léxico da história dos conceitos políticos do brasil

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Page 1: Léxico da História dos Conceitos políticos do Brasil

léxico da história dos conceitos políticos do Brasil

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J o ã o F e r e s J ú n i o r M a r i a E l i s a M ä d e r

américa/americanos

No período estudado (1750-1850), o conceito de Amé-rica varia em torno de seis significados básicos: (1) um significado geográfico, mormente descritivo, que iguala a América, ou continente americano, ao Novo Mundo; (2) a essa definição, um sentido político pode ser acrescentado para significar as possessões coloniais das metrópoles europeias; (3) América como fonte de abundância e pro-messa de um futuro mais próspero; (4) a versão política análoga da definição 3, ou seja, de América como espaço de liberdade, de novas formas políticas e sociais algumas vezes associadas aos conceitos de república, federalismo e democracia; (5) a negação de 3, isto é, a América como o continente imaturo ou degenerado, terra de animais pequenos e de homens primitivos e ferozes, de clima insa-lubre; e, por fim, (6) a negação de 4, ou seja, o avesso à vida civilizada da Europa, escravidão, instabilidade política,

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violência e facciosismo, muitas vezes também associados negativamente à república, federalismo e democracia.

Os verbetes referentes aos conceitos América e ame-ricano nos principais dicionários da língua portuguesa produzidos nos últimos três séculos revelam muito pouca variação semântica. Essa observação é consoante com os usos desses termos em discursos e documentos políticos e mesmo em obras literárias. Ademais, na maioria das ve-zes em que foram usados, tais conceitos não constituíam dentro dos argumentos matéria de contenda semântica. Aplicando a categorização proposta por Reinhart Koselleck, América e americano não assumiram propriamente o papel de conceitos-chave no período estudado, pois nunca se tornaram objeto central do debate político, nem foram dotados de definições múltiplas e antagônicas, próprias do caráter polissêmico dos conceitos dessa categoria.1 Contudo, não podemos desprezar o fato de esses conceitos terem sido por vezes incorporados a discursos políticos e debates importantes para a história do Brasil no período em questão.

Devemos notar que a pouca variabilidade semântica não faz com que o estudo dos conceitos de América e americano seja destituído de interesse, pois significados que não se tornam controversos são janelas para a obser-vação do consenso social, das crenças e das ideias mais profundas de um povo, comunidade ou grupo social. Ademais, como já observado alhures, a terminologia geográfica, a despeito de sua aparente neutralidade valo-rativa, pode conter julgamentos morais fortes e ser usada como ferramenta de controle social e/ou justificação para ações de política internacional.2

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O dicionário da língua portuguesa composto pelo Padre D. Rafael Bluteau, publicado em 1728, contém um longo verbete América. A definição do termo é simples: sinônimo de “mundo novo”, a quarta parte do mundo. De fato, a extensão do verbete não se deve à abundância de significados do conceito em si, mas à narrativa que se segue a sua definição. Nela Bluteau relata que essa parte do mundo empresta seu nome de Américo Vespúcio, que tomou posse dela em nome do “gloriosíssimo Rei de Portugal D. Manoel”. Ademais, o texto também informa que Christovão Colon (sic) somente se animou a empreender sua viagem de descoberta após tomar posse, na Ilha da Madeira, das cartas de navegação de um piloto português. “A um português deve este mundo o descobri-mento daquele novo mundo.” Portanto, Bluteau apresenta o significado geográfico associado àquele de pertencimento colonial. Depois de afirmar o primado português sobre o novo continente, o verbete narra a viagem de Colombo e descreve com alguns detalhes a geografia do Novo Mundo, terminando com um comentário sobre a fonética correta do termo. Logo em seguida, o continente é divido em América setentrional e América meridional. Em cada uma dessas divisões, são enumeradas as colônias e possessões das monarquias europeias e também os povos “que não tem Reis”, os indígenas, no vocabulário contemporâneo.

É interessante notar que no Dicionário de Bluteau não há o verbete americano, ao passo que, nas várias edições do Dicionário de Antonio de Moraes Silva, produzidas no período em pauta (1789, 1813, 1823, 1831, 1844 e 1858), esse verbete existe, enquanto América está ausente. Cabe lembrar que o dicionário organizado por Moraes Silva foi baseado no de Bluteau, ou seja, ele é produto de uma reforma daquele velho dicionário.

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A definição de americano no Moraes é também muito simples e se repete em todas as edições do período, “Natural da América, ou pertencente à América”, seguida de uma citação do padre Antonio Vieira (1608-1697): “Não quero comparar estes meninos Malabares, com os Americanos, senão com os Romanos.” Apesar do parco interesse da citação, ela serve para demonstrar que o conceito já estava em uso no século xVII. Vieira utiliza a palavra América sete vezes nos Sermões. Em cinco delas, ela aparece junta-mente com ásia e áfrica,3 em uma somente com ásia4 e em uma outra sem a vizinhança desses outros continentes.5 Nessa última passagem, o termo serve simplesmente como elemento retórico de uma comparação reiterada. No Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda (1640), América aparece novamente ao lado de áfrica e ásia, entre as terras dos bárbaros conquistadas pelos portugueses a serviço de Deus. Desses usos, pode-mos perceber que o conceito pertencia à categoria das possessões coloniais portuguesas, ou seja, nomeava um dos continentes nos quais os portugueses tinham colônias, e, portanto, tinham que lidar com problemas similares: conflito com outras potências europeias, exploração colonial, controle do território e dos mares, do tráfico, administração colonial e dos povos ali residentes etc. A definição de Bluteau também expressa esse ponto de vista colonial português, pois se apressa em afirmar a primazia da Coroa lusitana sobre as terras do Novo Mundo. Deve-se notar, contudo, que o Moraes de 1789 já não faz menção a isso, optando por uma definição geográfica mais estrita do termo, ao passo que o dicionário de Eduardo de Faria, de 1849, editado em Portugal, repete de forma sintética o argumento da possessão do Novo Mundo em nome do rei lusitano.

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O termo América era também utilizado no período em expressões compostas, tais como América portuguesa, espanhola, meridional e setentrional. A mais importante delas foi América portuguesa, que, até a independência, em 1822, era o termo mais usado para se denominar a totalidade da colônia portuguesa no Novo Mundo. A pala-vra Brasil até então designava somente as capitanias sob o vice-reino do Rio de Janeiro6 – também o termo brasileiro não teve um significado estável até, pelo menos, o advento da independência.7

Ainda que os dicionários da língua portuguesa tenham se restringido à definição geográfica de América, seria ingênuo desprezar a imensa carga semântica depositada sobre o conceito desde a descoberta do Novo Mundo, mormente pela contribuição de escritores europeus como Buffon, De Pauw, Olviedo, Montesquieu, Voltaire, Hume, Hegel, Kant e tantos outros. Duas opiniões opostas se depreendem desse conjunto de reflexões, as duas formuladas de uma perspectiva marcadamente europeia: uma de abun-dância e promessa de prosperidade, e outra de imaturidade, degeneração, insalubridade e, portanto, incapacidade para a vida civilizada. A versão negativa parece ter sido de algum uso nas disputas entre portugueses e habitantes da colônia – principalmente após a mudança da Corte de Portugal para o Rio de Janeiro em 1808 – que perduraram até a consolidação da independência do Brasil. Do lado português, era comum encontrarem-se argumentos apon-tando para a ingratidão dos brasileiros para com Portugal. Na Carta do compadre de Lisboa em resposta a outra do com-padre de Belém ou juízo crítico sobre a opinião dirigida pelo “Astro da Lusitânia”, de 1821, o Brasil é descrito como “um gigante, em verdade, mas sem braços, nem pernas; não

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falando do seu clima ardente e pouco sadio”, habitado por “hordas de negrinhos, pescados nas costas da áfrica”, “terra dos macacos, dos pretos e das serpentes” em oposição a Portugal, que seria “o Jardim das Hespérides, os Elísios, deste pequeno mundo chamado Europa”, “país de gente branca, dos povos civilizados e amantes de seu soberano”.8 Já a versão positiva da visão europeia de América, a terra da fartura e do futuro promissor, francamente minoritária em relação à negativa, foi recebida com entusiasmo no Brasil. Contudo, esse significado foi com o tempo se dissociando do termo América, pelo menos dentro do discurso político que se tornou hegemônico com a con-solidação do Estado nacional brasileiro.

É no contexto da Conjuração Mineira (1789) que o termo América assume um conteúdo político importante e novo. Nos Autos da Devassa, produzidos pelas autoridades portuguesas no inquérito que se seguiu ao desbaratamento do movimento, ele é muitas vezes empregado com sentido político, relacionado a conceitos como o de república, liber-dade, revolução e sedição, e identificado ao projeto político dos conjurados, tanto por parte dos inquisidores quanto por parte dos acusados. Na “1ª Inquirição do Auto de Perguntas” ao Coronel Inácio José de Alvarenga Peixoto, de novembro de 1789, perguntado se sabia a causa da sua prisão, este responde que havia sido procurado para ser informado que “nesta cidade tinham prendido a Joaquim Silvério, e ao Alferes Joaquim José, por alcunha – o Tiradentes –, que se supunha ser por alguma liberdade, com que este falava em idéias de Repúblicas, e Américas inglesas...”.9 E continua dizendo que “não tinha sido convidado por pessoa alguma para que, faltando às obrigações de bom e leal vassalo, concorresse para que a América conseguisse a sua liberdade,

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e se formasse dela uma República...”. Ao ser perguntado sobre a possível ajuda francesa aos revoltosos, declara que tinha ouvido no Rio de Janeiro “a pretensão que a França, e as mais cortes estrangeiras tinham a liberdade do negó-cio nos portos da América e que equivocando-se, con-fundia esta liberdade do negócio com a liberdade da América...”.10 Nota-se aqui não somente a associação de liberdade e república com a América inglesa, mas também com a América em geral, ainda que o acusado se esforce para negar qualquer associação sua com tais movimentos.

Nos mesmos Autos da Devassa, encontram-se referên-cias a uma carta escrita por José Joaquim da Maia, quando estudante em Montpellier, a Thomas Jefferson, então embaixador dos Estados Unidos em Paris, com a finalidade de angariar ajuda militar daquele país para um movimento de independência do Brasil. Nesse documento, o conceito de América é central. Maia opõe a América à Europa, a liberdade americana à escravidão imposta pelos europeus, e os Estados Unidos são tomados como o exemplo a ser seguido: “...porque a natureza, fazendo-nos habitantes do mesmo continente, como que nos ligou pelas relações de uma pátria comum”.11 Ainda em sua carta, o autor usa o termo América para se referir ao Brasil simplesmente. Em suma, por um lado, o significado aqui ainda é muito próximo ao do dicionário, Novo Mundo, continente americano, porém, a essa unidade geográfica é associada uma finalidade política comum que é a da conquista da liberdade frente à Europa.

Deve-se ressaltar, contudo, que os exemplos da Conju-ração Mineira e da carta de Maia são marginais ao debate político que se travava na capital da colônia. É somente com a intensificação da agitação política durante o período de

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emancipação e construção do Estado nacional brasileiro, que vai de 1810 ao triunfo do regresso conservador no início dos anos 1840, que o termo América passa a ser empregado com mais frequência no debate público, integrado ao discurso de diferentes personagens da época. Além do termo América, a distinção entre a América do Norte, ou setentrional, referida aos Estados Unidos, e a “outra” América, chamada de América do Sul, meridional ou espanhola, também é de uso corrente.

Dependendo do lugar de onde se fala, essa América hispânica pode assumir significados diversos e, não raro, antagônicos. No discurso político dominante na Corte, que pretendia impor ao resto do país um projeto político de império centralizado e unificado, a América hispânica muitas vezes é identificada à república, à barbárie, à anar-quia e à fragmentação política, todos conceitos com forte conteúdo negativo. Já no discurso das províncias que defendiam projetos políticos divergentes e alternativos aos da Corte, como, por exemplo, Pernambuco, a América aparece com um significado positivo, identificada à repú-blica, ao federalismo e à liberdade.

Vejamos alguns exemplos desses vários lugares de enunciação. Frei Caneca, revolucionário pernambucano e um dos pensadores políticos mais combativos de seu tempo, representou, tanto pela sua atuação política intensa – parti-cipou da Revolução de 1817 e da Confederação do Equador em 1824 –, quanto pela sua escrita contundente, uma das mais importantes vozes de oposição ao projeto imperial hegemônico na Corte e ao que chamava de “absolutismo” do imperador. No Typhis Pernambucano, periódico editado por ele de dezembro de 1823 a agosto de 1824, a América aparece como a “quarta parte nova do mundo”, ou como

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sinônimo de “Novo Mundo”, identificada aos interesses dos “verdadeiros patriotas brasileiros” – os pernambucanos, por exemplo –, que se diferenciavam dos “europeus trans-plantados na América”, provavelmente os brasileiros da corte identificados por ele aos interesses absolutistas portugueses.12 Caneca não só chama o continente de “mãe amorosa”, por ter acolhido e beneficiado os europeus conquistadores, mas também identifica a América ao seu povo nativo, tratado por muitos “não como irmãos e com-patriotas”. Ao protestar veementemente contra a dissolução da Assembleia Constituinte pelo imperador, em 1823, o frei argumenta que com aquela atitude “inconstitucional e atentatória da soberania da nação” o Brasil se distanciava do resto da América.13 Ainda no Typhis, publica vários artigos de teor similar, inclusive um no qual exalta a máxima do presidente dos Estados Unidos, James Monroe – “a América para os americanos” –, por ver nela um manifesto contra a ameaça absolutista europeia à soberania do Brasil e das Américas. O modelo político americano vislumbrado por Caneca era o do sistema federativo dos Articles of Confederation e não o da Constituição Federal norte-americana de 1787, que para ele extinguira muitos dos direitos locais.14 Ou seja, para o autor e muitos de seus conterrâneos revolucionários, a América estava associada à liberdade local, federalismo e república, numa chave eminentemente positiva.

Se, por outro lado, focarmos os textos que circulavam no ambiente da Corte, um outro leque semântico se apre-senta. O Correio Braziliense, periódico mensal impresso em Londres de 1808 a 1822, contém outros exemplos fecundos do uso do termo. Esse impresso foi também a principal fonte de informação na América portuguesa

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acerca dos processos de independência das colônias da Espanha.15 Seu editor, Hipólito da Costa, era monarquista constitucional de influência britânica, inimigo do repu-blicanismo francês e franco defensor da independência do país. Hipólito publicava seu periódico com a firme intenção de influenciar o pensamento das elites locais da época, e foi em grande medida bem-sucedido, pois o Correio serviu de modelo para o jornalismo político que surgiu no país durante o período da independência.16 Em artigo de 1808, denominado “América”, Hipólito saúda a independência do México e examina a situação política do novo país frente às potências europeias: à França, des-crita como influência populista e ardilosa, e à Inglaterra, potência comercial. Os Estados Unidos da América são citados de passagem, somente como possível influência sobre o México.17 Em artigo de julho de 1809, comentando a independência do território de Buenos Aires, Hipólito faz uso abundante do termo América, sempre no sentido da totalidade do continente, do Novo Mundo, e pressagia sua independência inevitável da Europa em um curto espaço de tempo. Segundo o autor, por “prejuízos [preconceitos] e educação equivocada, os europeus erram ao tratar tais regiões como se estivessem em sua infância”.18 Em março de 1810, no texto denominado “América – a oportunidade da América”, o autor mostra preocupação com o destino republicano que os novos países americanos estavam escolhendo, condição que, segundo ele, se assemelhava muito à anarquia.19

No artigo “Estado político da América no fim de 1822”, publicado em dezembro do mesmo ano, Hipólito da Costa diferencia os Estados Unidos da América, “uma nação que se faz conspícua no mundo por seu poderio” e

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“uma potência que é inconquistável às forças européias”, das “outras seções da América”, as ex-colônias espanholas, “consideradas pelas potências européias como pequenas províncias em rebelião e não dignas de serem tratadas como nações independentes”. Ao exaltar a emancipação da América dos governos europeus a que estava sujeita, defende o seu direito à soberania e à liberdade como “um direito que sempre têm exercido todos os demais povos do mundo” e que foi reconhecido pela Europa em relação aos Estados Unidos. Ao colocar-se claramente em oposi-ção ao projeto de independência que pretendia manter a escravidão no Brasil, afirma:

Como estas revoluções da América são agora fundadas nos princípios da liberdade, claro está que fica sendo incompatível com a existência desses governos a conser-vação da escravatura. Assim vemos que todos os governos da América Espanhola, imitando o exemplo dos Estados Unidos, têm já proibido o comércio da escravatura da áfrica, como passo preliminar para a aniquilação total da escravidão; e o Brasil, pelas mesmas razões, há de necessariamente seguir a mesma linha de política; e eis aqui um bem de considerável magnitude, que procede não simplesmente da independência da América, mas dos princípios liberais em que se estribam os promotores dessa independência.20

Aqui o Brasil, apesar de vir a se tornar uma monarquia, aparece para ele identificado a uma América que representa a liberdade, a revolução, as “ideias do século” e a razão. Em suma, ainda que Hipólito rejeitasse o republicanismo da América hispânica, considerava digno de admiração seu exemplo de liberdade frente às potências europeias e sua determinação no tocante à abolição da escravidão.

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Posição similar é manifestada por José Bonifácio de Andrada e Silva, político e estadista de grande influência no período da independência, e defensor do regime da monarquia constitucional, uma solução política que evitava “os planos e astúcias secretas dos governos republicanos da América, por uma parte, e os da Santa Aliança da outra”. Se por um lado, Bonifácio afirma que “o Brasil quer ser livre; e tem o exemplo de todos os nascentes Estados que o rodeiam”, também deplora a opção pelos “amargos sacrifícios [do] ideal republicano”, que na experiência de nossos vizinhos se apresentava “anárquico e violento”.21 Nos dois últimos exemplos, notamos um alargamento semântico do conceito, que passa a expressar uma tensão entre o valor positivo da liberdade e a negatividade de seu abuso, ou excesso.

Já nos escritos de Paulino José Soares de Sousa, o visconde do Uruguai, um dos mais importantes represen-tantes do projeto de Estado nacional centrado na Corte, defensor da monarquia e da centralização, a América aparece identificada a valores negativos, representando a oposição à civilização encarnada pelo Império do Brasil. Uruguai também diferencia a América hispânica dos Estados Unidos. Com relação à primeira diz: “Tais são as repúblicas hispano-americanas. Têm organização política constantemente mutável. Quase não tem organização administrativa. Tudo é precário e depende do arbítrio dos chefes das revoluções.”22 Já os Estados Unidos da América são um “daqueles afortunados países onde o povo é homogêneo, geralmente ilustrado e moralizado, e onde a sua educação e hábitos o habilitam para se governar bem a si mesmo”.23 As duas Américas são herdeiras da Europa, mas de “Europas” diferentes:

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Há a Europa latina e a Europa teutônica. A Europa la-tina compreende os povos do meio-dia, entre os quais estão a França, a Espanha, a Itália e Portugal. A Europa teutônica, os povos continentais do Norte e a Inglaterra. A primeira católica, a segunda protestante. Nas línguas da primeira domina o latim, nas da segunda, o idioma germânico. Essas duas grandes diferenças, essas duas grandes divisões reproduziram-se na América descoberta e povoada pela Europa. A América meridional é, como a Europa meridional, latina e católica. A América do Norte é anglo-saxônia e protestante.24

A América meridional que vive, segundo Uruguai, na anarquia, na desordem, na instabilidade política e na barbárie, não deve ser o espelho da nação brasileira que se quer civilizada.

Como vemos nos exemplos acima, se tomado no plano aproximadamente sincrônico do momento da indepen-dência e de sua consolidação, o significado político do conceito de América variava entre a associação positiva com o conceito de liberdade à associação negativa ao exemplo de anarquia, desordem e instabilidade política das repúblicas hispano-americanas. No caso de Caneca e dos liberais exaltados, essa associação positiva se estendia a conceitos como autonomia, federalismo e, às vezes, república. Já os defensores da monarquia constitucional não raro expressavam em seu discurso as contradições decorrentes do inchaço semântico do conceito, por vezes louvando a liberdade americana e por outras deplorando o exemplo hispano-americano. Por fim, a rejeição da experiência republicana da América espanhola é domi-nante no discurso de defensores da centralização polí-tica, como Uruguai. A estigmatização das repúblicas da

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América espanhola presente, por exemplo, tanto no discurso dos liberais moderados quanto no discurso do Regressso fez com que os Estados Unidos da América fossem tomados cada vez mais como um caso singular, que, devido às diferenças de língua, religião e processo de colonização, podiam até ser admirados mas não deviam ser seguidos.

Já no plano diacrônico, além do sentido puramente geográfico, que permaneceu constante, podemos dizer que o conceito de América no início do período em questão (1750-1850) porta três significados principais: o de possessão colonial portuguesa, o de abundância e pro-messa de prosperidade e o de imaturidade, degeneração, insalubridade. Como podemos perceber, os termos dos últimos dois significados denotam traços marcantes de temporalização. Esse era basicamente o mapa semântico do conceito no período colonial, que começa a se enriquecer de tons políticos com o advento das independências dos Estados Unidos da América e das colônias espanholas, e o consequente uso desses exemplos por parte de atores colo-niais descontentes com o Império português. A associação da América como o valor da liberdade tornou-se comum a partir da primeira década do século xIx, ao mesmo tempo que a depreciação das experiências políticas das novas repúblicas da América espanhola rapidamente se converteu em tropo retórico daqueles que não desejavam o governo republicano no Brasil, ou seja, da parte dominante do espectro político brasileiro por toda a primeira metade do século xIx e além.

A simultaneidade entre a fundação de uma nova nação e a adoção de uma nova forma de governo, que parece ter sido fundamental na experiência política hispano- -americana, não se verificou no Brasil. A transformação

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da colônia em centro de fato do Império português, com a chegada de D. João VI em 1808, fez com que se alimentassem fortes desígnios de continuidade política, que conseguiram sufocar por muito tempo os projetos republicanos, federalistas e democráticos – esses frequentemente identificados com a América. Na verdade, o conceito de Brasil, de nação brasileira, parece ter absorvido em grande parte essa interpre-tação positiva do Novo Mundo, principalmente com o advento do romantismo, que se implanta com força a partir do Segundo Reinado (1840-1889). A imagem da nação brasileira moldada a partir daí se apresenta como um projeto civilizacional singular no Novo Mundo, que mistura elementos europeus, descartados no restante do continente, como a monarquia, com elementos nativos supostamente próprios.25

notas

1 KOSELLECK, 1996; RICHTER, 1995; LEHMANN; RICHTER, 1996.2 FERES JÚNIOR, 2005a, 2005b.3 VIEIRA, 1959, p. 74, 106, 132, 242.4 VIEIRA, 1959, p. 244.5 VIEIRA, 1959, p. 240.6 NEVES, 2003.7 VAINFAS, 2002.8 MARTINS, 2003.9 PROENçA FILHO, 1996, p. 1028.10 PROENçA FILHO, 1996, p. 1028-1029.11 BONAVIDES; AMARAL, 2002.12 CANECA; MELLO, 2001, p. 59.

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13 TYPHIS, 1º jan. 1824.14 MELLO, 2004.15 PIMENTA, 2003.16 LUSTOSA, 2000.17 LIMA SOBRINHO, 1977.18 LIMA SOBRINHO, 1977.19 LIMA SOBRINHO, 1977.20 LIMA SOBRINHO, 1977.21 BONIFáCIO; DOLHNIKOFF, 1998.22 URUGUAI; CARVALHO, 2002, p. 92.23 URUGUAI; CARVALHO, 2002, p. 491.24 URUGUAI; CARVALHO, 2002, p. 500-501.25 SCHWARCz, 1999.

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B e a t r i z C a t ã o C r u z S a n t o s B e r n a r d o F e r r e i r a

cidadão

Na língua portuguesa, bem como na espanhola, a pa-lavra cidadão tem uma significação mui particular, ela designava o morador ou vizinho de uma cidade. Sabe-se que pelo direito feudal as povoações, segundo que eram cidades, vilas ou lugares, tinham assim diferentes direitos, gozavam certos privilégios, liberdades, isenções (...) [O cidadão], por isso, gozava diferentes direitos que não se entendiam a todos os membros da sociedade; (...) isto porém acabou.1

Este discurso de Pedro Araújo Lima na Assembleia Constituinte de 1823 faz parte do debate sobre o artigo do projeto de constituição que definia quem eram os brasilei-ros. O artigo foi objeto de uma discussão acalorada, pois, no momento em que o deputado faz o seu discurso, não só a palavra cidadão assumia um novo significado, mas a

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própria ideia de brasileiro era nova. Entretanto, na edição de 1823 do Diccionario da lingua portugueza, as mudanças apontadas por Araújo Lima permaneciam ignoradas. O cidadão era “o homem que goza dos direitos de alguma cidade, das isenções, e privilégios, que se contêm no seu fo-ral, posturas”, ou “o vizinho de alguma cidade”, ou, ainda, o “homem bom”. No Novo diccionario critico e etymologico da lingua portugueza, de 1836, cidadão é alguém “apto para os cargos municipais”. Todas estas definições pertencem a um quadro de referência de fundo hierárquico, que, aos olhos de Araújo Lima, havia ficado para trás. Não por acaso, na sequência da sua fala, ele insistia que “deve ser extensa esta denominação [de cidadão] a todos os indivíduos, porque seria odioso que conservássemos uma diferença, que traz sua origem de tempos tão bárbaros”.2

Entre o final do período colonial e as décadas iniciais do Brasil independente, o vocábulo cidadão sofreu trans-formações no seu significado cujo resultado foi o estabe-lecimento de um conceito novo. Sob alguns aspectos, essas transformações são tributárias dos rumos assumidos pelo conceito de cidadão na história europeia. Isso implicou a passagem de uma compreensão hierárquica da cidadania para um entendimento igualitário. Nesse sentido, a his-tória do conceito de cidadão no Brasil, entre 1750 e 1850 acompanha e atualiza a sua trajetória no mundo europeu. No entanto, a separação que o constituinte estabelece entre dois tempos claramente distintos precisa ser matizada. Para que a natureza das transformações mencionadas possa ser apreendida na sua complexidade, é preciso associá-la a dois outros aspectos sem os quais o quadro permaneceria incompleto e simplificado. Referimo-nos ao papel que o conceito irá desempenhar na definição das fronteiras de

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pertencimento à coletividade em uma sociedade marcada, por um lado, pela sua condição colonial e, por outro, pela permanência de relações escravistas.

Quando Araújo Lima fazia o seu discurso na Cons-tituinte, ele punha em evidência uma associação muito comum no Antigo Regime português. A condição de ci-dadão e a de vizinho não raro se confundiam. Em ambos os casos, estava em jogo um estatuto jurídico-político que definia o pertencimento de um indivíduo à comunidade local em termos de privilégios, deveres, isenções, costumes. Portanto, ainda que nos diferentes dicionários o cidadão e o vizinho apareçam vinculados à habitação mais ou me-nos permanente em um lugar, esta é apenas uma parte da definição. A vizinhança, como pode se ler em Ordenaçoens do Senhor Rey D. Manuel (1514-1521), estava associada ao gozo de “privilégios e liberdades de vizinho, quanto a ser isento de pagar os direitos reais, de que, por bem de alguns forais e privilégios dados a alguns lugares, os vizinhos são isentos”.3 O estatuto do vizinho é inseparável de um “di-reito de vizinhança”,4 que distingue uma comunidade local como um corpo privilegiado. As prerrogativas do vizinho se referem em primeiro lugar a esse corpo privilegiado e é como membro do grupo, e não a título subjetivo, que o indivíduo desfruta delas.

Segundo o jurista português Pascoal José de Melo Freire, no livro Instituições de direito civil português, de 1789, entre a cidadania e a vizinhança seria possível estabelecer uma diferença, já que os direitos do cidadão teriam um alcance maior do que os referentes aos vizinhos, fundamentalmente dirigidos ao âmbito municipal.5 A despeito dessa provável diferença, importa salientar que os dois estatutos remetem a uma mesma lógica concreta e particularista, segundo a

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qual a integração do indivíduo a res publica é concebida em termos de uma diferença baseada em privilégios. De maneira geral, o estatuto de cidadão se refere a um con-junto de prerrogativas, que está vinculado aos cargos da administração local, principalmente da câmara. O cida-dão é o “homem bom”, que se distingue dos demais por uma posição superior, garantida pela hereditariedade ou alcançada por mecanismos de enobrecimento. Assim, a definição de cidadão, embora não se confunda com a de nobreza, se aproxima dela, identificando-se a uma série de marcas que distinguem aqueles que buscavam ser reconhecidos como os “principais da terra” ou os “homens principais”.6 Na sociedade colonial, o estatuto de cidadão tem, entre outros pré-requisitos, a ideia da “pureza de sangue” – ou seja, a ausência da mácula que contamina a descendência das “raças infectas”, judeus, mouros, negros, indígenas, ciganos7 – e a inexistência de qualquer “defeito mecânico” – isto é, de qualquer vínculo com atividades manuais, os ofícios mecânicos.8 Nesse contexto, cidadão e povo são noções diversas. Em uma representação de 1748 do Senado da Câmara da cidade do Rio de Janeiro sobre a procissão de Corpus Christi, os vereadores cobram a presença dos “Cidadãos”, da “Religião” (ordens religiosas), das “Irmandades e Confrarias” e do “mais Povo”.9 O povo aqui não se confunde com o conjunto dos cidadãos, mas designa os ofícios mecânicos (artesãos), que exerciam fun-ção simbólica relevante nas cerimônias régias e que haviam tido participação política por um certo período de tempo em algumas cidades do reino e da América portuguesa.10

Na verdade, essas noções de cidadão e de vizinho têm que ser compreendidas no horizonte das concepções

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corporativas que marcaram as representações teológico- -políticas da sociedade e da monarquia portuguesa no Antigo Regime. Para tais concepções, a hierarquia social era pensada como a expressão de uma ordem mais geral do mundo, na qual cada coisa encontra a sua razão de ser no desempenho de uma função e na ocupação de um lugar que lhe são próprios. O todo é o resultado da articulação entre as suas diferentes partes, cada uma cumprindo o papel que lhe compete em vista do bem comum. Em termos das relações políticas, a perspectiva corporativa impõe o reconhecimento de uma organização da vida coletiva que precede a vontade humana e que requer a preservação da autonomia e da diferença dos corpos sociais em relação à sua cabeça, o rei. Este último tem como principal incumbência a preservação da harmonia do todo através da realização da justiça, entendida como a atribuição a cada qual daquilo que lhe compete.11 Esta compreensão de origem medieval será reatualizada na época moderna com a difusão no mundo português das doutrinas políticas corporativas da Segunda Escolástica, cuja influência se manteve na América portuguesa até o final do século xVIII, resistindo aos esforços de reforma empreendidos pela Ilustração. Para os autores da Segunda Escolástica, a ordem política apresenta um duplo caráter: ela decorre de uma ordenação natural das coisas que escapa ao arbítrio humano; simultaneamente, é pactuada, porque resulta da transferência ao governante de direitos que residiam originariamente nos corpos da República.12

Nesse quadro, a ideia de constituição remete, em pri-meiro lugar, a uma estruturação natural da sociedade, antes de ser o resultado de um ato de vontade dos cidadãos de

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um Estado. A precedência da constituição e do direito sobre a livre escolha dos membros da coletividade está na base do estatuto do cidadão. Este último é inseparável da ideia de que a comunidade política é produto da articula-ção entre corpos sociais que são por natureza diversos e desiguais em direitos. Por isso, a constituição é a condição dos pactos dos quais os cidadãos tomam parte, e não o oposto.13 Da mesma forma, as palavras nação e pátria não eram portadoras de um significado político vinculado à ideia de direitos à cidadania. A pátria, em geral, designava o lugar de origem dentro dos domínios portugueses.14 Nação, quando compreendida em termos políticos, era, antes de tudo, a “nação portuguesa”, sinônimo de Estado português e, portanto, expressão de uma unidade que se imaginava resultante da submissão e da fidelidade de todos os súditos à monarquia.15

No contexto do Antigo Regime português e da socie-dade colonial das décadas iniciais do século xVIII, o esta-tuto de cidadão apresenta-se como o resultado de uma concepção partilhada do poder, segundo a qual o exercício do governo local é compreendido como uma prerrogativa de alguns corpos sociais e indivíduos e, ao mesmo tempo, como um serviço cuja merecida contrapartida deveria ser a ampliação dos privilégios. Sendo assim, não é de se espantar que, em 1655, os oficiais da câmara da cidade de São Luiz do Maranhão demandassem junto ao rei os mesmos privilégios que distinguiam os cidadãos da cidade do Porto desde 1490. Tampouco surpreende que o rei atendesse à reivindicação, alegando que o fazia em retri-buição aos serviços prestados pelos súditos fiéis e na expectativa de que a fidelidade já demonstrada viesse a se renovar.16 Como o estatuto do cidadão pressupõe o

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reconhecimento prévio de uma determinada ordem da vida social, toda disputa em torno dele se dá dentro de limites muito precisos, que são aqueles colocados pela própria compreensão hierárquica e, por extensão corpo-rativa e estamental, da sociedade. É possível disputar sobre os critérios de acesso aos privilégios que definem a cida-dania, mas não sobre a sua condição privilegiada.

Ao longo do século xVIII, esse quadro tendeu a se transformar como resultado da incorporação de uma linguagem referida a um novo sujeito do direito: o indi-víduo. Tal fato foi o produto da difusão de duas retóricas nem sempre convergentes, ainda que ambas tributárias do jusnaturalismo moderno: a retórica igualitária dos di-reitos subjetivos e a da soberania popular. A repercussão no ultramar do ideário das Luzes, da independência das colônias inglesas e da Revolução Francesa foi a principal responsável pela assimilação dessas novas retóricas. No entanto, a acolhida das novas ideias no mundo português se deu dentro de limites muito claros, buscando conciliar a preservação de estruturas sociais e políticas do Antigo Regime e um programa de reformas modernizantes ins-pirado no racionalismo do século xVIII. Além disso, a vigilância e a censura sobre as noções que se chocavam com as instituições da monarquia e a proibição das tipografias na América portuguesa impunham limites à circulação da palavra impressa. A disseminação de novas ideias ocorria sobretudo por intermédio de alguns impressos, manus-critos e pela comunicação oral e não sob a forma de uma reflexão de cunho mais sistemático e livresco. A formação de um novo conceito de cidadania será essencialmente clandestina e ganhará a luz do dia com as vestes da sedi-ção, nos movimentos de contestação da ordem colonial

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que ocorrerão nos anos finais do século xVIII e início do xIx. Portadores de projetos políticos distintos e, muitas vezes, marcados por diferenças internas, alguns desses movimentos trouxeram a público noções que punham em questão a ordem do Antigo Regime e, com ela, a concepção hierárquica e estamental da cidadania.

A Conjuração Baiana de 1798 é, nesse sentido, exem-plar. Expressão da crise do Antigo Regime, ela foi um episódio cujo alcance permaneceu pontual e localizado. No entanto, permite vislumbrar desdobramentos possí-veis da assimilação na sociedade escravista de uma ideia de cidadão como titular de direitos de caráter igualitário. Projeto abortado de revolução contra o que se designava como o “despotismo” e a “tirania” da Coroa portuguesa, a Conjuração Baiana de 1798 tem entre seus traços distinti-vos a assimilação do ideário da Revolução Francesa. Como proclamavam os pasquins afixados nas ruas da cidade de Salvador, seria chegada a hora dos “homens cidadãos”, dos “povos curvados e abandonados pelo rei” levantarem “a sagrada bandeira da liberdade”.17 Ao incorporar o ideário francês, o discurso dos conjurados atingia as bases esta-mentais da sociedade colonial e as concepções de direito que lhe eram próprias e, ao mesmo tempo, transformava a igualdade de direitos em condição de pertencimento à comunidade política. Na nova ordem, as distinções de estatuto entre os homens livres seriam abolidas e o governo seria a expressão da soberania do povo. Como observava outro pasquim dirigido ao “poderoso e magnífico povo bahinense republicano”, “será maldito da sociedade nacio-nal todo aquele ou aquela que for inconfidente à liberdade coerente ao homem”.18 Dessa forma, em movimento similar ao que se verificava contemporaneamente na América do

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Norte e na Europa, a legitimidade do exercício do poder se transferia do trono para o povo. Compreendido agora como um conjunto de indivíduos juridicamente iguais, o povo deixava de ser uma das ordens da sociedade para se transformar no titular dos direitos de soberania: é o povo que, na linguagem dos pasquins, “quer”, “manda”, “ordena” fazer uma revolução, abrir os portos, elevar a remuneração dos soldados, criar um “novo código”, punir os oponentes do movimento.19 Se a nação no vocabulário político dos insurgentes continua a ser sinônimo de Estado, ela já não se identifica mais com a unidade da Coroa, mas remete à vontade coletiva do povo.20

Na Conjuração Baiana, a noção de “liberdade coerente ao homem” e a concepção abstrata de direito que lhe é correspondente encontraram expressão em uma expecta-tiva de eliminação das distinções fundadas nas diferenças de cor. Como antecipava um pasquim: “Cada um soldado é cidadão, mormente os homens pardos e pretos que vivem escornados e abandonados, todos serão iguais, não haverá diferença, só haverá liberdade, igualdade e fraternidade.”21 A abolição da escravidão não figurava entre as reivindica-ções dos revoltosos, apesar de ter sido vocalizada por alguns deles. Ainda assim, a bandeira de uma cidadania que eliminasse as diferenças de cor trazia consigo um potencial de questionamento não só das desigualdades estamentais e dos estatutos de pureza de sangue a elas associados, mas também da própria ordem escravocrata. Esta ameaça, no final do século xVIII, ganhava contornos ainda mais nítidos em função das notícias da rebelião de escravos iniciada em 1791 na colônia espanhola de São Domingos.

