liberdade de expressão no contexto digital, por gustavo m. moreno

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO - USP ESCOLA DE COMUNICAÇÃO E ARTES ECA CURSO DE GESTÃO INTEGRADA DA COMUNICAÇÃO DIGITAL EM AMBIENTES CORPORATIVOS Liberdade de expressão no contexto digital: o posicionamento dos veículos Folha e Estado de São Paulo na cobertura do SOPA e Lei Azeredo Gustavo Martins Moreno São Paulo 2012

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Monografia sobre liberdade de expressão no contexto digital. Uma análise da cobertura dos veículos Folha e Estado de S. Paulo sobre os casos Stop Online Piracy Act (SOPA) e Lei Azeredo, entre julho de 2011 e maio de 2012.

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Page 1: Liberdade de expressão no contexto digital, por Gustavo M. Moreno

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO - USP ESCOLA DE COMUNICAÇÃO E ARTES – ECA

CURSO DE GESTÃO INTEGRADA DA COMUNICAÇÃO DIGITAL EM AMBIENTES CORPORATIVOS

Liberdade de expressão no contexto digital: o posicionamento dos

veículos Folha e Estado de São Paulo na cobertura do SOPA e Lei

Azeredo

Gustavo Martins Moreno

São Paulo

2012

Page 2: Liberdade de expressão no contexto digital, por Gustavo M. Moreno

Gustavo Martins Moreno

Liberdade de expressão no contexto digital: o posicionamento dos

veículos Folha e Estado de São Paulo na cobertura do SOPA e Lei

Azeredo

Monografia apresentada à Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo como requisito básico para obtenção do título de especialista em Comunicação Digital. Orientadora: Elizabeth Saad Corrêa

São Paulo 2012

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Autorizo a divulgação e reprodução total ou parcial deste trabalho, por

qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa,

desde que citada a fonte.

FICHA CATALOGRÁFICA

MORENO, Gustavo Martins. Liberdade de expressão no contexto digital: o

posicionamento dos veículos Folha e Estado de São Paulo na cobertura

do SOPA e Lei Azeredo. Especialização em Comunicação Digital. Escola de

Comunicações e Artes. Universidade de São Paulo. 2012.

Palavras-chave: liberdade de expressão, privacidade, análise de discurso,

SOPA, Lei Azeredo.

Page 4: Liberdade de expressão no contexto digital, por Gustavo M. Moreno

Gustavo Martins Moreno

Liberdade de expressão no contexto digital: o posicionamento dos

veículos Folha e Estado de São Paulo na cobertura do SOPA e Lei

Azeredo

Trabalho de conclusão do curso de especialização em Gestão Integrada da Comunicação Digital em Ambientes Corporativos, pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Aprovado em ______de______________de 2012. Aprovado por: _____________________________ _____________________________ _____________________________ .......................................................... (nome do orientador)

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A Deus, aos meus pais e aos amigos, os alicerces que me impulsionaram na produção deste trabalho.

Page 6: Liberdade de expressão no contexto digital, por Gustavo M. Moreno

AGRADECIMENTOS

Agradeço imensamente aos meus pais, Antonio José Moreno e Diva

Aparecida Martins Moreno, que, como meus primeiros educadores, ensinaram-

me a perseguir meus objetivos pessoais e profissionais com paixão, ética e

trabalho duro. Obrigado por acreditarem que a educação é o caminho para a

edificação do caráter do homem. Aos amigos, agradeço por estarem próximos,

em meio físico e no digital, auxiliando na composição do caldo de ideias. Aos

amigos da turma 2 do Digicorp, que, comigo, enfrentaram as mesmas aflições:

trabalhar ao dia, entender a Internet como um inevitável objeto de nossas

vidas, à noite. Especialmente à Mônica Fernanda Valini, grande amiga, para

debater ideias e puxar minhas orelhas sempre que necessário.

À minha orientadora Prof.ª Elizabeth Saad Correa cujas indicações

fizeram as ideias embaralhadas em minha cabeça ganharem coerência no

papel e à Prof.ª Daniela Bertocchi que pessoalmente me incentivou à realizar o

referido curso e seguir em frente com ele. À Escola de Comunicação e Artes e

aos professores com os quais tivemos contato nessa experiência única.

Page 7: Liberdade de expressão no contexto digital, por Gustavo M. Moreno

7

Num futuro próximo, qualquer ordem

que prevaleça na Internet será a

mesma que prevalecerá na realidade

e tudo o que se possa fazer para

prevenir uma confiscação à escala

global deve ser tomado em conta.

(Derrick de Kerckhove, 1997)

Page 8: Liberdade de expressão no contexto digital, por Gustavo M. Moreno

RESUMO

O presente trabalho analisa o conteúdo dos jornais Folha e O Estado de

S. Paulo durante a cobertura de dois casos: o Stop Online Piracy Act (SOPA) e

a Lei Azeredo. Ambos representam projetos de lei criados nos Estados Unidos

e Brasil, respectivamente, e levantam debates sobre temas delicados como

direitos autorais (Copyright), liberdade de expressão e privacidade no contexto

digital. O olhar da mídia sobre esses casos, com repercussões distintas,

mostram se o debate sobre os referidos temas vem avançando hoje em dia e

para qual lado dessa discussão os veículos tomam partido.

Palavras-chaves: liberdade de expressão, privacidade, análise de

conteúdo, SOPA, Lei Azeredo.

Page 9: Liberdade de expressão no contexto digital, por Gustavo M. Moreno

RESUMO NA LÍNGUA ESTRANGEIRA

This present work analyzes the content of two newspapers, Folha de São

Paulo and O Estado de São Paulo, on covering two cases: the Stop Online

Piracy Act (SOPA) and the Azeredo bill. The two cases represent bills written

respectively on United States of America and Brazil and raise discussions on

sensitive topics such as Copyrights, free speech and privacy in the digital

context. The gaze of media on these cases, with distinct impacts, show if the

debate around the referred topics have progressed nowadays and if the

vehicles take sides on this discussion.

Keywords: free speech, privacy, content analysis, SOPA, Azeredo bill.

Page 10: Liberdade de expressão no contexto digital, por Gustavo M. Moreno

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ............................................................................................. 12

2. CONCEITOS BÁSICOS ............................................................................... 18

2.1 Liberdade de expressão ............................................................................. 18

2.2 Espaço público, privacidade e a nova esfera conversacional .................... 27

3. APRESENTANDO OS CASOS ................................................................... 35

3.1. Stop Online Piracy Act (SOPA) ................................................................. 36

3.2. Lei Azeredo ............................................................................................... 41

4. METODOLOGIA DA PESQUISA DE CAMPO ............................................ 44

5. ANÁLISE DE MÍDIA .................................................................................... 47

5.1. A cobertura do caso SOPA ....................................................................... 47

5.2. A aprovação da Lei Azeredo ..................................................................... 53

6. Considerações finais ................................................................................. 57

REFERÊNCIAS ................................................................................................ 61

Page 11: Liberdade de expressão no contexto digital, por Gustavo M. Moreno

11

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 - Diferenças entre os casos SOPA e Lei Azeredo ............................ 35

Page 12: Liberdade de expressão no contexto digital, por Gustavo M. Moreno

12

1. INTRODUÇÃO

As mídias digitais, mais do que nunca, estão mudando a forma de se

comunicar. A rede digital passou a ser um novo “território” (ou “não-território”)

no qual os debates de interesse geral se configuram. Neste emaranhado de

redes e sub-redes que é hoje a Internet, existem conexões, dados

(informações) e debates dos mais diversos, que englobam tanto os temas de

interesse público quanto os de interesse ‘do público’. Uma nova esfera

conversacional (LEMOS, 2009) em que os participantes, usuários, possuem à

mão as mesmas condições técnicas para se expressarem.

