguida deu as costas chorando. Daí as

duas gurias que entrevistaram ela entenderam que ela teria sido vítima de estupro.

Porque eles, enfim, sugeriram assaltos e enfim, e aí ela não respondeu. São coisas

da pesquisa.

E um médico importante aqui em Pelotas, ali próximo ao Café Aquário,

ele disse assim: “Pesquisa do Pelotense? Ah, pára, sai daqui! Vou responder nada”.

São coisas que a gente enfim...

Essa pesquisa ela seria não só para os alunos do Pelotense, mas

também como um tipo de pesquisa de extensão para a comunidade também?

Para a comunidade. O projeto é voltado para a comunidade. É a relação

escola e comunidade. Como é que nós vamos transformar um aluno num sujeito

autônomo, livre, crítico se ele não se envolve com a sua comunidade? Não adianta

ser crítico em relação ao problema financeiro da Grécia. Nós temos que olhar para a

nossa cidade. O mundo em que vivemos e sobre o qual nós podemos agir de

maneira a transformar alguma coisa, a melhorá-lo. Melhorando a nós mesmos,

evidentemente. Uma Filosofia que não pensa a si mesma pode ser qualquer coisa,

menos Filosofia. Então, por essas e outras é que nós ficávamos revendo coisas.

Tem gente que dizia assim: “Mas professor, isso já está decidido”. Só que enquanto

alguém não estava convencido de que assim deveria ser eu estava disposto a ouvir

e a avaliar junto com eles. Até que chegamos. Mas que fique claro o seguinte: nós

não arrancamos a 100km/h. Nós tivemos uma tentativa em 2000 frustrada. Porque

isso aqui depende muito do material humano que se tem. Tu olhas aquelas meninas

lá, tua vais ver. Ali todas elas, uma delas se formou em Arquitetura já e foi embora

de Pelotas. [Acho que ela está] em Cascavel no Paraná. E tem uma outra que é a

Daniele, que está fazendo doutorado em Biologia, parece que é a área dela, eu não

sei te dizer exatamente isso. Mas só pra te dizer o seguinte: que não é uma ideia

luminosa de um professor inteligentíssimo, uma figura altamente criativa. Não! Eu

sou uma pessoa, um pensador sim, fui formado para isso. Mas acontece que o

material humano é fundamental. Então, em 2000 foi difícil, 2001 já deu uma

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melhorada, 2002 eu digo: “Olha, o negócio está começando a crescer, realmente”.

Porque ao poucos, esse grupo foi se ampliando.

Mas tem os sabores, por exemplo, essa menina Daniele, ela quase que

não falava em aula, na aula de manhã. À tarde, nós éramos um grupo menor, se de

manhã eu tinha 35 alunos, à tarde nós éramos às vezes um grupo com 8, com 10,

com 15. E ia aumentando, ia engrossando, uma coisa interessante. Porque eles se

comunicavam, falavam: “Bah, tu nem sabe que interessante o debate...” . E aquele

já trazia um outro. E mais outro. E assim ia. Mas começou devagar, quase parando,

como tudo. E o interessante é o seguinte: ela à tarde se soltava, como a Maiara,

como uma colega da Lisiane, a Rebeca, o menino Pedro, ótimo aluno, excelente

aluno, que está em Manaus, o pai dele é coronel do Exército, uma coisa assim.

Então, de vez em quando, transferem ele de um lado para outro e vai um pouco

aqui, outro pouco noutro colégio... Ele está na faculdade agora.

Mas o que eu quero te dizer é o seguinte: que este projeto aqui ele não só

fez com que alguns deixassem de usar uma droga à tarde para ir ao projeto, para se

ocupar com alguma coisa válida, alguma coisa significativa, importante para ele,

para a família, para a comunidade, não só trouxe um certo despertar um certo

amadurecimento, como fez com que o aluno da tarde fosse para a aula da manhã

no outro dia mais esperto, mais livre, mais solto, pronunciando-se melhor, dizendo o

que pensa sobre as coisas. Então, o que eu fazia? Pega um aluno desses e ele tem

9,5. Nós usávamos uma nota sobre 10,0. Agora não é mais assim, agora é 30,0.

Grande coisa que fizeram! Mas o aluno tirava 9,5 mas ele era o Pedro e o Pedro era

um cara que ele tem um irmão sociólogo, então ele tem leitura, ele levava livros pra

aula: “Professor, eu li sobre Nietzsche, eu li, por exemplo, “Para além do Bem e do

Mal”” e ele trazia um caderninho com as anotações dele. E eu me peguei, algumas

vezes, dando aula para ele. E aí eu conversava com ele, convidei ele para vir aqui

em casa também e a gente se comunicava por e-mail e tal. Mas o bom disso tudo é

a gente poder lidar com um pessoal que tem acesso à informação de boa qualidade,

porque informação tem muita, agora tem muita coisa que não serve pra nada

também, a verdade é essa. Então ele tinha bons livros em casa e tal, o pai é um

cara que lê, não sei qual é a formação do pai dele, mas acho que é Médico, enfim...

E aí claro, na medida que o cara tirava 9,5, pô, e o cara vem com tudo isso e na

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prova ele tirou 9,5, eu penso no Pedro, o Pedro não é 9,5, com licença, 10,0. Pedro

é 10,0. Aí eu comentei com umas figuras da Coordenação e: “Ah, mas não pode!”.