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A possibilidade – entrevista na Conjuração Baiana e que se reproduzirá em outras ocasiões – de que o ideal de uma cidadania igualitária se disseminasse como uma demanda pela abolição das discriminações de cor e, em último caso, como um grande conflito social imprimirá uma tônica particular aos debates políticos sobre o conceito de cidadão que se inauguram à época da independência. As controvérsias em torno da amplitude dos direitos de cidadania ocorridas na Constituinte brasileira de 1823 são um momento importante desse debate.

A discussão na Constituinte de 1823 está marcada pela necessidade que então se colocava de fundar um novo corpo político após a separação de Portugal. Dessa forma, a definição sobre o cidadão brasileiro implicou a determi-nação das fronteiras que separariam este último dos não- -cidadãos, isto é, de todos aqueles que não participariam do “pacto social” sobre o qual se fundava o Estado nascente. A linguagem é, em grandes linhas, a do jusnaturalismo moderno. A sociedade é criada pelos indivíduos tendo em vista a preservação dos seus direitos. Serão cidadãos aqueles que, por meio do seu consentimento, estabele-cerem um poder comum para a sua própria segurança e conservação. No entanto, a determinação da natureza do pacto social brasileiro se deparava com duas grandes difi-culdades. A instituição da nova ordem se dava a partir de uma secessão no interior da antiga “família portuguesa”: como diferenciar os cidadãos do Estado que se formava em relação aos membros do antigo reino português? Ou ainda: dado que até então todos eram igualmente membros da “nação portuguesa”, como distinguir a partir de agora brasileiros e portugueses? Além disso, uma outra questão

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se colocava: quais dos membros da sociedade brasileira poderiam ser considerados parte efetiva do pacto social?22 Nas palavras de um dos constituintes: “Por ser heterogê-nea a (...) população” brasileira, seria preciso diferenciar aqueles que poderiam reivindicar o título de cidadão dos demais, evitando “confundir as diferentes condições de homens por uma inexata enunciação”.23

Às vésperas do rompimento com Portugal, “brasileiro” não indicava uma identidade política diferenciada. Com efeito, “até o início de 1822, nascer brasileiro significava ‘ser português’; com isto designava-se apenas o local de nascimento dentro da nação portuguesa”.24 A palavra podia ser igualmente utilizada para apontar os que, nascidos em Portugal, tinham residência fixa ou interesses mais per-manentes no mundo americano.25 Em fevereiro de 1822, Hipólito José da Costa, no seu jornal Correio Braziliense, ainda acreditava ser necessário diferenciar “brasiliense” (“o natural do Brasil”), “brasileiro” (“o português europeu ou o estrangeiro que lá vai negociar ou estabelecer-se”) e “brasilianos” (“os indígenas do país”).26 Em 1823, nos debates da Constituinte, brasileiros e portugueses passam a ser concebidos como membros de nações diferentes. Em parte, essa distinção se baseará no critério da naturalidade, já que os cidadãos brasileiros se definirão, entre outras coisas, pelo fato de terem nascido no território da nova nação. Mais do que o critério da naturalidade, porém, será a adesão, tácita ou explícita, à causa da independência, isto é, o engajamento no novo pacto social, que, para os constituintes, estabelecerá a diferença entre brasileiros e portugueses. Ponto de vista semelhante fora defendido por Frei Caneca, em texto do início de 1822, publicado no

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ano seguinte. Segundo ele, “pátria não é tanto o lugar em que nascemos, quanto aquele em que fazemos uma parte e somos membros da sociedade”.27 Seria preciso distinguir a “pátria de lugar” (“efeito do puro acaso”) da “pátria de direito” (“ação do nosso arbítrio”).28 Esta, e não aquela, seria a verdadeira “pátria do cidadão”. De modo similar, dizia José Martiniano de Alencar na Constituinte, “é cidadão brasileiro tanto o nascido em Portugal como o nascido no Brasil, contanto que entrassem de princípio no novo pacto social”.29 No momento que se desenham os contornos do novo Estado, o que define o cidadão brasileiro é, em primeiro lugar, o seu consentimento.

O fato de que o português seja concebido como não- -cidadão, ainda que o converta em estrangeiro, não afeta o seu estatuto jurídico de homem livre. O mesmo já não se pode dizer quando foi preciso definir “para dentro”, e não mais “para fora”, as fronteiras da cidadania, separando as diferentes “condições de gente” que compunham a sociedade. Isso implicou uma tentativa de estabelecer uma distinção entre os que pactuariam para a formação da sociedade civil e os que não possuiriam títulos jurídicos para participar dela, os negros escravos e os índios. Daí a necessidade de diferenciar entre o brasileiro e o cidadão brasileiro. Nos termos do deputado Francisco Carneiro de Campos:

O nosso intento é determinar quais são os cidadãos brasileiros e, estando entendido quem eles são, os outros poder-se-iam chamar simplesmente brasileiros, a serem nascidos no país, como escravos crioulos, os indígenas, etc., mas a constituição não se encarregou desses, porque não entram no pacto social: vivem no meio da sociedade civil, mas não fazem parte dela.30

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Os índios estariam excluídos, porque, embora livres e nascidos no país, sequer reconheceriam a existência da nação brasileira e de suas autoridades, vivendo inclusive em “guerra aberta” contra elas.31 Já os escravos, nascidos ou não no Brasil, a sua situação é outra, uma vez que o seu estatuto de não-cidadão será pensado com referência a uma condição jurídica precisa: o fato de que não são donos de si mesmos, o seu estado de privação de liberdade. Os escravos, observava Francisco Gê Acaiaba Montezuma, em relação “ao exercício de direitos na sociedade, são consi-derados coisa, ou propriedade de alguém”. O seu estatuto jurídico os tornava incapazes de serem membros da socie-dade civil brasileira, pois, como insistia Montezuma, “este nome só pode competir, e só tem competido a homens livres”.32 Dessa forma, se estabelece uma clara demarcação entre cidadãos – que por serem livres podem reivindicar a “qualidade de pessoa civil”33 – e os escravos – que, mesmo quando naturais do país, não são livres e não são senhores da sua própria vontade, não podem tomar parte do pacto social, “não passam de habitantes no Brasil”.34

Havia, no entanto, uma condição adicional de homens em relação à qual o estatuto de cidadão precisou ser defi-nido. Uma condição ambígua, já que livre, natural do país, habitante do seu território, integrada à ordem política do Império e, no entanto, marcada pela condição servil: os escravos libertos. O lugar dos libertos no interior da sociedade política colocava no centro do debate a questão sobre a amplitude tolerável de uma noção de direitos de cidadania baseada na ideia de uma “liberdade coerente ao homem”. Em outros termos, dada a continuidade da ordem escravista, qual o grau aceitável de abstração do conceito de cidadão em relação às desigualdades que organizavam

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a vida social? Ou ainda: em uma sociedade marcada por um passado recente de institucionalização de privilégios de sangue e de cor e na qual condições sociais se entrelaçam a matrizes raciais,35 até que ponto seria possível estender a igualdade jurídica entre seus membros?

Nas outras sociedades escravistas da América, a ten-tativa de conciliar continuidade da escravidão africana e concepção universalista da cidadania levou a uma exclusão dos negros e seus descendentes, fossem eles cativos ou livres, baseada em critérios de desigualdade racial.36 Com isso, se buscava preservar não só a escravidão, fundando-a sobre bases raciais, mas também as premissas individua-listas do conceito de cidadão, tornando a universalidade dos direitos compatível com a sua simultânea restrição. No século xIx, portanto, “raça e cidadania são duas noções construídas de forma interligada no continente america-no”.37 No Brasil, essa associação não se verificou. A noção de raça só ganhará difusão mais ampla na segunda metade do século, em um momento posterior à definição das bases constitucionais da cidadania. Ao mesmo tempo, a ordem constitucional inaugurada em 1824 será mais inclusiva do que no restante das sociedades escravistas da América.

Na Assembleia Constituinte de 1823, foi consenso que o liberto deveria ser um cidadão do Império, já que, nas palavras de um deputado, com a liberdade se “restabelece o direito natural”.38 A divergência ficou por conta de saber se os direitos de cidadão – mais precisamente, os direitos civis – deveriam ser estendidos aos libertos africanos e brasileiros ou exclusivamente aos nascidos no país. A Constituição outorgada de 1824 consagrou o ponto de vista mais restritivo e, além disso, impediu que os libertos participassem de uma das etapas do processo eleitoral. De

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qualquer forma, a solução oferecida pela Carta permanecia comparativamente inclusiva. A defesa de uma concepção extensiva da cidadania partia do reconhecimento de que “haveria grandes ciúmes, e desgostos, se uma classe de brasileiros acreditasse que este título se queria fazer priva-tivo a outra classe”.39 Por isso, dizia Venâncio Henriques de Resende na Constituinte, seria preciso “neutralizar (...) o veneno” da “aversão” entre libertos e brancos, assegurando que os primeiros “tivessem o interesse em ligar-se a nós pelos foros de cidadão”.40

A natureza inclusiva do conceito de cidadania consa-grado na Constituição foi, portanto, o resultado da tenta-tiva de preservação do escravismo. Até certo ponto, ela respondia a uma expectativa de equiparação jurídica e de igualdade de direitos independente da cor expressos “em todas as ocasiões em que a participação popular se fez presente no processo de independência política”.41 Dado o peso numérico da população de negros e mestiços livres (algo em torno de 30% do total da população), ignorar essa demanda era, como reconheciam os próprios constituintes, pôr em risco a ordem escravocrata.42 Assim, na questão dos direitos dos libertos – e, por extensão, daqueles que eram brasileiros, livres, porém negros ou mestiços –, o conceito de cidadão se viu estreitamente associado ao problema da “segurança pública”.43 Este será um tema do debate político na década de 1830, no qual adversários aludem ao risco da desordem social, mobilizando argumentos simétricos: ou a implementação efetiva da igualdade de direitos civis estabelecida na Constituição seria capaz de conter a insatisfação com as desigualdades de cor e de raça entre os livres; ou o apego excessivo a uma noção abstrata de cidadania seria uma incitação à revolta de negros e

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mestiços contra os brancos. A simetria dos pontos de vista remete, no entanto, a um mesmo pano de fundo: a tensão entre o novo conceito de cidadania consagrado na Constituição e a continuidade das relações escravistas.

No debate político dos anos 1830 e 1840, duas respos-tas opostas e polares buscam fazer face a essa tensão. Em linhas gerais, elas foram expressão do antagonismo entre liberais e conservadores e encontraram na Constituição de 1824 o quadro de referência da sua argumentação.44 Desde os debates da Constituinte, a discussão sobre a igualdade jurídica se restringia à esfera dos direitos civis. Como observava Pedro Araújo Lima, “a palavra cidadão não induz igualdade de direitos”.45 A Constituição outorgada consagrará esse ponto de vista. Segundo Pimenta Bueno, principal comentador da Constituição imperial, os direi-tos políticos seriam um atributo daqueles que, além de membros da “sociedade civil ou nacional”, participariam da “ordem ou sociedade política”.46 No debate político brasileiro do século xIx, a diferenciação entre cidadãos portadores de direitos políticos e aqueles apenas titulares de direitos civis será elaborada a partir da distinção entre cidadão ativo e passivo, originária do constitucionalismo francês. O primeiro, nos diz Pimenta Bueno, desfruta de uma liberdade relativa a “tudo quanto não lhe é proibido pela lei”; já o segundo possui a liberdade política que “decreta essa lei”.47 O exercício dos direitos políticos, diz o mesmo autor, seria “uma importante função social”, antes de ser “um direito individual ou natural”. Para possuir tais direitos, seria preciso “oferecer à sociedade certas garantias indispensáveis”,48 sob a forma de “capacidades e habilitações”.49

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Na Constituição de 1824, a diferenciação entre cida-dão ativo e passivo foi instituída com base em critérios censitários, que também estabeleciam diferentes graus no exercício dos direitos políticos. Nos debates políticos dos anos 1830 e 1840, o princípio que sustentava os critérios censitários da Constituição – a ideia de que a propriedade é a condição para o exercício independente dos direitos políticos – não será, em linhas gerais, questionado. No entanto, duas alternativas opostas serão derivadas do texto constitucional, visando conciliar escravidão e cidadania. Do ponto de vista dos liberais, as qualificações censitárias não negariam a igualdade fundamental dos cidadãos perante a lei, apenas estabeleceriam distinções fundadas em critérios adquiridos, e não herdados. Nesse sentido, o acesso aos direitos políticos dependeria apenas dos talentos individuais. A escravidão estaria justificada pelo direito de propriedade e não por quaisquer diferenças qualitativas entre os indivíduos. Não haveria razão, portanto, para a existência de categorias intermediárias entre os cidadãos e os escravos.50 Como afirmava um jornal radical dos anos 1830, “entre nós não há mais do que povo e escravos; e quem não é povo já se sabe que é cativo”.51 Entre os con-servadores – “partido” que se torna hegemônico a partir da década de 1840 –, prevalecerá a ideia de que seria preciso demarcar as diferenças entre os membros da sociedade, atualizando e legitimando na nova ordem as prerrogativas que haviam organizado o Antigo Regime português. A preservação da ordem escravocrata se torna sinônima da conservação e reprodução de hierarquias tradicionais, que podiam ser lidas agora à luz das exigências censitárias do texto constitucional. Dessa forma, a associação entre cidadania, liberdade e propriedade se torna a referência

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das desigualdades que deveriam existir entre livres e pro-prietários (os cidadãos ativos), livres e não-proprietários (os cidadãos passivos) e não-livres e não-proprietários (os não-cidadãos).52

notas

1 DAC, 24/09/1823, p. 106.2 DAC, 24/09/1823, p. 106.3 ORDENAçOENS, Livro II, Título xxI.4 FREIRE, 1789, Livro II, Título II, § 7.5 Cf. FREIRE, 1789, Livro II, Título II, § 5.6 BICALHO, 2003, p. 146.7 CARNEIRO, 2005.8 BICALHO, 2003, p. 143.9 Apud SANTOS, 2005, p. 114.10 SCHWARTz, 2004; SANTOS, 2005.11 HESPANHA; xAVIER, [s.d.], p. 122-125.12 HESPANHA, 2000; HESPANHA; xAVIER, [s.d.], p. 127-133.13 HESPANHA; xAVIER, [s.d.], p. 122-125; HESPANHA, 2000.14 BERBEL, 2003, p. 348.15 JANCSÓ; PIMENTA, 2000; CHIARAMONTE, 2003.16 Cf. Alvará de 15 de Abril de 1655. In: ANDRADE E SILVA, 1856,

p. 226.17 MATTOSO, 1969, p. 149.18 MATTOSO, 1969, p. 155-156.19 MATTOSO, 1969, p. 158-159.20 JANCSÓ; PIMENTA, 2000, p. 147.21 MATTOSO, 1969, p. 157.22 Cf. SLEMIAN, 2005.23 DAC, 23/09/1823, p. 90.

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24 RIBEIRO, 2002, p. 46.25 RIBEIRO, 2002, p. 46.26 Apud PIMENTA, 2006, p. 78-79.27 CANECA, 1823, p. 98.28 CANECA, 1823, p. 80.29 DAC, 26/09/1823, p. 118.30 DAC, 24/09/1823, p. 106.31 Cf. DAC, 23/09/1823, p. 90.32 DAC, 23/09/1823, p. 90.33 DAC, 30/09/1823, p. 106.34 DAC, 23/09/1823, p. 135.35 Cf. MATTOS, 1987, p. 113; GRINBERG, 2002, p. 184.36 Cf. MATTOS, 2000; BERBEL; MARQUESE, 2006.37 MATTOS, 2000, p. 13.38 DAC, 30/09/1823, p. 136.39 DAC, 23/09/1823, p. 93.40 DAC, 30/09/1823, p. 139.41 MATTOS, 2000, p. 22.42 MATTOS, 2000; MARQUESE, 2006; BERBEL; MARQUESE, 2006.43 DAC, 30/09/2006, p. 136, 138.44 Cf. MATTOS, 2000, p. 33-35.45 DAC, 24/09/1823, p. 106.46 BUENO, 1857, p. 526.47 BUENO, 1857, p. 550.48 BUENO, 1857, p. 553.49 BUENO, 1857, p. 551.50 MATTOS, 2000; GRINBERG, 2002.51 Apud BASILE, 2004, p. 165.52 GONçALVES; MATTOS, 1991, p. 17-18.

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Lú c ia M . Bas t o s P e re i r a das Nev e s Gu i l h e r m e P e re i r a das Nev e s

constituição

Se a análise de um conceito consiste em distinguir “as diversas significações que estão vivas na língua, mas que obtêm uma determinação mais restrita em cada contexto do discurso”,1 compreender o significado do termo cons-tituição, no mundo luso-brasileiro da segunda metade do século xVIII em diante, pressupõe um recuo temporal até a Restauração de 1640, momento de refundação da monarquia portuguesa.2 Rompido o pacto estabelecido nas Cortes de Tomar de 1580 com Felipe II de Espanha, coube à nação portuguesa em 1640 o direito de aclamar um novo soberano, ato insurrecional legitimado pela reunião em Cortes, nas quais o duque de Bragança viu-se aclamado como D. João IV (1640-1656).3 Realização máxima de uma reflexão sobre o poder e a sociedade com profundas raízes nos séculos anteriores,4 a que não eram estranhas certas

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vertentes da segunda escolástica dos jesuítas, que apoia-ram o movimento, a Restauração de 1640 surge, portanto, associada à linguagem de um constitucionalismo antigo.

Ao longo do século seguinte, tal concepção não desapa-receu, mas passou a sofrer a concorrência de outra. Numa Europa de monarquias compósitas,5 de que o Sacro Império Romano de Nação Germânica constituía o modelo por excelência,6 após a superação das guerras religiosas a partir da Paz de Vestfália (1648), a sobrevivência no tabuleiro de poder europeu tornou-se cada vez mais dependente de um certo reforço do poder do rei e de uma certa uniformização do território, a partir do centro, às custas das liberdades de cada corpo, na periferia. Ao mesmo tempo, à antiga ideia de pacto, substituíam-se agora os imprescritíveis direitos do soberano, até mesmo diante da Igreja, sob a forma de uma razão de Estado,7 vazada em argumentos e atitudes bem distantes dos princípios cristãos. Esta foi a linguagem do absolutismo, que, ao reservar para o soberano o domínio da política, relegou as questões morais para o foro íntimo do indivíduo, estabelecendo uma divisão entre homem e súdito.8

No caso português, a crise constitucional que conduziu D. Pedro II ao trono, em 1683, a reunião das últimas cortes em 1697, o esplendor barroco do reinado de D. João V (1706-1750), graças ao ouro do Brasil, e, mais que tudo, a longa governação de Sebastião José de Carvalho e Melo (1750-1777), marquês de Pombal, com a publicação da Dedução cronológica e analítica,9 marcaram as principais etapas da assimilação dessa linguagem absolutista. Não foram capazes, contudo, de sufocar a tradição do antigo constitucionalismo, embalsamado nas lembranças de 1640.

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Sob esse aspecto, a melhor evidência provém do embate em torno da proposta de um novo código de leis, travada no emblemático ano de 1789, entre o jurista Pascoal de Melo Freire e o canonista Antônio Ribeiro dos Santos. Este, com certeza, não podia ser acusado de “monarcômaco” e de “propagador de doutrinas populares, republicanas e sediciosas contra os príncipes”, como ocorreu com seu adversário. Na realidade, a evolução do pensamento polí-tico de Ribeiro dos Santos mostra que, se ele afastou-se crescentemente da órbita pombalina de um “absolutismo racionalista”, cujos fundamentos fora buscar em Grócio e Pufendorf, por intermédio de Heinecke, o fez em direção a uma concepção tradicionalista, escorada na história constitucional do reino, em busca de um novo “ordena-mento político e jurídico pela via das Cortes tradicionais”. Segundo ele, a

primeira, principal e mais importante obrigação de um ministro, que o príncipe põe à testa do governo, é manter a primeira lei constitucional e fundamental de toda a sociedade civil, isto é, a da segurança pessoal e real dos cidadãos, que foi o porquê os homens se ajuntaram em sociedade.10

Ao contrário, para Melo Freire, o “reino não veio ao rei por eleição e vontade dos povos, mas por conquista e sucessão”. Nesse sentido, “o pacto social é um ente suposto, que só existe na cabeça e imaginação alambicada de alguns filósofos”, não havendo, entre o súdito e o monarca, senão a “eventual ‘humilde e modesta representação’ do primeiro ao segundo”. E acrescentava: “A História nos ensina, e agora experimenta a França, quão funestíssima foi em todos os

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tempos a liberdade de pensar e de escrever, assim a respeito das matérias da religião, como do Estado”, ideias que espalhadas “pela gente do povo” são capazes “por si só (...) de causar em poucos anos revolução, assim na religião, como na constituição da cidade”.11

Essas duas concepções permaneceram ativas e con-correntes praticamente ao longo de toda a regência do futuro D. João VI (1816-1826), iniciada em 1792, após o colapso mental de D. Maria I. Enquanto indivíduos como Rodrigo de Souza Coutinho (1755-1812)12 e J. J. de Azeredo Coutinho (1742-1821)13 davam continuidade ao impulso pombalino com propostas de reformas, setores da nobreza portuguesa e de outros segmentos manifestavam o receio do governo a “mero arbítrio” sobre o povo português, que trazia de volta o fantasma do despotismo ministerial.14 Num período de turbulência internacional, o resultado foi uma situação de grande instabilidade política no reino, para a qual a instalação da Corte na América, em 1808, trouxe novos motivos de descontentamento. Durante as invasões francesas de 1807-1811, D. João chegou a ser considerado traidor, sendo tanto solicitada a sua deposição, para que assumisse o príncipe D. Pedro, quanto a concessão da coroa a um nobre francês, designado por Napoleão.15 Mais cedo, nos penhascos das Minas Gerais, o cônego Vieira da Silva revelava, em seus depoimentos à devassa da chamada Inconfidência Mineira (1789), os ecos que trazia das con-cepções constitucionalistas que assimilara da leitura do conde de Ericeira (1632-1690); enquanto o ouvidor Tomás Antônio Gonzaga, igualmente implicado no movimento, ostentava em sua bagagem intelectual um Tratado de direito natural de inspiração pombalina e absolutista.16

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Em contraste com a riqueza que se escondia, assim, durante esse longo período, na ideia de constituição como “a unidade política de um povo”,17 a pobre tradição lexico-gráfica luso-brasileira pouco revela. No início do século xVIII, a palavra significava “um estatuto, uma regra”,18 na perspectiva de um ordenamento político, pautado nas leis fundamentais do reino, resultado das disposições legais e da prática do direito consuetudinário, corporificadas na “antiga constituição”, que deviam ser respeitadas pelo soberano. Em 1789, o dicionarista Antonio de Moraes Silva, ao reformular o vocabulário do padre Bluteau (1712-1727), não se afastou da visão de “estatuto, lei, regra civil ou eclesiástica”, embora acrescentasse a de “compleição do corpo”, que, além dos aspectos médicos, remetia para a concepção tradicional de uma sociedade corporativa, típica do Antigo Regime, mantendo tais significados nas edições seguintes, até sua morte, em 1824.19

Tais indicações sugerem, no entanto, com toda a probabili-dade, uma outra aplicação do vocábulo, em geral no plural, de uso mais largo e difundido na época. Constituições era termo corrente nos meios eclesiásticos para designar o conjunto de leis, preceitos e disposições que regula-vam uma instituição como seu estatuto orgânico. Como exemplo, sirvam as várias constituições diocesanas e, na América portuguesa, as célebres Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia, aprovadas em 1707 por monsenhor Monteiro da Vide, em um sínodo em Salvador, e que per-maneceram a principal legislação eclesiástica do país até meados do século xIx.20

Em fins do século xVIII ou princípios do xIx, com as revoluções atlânticas – a Independência dos Estados

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Unidos e a Revolução Francesa –, a essas acepções, veio juntar-se um outro sentido, que tendeu a se impor como o do constitucionalismo moderno. Constituição passou então a significar a garantia de direitos e deveres, estabe-lecidos por um novo pacto social, elaborado entre o rei e o indivíduo, símbolo da política moderna, na perspectiva de François-xavier Guerra.21 A constituição assumiu, assim, a forma de “um sistema fechado de normas” que designa uma unidade que não existe concretamente, mas apenas de maneira ideal.22

Não obstante, se “os conceitos são criações de nosso espírito, com cuja ajuda compreendemos o mundo que sai ao nosso encontro na experiência”,23 essa nova concepção de constituição somente ingressou no mundo luso-brasi-leiro após a eclosão do movimento do Porto de 1820, que repercutiu no Brasil, nos inícios de 1821. A espantosa quantidade de periódicos, folhetos políticos e panfletos postos em circulação nesse momento possibilitou novas discussões e inaugurou práticas políticas até então desconhe-cidas no Brasil. Mais do que obras de cunho teórico, foram esses escritos que acabaram por introduzir “palavras da moda”, como constituição, com novos significados, que anunciavam princípios, definiam direitos e deveres do cidadão. Somente a constituição, como instrumento de um ideário político, era vista como capaz de assegurar a possibilidade de triunfo das práticas liberais.24 Símbolo da Regeneração vintista iniciada em 1820, a palavra exprimia o anseio político de todos os membros das elites política e intelectual, tanto do Brasil quanto de Portugal. “Cortes e Constituição” foi o “grito dos portugueses”, que ecoou por todo o mundo luso e retumbou em terras brasileiras.25 E essa Constituição, a lei fundamental de um

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povo, devia ser elaborada por uma assembleia composta pelos representantes da nação – no caso, em Portugal, as Cortes Gerais e Extraordinárias de 1821 e, no Brasil, a Assembleia Legislativa e Constituinte de 1823.

A essa altura, o conceito de constituição inspirava-se em pelo menos quatro vertentes significativas: a de um constitucionalismo histórico; a de Montesquieu; a de Benjamin Constant; e a de uma versão democrática. A ideia da “excelente Constituição antiga de Portugal”, segundo expressão de Hipólito da Costa,26 foi retomada a partir das discussões do último quartel do século xVIII, definindo--se constituição enquanto um conjunto de instituições, criadas por direito comum no passado, mas que, corrom-pidas pelo tempo, exigiam reformas que as conduzissem de volta à antiga ordem, como os astros realizavam suas revoluções nas órbitas que lhes eram próprias. Defensor dessa abordagem em 1821, por exemplo, foi o ouvidor geral do Rio Grande do Sul, José Antônio de Miranda. Embora admitindo a construção de um novo pacto social como “o apoio da autoridade pública, o penhor da felicidade, a prosperidade geral e o paládio da liberdade de todos os Cidadãos”, que se traduzisse em uma constituição, ele não deixava de retomar a ideia do “antigo pacto social e aliança”, estabelecido pelo fundador da monarquia com o povo português e novamente ratificado por D. João VI e seu filho D. Pedro, no dia 26 de fevereiro de 1821, quando juraram a futura Constituição portuguesa.27 Da mesma forma, nas discussões da Assembleia Constituinte de 1823, José Joaquim Carneiro de Campos, um dos mais distin-tos juristas da época e um dos redatores da Constituição brasileira de 1824, defendia a ideia de que os poderes que os deputados receberam para elaborar a Constituição não

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eram “absolutos e ilimitados”, mas “restritos à forma de governo que já temos e que nos deve servir de base para a Constituição”, uma vez que tais poderes já estavam “dis-tribuídos e depositados pela nação em outras vias, muito tempo antes da nossa reunião e instalação”.28

Pautada nas ideias de Montesquieu, ou seja, no princí-pio da separação dos poderes, mas também influenciada pela perspectiva de um constitucionalismo histórico nos moldes de Edmund Burke, encontrava-se a visão de José da Silva Lisboa (1756-1835), futuro visconde de Cairu, redator de inúmeros folhetos e periódicos da época. Ele concebia a constituição como “a ata das leis fundamentais do Estado, em que se declara o sistema geral do governo sobre a divisão e harmonia dos três poderes”29 e em que também se definiam “os direitos dos cidadãos e regula-mentos dos deputados do povo para o corpo legislativo”.30 Aproximava-se, assim, muito mais da ideia de uma carta constitucional, como aquela que o conde de Palmela pro-pusera a D. João em dezembro de 1820.31 Algo semelhante pregava um folheto anônimo intitulado Diálogo instrutivo em que se explicam os fundamentos de uma Constituição. Este a considerava uma lei fundamental, que regulava a forma pela qual uma nação devia ser governada e esta-belecia “máximas gerais, a que todos deviam satisfazer”.32

A terceira vertente apropriava-se das propostas de Benjamin Constant e defendia a teoria das garantias indivi-duais, em oposição à visão de Rousseau e da interpretação jacobina de uma vontade geral.33 Encontra-se explicitamente no primeiro folheto político anunciado pela Gazeta do Rio de Janeiro (1821), a Constituição explicada, publicado sem autoria, cujo objetivo era esclarecer os leitores, em especial os das camadas mais baixas, quanto ao conceito

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de constituição e quanto ao de um governo organizado sobre bases constitucionais. Mencionando Benjamin Constant, logo no início, como um dos esteios de seu pen-samento, afirmava que “a Constituição não era um ato de hostilidade, mas um ato de união que determina as relações recíprocas do monarca e do povo, sancionando os meios de se defenderem e de se [apoiarem] e de se felicitarem mutuamente”.34

Finalmente, a vertente democrática. Uma vez que, no Rio de Janeiro, a palavra constituição, como “tantas outras, se tem tornado quase ininteligível, à força de acepções de que a maior parte são absolutamente diferentes, e algumas até contraditórias”, os redatores do Revérbero Constitucional Fluminense – Januário da Cunha Barbosa e Joaquim Gonçalves Ledo – decidiram determinar o sentido que devia ser dado à palavra. Para eles, a constituição de um povo não era uma “lei, nem um código de leis”, porque “o estabelecimento de uma lei ou de um código de leis supõe necessariamente alguma coisa anterior”. Assim, era necessário que o povo existisse e estivesse constituído, antes de se organizar; que os homens já tivessem se tornado “cidadãos por um pacto antes de se fazerem súditos pelo estabelecimento da lei”. Era necessário que uma convenção permanente e imutável assegurasse “a todos os membros do corpo político o exercício de seus direitos essenciais”.35 Conscientes da falta de unidade do povo brasileiro, os redatores temiam a imposição de uma lei geral que não resultasse do próprio povo. Logo, a constituição devia garantir uma lei justa, porém, flexível, capaz de impedir a supremacia do poder do monarca sobre os demais. De maneira ousada para o meio em que viviam, incluíam, por conseguinte, em suas reflexões, alguns princípios de teor democrático.

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Em Pernambuco, a mesma linha de pensamento estava presente em Frei Caneca, que definia a constituição, em 1824, como “a ata do pacto social que fazem entre si os homens, quando se ajuntam e associam para viver em reunião ou sociedade”, de modo a esclarecer as relações em que ficavam os que governam e os governados. Tais relações nada mais eram que os direitos e deveres que deviam defender e sustentar “a vida dos cidadãos, a sua liberdade e a sua propriedade”.36

Mais do que algum princípio democrático abstrato, no entanto, tais formulações ecoam, talvez, aquelas que John Locke (1632-1704) publicou no contexto da crise inglesa de 1688-1689. Conhecido no mundo luso-brasileiro pelo menos desde 1734, quando foi citado por Martinho de Pina e de Proença, em Apontamentos para a educação de um menino nobre, e tendo posteriormente servido, em 1746, de base para muitas das reflexões de Luís Antônio Vernei em o Verdadeiro método de estudar,37 não é difícil supor que também algo de os Dois tratados sobre o governo do autor inglês tenha alcançado a elite intelectual no Brasil da Inde-pendência. É verdade que, na época, os “grandes autores foram mal lidos, mal entendidos, mal citados, truncados, falsificados”.38 Apesar disso, não deixa de haver uma forte semelhança entre a constituição de que falam Ledo, Januário e Caneca e a concepção de Locke de que somente “ao povo é facultado designar a forma da sociedade política”,39 por meio daquele acordo ou pacto que, de maneira pouco definida, distingue a condição natural da condição política e que “torna possível governar por consentimento”.40

Além disso, embora sem chegar a constituir vertentes em termos de concepção, importa registrar dois outros tipos de escritos característicos desse momento. Em

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primeiro lugar, os satíricos. É o caso do Dicionário corcun-dativo, que, assumindo o ponto de vista dos corcundas, ou anticonstitucionais, definia a constituição como um “plano de desordem, inventado pelo espírito de seita na sua efervescência, e que o povo, não sei porque aplaude”. Achava-a desprezível por ter “começado debaixo para cima”, pois somente “os reis e seus ministros têm o poder, recebido do Céu, de mudar o governo, a que os outros homens devem obedecer cegamente, como um rebanho ao seu pastor”.41 Ao seu lado, porém, circulavam escritos intitulados “orações constitucionais”, que sugerem o pequeno grau de secularização e de amadurecimento político da maior parte da população. Sirva de exemplo, este “Padre Nosso”:

Constituição portuguesa, que estás em nossos corações, santificado seja o teu nome, venha a nós o teu regime constitucional (...) não nos deixes cair em tentação dos velhos abusos, mas livra-nos destes males, assim como do despotismo ministerial, ou anarquia popular. Amém.42

Nesses escritos de circunstâncias, a palavra constituição aparece frequentemente em expressões como constituição política, constituição da monarquia, constituição geral da nação e constituição brasílica. O procedimento de recorrer a essas qualificações parece indicar que o termo ainda não estava inteiramente assimilado, em sua acepção política, como o documento fundamental, o único fiador das ga-rantias da vida política e social. Não menos abundante mostrava-se a adjetivação positiva que a Constituição merecia: santa, sagrada, liberal, sábia, pacífica, feliz.43 O jornal A Malagueta afirmava que o Brasil tinha jurado “cooperar em tudo e por tudo para a grande obra da santa

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Constituição!”.44 Outros escritos davam vivas à religião e à feliz Constituição. No primeiro aniversário da Regeneração política, a oração de ação de graças proferida pelo cônego da Real Capela Francisco da Mãe dos Homens Carvalho, no Rio de Janeiro, sintetizou o poder mágico que a ideia de constituição parecia assumir nesse momento:

Constituição é a defesa do Estado, o apoio do trono, a escala da grandeza, a melhor herança do povo, o nível da perfeita igualdade cívica. Constituição é o código univer-sal da sociedade, a regra infalível da justiça, o Evangelho político da Nação, o compêndio de todas as obrigações, o manual cotidiano do cidadão.45

Em Portugal, a sensibilidade não se mostrava diversa:

Vem, pois, ó Santa Constituição, abençoada filha do Céu, único e verdadeiro remédio para o Reino de Portugal, Brasil e Algarves (...), desce do Céu, onde resides, vem fazer as delícias e a felicidade duma Nação, que teme a Deus, e que é objeto da sua singular predileção.46

Paralelamente, além do caso de O Constitucional (1822), o adjetivo, ao identificar uma opção política, associou-se ao título de inúmeros periódicos: Diário Constitucional (1822), Compilador Constitucional (1822), A Verdade Constitucional (1822), O Justiceiro Constitucional (1835), A Trombeta Constitucional (1840), entre outros.