É nessa esfera que as disputas de poder se deflagram com mais

visibilidade e é lá onde mais se discute, hoje, um antigo tema: a liberdade de

expressão. Como foi citado acima, há na rede digital a possibilidade de

horizontalizar a comunicação, de desmontar hierarquias e de gerar debates

igualitários entre diferentes atores da sociedade, pelo menos em teoria. Esta

facilidade oferecida pela tecnologia, porém, ainda hoje não é totalmente

legitimada.

A simples transposição de alguns conceitos de outros meios para a rede

digital não é suficiente. O que hoje em dia mais se vê é a necessidade de

atualizar estes conceitos. E o conceito de liberdade de expressão é um

exemplo. Os princípios que legitimavam essa ideia, defendidos com mais força

pelas democracias e pela imprensa décadas atrás, ainda permanecem

confusos com a chegada dessas tecnologias.

É sabido que a internet chegou às mãos do grande público em meados

da década de 1990 e que o princípio da web 2.0 só ampliou consideravelmente

após 2004, com o prenúncio das redes sociais. Por isso, muitos internautas

inveterados aprenderam naturalmente a se comunicar no ‘novo meio’, mas os

limites dessa comunicação nunca foram estabelecidos e parecem que não vão

ser delineados tão cedo.

Essa curta existência da rede digital é um dos principais motivos que

torna a discussão da liberdade na rede, em grande parte, polêmica. A queda de

Page 13: Liberdade de expressão no contexto digital, por Gustavo M. Moreno

13

algumas barreiras de mediação na comunicação ainda não foi bem

compreendida por algumas instituições tradicionais da nossa sociedade. Nesse

caso, podemos citar governos, empresas e até mesmo os próprios veículos de

comunicação, que eram os principais mediadores de qualquer comunicação

legítima, de interesse público e de grande difusão. Essas tensões, na

realidade, são indícios de que as novas formas de comunicação do meio digital

trazem uma quebra de paradigma e revelam um novo formato para a

sociedade.

As disputas que envolvem os discursos sobre a liberdade na rede,

liberdade de se expressar, vão desde comentários de humor que desagradam

uma parcela dos usuários, que verbalizam sua opinião subitamente a ponto de

engajar grandes grupos e gerar um debate em torno disso, à tentativas de

impedir, por parte de instituições mais tradicionais, que determinado grupo

mais politizado tente expor seu ponto de vista sobre algum assunto polêmico.

O objeto deste trabalho é a liberdade de expressão nos meios digitais;

em especial, o posicionamento dos veículos jornalísticos de comunicação

brasileiros, Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, durante a cobertura de

dois casos, com repercussão em dois momentos distintos: o projeto de lei Stop

Online Piracy Act (SOPA), no início de 2012, e o projeto de lei brasileiro nº 84,

de 1999, conhecido como Lei Azeredo, cuja versão reduzida foi aprovada em

maio de 2012.

É preciso destacar que os recentes debates sobre o tema também

fortalecem a tese da existência de um novo espaço público no meio digital,

onde os tópicos de discussão geram o engajamento das pessoas em uma

escala totalmente nova.

Nos casos em que esta discussão detém-se entre os pares, usuários ou

nichos de usuários, por exemplo, o problema dificilmente toma grandes

proporções. Em outra configuração desses agentes, porém, são inúmeros os

casos que tomam grande repercussão nas mídias, em geral, e que abrem

discussões sobre invasão de privacidade, resoluções de caso por clamor

popular (legítimos ou não), abuso de poder, entre outros.

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Entendemos que há no meio digital uma possível “pane” conceitual,

causada pelas novas mídias e que força as empresas e os veículos de

comunicação a se adaptarem rapidamente. As mediações eram mais claras,

definidas e vantajosas, principalmente para estes atores de media. E, hoje,

poucos veículos sabem devidamente lidar com a liberdade que a internet

proporciona ao usuário, num espaço totalmente novo.

A questão da liberdade foi o estopim que deflagrou os levantes contra o

SOPA e a Lei Azeredo e abriu discussões importantes sobre a liberdade de

expressão e o que realmente é defendido hoje por cada um dos atores que

participou nesses casos. A partir deste objeto queremos observar: qual

“bandeira” defenderam os jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo

nos casos destacados? Ou a cobertura foi isenta?

O tema mostra-se sólido se levarmos em conta que os debates sobre

liberdade na rede começaram a ganhar mais destaque nos veículos de

comunicação de difusão massiva, no ano de 2011, com as revoltas do povo

árabe contra as ditaduras totalitárias de seus respectivos países.

O assunto virou pauta quando viu-se que as redes sociais tiveram papel

fundamental para o sucesso das revoluções. Os grandes protestos eram

agendados via rede digital e as ferramentas de fácil acesso e difusão de

conteúdo multimídia contribuíram para inflamar ainda mais a população para a

derrubada dos governos opressores. Do lado oposto, a estratégia era tentar

coibir ao máximo possível o uso dessas tecnologias, inclusive impedindo que

as empresas responsáveis por fornecer o serviço atuassem no país. Essa

investida causou comoção internacional e o debate sobre a liberdade

estendeu-se até o início de 2012, agravando-se com o SOPA.

Sem ganhar capa dos jornais, como as revoluções da “Primavera

Árabe”, o caso SOPA foi destaque quase exclusivamente em cadernos

especializados sobre tecnologia ou na própria rede digital, palco principal deste

debate sobre a liberdade de expressão. A postura adotada durante a

tramitação do SOPA foi desmedida se comparada à cobertura da aprovação da

Lei Azeredo, em maio.

Page 15: Liberdade de expressão no contexto digital, por Gustavo M. Moreno

15

A lei, originalmente de 1999, voltou em pauta meses antes do SOPA

entrar em discussão no congresso norte-americano. No entanto, o destaque

dado ao caso SOPA foi relativamente maior. Em outras palavras, parece ter

chamado mais a atenção dos veículos brasileiros do que a lei que se referia ao

próprio território nacional.

É certo que o apelo do caso SOPA era maior e mais próximo ao público

do que o tratamento dado à Lei Azeredo. Nesses termos é inevitável pensar em

se a cobertura de um assunto de porte internacional, como o SOPA, é de fato

mais relevante no Brasil do que o debate sobre a Lei Azeredo.

À primeira vista, notamos que os internautas mobilizam-se mais

facilmente com assuntos exteriores do que com os próprios problemas

socioeconômicos que o País enfrenta. Ao mesmo tempo, parece que o humor

(crítico ou não) ganha outras dimensões na rede digital, promovendo mais

engajamento do que o discurso mais politizado de um blog ou um portal de

notícias, por exemplo.

A ideia desse trabalho é analisar o discurso de dois veículos de

comunicação tradicionais a fim de observar se houve um discurso mais

“engajante” por parte desses veículos; em outras palavras, se é possível

observar alguma parcialidade em defesa da liberdade de expressão no meio

digital ou se os casos foram meramente reportados, sem aprofundamentos.

Para enriquecer estas ideias queremos emparelhar, em nível macro, o

pensamento de Lawrence Lessig sobre liberdade na rede digital e sobre

tensões, mostradas por ele, entre esses conglomerados empresariais e o

grande público. Desde o início da internet, os internautas tratam o espaço

digital como um local de livre troca, inclusive de material protegido pelas leis de

propriedade intelectual. A partir desse conceito, que não é bem visto pelas

empresas, surgem as grandes disputas que envolvem o tema da liberdade na

web.