Aliás essa é uma das razões porque cortaram o projeto. Porque o aluno que ia à

tarde, melhorava o rendimento pela manhã e eu valorizava, eu valorizo tudo o que o

aluno diz. “Ah, mas não pode porque não é justo com o aluno que não quer vir”. O

problema é dele. “Ele não quer ir à tarde, e agora?”. Ué, ele não perde. “Ah, mas

não é justo”. E aí eu perguntei, porque eu pergunto: “Tá, mas onde é que está

escrito isso? Onde é que está escrito que o aluno de manhã ele é um e à tarde ele é

outra coisa?!”. Como é que eu separo no meu cérebro o Pedro da manhã e o Pedro

da tarde? Como eu faço isso, qual é a mágica? O valor que eu dou a ele como

estudante e um estudante sério e dedicado é o mesmo. Aí o cara tirou 9,7, não mas

tem que dar 9,7. Eu já vi passarem alunos com dificuldades imensas. Esse aqui eu

não estou passando. Ele não tem dificuldade nenhuma. Eu estou reconhecendo a

sua capacidade porque eu vejo este aluno como um todo. Ele de manhã é o Pedro e

à tarde ele é o Pedro. De manhã ele se pronuncia, à tarde ele se pronuncia. E

porque ele ia à tarde e porque era um grupo menor e ele se sentiu mais à vontade e

encontrou um ambiente mais acolhedor, pessoas mais amigas, mais fraternas e ele

se pronunciou melhor ainda e isso fez com que ele também pela manhã me

ajudasse inclusive a dar boas aulas. Então, a minha burrice é essa: eu tento

justificar aquilo que penso. Comigo não tem rolo, não tem porque esconder o que foi

que eu fiz. E assim é a Rebeca, a Daniele, a Larissa, a Fernanda, a Aline Pereira,

ótima aluna, extraordinária aluna, a própria minha filha que foi milha aluna, colega

do Pedro, inclusive e da Rebeca, quer dizer é o material humano que a gente tem.

Agora nos últimos anos eu não estou encontrando esse pessoal. E para o bem ou

par o mal, com o projeto censurado e com o impedimento de ter um encontro com

os meus alunos à tarde...

O último ano foi em 2008?

2008. Foi o ano em que ele foi oficializado, eu tinha uma carga horária e

uma gratificação correspondente a essa carga horária...

Que antes não tinha?

Não. Durante sete anos eu trabalhei de graça. Um ano reconheceram e

usaram o projeto, ele acabou sendo instrumento para algumas pessoas que se

Page 246: Letícia Maria Passos Corrêa

246

deram bem, uma vez que chegaram aos objetivos que queriam, aí, “não precisamos

mais disso, não serve mais”. É bem isso: o uso político que fizeram e que algumas

pessoas ainda fazem. E às vezes a gente ouve um vereador dizendo: “Pois é, a

cidade que temos e a cidade que a gente quer criar”.

Taboão da Serra é um município que tem um cara lá também escrevendo

sobre isso. Taboão da Serra, São Paulo. Mas então, acho que um pouco era isso. A

gente faz o que pode, não tem milagre, não tem professor maravilhoso, fui

orientado, isso é uma coisa importante que se diga, pelo professor Francisco Pablo

Állemand Rodrigues. E eu apresentei esse trabalho na FURG no meu pós-

graduação em Educação Brasileira – Especialização. Ele veio aqui no colégio, daí

ele queria que eu continuasse e tal, mas eu não consegui. Não consegui tempo para

isso.

Mas é interessante. A disposição da sala de aula é assim: isso aqui é um

círculo. Essa menina ela tem um depoimento bem interessante também: a Juliana

Moreira. Ela diz: “O trabalho permitiu que a gente expusesse as nossas ideias e

explorasse mais a fundo os temas, usando problemas do passado para buscar

alternativas de melhoras para o futuro. Acredito que o maior problema de Pelotas

hoje na Educação são os baixos salários, os professores acabam tão preocupados

pensando se vão poder pagar as conta no fim do mês que o ensino acaba ficando

em segundo plano. No mundo ideal, não haveria problema de salário e eles

poderiam dedicar-se totalmente ao ensino”. Inteligente, né?!

Enfim, fiz o que pude. Hoje não tenho a mesma, digamos assim, o

mesmo entusiasmo. Não tenho o mesmo entusiasmo porque eu estou com um

projeto que está morto e dependendo de uma decisão da justiça. É como eu te

disse: fui convidado para um encontro em Buenos Aires e eu pretendia falar sobre o

projeto e eu me relaciono com esses autores com Deleuze e tal e fundamentaria por

aí, ampliando um pouco as coisas e não tem como falar de uma coisa que está Sub

Judice. Na verdade, liquidada até a segunda ordem. Impedida. É uma pena, não é

maravilhoso, mas interrompeu-se uma caminhada que tinha bons resultados.