Todas essas acepções do conceito de constituição e suas conotações, que as discussões da época trouxeram à luz, estiveram presentes, de algum modo, na elaboração da primeira Constituição brasileira. Após a dissolução da Assembleia Constituinte, em novembro de 1823, o

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imperador Pedro I justificou a medida de força por encontrar-se a pátria em perigo e, ao mesmo tempo, prometeu uma carta “duplicadamente mais liberal”. Elaborada pelo Conselho de Estado, presidido pelo próprio imperador e formado por seis ministros e mais quatro membros, todos brasileiros natos, a Constituição foi então outorgada em 25 de março de 1824.47

A Carta de 1824 não diferia muito da proposta discutida pelos constituintes na Assembleia, antes de sua dissolução. Continha, no entanto, uma diferença fundamental: não emanava da representação da nação, mas era concedida pela magnanimidade do soberano, o que a aproximava da Carta Constitucional francesa de Luís xVIII (França, 1814). Apesar disso, embora não tivesse sido submetida à aprovação de uma Assembleia Nacional, havia pelo menos alcançado a aprovação das Câmaras Municipais, sendo considerada até mesmo como “assaz liberal”, por alguns livros de História do Brasil, escritos em meados do século xIx, como os de José Inácio de Abreu e Lima (1845) e de Caetano Lopes de Moura (1860). No entanto, outras influências revelaram-se de maior peso, como a Consti-tuição francesa de 1791 e a espanhola de 1812. De modo semelhante a esta última, a brasileira não começava decla-rando direitos,48 como ficara estabelecido pelas revoluções do final do século xVIII, mas sim definindo o Império, com seu território, governo, dinastia e cidadãos. Em seu cerne, admitia um governo monárquico hereditário, cons-titucional e representativo (Artigo 3º), em que vigorava a separação dos poderes por força de uma nítida influência de Montesquieu, embora incluísse um quarto – o poder moderador, “chave mestra de toda a organização política”, que, em teoria, se inspirava em Benjamin Constant. Apesar

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de não fazer menção explícita à questão da soberania, fi-cava claro, por meio do Artigo 11, que esta era partilhada entre o soberano e a Assembleia Geral, o que indicava seu caráter moderado. Na perspectiva do liberalismo francês, encontrava-se ainda, no Artigo 179, um esboço de garantia dos direitos civis e políticos dos cidadãos, com base na liberdade, na segurança individual e na propriedade. Da mesma forma, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 ecoava no Artigo 16, em que se atribuía à Constituição a garantia dos direitos civis, e no Artigo 9º, em que a harmonia dos poderes políticos aparecia como o meio mais seguro para fazer efetivas as garantias que a Constituição oferecia. Apesar disso, os cidadãos distinguiam-se, do ponto de vista dos direitos políticos, por meio da adoção de um critério censitário para os eleitores, o que a diferenciava tanto da Constituição espanhola de Cádiz (Espanha, 1812), quanto da primeira Constituição portuguesa (Portugal, 1822). Por outro lado, se a Consti-tuição abolia os privilégios, mantinha intocada a questão da escravidão, embora a ela fizesse menções indiretas ao incluir os ingênuos ou libertos nascidos no Brasil como cidadãos, excluindo-os, porém, da definição de eleitores. Como sinal das permanências do Antigo Regime e elemento fundamental de identidade, a religião católica, como também estabelecia a Constituição espanhola, continuava sendo a religião do Império, ainda que, diferentemente, se permitisse o exercício privado de outras religiões.49

Pouco dessa variedade encontrou expressão nos dicio-nários da época. Na quinta edição, revista e ampliada, daquele de Moraes Silva, em 1844, introduziu-se no verbete constituição a ideia de “lei que determina a forma de governo do reino, ou República; os direitos e deveres,

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e relações dos súditos, e regentes, ou governantes”, fazendo uma alusão à Constituição da Inglaterra.50 Na edição se-guinte, de 1858, outra mudança no conceito inclui o sen-tido de um “corpo de leis fundamentais que constituem o governo de um povo”.51 Somente na edição de 1878, porém, faz-se menção à “carta fundamental da nação portuguesa outorgada por D. Pedro IV”.52 No trabalho de Luiz Maria da Silva Pinto, Diccionário da lingua brasileira, o termo aparece registrado de modo semelhante ao conceito antigo, existindo apenas um curioso detalhe em relação ao termo constitucional, que, para o autor, era o que “nasce do vício da constituição”. Outros dicionários que circularam no Brasil do Oitocentos, elaborados por portugueses, como os de Francisco Solano Constâncio e de Eduardo de Faria, anotaram mais cedo o sentido moderno de constituição: o primeiro, na edição de 1836, refere-se à Constituição dos Estados Unidos, da França, do Brasil e de Portugal, mas não indica qualquer distinção entre carta constitucional – outorgada – e constituição promulgada. Já Eduardo de Faria, em sua segunda edição, datada de 1850-1853, acrescentou que o termo designava o código político de um Estado, citando como exemplo a Constituição de 1822, promulgada pelas Cortes de Lisboa, e que diferenciava da Carta Constitucional da monarquia portuguesa, decretada em 1826. Em nenhum exemplo, encontra-se, contudo, uma definição mais afim ao pensamento liberal, como aquela registrada no Diccionario nacional o gran diccionario clá-sico de la lengua española (1846-1847), de Ramón Joaquín Domínguez; ou seja, “teoria e prática do governo das na-ções; reunião e força reguladora de suas leis fundamentais vigentes: a natureza, a essência, o todo de um estado”.

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Apesar das críticas dos políticos mais radicais, tanto pela forma como foi imposta, quanto por seu caráter liberal moderado e pela centralização administrativa que pressupunha, a Constituição outorgada de 1824 acabou considerada como código sagrado da nação brasileira. Com pequenas alterações – o Ato Adicional de 1834 e mudanças no processo eleitoral –, permaneceu em vigor durante todo o período imperial e somente foi substituída pela primeira Constituição republicana, em 1891.

Ao longo desse período, o debate a seu respeito, que envolveu juristas, deputados e senadores, não questionou a própria Constituição, mas, sim, o seu caráter fortemente unitário e a prática, que propiciava, de respaldar medi-das autoritárias. Não obstante, foi sobretudo a questão do unitarismo e do federalismo que colocou, diversas vezes, em lados opostos, conservadores e liberais, desde Frei Caneca e a Confederação do Equador de 1824.53 No outro extremo, ainda em 1870, Tavares Bastos, natural da província nordestina de Alagoas, manifestava-se a favor da “escola revolucionária de 1831”, que procurara descentralizar o governo e confederar as províncias por meio do Ato Adicional; criticava a política da ordem e mo-deração implementada após 1840; e advertia os possíveis leitores de sua obra A província de que “os que desejam a eternidade para as constituições e o progresso lento dos povos, os que são indulgentes, moderados, conciliadores, escusam folhear esse livro”.54 Em compensação, apenas três anos antes, sob a invocação da Santíssima Trindade, o desembargador Joaquim Rodrigues de Sousa publicava em São Luís do Maranhão uma obra intitulada Análise e comentário da Constituição política do Império do Brasil, em que criticava veementemente o Ato Adicional de 1834

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e ainda continuava a “definir constituição política, ou do corpo político, pelos mesmos termos por que define-se contituição humana, ou do corpo humano”.55 De maneira semelhante, mas com a antecedência de uma década, Pimenta Bueno, o autor do mais importante trabalho sobre a Constituição do Império, intitulado Direito público e análise da Constituição do Império, continuava a defender o modelo aprovado em 1824. Segundo ele, “nosso direito público é a sábia constituição que rege o Império; cada um de seus belos artigos é um complexo resumido dos mais luminosos princípios de direito público filosófico ou racional”. Continuava, no entanto, em 1857, a relacionar a Constituição com a religião: “Graças à Providência, temos uma Constituição, que já é uma das mais antigas do mundo, sábia, liberal e protetora (...) Ela será sempre, como já tem sido, nossa arca de aliança em nossas tempestades e perigos; é e será sempre a base firme de nosso poder.”56

Como resultado, a tomar-se a concepção de Marcel Gauchet, de que, mais do que um conjunto de crenças, a religião “é primordialmente uma organização do mundo humano-social, que assume a forma de uma ordem que mantém os homens juntos por força de uma ordem exte-rior, anterior e superior à vontade deles”, encontra-se talvez, após a incursão acima, uma explicação plausível para a dificuldade demonstrada por portugueses e brasileiros em lidar com a democracia, esse “poder dos homens tomando o lugar da ordem definida pelos deuses ou desejada por Deus”. Afinal, se “a democracia é a expressão por excelência da saída da religião”, o que a história do conceito de cons-tituição no mundo luso-brasileiro evidencia, considerada em sua longa duração, de 1640 ou 1750 a 1850 ou pouco depois, é justamente a falta de “ruptura com [esse] modo

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de estruturação religiosa a que esteve sujeito o conjunto das sociedades humanas anteriores à nossa”. Ou seja, a prevalência da heteronomia do universo tradicional sobre a autonomia do mundo moderno.57

notas

1 GADAMER, 2002, p. 248.2 Cf. BUESCU, 1991; MARQUES, 1965.3 Cf. FRANçA, 1997; TORGAL, 1982.4 BOUCHERON, 2005.5 ELLIOT, 1992.6 SCHRADER, 1998.7 MEINECKE, 1973.8 KOSELLECK, 1999, p. 26-39, em especial.9 SILVA, 1767.10 Apud PEREIRA, 1983, p. 244-250.11 Apud PEREIRA, 1983, p. 291-300. Cf. também CUNHA, 2000;

NEVES, 2001; HESPANHA, 2004, p. 34-43; MESQUITA, 2006, p. 26-38.

12 Cf. SILVA, 2002-2006.13 Cf. HOLANDA, 1966.14 ALORNA, 1803.15 NEVES, 2002.16 VILLALTA, 1999; GOMES, 2004.17 SCHMITT, 2006, p. 29.18 BLUTEAU, 1712, 2, p. 485.19 SILVA, 1813 e 1823.20 COSTA, 1963; SOARES, 1963; PAIVA, 2000; NEVES, 2000;

HESPANHA, 2004, p. 68.21 GUERRA, 2003, p. 53-60.

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22 SCHMITT, 2006, p. 29.23 GADAMER, 2002, p. 128.24 MESQUITA, 2006, p. 53-57.25 INSTRUçÕES, 1822, 1.26 CORREIO BRAzILIENSE, 1809, n. 9.27 MIRANDA, 1821, p. 43, 88.28 BRASIL, 1823, 3, p. 474-475.29 LISBOA, 1822, VIII, 1.30 LISBOA, 1822, xI, 1.31 MESQUITA, 2006, p. 48-49.32 DIáLOGO, 1821, p. 3.33 Cf. WEHLING, 1994, p. 11-13.34 CONSTITUIçãO, 1821, p. 1. Cf. também HESPANHA, 2004,

p. 161-175.35 REVÉRBERO CONSTITUCIONAL FLUMINENSE, n. 4, 18 de junho

de 1822.36 CANECA, 2001, p. 559-560.37 SALGADO JÚNIOR, 1950-1952.38 HESPANHA, 2004, p. 14.39 LOCKE, 2005, p. 513.40 LASLETT, 2005, p. 163.41 LIMA, 1821, p. 5-6.42 REGENERAçãO, 1821, p. 20.43 NEVES, 2003, p. 151.44 MALAGUETA, n. 1, dezembro de 1821.45 MALAGUETA, 1821, p. 18.46 SOARES, 1963, p. 674.47 NEVES, 2003, p. 413.48 PORTILLO VALDÉS, 2002, p. 189.49 CAMPANHOLE; CAMPANHOLE, 1976, p. 523-573.50 SILVA, 1844, 1, p. 499.51 SILVA, 1858, 1, p. 531.

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52 SILVA, 1878, 1, p. 437-438.53 MELLO, 2004.54 BASTOS, 1975, p. 9.55 SOUSA, 1867, xVI-xxI, xxV-xxVI e 1-3.56 BUENO, 1957, IV e 560.57 GAUCHET, 2004, p. 183.

BiBliografia

manuscritas

ALORNA, Marquês de (1803). Memórias. Arquivo Nacional. Rio de Janeiro, Códice 807.

impressas

periódicos

COMPILADOR CONSTITUCIONAL. Rio de Janeiro, 1822.CONSTITUCIONAL, O. Bahia, 1822.CORREIO BRAzILIENSE. Londres, 1808-1822.DIáRIO CONSTITUCIONAL. Bahia, 1822.GAzETA DO RIO DE JANEIRO. Rio de Janeiro, 1808-1822.JUSTICEIRO CONSTITUCIONAL, O. Rio de Janeiro, 1835.MALAGUETA, A. Rio de Janeiro, 1821-1822.REVÉRBERO CONSTITUCIONAL FLUMINENSE. Rio de Janeiro, 1821-1822.TROMBETA CONSTITUCIONAL, A. Rio de Janeiro, 1840.VERDADE CONSTITUCIONAL, A. Rio de Janeiro, 1822.

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outros

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I v o C o s e r

federal/federalismo

A definição contemporânea de federalismo apresenta-o como um sistema de governo no qual o poder é dividido entre o governo central (a União) e os governos regionais. O federalismo é definido, na sua acepção positiva, como um meio termo entre um governo unitário, com os poderes exclusivamente concentrados na União, e uma confede-ração, na qual o poder central seria nulo ou fraco. Por sua vez, a confederação é caracterizada como uma aliança entre Estados independentes. Nesse sistema, o governo central não pode aplicar as leis sobre os cidadãos sem a aprovação dos Estados, que seriam em última instância a fonte da soberania. A diferença essencial entre a federação e a confederação está no fato de que na primeira o governo central possui poder sobre os cidadãos dos Estados ou províncias que compõem a União, sem que esta ação seja acordada pelos estados.1

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No debate político brasileiro, a percepção de que fede-ração e confederação eram termos que se referiam a conteúdos políticos distintos foi se firmando lentamente ao longo do século xIx, a partir da compreensão da inovação presente no arranjo político norte-americano implantado com a Convenção da Filadélfia, em 1789. Anteriormente esses dois conceitos eram utilizados como sinônimos. A partir de 1834 as diferenças entre eles emer-gem com clareza.

Em 1798, D. Rodrigo de Souza Coutinho, importante membro da burocracia do Estado português, buscava imple-mentar uma reforma do Império português de maneira a modernizá-lo. Na sua visão, os domínios da América eram a base da grandeza do Império. Esse fato levava o político português a considerar que a parte europeia do Império seria a capital e o centro, o restante deveria ser encarado “...como províncias da monarquia, condecoradas com as mesmas honras e privilégios (...) todas sujeitas ao mesmo sistema administrativo...”.2 O plano de D. Rodrigo de Souza Coutinho previa para o Brasil dois governos, um localizado no Pará e outro no Rio de Janeiro. Em 1799, o político português iria escrever que “o sistema Federativo o mais análogo à situação física de Portugal no Globo”.3 O uso do termo federativo apontava para o reforço do papel dos domínios coloniais, em particular do Brasil, já visto naquela época como a parte mais importante do Reino; tratava-se de elevar o status do Brasil alçando-o ao patamar de pro-víncia do Reino, como as situadas no continente europeu.

O uso que D. Rodrigo fez de federativo revelava uma ruptura com o conteúdo anterior do termo. O conceito de federação apresentava um sentido histórico preciso, qual seja: Estados autônomos que firmavam um pacto de

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unidade. D. Rodrigo defendia a aplicação de um “sistema federativo” ao Império português, sendo que este não era formado por Estados independentes, mas por colônias submetidas a um centro. D. Rodrigo buscava no uso do termo federativo um arranjo institucional que permitisse à colônia mais rica do Império uma autonomia e um desen-volvimento econômico maior, sem que esse fato implicasse a ruptura com a metrópole.

A transferência da Corte portuguesa para o Brasil, em 1808, implicou mudanças significativas para a parte ameri-cana do Império. A liberdade de comércio e a transferência da justiça para a colônia foram aspectos centrais desse processo. Com a abertura dos portos, a colônia passava a negociar com as principais praças comerciais europeias. O deslocamento da justiça representou um acesso mais rápido aos pedidos de revista de processos. A colônia pas-sou a usufruir de prerrogativas idênticas àquelas da parte europeia do Império.

Em 1821, nos debates parlamentares da Constituinte de Lisboa, o termo federalismo/confederação reaparece nas propostas para o reordenamento constitucional do Império português. Em fevereiro, estava em discussão o projeto acerca da suspensão dos magistrados. Para uma corrente política, tal poder caberia exclusivamente ao rei e, para outra corrente, existiriam no Brasil autoridades locais capazes de realizarem tal ato. O primeiro grupo político era chamado de “integracionistas” e considerava que não deveria haver distinções entre as partes do Império portu-guês, que seria uma única nação. As partes que comporiam o Império português deveriam estar submetidas ao mesmo centro político.

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O deputado Antonio Carlos, eleito pela província de São Paulo, era um defensor da autonomia das autorida-des locais para a suspensão dos magistrados. Segundo o deputado, o Império Britânico, os Estados Unidos da América e o Reino da Suíça permitiam que autoridades locais suspendessem os magistrados. Observemos que a Suíça era designada na época como “Confederação Hel-vética”. A discussão envolvia outro aspecto extremamente importante: essa atribuição garantiria a igualdade entre os “povos do Brasil e de Portugal”. Com essa afirmação, Antonio Carlos deixava claro que o Reino era formado por dois povos e que o arranjo político institucional a ser adotado deveria respeitar essa especificidade.

O deputado Trigoso, eleito em Portugal, opôs-se a essa interpretação e aos exemplos mencionados pelo deputado paulista nos seguintes termos: “Os países citados tinham pactos antes de serem unidos; confederaram-se para fazer um Estado.”4 Para o deputado Trigoso, o Império português não era formado por povos autônomos que deliberaram formar um pacto de união, mas uma nação formada por cidadãos portugueses situados em continentes diferentes. Observe-se o uso do termo pacto que está na definição latina da palavra foedus, que vem a ser a origem de federalismo.

A ideia de Antonio Carlos, acerca do Império por-tuguês, provinha de um conjunto de propostas conhecidas como “Lembranças e apontamentos”, cuja autoria é atribuída a José Bonifácio. O documento pretendia oferecer um projeto de organização política para o Império português. Logo no início desse documento, define-se a Nação por-tuguesa como constituída pelos “Reinos de Portugal e do Brasil”.5 Dentre os itens que compõem o projeto, estavam:

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o estabelecimento de um governo-executivo para o Reino do Brasil, ao qual estariam submetidos os governos provin-ciais;6 a elaboração de um Código Civil que respeitasse “a diversidade de circunstâncias” entre a população do Brasil e de Portugal;7 a igualdade de Direitos Políticos e Civis de acordo com “a diversidade dos costumes” existentes nos dois Reinos;8 e leis que regulassem o comércio sem que fosse tolhida a liberdade de ambos os Reinos.9

O projeto paulista estava inserido numa concepção que considerava o Império português como sendo formado por partes autônomas que dotadas de certas características peculiares deveriam ser respeitadas no arranjo político insti-tucional. O projeto e as propostas paulistas não mencionavam os termos federalismo e confederação, em suma, não apresentavam explicitamente um projeto de um império federativo. Entretanto, a reação do grupo “integracionista” atacava as iniciativas paulistas, acusando-as de procurar transformar o Império português numa “confederação”.

Os deputados eleitos nas províncias da América por-tuguesa não tiveram uma atuação homogênea. Podemos concentrar as divergências confrontando duas ideias. En-quanto os deputados paulistas e fluminenses falavam nos Reinos do Brasil e de Portugal, o deputado baiano Lino Coutinho discursava nos seguintes termos: “O Brasil não se deve olhar como um só país, são tantos países diferentes quantas as províncias do Brasil (...) As províncias do Brasil podem chamar-se de reinos.”10

Os deputados das províncias da Bahia e de Pernambuco se opuseram ao fortalecimento do governo do Rio de Janeiro, presente na proposta paulista. Para esses deputados não haveria o Reino do Brasil, mas as províncias portuguesas na América. Nesse sentido, para essa corrente política,

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a proposta paulista, centrada na autonomia do governo situado no Rio de Janeiro, ao qual estariam submetidos os governos provinciais, soava como um novo pacto colonial.

É fundamental assinalar os sentidos políticos distintos entre o federalismo paulista/fluminense e o baiano/per-nambucano no debate de 1821. Para o primeiro grupo, tratava-se de assegurar a autonomia para o Reino do Brasil, tomado como uma unidade, enquanto que, para o segundo, se buscava obter a autonomia para as províncias que formavam o Império português na América.

A Independência do Brasil de Portugal suscitou um reforço das ideias de confederação/federação. Para a cor-rente federalista pernambucana, por meio da ruptura com Portugal, as antigas partes que compunham o Império português na América ficariam livres para deliberar sobre a sua organização política. Para essa corrente, a Constituinte reunia províncias soberanas que após a ruptura teriam livremente deliberado participar da Constituinte. Essa compreensão contribui para os conflitos na Constituinte de 1823. Essa ideia entrará em confronto com a corrente centralizadora. Para os centralizadores, a Constituinte era organizada a partir de dois fatos preexistentes, quais sejam, a unidade nacional e a forma de governo monárquica. Conforme o deputado geral Maia:

...porque quando os povos do Brasil se derão as mãos, e proclamarão a sua independência, foi com a pronun-ciação de um governo monárquico, que se estendesse a todas as partes do Império; e não se restringirão a haver constituições parciais; sobre a qual se estabelecesse depois a constituição geral da federação de estados, que em tal caso deveria seguir-se.11

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Com a Independência e a abertura da Assembleia Constituinte em 1823 os termos federação/confederação estiveram no centro do debate político. Houve duas correntes a favor da federação. A primeira não se fazia representar explicitamente no parlamento, mas principal-mente nos jornais da época. Tal corrente era formada pelos republicanos, também chamados de Farroupilhas. Seu projeto associava a forma de governo republicana com o modelo federativo. Esse modelo somente seria compatível com a forma republicana, na medida em que a federação implicava transferência de poderes para a sociedade – os cargos seriam eleitos nas províncias, e a República era o governo eleito pelo povo de forma que existiria uma compatibilidade natural entre os dois. A segunda corrente estava presente no parlamento e nos jornais sob sua influên-cia. Sua principal diferença teórica era a sustentação da compatibilidade entre a forma de governo monárquica e o arranjo federativo.

Logo no início dos debates parlamentares, entrava em discussão uma emenda estabelecendo que o Império brasileiro compreendesse “confederalmente” as províncias que formavam o antigo Império português na América. Ao longo desses debates, os defensores desta proposta utilizavam indistintamente os termos federação e confederação. Da mesma maneira, citavam como exemplos desse arranjo institucional a Confederação Helvéltica, os Estados Unidos da América e os Principados Germânicos. Citavam como fontes intelectuais os Articles of Confederation e Montesquieu. Podemos perceber que os exemplos históricos reuniam no mesmo modelo a confederação e a federação, porém a fonte intelectual era fortemente

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marcada pelo conceito de confederação. A inovação norte--americana ainda não havia sido percebida.

O Dicionário de Moraes Silva na sua edição de 1823 traz o termo federado definido como confederado, ou seja, ainda remetendo à confederação. Na Constituinte de 1823, o deputado Carvalho Melo definia federação da seguinte maneira:

Federação, dizem os escritores políticos, é a união de associações e estados independentes que se unem pelos laços de uma constituição geral, na qual se marcam os deveres de todos, dirigidos ao fim comum da prospe-ridade nacional, e nela se regulam alianças ofensivas e defensivas; resoluções de paz e de guerra.12

A etimologia da palavra federalismo também apontava para uma aliança de Estados independentes:

Não viemos aqui para fazer um novo dicionário jurídico; os termos federal, federativo, federação, se derivam do termo foedus, que significa pacto e aliança com inimigos ou amigos independentes para paz ou guerra (...) É bem conhecida a confederação Helvética, a dos antigos estados gerais da Holanda, quando esta se constituiu em república e a confederação do corpo germânico, composta de esta-dos independentes, ainda que associados para resistência a inimigos comuns, contribuindo cada estado com seu contingente de soldados e dinheiro para as despesas gerais de sua associação, até sendo cada estado regido por sua particular forma de governo.13

A definição de federação mobilizava a ideia de uma reunião de Estados soberanos com fins de defesa ou de

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ataque, sem que a União dispusesse de poderes autônomos sobre os cidadãos dos estados soberanos. Portanto, a defi-nição era ainda formulada por meio do conteúdo relativo à ideia de confederação.

Nos debates parlamentares, o termo federalismo/confederação ganha um sentido político. Vejamos quais os principais aspectos da corrente federalista. Para esse grupo, a constituição, após sua elaboração, deveria retornar às províncias para ser aprovada. Tal concepção revelava a precedência das províncias no arranjo constitucional. Para os federalistas, a Nação seria formada pelos estados que a compõem, pois é neles que reside o poder soberano. A concepção de que a província deteria o poder soberano demonstra a presença, na corrente federalista no Brasil, da compreensão deste arranjo constitucional nos moldes de uma confederação. Nesta, o poder central é nulo ou fraco e não dispõe de forças para agir nas partes componentes do Estado. Essas partes poderiam se retirar do pacto, como previam os federalistas brasileiros, caso não acordassem com as leis promulgadas, e, neste caso, o poder central não teria legitimidade para obrigá-las a participar do pacto. De acordo com o deputado geral Montezuma: “...ninguém ignora que o direito natural e público (...) dá a faculdade a cada uma das províncias do império para sancionar ou dei-xar de sancionar a constituição que lhe for apresentada”. 14

Para os federalistas, não existiria uma oposição entre federação e a forma de governo monárquica. Segundo Carneiro Cunha:

...federação não se opõe à monarquia constitucional, como há exemplos, tanto na história antiga, como na moderna, e mesmo na Europa (...) podendo haver em

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cada uma das províncias uma primeira assembléia pro-vincial, que tenha a iniciativa das leis regulamentares, e que informando com mais conhecimentos à assembléia dos representantes da nação tudo quanto for mister para promover a sua prosperidade, consiga-se desta sorte o bem, que todos desejamos. Considerada, e admitida por esta forma a federação opor-se-á à integridade do Império? Não, decerto.15

Na concepção federalista, apresentada na constituinte, entre o súdito e a União está a província, é esta que empresta conteúdo à ação estatal levada a cabo sobre os habitantes. Sendo assim, cada província deveria possuir autonomia para adaptar as leis e os planos nacionais às suas realidades específicas, e ter a liberdade para definir quais seriam os seus interesses, as suas prioridades. As províncias estariam unidas em torno de uma forma de governo que velasse pela sua liberdade de buscar e efetivar seus objetivos. A ação do Estado que atinge o cidadão é portadora dos interes-ses provinciais, o Estado não é um órgão que se revela ao cidadão como mensageiro de interesses gerais, que trans-cendem à sociedade provincial. Diretamente ligado a essa ideia, estava o tema dos funcionários públicos. A aplicação das leis deveria caber a funcionários públicos que fossem escolhidos nas províncias. Esses funcionários estariam, segundo Montezuma, “...mais ligados, mais interessados pelo solo onde exercem jurisdição, pois é seu país natal”.16

É recorrente entre os federalistas a imagem da província como um cidadão ativo que deve dispor de liberdade para organizar seus assuntos e definir livremente seus interes-ses, desde que não altere a forma de governo monárquica. Conforme Cornélio França:

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...a província deve considerar-se para com a nação em geral assim como um particular para com a província; quando se impõe não se pergunta quais são os meios de que se serve para cumprir a imposição: assim se a nação precisa de um tanto, que se lhe importa que a província dos direitos ou de exportação? Concorrendo elas com a quota que lhe determina, tem feito o que devem, e não deve ficar à arbítrio da assembléia geral tal e tal imposto: porque ele pode ser muito bom em uma província e não em outra, e ninguém melhor que as mesmas assembléias pode conhecer isto.17

Em 1839, defendendo as medidas descentralizadoras, inspi-radas nas ideias federalistas, adotadas entre 1832 e 1834, Diogo Feijó, ex-ministro da justiça, ex-regente, proprietário do jornal O Justiceiro e naquele momento senador, legiti-mava o controle do legislativo provincial sobre a polícia judiciária com base no domínio que o chefe de família possui sobre a organização da economia doméstica:

Na verdade, já se mostrou que a polícia interna é essencial a toda corporação, desde a família até a associação geral, que dela depende a existência e a conservação da mesma sociedade; sendo isto assim, como é que, podendo o chefe de família regular a sua economia doméstica, o município a sua economia municipal, o mestre a economia de sua aula, na qual regula o serviço e os castigos correcionais etc., as câmaras legislativas da mesma sorte, como então se quer negar este direito às províncias?18

O legislativo provincial, eleito pelos cidadãos ativos, deve-ria regular a polícia judiciária tendo em vista os interesses da província.

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Os grupos paulista e fluminense, que na Constituinte de Lisboa haviam sustentado um projeto descentralizador, agora atacavam os federalistas. Os defensores da centra-lização argumentavam que a introdução do federalismo poria em risco a unidade nacional. Tal ameaça decorria da necessidade, presente na proposta federalista, de que o pacto constitucional retornasse às províncias para ser aceito: “Se ela [a emenda que estipulava uma monarquia federal] passasse, era o mesmo que dizer, desmanchem-se os laços que nos ligam; cada uma das províncias separa-se, faça o seu governo e se depois a união não lhes aprouver, façam como quiserem a sua federação.”19 Outro aspecto negativo do federalismo era enfatizado por Silva Lisboa. Segundo esse deputado geral, o federalismo permitiria o surgimento dos chefes políticos que iriam monopolizar o aparelho do Estado, sem outra ambição que não o controle com a finalidade de se tornar o chefe incontestável da sua região:

O sistema federal também se estabeleceu nos Estados Unidos da América do Norte; e nestes últimos tempos têm praticado semelhantes confederações nas colônias de Espanha até a terra do fogo (...) a fim de se obterem as pretensões dos ambiciosos, que aspiravam a figurar cada um nas suas províncias e monopolizaram as respectivas honras do estado.20

Esse traço do argumento centralizador encontrava eco no exemplo da América hispânica, conforme a visão desta cor-rente. As ex-colônias espanholas eram sempre lembradas de maneira negativa. O federalismo e a forma de governo republicana haviam criado em cada ex-colônia diversos chefes políticos que se consideravam líderes incontestes,

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dispostos ao uso das armas para fazer valer seu projeto político. José Bonifácio definia a América espanhola como anárquica e violenta, deixando claro que as antigas colônias da Espanha não possuíam um poder central forte e capaz de coibir os chefes locais de se utilizarem da violência para resolver seus assuntos políticos.

A dissolução da Constituinte por D. Pedro I e a derrota das emendas federalistas estão na raiz do movimento separatista que eclodiu na província de Pernambuco com o nome de Confederação do Equador, proclamada em 2 de julho de 1824. Esse movimento pretendia estabelecer uma República federal, que reunisse, além de Pernambuco, as províncias limítrofes Ceará e Paraíba, e também o Rio Grande do Norte.

A derrota da Confederação do Equador e a manuten-ção da monarquia unitária na Constituição de 1824 não impediram que projetos inspirados no modelo federalista estivessem presentes no debate político brasileiro. A recep-ção da ideia de federalismo no Brasil nos anos 20 e 30 do século xIx estabelece uma associação entre essa ideia e a perspectiva de que a descentralização deveria ser estendida não apenas às províncias, mas também ao município.

Os debates parlamentares acerca da criação do cargo de juiz de paz (1827) e do Código do Processo (1832) re-velam explicitamente a presença das ideias federalistas. O juiz de paz era eleito diretamente no município. O Código do Processo criou o júri popular, que era sorteado dentre os cidadãos da localidade. O promotor era escolhido pelo presidente de província (nomeado pelo poder central) a partir de uma lista tríplice feita pela câmara municipal dentre os cidadãos locais. Com o Código do Processo, o

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juiz de paz que inicialmente era um juiz de pequenas causas teve seus poderes ampliados e passou a ser o responsável pelo recolhimento de provas para o inquérito policial e por conceder o passaporte para os súditos transitarem pelo país. Tornava-se desta forma uma peça importante na engrenagem do judiciário, rivalizando em atribuições com o juiz de direito. Esse funcionário era nomeado pelo poder central, deveria ser formado em Direito, dispunha de um salário e poderia ser deslocado por todo território nacional. Com o Código do Processo, figuras importantes do aparelho judiciário passaram a ser eleitas, escolhidas ou sorteadas no município. Ocorreu, assim, uma transferência de atribuições, que antes pertenciam exclusivamente ao poder central, para os municípios.

Os defensores desse modelo mobilizavam o mesmo conteúdo nos debates da Constituinte de 1823: a impor-tância de que o eleito fosse um cidadão da localidade. A escolha de um cidadão saído da localidade era um sinal de que este seria reconhecidamente um homem capaz de exercer o cargo de acordo com os interesses da província. O eleito deveria ser um amador e não um funcionário do governo, movível a qualquer momento; dessa maneira, os direitos da sociedade estariam protegidos contra o Estado. Um artigo publicado no jornal O Astro de Minas associava o regime federativo com a eleição ou a escolha dos funcio-nários a partir do local de sua atuação:

Certamente uma das principais garantias dos cidadãos é a responsabilidade dos delegados do poder; porque sem esta todas as garantias são improcedentes e quiméricas. As autoridades despachadas pela corte para os diferentes Estados mui facilmente podem bigodear o clamor dos

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povos a respeito das suas prepotências e malversações (...) Finalmente pode-se estabelecer como regra, apesar de uma ou outra exceção, que todo poder, cuja responsabi-lidade está longe do foco das suas ações, é infalivelmente mais, ou menos, arbitrário e por conseqüência sempre pesado aos Povos. Não será assim com o regime federa-tivo. As autoridades escolhidas pelo mesmo Estado onde tem de exercer as suas funções vem a responsabilidade iminente, como Dâmocles, tinha a espada que o devia punir pendente por um fio sobre a sua cabeça.21

O Astro de Minas foi um jornal ligado aos liberais modera-dos. Por sua vez, o jornal A Nova Luz Brasileira, seguidor da linha política dos liberais exaltados, exprimia a mesma ideia: “Ora federadas as Províncias Constitucionalmente e intervindo na nomeação dos Presidentes, Comandantes de Armas e Magistrados, não haverá melhor escolha.”22

Em 1834, Bernardo Pereira de Vasconcelos assinalava com precisão as mudanças ocorridas nos Estados Unidos a partir da convenção de 1787:

Na constituição dos Estados Unidos de 1778 os estados soberanos não permitiam ao governo geral arrecadar de indivíduos a soma necessária para as despesas da União; o governo orçava as suas despesas econômicas e as províncias deviam dar a quantia necessária para fazer face a estas despesas, elas passavam a impor, a arrecadar e a remeter para o governo geral, mas o resultado foi que a maior parte das províncias se arrogarão o direito de investigar se o governo geral tinha feito o seu orça-mento com excesso; e disto resultou que não mandavam os meios necessários para a União, e esta foi a principal razão porque se convocou a convenção geral de 1787,

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que reforçou este artigo da constituição e determinou que o governo geral em todas as ocasiões não contratasse com os estados como entidades coletivas, mas sim como indivíduos, que pudesse mandar recrutar, impor etc., enfim independentes de todos os atos porque se achava autorizado pela constituição.23

Inicialmente, nos Estados Unidos, os estados uniram-se sem conceder maior poder à União, sem permitir que as ações desta chegassem até o cidadão, submetido unica-mente aos poderes estaduais. Com a Convenção da Fila-délfia, o governo geral passou a deter poderes capazes de atingir o cidadão, sem necessariamente passar pelos estados. Os federalistas nos Estados Unidos eram aqueles que defen-diam o reforço do poder da União frente aos estados. Estava clara a trajetória histórica dos Estados Unidos: a ex-colônia inglesa teria saído de um arranjo institucional, no qual os estados eram soberanos e reunidos apenas com fins defensivos, para um novo modelo, no qual o governo central dispondo de maiores poderes desempenhava um papel distinto daquele efetuado anteriormente.

O pensamento federalista brasileiro efetuava a distinção entre federalismo e confederação e centrava a defesa do seu projeto na transferência de atribuições para a província, que poderia cuidar dos interesses provinciais. Neste sentido, discursava o deputado Souza Martins:

A palavra federação pode-se depreender por verdadeira etimologia – aliança, liga, união – concordo que não convém ao Brasil uma federação tal como a dos estados da Alemanha etc. Esta deve ter a oposição da maioria da câmara; mas não acho justo nivelar uma tal federação com as reformas que se vão agora estabelecer; estas reformas

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constitucionais nada mais são que dar algumas atribui-ções legislativas aos conselhos gerais [termo que antes de 1834 designava o legislativo provincial] sem dependência do poder geral; neste sentido não merece censura a federação, no sentido de dar a certas autoridades locais certas atribuições que não podem ser exercitadas pelo governo central.24

Em 1831, entrava no debate parlamentar um projeto de reforma da Constituição, cujo primeiro artigo estabelecia o seguinte: “O governo do Império do Brasil será uma monarquia federativa.” Em outro artigo ficava estabelecida a discriminação das rendas provinciais das rendas do governo central. De acordo com os centralizadores, tal proposta introduziria o modelo federalista no Império, tendo como efeito a reprodução da situação existente na América espanhola. Lino Coutinho responde aos centra-lizadores da seguinte maneira:

O que embaraça que isto sejam idéias federativas, se são idéias de justiça e ordem? (...) Não há povo que queira estar assim apertado e oprimido. Todos querem que as suas províncias tenham certos meios administrativos, certa governança que tenda a promover o bem particular da província, no que vai igualmente compreendido o bem geral do império.25

A corrente centralizadora percebia o movimento de associar a ideia de federação à concessão de maior autonomia às províncias, de maneira que estas velassem pelos interesses provinciais, sem que esse fato envolvesse considerar as províncias como estados soberanos, conforme o modelo confederativo. O deputado Calmon discursava:

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A federação que desejamos, dizem eles, não é a germânica ou a helvética ou da antiga Holanda ou da América do Norte, é apenas aquela que consiste em dar aos governos provinciais maiores atribuições para o expediente de negócios locais. E nisto insistem, senhores.26

O pensamento político brasileiro também entendia a ideia de federalismo como um arranjo constitucional no qual as províncias poderiam velar pelos seus interesses. Em 1832, Evaristo da Veiga, deputado e jornalista, escre-via em favor das províncias: “Deixemos que as províncias falem por si mesmas. Não estão invadidas pela barbárie e devem conhecer seus próprios interesses muito melhor que os teóricos da Corte.”27 Em 1839, o senador Alencar, defendendo as medidas descentralizadoras adotadas entre os anos de 1830 e 1834, dizia:

A Assembléia Geral, ocupada com o todo da nação, talvez não seja a mais apropriada para se ocupar dos negócios muito peculiares das províncias (...) Eu digo que os legis-ladores de 34 tiveram em vista esta idéia: os deputados provinciais podem conhecer melhor aquilo que convém (nessas pequenas coisas) às suas respectivas províncias do que um senador ou deputado colocado na corte e que muitas vezes não tem viajado todo o Brasil.28

As Leis nacionais seriam adaptadas às circunstâncias locais pelas assembleias provinciais. Ficava claro que as leis nacionais não dependiam da aprovação das assem-bleias provinciais, como no modelo confederativo, e que o governo geral possuía autonomia para aprovar leis que dissessem respeito às províncias. A justificativa para que essa tarefa coubesse às assembleias provinciais era o seu

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conhecimento maior das condições locais e o seu interesse no sentido de promover o desenvolvimento local. Podemos perceber que, para os federalistas, a ideia dos interesses provinciais emergia com um conjunto de assuntos distintos dos interesses gerais. Tais interesses requeriam uma preo-cupação que somente aqueles que olhavam exclusivamente a dinâmica provincial possuíam. Neste sentido, o pensa-mento federalista enfatizava que o legislativo provincial velava pelos interesses provinciais da mesma maneira que o cidadão ativo pela “economia doméstica”.