Da análise dessas interações, em nível brasileiro, será possível abrir a

discussão para o modo como os veículos de comunicação de massa informam-

nos sobre temas de interesse público, atendendo (ou não) às novas demandas

Page 16: Liberdade de expressão no contexto digital, por Gustavo M. Moreno

16

do meio digital. Aqui podemos analisar casos em que hajam debates sobre os

novos sentidos de privacidade e liberdade de expressão nessa nova

configuração da sociedade. Para esses temas, pretendemos nos apoiar em

autores cujas linhas de pensamento expressam essas tensões do público e

privado no mundo pós-moderno, como Zygmunt Bauman, Gilles Lipovetsky e

Jean Serroy e o brasileiro André Lemos.

Pretendemos analisar o debate sobre a liberdade de expressão na rede

digital e a sua relação com a discussão de temas de interesse público na

formação de uma nova esfera conversacional. A relação que queremos

comprovar é se a liberdade na rede, de fato, proporciona um debate mais

igualitário entre as instituições mais tradicionais e os produtores/consumidores

de informação na web a começar pelo tema da liberdade em si, discutido no

caso SOPA e pela Lei Azeredo. O que analisaremos é se a forma como os

veículos selecionados fizeram a cobertura e se esta aprofunda discussões mais

amplas como a liberdade e a privacidade

O clamor popular internacional nas redes digitais, que derrubou por

tempo indeterminado o projeto de lei SOPA realmente aprofundou o debate

sobre a liberdade de expressão no globo? No Brasil observamos que existem

outras tentativas de regulamentar alguns pontos na web que não despertam

tanto interesse na sociedade como este caso internacional.

As tentativas de regulamentação são válidas, ao passo que as

mudanças são incorporadas à sociedade naturalmente e exigem novas formas

de legislação para entendê-la e organizá-la, sob as novas exigências da

população. No entanto, o que parece haver, pelo menos no caso brasileiro, é

que a participação do público nos debates sobre essa regulamentação ainda é

fraca ou inexistente.

Para atendermos esses objetivos, o trabalho segue o paradigma

horizontal-interacionista da Comunicação, sob o modelo da Virtualização.

Decidimos por este modelo por ele dar conta dos temas que são base para a

discussão principal sobre liberdade de expressão. Dentro dessa temática,

trataremos sobre o próprio conceito de liberdade que existe no meio digital e a

questão da privacidade. Esses conceitos são permeados pela cibercultura e a

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17

relação do homem com o espaço virtual. O tema também exige outros autores

relacionados ao paradigma da pós-modernidade, pois estes também dão base

para a análise do problema proposto.

Dada à subjetividade do nosso objeto, realizaremos uma pesquisa

indutiva e qualitativa acerca da cobertura do caso SOPA e da Lei Azeredo, em

seus momentos determinados, a fim de obter conclusões mais gerais sobre o

tema da liberdade de expressão nos dias de hoje, no Brasil.

Faremos um estudo de caso comparando a cobertura do SOPA e da Lei

Azeredo pelos veículos Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo. O período a

ser observado compreende entre julho de 2011 e maio de 2012. Esse recorte

foi definido a fim de observarmos a disposição da imprensa em cobrir os dois

casos, que são similares no objeto, ou seja, a restrição da liberdade no meio

digital, mas que está presente em contextos nacionais distintos, num momento

próximo e que permite uma discussão mais aprofundada do conceito de

liberdade de expressão, junto ao público. Para observar cada cobertura,

utilizaremos o métodos de análise de discurso de Laurence Bardin (1977).

Será preciso, antes de tudo, definir os conceitos de espaço público – e o

novo conceito de privado – e o conceito de liberdade de expressão,

apresentado pelas redes digitais. Assim, poderemos definir o espaço público-

privado ou a esfera conversacional da rede digital, como coloca André Lemos,

e suas condições de existência. Nesse tocante, será necessário entrar no

mérito das discussões sobre hiperlocalidade e globalização para delinear a

existência de território, mesmo quando há a possibilidade global de

comunicação (LIPOVETSKY, G; SERROY, J. 2011).

Utilizaremos nesse ponto o método histórico-evolutivo para cumprir com

estes objetivos secundários, de definição de termos como espaço-público,

interesse público, interesse do público, privacidade, esfera conversacional etc.

Esses argumentos acima devem abrir caminho para o tema,

propriamente dito, da liberdade de expressão na rede, que será o fio condutor

na análise dos veículos de comunicação.

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18

2. CONCEITOS BÁSICOS

2.1 Liberdade de expressão

A Organização das Nações Unidas (ONU), em 1948, redigiu um

documento no qual oficializou alguns diretos, ditos como universais, que seriam

as bases da democracia moderna. Ideais como liberdade, igualdade e

fraternidade, que remontam à época da Revolução Francesa (séc. XVIII), foram

acordados entre as nações a fim de impedir – ou pelo menos coagir – grandes

barbáries, como foram as grandes Guerras Mundiais. A Declaração Universal

dos Direitos do Homem é, assim, um documento que, dentre outros pontos,

definirá a liberdade de expressão como um direito do indivíduo moderno pelo

Art. 19 destacado, abaixo:

Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o

que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de

procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras,

informações e ideias por qualquer meio de expressão

(ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS - ONU. Declaração

Universal dos Direitos do Homem, 1948).

A Constituição brasileira, datada de 1988, também garante este direito

de liberdade de expressão, no Art. 5º, nos seguintes incisos destacados:

“IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o

anonimato”;

“IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística,

científica e de comunicação, independentemente de censura ou

licença”;

Esses conceitos generalistas e jurídicos são úteis para direcionar as

ações da população, perante os governos nacionais. Estas ações seriam tanto

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19

de boa conduta, para um indivíduo não invadir o direito de outro; quanto de

cobrança – como cidadãos – para que o Estado garanta e fiscalize esses

preceitos e, ele próprio, não incorra em métodos de censura ou de repressão

quando os indivíduos utilizarem-se desse direito.

Atualmente, a sociedade mudou. Ainda somos todos pertencentes à

uma unidade nacional, sob a regência de um Estado, com um tipo de governo.

No entanto, a globalização põe o indivíduo em contato com outras culturas e

isso modifica sua forma de enxergar o mundo. Para Stuart Hall (2006), a

unidade nacional não tem caráter apenas político, mas oferece ao indivíduo um

“sistema de representação cultural”. A nação é uma estrutura-chave para o

modo de vida moderno, segundo o autor, e é uma estrutura de poder cultural.

A globalização veio, no entanto, para invadir esses territórios pré-

estabelecidos. Como sinaliza Hall, a globalização é um conjunto de forças que

atravessam as fronteiras nacionais, “integrando e conectando comunidades e

organizações em novas combinações de espaço e tempo, tornando o mundo,

em realidade e experiência, mais interconectado” (HALL, S. 2006, p. 67). Existe

aqui um “afrouxamento” da identificação cultural fortalecida pela nação. Quanto

mais global, mais as identidades desprendem-se da tradição cultural da nação

e tornam-se fluidas.

“Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de

estilos, lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da

mídia e pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as

identidades tornam-se desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares,

histórias e tradições específicos e parecem ‘flutuar livremente’”. (Ibid. p. 75).

Para os franceses Lipovetsky e Serroy (2011), o indivíduo moderno é

livre e igual perante outros; e isto é um fundamento da ordem social e política.

Nas palavras dos autores, “com os modernos, consagram-se os princípios da

liberdade individual e da igualdade de todos perante a lei: o indivíduo se afirma

como o referencial último da ordem democrática” (LIPOVETSKY, G; SERROY,

J. 2011, p. 47). Como em Hall, os autores veem a globalização como um fator

de mudança, não só na identidade do indivíduo, mas em sua individualidade. É

dito que o tempo contemporâneo proporciona uma segunda “revolução” da

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20

individualidade. O mercado global, as tendências comerciais voltadas ao bem-

estar do indivíduo e o contato com grupos que o fazem expor suas

características mais narcisistas resultaram num chamado hiperindividualismo1.