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247

Entrevista com a Profª Ana Lúcia Pinto de Almeida

(Uma das atuais professoras de Filosofia do CMP)

1. Qual foi a sua ligação com a disciplina de Filosofia no período?

Me formei em Filosofia em 1996 e comecei dando aulas de Filosofia no

mesmo ano na UFPel. Em 2002, comecei a dar aulas de Filosofia com um contrato

no município nos colégios Piratinino de Almeida e Bibiano de Almeida, somente para

o Ensino Fundamental. Em 2003, no Pelotense com uma turma de Ensino Médio e

no Bairro Sítio Floresta, de 5ª a 8ª séries. Em 2004, fui chamada no concurso,

ministrei aulas para as sextas séries no CMP e fui chamada no Estado. No ano

seguinte, o CMP me convidou para dar aula no curso de Educação Infantil, em que

estou até hoje. No Estado, dou aulas de Filosofia, Filosofia da Educação e também

de Relações Humanas.

2. Quando (em que período) você teve a experiência com o Ensino de

Filosofia no CMP?

De 2003, até agora.

3. Quais são as suas recordações dessas aulas?

Me lembro bastante da dificuldade de dar aulas para os surdos, porque

eles não têm o vocabulário que a Filosofia exige, lembro de dar aulas pras oitavas

séries da manhã e lembro que quando eu comecei a dar aulas nas sextas séries,

comecei a dar livros de presente pros meus alunos, porque comecei a ter alunos

muito interessados. Dei o “Mundo de Sofia” (de Jostein Gaarder), o “Alienista” (de

Machado de Assis), entre outros. Fiz um gibi de Filosofia com as sextas séries e foi

muito bom. Lembro também de quando eu fui dar aulas para o magistério e fizemos

o projeto “Filosofinhos”, foi muito legal.

4. Como você avalia o Ensino de Filosofia experimentado?

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Eu gosto de ser professora e gosto de ser professora de Filosofia, então

quase sempre, meu discurso é o mesmo para meus alunos, que fui ser professora

de Filosofia para “botar minhoca na cabeça dos outros”. Sempre explico pros meus

alunos qual é a função da “minhoca”, que a minhoca da terra serve para arejar, ela

mexe com aquela terra que está endurecida, fazendo com que ela respire, para que

assim possam brotar coisas novas. E essa é muito a função do professor de

Filosofia, pelo que me proponho, não me preocupo tanto com a questão da História

da Filosofia ou de conceitos muito prontos de Filosofia, me preocupo com que eles

construam, que eles se ponham a pensar as coisas e comecem a pensar por eles

mesmo. É cansativo, é difícil, mas eu gosto muito de fazer isso.

5. Que didáticas e práticas de ensino eram desenvolvidas em aula?

Trabalho com aula expositiva, com pesquisas, que acho que é importante,

acho que eles têm capacidade de pesquisar. Com as crianças, gosto de trabalhar

com histórias, acho que é mais produtivo, mas não qualquer história, mas histórias

que exijam mais deles. Por exemplo, trabalhar com o “Mundo de Sofia” na sexta

série, foi uma coisa muito legal. Gosto de trabalhar com projetos, eu tenho o projeto

de fazer uma gincana, talvez para o ano que vem. Não faço provas, mas quase

sempre meus trabalhos são como provas, exigem tanto quanto. A maioria deles é

feita em sala de aula, não coisas muito prontas. Uso muitos os verbos “analise” e

“relacione” nos meus trabalhos.

6.Quais conteúdos você lembra terem sido trabalhados na disciplina?

Cosmologia, que eu adoro, porque acho que prende o aluno iniciante,

questões do mundo, da natureza, que acho que não tem quem não se pergunte.

Trabalho também com Teoria do Conhecimento, Antropologia Filosófica, Política e

Mitologia Grega.

7. Algum filósofo ou escola filosófica em especial foi enfocado? Qual?

Eles (os alunos) gostam bastante dos primeiros dos primeiros filósofos, se

identificam bastante com os primeiros filósofos. Gostam muito de um conteúdo que

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não é propriamente de Filosofia, que é a Mitologia Grega. Vejo que Aristóteles é um

sujeito que chama bastante a atenção.

8. O professor usava algum livro didático? Qual?

Gosto muito do “Filosofando” (de Maria Lúcia de Arruda Aranha) “casado”

com o “Pensando Melhor” (de Angelica Sátiro e Ana Miranda Wuensch).

9. Suas recordações são de uma aula tradicional ou crítica?

Críticas.

10.Você acredita que essas aulas contribuíram para a formação de

consciências críticas? Por quê?

Faço a minha parte, porém a gente sabe que não depende só disso, tem

as questões culturais, é todo um contexto que não permite que o sujeito vá muito

adiante, mas não seguem porque muitos estão sujeitos ao grupo. Se o grupo não é

propício, é complicado. O grupo exerce uma pressão muito grande.

11.Qual foi a influência do contexto histórico nestas aulas?

Uso a ferramenta da história quando ela é necessária, mas minhas aulas

não seguem a História da Filosofia.

O momento atual brasileiro permite que as aulas de agora sejam mais

críticas.

12. Você foi aluno ou professor no período democrático ou ditatorial?

Professora na Democracia.

13. Como a Filosofia era vista nesta época? -

14. O Ensino de Filosofia era valorizado perante a comunidade escolar?

São vários colegas, com vários olhares. Tem o olhar do colega que acha

a filosofia inútil, tem o olhar de alguns colegas que respeitam e pedem para

trabalhar junto.

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250

De modo geral, acho que a Direção do Colégio valoriza a Filosofia.