A ideia de que o federalismo era um arranjo institu-cional, que permitia às províncias cuidarem dos seus “negócios internos”, está na raiz do movimento republicano que eclodiu na província do Rio Grande do Sul. No cerne desse movimento, estão a situação econômica da província e a insatisfação com a centralização de poderes nas mãos do presidente da província, nomeado pelo poder central. A economia do Rio Grande do Sul era caracterizada pelo fornecimento de carne e couro para o mercado interno brasileiro, no qual ela sofria a concorrência dos países do Prata; as queixas contra as baixas taxas cobradas sobre os impostos dos produtos da bacia do Prata desempenharam um papel importante na eclosão do movimento. No ideal de uma república federativa rio-grandense estava a capa-cidade do governo em aumentar os impostos sobre os produtos do Prata, medida que a República de Piratini, proclamada em 1837, adotou. Dessa forma, podemos assinalar a presença da ideia de que federação envolveria a autonomia das províncias em gerirem seus assuntos internos, entre os quais estava o tema do controle sobre os impostos.

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O pensamento federalista brasileiro considerava que a descentralização favoreceria o clima de competição entre as províncias, o que, dentro de certos limites, poderia vir a ser um elemento de progresso para o país:

Sabe-se que existem entre certas províncias certa rivali-dade, certo ciúme, aliás, necessários até certo ponto: esta rivalidade, este desejo de primarem umas sobre outras, sendo razoável, pode vir a ser um princípio de progressão, sem dúvida de grande vantagem para o Brasil; mas se exorbitarem de certos limites, nós veremos que o Brasil se fracionará.29

O pensamento centralizador argumentava que essa riva-lidade poderia conduzir à desagregação interna. Frente a essa crítica, o ideal federalista objetava com o seguinte argumento:

Eu não vejo, contudo, que já se tocou neste ponto, que ele traga consigo tão graves inconvenientes, nem que dê lugar a verificar-se um quadro tão triste como o que foi apresentado pelo Sr. Cunha, acontecer-lhe-ia o mesmo que sucede a respeito dos indivíduos, alguns dos quais são mais ricos e outros mais pobres. Haviam de florescer as províncias mais abundantes em produtos e ficar atrasadas aquelas que produzissem menos, as quais se verão por isso forçadas a limitar suas despesas, em proporção às suas rendas, até chegarem à maior prosperidade.30

A corrente política federalista não foi plenamente vito-riosa na sua tentativa de transformar o Império brasileiro em uma monarquia federativa. Porém, várias leis foram adotadas com vista a implementar uma descentralização política e administrativa. A principal lei aprovada foi o

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ato adicional em 1834. De acordo com este, os cargos do aparelho judiciário previstos em leis e códigos nacionais poderiam sofrer alterações nas suas funções e no seu número pelo legislativo provincial. Com o ato adicional, diversos legislativos provinciais iniciaram uma diminuição da descentralização, esvaziando as atribuições transferidas para o município em seu favor. O ato adicional marca uma importante inflexão em parte da corrente federalista. As di-versas revoltas armadas que eclodiram no Império levaram diversos líderes federalistas a defenderem um esvaziamento dos cargos eleitos ou escolhidos no município em favor do legislativo provincial. Importantes líderes políticos como Limpo de Abreu (1836) e Alves Branco (1835) passavam a sustentar, nos seus relatórios de ministro da justiça, a necessidade de que as leis descentralizadoras fossem ado-tadas somente em cidades com um determinado nível de “civilização e nas capitais”. Posteriormente, Tavares Bastos (1870), um destacado defensor do ato adicional, irá escre-ver que o erro do Código do Processo foi imaginar que no país o “nível de civilização fosse igual”. Segundo Tavares Bastos, o órgão encarregado de avaliar o grau de extensão da descentralização seria o legislativo provincial. A vanta-gem do ato adicional teria sido controlar a descentralização que ameaçava tragar a unidade nacional.

Na concepção federalista, a nação é composta pelas di-versas províncias que a compõem; para os centralizadores, a concepção de nação é distinta. O senador Silva Lisboa considerava nos seguintes termos a emenda que estabelecia que o Império brasileiro fosse uma monarquia federativa:

Chegamos ao grande artigo. Este é que é o forte deste pro-jeto. O que se trata nele de destruir a soberania nacional

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para estabelecer soberanias provinciais (...) A primeira coisa de que se trata é de uma metamorfose, é de mudar as coisas para uma forma inteiramente nova, o que é contrário ao que diz o artigo 1º da Constituição, de que o império do Brasil é a associação política dos cidadãos brasileiros, e não a associação das províncias.31

Para o pensamento centralizador, a nação seria composta pelos cidadãos e pelo poder soberano, o qual deveria estar concentrado, de maneira a que os diversos interesses que compõem o Império não caminhassem para a fragmentação; tal qual havia ocorrido na América hispânica.

O conceito de federalismo era formulado, pelos centrali-zadores, da seguinte maneira:

As principais vantagens e qualidades da monarquia são a concentração do poder, a unidade e a força; a qualidade essencial do elemento federal é o fracionamento do poder; combinar estes dois elementos de modo que não se prejudiquem e destruam mutuamente é uma das coisas mais difíceis em política (...) é indispensável marcar com exatidão as raias de cada um desses poderes, para que se não encontrem no mesmo terreno, porquanto os governos federativos são muito sujeitos a conflitos, e por isso, quando mal combinados, têm em si o germe da sua dissolução.32

No pensamento centralizador, o federalismo apontava para a possibilidade de que o poder estivesse disperso, dificultando a ação estatal. Na avaliação de um dos mais importantes políticos centralizadores, Paulino José Soares de Souza – deputado, presidente de província, senador, ministro da justiça e autor dos principais livros em favor

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da centralização –, o fracionamento do poder permite que o cidadão seja controlado pelo capricho pessoal de indiví-duos que pela sua posição social dispõem de recursos. As leis descentralizadoras ao transferirem atribuições para o legislativo provincial e para o município teriam produzido esta situação:

...não parece que a população desses lugares possa ser chamada de população de homens livres, e Cidadãos de um Império Constitucional, mas sim hum complexo de pequenos feudos onde há senhores e vassalos, e onde as Autoridades Policiais e Criminais são em tudo deles dependentes, e ainda mais do que se eles tivessem a regalia de nomeá-los tal é o estado de aviltamento e coação em que elas se acham.33

Observemos no trecho que o autor expõe a experiência federalista como causadora de uma situação na qual os indivíduos que controlavam os poderes do judiciário – os cargos eleitos ou escolhidos na província e município – estabeleciam para com os demais cidadãos uma relação de dependência pessoal, fato que levava o autor a designar a situação como sendo entre senhor e vassalos. A fragmen-tação do poder, característica do federalismo, produzia um “complexo de pequenos feudos” imune às ações do poder central, que emergia como o portador da lei, entendida como uma relação impessoal. A principal característica do feudalismo, apresentada por Paulino José Soares de Souza, vem a ser “...o poder não somente de administrar, como também de governar, repartido em mil mãos, e fracionado por mil maneiras”.34 No pensamento centralizador, ocorre uma aproximação entre o conceito de federalismo (a frag-mentação do poder) e de feudalismo (o poder fracionado,

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repartido). Para esta corrente, a centralização do poder estava associada à modernidade. Conforme Paulino José Soares de Souza escreveu: “...a centralização é o mais po-deroso instrumento da civilização”.35

notas

1 ELLIOT , 1974; LEVI, 1986; BULPITT, 1996; GRANT, 1996.2 Apud MAxWELL, 1985, p. 239.3 Apud MAxWELL, 1985, p. 254.4 Apud BERBEL, 1999, p. 128.5 SILVA, Cap. I, Art. 4º.6 SILVA, Cap. II, Art. 2º.7 SILVA, Cap. II, Art. 5º.8 SILVA, Cap. I, Art. 2º.9 SILVA, Cap. I, Art. 4º.10 Apud BERBEL, 1999, p. 131.11 Sessão de 17 de setembro de 1823.12 Sessão de 17 de setembro de 1823, p. 151.13 Silva Lisboa, sessão em 17 de setembro de 1823, p. 157.14 Sessão de 17 de setembro de 1823.15 Carneiro Cunha, Assembleia Constituinte, 17 de setembro de 1823,

p. 152-153.16 Sessão de 17 de setembro de 1823.17 Cornélio França, sessão da Câmara dos Deputados de 2 de julho de

1834, p. 15.18 Feijó, sessão do Senado em 26 de julho de 1839, p. 371.19 Carvalho Melo, 17 de setembro de 1823, p. 152.20 Silva Lisboa, sessão de 17 de setembro de 1823, p. 157.21 Do Federalista, publicado em O Astro de Minas, 28/06/1832.22 NOVA LUz BRASILEIRA, 04/01/1831.

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23 Bernardo Pereira de Vasconcelos, Sessão da Câmara dos Deputados de 1 de julho de 1834, p. 10.

24 Souza Martins, Sessão da Câmara dos Deputados de 4 de julho de 1834, p. 29.

25 Lino Coutinho, Sessão da Câmara dos Deputados, sessão de 17 de maio de 1831, p. 48.

26 Calmon, Sessão de 01/09/1832, p. 234.27 AURORA FLUMINENSE, 8 de junho de 1832.28 Alencar, sessão do Senado em 29 de julho de 1839, p. 11.29 Evaristo da Veiga, Sessão da Câmara dos Deputados de 26 de junho

de 1834.30 Lino Coutinho, Sessão da Câmara dos Deputados de 17 de maio de

1831, p. 49.31 Silva Lisboa, sessão do Senado de 30 de julho de 1832.32 Uruguai, sessão de 17 de junho de 1839.33 URUGUAI, 1842, p. 26.34 URUGUAI, 1862, p. 344.35 URUGUAI, 1862, p. 345.

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J o ã o Pa u l o G . P i m e n t a Va l d e i L o p e s d e A r a ú j o

história

linhas gerais da evolução do léxico

No Vocabulário de Bluteau, o verbete história confere peso à história antiga, pois o relato bíblico, sendo o mais confiável, deveria preponderar no caso de divergência com autores modernos (“de todas as Histórias, a mais certa é a da Sagrada Bíblia”). Longos parágrafos são dedicados à defesa da cronologia bíblica, porém reservando autoridade para o relato profano nos fatos da história moderna.1 Em Bluteau a história é sagrada e erudita, com o léxico impreg-nado dos topoi da tradição retórica ciceroniana e refletindo perfeitamente o tipo de história que no século xVIII português se produzia em locais como a Academia Real de História (1720), a Academia Brasílica dos Esquecidos (1724-1725) e a Brasílica dos Renascidos (1759).2

Já na primeira edição do Dicionário de Moraes Silva (1789), o verbete é enxugado do peso da história sagrada, e o historiador começa a ser claramente diferenciado do

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cronista.3 Na edição de 1831, é acrescentado um parágrafo sobre a divisão da história no qual Silva procurou esclarecer as diferenças entre história universal (cujo exemplo é a de Bossuet) e história geral. Com ele, a edição de 1850-1853 do Dicionário de Eduardo Faria polemiza, ao dizer que Bossuet nunca havia escrito uma história universal, mas apenas “discurso sobre a história universal”.4 Afirma também que seria pouco útil ou exequível uma história que apresentasse um quadro único e que, por isso, deveria ser dividida “em três grandes idades ou três histórias que se sucedem, tendo cada uma delas seu caráter particular, que são: a história antiga, a da idade média, e a moderna, as quais se pode ajuntar uma quarta, que é a contemporânea”.5 O esforço de Faria indica claramente que o termo história já não se referia apenas ao livro, mas a uma realidade ex-terior que devia inclusive ditar sua forma de apresentação.

O que esses dicionários, de forte presença no mundo luso-brasileiro, parecem indicar é, de um lado, um esforço de refinar as definições de palavras da língua, procurando estabilizar o campo semântico; de outro, uma crescente centralidade do conceito de história, que deixa de ser apenas uma “narração dos sucessos” para concentrar um conjunto de novas experiências sociais e categorias expli-cativas. Mas seria apenas a partir da década de 1870 que os dicionários6 começariam a normalizar a definição do conceito moderno de história, associando-o a outros de movimento, como evolução e progresso.

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a laicização das narrativas (1750-1807)

Quando D. José I iniciou seu reinado em 1750, o Im-pério português encontrava-se em meio a dificuldades no tocante à sua inserção no cenário de competição interna-cional, centrado em países da Europa ocidental que, sendo potências coloniais, tinham em territórios ultramarinos espaços fundamentais de atuação. Embora as dificuldades portuguesas nesse cenário viessem pautando consciências entre os estadistas lusos desde a independência em relação à Espanha (1640), seria somente com a abertura de um novo campo de ação, possibilitado pela ascensão de D. José, que o persistente agravamento da situação geral seria enfrentado por uma ampla mobilização iniciada na alta cúpula política imperial, cujo epicentro era a metrópole, mas que desde o início definiria a centralidade da América, obedecendo à lógica de complementaridade entre metró-pole e colônia em busca do “bem comum”, ponto central do programa reformista.

A diferenciação de perfis políticos e econômicos entre aquelas que agora eram as duas partes principais do Im-pério português se processaria tendo por base dois séculos e meio de uma contraditória história de simbiose, indivi-duação e complementaridade, na qual Portugal e América compuseram, junto com porções asiáticas e africanas, uma unidade. No caso da América, tal processo encontrara manifestações no plano da narrativa de acontecimentos passados que, não deixando de ser portugueses, eram, segundo obras a eles voltadas, singulares por conta do espaço no qual ocorreram. Um grande número de obras mesclando passagens sobre tais acontecimentos com des-crições geográficas e de tipos sociais nativos foi escrita

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por portugueses da América e da Europa, dentre as quais algumas trazendo já em seus títulos uma palavra indicativa de seu caráter primordial: História.

A partir de 1750, a política reformista portuguesa se coadunará com uma ampliação dessa produção. De um lado, com a escrita de obras eruditas, o Estado contará com um espaço privilegiado de reforço da lógica de complementaridade entre metrópole e colônias; de outro, os autores de ditas obras terão renovadas as oportunidades de promoverem a obtenção, para portugueses naturais da América, de títulos nobiliárquicos “de serviço”. A lógica a permear tal objetivo será a da própria configuração regional da colonização portuguesa da América, expressa no plano de identidades coletivas das quais os naturais daquela porção do Império eram portadores: a coletividade mais abrangente era a nação portuguesa, condição da qual todos compartilhavam e que, por seu turno, determinava suas condições identitárias específicas. As narrativas so-bre o passado da América seguiriam essa mesma lógica, incidindo sobre acontecimentos cuja unidade (“Brasil” ou “América”, por exemplo) continuaria a ser, sobretudo, uma criação intelectual de seus autores: ou uma simples somatória de espaços de pouca ou nenhuma ligação direta entre si, ou a consagração de espaços regionais como locus de narração, nobilitação e perpetuação coletiva.

Assim, a narrativa dos acontecimentos passados encon-trará terreno fértil para disseminação, configurando um processo no qual a ideia de história se mostrará indicadora e produtora de transformações cuja magnitude dificilmente poderia ser vislumbrada naquela metade de século. Trans-formações que levariam não somente ao aprofundamento das dificuldades sentidas pelo Império português, mas até

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mesmo à criação de condições históricas que possibilita-riam, nas primeiras décadas do século seguinte, a ruptura entre Portugal e seus domínios americanos e a formação, nestes, de uma unidade política nacional e soberana, não mais portuguesa, e sim brasileira.

Na metade do século xVIII, contudo, o conceito his-tória se apresenta, na América portuguesa, segundo as premissas básicas de seu sentido no mundo luso em geral, agregando matizes a ele conferidos pela dupla condição de singularidade e tipicidade do mundo colonial. Para essa direção, aponta a obra do pernambucano Loreto Couto, Desagravos do Brasil e glórias de Pernambuco (1757), pro-duzida com o intuito de louvar feitos passados de naturais daquela capitania e, com isso, valorizá-la como espaço de realizações presentes. Em passagens dedicadas a criticar outras “histórias”, isto é, livros,7 Couto desenvolve várias possibilidades de cronologia do povoamento da América a partir da criação do mundo.8 Além de corroborar o esforço de Bluteau em definir os campos da história sagrada e da história profana – esta subvertida àquela –, por história, Couto frequentemente indica narrativas ligadas a luga-res territoriais mais específicos do que a “América” ou a campos diversificados do saber. Há referências a “todas as histórias”;9 igualmente às “histórias de França e Espanha”, às “Histórias do nosso Reino, e de muitos estrangeiros”, às “nossas histórias” (isto é, do Brasil).10 Quanto a campos do saber, as referências são à “história antiga, e moderna”, à “história sagrada, e profana”, à “história genealógica” e à “História Eclesiástica”.11

No entanto, as elaborações de Couto são distantes das de Bluteau em um ponto sensível. Este registra alguns sentidos que se tornarão lugares comuns ao campo semântico de

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história, incluindo-se aí “todo o gênero de matérias”, em es-pecial a chamada história natural.12 Em língua portuguesa, essa compreensão parecerá capaz de produzir um gênero próprio muito influente, a chamada história geral, cuja definição variara – e variaria – ao longo das décadas, mas que, em meados do século xVIII, tinha como meta uma descrição completa da realidade de determinado território e de uma variedade de saberes, uma somatória, portanto, das diversas “histórias” acima referidas. Em Desagravos do Brasil..., contudo, as referências a uma totalidade desse tipo não são encontradas, havendo apenas a distinção entre “História, e Filosofia Natural”.13 De outra parte, Bluteau e Couto convergem no que diz respeito aos atributos clássi-cos da história ciceroniana. Se para o primeiro “a história é a testemunha do tempo, a luz da verdade, a vida da me-mória, a mestra da vida, e a mensageira da Antiguidade”,14 para o segundo a história de Pernambuco ofereceria muitos exemplos de validade de tais assertivas.15

A polissemia inerente ao conceito de história começará a sofrer mutações no último quartel do século xVIII, com as várias histórias começando a esboçar uma unificação em torno de um campo de experiência comum, sob a forma de algo que poderíamos chamar de “narrativas ilustradas”. A este movimento corresponderá um sensível declínio no prestígio da concepção de uma história sagrada, até então subordinadora das histórias profanas, com a corres-pondente valorização de um sentido de articulação entre todas elas, bem como da crescente recorrência a métodos de crítica da veracidade das fontes. Por fim, começarão a surgir testemunhos de uma fundamental alteração nas sensibilidades coletivas no espaço colonial: a percepção

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de aceleração no tempo vivido e representado – isto é, do tempo histórico.

Ainda na conjuntura do reformismo português, indí-cios dessas mutações são encontrados em dois poemas de autores naturais de Minas Gerais: O Uraguay (1769), de Basílio da Gama, e Vila Rica (1773), de Cláudio Manoel da Costa; o primeiro narra as guerras hispano-portuguesas contra os povos indígenas chefiados pelos jesuítas na América do Sul; o segundo, a elevação do povoado de Vila Rica à condição de vila. Em ambos, a referência à história é fundamental, merecendo o termo figurar logo nas pri-meiras estrofes.16 Trata-se de uma história específica, de realizações individuais, mas de heróis – no primeiro caso, o ministro do rei, Sebastião José de Carvalho e Melo, no segundo, Antonio de Albuquerque Coelho de Carvalho, governador e capitão-general de Minas e São Paulo – e, portanto, superiores, por seu caráter exemplar. A centra-lidade da ideia nos dois poemas parece, assim, indicativa de um processo de unificação do passado em torno de uma referência única, que não apenas mantém as “várias histórias”17 como surge por meio delas, além de implicar consenso em torno da prevalência da história profana à história sagrada.

Essas transformações são reforçadas nas complemen-tares ao texto poético. Nelas, há um aprofundamento e uma explicitação dos critérios de seleção e crítica dos acontecimentos passados, com didática exposição de significados de termos, fatos, personagens e intenções referidas no texto principal. Os dois autores referem-se a tradições, mas também a livros, documentos escritos, testemunhos orais deles próprios ou por eles recolhidos e, assim, indicam uma “história” una.18

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Percebe-se como a tarefa de reformar o Império, racio-nalizando sua administração, integrando melhor seus territórios e reconhecendo-lhes especificidades, fomentou a ideia de “história” enquanto uma categoria una e abran-gente, conferindo-lhe maior centralidade no vocabulário político-social. Contudo, se tal hegemonia estava organi-camente inserida nos propósitos reformistas, as contradi-ções inerentes a essa política mostrar-se-iam capazes de fomentar um movimento que, a médio prazo, caminharia em sentido oposto: o difícil estabelecimento dos limites integradores das diferenças entre metrópole e colônias, sobretudo das especificidades destas no conjunto, que por um lado haviam se tornado condição do reformismo, mas por outro acirrariam essas mesmas especificidades a ponto de torná-las, em muitas situações, mais problemáticas que de costume.

Na América portuguesa dos últimos anos do século xVIII, indícios daquilo que, em última instância, se reve-lava um aprofundamento da crise geral iniciada antes – o quadrante português da crise do Antigo Regime – encon-tram-se, conforme afirmado há pouco, em manifestações de mudança qualitativa na relação social com o tempo. Vila Rica, por exemplo, contém ao menos duas passagens em que a narrativa se defronta com tal situação.19

As Minas Gerais, que já em 1773 sentiam os efeitos de uma nova inserção no cenário luso-americano, logo se mostrariam especialmente favoráveis à recepção e reela-boração dos novos paradigmas políticos em circulação no mundo ocidental. Porém, em termos de consciências e comportamentos coletivos, as preocupações do reina-do reformista de D. Maria I, iniciado em 1777, não se

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restringiriam aos habitantes das Minas, embora destes viessem os primeiros sinais de alerta. A descoberta de uma conspiração tramada em 1788 e 1789 e as sucessivas investigações revelariam, ao mesmo tempo, articulações inter-regionais, um movimento político eivado de carizes inovadores no cenário luso-americano e eloquentes teste-munhos de difusão de um novo regime de temporalidade, de uma nova concepção de futuro e, inevitavelmente, de um novo sentido de história. Uma realidade confirmada e reiterada por praticamente todos os movimentos similares doravante tramados na América portuguesa, onde a rup-tura com noções tradicionais de história, se nem sempre era plenamente concebida pelas alarmadas autoridades coloniais, denunciava a dificuldade de afirmação da política reformista e o correspondente aprofundamento da crise.20

a formação das macronarrativas ilustradas (1808-1831)

Marco fundamental da crise do Antigo Regime por-tuguês, a transferência da Corte de Lisboa para o Rio de Janeiro em 1807 abriu um período de inédita aceleração histórica no mundo luso-americano. Seus atores são unâ-nimes em perceber o caráter memorável do acontecimento, que não apenas acentuaria a ideia de especificidade do continente americano no conjunto do Império português, como lhe conferiria uma nova dignidade histórica. Tal percepção atribuía ao presente funções de fundação mítica, capaz de orientar o olhar para o futuro em um momento carregado de incertezas. Essa tentativa de sondar o futuro

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a partir do presente ficou registrada pela presença recor-rente de uma famosa máxima de Leibniz – “o presente está prenhe de futuro” – muito utilizada por atores políticos da época. Aos poucos se consolidava a experiência do presente como um momento de transição para um futuro que se procurava prognosticar.

Tal o caso do Correio Braziliense, cujo editor, Hipólito da Costa, recorreu a narrativas ilustradas para defender um tipo de emancipação da América – isto é, amadure-cimento natural em relação à Europa, sem rupturas. No Correio, a versão providencialista da história está ausente, substituída pela possibilidade de obter orientação atra-vés da análise racional de leis históricas. As narrativas ilustradas aparecem constantemente adaptadas de fontes inglesas e escocesas para a história do Império português. O caráter especialmente histórico do tempo presente é constantemente sublinhado, justificando o empenho do Correio em estabelecer a verdade, pois seriam os jornais os “anais modernos”, de onde os historiadores, no futuro, retirariam seus fatos.21

No Correio, a história é orientadora moral, juíza e guar-diã da posteridade, fonte para uma história filosófica capaz de revelar as vocações dos povos. Nesse ponto é central a leitura ilustrada de Tácito. No interior da macronarrativa ilustrada são lidos os principais eventos contemporâneos, em especial a expansão napoleônica – razão de ser da transferência da Corte para o Brasil –, entendida como a ameaça de um retorno a um “despotismo universal” seme-lhante ao dos romanos, impedindo “assim os progressos de civilização”.22 As medidas de abertura do comércio colonial adotadas por D. João foram lidas pelo Correio

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como o fim do “Antigo sistema colonial”, isto é, o início de uma nova era.23

Ao lado da noção cada vez mais forte de circunstâncias históricas a exigir medidas adequadas ao tempo, pode-se encontrar a recorrência a exemplos do passado – longínquo ou recente – como alerta.24 Tanto em Portugal como no Brasil, essa nova percepção da história era acompanhada da necessidade de se escrever uma história geral e filosófica capaz de apontar causas e soluções para a crise. Embora em Portugal não faltassem manifestações a favor do empre-endimento, será do britânico Southey a primeira história filosófica do Brasil. Southey firma uma visada ampla sobre o processo colonizador do Brasil, visto já como um império que, “descoberto por acaso, e ao acaso abandonado por muito tempo, (...) com a indústria individual e cometimentos particulares (...) tem crescido (...) tão vasto como já é, e tão poderoso como um dia virá a ser”.25 Pela primeira vez as teorias civilizatórias da ilustração europeia eram aplicadas para a escrita de uma “história do Brasil” como unidade autônoma com relação à história de Portugal.

O programa histórico desenvolvido no interior da Academia das Ciências de Lisboa apontava para outra di-reção: uma restauração da cultura portuguesa que passava pela leitura dos clássicos lusitanos, nitidamente atrelada a uma persistente concepção reformista setecentista da monarquia e da nação portuguesas. Contudo, inovação e conservação deveriam estar equilibradas em um projeto político e cultural que enfrentasse os tempos modernos. Para José Bonifácio, natural da capitania de São Paulo e secretário da Academia, o filósofo, ao restaurar a língua portuguesa, deveria “lima[r] com jeito e arte a ferrugem

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antiga, que o tempo deixara; e corrig[ir] o que há de anô-malo ao gosto, e à razão (...) se favorece o comércio livre de novas ideias e conceitos; sujeitá-los todavia às leis precisas da polícia nacional”.26

Em outro discurso, Bonifácio recapitularia a narrativa ilustrada desde seu momento clássico, passando pela decadência romana e as invasões germânicas. Essas, apesar da aparência catastrófica, teriam inoculado novo ânimo na história europeia, permitindo mais adiante a valorização das línguas vernáculas e, com elas, dos diversos povos europeus. Trata-se de uma caracterização do tempo pre-sente e de sua conquista de autoconfiança.27 Os limites da macronarrativa ilustrada mostram uma experiência de aceleração do tempo que apresentava perspectivas distintas entre aqueles que se viam no interior do Brasil e no “velho” Portugal. Para homens nascidos na América como Hipólito e Bonifácio, o peso de um passado decadente parecia relativizar-se frente ao espaço “virgem” do novo mundo, sendo mais fácil recomeçar do que corrigir o velho.28

Bonifácio procurou aplicar à história das Letras em Portugal princípio narrativo equivalente; no entanto, para ele o que se verifica são sucessivos períodos de decadência, sendo o mais recente aquele marcado pela invasão francesa. No governo de D. João V, a criação da Academia de His-tória era “digna de nossos agradecimentos pelos trabalhos corajosos de seus Sócios em explorar e cavar as ricas minas de nossa História, que até então estavam em grandíssima parte escondidas e desaproveitadas”.29 Aqui, a metáfora geológica confere à erudição histórica uma concretude que lhe faltava nas tradicionais referências às “páginas da história”. A narrativa que orienta a compreensão de Bonifácio organiza-se em torno da existência da República

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das Letras como força trans-histórica. Essa compreensão permitia uma visão cosmopolita da história, muito ao gosto dos intelectuais que de toda a parte do mundo português eram chamados a socorrer o Império.

No interior da Academia de Ciências, fundiam-se demandas por uma história erudita e, ao mesmo tempo, filosófica, capaz de iluminar o passado e orientar o pre-sente por meio de uma narrativa elevada (“cumpre esperar que virá tempo, em que tenhamos os nossos Gibbons, e os nossos Humes”30). Aos “azedos filósofos” que viam na história apenas um cortejo caótico de fatos, Bonifácio contrapunha as novas possibilidades de uma história filosófica e pragmática.31

Frente às novas exigências documentais, estéticas e filosóficas, a “História do Brasil” ainda não encontrara uma forma adequada dentro da tradição historiográfica portuguesa. A realização de Southey refletia uma evolução do gênero no mundo britânico, e não no português. Neste havia uma rica tradição cronística e, mais recente, de corografias, mas faltava ainda uma concepção de história geral capaz de apresentar de forma orgânica o processo histórico. Exemplo dessa limitação pode ser encontrado em Corografia brasílica, em que o país é mostrado sob a perspectiva de um patrimônio do rei a ser inventariado.32

Já em Memórias de José da Silva Lisboa (1818), a situação é outra. As teorias dos estágios civilizatórios são empregadas para defender um otimismo reformista de longo prazo que procurava colocar as bandeiras revolu-cionárias em uma perspectiva histórica secular: “Agora acelerar-se-á a época agourada por sábios da Europa, que entre os seus habitantes indígenas (por ora embriões da espécie) surgirão também, algum dia, seus Newtons e

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Lockes.”33 Lisboa escreveu uma história da América por-tuguesa nos quadros do providencialismo lusitano, sem, no entanto, comprometer suas tentativas de compreensão racional e processual da história. Na mesma linha, segue o também monarquista Gonçalves dos Santos, em memó-rias publicadas em 1825: “Foi então que a Providência (...) inspirou aos sobreditos vice-reis os planos de reforma, e melhoramento.”34 “Reformas” e “melhoramentos” tanto mais importantes de serem narrados quanto mais presentes faziam-se, em solo americano, manifestações políticas de contestação não mais restritas ao mau governo, mas aos próprios fundamentos do poder monárquico.

Se na Europa a Revolução Francesa marcou uma nova sensibilidade histórica, no quadro especificamente luso- -americano a expansão napoleônica e seus desdobramentos se mostraram cruciais para transformações no campo conceitual. A visão de Napoleão como representante de uma vontade trans-histórica de domínio universal parece ter limitado – ainda que não excluído – a recepção do con-ceito moderno de revolução,35 dando nova vida a formas mais conservadoras de experimentar o processo histórico, apegadas ao passado, do que é sintoma a centralidade dos conceitos de restauração e regeneração.

Em 1821, pressionado pela eclosão da Revolução Constitucionalista do Porto (1820), D. João VI deixou o Rio de Janeiro e o Brasil entregues ao príncipe-regente D. Pedro. A conjuntura que permitira imaginar um futuro mimetizado na ideia de um Império luso-brasileiro, complexificada com a criação do Reino do Brasil (1815), logo se esgotaria, bem como suas imagens históricas corres-pondentes. Criticando o partido dos “desejadores do governo antigo”, o Revérbero Constitucional Fluminense

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afirmava, em agosto de 1822, que “a espécie humana tem de tal forma dilatado a esfera de suas luzes, que não pode mais conter-se na concentração dos poucos conhecimen-tos dos séculos passados”.36

O projeto de independência do Brasil como separação política total de Portugal resultou de uma rápida radicali-zação nas ideias articuladas de “emancipação” e “autonomia”, de modo a atingirem outra, de criação de um novo Estado e de uma nova esfera de soberania. Ao seu cabo, ainda que não desaparecessem totalmente sonhos de uma reunifi-cação, os intelectuais e homens públicos envolvidos nesse projeto se veriam diante da necessidade de dar conta de uma experiência de ruptura revolucionária – em seu sentido moderno – que sua formação anterior procurara evitar.

a nação como metanarrativa historiográfica (1831-c.1850)

A formação do Estado nacional, amparado por reno-vadas elites escravistas ligadas a interesses econômicos em expansão, definiu os limites para uma atuação intelectual ligada a quadros burocráticos. Paralelamente ao avanço conservador da década de 1830, também os campos dis-cursivos foram se transformando.37 A nova ordem, inau-gurada com a abdicação de D. Pedro I em 1831, trazia a necessidade de construção de uma história nacional.

Na formação desse campo de experiência da nacionali-dade, a história da literatura assumiria funções de vanguar-da.38 No entanto, para homens como Bonifácio, em 1825 ainda era difícil pensar uma literatura brasileira que não

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fosse, de algum modo, uma continuação da portuguesa.39 Não se fala de duas histórias literárias separadas, e não há ainda uma história do Brasil escrita sob a ótica nacional brasileira. Sensível a tal demanda, o francês Denis lançaria um programa de uma literatura independente para uma nação independente: seu Resumo Literário foi um dos primeiros documentos que relacionaram independência política, história e nacionalidade brasileiras.40

Para os egressos do processo de Independência, a situação política do Brasil exigia a dedicação a novas tarefas: redescobrir o passado (inclusive literário), revisar a história colonial, dedicar-se às letras que a dominação metropolitana havia bloqueado e que as lutas políticas ha-viam sufocado. Quando Gonçalves de Magalhães publicou o texto considerado o manifesto do romantismo literário brasileiro, o conceito de literatura deixava de se referir apenas ao conjunto de obras organizadas ao longo de uma grade de gêneros e passava a ser a representação de todo um campo de experiência: “Eu [literatura] sou o espírito desse povo, e uma sombra viva do que ele foi.”41 Transformada em processo, a literatura assumia o papel de totalidade, como dimensão capaz de produzir e preservar a identidade de uma comunidade, por meio da qual a história deixava de ser apenas a sucessão de acontecimentos isolados, tornando-se fator de desenvolvimento dessa identidade.

Na revista Nitheroy, pela primeira vez reflexões históricas e estéticas unificam-se em torno dessa nova tarefa. A escrita da história deveria apresentar qualidades dramáticas e poetológicas sem abdicar de seu compromisso com a verdade factual, pois “toda a história, como todo o drama, supõe lugar da cena, atores, paixões, um fato progressivo, que se desenvolve, que tem sua razão, como tem uma

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causa, e um fim. Sem estas condições nem há história, nem drama”.42 Mas os projetos de uma história da literatura e de uma poesia românticas ainda não correspondem a uma escrita da história nacional.

Em 1836, John Armitage publicou sua History of Brazil (versão brasileira em 1837), peça de luta política liberal na qual a imagem de um imperador belicoso e passional – D. Pedro I – é contraposta à sociedade civil comercial, aplicando o modelo das narrativas ilustradas para explicar os fatos de 1831. No fundo, é uma história da formação da sociedade civil, uma história que “já não pode ser consi-derada como mera resenha das tiranias e carnificinas, mas antes como o arquivo das experiências tendentes a mostrar a maneira de assegurar aos governados as vantagens do governo”.43

Essa crescente politização da escrita da história é uma das motivações para a criação, em 1838, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, com o qual abriu-se o espaço institucional em que foram pensadas as bases de uma história nacional a partir de um campo de experiência moderno.44 Tal projeto procuraria integrar os avanços da historiografia com o objetivo de produzir uma história nacional brasileira, rompendo assim com vários dogmas do modelo ilustrado (como o seu compromisso com a “socie-dade civil”). Para Cunha Barboza, o Brasil já poderia iniciar a escrita de sua história, pois era o único país da América a possuir uma “literatura nacional”.45 Aqui fica claro que a própria história, como processo real, deveria “produzir as condições para a sua escrita”. O princípio organizador já não dependeria apenas das hipóteses racionais, começando a ser procurado na própria realidade histórica. Também a

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experiência do tempo histórico afastava-se das concepções cíclicas e da ideia de uma natureza humana limitada.46

A meta-história nacional se consolidaria na década de 1840. Barboza lembrava da censura e da herança da fragmentação que no período colonial teriam impedido a visão total que a história requer:

Estes fatos liam-se derramados em vários escritos, ou conservavam-se amortecidos na memória dos homens. Relatados diversamente por escritores, ou nacionais ou estrangeiros, não podiam, até o feliz momento de proclamar-se a nossa Independência, fundar base sólida a nossa nacionalidade.47

O elemento de novidade nessa reflexão é a elevação da Independência a fio condutor da história. Esse evento não apenas teria produzido as condições da escrita, mas seria ele mesmo o grande objeto da narrativa. A história do Brasil deveria ser, desde sua origem, a história de seu processo de emancipação. Como em toda a filosofia da história, o fim estava no começo.

notas

1 BLUTEAU, 1712-1721.2 KANTOR, 2004.3 SILVA, 1823, 1831 e 1844.4 FARIA, 1850-1853.5 FARIA, 1850-1853, grifo nosso.6 SILVA, 1877-1878.7 COUTO, 1981, p. 95, 359, 379, 393.