Este hiperindividualismo é acompanhado por uma desorientação política.

Os grupos não se sentem mais representados pelos partidos, como na

sociedade moderna. Dentre os fatores que contribuem para isso está a

bancarrota das ideologias totalizantes. Por mais que o indivíduo tenha

liberdade de escolher seus representantes, nas democracias ocidentais, muitos

concordam com uma parte – ou em nada – dos discursos dos grupos políticos.

Numa completude à Hall, Lipovetsky e Serroy vão dizer que sem ancoragem

em grandes ideologias, as pessoas buscam identificação com comunidades

particulares, capazes de criar novamente o sentimento de coletividade que a

sociedade (ou a nação), não a proporciona mais. Aqui temos uma “explosão de

identidades que engendra um processo de balcanização social feita de uma

multiplicidade de minorias e de grupos que se ignoram ou são hostis uns aos

outros” (Ibid. p. 52).

Um dos agentes globalizantes é o tecnológico. As tecnologias de

comunicação digitais, como a internet e as redes sociais que provêm dela, são

novos espaços nos quais existem diferentes visões sobre conceitos que, antes,

eram ditos como universais, porém, adaptados cada um à necessidade de uma

nação. Este é o caso, por exemplo, da liberdade de expressão. São

comunidades e tribos, cuja identidade fragmentada demonstrará diferentes

visões sobre o mesmo conceito, em diferentes espaços ou grupos.

Enquanto Stuart Hall define a Pós-modernidade de forma abrangente,

tangenciando apenas o meio digital e dizendo que o indivíduo prefere estar em

comunidades e tribos, mas sem defini-las separadamente, o sociólogo Manuel

Castells será um dos primeiros a ir a fundo para caracterizar os grupos que

formam a “cultura da internet”, especificamente.

Primeiramente, Castells define a cultura como o conjunto de

comportamentos de determinado grupo de indivíduos e afirma: “A cultura da

1 Cf. Gilles Lipovetsky, L’ère du vide, Gallimard, 1983 e Les temps hypermodernes, Grasset,

2004.

Page 21: Liberdade de expressão no contexto digital, por Gustavo M. Moreno

21

internet é a cultura dos criadores da internet” (Castells, 2003, p. 34). Dessa

forma, ele divide didaticamente os vários atores do ciberespaço e os grupos

nos quais eles se enquadram. Para ele, a rede digital possui quatro culturas,

representando quatro grupos distintos de usuários desse meio. São elas: a

cultura tecnomeritocrática, a cultura hacker, a cultura comunitária virtual e a

cultura empresarial2. “Juntas, elas contribuem para uma ideologia da liberdade

que é amplamente disseminada no mundo da internet” (Ibid., 2003, p. 34),

explica o sociólogo.

Essas quatro culturas se relacionam dentro da rede digital global e

completam-se entre si. Dentre os ideais que definem esta cultura está a

liberdade. Das quatro subdivisões citadas, podemos dizer que as mais

vanguardistas são as culturas tecnomeritocrática e a hacker. Isso porque, à

época em que a internet começou a ser pensada, as únicas pessoas que

tinham contato com esse tipo de tecnologia pertenciam ao exército ou às

universidades. Os usuários dos primórdios da internet de fato precisavam

entender de programação em um nível muito complexo, por isso a definição

tecnomeritocrática, dada por Castells, que sugere uma cultura na qual há uma

hierarquia implícita pelo conhecimento técnico de cada indivíduo: quem domina

a técnica é mais respeitado entre os seus pares.

A cultura hacker, por sua vez, veio logo em seguida, representando,

entre outros fatores, uma troca de geração. Uma geração jovem com

representantes não necessariamente ilustrados pela Academia, mas ávidos

pela inovação tecnológica e pela liberdade que a rede proporciona, de troca e

de compartilhamento. Esses jovens que compõem a cultura hacker admiram

os criadores da internet como ídolos e almejam conhecer a técnica tão bem

quanto eles, ou melhor – para diversos fins.

O sociólogo continua dizendo que a cultura hacker emergiu das redes de

programadores de computador, que interagiam online em prol de projetos de

programação criativa. “A melhor maneira de compreender os valores

específicos e a organização social da cultura hacker é considerar o processo

2 Cf. CASTELLS, M. A Galáxia da Internet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

Page 22: Liberdade de expressão no contexto digital, por Gustavo M. Moreno

22

de desenvolvimento do movimento da fonte aberta como uma extensão do

movimento original do software gratuito” (Ibid., p. 38), explica.

Desse modo, desde o início, os hackers defendem o livre

compartilhamento de informação, criação colaborativa e softwares de código

aberto. Esse sentido de liberdade irrestrita, possibilitado pela inovação técnica,

tornou-se a bandeira que rege as ações da cultura hacker no meio digital, das

ações mais pacíficas e catequizantes às mais radicais e, em alguns casos,

criminosas.

O cenário no qual a internet foi desenvolvida, com representantes do

exército, governo e, principalmente, institutos de pesquisa e ensino, pode ser

considerado decisivo para termos a liberdade da rede da forma como ela é

hoje. Como ressalta o sociólogo, essa tecnologia não nasceu no mundo dos

negócios, onde a exclusividade intelectual e a diretriz comercial são o foco.

As bases na cultura tecnomeritocrática, de pensadores, acadêmicos e

outros desse meio, possibilitou a ideia do livre compartilhamento e troca de

informações. A internet foi desenvolvida em “ambiente seguro”, com recursos

do governo e sem barreiras para o pensamento e a inovação.

Com a popularização da rede global, vieram outros usuários,

interessados em suas possibilidades, agora, não necessariamente por conta da

técnica, mas pela sociabilidade. Pessoas com diferentes níveis de

conhecimento sobre o código começaram a formar comunidades virtuais.

“Assim, enquanto a cultura hacker forneceu os fundamentos tecnológicos da

Internet, a cultura comunitária moldou suas formas sociais, processos e usos”

(Ibid. p. 47).

Também atentos a essa expansão da rede digital, os empresários

decidiram investir em novas tecnologias, visando exclusivamente o lucro. Essa

ideia, para os hackers até hoje é inconcebível, pois vai contra o conceito do

software livre. No entanto, Castells ressalta que a entrada das empresas foi um

ponto importante na consolidação da internet como um novo meio, pois são

elas quem darão à rede o sentido comercial, voltado para grande parte da

população de não iniciados. “A internet foi o meio indispensável e a força

Page 23: Liberdade de expressão no contexto digital, por Gustavo M. Moreno

23

propulsora na formação da nova economia, erigida em torno de normas e

processos novos de produção, administração e cálculo econômico”

(CASTELLS, 2003, p. 49).

Para Sergio Amadeu, que estuda a cibercultura e fala sobre a ação dos

hackers em Ciberativismo, cultura hacker e o individualismo colaborativo, há

uma discussão bem definida entre aqueles que defendem o open source,

código-aberto, e o atual mercado de softwares. O debate sobre propriedade

intelectual é constante e sua conclusão indefinida. Enquanto empresas

crescem nessa nova economia com base na inovação e desenvolvimento de

novos produtos para o meio digital, desenvolvedores dizem que esse modelo

de propriedade intelectual fechado, gera softwares com qualidade baixa. Como

pontua Amadeu:

Em geral, na matriz do pensamento hacker está enraizada a ideia de

que as informações, inclusive o conhecimento, não devem ser

propriedade de ninguém, e mesmo se forem, a cópia de informações

não agride ninguém dada a natureza intangível dos dados.