De parte dos alunos, acho que eles ainda têm um pouco de preguiça,

mas têm muita curiosidade. Pego alunos muito bons. Se aprende melhor com o

professor que tu gostas, o vínculo afetivo é importante, tento trabalhar bem dessa

forma. A Filosofia é uma área humana e deve ter tolerância com a questão do

humano.

15. Se aluno, em que pontos o Ensino de Filosofia contribuiu para a sua

formação enquanto pessoa, profissional e cidadão pertencente a uma sociedade?

A Filosofia me deu acesso à cultura. Lembro de passar nas bancas de

jornais e ver a coleção “Os Pensadores”. Quando comecei a ter aulas de Filosofia,

comecei a ver quem eram essas pessoas, quem eram os filósofos e o que eles

faziam, fiquei fascinada, ao ver que havia pessoas que pensavam questões da vida.

Eu já gostava muito de ler, mas não tinha direcionamento, a Filosofia me deu essa

direção. Questões interiores, a Filosofia me direcionou pras questões sociais,

orientou a me preocupar com as questões ambientais, para me preocupar com as

questões sobre o fato de que existem pessoas que não têm coisa alguma para

comer, etc.

16. Se você não teve a disciplina de Filosofia, quais são os reflexos da

ausência deste ensino para a sua formação? -

17. Se você não teve a disciplina de Filosofia, o que pensa sobre as aulas

de Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política Brasileira? -

18. Você concorda com a extinção da Filosofia no período ditatorial?

Imagino que deva ter sido uma grande perda intelectual brasileira, esse

período rompe com a trajetória de crescimento intelectual, as pessoas que

pensavam aqui tiveram que ir pensar fora, foi uma lástima. Mas também, pelo que

meus pais, que tiveram aula de Filosofia dizem, do que eles estudaram, não foi uma

coisa viva, depende muito do professor.

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19. Como você enxerga o retorno da Filosofia nos dias atuais?

Acho que é uma tarefa muito difícil, pois o mundo chama muita atenção

pra muitas coisas; antes o livro fazia muito mais sentido, hoje o mundo depende

muito do computador e a Filosofia ainda é muito presa aos livros. O mundo é muito

rápido e a Filosofia é muito lenta. Não acho que ela deva entrar na mesma rapidez

do mundo, mas pensar não é uma coisa rápida. O mundo hoje apresenta novas

questões para a Filosofia, como a Bioética, Inteligência Artificial, Eutanásia, as

questões de linguagem, Estética Contemporânea. Essas são novas questões da

Filosofia.

20.Que mudanças ou melhorias você acredita que seriam pertinentes ao

Ensino de Filosofia nos dias de hoje?

Primeiro, eu não penso que deva haver uma uniformidade nos conteúdos

a serem trabalhados, a Filosofia age de acordo com as necessidades do contexto

daquele sujeito, mas embora não tenha que haver uma uniformidade dos conteúdos,

tem que ter uma uniformidade do professor de Filosofia, um mínimo de suporte para

as questões com adolescentes, e as instituições de ensino deveriam pensar nessas

formações, pensar que estes sujeitos não são tão imaturos que não possam pensar

em certas questões, mas também não é tão maduro que possa pensar como na

academia.

Acho que tem que haver cursos de formação pra quem está na rede, a

carga horária de Filosofia deveria aumentar para os alunos, mas diminuir o número

de turmas que o professor de Filosofia tem. É muito estressante o cotidiano e as

questões da Filosofia são profundas, é um desafio.

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APÊNDICE C - Depoimentos por escrito

Depoimento da Profª Drª Arabela Rota

(Ex-professora de Filosofia no CMP em 1963)

Minha experiência com o estudo e o ensino da Filosofia.

Alguns antecedentes...

Em 1960 iniciei meus Cursos de Filosofia e de Direito, na cidade de

Pelotas, após uma trajetória marcada por importantes decisões de vida.

Aos 14 anos saí de minha cidade natal, Santa Vitória do Palmar, cidade

fronteiriça, para concluir o Ginásio e cursar o 1º e 2º anos do Clássico, em Porto

Alegre.

As motivações eram várias: a pequena cidade onde nasci não oferecia

condições para uma boa preparação ao Vestibular, além de não possuir escolas de

2º grau, somadas a minha ansiedade por conhecer o mundo.

Vivíamos isolados do Brasil pela precariedade de estradas e meios de

transporte. Nossa “capital” era Montevidéu e, por esse motivo profundamente

marcados pelo caldo de cultura que se origina da mistura do espanhol com o

português.

Meu 3º ano do Curso Clássico (1959) foi no Colégio Municipal Pelotense,

último ano de funcionamento no antigo prédio, na Félix da Cunha, em frente ao

Correio. A mudança para Pelotas foi uma escolha livre e pessoal, com total apoio de

minha família. O Colégio Pelotense foi paixão à primeira vista. Vinha de internatos

em colégios de freiras e fui morar em uma pensão para moças, onde era dona de

meu tempo e de minhas decisões. Foi um verdadeiro “choque de liberdade”.

A disciplina de Filosofia não fazia parte ainda do currículo dos cursos

médios, mas ela fluía de todas as partes impregnando o clima do colégio,

professores de ciências exatas faziam pregação ideológica e tratavam de temas

políticos e sociais com toda a liberdade. Tínhamos professores “comunistas” e

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outros, absolutamente “direitistas e conservadores”. Eu era uma autêntica “gato

pelado” assumida e feliz.