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8 COUTO, 1981, p. 37, 58-59.9 COUTO, 1981, p. 90, 236.10 COUTO, 1981, p. 474, 522-523.11 COUTO, 1981, p. 358, 364, 379-380, 523.12 BLUTEAU, 1712-1721.13 COUTO, 1981, p. 522-523.14 BLUTEAU, 1712-1721.15 COUTO, 1981, p. 236.16 TEIxEIRA, 1996, p. 195; PROENçA FILHO, 1996, p. 377.17 TEIxEIRA, 1996, p. 232; PROENçA FILHO, 1996, p. 383, 396.18 TEIxEIRA, 1996, p. 203, nota 217; p. 222, nota 182; p. 238, nota 33;

PROENçA FILHO, 1996, p. 359.19 PROENçA FILHO, 1996, p. 430, 432.20 JANCSÓ, 1996.21 CORREIO BRAzILIENSE, 1808, p. 321.22 CORREIO BRAzILIENSE, 1808, p. 44.23 CORREIO BRAzILIENSE, 1808, p. 123.24 PIMENTA, 2007.25 SOUTHEY, 1810, p. 39.26 SILVA, José Bonifácio de Andrada e, 1813, p. 141; CORREIO

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38 ARAÚJO, 2003.39 SILVA, 1825, p. 137.40 DENIS, 1826, p. 513 e seguintes.41 NITHEROY, REVISTA BRASILIENSE, 1836.42 NITHEROY, REVISTA BRASILIENSE, 1836, p. 142.43 ARMITAGE, 1837, p. 25.44 GUIMARãES, 1988; GUIMARãES, 1995.45 RIHGB, 1839, p. 360.46 RIHGB, 1839, p. 78.47 RIHGB, 1843, n. 5, suplemento, p. 5.

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C h r i s t i a n E d wa r d C y r i l L y n c h

liBeral/liBeralismo

Um exame da história das ideias no Brasil deve levar em consideração algumas circunstâncias que a diferenciam dos demais países da América Ibérica. A primeira é que, até 1808, a legislação portuguesa impediu a introdução de tipografias em território brasileiro. Não havendo jornais em circulação ou livros impressos, os leitores se contentavam com a literatura produzida na Europa e que atravessava o Atlântico legalmente ou por via clandestina. Além disso, Portugal evitou criar universidades ou faculdades nos territórios ultramarinos, ficando o saber disponível ao público restrito às bibliotecas dos conventos e às escolas mantidas por religiosos. Os filhos da elite eram obrigados a se deslocar até a Europa, onde faziam seus estudos supe-riores na Universidade de Coimbra. Por isso, não havia consciência de uma identidade brasileira própria até as vésperas da Independência. Uma terceira circunstância excepcional foi a transferência da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro em 1808 e a elevação do Brasil, em 1815,

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à categoria de Reino Unido a Portugal e Algarves. Assim, quando a resistência das cortes de Lisboa em admitir alguma autonomia ao Brasil levou os portugueses da América a considerar uma alternativa secessionista, a experiência monárquica autônoma teve um peso funda-mental na escolha desse regime de governo. Daí que o conceito de liberalismo no Brasil esteve estreitamente vinculado à compreensão da natureza da monarquia constitucional.

No contexto de Antigo Regime, não há vestígio do sentido moderno da palavra liberal. Segundo o Dicionário de Bluteau de 1716, liberal era pessoa generosa “que, com prudente moderação, gratuitamente, e com boa vontade dá dinheiro, ou cousa que o valha”. O termo podia também designar alguém que muito prometia, sem cumprir – “li-beral em prometer, liberal em dar palavras, mas sem efei-to”. Mais interessante é o significado seguinte que, a partir da palavra latina liberalis, isto é, bem nascido, fazia de li-beral sinônimo de “pessoa de qualidade”, distinto dos “plebeus e escravos” – ou seja, nobre. Eram artes liberais aquelas que se opunham às artes mecânicas, ou seja, que eram praticadas “sem ocupar as mãos”, sendo “próprias de homens nobres, e livres não só da escravidão alheia, mas também da escravidão de suas próprias paixões”. A difusão desta concepção de liberal como nobre devia ser tão ampla ou maior ainda no Brasil do que em Portugal, pois qualquer um que tivesse escravos podia viver conforme a lei da nobreza: não exercia trabalho manual, andava de carrua-gem e mantinha criados de libré.1 De qualquer forma, o Dicionário de Bluteau de 1713 já deixava entrever possíveis desdobramentos semânticos, já que, no verbete liberali-dade, adiantava o dicionarista ter essa palavra “grande

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analogia” com liberdade: “O liberal, dando o que tem, descativa em certo modo, e faz livre o que no seu poder estava como preso, e debaixo da chave do seu domínio.”2

Num quadro tal, é mais do que compreensível o caráter pouco igualitário dos planos autonomistas daquela que teria sido – porque não se concretizou – a mais célebre rebelião contra o domínio da Coroa portuguesa: a Inconfi-dência Mineira. Embora presente certa concepção clássica de governo republicano, isto é, que governasse com a justiça de acordo com a lei, não havia espaço para a igualdade civil na república imaginada por Cláudio Manuel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga.3 O exemplo norte-americano os interessava antes como precedente bem-sucedido de rebelião anticolonial do que como modelo de construção jurídico-institucional. Sob o influxo da Revolução Francesa, é possível que tenham sido menos restritivas as concep-ções dos conspiradores da Conjuração Carioca de 1794. O eventual entusiasmo da elite colonial arrefeceria, todavia, na década seguinte, quando ela percebeu que a apologia da liberdade e da igualdade contra o domínio português poderia contagiar os pobres e os próprios escravos contra seus senhores. O exemplo havia sido dado pela rebelião na ilha de São Domingos, quando os escravos massacra-ram os colonizadores franceses. Desde que ganhavam potencialmente um cunho racial e social, ideais que, para a elite proprietária, significavam fim do jugo metropoli-tano e liberdade de comércio, poderiam ter interpretação diversa entre os estratos inferiores da população, como se percebera da Conjuração Baiana de 1798.4

A chegada da Corte bragantina ao Rio de Janeiro em 1808 provocou alterações significativas, ainda que modes-tas, na estreiteza do debate político. Ela introduziu uma

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tipografia, permitiu atividades manufatureiras, possibi-litou que estrangeiros visitassem e residissem no Brasil, criou cursos superiores e, principalmente, acabou com o monopólio comercial português. A despeito da censura e da dificuldade de circulação de outras folhas que não as de caráter oficial, cerca de mil e cem impressos saíram do prelo até 1822. É nesse período que começou a se difundir no Brasil uma noção moderna de liberdade, ou seja, não mais a liberdade dos antigos, republicana clássica ou cons-titucional antiquária, ou de liberdade como privilégio, mas de uma liberdade caracterizada pelos direitos e garantias individuais, baseados em critérios isonômicos.

Antes da apologia do liberalismo em sentido político, houve a do liberalismo econômico, de que se fez advogado o anglófilo baiano José da Silva Lisboa. Ele escreveu a primeira obra publicada no Brasil sobre as vantagens da liberdade comercial, as Observações sobre o Comércio Franco no Brasil.5 Por conta da difusão das doutrinas econômicas do iluminismo escocês, a superação de concepções mer-cantilistas foi acusada pela edição do Dicionário de Moraes, em 1812: além de quem era “largo no dar, e despender, sem avareza, nem mesquinharia”, ou quem exercia trabalhos não mecânicos, também era liberal, agora, aquilo ou aquele que era “livre, franco”. O exemplo fornecido era exatamente de cunho comercial: um “liberal navegação”.6 Já inaugurado o regime constitucional, o deputado mineiro Bernardo Pereira de Vasconcelos sustentou a indissolubilidade entre liberalismo econômico e político: “Favor e opressão significam a mesma coisa em matéria de indústria; o que é indispensável é guardar-se o mais religioso respeito à propriedade e à liberdade do cidadão brasileiro.”7 Do ponto de vista da difusão do ideário político liberal, a grande

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referência do período joanino foi o jornal de Hipólito José da Costa, o Correio Braziliense ou Armazém Literário, publicado em Londres, entre 1808 e 1823, e que, destinado ao público brasileiro, tinha ampla e franca circulação no Brasil. Das páginas de seu periódico, circularam escritos que defendiam a liberdade de imprensa e a necessidade de reforma da monarquia à maneira das instituições inglesas. Assim era que, em 1809, Hipólito da Costa já sustentava que “a liberdade individual do cidadão é o primeiro bem; e protegê-la é o primeiro dever de qualquer governo”. Sem a liberdade de “falar e escrever”, ele ajuntava, “a nação não prospera, porque os dons e vantagens da natureza são poucos para reparar os erros do governo e porque se alguém descobre o remédio ao mal, não lhe é permitido o indicá-lo”. À conta desses motivos, Hipólito da Costa criticava os ministros de D. João que tentavam impedir “a propagação de ideais liberais”.8

A despeito desses precursores, a divulgação maciça dos novos conceitos políticos começou somente em 1821, quando chegaram de Portugal as notícias da Revolução do Porto, exigindo o retorno do Rei a Lisboa e convocando uma Assembleia Constituinte. Exaltado, carregado da lin-guagem do republicanismo clássico e do contratualismo, esse primeiro movimento liberal do mundo luso-brasileiro, conhecido como vintismo, era tributário direto do libe-ralismo espanhol de Cádiz e, por via reflexa, do discurso revolucionário francês de 1789-1791. A aceitação da liberdade de imprensa provocou uma explosão de mani-festações públicas impressas, classificada pelo autor de uma delas como “uma guerra literária, que tem inundado todo o Portugal e Brasil de panfletos e folhas volantes”.9 Esses panfletos eram escritos em linguagem exaltada, desabrida,

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personalista; eram verdadeiros “insultos impressos”.10 O li-beral era apresentado como aquele que queria tanto “o bem de sua pátria” quanto “a liberdade”; que “ama o monarca, respeita-o, quando é respeitável, amaldiçoa-o quando é indigno e tirano, e prefere a morte a um jugo insuportável”. Já o “liberalismo” ou a “liberalidade de idéias”,11 por sua vez, era “a justiça mais pura e mais elevada aplicada a nossas ações e, portanto, a fonte de todas as nossas virtudes”.12 Ao liberalismo era também atribuída a capacidade de resolver todos os males que afligiam portugueses dos dois lados do Atlântico: visto que o regime liberal tinha “a virtude d’Arca Noemítica, hão de habitar à sua sombra diversos caracteres, e todos em perfeita paz”, concluía-se naturalmente que “uma nação (...) com um governo constitucional, ativo, vigilante e enérgico, será certamente uma potência de grande respeito, e consideração política, e terá um lugar distinto entre as Nações de primeira ordem”.13

Pouco frequente o emprego da expressão liberalismo durante o período de efervescência do vintismo – ao exemplo, aliás, do que se passava em Portugal –, os liberais se valiam de outras, como constitucionalismo ou governo representativo, tomados como sinônimos dos dois lados no mundo português.14 Num primeiro momento, eles parecem ter sido intercambiáveis, porque somente era liberal quem queria a Constituição e, com ela, o governo representativo. Daí que cada um deles timbrasse em se declarar “muito liberal e muito constitucional”, desejosos todos de gozar “dos benefícios de uma Constituição liberal”.15 Segundo o Amigo dos Homens e da Pátria, que escrevia naquele ano em Salvador da Bahia, a Constituição era o veículo que permitiria o advento do sistema representativo; era “a norma, ou a regra, que uma sociedade unanimemente

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estabelece para a sua geral conservação, tranqüilidade e bem-estar”.16 Mas persistia também a noção antiquária de Constituição. O autor de Reflexões sobre a Necessidade de Promover a União dos Estados de que Consta o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves nas Quatro Partes do Mundo, publicado em 1822 em Lisboa, entendia que “as Cortes se propuseram formar a Constituição da Monarquia, ou antes, reformar a antiga Constituição Portuguesa”.17 José da Silva Lisboa já distinguia entre as antigas leis fundamentais medievais o conceito moderno de Constituição: ele entendia

por constituição de um Estado o complexo de leis, a que se destina a perpetuidade, qualquer que seja depois a instabilidade das instituições humanas. Em conseqüência, leis constitucionais, no meu humilde entender, são as que antes se chamavam leis fundamentais do Estado, que não se podem derrogar sem ruína do mesmo Estado, ou de sua forma de Governo.18

Do outro lado do espectro político, os vintistas brasileiros invocavam a tese da perfectibilidade humana, para avançar que o progresso impunha a realização de um novo pacto político. O deputado paulista Diogo Antônio Feijó expli-cava de forma detalhada esse nexo entre Constituição e direitos fundamentais:

Qual o objetivo de toda a instituição política, ou de toda a espécie de governo? A garantia dos direitos e da liberdade de cada um (...) O melhor governo, qualquer que seja a sua forma, é pois aquele que afiança os direitos de cada um, e que é obrigado a submeter-se à Constituição.19

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Já o governo ou monarquia representativa era uma modalidade equidistante da democracia e da monarquia pura. Era o que explicava em 1823 a principal figura do direito público brasileiro – o Marquês de Caravelas: “A monarquia representativa é um governo misto, que se combina umas vezes com elementos democráticos, outras vezes com a aristocracia e democracia conjuntamente.”20 Também o Marquês de Barbacena afirmava que “a monar-quia representativa é a melhor forma de governo de quantas até aqui se tem imaginado; e a sua principal perfeição con-siste no equilíbrio ou contrapeso, como alguns chamam, entre os poderes, de que ele se compõe”.21 Essa linha de moderação era compartilhada nas páginas do jornal A Aurora Fluminense pelo carioca Evaristo Ferreira da Veiga: “Nada de jacobinismo de qualquer cor que seja. Nada de excessos. A linha está traçada – é a da Constituição. Tornar prática a Constituição que existe sobre o papel deve ser o esforço dos liberais.”22 No entanto, por conta da Carta francesa de 1814 e, com ela, do surgimento de propostas constitucionalistas vazadas em modelos mais moderados que o do vintismo, cedo se esboçou uma distinção entre constitucionalismo e liberalismo. No entender dos vintistas, eram liberais somente aqueles que, como eles, queriam uma Constituição como a espanhola de 1812, pautada por um regime unicameral e pela submissão do monarca ao legis-lativo. Empregados pelos propalados liberais para designar os que viam como seus inimigos, os contraconceitos de liberalismo e constitucionalismo eram, respectivamente, servilismo e absolutismo ou despotismo, também chamado anticonstitucionalismo e corcundismo. Os servis, cortesãos, absolutistas, pés-de- -chumbo ou corcundas (corcundas de tanto se curvarem ao poder) eram os defensores do

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despotismo ministerial, usufrutuários de privilégios, con-trários a uma sociedade de méritos e de igualdade, e que por isso queriam preservar o antigo regime de opressão, de escravidão. Os primeiros incluídos no rol dos servis ou dos corcundas eram os ministros do Rei, que

monopolizavam com uma prostituição inaudita, as me-dalhas, as honras, as condecorações, que só são, e devem ser, o exclusivo patrimônio dos homens beneméritos, que tem feito relevantes serviços à Pátria e ao Estado (...) Ministros, que senão podem considerar senão como o refugo dos portugueses, vergonha da humanidade, e a escória do servilismo.23

O Dicionário de Moraes Silva acusaria esse sentido político da palavra liberal somente em 1844: “Não servil, indepen-dente, partidista do sistema liberal neste último sentido.”24

Ocorre que não era apenas os absolutistas alcunhados de corcundas ou servis pelos liberais de extração vintista. Depois da crise entre o príncipe regente D. Pedro, no Rio de Janeiro, e as cortes de Lisboa, da qual resultou a Independência do Brasil, também foram acusados aqueles que, não sendo absolutistas, preferiam uma organização constitucional mais equilibrada, à inglesa – o que era o caso de Hipólito José da Costa – ou com velada preponderância da Coroa – como José Bonifácio de Andrada e Silva. Para eles, os princípios vintistas e assemelhados eram “inteiramente teoréticos e inexequíveis”, levando à “anarquia de muitos” e, depois, ao “despotismo de um só”. A eles também eram creditados as guerras civis e os golpes de Estado na França e na Espanha, bem como o banho de sangue na América hispânica. Embora

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justificassem um governo forte pelas dificuldades de construção do novo Império, eles rejeitavam o absolutismo e reconheciam a inevitabilidade do governo representativo. Daí que os chamados coimbrãos não recusavam o ideário do liberalismo ou do sistema representativo, filiando-se, porém, à retórica dos monarquianos franceses de 1789, como Malouet, Mounier e Clermont-Tonnerre. Era esse o estilo de liberalismo – o monarquiano – que tinha o aval do imperador. Ao abrir a Constituinte de 1823, Pedro I declararia que “o povo do Brasil (...) quer uma Constituição, mas não quer demagogia e anarquia”, e que por isso era necessária uma Carta erigida “sobre bases sólidas, cuja sabedoria os séculos testemunharam a verdade, para dar aos povos uma justa liberdade, e ao Poder Executivo, toda a força de que ele precisa”.25 Em outubro de 1823, o secre-tário do imperador, o português Francisco Gomes da Silva, o Chalaça, colocava de forma clara a divergência entre os liberais monarquianos e os liberais vintistas: “Ou queremos monarquia constitucional, isto é, um governo misto, ou queremos uma monarquia republicana.”26

O resultado foi que os coimbrãos e suas ideias monar-quianas passaram a ser atacados pelos vintistas, que lhes negavam a qualidade de liberais. Como os absolutistas, eles eram também servis, corcundas, pés-de-chumbo, despóticos ou simplesmente absolutistas. Assim, o vintista Joaquim do Amor Divino Rabelo, o Frei Caneca, acusava o ministério de José Bonifácio de despótico, porque agia “com os seus terrores, com as suas sugestões, e levando mão das suas arbitrariedades de devassas, prisões, expatriações; não respeitando a liberdade dos povos, a segurança das vidas e pessoas dos cidadãos”, e não deixava “que falem os escritos, veículo da opinião pública”.27 Os liberais defensores

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da Coroa forte, por sua vez, tachavam os vintistas de republicanos, demagogos, democratas e jacobinos – ou, como queria José Bonifácio, “facção oculta e tenebrosa de furiosos demagogos e anarquistas”.28 Essa oposição culminou com a dissolução da Constituinte pelo imperador. Elabo-rada pelo Conselho de Estado e outorgada pelo monarca em março de 1824, a nova Carta era um compromisso entre coimbrãos ou realistas e os vintistas ou liberais: se, por um lado, os primeiros haviam conseguido nela introduzir o bicameralismo e reforçar o poder da Coroa ao atribuir-lhe também o exercício do poder moderador, por outro, foi inserida uma declaração de direitos digna das malogradas constituições ibéricas. Nem por isso o confronto cessou. O antagonismo entre liberais de esquerda e de direita levou a um confronto interinstitucional que opunha a Coroa, o Conselho de Estado e o Senado, com sua linguagem monar-quiana, à Câmara de Deputados, com seu discurso ultra-liberal. Os liberais de esquerda, já autodenominados liberais tout court, invocavam o paradigma do governo parlamentar inglês como o único que efetivamente a ele correspondia e fora da qual tudo era absolutismo, tirania ou despotismo.29

O período posterior, que cobre o período regencial (1831-1840), caracterizou-se pela hegemonia dos antigos liberais, denominados agora moderados porque comba-tiam à direita os antigos realistas, acusados de pretender a restauração de Pedro I (os caramurus), e à esquerda, os exaltados, que queriam o federalismo e simpatizavam com o modelo institucional norte-americano. O principal doutrinário do Partido Moderado era o deputado Evaristo Ferreira da Veiga, que declarava querer o governo “mo-nárquico constitucional representativo, em que os dons

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da liberdade podem ser melhor saboreados, no remanso da paz que ele oferece, contidas as facções com o prestígio da realeza”.30 Promovida por moderados e exaltados com a resistência dos realistas, a reforma constitucional de 1834 se deu no caminho daquilo que julgavam “o verdadeiro liberalismo”, que passava pela concepção presidencialista do Poder Executivo e por uma descentralização político--administrativa. Não é de se admirar que, eleito depois regente do Império numa eleição nacional em dois graus, como um presidente norte-americano, Diogo Antônio Feijó negasse prazenteiro que o Brasil ainda fosse uma “monarquia temperada”. Tratava-se agora de uma monar-quia democrática:

Compare-se o nosso governo com o dos Estados Unidos e conhecer-se-á que no essencial são ambos os Estados governados pelo mesmo sistema, e que a maior diferença está no nome e em certas exterioridades de nenhuma importância para a causa pública (...) De monarquia, só temos o nome.31

Até o início da década de 1830, a prática da monarquia constitucional era interpretada à Montesquieu, predomi-nando a teoria do governo misto ou temperado – segundo a qual a Câmara dos Deputados representava o elemento popular; o Senado vitalício, o aristocrático; e a Coroa, o monárquico – e a da separação de poderes – que identifi-cava as duas câmaras ao Poder Legislativo e o imperador ao Executivo. Dali por diante, porém, sob o influxo do liberalismo doutrinário e a primeira das reformas eleitorais inglesas, consolidou-se uma terceira teoria, a do governo das maiorias ou governo parlamentar, segundo a qual a demissão e a nomeação dos ministros pela Coroa careciam

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também da confiança do Parlamento. Enquanto o regente Feijó continuava a sustentar que o princípio do “governo das maiorias” era “absurdo e subversivo de toda a ordem no Brasil, além de inconstitucional”,32 o oposicionista carioca Firmino Rodrigues Silva retrucava que “no sistema representativo – governo sem maioria – é frase absurda que não tem explicação alguma”.33 Em 1844, o Dicionário de Moraes Silva incorporou enfim a ideia de “sistema, ou governo representativo”, qualificando como “aquele em que a autoridade soberana é exercida em nome do povo, por representantes ou delegados escolhidos por ele”. Na mesma edição, surge também o registro do sentido político da palavra liberal: “Usa-se também para designar os governos representativos.”34

Em 1837, com a morte de Pedro I em Portugal e a ameaça de separatismo das províncias, a ala direita dos moderados se destacou para aliar-se aos antigos realistas e fundar o Partido Conservador ou saquarema. Tratava--se, segundo seus líderes, de podar os excessos provocados pela reforma constitucional e restaurar a configuração institucional monarquiana de 1824. De fato, os regressistas entendiam que o progresso só poderia se dar dentro da or-dem, e que, para isso, teriam de retrogradar, o tanto quanto possível, à época anterior ao predomínio “democrático” da Regência, ou seja, ao tempo do reinado de Pedro I, quando pontificava o “princípio monárquico”. Ao mesmo tempo que admitia a teoria do governo das maiorias (diverso de parlamentarista), o conservadorismo brasileiro absorveu o discurso monarquiano precedente, criando um governo parlamentar pautado pela tutela da Coroa. A fundação do Partido Conservador levou os demais moderados a criar seu próprio partido – Liberal ou luzia. Já por esse tempo,

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liberal deixara de ser meramente antônimo de absolutista, para se tornar sinônimo de pessoa de ideias avançadas, isto é, de progressistas – contrários, portanto, aos conser-vadores ou regressistas. A filosofia da história, segundo a qual o motor da civilização era a luta entre a unidade, a monarquia, o governo, a autoridade ou a ordem, de um lado, e a pluralidade, a democracia, a sociedade, a liberdade ou o progresso, de outro, era o pano de fundo que orientava os grupos políticos para interpretar o funcionamento do governo parlamentar, do bipartidarismo e do papel da Coroa em torno de um consenso mínimo. Sua alternância no poder era fundamental para que a resultante dessa dia-lética fosse o progresso dentro da ordem. Assim, um liberal extremado como o mineiro Teófilo Benedito Otoni podia se referir, no início da década de 1860, aos “dois princípios que estão em luta eterna em todos os governos possíveis, o princípio progressista e o conservador”.35

Teórico do liberalismo conservador, o visconde do Uruguai entendia que havia um falso paralelismo entre ser liberal e ser membro do Partido Liberal, para ele coisas muito diferentes: “Digo a opinião chamada liberal, porque estou profundamente convencido de que é contrária à verdadeiramente liberal.”36 No Brasil, o verdadeiro liberal era o conservador, que exigia, pela centralização, o robus-tecimento da autoridade do Estado, agente civilizador capaz de se impor à aristocracia rural, acessar a população subjugada no campo e fazer valer os direitos civis. Daí que Uruguai achasse que “grande liberal por excelência é um verdadeiro tiranete, que quer dispor e dispõe de tudo a seu talante, que o que se quer é substituir o que chamavam o filhotismo e a oligarquia por um filhotismo e oligarquia verdadeiros e maior”.37 Dado seu caráter pulverizador e

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particularista, a retórica liberal do progresso era veiculada por aqueles que queriam o privatismo e a fragmentação, isto é, um autêntico “regresso”; ao passo que a retórica conservadora da ordem, garantindo a unidade nacional e o interesse público, é que havia conseguido forjar o pouco de verdadeiro progresso que o país conseguira desde a Independência. Era justamente porque o conservador amava a liberdade “que se devem empregar todos os meios para salvar o país do espírito revolucionário, porque este produz a anarquia, e a anarquia destrói, mata a liberdade, a qual somente pode prosperar com a ordem”.38 Esse discurso liberal de direita encontrará seu zênite durante os primeiros vinte anos do reinado de Pedro II. Não por acaso, foi nessa mesma época – 1858 – que o Dicionário de Moraes Silva acusou, finalmente, a entrada do verbete liberalismo, entendido como “Sistema, adoção das idéias liberais. Procedimento político regulado por essas idéias; o contrário de servilismo.”39

notas

1 SILVA, 2005, p. 23.2 BLUTEAU, 1713.3 FLECK, 2004, p. 31.4 GRIMBERG, 2002, p. 53.5 MARTINS, 1974, p. 19.6 SILVA, 1813.7 SOUSA, 1988, p. 73.8 COSTA, 1977.9 RIO DE JANEIRO, 1822.10 LUSTOSA, 2000.

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11 MIRANDA, 1821, VI.12 NEVES, 2003, p. 147.13 ExAME, 1820, p. 23.14 VERDELHO, 1981.15 MIRANDA, 1821, Ix.16 SILVA, 1999, p. 230.17 REFLExÕES, 1822.18 RODRIGUES, 1974.19 FEIJÓ, 1999, p. 144.20 AACB, 26/06/1823.21 ASI, 27/06/1832.22 SOUSA, 1988b.23 MIRANDA, 1821, Ix.24 SILVA, 1844.25 AACB, 03/5/1823.26 VIANA, 1967, p. 174.27 CANECA, 1976.28 LUSTOSA, 2000.29 VASCONCELOS, 1978, p. 120.30 SOUSA, 1988b.31 FEIJÓ, 1999, p. 166.32 FAORO, 1997.33 MASCARENHAS, 1961.34 SILVA, 1844.35 OTONI, 1916, p. 160.36 URUGUAI, 1960, p. 493. Grifo meu.37 SOARES DE SOUSA, 1944, p. 619.38 SOARES DE SOUSA, 1944, p. 163.39 SILVA, 1858.

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BiBliografia

fontes primárias

ANDRADA E SILVA, José Bonifácio de. José Bonifácio de Andrada e Silva. Organização de textos e introdução de Jorge Caldeira. São Paulo: Editora 34, 2002.BARBOSA, Januário da Cunha; LEDO, Gonçalves. Revérbero Constitu-cional Fluminense, Escrito por Dous Brasileiros Amigos da Nação e da Pátria. t. I-II. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1822.BRASIL. Assembléia Constituinte Brasileira (AACB). Anais, 1823.BRASIL. Atas da Câmara dos Deputados (ACD).BRASIL. Atas do Senado Imperial (ASI), 1832.CANECA, Joaquim do Amor Divino Rabelo. Ensaios políticos: crítica da Constituição outorgada; Bases para a formação do pacto social e outros. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 1976.CONSELHO FEDERAL DE CULTURA (BRASIL). O debate político no processo da Independência. Introdução de Raimundo Faoro. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1974.COSTA, Hipólito José. Antologia do Correio Braziliense. Organização e seleção de Barbosa Lima Sobrinho. Rio de Janeiro: Cátedra, 1977.ExAME Analítico-Crítico da Questão: o Rei, e a Família Real de Bragança devem, nas Circunstâncias Presentes, Voltar a Portugal ou Ficar no Brasil? Bahia, Tipografia da Viúva Serva e Carvalho, com Li-cença da Comissão de Censura (1820). In: CONSELHO FEDERAL DE CULTURA (BRASIL). O debate político no processo da Independência. Introdução de Raimundo Faoro. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1974. p. 23.FEIJÓ, Diogo Antônio. Diogo Antônio Feijó. Organização, introdução e notas de Jorge Caldeira. São Paulo: Editora 34, 1999.GONzAGA, Tomás Antônio. Tratado de direito natural. Organização e apresentação de Keila Grinberg. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

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JAVARI, Barão de (Org.). Império Brasileiro: falas do trono, desde o ano de 1823 até o ano de 1889, acompanhadas dos respectivos votos de graça da câmara temporária e de diferentes informações e esclarecimentos sobre todas as sessões extraordinárias, adiamentos, dissoluções, sessões secretas e fusões com um quadro das épocas e motivos que deram lugar à reunião das duas câmaras e competente histórico, coligidas na secretaria da Câmara dos Deputados. Prefácio de Pedro Calmon. Rio de Janeiro: Itatiaia, 1993.MIRANDA, José Antônio de (1821). Memória constitucional e polí-tica sobre o estado presente de Portugal e do Brasil. In: CONSELHO FEDERAL DE CULTURA (BRASIL). O debate político no processo da Independência. Introdução de Raimundo Faoro. Rio de Janeiro: Con-selho Federal de Cultura, 1974.OTONI, Teófilo. Circular dedicada aos srs. eleitores de senadores pela província de Minas Gerais, no quatriênio atual, e especialmente diri-gida aos srs. eleitores de deputados pelo segundo distrito eleitoral da mesma província para a próxima legislatura. In: MAGALHãES, Basílio. A circular de Teófilo Otoni. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, Separata do tomo LxxVIII, parte 2, 1916.REFLExÕES sobre a Necessidade de Promover a União dos Estados de que Consta o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves nas Quatro Partes do Mundo (1822). In: CONSELHO FEDERAL DE CULTURA (BRASIL). O debate político no processo da Independência. Introdução de Raimundo Faoro. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1974. p. 4.RIO DE JANEIRO, Compadre de (1822). Justa Retribuição dada ao Compadre de Lisboa em Desagravo dos Brasileiros Defendidos por Várias Asserções, que Escreveu na sua Carta em Resposta ao Compa-dre de Belém. Segunda Edição Correta e Aumentada. In: CONSELHO FEDERAL DE CULTURA (BRASIL). O debate político no processo da Independência. Introdução de Raimundo Faoro. Rio de Janeiro: Con-selho Federal de Cultura, 1974.URUGUAI, Paulino José Soares de Sousa. Estudos práticos sobre a administração das províncias do Brasil. Primeira parte. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1865.URUGUAI, Paulino José Soares de Sousa (1862). Ensaio sobre o direito administrativo. Rio de Janeiro: Ministério da Justiça, 1960.VASCONCELOS, Bernardo Pereira. Manifesto político e exposição de princípios. Introdução do Senador Petrônio Portella. Brasília: Senado Federal, 1978.

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VASCONCELOS, Bernardo Pereira. Bernardo Pereira de Vasconcelos. Organização e introdução de José Murilo de Carvalho. São Paulo: Editora 34, 1999.

dicionários

BLUTEAU, Rafael. Vocabulário português et latino, áulico... autorizado com exemplos dos melhores escritores portugueses e latinos, e oferecido a El-Rei de Portugal, D. João V. Coimbra: Colégio das Artes da Compa-nhia de Jesus; Lisboa: José Antônio da Silva, 1713.SILVA, Antonio de Moraes. Dicionário da língua portuguesa, reco-pilado dos vocabulários impressos até agora, e nesta segunda edição novamente emendado, e muito acrescentado. 2. ed. Lisboa: Tipografia Lacerdina, 1813.SILVA, Antonio de Moraes. Dicionário da língua portuguesa, recopilado de todos os impressos até o presente. 3. ed. Lisboa: M. P. de Lacerda, 1823.SILVA, Antonio de Moraes. Dicionário da língua portuguesa. 4. ed. Lisboa: Imprensa Régia, 1831.SILVA, Antonio de Moraes. Dicionário da língua portuguesa. Quinta edição, aperfeiçoada, e acrescentada de muitos artigos novos, e eti-mológicos. 5. ed. Lisboa: Tipografia de Antonio José da Rocha, 1844.SILVA, Antonio de Moraes. Dicionário da língua portuguesa. 6. ed. Lisboa: Tipografia de Antonio José da Rocha, 1858.

fontes secundárias

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GRIMBERG, Keila. O fiador dos brasileiros: cidadania, escravidão e direito Civil no tempo de Antônio Pereira Rebouças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.LUSTOSA, Isabel. Insultos impressos: a guerra dos jornalistas na inde-pendência – 1821-1823. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.LYNCH, Christian Edward Cyril. O discurso político monarquiano e a recepção do conceito de poder moderador no Brasil (1822-1824). Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 48, n. 3, p. 611-654, 2005.MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira. São Paulo: Cultrix, 1974. v. 2.MASCARENHAS, Nélson Lage. Um jornalista do Império: Firmino Rodrigues Silva. São Paulo: Nacional, 1961.MAxWELL, Kenneth. A devassa da devassa: a inconfidência mineira: Brasil-Portugal – 1750-1808. 5. ed. Tradução de João Maia. São Paulo: Paz e Terra, 2001.NABUCO, Joaquim. Um estadista do Império. 5. ed. Prefácio de Raimundo Faoro. Posfácio de Evaldo Cabral de Melo. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997.NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e constitucionais: a cultura política da independência (1820-1822). Rio de Janeiro: Revan, 2003.RODRIGUES, José Honório. A Assembléia Constituinte de 1823. Pe-trópolis: Vozes, 1974.SILVA, Maria Beatriz Nizza da. A cultura luso-brasileira: da reforma da Universidade à Independência do Brasil. Lisboa: Editorial Estampa, 1999.SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Ser nobre na Colônia. São Paulo: Unesp, 2005.SOARES DE SOUSA, José Antônio. A vida do Visconde de Uruguai. Edição ilustrada. Rio de Janeiro: Nacional, 1944.SOUSA, Otávio Tarquínio. Vida de Dom Pedro I. São Paulo: Melhora-mentos, 1972.SOUSA, Otávio Tarquínio. Bernardo Pereira de Vasconcelos. Belo Horizonte: Itatiaia, 1988a.SOUSA, Otávio Tarquínio. Evaristo da Veiga. Belo Horizonte: Itatiaia, 1988b.VERDELHO, Telmo dos Santos. As palavras e as idéias na Revolução Liberal de 1820. Coimbra: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1981.VIANA, Hélio. Dom Pedro I jornalista. São Paulo: Melhoramentos, 1967.

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M a r c o A . Pa m p l o n a

nação

Falar de nação, ou dos demais conceitos congêneres, implica atenção às várias camadas de tempos superpostos que carregam e às composições bastante específicas desses muitos tempos que em diferentes momentos costumam expressar.

O período que nos interessa aqui – de 1750 a 1850 – mostra-se particularmente rico para demarcarmos as sutis mudanças de ênfase entre os distintos significados que comporta o vocábulo. As profundas transformações políticas e sociais experimentadas entre 1760 e 1830 – associadas ao ciclo das revoluções modernas, iniciado nas colônias com a Revolução Americana, seguido pelas Revo-luções Francesa e do Haiti e ampliado com as revoluções liberais desencadeadas nas metrópoles ibéricas e com as independências das suas colônias americanas – intervieram radicalmente. Ao longo desses anos, novos, diferentes e acelerados processos de mudanças semânticas foram caracterizando o termo. Em especial, tratou-se de redefinir

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a conotação política que já então particularizava a palavra nação e ampliá-la, ajustando-a a diferentes conjunturas.

Assim, ainda que a inicial polissemia característica do vocábulo fosse mantida, com seus conhecidos aspectos de natureza étnica e cívica, a identificação com o político fortaleceu-se e ganhou novos contornos.

Num espaço de tempo não superior ao de duas gerações, novos conteúdos se afirmaram e ressignificaram progres-sivamente o termo. Mesmo quando os velhos significados permaneciam (é o caso do conteúdo étnico que sempre acompanhou o termo natio, identificando-o à descendência ou à gens), eram os vínculos entre nação e Estado, ou nação e ordem política, os que marcariam as vozes mais representativas desse embate cultural no período.