(AMADEU, S. 2010, p. 34)

Amadeu levanta ainda um ponto importante que é a relação dos hackers

com a informação presente no meio digital. Como ressaltado por Castells, os

hackers “idolatram” o código e as linguagens de programação. Para se

entender e se aprofundar neste código, no entanto, é necessário tempo de

dedicação e estudo. Amadeu dirá que, enquanto essa comunidade incentiva a

colaboração e o compartilhamento dos dados, o fim desse conceito não é outro

senão a constituição de um arcabouço de conhecimento individual. Assim, “o

conhecimento deve ser livre para que os outros possam contribuir enquanto

ganham mais autonomia no processo de aquisição de conhecimento para si”

(AMADEU, S. 2010, p. 38).

Outro pensador importante que defende a liberdade na rede é Lawrence

Lessig. Ele observa mais sobre o lado das empresas ao descrever o

surgimento da ‘internet das coisas’, como o acesso à rede foi parar na mão das

Page 24: Liberdade de expressão no contexto digital, por Gustavo M. Moreno

24

companhias de Telecomunicação e suas decisões em “melhorar a conexão”,

contra qual a melhor saída para ampliar os lucros. De outro lado, ele também

mostra como empresas formaram seus modelos de negócio baseados na web

(Amazon, AOL, Yahoo etc.). É dito que essas empresas tiveram êxito,

principalmente, porque criaram novos mercados a partir da inovação

tecnológica. Nas palavras do autor, “the web is an open architecture; it begs for

people to discover new ways to combine the resources it makes available. In

each of these case [de empresas inovadoras na web], someone did discover a

new way of combining resources. And this discovery then produced a new kind

of market” (LESSIG, L. 2001, p. 169).

Para as empresas do mundo offline, competir com esses novos

mercados é difícil, pois eles apresentam novas soluções e mais eficiência em

alguns pontos como abrangência, logística etc. Lessig ressalta que esse é um

dos motivos para que as empresas mais tradicionais queiram controlar os

sistemas interconectados. O modelo de negócio delas sempre foi mais fechado

e caminhava a passos mais lentos do que a inovação propiciada pela internet.

Assim, é mais fácil para as empresas mais tradicionais quererem controlar o

que circula na web, do que modificar internamente seus processos a fim de

competir jogando as regras desse novo mercado. Ele defende a ideia de

inovação e sugere que, enquanto o sistema tradicional tente restabelecer a

ordem antiga, os inovadores resistam às tentativas de controle na Web:

“because the greatest innovation will come from those outside these old

institutions” (Ibid. p.176).

A inovação tecnológica que permeia o ciberespaço não auxilia somente

a criação de novos mercados. Sobre liberdade de expressão, Lessig dirá que

hoje a sociedade possui artifícios que protegem e garantem esse conceito. No

mundo físico temos as leis que fazem esse papel “protetor” da livre expressão

individual de ideias e instituições que garantem que esse direito seja cumprido

– em território nacional.

Quando levamos o mesmo conceito para a web, vemos que a lei já não

dá conta de proteger por completo o direito da liberdade de expressão. Isso

porque quando uma opinião é emitida no meio digital ela ganha abrangência

extranacional e, portanto, não se encaixa em leis mais específicas. Aqui, Lessig

Page 25: Liberdade de expressão no contexto digital, por Gustavo M. Moreno

25

aponta a arquitetura (o código) como a grande e real protetora da liberdade de

expressão:

Relative anonymity, decentralized distribution, multiple points of

access, no necessary tie to geography, no simple system to identify

content, tools of encryption – all these features and consequences of

the Internet protocol make it difficult to control speech in cyberspace

(LESSIG L. 2006, p. 236).

É ressaltado também que a internet vem sendo modificada, de um

terreno totalmente livre, para um local controlado. O que devemos entender é

quais são os tipos de liberdade que a internet nos traz hoje para podermos

escolher quais deles serão justos manterem-se preservados.

A liberdade de imprensa é um dos pontos em discussão. A arquitetura,

aqui, também contribui para que esse conceito se modifique em alguns pontos.

Temos esta arquitetura aberta com possibilidades de expressão nunca vistas

antes. Isso, no entanto, gera um enorme fluxo de conteúdo amador, criado por

usuários comuns. O termo amador não é usado aqui e nem em outros autores

que observam essa pulverização de vozes na internet como pejorativo.

Amador, neste caso, classifica o conteúdo que é produzido por usuários que

escrevem por vontade própria, movidos pela paixão e não pelo dinheiro

(trabalho).

No Jornalismo, a credibilidade é uma das máximas a serem alcançadas

para que um veículo de comunicação seja respeitado. Lessig pontua a

credibilidade como: “it is not a quality that is legislated or coded. If comes from

institutions of trust that helps the reader separate reliable from unreliable

sources” (Ibid. p. 242).

Rogério Christofoletti contribui para essa visão sobre a “amadorização”

do conteúdo. Segundo ele, a web passa por um processo de “credibilização do

seu dispositivo” (CHRISTOFOLETTI, R. 2008, p. 34), a fim de constituir bases

consistentes. Essa necessidade de amadurecer a credibilidade da rede, ou dos

Page 26: Liberdade de expressão no contexto digital, por Gustavo M. Moreno

26

atores que divulgam informações relevantes na rede, provém da enorme

liberdade que este meio de comunicação proporciona.

Para Clay Shirky, as tecnologias digitais subtraem os custos de

reprodução e distribuição de conteúdo e torna ilimitado o número de veículos.

Essa redução no custo da publicação gera a amadorização em massa,

principalmente, com os blogs, retirando do profissional a exclusividade do ato

de publicar. Como consequência dessas mudanças, o status da notícia torna-

se outro, como explica o autor, “até recentemente, notícia significava duas

coisas diferentes: acontecimentos dignos de nota e acontecimentos cobertos

pela imprensa” (SHIRKY C. 2012, p. 58).

A notícia antes era definida pela mídia. Hoje, vemos a possibilidade de

cobertura de um assunto pela imprensa porque este assunto “penetrou a

consciência pública por outros meios” (Ibid. p.58), seja por uma discussão

iniciada num blog ou por um tema que “viralizou” na web e passou a ser

comentado por grande número de usuários. Shirky destaca que a possibilidade

ilimitada de publicar e a liberdade de discurso nesse meio digital incentivam até

mesmo a reestruturação da classe dos jornalistas. O avanço tecnológico vem

alterando a publicação de notícias e traz indícios, segundo o autor, de

paridades com a evolução da técnica da escrita: a qual no início era de uso

exclusivo de uma classe (escribas) e foi se popularizando aos poucos até ser

de domínio geral.

O autor Henry Jenkins escreve sobre a convergência dos meios de

comunicação nessa era digital e sobre a influência dos processos digitais na

formação de uma nova compreensão sobre o entretenimento. Nesse cenário,

ele analisa principalmente o usuário que consume e também produz

informação. Sobre a internet e a imprensa, ele afirma que “a maior

mudança talvez seja a substituição do consumo individualizado e personalizado

pelo consumo como prática interligada em rede” (JENKINS, H. 2009, p. 327).

Para essa conclusão ele se apropria de alguns conceitos encontrados também

em Levy sobre inteligência coletiva e produção colaborativa.

A estrutura que o ambiente digital proporciona, calcada na liberdade de

expressão faz da amadorização uma experiência coletiva e dá aos usuários

Page 27: Liberdade de expressão no contexto digital, por Gustavo M. Moreno

27

poderes que eles não tinham em outros meios. Um deles é subverter a agenda

de pautas da imprensa tradicional. No entanto, ainda são poucos os conteúdos

debatidos que podem ser considerados de interesse público e com teor político.

A cultura da liberdade na internet permeia várias camadas. Assim como

existe o movimento do software livre, do conteúdo compartilhado, não se

discute muito qual o teor desse conteúdo, pois calcular esse volume de

informação é impensável. Recentemente, existe uma preocupação com a

liberdade em geral do indivíduo no meio digital, porém as bandeiras que

estudaremos aqui que pretendem colocar alguma regra para essa liberdade

generaliza os casos e prioriza leis antigas que defendem grandes empresas

alicerçadas no mercado offline.