O Colégio estava “maduro” para receber em seu corpo docente e entre

seus alunos a Filosofia e o seu ensino, o que ocorreu no ano seguinte.

Quando cursava o 2º ano de Filosofia (1961), o professor Silvino Lopes,

meu professor, precisou afastar-se por um mês em licença médica e convidou duas

alunas para substituí-lo em suas turmas de Filosofia no Colégio Municipal

Pelotense! Foi o paraíso e o terror...

O pânico tomou conta de mim, aluna saída recentemente daquela escola,

tendo de enfrentar alunos mais velhos, do noturno e alguns já trabalhando.

Principalmente os alunos do Cientifico, porque o Curso Clássico tinha outro perfil.

Foi uma experiência fantástica e, pela avaliação de meu desempenho fui convidada

a permanecer no ano seguinte com turmas “minhas”, não mais em substituição.

Minha vida tinha um ritmo acelerado: cursava a Faculdade de Direito pela

manhã, tinhas aulas à tarde no Curso de Filosofia, como aluna e, era professora à

noite no Colégio Municipal Pelotense!

Em 1963, já Bacharel e Licenciada em Filosofia, a Prefeitura de Pelotas

abriu inscrições para um Concurso público para a disciplina de Filosofia no Colégio

Pelotense, fui aprovada e efetivada como professora.

Meu título dava habilitação para lecionar e ter registro profissional como

professora de Filosofia e História.

Logo em seguida a Secretaria de Educação do Estado abriu concurso

para História, fui aprovada e designada para o Colégio Nossa Senhora de Lourdes.

O cearense Padre Gurgel era o Diretor do Colégio e professor no Curso de Filosofia.

Contexto histórico e político

A década de 60 iniciava com fatos significativos na vida política e

institucional do país, com repercussão em minha trajetória pessoal.

Em 1961, com a renúncia do Presidente Jânio Quadros (mais um agosto

trágico de nossa história) os militares tentam impedir a posse do Vice-Presidente

João Goulart. O Brasil está aquecido, o povo participando e consciente dos fatos de

seu entorno. Nesse contexto o Rio Grande do Sul demonstra mais uma vez sua

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consciência política. O Governador Leonel Brizola, entrincheirado no Palácio Piratini,

ergue barricadas para defender a posse de Jango, com apoio de grande parte da

população. Era a “Campanha da Legalidade”, que este ano completa 50 anos.

O movimento foi vitorioso e João Goulart é empossado, mas os militares

nunca aceitaram esse fato. Para eles, todos aqueles que apoiavam ou simpatizavam

com a situação vigente eram de esquerda e comunistas. Criaram o Serviço Nacional

de Informações/SNI e tem início um período de “denuncismo” no país. O clima é de

medo e repressão disfarçada, propiciando o surgimento da figura do “informante”.

Tudo isso antes do Golpe de 64.

Na Faculdade de Direito, tradicional local de discussão e ideias

livremente debatidas, ferviam as manifestações e reuniões em nosso Centro

Acadêmico. Cuba havia feito a sua Revolução e vencido. Che Guevara era nosso

ídolo (atualmente sua imagem está poluída, uma lembrança confusa e excesso de

camisetas). Inauguramos fotos de Che e de Patrice Lumumba (herói africano do

momento) na sede do Centro Acadêmico, local que frequentávamos mais que

nossas próprias casas.

E aí veio o Golpe Militar...repressão explícita, perda de liberdade de

expressão, censura na música, no cinema, no teatro etc.

Concluí o Curso de Direito em dezembro de 1964, meu título é de

Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais. Não fui à formatura. Eram momentos

polêmicos, o que fazer, o que dizer, quem seria o orador da turma, quem seria o

Paraninfo. As escolhas eram marcadas pela posição política dos grupos que

compunham cada turma.

Em janeiro de 1965 fui para a Itália estudar Sociologia na Universidade de

Roma. Ganhei uma Bolsa de Estudos patrocinada pelo Governo do Rio Grande do

Sul que premiava os primeiros colocados em cursos superiores, no meu caso, pelo

Curso de Filosofia.

Voltei de Roma onde estudei Pesquisa Social e Sociologia Jurídica, já

direcionando minha formação para a área da Sociologia.

Retornei ás minhas aulas de Filosofia, nessa época também recebi

turmas de Sociologia, nos Cursos Clássico e Científico do Pelotense e História para

alunos do Ginásio no Nossa Sra. de Lourdes. A Sociologia, naquela época, já me

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havia contagiado para o resto de vida. Era uma decorrência lógica de minhas

tendências inquisitivas e de permanente questionamento diante das relações

políticas e sociais.

Em 1968, a Universidade Católica assinou um Convênio com o Colégio

Pelotense para a cessão de cinco professores. Eu fui um deles. A partir daí iniciei

minha carreira acadêmica como professora universitária de Sociologia, fui

Coordenadora do Departamento de Sociologia e Política por muitos anos e cheguei

a Decana da Área de Ciências Sociais. Em 1975, o MEC proporcionou por Lei, aos

professores com mais de 5 anos de exercício na Cátedra universitária, a inscrição

em um Concurso interno para a conquista do título de Doutor. Nessa ocasião fui

aprovada e recebi os títulos de Livre Docente em Sociologia e Doutora em Ciências

Sociais, dispensada do Mestrado.