Observamos isso, inicialmente, por meio da análise do léxico político e do seu registro nos dicionários de época. O Vocabulário Portuguez e Latino, do padre Raphael Bluteau, publicado em 1716, já definia nação como um “nome cole-tivo, que se diz da Gente, que vive em alguma grande região ou Reino, debaixo do mesmo Senhorio”. E, acrescentava:

Nisso se diferencia nação de povo, porque nação com-preende muitos povos, & assim Beirões, Minhotos, Alentejões, & c. compõem a nação Portuguesa; Bávaros, Saxões, Suábios, Hamburguenses, Brandenburguenses, & c. compõem a nação Alemã; Castelhanos, Aragoneses, Andaluzes, & c. compõem a nação Espanhola.1

Tal percepção – ao associar a Nação ao Reino, à auto-ridade de um mesmo Senhorio, à Monarquia – via-se ainda relacionada ao contexto do Antigo Regime. Junto a ela, outros sentidos prévios do termo continuam sendo

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lembrados, mantendo-se a associação a etnias, castas, a uma mesma língua, ascendência ou origem comum. Há inclusive referências ao que Bluteau chamou de “Nações de extraordinário e monstruoso feitio de que fazem men-ção Autores antigos & modernos”. Dentre esses estranhos grupos, destacam-se os Masuyûs, uma nação do Grão-Pará mencionada pelo padre Simão de Vasconcellos, no seu livro Notícias do Brasil, sobre os quais afirma, fantasiosamente, serem “casta de gente que nasce com os pés às avessas”. Também os Curinqueans são citados como habitantes das terras do Grão-Pará, com “dezesseis palmos de alto, aos quais todos os outros têm muito respeito”.2 Tácito, falando--nos de Gentiles nationes, os da mesma nação, ou Cícero, mencionando a Gentilia sacrificia, também são citados. Aí estão, enfim, as nações associadas a vários grupos étnicos, a vários “outros”, definidos de inúmeras maneiras, mas, especialmente, em função do seu lugar de origem. Assim, as nações, continuavam a designar o modo como na Antigui-dade os romanos se referiam aos “bárbaros” que habitavam o Império, vindos de diferentes regiões; ou como eram classificados os estudantes, de forma a atribuir-lhes uma identidade nas universidades medievais – por exemplo, os da Universidade de Paris, representando a fidèle nation de Picardie ou a honorable nation de France, entre outras.3

Também o Dicionário da língua portuguesa de Antonio de Moraes Silva, ao longo de várias edições – como na sua quarta edição, de 1831 – , registrava o significado “antigo” do vocábulo, associando-o a atributos etnoculturais e ao estrangeiro – ao não igual ou “outro” – e, sobretudo, àquele que não podia ser reconhecido como par, ou cidadão. Daí a expressão “Gente de Nação”. O Dicionário de Moraes Silva registrava esse último termo, identificando-o aos

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“descendentes de Judeus, Cristãos novos. Raça, casta, espé-cie”. Observamos, entretanto, que o significado antigo não era o primeiro a vir anunciado no verbete. Uma definição principal e mais ampla em geral o precedia, tal como no dicionário de Bluteau. Em ambos os léxicos, o primeiro sig-nificado do termo nação vinha referido a civitas e descrevia sobretudo “a gente de um paiz, ou região, que tem Lingua, Leis e Governo á parte”. Como exemplos concretos desses grandes aglomerados de gente, politicamente organizados, vinham citadas a “Nação Francesa, Espanhola, Portuguesa”. Tidas como modernas, nelas valorizava-se, sobretudo, a ordem política, ainda que fossem admitidas a unidade de língua e o território como expressões importantes para particularizá-las.

Na 5ª edição do Dicionário de Moraes Silva, de 1844, o termo nação manteve os mesmos significados da edição anterior de 1831. O registro da etimologia de algumas pa-lavras – por exemplo, “Nação” (do latim natio, onis) – era a única novidade apresentada. Foi apenas com a 6ª edição do Dicionário, em 1858, que as grandes transformações semânticas observadas previamente apareceram consoli-dadas. Reproduzamos na íntegra o verbete nela presente para melhor comentá-lo.

Nação, s. f. (do Lat. natio) A gente de um país, ou re-gião, que tem lingua, leis, e governo à parte: v. g. a nação Francesa, Espanhola, Portuguesa. §. Gente de Nação; i. e. descendente de Judeus, Cristãos novos. §. Nação; fig. raça, casta, especie. Prestes.

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+ (Nação, Povo. Sin.) No sentido literal e primitivo. A palavra nação indica uma relação comum de nascimento, de origem; e povo uma relação de número, e de reunião. A nação é uma dilatada família; o povo é uma grande reunião de seres da mesma espécie. A nação consiste nos descendentes de um mesmo pai, e o povo na multidão de homens reunidos em um mesmo sitio. Em outra accepção a palavra nação compreende os naturais do paiz; e o povo todos os habitantes. Um povo estrangeiro que forma uma colônia em país longínquo, continua ainda a ser Inglês, Português, Espanhol etc. é-o por nação, ou de origem. Diversos povos reunidos, ligados por differentes relações comuns em um mesmo paiz, formam uma nação; e uma nação se divide em vários povos, diversos uns dos outros por differenças locais e físicas, ou políticas e morais. A nação está intimamente unida ao paiz pela cultura, ela o possui; o povo está no país, ele o habita. A nação é o corpo dos cidadãos; o povo é a reunião dos reinicolas. Uma nação divide-se em muitas classes; o povo é uma delas; é a parte mais numerosa de que a nação é o todo.4

Após as quatro primeiras linhas, em que são repro-duzidas definições presentes em edições anteriores, nos deparamos com acréscimos, de fato, novedios. Primeira-mente, está a apresentação de nação como sinônimo de povo, não mais a sua soberania repousando no Monarca ou no Reino, indicando-nos que o jusdivinismo progressiva-mente cedera lugar ao jusnaturalismo. Em segundo lugar, ressignifica-se uma distinção fundamental entre esses dois termos. A nação, inicialmente associada à origem e à relação comum de ascendência, vem agora descrita como “uma dilatada família” que “...consiste nos descendentes de um mesmo pai”. E, o povo, inicialmente, identificado a uma

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mera relação de número, uma reunião; é agora a “multidão de homens reunidos em um mesmo sítio”. E, enquanto a primeira expressão compreende apenas “os naturaes do paiz”, a segunda diz respeito a “todos os [seus] habitantes”.

Tais diferenças e redefinições se dão a partir do sentido novo e fundamental que a palavra nação começou a revelar nos anos que se seguiram ao vintismo, no mundo ibérico – nos referimos ao sentido de separação, de distinção de um povo em relação a outro. Uma tal dimensão que não escapou absolutamente a Moraes Silva. Assim, quando o autor nos diz, por exemplo, que “(um) povo estrangeiro que forma uma colonia em país longínquo, continua ainda a ser Inglês, Português, Espanhol etc. é-o por nação, ou de origem”, ele está entendendo o “nacional” como algo que se situa na base do “internacional”; e, simultaneamente, como o oposto ao estrangeiro. Em suma, o adjetivo “nacional” passou a significar não só o que é “relativo à nação”, mas o que é “relativo à nossa nação”, com a exclusão das outras. E é nessa última acepção, com a particularização agora de uma dada nação entre as outras, que passamos a assistir ao desenvolvimento dos muitos nacionalismos que marcaram o século xIx.

No mundo luso-brasileiro, a diferenciação conceitual mais importante entre os dois termos tratados deu-se à época do vintismo e foi, a saber, aquela que acabou identificando a nação ao “corpo dos cidadãos”. Assim, enquanto o vocábulo povo permaneceu associado ao conjunto maior dos habitantes do reino, à “reunião dos reinicolas”, a relação entre nação e civitas viu-se reforçada ou enfatizada. Nação tornou-se indissociada, no léxico político do período, da ideia de uma dada ordem política, ou de uma “república” (do latim respublica, res e publica,

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a coisa pública); ou o “que pertence, e respeita ao público de qualquer Estado”. E, segundo a definição bastante clara de Moraes Silva, nação referia-se não a todos, mas apenas aos que eram cidadãos, aos que gozavam de direitos e privilégios em algum foro, aos que habitavam cidades ou vilas e, em suma, aos que, por se encontrarem nessa con-dição, como pertencentes a uma particular “vizinhança”, ou compondo um dado “corpo de cidadãos”, passavam a poder reivindicar a sua representação na nação moderna que se afirmava. As definições de cidadão e de cidade que predominaram a partir dos anos de 1820, e que nos são dadas por Moraes Silva nesta mesma edição, bem como as de povo, reiteram essa perspectiva. É a nação que, como “conceito fundamental”,5 se faz combinar a esses outros de similar importância – povo, cidadão etc. – redefinindo, informando e direcionando o conteúdo político e social da própria língua.

Cidadão (do latim civis) referia-se ao homem que gozava dos direitos de alguma cidade, de isenções ou pri-vilégios que a condição de “vizinho” em uma cidade lhe conferia. Era no Brasil sinônimo de “homem bom”. Com a frase “faziam um juiz cidadão da cidade, ou vila, e outro fidalgo”, Moraes também deixa claro que cidadão não se confundia com fidalgo. Sua definição é melhor precisada quando analisamos a descrição que ele mesmo faz de cida-de (do espanhol ciudad, do latim civitas). Primeiramente, a cidade é descrita apenas como “povoação de graduação superior às Vilas. Antigamente deram este nome a vilas, ou Concelhos, e povoações grandes.” E sua definição plena se dá quando Moraes afirma que “a Cidade por excelência se entende daquela onde estão os que falam”. As gentes da cidade ou da vila opõem-se, pois, às da corte. Os cidadãos

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são já votantes e eleitores e é nessa condição que poderão passar a representar a nação.

A representação da nação, em suma, não se fazia por indivíduos quaisquer e não podia ser o somatório numé-rico daqueles, tomados isoladamente. Ela era a represen-tação de “um certo tipo de gente”, de “uma dada condição de gente” – daqueles que pertenciam a corpos (políticos) específicos. O “cidadão” era, pois, sinônimo de “pessoa honrada” ou “vizinho de alguma cidade”; correspondia, via de regra, aos homens de propriedade e posição no conjunto da população do Império brasileiro; representava a “boa sociedade” naquela ordem, no dizer de Ilmar Rohloff de Mattos.6 O “cidadão” vinha identificado às muitas polities anteriores – associadas quer às vilas, comunidades de sú-ditos, e vizinhanças –, em especial àquelas profundamente enraizadas nas instituições coloniais do passado e que puderam parcialmente sobreviver. Nessas comunidades, os significados se sobrepuseram uns aos outros, misturaram--se tradição e modernidade, no dizer de François-xavier Guerra. Ainda que restritos ao caso do México, os seus estudos mostraram como essa relação, ao mesmo tempo de oposição e complementaridade, e de permanente ambi-guidade entre tradição e modernidade, contribuiu para manter a polissemia de alguns desses conceitos – tais como cidadão, soberano, povo etc. – abusivamente empregados ao longo do século xIx.7

A chamada regeneração vintista portuguesa e seus imediatos desdobramentos no ultramar representaram uma primeira e importante inflexão para o processo de transformação semântica do vocábulo nação e das demais expressões a ele diretamente relacionadas. A singularidade luso-brasileira, entretanto, começou antes – nos anos de

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1808 e 1815. O fato de Portugal ser uma monarquia com-pósita e um agregado de reinos não impediu o caráter uni-tário do Estado de prevalecer. Diferentemente da Espanha, a monarquia plural que produziu “nações” hispânicas de seus fragmentos, durante a ocupação,8 o Reino português e seus domínios foram mantidos. Contribuíram para isso, primeiramente, a transmigração da Corte para o Rio de Janeiro em 1808; em segundo lugar, a criação do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, em 1815.

Durante os anos iniciais da década de 1820, entretanto, constrangimentos vários, de natureza estrutural e conjun-tural, criaram circunstâncias particulares que acabaram redirecionando as ações políticas dos principais agentes. É desse período a profusão de “atos de fala”9 enunciados no interior de comunidades argumentativas específicas (nos referimos, por exemplo, aos debates em jornais, constituintes, cortes e assembleias). É no interior desses espaços, dependendo sempre de variáveis temporais e de lugar, e referido a meios sociais determinados, que o sen-tido convencional de um dado termo começa a mudar, ora mais rápida, ora mais lentamente. É observando tais “atos de fala” que podemos perceber como e quando os velhos significados passam a perder o seu peso, misturam-se com novas conotações e começam a atribuir positividade a expressões antes tidas como derrogatórias; ou mesmo a condenar aquelas antes consideradas corretas. Quando antigas designações se mostram inadequadas à realidade ou incompatíveis com as novas ideias professadas, elas costumam ser redefinidas. O resultado final apresentado pelos dicionários é importante, mas encontra-se já crista-lizado. O léxico não nos permite a percepção do embate mais vivo, captar todas as tensões que a fala em ato carrega,

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com sua intencionalidade e emoção, e que, num ou noutro momento específico, sofre transformações.

Para captarmos um pouco dessa dinâmica, cabe pro-cedermos a uma rápida análise de certas falas que foram marcantes na conjuntura cambiante dos anos que se seguiram ao vintismo. Para uma periodização desses anos cruciais do ponto de vista da afirmação do Estado-nação moderno na América portuguesa, sugerimos a diferenciação, grosso modo, de dois momentos de inflexão chave. Um primeiro momento, associado ao debate em torno do constitucionalismo (1821-1822), contempla tanto a defesa de um governo constitucional ainda nos marcos do reino de Portugal, como a opção pelo governo constitucional com a separação e criação do Império do Brasil. Assim, reconhecer-se “brasileiro”, entre 1820 e 1822, não signifi-cava necessariamente abrir mão do sentimento de perten-cimento político à “grande família lusitana”. Entretanto, o termo politizava-se crescentemente, com a adesão à “causa do Brasil”, e transitava da defesa da “paridade de direitos entre os Reinos” para a adesão à independência e à unidade do novo Império brasílico, após o setembro de 1822.

Isso ficou bastante claro em algumas das vozes mais representativas dos embates culturais à época, e que foram veiculadas pela imprensa que apoiava a separação do Brasil de Portugal. Assim, juntamente com as discussões de A Malagueta, de Luís Augusto May, os debates apresentados no menos exaltado Revérbero Constitucional Fluminense ao longo desses anos revelaram magistralmente essas muitas tensões. O primeiro número do Revérbero, por exemplo, não poupou elogios ao “memorável 24 de Agosto de 1820”, que desferira, afirmava o hebdomadário, um golpe mor-tal ao absolutismo. Ele era dirigido aos “portugueses de

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ambos os Mundos!”, “de um e outro hemisfério”, e os dois brasileiros responsáveis pelo jornal – Joaquim Gonçalves Ledo e o cônego e poeta Januário da Cunha Barbosa – intitulavam-se “amigos da nação e da pátria”. A epígrafe que se repetiria em todos os próximos números – Redire sit nefas (“Voltar atrás é crime”) – lembrava o compromisso coletivo de conservar “intacta, inviolável, e sagrada a santa e augusta obra da nossa regeneração política”, associada ao 24 de Agosto de 1820. Tratava-se, diziam eles, de não deixar apagar “o sagrado fogo da Liberdade, que accen-dido no Doiro, inflammou-se no Téjo, e generalisou-se do Amazonas ao Prata”. Finalizavam o primeiro número com o brado: “Avante, Amigos da Nação e do Rei; unidos triunfaremos, e divididos voltaremos ao nada.”10

Maior ressignificação dos sentidos dessas e de outras expressões em uso no período – brasileiro, brasílico, por-tuguês, corcunda, nação, reino, império, pátria etc. – ficaria por conta da nova conjuntura, após a separação efetivada em 1822. Há uma maior politização dos termos utilizados. Assim, nos anos seguintes (1823-1824), o eixo do debate viu-se deslocado para outras direções. No novo cenário, o anticonstitucionalismo acabou se confundindo com o apoio ao português. Foi essa a sutil mudança operada também em relação ao corcundismo, como nos lembra Lúcia Bastos em seu trabalho.11 O epíteto de “corcunda”, inicialmente conferido aos defensores do absolutismo, passou a ser aplicado àquele que apoiava o interesse por-tuguês em geral. Em contrapartida, a partir de meados de 1822, especialmente na imprensa local, a “causa brasíli-ca” associou-se à luta contra “a revoltante agressão” dos portugueses e ao movimento pela independência e pela edificação de um Império brasílico, como alternativa ao

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Império luso-brasileiro. A reunião em junho do mesmo ano de uma Assembleia Geral Constituinte e Legislativa, composta de deputados das muitas províncias brasílicas, serviu para reforçar mais ainda essa conotação. A expres-são corcunda passou a designar, de forma pejorativa, o antibrasílico, agora aqui entendido como aquele que se opunha à causa da separação do Brasil.12

A partir de 1823, com os debates da Constituinte e após a Constituição outorgada, em 1824, seriam deslanchadas novas discussões sobre os poderes das províncias brasílicas, dando início às discussões sobre as autonomias provinciais.

O segundo momento de inflexão que assinalamos para o período é aquele marcado pela tensão entre a Corte e os governos provinciais e locais, pela disputa entre centrali-zação e federalismo, disputa essa fortemente acirrada na década de 1830. Ao projeto de unidade sob a direção do Rio de Janeiro, acalentado por grupos articulados ao aparato político lá instalado desde 1808, opunha-se a resistência daquelas elites provinciais mais ciosas de sua autonomia. Cabe lembrar que séculos de colonização haviam engen-drado unidades político-administrativas que mantinham fracos vínculos entre si e demandavam maior autonomia para gerir seus interesses, sem a interferência de governos a elas externos, fosse o de Lisboa, fosse o do Rio de Janeiro. Parece que a arquitetura de poderes no Portugal do Antigo Regime deixara suas marcas, pois, como insiste em afirmar Nuno Gonçalo Monteiro, uma das peculiaridades do reino era “a inexistência de poderes formalizados em âmbito regional”. A instância de poder local privilegiada era a municipal – com conselhos municipais, marcadamente “a-regionais e antirregionais” – não a provincial.13

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Por outro lado, os desafios à manutenção da ordem escravista, a transferência da Corte para a colônia e os acon-tecimentos a ela subsequentes advindos com o vintismo haviam introduzido no panorama político a alternativa de unidade da América portuguesa em um único Estado. A tensão entre a proposta de unidade capitaneada pela Corte e a autonomia das províncias acabaria por marcar a histó-ria das décadas de 1830 e 1840. A unidade sob a direção de um Estado com capacidade de defender os interesses escravistas só era aceitável para as elites provinciais se lhes fosse garantida autonomia suficiente para gerir suas províncias e alguma participação na condução da, agora, política nacional.

A partir das reformas liberais da década de 1830 e, em especial, do Ato Adicional de 1834, ensaiou-se algo do novo modelo. Estabeleceu-se a divisão constitucional das respectivas competências do governo central e dos governos provinciais. Tratava-se de impedir que tendências centrífugas retalhassem a antiga Colônia em diversas uni-dades políticas autônomas, reclamadoras de soberania. Isso implicava a construção de um aparelho institucional, no qual as elites provinciais pudessem defender seus interesses específicos e, ao mesmo tempo, influenciar a política geral – o que se daria por meio das representações na Câmara dos Deputados.

De 1831 a 1837, abriu-se um quadro de enorme insta-bilidade política, que se fez acompanhar do sufocamento de insurreições de norte a sul em um território ainda em consolidação. Tais conflitos aceleraram a tentativa de institucionalização, por parte do Império, das chamadas instâncias de poder provinciais. Com a abdicação de

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D. Pedro, as reivindicações localistas recrudesceram e foram a principal marca das décadas de 1830 e 1840. Em diferentes momentos, três províncias proclamaram sua independência: no norte o Pará, no centro a Bahia e no sul o Rio Grande. Cinco grandes revoltas se seguiram ao Ato Adicional: no Pará a Cabanagem (1835-1840), na Bahia a Sabinada (1837), no Maranhão a Balaiada (1838-1841) e as mais controladas revoltas de São Paulo e Minas Gerais (1842). Em meio à Farroupilha, na província do Rio Grande, proclamou-se uma República independente e, por dez anos (1835-1845), manteve-se uma guerra fratricida na região contra o poder central.

Ao longo do último decênio de lutas (1840-1852), con-solidou-se a chamada direção Saquarema, logo simbolizada pela famosa “trindade” – Eusébio de Queiroz, Joaquim José Rodrigues Torres (futuro visconde de Itaboraí) e Paulino Soares de Souza (futuro visconde do Uruguai). Tecendo seus interesses a partir da Corte e passando pela província fluminense, os Saquaremas conseguiriam se espalhar pelas demais regiões abrangidas pelo Império.14

A discussão, pois, de quem deveria ser cidadão na nova ordem e a formação mesma da nação como efetiva comunidade de cidadãos caracterizaram esses anos de drásticas mudanças. A adoção do princípio mesmo da “soberania do povo” iniciou uma transformação mais profunda da moldura normativa existente até o momento para a legitimação do poder político.

Época de profunda ressignificação do vocabulário político e das linguagens em uso, os anos que se seguiram ao vintismo podem ser vistos como um período, acima de tudo, inventivo. É quando – diríamos – os contemporâneos

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passaram a explorar, talvez pela primeira vez, o significado mais radical de uma linguagem de direitos. Entretanto esses homens e mulheres de carne e osso, que certamente atuaram e sofreram, o fizeram a partir das instituições e organizações às quais estavam vinculados, a partir das unidades políticas e sociais de ação que conheciam e nas quais se viam inseridos naquele tempo de mudanças.

notas

1 BLUTEAU, 1716, p. 658.2 BLUTEAU, 1716, p. 658.3 GREENFELD, 1992; HABERMAS, 1996.4 SILVA, 1858. Grifos do autor.5 KOSELLECK, 2004, p. 35.6 MATTOS, 1999.7 GUERRA, 2001 e 2003.8 GUERRA, 2003, p. 60.9 POCOCK, 2003.10 RCF, 1821, n. 1, p. 3, 12.11 NEVES, 2003.12 NEVES, 2003, p. 138-139.13 MONTEIRO, 1993, p. 309.14 MATTOS, 1999, p. 190.

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Lú c ia M . Bas t o s P e re i r a das Nev e s

opinião púBlica

Na segunda metade do século xVIII, as testemunhas inquiridas – fosse nas devassas de caráter político1 con-duzidas pela justiça régia por ocasião de um levante ou sedição, fosse nas inquirições eclesiásticas, realizadas por ação de um bispo ou da Inquisição – começavam com frequência seus depoimentos com a expressão de que sabiam, por ouvir dizer, que algo tinha ou não passado.2 Profundamente marcada pela cultura oral e pelos traços próprios do Antigo Regime, aos quais se somara, no entan-to, a peculiaridade da escravidão, a sociedade da América portuguesa evidenciava dessa maneira que a concepção de opinião permaneceu, por um longo tempo, vinculada à de voz popular ou voz geral.3 Esta, num ambiente de cultura predominantemente oral, traduzia a tradição imemorial e o bom senso corrente da comunidade, tanto uma quanto outro atualizados, sem que seus membros participantes se dessem conta, de acordo com as circunstâncias, em opo-sição ao conhecimento letrado, dotado de evidências e de

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motivos racionais, situado em determinado tempo e lugar, no sentido mais propriamente histórico do termo.4 De mea-dos do século xVIII a meados do século xIx – quer dizer, do início da atuação do marquês de Pombal (1750-1777) em Lisboa, à consolidação do Império do Brasil com Pedro II, passando pela transferência da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro em 1808 –, estudar o conceito de opinião pública no mundo luso-brasileiro exige, por conseguinte, que se leve em conta tais características.

Não é rica, porém, a tradição lexicográfica luso-brasileira. Seu fundador, o padre de origem francesa Raphael Bluteau (1638-1734), registrou opinião como “o que se entende e se julga de alguma coisa, conforme notícias que se têm”, o que fazia dela um grande mal, já que poderia levar a muitas contendas sobre religião e razão.5 Indicava, portanto, um significado qualitativo, sob a forma de um julgamento coletivo em matéria de moral, reputação e gosto. Cem anos mais tarde, Antonio de Moraes Silva (1755-1824), natural do Brasil, procurou atualizar a obra de Bluteau, mas não se afastou do mesmo significado: opinião era “parecer, ditame, sentimento, juízo, que se forma de alguma coisa”,6 sentido que se repete nas edições seguintes do dicionário, elaboradas após sua morte, até o final do século xIx. Outros dicionaristas luso-brasileiros também o mantiveram: “Conceito, reputação, boa ou má”;7 “parecer, juízo, dictame, persuasão íntima, crença”.8 Em suma, não há qualquer referência ao conceito de opinião pública nos dicionários luso-brasileiros consultados até o final do Oitocentos, surgindo esse sintagma para a semântica histórica somente com a oitava edição de Moraes Silva, datada de 1890. Nela, indicando enfim uma transformação do conceito, a expressão traz o sentido de “o que o público pensa; o que

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se diz ou julga em geral a respeito de uma questão social, política, econômica, patriótica ou de interesse nacional, ou sobre pontos de religião, de moralidade, de honra”.9

Que a expressão não constasse dos dicionários até 1890, porém, não quer dizer que não integrasse anteriormente “a língua em sua sabedoria”, como diria Gadamer.10 O início da construção do conceito moderno de opinião pública no mundo luso-brasileiro, enquanto uma “invenção política”, para utilizar a expressão de Keith Baker,11 relaciona-se, como seria de esperar-se, ao momento em que as discus-sões políticas começaram a ultrapassar o domínio restrito do círculo privado da Corte para alcançar os novos espa-ços públicos de sociabilidade, surgidos paralelamente às Luzes12 – os cafés, as academias, as livrarias e, até mesmo, as sociedades secretas, que, sob a proteção do segredo,13 converteram a palavra em coisa pública, como salientou François-xavier Guerra.14

No Brasil, coincidindo com a chegada da família real, o passo fundamental se deu com a tardia introdução da imprensa na América portuguesa em 1808. Nesse contexto, surgiram os primeiros periódicos – a Gazeta do Rio de Janeiro (10/09/1808) e a Idade d’Ouro do Brasil (Bahia, 14/05/1811) –, que, embora apresentassem, sobretudo, um caráter noticioso, característico das gazetas antigas,15 emitiam, algumas vezes, opiniões sobre as questões polí-ticas da época. Opinião, nesse momento, já começava a despontar como uma palavra que significava um ponto de vista em oposição à antiga autoridade dogmática.16 Essas notícias passavam a valorizar o interesse dos leitores por tais acontecimentos, possibilitando uma discussão mais pública dos fatos. As gazetas eram “as relações de negó-cios públicos, o que constitui essencialmente a História do

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tempo, ou para falar com mais propriedade, a coleção de documentos para escrever a História”.17 Alguns meses antes, em junho de 1808, Hipólito José da Costa (1774-1823) iniciara, em Londres, a redação do Correio Braziliense, considerado pela historiografia como o primeiro periódico brasileiro. Partilhando os valores e atitudes comuns que se manifestavam na República das Letras, Hipólito pretendia ser o “primeiro despertador da opinião pública” e atrair a curiosidade dos povos para os fatos recentes. Acreditava que “o primeiro dever do homem em sociedade é de ser útil aos membros dela”, cabendo a este espalhar as Luzes, que “tiram das trevas ou da ilusão aqueles que a ignorância precipitou no labirinto da apatia, da inépcia e do engano”.18

As condições mais efetivas para uma relativa ruptura no conteúdo do conceito ocorreram, no entanto, por força dos primeiros ensaios de uma relativa liberdade de imprensa, resultante das ideias liberais, que se propagaram de forma mais intensa, a partir do movimento constitucionalista ini-ciado na cidade do Porto, Portugal, no dia 24 de agosto de 1820. Com a adesão das províncias do Pará e da Bahia, logo seguidas pelo Rio de Janeiro, no início de 1821, esse ano converteu-se naquele da pregação de uma cultura política do liberalismo. Por meio da ampla e até então quase inédita circulação de uma literatura de circunstância, sob a forma de panfletos baratos, que se imprimiam no Rio e na Bahia ou que chegavam de Lisboa, as notícias e, junto com elas, as ideias passaram a alcançar uma plateia socialmente mais larga e variada, que deixava de encará-las como novidades do domínio privado para vê-las como pertencentes a um domínio público.19 Na visão do emigrado francês Cailhé de Geine, autor de um Rapport sur la situation de l’opinion publique ao intendente geral de polícia da Corte,20 era fácil

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perceber que o “espírito público” se corrompia todos os dias no Rio de Janeiro, desde a chegada das notícias acerca da revolução liberal da Espanha. Alertava-se para a gra-vidade da situação, uma vez que muitas obras eram lidas “diante de um auditório já predisposto” a “passagens mais infestadas do espírito revolucionário das obras francesas mais perniciosas”, traduzidas “para o português, para a edi-ficação dos ignorantes”. Essa propaganda não se limitava a “reuniões secretas”, mas se manifestava “no salão dourado, na humilde loja e mesmo na praça pública”. Segundo o viajante Johann Moritz Rugendas (1802-1858), que chegou ao Brasil em 1821, esse foi um dos traços característicos do Rio de Janeiro, nesse momento. “Gente de todas as classes se entrega a conversações políticas (...) essas discussões em plena rua lembram a vida pública dos antigos; formam a opinião e a exprimem.”21

Por essa mesma época, a literatura de circunstância formada por jornais, folhetos e panfletos veiculava a ideia de opinião pública com novas conotações, embora revestisse a palavra com uma concepção característica da Ilustração. Tratava-se de considerá-la uma autêntica força política, cuja objetividade provinha da razão e cuja eficácia resultava do impulso propiciado pelo progresso das Luzes, mas avessa, com certeza, às transformações bruscas da ordem, ainda que destinada a assegurar o reinado da sabedoria e da prudência sobre a Terra. Des-pontava sua função diretiva, na qual as elites ilustradas representavam um ponto de equilíbrio entre o soberano e seus súditos, conduzindo às reformas ilustradas, neces-sárias a uma regeneração política.22 Sob esse ângulo, já em 1º de março de 1821, José da Silva Lisboa, em seu pe-riódico O Conciliador do Reino Unido, considerava a

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opinião como “a rainha do mundo”, e, em número poste-rior, afirmava que o homem ilustrado devia “bem dirigir a Opinião Pública a fim de atachar os desacertos populares e as efervescências frenéticas de alguns compatriotas (...) que antes preferem arder que luzir”. Tal visão concebia uma opinião geral formulada pelos homens de letras e imposta de cima para baixo às demais opiniões individuais. Com isso, a opinião deixava de ser um julgamento público, que o indivíduo partilhava com a sociedade, para passar a constituir uma reflexão privada sobre os negócios públicos, algo que tornava possível a sua discussão de público ou em público. Ao invés de geradores e manipuladores de ideias, os letrados transformavam-se em porta-vozes de uma evidência. Era “um dever do cidadão (...) dirigir a opinião pública, e levá-la, como pela mão, ao verdadeiro fim da felicidade social”.23

Em julho de 1821, a própria Gazeta do Rio de Janeiro, considerada como o órgão que representava os pontos de vista do governo, incluiu um artigo na seção “Correspon-dência” em que o autor expunha o “estado da opinião pú-blica em São Paulo”, revelando a ressonância que alcançara o movimento liberal na maior parte da sociedade local, embora esta continuasse a valorizar a prudência e o bom senso. Outro periódico, O Papagaio, em 1822, suspendeu seus trabalhos por julgar que os objetivos propostos tinham sido alcançados, uma vez que se achava “consolidada a opinião pública sobre os verdadeiros interesses do Brasil e de toda a família portuguesa”. Já o redator do Correio do Rio de Janeiro, se não dispunha de suficiente “cabedal de Luzes para ilustrar e dirigir a opinião pública”, acreditava possuir grande “firmeza de caráter e probidade para manifestá-la”.24 Nessa perspectiva, a opinião pública tornava-se o “farol

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dos que governam e desejam acertar”.25 Como informava o redator de o Macaco Brasileiro,26 o príncipe regente D. Pedro conhecia e buscava “este termômetro”, percebendo que o idolatravam pelo calor e energia com que soube merecer o título de Perpétuo Defensor do Brasil. Afinados com as práticas do liberalismo, quase todos os periódicos desse período do constitucionalismo luso-brasileiro evi-denciavam a preocupação, que os indivíduos ilustrados tinham, de dirigir a opinião pública ou de erigir-se em seu porta-voz e destacavam o papel exercido pela educação e pelos periódicos na constituição dessa opinião.

