letramento e alfabetização: implicações para a educação infantil

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LETRAMENTO E ALFABETIZAÇÃO: IMPLICAÇÕES PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL. Luiz Percival L. Britto (Trecho retirado na íntegra) Na educação infantil, ler com os ouvidos e escrever com a boca (situação em que a educadora se põe na função de enunciadora ou de escriba) é mais fundamental do que ler com os olhos e escrever com as mãos. Ao ler com os ouvidos, a criança não apenas se experimenta na interlocução do discurso escrito organizado, como vai compreendendo as modulações de voz que se enunciam num texto escrito. Ela aprende a voz escrita, aprende a sintaxe escrita, aprende as palavras escritas. Nesse sentido, as crianças são capazes de ouvir histórias longas, mais interessantes que esses textos de frases soltas. Se lermos uma historia com (com, e não para) uma criança que não conhece o sistema de escrita e pedirmos para ela recontar o que leu, ela certamente não dirá a história com as mesmas palavras do texto original, nem reproduzirá o enredo em sua exatidão, mas demonstrará que compreendeu o texto (que reagiu com ele). Demonstrará, enfim, que leu e o ressignificou. Pode-se dizer que, na educação infantil, ler com os ouvidos é mais fundamental do que ler com os olhos (BRITTO, 1994). Ao ler com os ouvidos, a criança não apenas experimenta na interação, na interlocução, no discurso escrito organizado, com suas modulações prosódicas próprias, como também aprende as palavras escritas. Somente assim podemos considerar que a alfabetização (ou letramento) é uma condição fundamental da educação infantil. O que de estar em foco, na ação pedagógica, é a ideia de que o conhecimento da escrita não se faz pela codificação de mensagens (mesmo quando essas são processadas e compreendidas mentalmente). O principio que orienta a ação educativa, nessa perspectiva, é o da vivência no universo cultural, incluindo a oralidade espontânea e as expressões características dos discursos de escrita. Dessa forma, a criança poderá operar com signos e significados dentro de um mundo pleno de valores e de sentidos socialmente marcados. A autonomia de ler e de grafar decorre dessa experiência, e não o contrário. Essa concepção de educação assume como primordial a valorização objetiva da cultura local das crianças e de seus pais e o reconhecimento dos ritmos e tempos do desenvolvimento humano. Isso implica reconhecer o princípio da diversidade como algo fundamental da ação educativa, em contraposição à logica do pensamento único que impera na educação para a competência. O desafio da educação infantil não ensinar a desenhar e juntar letras, e sim o de oferecer condições para que as crianças possam se desenvolver como pessoas plenas e de direito e, dessa maneira, poder participar criticamente da sociedade de cultura escrita. Antecipar o ensino das letras, em vez de trazer o debate da cultura escrita no cotidiano, é inverter o processo e aumentar a diferença. BIBLIOGRAFIA: BRITTO, L. P. L. Letramento e Alfabetização: implicações para a Educação Infantil. In FARIA, A. L. G.; MELO, A. S. (Orgs). O mundo da escrita e o universo da pequena infância. Campinas, SP: Autores Associados, 2005. p.05-21.

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Page 1: Letramento e Alfabetização: Implicações para a Educação Infantil

LETRAMENTO E ALFABETIZAÇÃO: IMPLICAÇÕES PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL.

Luiz Percival L. Britto

(Trecho retirado na íntegra)

Na educação infantil, ler com os ouvidos e escrever com a boca (situação em que a educadora se põe na função de enunciadora ou de escriba) é mais fundamental do que ler com os olhos e escrever com as mãos. Ao ler com os ouvidos, a criança não apenas se experimenta na interlocução do discurso escrito organizado, como vai compreendendo as modulações de voz que se enunciam num texto escrito. Ela aprende a voz escrita, aprende a sintaxe escrita, aprende as palavras escritas. Nesse sentido, as crianças são capazes de ouvir histórias longas, mais interessantes que esses textos de frases soltas. Se lermos uma historia com (com, e não para) uma criança que não conhece o sistema de escrita e pedirmos para ela recontar o que leu, ela certamente não dirá a história com as mesmas palavras do texto original, nem reproduzirá o enredo em sua exatidão, mas demonstrará que compreendeu o texto (que reagiu com ele). Demonstrará, enfim, que leu e o ressignificou.

Pode-se dizer que, na educação infantil, ler com os ouvidos é mais fundamental do que ler com os olhos (BRITTO, 1994). Ao ler com os ouvidos, a criança não apenas experimenta na interação, na interlocução, no discurso escrito organizado, com suas modulações prosódicas próprias, como também aprende as palavras escritas. Somente assim podemos considerar que a alfabetização (ou letramento) é uma condição fundamental da educação infantil.

O que de estar em foco, na ação pedagógica, é a ideia de que o conhecimento da escrita não se faz pela codificação de mensagens (mesmo quando essas são processadas e compreendidas mentalmente). O principio que orienta a ação educativa, nessa perspectiva, é o da vivência no universo cultural, incluindo a oralidade espontânea e as expressões características dos discursos de escrita. Dessa forma, a criança poderá operar com signos e significados dentro de um mundo pleno de valores e de sentidos socialmente marcados. A autonomia de ler e de grafar decorre dessa experiência, e não o contrário.

Essa concepção de educação assume como primordial a valorização objetiva da cultura local das crianças e de seus pais e o reconhecimento dos ritmos e tempos do desenvolvimento humano. Isso implica reconhecer o princípio da diversidade como algo fundamental da ação educativa, em contraposição à logica do pensamento único que impera na educação para a competência. O desafio da educação infantil não ensinar a desenhar e juntar letras, e sim o de oferecer condições para que as crianças possam se desenvolver como pessoas plenas e de direito e, dessa maneira, poder participar criticamente da sociedade de cultura escrita. Antecipar o ensino das letras, em vez de trazer o debate da cultura escrita no cotidiano, é inverter o processo e aumentar a diferença.

BIBLIOGRAFIA: BRITTO, L. P. L. Letramento e Alfabetização: implicações para a Educação Infantil. In FARIA, A. L. G.; MELO, A. S. (Orgs). O mundo da escrita e o universo da pequena infância. Campinas, SP: Autores Associados, 2005. p.05-21.