As aulas no Colégio Pelotense

Vencido o pânico inicial, passei a adorar os meus encontros com a

Filosofia.

Minhas turmas eram de alunos do Clássico e do Científico, como já foram

caracterizadas pelos professores Silvino Lopes Neto e José Luis Cavalheiro Leite, o

primeiro me antecedeu e o segundo me seguiu.

Contrariamente ao que eles afirmam, minha identificação total era com os

alunos e alunas do Clássico. Era eu de um lado e eu do outro. Entende?

Esse grupo eu não precisava conquistar, enquanto que com os alunos do

Científico era necessário, antes de mais nada, situá-los no campo da Filosofia e o

porque daquela disciplina que, para eles, não tinha nada a ver com as matérias do

famoso Vestibular. Até fazê-los entender que os primeiros filósofos foram grandes

matemáticos, físicos, astrônomos etc. e que Pitágoras antes de ser um Teorema era

um importante filósofo, levava tempo.

Aprendi no último ano da Licenciatura em Filosofia, como preparar um

Plano de Aula, um Plano de Curso e a Didática adequada e necessária para dar

uma aula.

O conteúdo de minhas aulas era preparado cuidadosamente e, posso

confessar que aprendi realmente Filosofia e História nessa época. Observava o

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256

Programa do Curso e cada aula tinha começo e fim, ou seja, nunca deixava o tema

abordado sem uma conclusão. Apresentava o tema e suscitava a discussão e o

debate. Como em todo o grupo, havia sempre alguém querendo monopolizar e eu

administrava os tempos. Havia um clima de bem estar e tranquilidade, costumava

sentar “na” (sobre a) mesa do professor, isto causava um certo espanto por ser

inovador. Caminhava ente eles e costumava dizer que minhas aulas eram

“peripatéticas” como as de Sócrates e Platão e me imaginava caminhando pelo

Parthenon.

A História da Filosofia era meu fio condutor. No Clássico tinha dois anos

para trabalhar esse material, com tempo para iniciar pelos Pré-Socráticos, chegar a

Filosofia Grega, passar pelos Tomistas e a Agostinianos, seguir pelos filósofos

alemães (Kant, Hegel, Engels, Kierkegaard), os existencialistas Nietzsche,

Schopenhauer e Sartre, chegar aos ingleses (Thomas Hobbes , “o homem é o lobo

do homem”), os franceses (Jean Jacques Rousseau, Augusto Comte e o surgimento

da Sociologia como Ciência e os espanhóis como Ortega y Gasset. Em algumas

turmas trabalhei a Filosofia Hindu e o Budismo.

No Cientifico o programa era uma Introdução à Filosofia, com conceitos

mais básicos e algumas noções de História da Filosofia.

A História da Filosofia não era uma simples narrativa cronológica e

engessada, isenta de análise crítica. Era o meu prumo para, dependendo da turma e

do interesse despertado, aprofundar e/ou destacar doutrinas e correlacionar com o

momento vivido. Tudo com muito cuidado, sem deixar de explicar a Dialética de

Hegel e a fundamentação filosófica do marxismo em Engels.

Os livros eram caros e um pouco inacessíveis para os alunos. Minha

bibliografia era mencionada, mas os alunos tomavam anotações das aulas. Meus

livros foram comprados durante o Curso de Filosofia (Leonel Franca) e depois

autores espanhóis e alemães (Klimke, Ortega y Gasset) comprados em bibliotecas

na Itália e Espanha. Levava para as aulas meus livrinhos da “República” de Platão e

da “Política” de Aristóteles e deixava que os manuseassem.

Creio que eram duas ou três aulas semanais para o Clássico e uma ou

duas para o Cientifico. As avaliações eram provas escritas, dissertativas e exigiam

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257

uma boa análise crítica e capacidade de raciocínio, além da comprovação de

conhecimento dos conteúdos trabalhados em aula.

A Filosofia Grega e, mais adiante, a alemã, pontificada por Kant e o

Budismo, tinham a minha preferência.

Havia respeito pela disciplina de Filosofia e seus professores, mesmo

quando entendida por alguns como um acessório. Ousaria dizer que os teóricos do

período da ditadura (leia-se Golbery do Couto e Silva) custaram a perceber o quanto

o seu ensino levava a pensar o mundo e suas relações políticas e sociais. Talvez

por esse motivo só em 1972 foi retirada dos currículos escolares. É obvio o porquê

de sua eliminação. Mas a Sociologia assustava muito mais. Ser sociólogo era pressuposto de

esquerdista e comunista. Só após a abertura política conseguimos registrá-la como

profissão e eu fui uma das primeiras, já residindo em Brasília, a fazer meu registro

como Socióloga.

Quanto à nossa convivência com os professores de OSPB e EPB, posso

dizer que era civilizada e pacífica. Eram, na sua maioria, militares da reserva, com

perfil nacionalista e defensores da doutrina da defesa nacional.

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Depoimento do Prof. Maurício Cunha (Professor de Filosofia no CMP desde 2004 e atual coordenador da área de

Filosofia)

1. Qual é a sua ligação com a disciplina de Filosofia no período da

pesquisa (de 1960 a 2008)?

Eu sempre me interessei por Filosofia “saber mais o mundo que vivo”.

Saber o porquê das coisas, fiz universidade nessa época e me formei [em]

“Licenciatura em Filosofia”.