Ainda nesse ambiente, no bojo da discussão sobre a liberdade de expressão e as ideias constitucionais, os escritos impressos vislumbravam também, ainda que timidamente, uma nova acepção em relação à opinião pública, vista como uma instância crítica. Se a liberdade de imprensa era a “sentinela da liberdade política”, pois possibilitava ao homem ilustrado descobrir “uma verda-de útil ou o brado do Patriota”, permitia ainda acender o “archote da opinião pública”, único instrumento capaz de fazer intimidar “os inimigos da Nação e da Liberdade”.27 Registrava-se, assim, que a “liberdade de pensar e de comunicar” os pensamentos era “como um dom o mais precioso” de que pode gozar um mortal sobre a terra, pois a discussão pública das opiniões constituía-se no “meio seguro de dar a conhecer a verdade, e talvez ele seja o único”.28 Mesmo aqueles que eram contrários à liberdade de expressão utilizavam-se do conceito nas suas argumen-tações, alertando para o seu papel, doravante, fundamental na sociedade. José Joaquim de Carvalho, físico-mor da província de Pernambuco, ao testemunhar na devassa contra Frei Caneca (1824), afirmava que esse era o redator

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do jornal Typhis, sendo o principal fim de seus escritos “o dirigir a opinião pública”, o que fazia “certamente de um modo subversivo da boa ordem”.29 Logo, devia haver uma vigilância por parte das autoridades em relação aos “escritos que se publicam dirigindo a opinião pública”, pois esses, muitas vezes, representavam “uma maneira própria para produzir a anarquia e a guerra civil”.30 Nesse sentido, o conceito passava a ser incorporado ao mundo letrado como um dos valores das linguagens do liberalismo, uma vez que opinião pública estava intimamente associada à ideia de liberdade – aquela se constituía no “verdadeiro termômetro do governo liberal”.31

Após o processo de independência, efetivado em 1822, a utilização do conceito opinião pública foi constante, mesmo em períodos de menor liberdade de expressão. O próprio imperador do Brasil, em suas proclamações, apon-tava para o papel relevante da opinião como fundamento de todo o governo legítimo: “O governo constitucional que se não guia pela opinião pública ou que a ignora, torna-se o flagelo da humanidade (...) A Providência concedeu-me o conhecimento desta verdade: baseei sobre ela o meu sistema, ao qual sempre serei fiel.”32 Ao longo dos debates na Assembleia Constituinte de 1823, afirmava-se que a “verdadeira opinião pública” devia ser considerada como a “força moral” daquele Congresso.33 Igualmente, a ideia de público se transformava numa referência honrosa nes-ses escritos, sobrepondo-se ao interesse particular, como a cláusula mais imperiosa do pacto social. Abria-se mão das preocupações com os indivíduos, em especial com os pertencentes a um grupo de privilegiados, e passava-se a pensar a Nação como um todo, utilizando-se a palavra a serviço do ideal liberal.34

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Em outros momentos de tensão, no entanto, como aquele em que ocorreu um confronto de ideias entre o poder executivo e o poder legislativo, levando, inclusive, ao fechamento da Assembleia Constituinte (1823), a opinião pública era vista, por alguns redatores de jornais, como uma forma de manipulação e de conquista do público leitor:

O que é Opinião Pública? Respondo: opinião pública, ou publicada, que entre nós vale o mesmo, é qualquer calúnia, asneira ou inépcia má que sai à luz em letra de forma, contanto que apareça à face do mundo em certos periódicos, por certos indivíduos de certa súcia. Assim para ter esta opinião pública basta beijar certos traseiros altanados e saber gastar alguns cobrinhos para imprimir desaforos e frioleiras, que te vierem à cabeça, contanto que digas mal de muita gente boa (...) e que fales muito em despotismo, liberdade, soberania do povo, direitos do homem, veto absoluto, duas Câmaras, etc.35

Após o fechamento da Assembleia Constituinte, em novembro de 1823, e a outorga da Constituição pelo im-perador (1824), a consolidação do debate político para além da esfera privada da Corte voltou a ocorrer com a abertura da primeira Legislatura, em 1826. A Câmara, apoiada pela imprensa, passou a ter voz atuante na forma-ção do cidadão, começando a medir forças com o poder executivo. Na visão do deputado pela província de São Paulo, Francisco de Paula Souza e Melo, o período entre 1826 e 1831 foi decisivo para o desenvolvimento do espírito público, permitindo que a nação declarasse “de todo a sua opinião”. Havia uma oposição entre “os desejos nacionais e a marcha do governo”, que culminou com o 7 de abril,

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data da abdicação de Pedro I. Ocorreu, portanto, em sua perspectiva, uma revolução moral, consequência de uma “guerra surda e lenta”, mas constante entre “a autoridade que presidia os destinos do Brasil e a opinião pública”. Além da tribuna, mola poderosa para alcançar tal objetivo, foi “o espírito público” no Brasil que demonstrou a necessidade de mudanças.36

Verifica-se, por conseguinte, que outra concepção de opinião pública começou a esboçar-se, no final do primeiro reinado e no início do período regencial, motivada por discussões mais intensas na arena política e por um clima de maior liberdade de expressão e de manifestação política. São dessa época as primeiras referências ao Tribunal da Opinião Pública, que parecem dispensar a interferência dos membros da República das Letras para legitimar o conceito, aproximando-se da perspectiva dos jacobinos franceses e daqueles que pregavam a ideia de uma sobe-rania popular.37 Tal visão era partilhada pelos exaltados, difundida através da Nova Luz Brasileira, jornal radical, que afirmava: “Opinião pública é o modo de pensar expresso e uniforme de mais da metade de um Povo sobre qualquer objeto: daqui vem a influência, poder e direção que dá a todos os negócios; sua vitória é sempre certa: desgraçado daquele que lhe faz oposição.”38 Aceitava ainda a ideia de que o espírito público era “uma opinião geral, formada pelo conhecimento que o Povo tem de seus direitos e dos princípios gerais, que estabelecem e conservam esses mesmos direitos”. Sem esse espírito público, isto é, “sem ilustração do Povo a respeito de seus direitos não há liber-dade; porque o Cidadão ignorante é escravo, ou cadáver social”.39 Da mesma forma, a opinião pública devia contar

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com as garantias da liberdade a fim de que ocorresse uma participação ativa do cidadão na política.40

Nas palavras do deputado José de Alencar no Parla-mento, em maio de 1831, a Câmara devia seguir sempre a opinião pública, pois a maioria da representação nacional precisava estar mais de acordo com “os sentimentos da nação”, expressos pela opinião pública, do que com o chefe da nação. Com isso, a opinião pública transformava-se em instrumento de intervenção direta na vida política, na provável expressão da vontade de uma maioria, ainda que representada por deputados, aos quais cabia parte da soberania nacional.41

Paulatinamente, a ideia da opinião assumia o lugar de “rainha do universo”, capaz de emitir um juízo imparcial, de cunho infalível, diante do qual se desfaziam os receios humanos.42 Fundamentada na supremacia da razão e na presença de uma elite intelectualizada, o conceito adquiria novas conotações, que remetiam para a concepção de uma vontade da maioria, produzida pelo conjunto de cidadãos que devem se fazer representar em assembleia para de-cidir o bem comum. Atribuía-se, até mesmo, a esta “voz poderosa” a capacidade de denunciar crimes, como os do ministério de Pedro I, levando à sua demissão.43 E, se ela nem sempre ditava as Leis, muitas vezes, obrigava “aos Legisladores a corrigi-las e modificá-las”.44

A partir de 1837, o regresso conservador, no entanto, ganhou força até que o golpe da maioridade de 1840 colo-cou D. Pedro II no trono, inaugurando o Segundo Reinado. Estava estruturado o Império do Brasil com base na unidade nacional, na centralização política e na preservação do trabalho escravo. Apesar dessa conjuntura, a perspectiva

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de opinião pública não deixava de consolidar-se como uma fonte de legitimidade do poder político. Ao comentar a queda do ministério dos conservadores, em 1843, e o retor-no ao poder dos liberais, o jornal O Novo Tempo afirmava que “a vontade nacional, livre das cadeias que a sujeitavam, vai erguendo-se ufana e majestosa em favor do ministério de 2 de fevereiro”, ou seja, o novo ministério liberal. “Pouco dura o reinado da tirania [ministério conservador, janeiro de 1843 a fevereiro de 1844]: os Cláudios e Neros do Brasil desta vez caíram sob o peso da opinião pública e cobertos das maldições dos brasileiros.”45 A perspectiva moderna de opinião pública passava a compor o discurso político da época, embora expresso de forma mais contundente nos debates apresentados pela imprensa periódica, do que nas discussões do Parlamento. Aliás, como explicitava o perió-dico radical A Marmota, em 1857, a imprensa era “órgão da opinião pública”, que devia sempre pronunciar-se a fim de “prevenir os males”, ao invés de preparar o terreno para eles com seu silêncio.46

No entanto, essa nova visão estava longe de constituir-se em hegemônica. Ainda se distinguia a opinião como elemento legítimo da autoridade, representada pelas elites intelectuais e políticas, de uma opinião popular, fruto da plebe, considerada como massa ignorante ou um “punhado de facinorosos”,47 que perturbavam o sossego público, especialmente, em uma sociedade constituída, em sua grande maioria, por escravos. Para Mariano José Pereira da Fonseca (1773-1848), marquês de Maricá, ainda que sem mencionar opinião pública, o “governo das nações é, e deve ser, o seu entendimento e a sua vontade; e não é aos pés que se há de dar o encargo de pensar e querer”.48 Da mesma forma, outro político conservador, Paulino

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José Soares de Souza (1807-1866), visconde do Uruguai, propunha que se esclarecesse “a opinião do público” (grifo meu) para certos assuntos, “preparando-o, pela imprensa e pela tribuna, para formar o seu juízo, e auxiliar, com a força que este tem, quaisquer reformas e melhoramentos que possam ser necessários”.49 Da mesma maneira, nas inquirições judiciais, persistia a ideia de opinião como um mero julgamento, pautado, muitas vezes, na voz geral. Regente único e senador do Império, ao ser implicado nas revoltas liberais de 1842, Diogo Antônio Feijó (1784-1843) defendeu-se com o argumento de que estava sendo incri-minado como “cabeça do movimento” pela “voz pública unicamente e nada mais”, uma opinião vaga, segundo ele, que não podia ter valor em depoimentos, mormente em crimes com a natureza de uma rebelião.50

Por conseguinte, em meados do Oitocentos, quando se aboliu o tráfico africano (1850), o conceito de opinião pública ainda não se desprendera, inteiramente, da carga que trazia do passado, típico de uma sociedade do Antigo Regime; nem se convertera de todo naquela entidade racional, universal e unitária, como veio a ocorrer no mundo contemporâneo.51 Conservava-se uma pluralidade de sentidos, cujo emprego via-se, em geral, moldado pela conjuntura. Nesse amplo leque, os significados do conceito, sempre colocados em xeque pelo espectro da escravidão, partiam daquele defendido pelos homens de Letras, profundamente arraigados à visão, embora esmae-cida, das Luzes luso-brasileiras; passavam pelo conceito de uma nova instância de legitimidade política, distinta do poder governamental – vislumbrado por alguns libe-rais – próxima das formulações de Locke;52 e chegavam até a concepção contemporânea, em que a multiplicidade

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de ideias oriundas da população surgia como reflexo da crescente complexidade presente na sociedade da época e, por consequência, como um instrumento moral de con-trole por parte do poder político oficial. Essa perspectiva plural podia ser encontrada, principalmente, na imprensa, como em um texto do Echo da Serra, transcrito no jornal moderado – Aurora Fluminense. Para o redator, a opinião pública era “a soma das idéias ou noções comuns a todos os indivíduos de uma mesma sociedade”, consistindo na elaboração de “verdades morais e políticas”, ditadas “pela natureza e razão, consagradas pelo legislador e vivamente sentidas por todos os membros da sociedade”. Ao mesmo tempo, se ela revestia-se de um “caráter diretivo que obra poderosamente sobre a conduta dos indivíduos”, a opinião também poderia ser conduzida pela reflexão dos filósofos esclarecidos, pois o “verdadeiro e único meio de se criar a opinião pública” é através de “uma boa educação”.53 Diante das enormes desigualdades sociais e, em particular, do escravo, a opinião pública não podia resultar de várias opiniões parciais, pois desse processo nasciam as seitas e as facções. Persistia a perspectiva da opinião como una, próxima às concepções da cultura política do absolutismo.

Por conta dessas limitações, a concepção de opinião pública como uma “pluralidade de indivíduos que se expri-mem em termos de aprovação ou sustentação de uma ação, servindo de referencial a um projeto político definido”54 – e dotada, portanto, do poder de alterar o rumo dos aconte-cimentos – ainda teve de aguardar distintas conjunturas de tensão, após 1850, para tornar-se hegemônica. Indício desse processo foi o aparecimento de periódicos que tra-ziam o conceito em seu título, como A Opinião Pública: Jornal Político e Noticioso, de Fortaleza, em 1861, que

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estampava uma epígrafe de Thiers: “Quando os diretores de um partido procuram sufocar a opinião geral, por meio de imposições exageradas, sucede ordinariamente, que mais o irritam calando eles em completa desmoralização.”

Não é de surpreender, assim, que date de 1890, após a Abolição da Escravidão (1888) e a Proclamação da Repú-blica (1889), o primeiro registro em dicionário do conceito em seu sentido moderno. Afinal, a opinião pública é tam-bém um “produto social”,55 fruto dos meios disponíveis para que se constituísse e consolidasse um espaço público – jornais, redes de sociabilidades, leis sobre liberdade de imprensa, direitos dos cidadãos, manifestações políticas, liturgias cívicas, educação, entre outros. “Mas como criar a opinião pública em um país onde não se lê, nem se crê?” O processo de construção desse edifício social requeria, por conseguinte, uma reforma de costumes, “derramando a ins-trução e incutindo a fé nas gerações novas”.56 Apesar disso, a onipresença dos cativos, a manutenção da mentalidade escravocrata e a persistência de traços de uma sociedade do Antigo Regime retardaram a consolidação do processo.

notas

1 Cf. AUTOS, 1794; ARQUIVO, 1798.2 Cf. NEVES, 2000, p. 416-417.3 Cf. RAMOS, 1995.4 FARGE, 1992, p. 13-19.5 BLUTEAU, 1712-1727, v. 6, p. 87-88.6 SILVA, 1813, p. 367.7 PINTO, 1832.

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8 CONSTÂNCIO, 1836, p. 729.9 SILVA, v. 2, p. 439.10 GADAMER, 2002, p. 257.11 BAKER, 1993, p. 219; 1987.12 HABERMAS, 1993; CALHOUN, 1997.13 KOSELLECK, 1999.14 GUERRA, 1992.15 SILVA, 2005.16 VERDELHO, 1981, p. 136-137.17 IDADE D’OURO DO BRASIL, n. 26, 1813.18 CORREIO BRAzILIENSE, n. 1, 06/1808.19 NEVES, 2003, p. 36-40.20 GEINE, 1820.21 RUGENDAS, 1979, p. 223.22 NEVES, 1995, p. 132-133.23 CONCILIADOR NACIONAL, 1822.24 PROSPECTO, 1822.25 REVÉRBERO CONSTITUCIONAL FLUMINENSE, n. 6, 2/07/1822.26 MACACO BRASILEIRO, n. 5, 1822.27 REVÉRBERO CONSTITUCIONAL FLUMINENSE, n. 5, –

15/11/1821.28 QUAES, 1821, p. 1.29 CANECA, 2001, p. 618.30 CONSTITUCIONAL, n. 42, 15/07/1822.31 REVÉRBERO CONSTITUCIONAL FLUMINENSE, n. 6, 2/07/1822.32 PROCLAMAçãO, 1823.33 BRASIL, 24/05/1823, p. 114, 116.34 GUERRA, 1998, p. 6-8.35 TAMOYO, n. 21, 9/10/1823.36 BRASIL, 1877, 14/05/1831.37 Cf. MOREL, 2005.38 NOVA LUz BRASILEIRA, n. 21, 19/02/1830.

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39 NOVA LUz BRASILEIRA, n. 20, 16/02/1830.40 BASILE, 2001, p. 116.41 BRASIL, 1877, 26/05/1831.42 CARIJÓ, n. 54, 01/06/1833.43 ASTRÉA, n. 518, 07/01/1830.44 Echo da Serra, transcrito em Aurora Fluminense, n. 322, 07/04/1830.45 NOVO TEMPO, n. 62, 10/10/1844.46 MARMOTA, n. 893, 23/10/1857.47 BRASIL, 1877, sessões de 1831.48 ÍRIS, 1/10/1848, p. 598.49 URUGUAI, 1862, Preâmbulo, p. 73.50 FEIJÓ, 1999, p. 228-229.51 BAKER, 1993, p. 264.52 KOSELLECK, 1999, p. 49-56.53 AURORA FLUMINENSE, n. 322, 7/04/1830.54 OzOUF, 1987.55 HESPANHA, 2004, p. 15.56 TRIBUNAL DO POVO, n. 3, 18/03/1877.

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BiBliografia

manuscritas

GEINE, Caillé. Rapport sur la situation de l’opinion publique. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Divisão de manuscritos II – 179,3,9-12. 1820.

impressas

dicionários

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periódicos

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L u i s a R a u t e r P e r e i r a

povo/povos

Em meados do século xVIII, predominavam no Impé-rio colonial português concepções e práticas “corporativas” da sociedade, de origem medieval. A organização político- -social se caracterizava por uma hierarquia fundada numa ordem universal imutável cujas partes ou órgãos possuíam responsabilidades, privilégios e deveres, indispensáveis à sua manutenção. O rei era sua cabeça, seu centro moral e espiritual, garantidor e protetor de sua paz, harmonia, sossego e felicidade. Tinha a responsabilidade de governar de acordo com a justiça e equidade, de ouvir as queixas e dar solução aos conflitos. Nessa concepção, a palavra povo e sua variação no plural, povos, apareciam em documentos de todo o período colonial como o conjunto da população habitante de uma região ou colônia, o que era entendido como o conjunto dos vassalos ou súditos ou o conjunto das ordens e corpos que mantinham com o rei um dever de obediência e lealdade. Na documentação legada pelas Câmaras Municipais, os principais órgãos de representação

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política do “povo” do Antigo Regime português, esse uso é abundante. Em janeiro de 1785, o Senado da Câmara do Rio de Janeiro enviou uma representação ao Conselho Ultramarino, pedindo para que fosse revogada a lei que proibiu aos cirurgiões não formados em universidades atuarem como médicos, tendo em vista o pequeno número destes e a vasta população de “vinte e cinco mil almas”. A Câmara reconheceu que a lei fora feita com o intuito de garantir a “felicidade dos povos”, mas achou por bem recorrer àquela mesma “providência, que tem feito felizes os Leais Vassalos de Vossa Majestade...”. A essa represen-tação, a junta respondeu que a pretendida revogação não se devia realizar, pois precipitaria o “povo em um muito maior dano do que pretendem evitar, ofendidos e frauda-dos tantos legais, e saudáveis providências em benefício da conservação e saúde dos Povos”.1

Entretanto, esse “povo” que figurava nos documentos das câmaras estava em muitos casos referido apenas aos “cidadãos” do período, isto é, os “homens bons”, o conjunto dos “chefes de família abastados e respeitáveis habilitados a votar”.2 Uma vez que a massa da população era índia, negra, mestiça ou despossuída e dependente, e por estes motivos, alijada dos mecanismos formais de representação, era vista como elemento integrante, mas de posição inferior, do grande laço de vassalagem que unia os integrantes do Império ao rei. O povo era então muitas vezes um conceito restrito aos brancos proprietários e também aos homens de negócios.

O povo também era o terceiro estado da sociedade de ordens do Antigo Regime, aquele que tinha o dever e o “direito” ao trabalho.3 Em Representação de junho de 1748, em que o Senado da Câmara do Rio de Janeiro pediu

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providências ao rei e ao bispo para que houvesse maior participação na Procissão do Corpo de Deus, o “povo” aparece contraposto aos “cidadãos” e ao clero:

[Na dita Procissão], não só falta a maior parte dos Cidadãos, (...) e a este respeito também a religião que a acompanha, Irmandades e Confrarias, e o mais Povo se faz público por editais a celebração desta festividade, e nesta forma se vai pondo em algum esquecimento e fervor devido com que se deve concorrer para ela...4

No decorrer do século xVIII, entretanto, o surgimento de inúmeros novos grupos sociais forçou um processo de pluralização de estamentos. No interior do povo, cada vez mais passaram a haver os limpos e os vis (ou plebe),5 isto é, aqueles dignos de participação no sistema político e aqueles indignos por condição social, tipo de ocupação ou origem de sangue. Os territórios coloniais portugueses constituíram o local onde a falta de clareza na demarcação das três ordens tradicionais foi mais evidente. Percebendo o fenômeno, o frade D. Domingos do Loreto Couto de-clarou nos seus célebres Desagravos do Brasil e glórias de Pernambuco de 1757 que

não é fácil determinar nestas Províncias quais sejam os homens da Plebe; porque aquele que é branco na cor, entende estar fora da esfera vulgar. Na sua opinião o mesmo é ser alvo, que ser nobre, nem porque exercitem ofícios mecânicos perdem esta presunção...6

Segundo Schwartz, no século xVIII, autoridades coloniais apontavam o problema de que nos territórios brasileiros havia uma população, mas não um povo. As tradicionais instituições representativas portuguesas – as

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cortes – nunca haviam sido completamente instituídas na colônia, e o conceito de “povo” como terceiro estado na sociedade de ordens, isto é, orgânica e constitucionalmente vinculado ao corpo da política, era frágil ou ausente em decorrência do sangue impuro e dos costumes da popula-ção. Por isso, segundo o autor, o termo “plebe” (ou vulgo, canalha) e não povo passou a ser cada vez mais utilizado pelas autoridades coloniais em referência à população da colônia.7

O Império português também recepcionou nas últi-mas décadas do xVIII, ao seu modo, as luzes do século. Além do tradicional corporativismo, as teorias do direito natural tiveram influência numa nova conceituação do povo: conjunto de indivíduos detentores de direitos inatos e constituidores da sociedade civil. O intelectual mineiro Thomaz Antonio Gonzaga escreveu em 1772 um tratado no qual justificou o absolutismo através de argumentos jusnaturalistas. Segundo Gonzaga, o poder do rei é divino, logo este só pode ser julgado por Deus. O povo dá origem à sociedade, mas apenas escolhe a forma de governo e “elege” aqueles que irão exercitar o império, não sendo a origem do próprio poder. Portanto, “o rei não pode ser de forma alguma subordinado ao povo; e por isso ainda que o rei governe mal e cometa algum delito, nem por isso o povo se pode armar de castigos contra ele”.8 Sua alegação se opõe não somente ao direito natural de extração laica, mas também às teorias pactistas da segunda escolástica ibérica que postulavam o povo como a origem da soberania real e a possibilidade de que, em caso de despotismo, este poderia retomar para si a soberania e se rebelar contra o rei. Este pactismo ganhava relevo num momento em que

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o despotismo sufocava as colônias e muitos teóricos, como Gonzaga, apoiados pelo governo, procuraram combatê-lo.

Ao final do século xVIII, conjurações em Minas Gerais (1789), Rio de Janeiro (1794) e Bahia (1798) criticaram abertamente o despotismo metropolitano e trouxeram novas conceituações do povo, no bojo de uma linguagem política renovada. Os princípios do direito natural ilumi-nista, reforçados pelo exemplo das revoluções na América e na França, forneciam aos conjurados novas ferramentas críticas, notadamente a ideia de liberdade, igualdade e soberania dos povos ou do povo. Estas se somavam à tradi-ção pactista ibérica9 de crítica ao despotismo, conferindo ao povo um novo lugar no mundo político. Também, a partir de então, cada vez mais o conceito de povo deixa de signi-ficar para muitos grupos políticos apenas aquela realidade estática e avalizada pelas tradições do Antigo Regime – os vassalos, os súditos, o terceiro estado – e passa a conter uma nova dimensão, orientação a um futuro.

No movimento mineiro de 1789, composto basicamente por membros da elite urbana nascente, padres e intelectuais, embora se conclamasse genericamente o “povo” para participar da luta contra a tirania, não se viu o povo pobre e mestiço, a plebe, como participante legítimo da nova sociedade a ser criada. Os conspiradores tinham no horizonte proclamar uma república nos moldes norte-americanos com um povo composto de cidadãos proprietários e ilus-trados.10 Este povo, inexistente ainda na realidade, era projetado para o futuro: por meio de auxílio, educação e repressão, a plebe poderia no futuro se transmutar em povo. Na Conjuração Baiana de 1798, entretanto, houve maior participação de membros de menor condição social

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e de cor ligados ao artesanato urbano. O desejo de igual-dade em todos os níveis foi muito mais radical e o povo aparecia já claramente como uma realidade constituída no presente, como mostrou um dos “avisos ao povo” produ-zidos pelos revolucionários: “...os homens e pardos que vivem abandonados, todos serão iguais, não haverá dife-rença: só haverá Liberdade Popular...”.11

Com a transferência da Corte de Lisboa para o Rio de Janeiro em 1808, em meio ao furacão napoleônico, as pro-víncias passaram a ver o Rio de Janeiro como antes viam Portugal: a corporificação do centralismo monárquico e o agente da opressão colonial.12 Desse modo, a Província de Pernambuco explodiu em 1817 em movimento revolucio-nário contra a imposição de um governador pela Coroa. Ao jusnaturalismo iluminista uniram-se mais uma vez as concepções tradicionais da vassalagem e do pacto ou contrato entre súditos e o rei. Ao “povo pernambucano”, caberiam privilégios e liberdades pela lealdade prestada ao rei por ocasião da grande obra da expulsão dos holandeses no século xVII. No documento citado por Evaldo Cabral de Mello, o Deão Portugal justificava sua participação na rebelião argumentando que “a posse e direito da casa de Bragança eram fundados num contrato bilateral; e havendo sido ela quem primeiro faltou às suas obrigações, estavam os povos desobrigados da lealdade jurada”.13

“1817” foi, porém, um marco numa nova percepção do conceito desenvolvida na crise do Antigo Regime portu-guês: o povo armado como elemento de atuação explosiva na vida pública. A figura do “povo-soldado” e do povo unido à “tropa” é frequente nas fontes. O réu João Luiz Freire, em seu depoimento durante a devassa realizada na repressão, se disse inocente, tendo sido constrangido

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a acompanhar “um povo desenfreado e em tumulto (...) debaixo do comando dos oficiais respectivos”.14 Ainda no calor da revolução, Luís de Mendonça avaliou que “o grito de defesa [contra o despotismo] foi geral” e “o povo se tornou soldado e protetor dos soldados”.

O movimento em Pernambuco teve, porém, um ca-ráter fortemente aristocrático. Os líderes do movimento – proprietários rurais – projetavam uma sociedade de “classes nobres” com manutenção das distinções sociais da sociedade colonial: homens bons, plebe e escravos. O espírito de Ancien Régime dos revolucionários das classes superiores se mostra claramente, mesmo após a repressão que os levou à prisão junto com os membros da plebe. Em passagem célebre, Antonio Carlos Andrada e Silva, chefe maior do movimento, declarou seu arrependimento aos tribunais: “Derrubando-me da ordem da nobreza a que pertencia, me punha a par da canalha e ralé de todas as cores, e me segava em flor as mais bem fecundas esperanças de ulterior avanço, e de maiores dignidades.”15 A Revolução Constitucional de 1820 em Portugal ensejou um processo de transformação mais profundo e abrangente do signi-ficado do conceito. Foi o momento de instauração de um “novo pacto”16 entre povo e rei, aquele entendido agora, não mais apenas como vassalo e súdito, mas como povo cidadão, origem e lugar de soberania, o que se expressaria numa constituição livre. Entretanto, os acontecimentos foram vistos pelos contemporâneos, não exatamente como uma novidade, mas como “a restituição de suas antigas e saudáveis instituições corrigidas e aplicadas segundo as luzes do século (...) a restituição dos inalienáveis direitos que a natureza concedeu a todos os povos”.17 No Brasil, as províncias se declararam desligadas do governo do Rio

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de Janeiro e solidárias à “causa de Portugal”, preparando--se para eleger seus representantes. Em 1821, o periódico Revérbero Constitucional Fluminense lembrou como foi “belo e majestoso o espetáculo da Liberdade plantando o seu estandarte no Brasil (...) marcando os verdadeiros fundamentos da sociedade, que pousão sobre o livre consentimento dos povos”.18

Entretanto, mais uma vez, este “livre consentimento dos povos” se tornou um problema para as elites políticas favoráveis às liberdades constitucionais. Para a historiadora Iara Lis C. Souza, os anos imediatamente posteriores à Revolução em Portugal até a Independência em 1822 foram marcados pela irrupção da presença do povo nas ruas e praças públicas, com suas diversas reivindicações, anseios e muitas vezes também com violência.19 As elites liberais se atemorizavam quando o espaço público era tomado pela “gente turbulenta”, pois pairava o profundo temor de uma revolução escrava e popular. Sob pena da desordem, era imprescindível estabelecer quem era a plebe a ser excluída do processo. Um participante, referindo-se à plebe, decla-rou que, quando se lhe delegava o direito à participação, a “baixa populaça sem instrução” dizia “quantas parvoíces lhe lembrasse”.20

Mesmo as províncias com anseios republicanos aderi-ram ao projeto de monarquia constitucional. Essa atitude refletia a preponderância inicial do projeto de Império luso-brasileiro frente à opção de independência. O perió-dico Revérbero Constitucional Fluminense se referia entu-siasticamente aos “portugueses de ambos os Mundos!”,21 revelando, entre outras coisas, que as elites coloniais não queriam se afastar da “civilização” por medo de uma revolução escrava e popular. Era, portanto, fundamental

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reivindicar a unidade soberana do povo português em ambos os continentes. Participante ativo nas cortes, o deputado José Bonifácio defendia, para a “manutenção da integridade da Monarquia Portuguesa”, a

convocação de uma Assembléia Luso-brasiliense, que in-vestida daquela porção de Soberania, que essencialmente reside no Povo deste grande, e riquíssimo Continente, constitua as bases sobre que se devam erigir a sua Inde-pendência (...) e a sua união com todas as outras partes integrantes da Grande Família Portuguesa...22

Estes primeiros anos da década de 1820 se distinguem, porém, pela construção do conceito de povo-nação bra-sileiro, ou “brasiliense”, diferente do português. Ao longo dos calorosos debates, as cortes começaram a demonstrar suas verdadeiras intenções de restauração de todos os mecanismos de opressão colonial, enfraquecendo o ideal de união com Portugal sob o regime constitucional. A defesa da “causa do Brasil” entrou aos poucos na ordem do dia, forjando os primeiros sinais mais definidos do conceito de um povo especificamente brasileiro. A partir de 1822, o povo passou a ser uma identidade coletiva política, cultural ou social e não mais apenas de moradia e nascimento.

A emergência do ilustrado povo-cidadão dos anos de 1820 na linguagem política não fora hegemônica. D. Pedro foi aclamado imperador numa “emancipação” política que optou pela segurança da monarquia constitucional comandada por um membro da casa dinástica portuguesa. Num país das proporções do Brasil e com uma população cativa tão numerosa, a opção republicana significaria para as elites políticas articuladoras do processo o perigo do desmembramento político e territorial e de uma revolução

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escrava. D. Pedro foi aclamado imperador de acordo com a tradição portuguesa com festejos em praça pública, coorde-nados pelas câmaras municipais. Em documentos enviados ao Rio de Janeiro, em que tais eventos eram descritos ao imperador, o povo ou os povos ressurgiram como a popu-lação de súditos ou vassalos leais. Em Olinda, a Câmara remeteu ao novo imperador os “antigos votos de fidelidade, vassalagem e contentamento, de todo o povo desta cidade, Capital da Capitania de Pernambuco”.23 Ao mesmo tempo, em uma vila baiana, o povo apareceu ainda como terceiro estado diferenciado dos cidadãos ou “homens bons” e clero. A Câmara declarou que “havendo-se consultado a vontade dos cidadãos e homens bons decidiram (...) que era chegada a hora de ser Aclamado Augustíssimo Imperador pelo Clero, Povo e Tropa, que juntos estavam na Praça e Casas da Câmara e nas ruas imediatas”.

Nos debates da Assembleia Constituinte instaurada em 1823, o povo foi elemento-chave: qual seria o sistema polí-tico e administrativo adequado ao “povo independente”24 recém-constituído? Na discussão em torno de projeto de lei sobre a organização dos governos provinciais, que preten-dia abolir as juntas de governo eletivas formadas no perío-do da revolução constitucional em Portugal e substituí-las por uma administração una escolhida pelo Rio de Janeiro, o conceito apresentou usos em conflito. Para um grupo de deputados, delegar ao povo a escolha de seus governadores e legisladores locais significaria promover a desordem e a “anarquia”, pois o povo “que é sempre falto de luzes vai na boa fé do que lhe pregão os mal intencionados que o descaminha para seus fins particulares”.25 Na mesma linha, Moniz Tavares argumenta que os governos locais devem ser impostos pelo governo central, pois a “canalha só ama

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o prestigio, só reputa excelente o que vem de fora...”.26 Para outro grupo, menos numeroso, as juntas não deviam ser abolidas, pois era uma instituição “que os povos esposaram, que receberam com gosto e que tanto tem respeitado que ainda quando na desordem tem insurgido contra algumas juntas, é para as substituírem por outras ainda temporárias, mas nunca por um só indivíduo”.27 Numa visão, o exercício da liberdade política era não apenas um direito do povo, mas uma forma de formá-lo, de constituí-lo e aprimorá- -lo. Na outra, o povo era incapaz e identificado à plebe, devendo ser tutelado pelas elites políticas do Rio.

Temendo um aprofundamento das tendências liberais e federalistas, D. Pedro dissolveu a assembleia e impôs ao povo uma constituição, que, através de instituições como o poder moderador e o conselho de Estado, garantiu a máxima concentração do poder político em suas mãos. No mesmo ano, Pernambuco foi novamente palco de um novo movimento revolucionário, desta vez, mais clara-mente republicano, marcado pelo ideal federativo e pelo ódio aos portugueses. Diferente de 1817, o movimento que proclamou a Confederação do Equador contou, para além da aristocracia rural, com a participação mais intensa de membros dos estratos populares, negros libertos e mulatos. A utilização do conceito ganha ares igualitários ligados ao trabalho e à produção: o apoio de toda a população era imprescindível para o projeto republicano. Poucos meses antes da eclosão do movimento, um importante jornal pernambucano, o Sentinela da Liberdade, denunciava os privilégios dados aos nobres e portugueses na obtenção de cargos públicos, “enquanto que o povo que é o todo da sociedade passa uma vida isolada e triste no meio dos trabalhos e vexames da sociedade, que ele alimenta

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e defende”. A matéria prosseguia citando um diálogo de autoria do filósofo e revolucionário francês, o Conde Volney. O diálogo se dava entre o “Povo produtor, ativo, e patriota” e os “Reis, Fidalgos, e grandes dissipadores, ociosos, e destruidores do bem da pátria”. Aos fidalgos que defendiam seus privilégios natos, o Povo respondia: “As riquezas procedem de nós [o povo], e vós as absorveis, e chamais a isto governar? Classe privilegiada, corpo distinto que nos sois estranho, formai vossa nação à parte, e vejamos o como vos subsistis.”28

D. Pedro logo conseguiu vencer a confederação, mas sua política centralizadora e autoritária, bem como acusa-ções sobre suas ligações com a elite portuguesa acabaram por derrubá-lo em 1831, pressionado a abdicar por uma “revolução gloriosa (...) operada pelos esforços, e patrió-tica união do povo e tropa do Rio de Janeiro”.29 Nos anos seguintes, como o herdeiro do trono era menor, o governo ficou a cargo de regentes, momento em que os liberais venceram momentaneamente os absolutistas. Os liberais conseguiram impor reformas no sentido de diminuir centralização de poder do Primeiro Reinado, dotando as províncias de uma série de liberdades no campo político e administrativo, como, por exemplo, a eleição de juízes.

No período regencial dos anos de 1830, o país foi assolado pela guerra civil nas províncias. As disputas entre chefes locais e governo central em torno da nomeação de governadores, o ódio aos portugueses e seus privilégios eram elementos causadores de grande tensão nas diversas regiões do país. Nestes movimentos, os poderes regionais e o povo pobre emergiram contundentemente no cenário político nacional. O conceito de povo se revela primeira-mente associado à luta universal pela liberdade contra o

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despotismo, às identidades regionais e ao projeto federa-lista. No manifesto de 1836, o presidente da recém-criada República do Rio Grande, Bento Gonçalves, declarou que os “rio-grandenses” eram “um povo brioso que quer ser livre” em luta pela “causa da justiça contra a iniqüidade [que] é a causa dos povos contra os seus opressores”.30 Em outros movimentos como a Sabinada na Bahia, a Balaiada no Maranhão e a Cabanagem no Pará, a presença da população pobre e de cor foi mais marcante, o que delineou outros contornos ao uso do conceito. À liberdade do povo, se somava o desejo de igualdade, o que trouxe profundos temores para as elites imperiais das províncias e do governo central. Foi preciso distinguir claramente mais uma vez o povo da plebe.

Em famosa memória histórica da Balaiada, o político e literato conservador Domingos José Gonçalves de Magalhães, então secretário de governo do Maranhão e um dos organizadores da repressão, lastimou a ação sanguinária de uma “raça cruzada de índios, brancos e negros, a que chamam cafuzos”, “massas brutas” animadas exclusivamente pelo “espírito de rapina”.31 Em oposição a essa “população”, o verdadeiro povo, isto é, os proprietários rurais e urbanos, assistiam assustados ao terrível espetáculo das “vilas tomadas” e “fazendas devastadas”.32 Os Conservadores ou Regressistas como Gonçalves de Magalhães não se confundiam absolu-tamente com a questão da igualdade. Para estes, os homens eram naturalmente desiguais, cada qual com seu lugar e função na sociedade. A distinção entre o povo participante do sistema político e a plebe era clara e inquestionável. Na concepção conservadora, havia uma hierarquia entre os súditos, numa “cadeia de fidelidades e lealdades”,33 não uma sociedade de indivíduos autônomos e iguais.

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Já os políticos liberais viam o povo como princípio político e legislador fundamental, o portador da “vontade geral”. Porém, a formação do grande povo cidadão era uma realidade transposta para o futuro e a manutenção da distinção entre “povo” e “plebe” permanecia, portanto, fundamental. A presença desta última separava os liberais entre “exaltados” e “moderados”, pois a reivindicação de igualdade econômica e política trazia o perigo da desor-dem social e do separatismo republicano. Até onde levar os princípios de igualdade e liberdade numa sociedade escravista, onde crescia a massa de homens livres pobres e de cor? Essa questão enfraqueceu a frente liberal, dando espaço para uma reação conservadora.

O maranhense João Francisco Lisboa expressou clara-mente a visão liberal a respeito do povo no que diz respeito à participação política. O ativista e político participou da Balaiada nos anos de 1830, mas sempre deplorou os exces-sos revolucionários da plebe. No Jornal de Timon, publicado no Maranhão no ano de 1852, analisou de forma satírica o processo eleitoral maranhense. No dia das eleições, a cidade assistia à “...aparição de figuras (...) pertencentes à classe conhecida pela designação geral de patuléia, que quer dizer povo, na acepção de plebe ou gentalha”.34

A plebe ou patuleia, na visão desse liberal, não possuía outra motivação para a participação política além do “amor do ganho ou da novidade”, e os “instintos de desordem”.35 A solução apontada por Lisboa o aproxima claramente do conservadorismo mais aguerrido com a negação da própria vida política e sua substituição por “cargos puramente administrativos”.36

Segundo Ilmar Rohloff de Mattos, ao longo da regência, os conservadores ou Saquaremas esvaziaram as pretensões

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liberais, aproveitando-se de suas contradições políticas, im-pondo sua direção ao Estado. Os liberais não conseguiram evitar a Lei de Interpretação do Ato Adicional de 1841, que cerceou novamente as tênues liberdades provinciais de 1834. Organizaram, então, o golpe da maioridade, que coroou ainda criança o imperador D. Pedro II para tentar conter o regresso conservador, porém, mais uma vez fra-cassaram na tentativa de frear a centralização de poder que acabou se impondo no Segundo Reinado.

A estabilidade política que caracterizou o Segundo Reinado ainda teria que ultrapassar mais uma última grande perturbação provincial: a Revolução Praieira em Pernambuco. Por um lado, ela foi uma continuidade do impulso que havia ocasionado os movimentos do período regencial. Porém, a isso se somava a notória influência do movimento francês ocorrido no mesmo ano de 1848 e o ideário socialista utópico. No Manifesto ao Mundo, publicado em janeiro de 1849, foi reivindicado o “voto livre e universal do povo brasileiro” e o “direito universal ao trabalho”.37 Nos escritos revolucionários e de apoio ao movimento, a massa pobre foi vista sem sombra de dúvida como parte integrante do povo, isto é, como participante legítimo do mundo político. Um cronista conservador apontou como causa da revolução, entre outras coisas, a ação das “classes inferiores e ignorantes da população que julgando-se deserdadas dos seus supostos direitos, nutriam no coração os sentimentos de ódio, de inveja e de vingança contra as classes superiores...”.38

Para Figueira de Melo, portanto, o movimento revolu-cionário de 1848 era apenas um distúrbio da plebe, sendo o povo um conceito restrito às classes ilustradas e supe-riores. Após essa última grande revolta provincial, houve

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um grande acordo entre conservadores e liberais em torno do governo de D. Pedro II, a partir do qual foram restau-radas as instituições tipicamente centralizadoras: o poder Moderador e o Conselho de Estado. Ambos os grupos, conservador e liberal, passaram a pautar cada vez mais sua ação pelo temor profundo em relação aos distúrbios da plebe: ideia de ordem suplantou qualquer reivindicação mais radical de igualdade no cenário político imperial.