Lessig diz que existe uma disparidade entre a discussão da Lei de

Copyright no mundo físico e no digital. Enquanto na vida real existem meios de

se fazer uma cópia de determinado material publicado (CD, livro etc.) sem

infringir a lei, na internet qualquer ação pode ser levantada contra a cópia.

“There’s no way to use a work in digital environment without making a copy.

Thus, every single use of creative work in a digital environment triggers, in

theory at least, copyright” (LESSIG L. 2006, p. 268). O código (a linguagem)

que define a estrutura da internet afeta o “balanço” entre direitos individuais e

coletivos, no caso da liberdade de expressão. Porém, do outro lado, também

há a apropriação de instituições sobre as tecnologias para outro ponto: a

vigilância.

2.2 Espaço público, privacidade e a nova esfera conversacional

A rede digital tornou-se global e todos os atores sociais que participam

da estrutura capitalista, na qual nasceu essa tecnologia, de uma forma ou de

outra passaram a também compor as vozes importantes da web. Como vimos

anteriormente, a existência de múltiplas identidades ou identidades

fragmentadas (HALL, S. 2006) fazem com que esses atores participem da rede

digital de diferentes formas, com diferentes posturas. Usuários são cidadãos,

Page 28: Liberdade de expressão no contexto digital, por Gustavo M. Moreno

28

anarquistas, extremistas ou conservadores, dependendo das situações as

quais eles são expostos na rede. O que não foi discutido até agora é a própria

exposição, que não é bem definida quando esses atores decidem comunicar-se

uns com os outros neste ciberespaço.

Derrik de Kerckhove (1997) escreve um capítulo sobre a ascensão da

Internet e a aldeia global no qual ele traz à tona a discussão das esferas

pública e privada nesse meio digital. Para chegar ao conceito de público, ele

remete aos romanos ao termo res publica, a coisa pública, dizendo que este foi

um dos primeiros conceitos para definir o “domínio público”. Em suma, esta era

uma ideia dos romanos para organizar os indivíduos como iguais dentro da

sociedade. Por simples oposição, a existência desse domínio público

pressupunha um domínio privado, como salienta o autor, “é só dentro dos

limites do que é público que se pode reivindicar a privacidade. A distinção é

muito clara. E a democracia baseia-se nessa distinção” (KERCKHOVE, D.

1997, p. 241).

O conceito de esfera pública, como conhecemos hoje, foi cunhado no

século XVIII, acompanhando o surgimento e ascensão da burguesia. O

sociólogo Jürgen Habermas é quem vai dissecar este conceito na sociedade

burguesa. Para entendermos melhor essa ideia, Ana Lucia C. R. Novelli (2001)

escreve um artigo no qual sintetiza as ideias do autor. Desse modo, ela

destaca a esfera pública como “a instância capaz de fazer a mediação entre o

público, formado por pessoas privadas atuando politicamente e o Estado”. Era

no âmbito da esfera pública que as ideias e opiniões em voga circulavam e

repercutiam na sociedade; e essa tarefa de mediação cabia aos veículos de

comunicação de massa, na época, principalmente ao jornal.

O cerne da questão para Habermas, no entanto, é a mudança estrutural

da esfera pública, no caso, a invasão dos interesses privados da burguesia

neste espaço de debate político. A tentativa burguesa de manter-se no poder

por mais tempo foi um dos grandes motivos que fez a estrutura da esfera

pública esvaziar-se de sentido. Logo, os meios de comunicação serão para a

classe burguesa os locais por onde os seus interesses privados vão se infiltrar.

Page 29: Liberdade de expressão no contexto digital, por Gustavo M. Moreno

29

Para André Lemos (2009), a mídia massiva criou, no final do século XIX,

o público e a opinião pública, pontos fundamentais para a constituição das

democracias modernas. No entanto, a informação que a “esfera midiática”,

como ele chama, fornece ao público é editada, homogênea e misturada ao

entretenimento. E esses fatores contribuíram para enfraquecer o debate

político, ou politizado.

A autora Marilena Chaui (2006) vai mais fundo e fala sobre a destruição

da opinião pública, mostrando que o jornalismo presente nos meios de

comunicação massivos está preso ao entretenimento. Os assuntos debatidos

nesses meios de grande difusão não se preocupam com questões políticas ou,

pelo menos, não em primeiro lugar. “Os assuntos se equivalem, todos são

questão de gosto ou preferência, todos se reduzem à igual banalidade do

‘gosto’ ‘ou não gosto’, do ‘achei ótimo’ ou ‘achei horrível’” (CHAUI, M. 2006, p.

7).

O tratamento que os meios massivos de comunicação dão para – o que

eles definem como – as notícias, até hoje, é o problema principal sobre o qual

Habermas alertou. São assuntos privados, ou com teor publicitário, que

preenchem esses meios e deturpam o conceito de esfera pública, citado

anteriormente, como palco para discussão de assuntos políticos, de interesse

comum. Novelli destaca, por exemplo, que os meios de massa ampliaram o

alcance da esfera pública, “mas a lógica privada que regula estes meios fez

com que eles se aproximassem cada vez mais da esfera privada, da troca de

intercâmbio de mercadorias” (NOVELLI, A. C. R. 2001, p. 201).

Aqui, André Lemos também dá sua contribuição sobre a invasão dos

interesses burgueses na agenda que deveria ser pública, dizendo que, “mesmo

nos informando mais sobre o mundo, a sociedade midiática massiva e do

espetáculo nos deixa sem ação, ou melhor, só nos oferece uma ação: consumir

e constatar” (LEMOS A. 2009, p. 2).

O cenário que vinha se formando na era moderna, porém, vai se alterar

drasticamente na pós-modernidade, com a apresentação de um novo meio

tecnológico com linguagem global e que agrega outros meios dentro de si: a

internet. Kerckhove destaca alguns fatores , como a convergência dos meios e

Page 30: Liberdade de expressão no contexto digital, por Gustavo M. Moreno

30

a globalização, que criaram as bases para os novos conceitos proporcionados

pela comunicação via internet, entre eles, o da instantaneidade e da

transparência.

O autor destaca também o controle da realidade sendo modificado com

a chegada do meio digital. Na Modernidade3, entendíamos um tipo de realidade

que era trazida pelos meios de comunicação de massa, cada um com seu

alcance. Nós sabíamos da existência do globo, tínhamos uma ideia de

totalidade, mas não interagíamos com os outros povos, culturas e espaços que

nos eram apresentados pelo broadcast. Havia o distanciamento entre os povos,

como se fossem “aldeias” isoladas no globo, diz. A internet veio para alterar

essa realidade, tirando desses meios o “controle” sobre a realidade. Dessa

forma, “com o advento da Internet temos o primeiro meio que é oral e escrito,

privado e público, individual e coletivo ao mesmo tempo” (KERCKHOVE, D.

1997, p. 249).

A mente coletiva, ou inteligência coletiva, que pode ser gerada a partir

desse meio é o grande ganho, segundo ele e outros autores. Para Kerckhove,

os negócios ainda são o centro das atenções desse meio; na política, por sua

vez, ainda é cedo para saber se haverá a possibilidade de criar um espaço

político que seja global.