2. Desde que ano você leciona Filosofia no CMP? Você é efetivo ou

contratado? Qual é a sua carga horária?

2004 – Efetivo – 20 horas

3. Para que turmas e cursos você lecionou (leciona)?

Turmas 8ª séries 2011, já lecionei 2º anos e 7ª série no Pelotense. Em

outras escolas, 1º, 2º e 3º anos.

4. Quais são suas recordações das aulas no período de 2000 a 2008?

Referente à disciplina de Filosofia, nessa época ainda se encontra um

pouco mais de resistência por parte do aluno em saber o que era Filosofia e qual

era a sua proposta.

5. Como você avalia o Ensino de Filosofia experienciado? -

6. Que didáticas e práticas de ensino eram (e são) desenvolvidas em

aula?

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A didática que mostra o assunto tratado de maneira ampla e objetiva. E

que ofereça ao aluno um bom entendimento do assunto.

7.Quais conteúdos você lembra terem sido (são) trabalhados na

disciplina?

Ética, Percepção, Senso Comum, Senso Crítico, Nascimento Filosofia,

Política, Lógica, Estética, Verdade, Pensamento, Razão, Discriminação, Violência...

8. Algum filósofo ou escola filosófica em especial foi (ou é) enfocado?

Qual?

Dependendo do assunto é trabalhado várias visões para que o aluno

tenha uma percepção global do assunto.

9. Você usava(usa) algum livro didático? Qual?

Sim, Cotrim, Marilena Chauí, Maria Graça Aranha.

10. Você, ao elaborar seus planejamentos de aulas, priorizava (prioriza) o

cumprimento dos conteúdos a serem trabalhados ou preferia (prefere) considerar o

contexto, através de discussões, diálogos, etc?

Tenta-se unir o útil ao agradável, isto é, o conteúdo através de

discussões, diálogos...

11.Qual foi (é) a influência do contexto histórico, social e político nessas

aulas?-

12. Como a Filosofia era (é) vista pela comunidade escolar? O Ensino de

Filosofia era (é) valorizado perante a comunidade escolar? -

13. Em que pontos o Ensino de Filosofia contribuiu (contribui) para a

formação de alunos enquanto pessoas, profissionais e cidadãos pertencente a uma

sociedade?

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Creio que o ensino de filosofia contribui muito com a formação do cidadão

crítico em nossa sociedade.

14. Se você não teve a disciplina de Filosofia na sua formação inicial no

período em que era estudante (Ensino Médio), quais são os reflexos da ausência

desse ensino para a sua formação?

Tive aulas de Filosofia no 2º grau.

15. O que você pensa sobre a extinção da Filosofia no período ditatorial?

Ora, um governo que “quer que uma sociedade não pense” isso era

natural e essencial. Mas, foi uma geração que foi bitolada por atos muito fortes na

parte da educação e política.

16. Você participou de algum movimento ou luta a favor da inclusão e/ou

obrigatoriedade da Filosofia nas escolas?

Sim.

17. Como se deu a inserção do Ensino de Filosofia no CMP para as

turmas de 5ª a 8ª séries? Como foi e está sendo trabalhado o Ensino de Filosofia

para crianças? Que referências teóricas e metodologias são utilizadas para estas

aulas? -

18. Como você enxerga a obrigatoriedade da Filosofia através da Lei

nº11.684/08 ? Houve alguma mudança depois da implantação dessa lei?

É um ato que tenta fazer o nosso cidadão ser mais consciente no mundo.

19.Que mudanças ou melhorias seriam pertinentes ao Ensino de Filosofia

nos dias de hoje?

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261

Depoimento da Profª Flávia Schaun

(Professora de Filosofia no CMP desde 2007)

1. Qual é a sua ligação com a disciplina de Filosofia no período da

pesquisa (de 1960 a 2008)? -

2. Desde que ano você leciona Filosofia no CMP? Você é efetivo ou

contratado? Qual é a sua carga horária?

Leciono filosofia no CMP desde 2007, sou efetiva e tenho carga horária

de 20 horas.

3. Para que turmas e cursos você lecionou (leciona)?

Atualmente leciono para turmas de 5ª e 6ª séries.

4. Quais são suas recordações das aulas no período de 2000 a 2008?

No período de 2000 a 2008 pouca experiência tive, visto que comecei a

dar aulas no ano de 2007, e como estava começando, as únicas recordações que

tenho são de um começo difícil, lidar com a falta de interesse dos alunos

desanimava um pouco.

5. Como você avalia o Ensino de Filosofia experienciado?

Avalio o meu trabalho como professora de filosofia a cada ano que passa,

pensando sempre que tenho muito a melhorar, buscar novas maneiras de trabalhar

os assuntos. Penso que devemos estar constantemente nos autoavaliando, para

realizar um trabalho cada vez melhor.

6. Que didáticas e práticas de ensino eram (e são) desenvolvidas em

aula?

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262

Em aula utilizo textos para reflexão, debates, filmes...

7.Quais conteúdos você lembra terem sido (são) trabalhados na

disciplina?

Os conteúdos trabalhados são: origem da filosofia; períodos da filosofia,

Sócrates, Platão, Aristóteles; conhecimento...

8. Algum filósofo ou escola filosófica em especial foi (ou é) enfocado?

Qual?

Geralmente, como trabalho com 5ª e 6ª séries falamos bastante sobre os

filósofos gregos.