O terror provocado pelas revoltas dos anos de 1830 e 1840 e a estabilização conservadora que deu origem ao Segundo Reinado ensejou uma série de reflexões no cam-po político e cultural sobre o povo como nacionalidade. Depois das desordens regenciais, era preciso consolidar em todas as regiões um sentimento legítimo de pertenci-mento nacional, que pudesse ajudar a garantir a unidade territorial e política. Literatura e Historiografia foram os lugares de produção deste discurso. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro criado em 1838 foi responsável pelo primeiro esforço de escrita da história nacional, com a coleta e publicação de fontes históricas e o incentivo à pesquisa. Foi por meio de um de seus concursos que em 1847 o alemão von Martius definiu as diretrizes do projeto de escrita da história nacional: o estudo da peculiaridade do país, destinado a ser o local de união e aperfeiçoamento de três raças fundadoras: brancos, negros e índios.39 Nesse processo, o branco europeu, pelo braço forte do Estado, era o agente que teria levado ordem e civilização às raças atrasadas. Dando continuidade a esses primeiros passos, o historiador Francisco Adolfo de Varnhagen escreveu a primeira grande história do Brasil. A relação entre as três raças, notadamente nos fenômenos da escravidão e miscigenação, eram pontos centrais na obra. Em relação ao segundo fenômeno, por exemplo, Varnhagen deplora

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o fato de que “os primeiros colonos que vieram ao Brasil (...) juntavam-se logo, mesmo sem ser em lei da graça, com alguma índia, que, segundo vimos, os próprios escritores não deixavam de achar bonitas”.40

A literatura das primeiras décadas do século também se concentrou na descoberta da singularidade do povo brasileiro. Em autores como o romancista José de Alencar e o poeta Gonçalves Dias, para citar os mais importantes, o índio é idealizado como o herói virtuoso, o portador mítico da nacionalidade mais genuína. No poema “O Canto do Guerreiro”, o poeta enaltece a valentia do índio: “Na caça ou na lide/Quem há que me afronte?!/A onça raivosa/Meus passos conhece,/O inimigo estremece,/E a ave medrosa/Se esconde no céu./– Quem há mais valente,/– Mais destro que eu?”.

Nesse período de cem anos da história brasileira, assis-timos ao surgimento do conceito de povo-cidadão, como o lugar da soberania política. Entretanto, os significados ligados ao Antigo Regime – o conjunto dos súditos, vassa-los, e o terceiro estado – ainda se mostraram atuantes na linguagem política, ao mesmo tempo em que a distinção entre o povo legítimo e a plebe – ou canalha, patuleia, populaça – marcou todo o período. Tais elementos deram contornos e limites dos projetos de liberdade e igualdade e soberania popular, relegando a noção de um verdadeiro povo de cidadãos ao futuro. A unidade nacional – o con-ceito de povo-nação – foi então concebida pelas elites em torno da noção de unidade de cultura, geografia e raça, num vínculo menos com a vida política do que com a natureza física do país.

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notas

1 PARECER, caixa 143, doc. 61.2 BOxER, 2002.3 SERRãO, 1992.4 REPRESENTAçãO, caixa 48, doc. 42.5 HESPANHA, 1993.6 COUTO, 1904, p. 226.7 SCHWARTz, 2000.8 GONzAGA, 2004, p. 147.9 VILLATA; SCHWARCz; SOUzA, 2000.10 MAxWELL, 2001.11 Apud BARROS, 1922, p. 77.12 DIAS, 1972.13 Carta da pastoral do cabido da Sé de Olinda. Apud MELO, 1849,

p. 137.14 PASTORAL, 1976, n. 103, p. 132.15 Apud MOTA, 1972, p. 40.16 SOUzA, 1999.17 Manifesto da Nação Portuguesa aos Soberanos e Povos da Europa,

de Fernandes Thomaz. Apud SOUzA, 1999, p. 84.18 REVÉRBERO CONSTITUCIONAL FLUMINENSE, 15 de outubro

de 1821, p. 42.19 SOUzA, 1999.20 Apud NEVES, 2003, p. 216.21 REVÉRBERO CONSTITUCIONAL FLUMINENSE, 16 de Setembro

de 1821.22 SILVA, 1973, p. 242.23 AS CÂMARAS, 1973, p. 106.24 BRASIL, 1-6, 1823, p. 34.25 BRASIL, 1-6, 1823, p. 120.26 BRASIL, 1-6, 1823, p. 124.27 BRASIL, 1-6, 1823, p. 54.

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28 SENTINELA DA LIBERDADE, 1823.29 PROCLAMAçãO, 1976, p. 39.30 MANIFESTO, 1836.31 MAGALHãES, 2001, p. 21.32 MAGALHãES, 2001, p. 71.33 MATTOS, 1999, p. 148.34 LISBOA, 1995, p. 183.35 LISBOA, 1995, p. 184.36 LISBOA, 1995, p. 331.37 MANIFESTO, 1976, p. 40.38 MELO, 1849, p. 4.39 GUIMARãES, 1988.40 ODáLIA, 1979, p. 68.

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H e l o i s a M a r i a M u r g e l S ta r l i n g C h r i s t i a n E d wa r d C y r i l Ly n c h

repúBlica/repuBlicanos

No Brasil, o que mais chama a atenção no conceito de república entre 1750-1850 é o fato de os dicionários não acusarem qualquer modificação nos sentidos registrados no Dicionário de Bluteau já em 1713. O primeiro explicava a república como “qualquer gênero de estado” voltado para o bem comum – perfeitamente compatível, portanto, com a monarquia, a aristocracia ou a democracia. Era nesse sen-tido que era compreendido o adjetivo repúblico – “zeloso do bem da república”; “amigo do bem público”. O segundo sentido era mais restrito: “Estado governado por magistra-dos, eleitos, e confirmados pelo povo: ou mais amplamente, Estado governado por muitos.” Um século depois, o Dicio-nário de Moraes reiterava ambos os significados ao definir a república como “o que pertence e respeita ao público de qualquer estado”, e “Estado, que é governado por todo o povo, ou por certas pessoas”. Este último se aproximava

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daquele de democracia, definida como “forma de governo, na qual o sumo império, ou os direitos majestáticos resi-dem atualmente no povo, e são por ele exercidos”. Mas a correlação não era explícita. Limitando-se a se referirem também à República das Letras, as edições de 1823, 1831, 1846 e 1877 nada acrescentaram politicamente àqueles dois significados. É possível que essa invariabilidade se deva à resistência à forma republicana, já que o Brasil foi o único país independente duradouramente monárquico do subcontinente. Isso naturalmente não impediu que, para além dos dicionários ordinários, periódicos, discursos e opúsculos tenham registrado outros sentidos do conceito. Nesse quadro, a história do conceito de república no Brasil entre 1750 e 1850 pode ser sincronicamente dividida em quatro grandes fases.

A primeira corresponde ao período entre 1750 e 1792, em que o conceito esteve principalmente associado à tradição clássica que remontava a Políbio e Cícero, que ao traduzir do grego o termo politeía de Aristóteles como res publica, legara ao mundo latino o duplo sentido do conceito. Mais amplo, o primeiro concebia a constituição da comunidade voltada para o bem comum; ao passo que o segundo, mais restrito, exprimia o de governo gerido por magistrados extraídos da camada popular. No século xVIII, este último sentido era associado à herança da matriz medieval e renascentista da tradição republicana, que sobrevivia com dificuldade às margens dos Estados absolutos. No Brasil de então, ele definia uma dimensão de autonomia administrativa local relacionada aos cargos e ao funcionamento das câmaras municipais. Os cargos camarários eram designados como os cargos honrosos da república e eram acessíveis aos denominados homens

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bons da terra, bastando ser natural da colônia, possuir bens e ser “civilizado no trato das gentes”.1 Contudo, por conta dos constrangimentos impostos pela autoridade metropolitana à participação dos colonos na gestão da administração local, à medida que avançava o século, o conceito de república passou também a ser utilizado no sentido mais restrito de governo popular. Protestava-se contra a justiça inoperante e lenta; o empobrecimento dos súditos; a avareza régia; o lançamento de tributos sem consulta; os excessos e desordens na Fazenda Real; as desigualdades da tributação; a tirania das autoridades coloniais; as dificuldades de representação junto ao sobe-rano e aos tribunais do Reino. Assim, durante a primeira metade do século xVIII, a república podia significar uma maneira de os colonos se posicionarem contra a usurpação de direitos e abusos praticados pelos funcionários ultra-marinos. A revolta expressava também uma reação àquilo que entendiam como um rompimento de acordos tácitos, no contexto das relações entre a metrópole e sua área co-lonial, a partir do estabelecimento de limites e obrigações mútuas.2 Nesse contexto, o culto ao modelo constitucional veneziano exercia papel saliente. Graças aos colonos flo-rentinos fixados na região desde o início da colonização,3 era Veneza que os aristocratas rebelados de Olinda tinham em vista durante a Guerra dos Mascates (1710). O mesmo ocorria com os sediciosos de Vila Rica, em Minas Gerais, naquele mesmo ano. Veneza significava a construção de um corpo político e administrativo circunscrito aos grupos detentores de bens na capitania – os portadores de virtude, privilégio dos homens principais da terra. Por outro lado, para o governador de Minas Gerais, o conde de Assumar, república era sinônimo de degradação dos costumes em

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geral: o republicano era um mau vassalo, falho em virtudes, incapaz de compartilhar valores, infenso aos mecanismos da governabilidade. Minas Gerais era “uma república, em que atualmente está armado o atrevimento, e os direitos quase sempre desarmados”. No caso de serem bem suce-didas as atitudes sediciosas, ficaria “o Estado reduzido a uma república de 24 e seu doge”.4

Conforme o século caminhava para o seu fim, essa leitura da república como autonomia se aperfeiçoou para exprimir uma forma de comunidade política que exigia de seus membros a participação na condução dos negócios públicos – única forma de governo em si mesma boa. Os conspiradores da Inconfidência Mineira, em 1789, enten-diam seu movimento como uma tentativa de impedir ou retardar o descomedimento dos homens e das instituições, o que passava por romper com a corrupção dos costumes e de reatar com a autoridade da lei. Para Joaquim José da Silva xavier, o Tiradentes, tratava-se de restaurar uma antiga ordem de leis inscritas na natureza das coisas, per-turbada e violada pelo despotismo de monarcas absolutos. Daí que repetisse: “Não diga levantar, diga restaurar.”5 O ponto de partida desses homens estava no ideal de cidade tão caro ao republicanismo anglo-americano, que signifi-cava independência e autogoverno. Eles haviam aprendido algumas coisas sobre a política da liberdade, em especial com a leitura dos artigos da Confederação norte-americana e das constituições dos Estados que a integravam: que o poder estava na soberania, liberdade e independência dos diversos Estados; que esse poder se concentrava nos legislativos e, em particular, nas câmaras baixas; e que a liberdade só florescia em Estados pequenos.6 Ao invés de pretender consolidar a área colonial portuguesa sob um

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governo nacional, os conspiradores preferiam vincular o sistema político da capitania a um processo local de discussão e negociação legislativa, que só poderia passar pelo revigoramento das câmaras municipais.7 Elas eram as únicas instituições, conhecidas pelos homens naturais do país, de representação dos interesses locais e de continui-dade administrativa, respaldadas na autoridade, exercendo particular atração a homens que queriam ocupar cargos onde vissem sua competência reconhecida e sua ascensão social realizada.8 Eram também homens que comparti-lhavam uma concepção utilitária da virtude, e, não por acaso, muitos estavam envolvidos com o contrabando de ouro.

No entanto, é apenas depois de 1792 que se fixa no Brasil um sentido de república claramente para além daquele consagrado pela tradição clássica – aquele sinô-nimo de democracia. A origem, claro está, estava nos ecos da república francesa, aportados em Salvador no final do ano de 1793 e acoimados como francesias. A palavra francesia designava ações e sentimentos antimonárquicos, autonomistas ou antirreligiosos, a que seus adversários aludiam como as “abomináveis idéias francesas”.9 Nesse contexto, a Sociedade Literária do Rio de Janeiro serviu de sede para um ensaio sedicioso em 1794. Conversando um pouco sobre tudo, seus membros debatiam sobre os acontecimentos da Revolução Francesa e, mais do que com um conceito, eles lidavam com uma linguagem do republicanismo que permitia veicular a noção da política como atividade pública. República era principalmente sinônimo de leis francesas e essas significavam uma garantia de um governo de iguais. Ou, para usar a definição de Silva Alvarenga: “Não há melhor governo do que o governo de iguais desde que restrito aos iguais.” João Antunes, por

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exemplo, constatara que “as repúblicas pagavam tudo o que tiravam aos vassalos”; João Veloso sonhava gozar a liberdade e por isso gostaria de estar na França “para passar bem”. Jacó Milliet, por sua vez, julgava que a “guerra que faziam os republicanos era justa e os reis da Europa todos eram uns ladrões”. Francisco Antônio entendia que “as leis francesas eram boas pela igualdade que introduziam entre os homens, e que só quando os franceses cá chegassem se poriam as cousas direitas”. Um alfaiate chegou a declarar que a lei dos franceses era “justa e santa... Assim como o rei pode matar os homens, também os ditos podem matar o rei”. Nesse sentido, a leitura carioca do termo república foi mais produto da interpretação desse vocabulário do que de adesão àquela forma de governo. Tanto pela persistência do ideal republicano clássico da aristocracia rural como pela simpatia de alguns setores urbanos da capital, Recife, pelo discurso igualitário jacobino, a tradição republicana encon-traria seu reduto por excelência durante a primeira metade do século xIx, na província de Pernambuco. Descontentes com a drenagem de tributos locais pela Corte do Rio de Janeiro, levantou-se a aristocracia rural pernambucana na chamada Revolução de 1817, cuja nota distintiva era a ausência de povo. Embora os chefes da rebelião não expli-citassem se a revolta era contra os agentes locais da Coroa ou contra a própria, desmentiam pressurosos os boatos de que aboliriam a escravidão. Segundo um contemporâneo, eles só pronunciavam a palavra república “em voz baixa e só discorrem sobre a doutrina dos direitos do homem com os iniciados”, já que ela “não seria compreendida pela canalha”.10 Já a inspiração constitucional oscilava entre a Constituição termidoriana e a norte-americana. De fato, o conselheiro José Maria de Avelar Brotero, primeiro

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professor de direito constitucional de São Paulo, anotaria em 1837 a mudança semântica: “É um termo genérico, que significa ‘coisa pertencente à cidade’. Nossos avós diziam: ‘F., cidadão republicano, membro da câmara, etc.’, e então nem se lembravam das democracias. Vulgarmente chamam ‘repúblicas’ os governos democráticos.”11

O terceiro momento do conceito data de 1821, isto é, da chegada das notícias da Revolução Constitucionalista do Porto e da proclamação da liberdade de imprensa. Conforme referido, o significado que então prevaleceu foi aquele que o fazia sinônimo de democracia ou de governo popular eletivo. Para o Manual político constitucional, publicado em Lisboa naquele ano, “o governo democrático ou republicano é aquele em que o povo é livre e se governa a si mesmo pelos seus magistrados, que ele mesmo elege”.12 No entanto, diferentemente do ocorrido na América hispânica, o encaminhamento de uma fórmula de transição do Antigo Regime para o governo constitucional, que preservava a forma monárquica de governo, levou o con-ceito de república a passar para o segundo plano, escon-dido seu significado sob as fórmulas de uma monarquia democrática ou republicana. A aceitação da monarquia constitucional reduziu a antiga oposição entre direita absolutista e esquerda republicana a uma luta entre adeptos de uma monarquia republicana, isto é, democrática, como era a do liberalismo vintista, e que aqui assumiu também aspirações federalistas, americanista, e uma monarquia temperada, isto é, um governo misto à inglesa, com acentos unitaristas, europeísta. Era o que, já na Constituinte de 1823, explicava um deputado da esquerda liberal: “De certo tempo para cá o Brasil parece dividido em dous partidos. Todos desejam a independência, porém uns

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seguem idéias democráticas, e outros aristocráticas.”13 Se, por um lado, havia uma clara associação entre concei-tos como monarquia, governo misto, unitarismo e Europa, simetricamente se associavam república, democracia, federalismo e América. A direita liberal tachava a esquerda de “facção oculta e tenebrosa de furiosos demagogos e anarquistas”;14 “iluminados, carbonários, radicais”, que “tem desordenado e ensangüentado a Europa, e que ameaçam o sossego de todos os povos e a estabilidade dos governos”.15 Por sua vez, a esquerda acusava a direita liberal de chamar de republicanos “todos aqueles que não apóiam medidas violentas, leis parciais, caprichosas e bárbaras; leis, enfim, do sanguinolento Draco”.16 Durante a Constituinte, o secretário particular do imperador, Francisco Gomes da Silva, colocaria o dilema político com toda a clareza: “Ou queremos monarquia constitucional, isto é, um governo misto, ou queremos uma monarquia republicana.”17

Do lado direito do espectro político liberal, estavam aqueles para quem a monarquia constitucional represen-tativa era “o único governo capaz de fazer a felicidade e a prosperidade das nações; porque marchando a honra com a civilização, e com as luzes do século, é o único que oferece a tríplice aliança da força, da sabedoria e da liber-dade”.18 Como explicava o marquês de Caravelas, a monar-quia constitucional era uma modalidade equidistante entre democracia ou república e monarquia ou absolutismo: “A monarquia representativa é um governo misto, que se combina umas vezes com elementos democráticos, outras vezes com a aristocracia e democracia conjuntamente.”19 Daí que o ministro do Reino, depois do Império, José Bonifácio de Andrada e Silva, pedisse “uma Constituição que, opondo barreiras invencíveis ao despotismo, quer real,

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quer aristocrático, quer democrático, afugente a anarquia”.20 Os modelos de monarquia republicana ou república eram condenados por ele como “totalmente teoréticos e metafí-sicos e por isso inexeqüíveis; assim o provam França, Espanha, e ultimamente, Portugal”.21 Para ele, contra a forma de governo democrática pesava também o mau exemplo das repúblicas hispânicas, que “tendo saído de um governo monárquico, pretenderam estabelecer uma licenciosa liberdade; e depois de terem nadado em sangue, não são mais que vítimas da desordem, da pobreza e da miséria”.22 O exemplo norte-americano, por sua vez, era rejeitado pela incompatibilidade entre as duas matrizes culturais, que não eram “da mesma família”. “Se nós quere-mos monarquia”, lembrava o marquês de Caravelas, “não devemos procurar coisas que nela ficam deslocadas”.23 Identificada a monarquia ao unitarismo, a república era vista pelo marquês de Baependi como sinônimo de federa-lismo: “Temos a combater o partido dos republicanos, que sustentam e apregoam a separação de todas as províncias em repúblicas independentes, mas confederadas entre si, à imitação dos Estados Unidos da América.”24 José Bonifácio explicava melhor ao caracterizar os republicanos federalistas como

bispos sem papa, a que eu também chamarei os incom-preensíveis. Estes que não querem ser monárquico- -constitucionais, que não podem ser corcundas e que não querem ser republicanos de uma só república, querem um governo monstruoso; um centro de poder nominal, e cada província uma pequena república, para serem nelas chefes absolutos, corcundas despóticos.25

Desse modo, federalismo se tornava feudalismo, e repú-blica, despotismo.

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Do lado esquerdo do espectro político, aqueles que até então tendiam ou abraçavam o republicanismo acharam mais prudente ou cômodo aderir à fórmula de emanci-pação política sob o patrocínio do príncipe regente, ima-ginando, porém, uma monarquia constitucional que, na esteira do vintismo português, privilegiasse os elementos democráticos ou republicanos, o que passava necessaria-mente por enfraquecer o poderio monárquico e fortalecer a câmara popular. Eles combatiam as propostas de uma segunda câmara, de caráter aristocrático, de conceder o veto absoluto ao monarca, como uma tentativa de “re-moçar no Brasil a rançosa e encarquilhada aristocracia”.26 Ao indicarem que se imitasse a Constituição de Cádiz ou a Portuguesa, o que jornalistas como João Soares Lisboa, Gonçalves Ledo e Januário da Cunha Barbosa propunham era uma república travestida de monarquia: “Na verdade, que desejavam os mais acérrimos democratas do Brasil? Liberdade. Como haviam de assegurá-la? Por uma Cons-tituição. E que Constituição mais livre, mais cheia mesma de formas republicanas, que a Constituição de Portugal?”27 Também o radical Cipriano Barata elogiava a Constituição Portuguesa que, conforme preconizava Mably, decepara a autoridade real a ponto de fazer dela uma “fera sem unhas, domesticada e presa”.28 Por outro lado, o fato de o Brasil estar na América era um dos mais frequentes argumentos em favor do modelo democrático ou republicano de monarquia. Ela era sinônima de liberdade e de democracia – ao contrário da Europa, associada aos governos aristo-cráticos e à Santa Aliança. Era o que explicava o deputado Henriques de Resende: uma vez que “o Brasil pertence todo, e deve pertencer ao sistema americano”, a monarquia brasileira deveria se fundamentar “em alicerces próprios

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do nosso terreno, e não sobre as mesmas instituições do sistema europeu, porque a experiência nos mostra que as plantas exóticas não podem prosperar em nossos climas”.29 A estratégia de ocultação dos republicanos atrás das ambiguidades semânticas do próprio conceito de república, que oscilavam entre seu sentido clássico e seu sentido moderno, foi denunciada por um deputado governista que tentava impedir a diplomação de um candidato eleito na Constituinte:

Confessa o pretendente [a deputado] ser um republicano e para torcer o sentido óbvio que ocorria a todos os lei-tores que era a democracia, desculpou-se com a filologia da palavra res publica, mas caiu miseravelmente no fim de tal carta, apontando exemplos de democracias puras, quais as de Roma e da América Inglesa.30

Abraçar uma monarquia democrática era assim uma forma de aceitar a monarquia sem deixar de ser republi-cano. Somente no limite da ruptura contra o imperador, a esquerda liberal provincial recorreu às armas e declarou-se abertamente republicana. Foi o caso da Confederação do Equador, rebelião que se alastrou de Pernambuco pelo nordeste brasileiro depois que Pedro I dissolveu a Cons-tituinte para impor o projeto da direita liberal, em 1824. Para os republicanos pernambucanos, pesavam contra a Carta outorgada o vício da origem, o unitarismo, o Poder Moderador, o Conselho de Estado e o Senado Vitalício – todos os elementos que, para a direita liberal, asseguravam a monarquia temperada contra a democrática. “De nova invenção maquiavélica”, o Poder Moderador era “a chave mestra da opressão da nação brasileira e o garrote mais forte da liberdade dos povos”, por meio da qual o imperador

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poderia dissolver a Câmara, “a representante do povo”, saindo ileso o Senado, “representante dos apaniguados do Imperador”, e ficando o povo “indefeso nos atentados do Imperador contra os seus direitos”.31 Como fundamento de sua decisão separatista, os rebeldes pernambucanos invocavam uma concepção americana e nativista de pátria, que só voluntariamente poderia se submeter a um governo nacional. Segundo o argumento, só uma Constituinte po-deria elaborar o pacto que associaria entre si as províncias do Brasil, independentes desde que desaparecera o laço que as unia a Portugal. Ou seja, os republicanos de Pernambuco se recusavam a reconhecer o governo nacional do Rio de Janeiro como o centro de um Brasil uno e indiviso, justi-ficando o ato de rebeldia e de secessão invocando a prévia existência de uma cláusula resolutiva tácita – a do contrato descumprido pelo Imperador, ao dissolver a Constituinte e impor unilateralmente a Carta.32 Era o chefe intelectual da rebelião, o Frei Caneca, que explicava:

Quando aqueles sujeitos do sítio do Ipiranga, no seu exal-tado entusiasmo, aclamaram a Sua Majestade Imperial, e foram imitados pelos aferventados fluminenses, Bahia podia constituir-se república; Alagoas, Pernambuco, Pa-raíba, Rio Grande, Ceará e Piauí, federação; Sergipe d’El--Rei, reino; Maranhão e Pará, monarquia constitucional; Rio Grande do Sul, estado despótico.33

E concluíam os confederados em seu manifesto: “O sistema americano deve ser idêntico; desprezemos instituições oligárquicas, só cabidas na encanecida Europa.”34

Como se vê, os republicanos eram principalmente vin-tistas extremados, que somente premidos ao último limite rompiam com a fórmula de transigência da monarquia

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constitucional. Tanto assim que, mesmo depois da abdi-cação de Pedro I, em 1831, sob as regências chefiadas por senadores, em meio às guerras civis provinciais e em plena febre federalista daquela década, a adesão ao republicanismo continuava a não se efetuar senão em último caso. Dentro da dicotomia república-federalismo e monarquia-unitarismo, os manifestos republicanos eram todos provinciais e se referiam à forma republicana, não como algo bom em si mesma, mas instrumentalmente – como um meio de con-seguir emancipação do governo nacional. No Rio Grande do Sul, Bento Gonçalves declarava que perdidas

as esperanças de concluírem com o Governo de Sua Ma-jestade Imperial uma conciliação fundada nos princípios de Justiça Universal, os rio-grandenses (...) solenemente proclamaram e juraram a sua independência política, debaixo dos auspícios do governo republicano, dispos-tos todavia a federarem-se, quando nisso acordem as províncias irmãs que venham adotar o mesmo sistema.35

Os baianos da revolta da Sabinada, por sua vez, chegaram ao cúmulo de proclamar a independência provisória da província, “somente até a maioridade do Imperador o Senhor D. Pedro II”.36 Sintomaticamente, não havia qual-quer proposta de república unitária. Embora combatessem as instituições constitucionais com argumentos semelhantes aos dos confederados pernambucanos, federalistas, os exaltados da Corte também relutavam em dar o passo seguinte, que era aderir à república. Ezequiel Correia dos Santos, por exemplo, reconhecia em abstrato que a república democrática era “coisa boa, e muito boa”, por ser um governo não-patrimonial, temporário e responsável. No entanto, por receio da repressão, da desordem ou da

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impopularidade da ideia, ele preferia dizer-se favorável a uma “monarquia americana sui generis” – democrática, constitucional, federalista, não hereditária e eletiva. Ou seja, uma república norte-americana, com o chefe de Estado vitalício.37

Como conceito autônomo, portanto, a república era bastante débil. Os exaltados ou abertamente republicanos foram sempre minoritários em relação aos moderados que, na busca de um meio termo, queriam uma descentralização mais prudente, lastrada no liberalismo da Monarquia de Julho. Combatendo à direita “o desejo de vestirem a nossa monarquia com as galas e velhos atavios que o regime gótico legou aos povos europeus” e, à esquerda, “a idéia da república que se enfeitava com as nobres cores da liber-dade”, mas que comprometia “a prosperidade e os destinos do Brasil”, o deputado e jornalista Evaristo Ferreira da Veiga buscava “o justo meio, condenando, quer as visões do republicanismo, quer os sonhos não menos absurdos da monarquia aristocrática”.38 A ala esquerda moderada simpatizava antes com um sistema de separação de po-deres à moda americana do que ao governo parlamentar à europeia; entretanto, queriam manter a monarquia por receio da desordem republicana, acreditando que aquela fosse melhor garantia da ordem, por conta da “solidez do governo pela perpetuidade do seu primeiro magistra-do”.39 Além disso, os moderados combatiam a concepção restrita e nativista de pátria ostentada pelos exaltados: “A organização política dos Estados”, explicava Evaristo, “é hoje diversa da dos antigos, que ligavam ao nome – pátria – idéias muito mais restritas, que nasciam da natureza das associações antigas, sendo hoje preferida a indústria e a proteção dos direitos de cada um”.40 Um colega seu não

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destoaria: “A pátria é todo o lugar onde um indivíduo vive seguro debaixo da proteção das leis, apesar de sempre ficar alguma lembrança do lugar onde o homem passa a sua meninice, da árvore a que se acostumava abrigar-se, etc.”41 Preocupavam-se assim com a autonomia das províncias, mas também em cimentar a unidade nacional.

O ponto máximo de prestígio da república e do federa-lismo foi a reforma constitucional de 1834, bancada pelos moderados e pelos exaltados, e que consagrou uma forma de Estado híbrida, entre o federalismo e o unitarismo, e decretou que o regente fosse eleito pela nação numa elei-ção em dois graus. Dali por diante, o ímpeto federalista e radical cessou e a desordem política, econômica e social esfriou a ideia republicana americanista junto à maior parte da classe política. O quarto momento do conceito no Brasil começou justamente, então, quando ficou claro que, ao invés de reduzir as ameaças de separatismo, o experimento descentralizador e democratizante da reforma constitucional as havia antes fomentado, aprofundando a desordem, e que o caminho para a paz estava na fórmula inversa – reforçar o poder do governo central e prestigiar o elemento monárquico. Vários argumentos justificavam esse abandono do ideal republicano e federalista. O primeiro deles era a falta de civismo do povo brasileiro estampada no regime escravocrata, que faria da república no Brasil uma caricatura ridícula. Era o que comentava um articulista pernambucano já em 1821:

Uma república brasileira, proclamando a liberdade e a igualdade, nunca poderia deixar de produzir o contraste burlesco de se ver um pequeno número de homens brancos envoltos em cambraias e tafetás, conduzidos

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em palanquins ou redes, por pretos de pés descalços, que se compram, vendem, alugam e açoitam liberal e constitucionalmente, como as mulas, machos e cavalos em Madrid, Londres e Paris.42

Justamente porque a república era “o mais perfeito e, por isso, demandando a maior soma de virtudes da parte do maior número dos membros de qualquer associação”, o deputado Martim Francisco Ribeiro de Andrada entendia em 1832 que ela era impraticável no Brasil: “Não temos diante dos olhos diariamente testemunhos não interrom-pidos da nossa imoralidade e do desregramento habitual de nossos costumes?”43 Outro argumento era o de que a república era uma opção irrefletida, própria da mocidade. Invocando o próprio exemplo – pois participara da revo-lução de 1817 – o deputado Antônio Carlos de Andrada Machado explicava que era “a superabundância de vida”, a educação clássica, o desconhecimento dos interesses pú-blicos e a falta de maturidade que inclinava a juventude à “vida procelosa da democracia”. Com efeito, a maturidade e a experiência lhe haviam ensinado a moderação, ou seja, o gosto pelo meio termo representado pela monarquia constitucional. E concluía: “A mocidade inclina-se mais ao republicanismo, a meia idade à monarquia constitu-cional e a velhice conserva o que a meia idade lhe legou.”44 Conforme se adentrava na década de 1840 e desapare-ciam completamente os federalistas e especialmente os republicanos, era o conceito de monarquia que passava a encarnar as virtudes que geralmente eram atribuídas às repúblicas – aquelas relacionadas ao governo do bem comum e ao interesse público, atribuindo-se àquelas ou-tras os vícios do partidarismo e do privatismo. Segundo explicava Paulino José Soares de Sousa, visconde do

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Uruguai e chefe intelectual do Partido Conservador, no ano de 1862, a república era uma forma de governo “que não tem, nem pode ter outro móvel, senão os interesses, as opiniões, as paixões dos partidos políticos, que é o governo cujo chefe deve ser responsável, para que não se desmande de todo”.45 De fato, a última rebelião do Império, a Revolta da Praieira, ocorrida em 1848 no Recife, não manifestaria pretensões republicanas nem separatistas, e ainda quarenta anos depois, numa carta íntima, um general sintetizaria de forma lapidar suas expectativas em torno da forma de governo republicana: “República, no Brasil, e desgraça completa é a mesma coisa.”46

notas

1 BLUTEAU, 1713; BICALHO, 2003.2 ANASTASIA, 1998; FIGUEIREDO, 2001.3 MELLO, 2002.4 SCHWARTz, 1988.5 ADIM, 1980.6 MAxWELL, 1997; FURTADO, 2002.7 ADIM, 1980.8 WOOD, 1977.9 JANCSÓ, 1995.10 MELLO, 2002, p. 38.11 BROTERO, 2007, p. 55.12 NEVES, 2003, p. 192.13 AACB, 22/07/1823.14 LUSTOSA, 2000.15 AACB, 17/05/1823.16 AACB, 19/06/1823.

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17 VIANA, 1967, p. 174.18 ACD, 10/06/1826.19 AACB, 26/06/1823.20 AACB, 03/05/1823.21 AACB, 03/05/1823.22 AACB, 03/05/1823.23 ASI, 16/06/1832.24 AACB, 26/05/1823.25 ANDRADA E SILVA, 2002, p. 174.26 LUSTOSA, 2000, p. 209.27 BARBOSA & LEDO, 1822, p. 176.28 LUSTOSA, 2000, p. 339.29 AACB, 29/07/1823.30 AACB, 16/05/1823.31 CANECA, 1976, p. 70.32 MELLO, 2002.33 CANECA, 2001, p. 468.34 PESSOA, 1973, p. 16.35 PESSOA, 1973, p. 31.36 PESSOA, 1973, p. 32.37 BASILE, 2001, p. 35.38 SOUSA, 1988, p. 177.39 FEIJÓ, 1999, p. 166.40 ACD, 26/06/1832.41 ACD, 25/06/1832.42 MELLO, 2002, p. 15.43 ACD, 12/05/1832.44 ACD, 18/05/1838.45 URUGUAI, 1960, p. 261.46 AMARAL, 1974, p. 128.

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BiBliografia

dicionários

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soBre os autores

João Feres Júnior (Org.)Doutor em Ciência Política pela City University of New York, professor de Ciência Política do Instituto Universi-tário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), coordena-dor do projeto Iberconceptos no Brasil, editor da revista Contributions to the History of Concept e coorganizador de História dos conceitos: debates e perspectivas (2006) e História dos conceitos: encontros transatlânticos (2007).

Beatriz Catão Cruz SantosDoutora pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professora adjunta da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e autora de O pináculo do Temp(l)o: o sermão do padre Antônio Vieira e o Maranhão do século XVII (1997) e O corpo de Deus na América: a festa de Corpus Christi nas cidades da América portuguesa – século XVIII (2005).

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Bernardo FerreiraDoutor em Ciência Política pelo IUPERJ, professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e autor de O risco do político: crítica ao liberalismo e teoria política no pensamento de Carl Schmitt (Editora UFMG e IUPERJ, 2004).

Christian Edward Cyril LynchDoutor em Ciência Política pelo IUPERJ, professor da Pós-Graduação em Direito e Sociologia da UFF e da Pós- -Graduação em Direito da Universidade Gama Filho (UGF) e pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB).

Guilherme Pereira das NevesProfessor associado do Departamento de História da UFF, pesquisador principal do projeto Pronex-Faperj/CNPq intitulado Raízes do Privilégio e autor de E receberá mercê: a mesa da consciência e ordens e o clero secular no Brasil, 1808-1828 (1997), prêmio de monografia do Arquivo Nacional.

Heloisa Maria Murgel StarlingVice-Reitora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) – gestão 2006-2010, professora adjunta do Departamento de História da UFMG, coordenadora do Projeto República: Núcleo de Pesquisa, Documentação e Memória, coorganizadora de Corrupção: ensaios e críticas (Editora UFMG, 2008) e Sentimentos do mundo: ciclo de conferências dos 80 anos da UFMG (Editora UFMG, 2009).

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Ivo CoserDoutor em Ciência Política pelo IUPERJ, professor adjunto do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor de Visconde do Uruguai: centralização e federalismo no Brasil 1823-1866 (Editora UFMG e IUPERJ, 2008).

João Paulo G. PimentaProfessor do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP), especialista em História Política do Brasil e da América hispânica nos séculos xVIII e xIx, coautor de A corte e o mundo (2008).

Lúcia M. Bastos Pereira das NevesProfessora titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), pesquisadora principal do Pronex Dimen-sões da Cidadania, autora de Corcundas e constitucionais: a cultura política da independência (2003), Napoleão Bonaparte: imaginário e política em Portugal (2008) e coorganizadora de O Brasil Joanino (2008).

Luisa Rauter PereiraDoutoranda em Ciência Política no IUPERJ, mestre em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), professora subs-tituta no Departamento de História da UFF em 2006 e 2007, pesquisadora da área de História das Linguagens e Conceitos Políticos no Brasil Oitocentista.

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Marco A. PamplonaDoutor em História pela Columbia University, em Nova York, professor do Departamento de História da PUC-Rio, autor de Revoltas, repúblicas e cidadania (2003) e coorga-nizador de Nacionalismo no Novo Mundo: a formação de estados-nação no século XIX (2008) e da Coleção Margens sobre as Revoluções de independência e nacionalismos nas Américas (2008/2009).

Maria Elisa MäderDoutora em História Social pela UFF, professora do Departamento de História da PUC-Rio e coorganizadora da Coleção Margens sobre as Revoluções de independências e nacionalismos nas Américas (2008/2009).

Valdei Lopes de AraújoDoutor em História pela PUC-Rio, professor da Universi-dade Federal de Ouro Preto (UFOP), membro do Núcleo de Estudos em História da Historiografia e Modernidade (NEHM) e autor de A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845) (2008).

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A presente edição foi composta pela Editora UFMG e impressa pela Label Artes Gráficas, em sistema offset, papel chamois 80g (miolo) e cartão supremo 300g (capa), em abril de 2009.

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