Aqui não podemos levar em conta movimentos políticos que deram

resultado, como a Primavera Árabe, no fim de 2011. Esses exemplos mostram

que as tecnologias digitais são capazes, quando bem utilizadas, de produzir

mudanças efetivas na estrutura de poder, porém, ainda em nível nacional. Em

outras palavras, mesmo com o auxílio global, com usuários ao redor do mundo

militando a favor, o ganho desses levantes é local, em benefício daqueles mais

3 O conceito de Modernidade está ligado ao Capitalismo Industrial, após o século XVIII. Segundo Stuart Hall (2006), as sociedades modernas são caracterizadas pelo movimento e pela agilidade de produção; do avanço rápido e constante do modo de vida capitalista. No século XX, porém, o crescimento desse sistema industrial criou as bases para grandes mudanças que vieram posteriormente, como a globalização. Hall dirá que a globalização foi o grande fator para que o indivíduo inserido nesse sistema sólido começa-se a se fragmentar. Do mesmo modo, Zygmunt Bauman (2001) vai apresentar as características da Pós-Modernidade ou, como ele mesmo define, Modernidade Líquida, como um período em que as estruturas rígidas do Capitalismo Industrial começaram a ser “infiltradas” por novas ideias, apontando para um novo tipo de sociedade. A internet, no caso, é um dos pontos que irá modificar a posição dos atores da Modernidade para a Pós-Modernidade.

Page 31: Liberdade de expressão no contexto digital, por Gustavo M. Moreno

31

afetados pelo sistema. É ainda uma movimentação tardia, em prol da

emancipação democrática nacional, com caráter moderno e não pós-moderno.

No artigo Nova esfera conversacional, Lemos também descreve o ganho

político com a internet e a possibilidade de criação de uma consciência

coletiva. Para o autor, o meio digital fornece as condições para o resgate da

esfera pública. Ele denomina as mídias digitais como pós-massivas e,

realmente, de comunicação. Essa característica comunicacional difere os

meios pós-massivos da mídia massiva, ou mass media, cuja função é de

informar, de um para muitos e sem diálogo. Assim, “as tecnologias de

comunicação e da interação digitais, e as redes que lhe dão vida e suporte,

provocam e potencializam a conversação e reconduzem a comunicação para

uma dinâmica na qual indivíduos e instituições podem agir de forma

descentralizada, colaborativa e participativa” (LEMOS A. 2009, p. 3).

Ao mesmo tempo, a qualidade ubíqua da rede torna nossa sociedade

mais “vigilante” e a vida privada é ponto de discussão novamente. As redes

digitais mostram uma inversão de papéis na questão da vigilância, que era um

serviço do estado, quando os indivíduos se encontravam na esfera pública,

espaços coletivos.

As tecnologias digitais possibilitam o controle maior sobre os indivíduos,

pelos próprios indivíduos. Diferente do panóptico de Jeremy Bentham (2000),

em que existe a vigilância centralizada, de uma entidade acima do indivíduo, as

tecnologias contribuem para uma sensação constante de vigilância. Nossas

informações, nossas imagens e nossa vida cotidiana pode ser exposta a

qualquer momento por causa da ubiquidade da rede digital. Não há apenas um

vigilante, somos todos, ao mesmo tempo, vigilantes e vigiados. O código digital

faz deixamos rastros e, ao mesmo tempo, temos à mão ferramentas para

vasculhar e disseminar informações alheias.

Para ilustrar essa exposição, foi apresentado um caso, narrado por Clay

Shirky (2012) em seu livro. Em maio de 2006, uma moça perdeu seu celular

num taxi em Nova York. Além de buscar nos canais responsáveis, ela pediu

ajuda a um amigo, programador. Após dias sem resposta das autoridades

responsáveis, a moça comprou outro aparelho e pediu à sua companhia de

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32

telefone para transferir os dados do antigo aparelho para o novo. Para a

surpresa dela, haviam novos dados, salvos após a data da perda, que

revelavam a identidade de uma menina, em poder do aparelho antigo. Os dois

amigos tentaram contato com a suposta ladra e pediram o celular de volta.

Houve, no entanto, uma recusa e ameaças por parte da menina que estava

com o celular em mãos. Ao invés de revidarem, decidiram criar uma página na

web para expor a identidade de garota com o celular e cobrar as autoridades.

Em poucas horas, outras pessoas ofereceram informações sobre a ladra, como

o perfil da menina na rede social MySpace. Mesmo assim, o caso estava

parado nas instituições tradicionais.

Alguns dias depois, a história apareceu no Digg, um site de notícias

colaborativo. Não é exatamente uma rede social, mas ele possui um caráter de

rede por ser time-sensitive: as histórias mais recentes são exibidas com mais

destaque; histórias mais votadas permanecem no topo por mais tempo. Depois

de dez dias da exposição da história nessa rede e com a pressão dos fóruns

(três) criados pelo programador, a menina foi presa e o aparelho foi devolvido.

A mobilização participativa fez com que um celular dado como perdido

fosse, ao longo da história, tido como roubado. Mesmo sendo um bom exemplo

de “democracia participativa”, o caso revela como estamos sujeitos a deixar

informações espalhadas na rede digital. Nesse caso, a criação de um motivo

para envolver as pessoas, tornou um caso particular em problema público. Em

outras palavras, foi agregado ao problema um valor acima da preservação da

identidade da ladra, em prol da recuperação do aparelho e, ainda, formou-se

uma audiência interessada no desenrolar do problema até a sua solução.

A horizontalidade da rede cria brechas no sistema organizacional. Desse

modo, se uma empresa não atende as indagações de determinado grupo, por

exemplo, este pode organizar-se por conta própria, eliminando etapas no

processo. É o caso do crowdsourcing, quando indivíduos se reúnem para

efetuar uma tarefa que seria impossível (ou quase) com recursos individuais.

Geralmente o crowdsourcing é uma forma de arrecadar fundos para um

projeto, no entanto, é sempre em prol de um objetivo específico, que envolve

satisfação dos consumidores.

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33

O indivíduo pós-moderno é distinto, acompanhando seu tempo. A esfera

pública, ou da opinião pública, na Modernidade, apresenta um mundo

consumista ao indivíduo. E esse cenário limitado ao consumismo, à vida

privada e aos bens individuais vão refletir na forma como o indivíduo pós-

moderno verá o mundo. Apropriando Lipovetsky e Serroy (2012), existe o

superlativo desses sentimentos no mundo globalizado, como o

hiperindividualismo e o hiperconsumismo. Paradoxalmente, as relações com

esse mundo consumista não é necessariamente aprofundada. É claro que

existem mais incentivos para que tudo seja voltado ao bem-estar pessoal, no

entanto, a contemporaneidade apresenta condições para que esse indivíduo,

pelo menos, se interesse mais pela vida pública – res publica. A inquietação

que aflige o indivíduo pós-moderno (hipermoderno) não significa

necessariamente uma despolitização generalizada. Há, cada vez mais a

presença de um indivíduo ativo na sociedade, por conta dessas ferramentas

digitais. Nas palavras dos autores:

A ideia de um cidadão passivo e de um recolhimento crescente na

esfera privada não tem fundamento. O que se procura via internet é

uma espécie de democracia de expressão em que os cidadãos

podem intervir diretamente, uma democracia de vigilância dos

poderes pela sociedade civil, e não mais monopolizada pelos

jornalistas, pelas mídias e pelos partidos (LIPOVETSKY, G;

SERROY, J. 2011 p. 146).

No sistema em que vivemos hoje o consumo de informação muda. E,

como salienta Lemos, as mídias pós-massivas são abertas, independentes e

possibilitam a conversação. “A ação aberta e livre é a base para ação política”

(LEMOS A. 2009, p. 4). O desenvolvimento das redes, então, é fundamental

para o fortalecimento do conceito social e da criação de uma audiência que vai

se identificar com seus pares. Ele diz ainda que a conversação por si só não

tem caráter de engajamento, ao contrário, demonstra-se muito pouco teor

político nela, mas é necessária para ampliar a circulação da opinião pública e

da ação política.