9. Você usava(usa) algum livro didático? Qual?

Vários: COTRIN, CHAUÍ...

10. Você, ao elaborar seus planejamentos de aulas, priorizava (prioriza) o

cumprimento dos conteúdos a serem trabalhados ou preferia (prefere) considerar o

contexto, através de discussões, diálogos, etc?

No planejamento das aulas tento cumprir os conteúdos, mas de acordo

com a maneira que a turma reage, pois não adianta cumprir com o conteúdo

programático sem que o aluno tenha realmente aprendido, é preciso tornar os

assuntos interessantes a eles.

11.Qual foi (é) a influência do contexto histórico, social e político nessas

aulas?-

12. Como a Filosofia era (é) vista pela comunidade escolar? O Ensino de

Filosofia era (é) valorizado perante a comunidade escolar?

Na minha opinião o ensino de filosofia não é muito valorizado pela

comunidade escolar, e sim visto como algo desnecessário, que ali está somente por

ser obrigatório.

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13. Em que pontos o Ensino de Filosofia contribuiu (contribui) para a

formação de alunos enquanto pessoas, profissionais e cidadãos pertencente a uma

sociedade?

A filosofia contribui para desenvolver a capacidade dos alunos de criticar,

de pensar, de ter opiniões sobre os acontecimentos do mundo, e não apenas

assistirem e aceitarem tudo como está.

14. Se você não teve a disciplina de Filosofia na sua formação inicial no

período em que era estudante (Ensino Médio), quais são os reflexos da ausência

desse ensino para a sua formação?

Na minha formação não tive filosofia, e hoje em dia percebo que fez muita

falta, pois gostaria de ter tido uma disciplina em que pudéssemos debater assuntos

atuais, ou seja, tentar entender melhor o mundo em que vivo.

15. O que você pensa sobre a extinção da Filosofia no período ditatorial?

Penso que é mais fácil para quem tem o poder, proibir do que enfrentar,

do que ter argumentos a seu favor, e como a filosofia está sempre questionando, ela

representava uma ameaça.

16. Você participou de algum movimento ou luta a favor da inclusão e/ou

obrigatoriedade da Filosofia nas escolas?

Não.

17. Como se deu a inserção do Ensino de Filosofia no CMP para as

turmas de 5ª a 8ª séries? Como foi e está sendo trabalhado o Ensino de Filosofia

para crianças? Que referências teóricas e metodologias são utilizados para estas

aulas?

Quando a filosofia foi inserida no CMP no ensino de 5ª à 8ª séries, eu

ainda não estava lecionando, mas posso dizer que ainda busco maneiras de melhor

trabalhar os conteúdos para torná-los interessantes e não cansativos. Uma boa

alternativa é o uso de filmes, que atraem muito a atenção dos alunos, além de

facilitar no entendimento sobre o conteúdo.

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18. Como você enxerga a obrigatoriedade da Filosofia através da Lei

nº11.684/08 ? Houve alguma mudança depois da implantação dessa lei?

Depois que a lei foi implantada, várias escolas que antes não trabalhavam

com a disciplina de filosofia, começaram a trabalhar, acredito que a lei só se fez

cumprir algo que já deveria existir. Muitas pessoas não conhecem filosofia, nem ao

menos sabem o que é filosofia, mas depois que as escolas se viram obrigadas a

incluir a filosofia entre suas disciplinas, aos poucos as pessoas estão conhecendo e

vendo o quanto ela é algo importante.

19.Que mudanças ou melhorias seriam pertinentes ao Ensino de Filosofia

nos dias de hoje?

Não acho necessário “mudanças” no ensino de filosofia, mas sim que

cada professor se esforce para dar suas aulas da melhor maneira, torná-las

atraentes, enfim, que goste do que faz.

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APÊNDICE D – Termos de autorização da pesquisa

Termo de Apresentação e Autorização – Colégio Municipal Pelotense

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Termos de Consentimento livre e esclarecido

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ANEXOS

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ANEXO A – Lista de Pontos Organizados para a 2ª prova parcial – Prof. Dr. Silvino Lopes Neto – 1960

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ANEXO B – Plano de Ensino – Prof. Dr. Silvino Lopes Neto

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ANEXO C – Programa: Filosofia – Profª Drª Arabela Rota – 1967

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ANEXO D – Programas Filosofia – 1971

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ANEXO E – Programa de Filosofia – 1972

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ANEXO F – Educação Moral e Cívica – 1972

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ANEXO G – Plano de Curso – Organização Social e Política Brasileira – 1974

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ANEXO H - Material de campanha pelo retorno da Filosofia no 2º grau – UCPel – década de 1980

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ANEXO I – Projeto de Lei Nº 356-A, de 1983

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ANEXO J – Parecer vencedor do Projeto de Lei Nº 356-A, de 1983

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ANEXO K – Situação final do Projeto de Lei Nº 356-A, de 1983

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ANEXO L – Jornal do Diretório Acadêmico Leonel Franca – 1982

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ANEXO M – Projeto Filosofando – Prof. Ubirajara Pereira Velasco – 2007

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ANEXO N – Repercussão em jornais locais do Projeto Filosofando

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ANEXO O – Portaria de Reconhecimento Nº 06.505 de 04/02/81 – 2005

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ANEXO P – Programas de Filosofia – 2008

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