Page 34: Liberdade de expressão no contexto digital, por Gustavo M. Moreno

34

Lemos diz que os mass media estimularam a conversação e a opinião

pública “mas de forma indireta, midiatizada e ligada a interesses de grandes

corporações” (LEMOS A. 2009, p. 16). Hoje, as mídias pós-massivas tornam a

conversação mais livre, pois possibilitam mais interação do que os grandes

grupos de mídia. Lemos completa citando o pensador Gabriel Tarde, que

afirma que a conversação surge após um longo período de “aguçamento dos

espíritos” (TARDE, G. apud LEMOS, A. 2009, p. 17), para que a conversação

torne-se base de um reforço da opinião pública e da política.

A análise que se segue mostra a cobertura de dois veículos de

comunicação da capital paulista de relevância nacional, a Folha e o Estado de

S. Paulo. Buscamos observar o conteúdo publicado em seus respectivos sites

sobre dois assuntos que abordam problemas de liberdade no meio digital para,

ao cabo, tentarmos definir de que lado dessa discussão cada veículo se

encontra ou se este prefere não opinar sobre tal.

Em meio a essa observação, notaremos as possibilidades da imprensa

de ampliar e aprofundar a discussão sobre liberdade e liberdade de expressão

no meio digital e se ela aproveitou-se desses recursos. Com isso, será possível

avaliar o tratamento dado pela mídia para casos tão atuais e que dividem

atenções dos principais atores que se encontram na internet.

Page 35: Liberdade de expressão no contexto digital, por Gustavo M. Moreno

35

3. APRESENTANDO OS CASOS

Antes de analisarmos o conteúdo dos meios de comunicação

selecionados para este trabalho, temos que apresentar um cenário geral e os

objetos nos quais os veículos selecionados se pautaram. Nesse capítulo

contaremos brevemente um histórico dos casos SOPA e Lei Azeredo, ambos,

relacionados à discussão sobre liberdade na rede digital.

Os dois casos tratam de projetos de lei criados para atualizar as

legislações de dois países, os EUA (SOPA) e o Brasil (Lei Azeredo), no

entanto, com repercussões distintas. Enquanto o primeiro desencadeou

revoltas ao redor do mundo por seu caráter extranacional, o segundo restringiu-

se não só ao território brasileiro, como também apenas a grupos de discussão

isolados (Congresso Nacional, fóruns especializados, internet etc.). O quadro

abaixo demonstra põe em evidência alguns pontos de ambos os casos:

Tabela 1 - Diferenças entre os casos SOPA e Lei Azeredo

SOPA Lei Azeredo

Abrangência Internacional Nacional

Caráter Ofensivo / Invasivo Defensivo / de

embasamento

Tempo de existência

do caso

De novembro de 2011 a

janeiro de 2012

(3 meses)

De maio de 1999 a maio

de 2012

(13 anos)

Espaço na mídia* 120 matérias 35 matérias

*Período entre julho de 2011 e maio de 2012

Page 36: Liberdade de expressão no contexto digital, por Gustavo M. Moreno

36

É válido destacar aqui as suas diferenças. O Stop Online Piracy Act

(SOPA) tem um caráter ofensivo, enquanto a Lei Azeredo apresenta-se mais

como defensiva. Explico. A ideia do SOPA, como veremos a seguir,

ultrapassava barreiras nacionais e infiltrava-se em todo o sistema digital. Uma

denúncia era o gatilho para gerar a ação de censura do material compartilhado,

muitas vezes, sem intenção criminosa. A retórica, no entanto, era defender a

propriedade intelectual norte-americana em domínios estrangeiros.

A Lei Azeredo, por sua vez, buscava caracterizar juridicamente os

crimes cibernéticos e dar-lhes as devidas penas. O projeto insere-se no Código

Penal brasileiro como uma atualização necessária para julgamentos de ações

criminosas de hackers e crackers. Não promove nenhuma ação imediata, mas

dá base para que criminosos sejam julgados devidamente.

O problema dos dois projetos de lei: a abrangência. Em ambos os casos,

as revoltas se deram por conta da possibilidade de punir pessoas inocentes

pelas mesmas ações consideradas criminosas. A explicação rasa dos termos

que definem o problema não é aplicada de forma universal e gera essas

discussões. O objeto de nossa análise, como foi citado, não será aprofundar

essa discussão jurídica, mas entender qual o tratamento da imprensa sobre

ambos os casos e a sua contribuição para essa discussão sobre liberdade no

meio digital. O período o qual escolhemos analisar enquadra o último debate e

aprovação da Lei Azeredo e o início e arquivamento do SOPA, como veremos

mais detalhadamente, caso a caso, a seguir.

3.1. Stop Online Piracy Act (SOPA)

No início de 2012, um projeto de lei criado pelo senador republicano

Lamar Smith foi colocado em votação no congresso norte-americano, o Stop

Online Piracy Act (SOPA). A identificação do projeto, apresentado pela primeira

vez em 26 de outubro de 2011, era a seguinte: “Para promover a prosperidade,

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37

criatividade, empreendedorismo e inovação combatendo o roubo de

propriedade dos EUA, e para outros fins”4, em tradução livre.

O texto sugeria a possibilidade de desligamento de qualquer site ou

conteúdo digital que, por alguma circunstância, tenha infringido a lei de direitos

autorais norte-americana (Copyright). Objetivando principalmente domínios

hospedados fora dos Estados Unidos, essa resolução daria a qualquer artista

ou empresa, donos da propriedade intelectual, poderes irrestritos contra

possíveis distribuidores piratas no meio online. O julgamento do que é ou não

conteúdo pirata ficaria nas mãos do denunciante e a ação de desativação seria

imediata, sem envolver a instância jurídica.

As empresas mais favorecidas por este projeto seriam os grandes

conglomerados de entretenimento, as gravadoras, as distribuidoras

cinematográficas etc.; àquelas que, desde que a internet começou a se

popularizar, tiveram problemas para conter a reprodução irrestrita – e até

criminosa (pirataria) – do seu material.

Por consequência, o conteúdo compartilhado por usuários em todo o

mundo e disponibilizados por ferramentas de empresas do ramo digital teriam

uma severa fiscalização. Em última instância, haveria um controle maior do

Estado norte-americano sobre o que é circulado na rede digital em favor

desses grandes conglomerados.

A lei do Copyright protege as obras (fonográficas, de arte, audiovisuais

etc.), o direito de reprodução e da propriedade intelectual. Há ainda aqueles

que defendem que o Copyright protege os artistas, que seriam prejudicados

com o mercado paralelo de cópias piratas de suas obras. No Brasil, a lei nº

9.610, de 19 de fevereiro de 1998, sobre Direito Autoral, é a nossa equivalência

à lei norte-americana.

O problema do SOPA está na instantaneidade da resolução, quando da

denúncia. Como citado, não seria necessário julgamento prévio para que ações

de bloqueio fossem decretadas e cumpridas. Sendo assim, uma música de

4 Original: “To promote prosperity, creativity, entrepreneurship, and innovation by combating the theft of U.S. property, and for other purposes”.

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38

fundo num vídeo amador postado no YouTube poderia ser caracterizada como

uma violação de direitos, pois o artista provavelmente não cedeu o direito de

reprodução de sua obra. O autor do vídeo teria o seu conteúdo retirado o

quanto antes e ainda pagaria uma multa ao artista/empresa prejudicada. Esse

tipo de briga pela propriedade intelectual não é de hoje, mas cremos que o

SOPA potencializou a possibilidade de censura, ao passo que não há

processos judiciais envolvidos antes da censura do conteúdo.

Até meados da década de 1990, a indústria do entretenimento não havia

sofrido um impacto tão grande até o caso Napster, entre 2000 e 2001, quando

houve a popularização das redes P2P5, de compartilhamento de dados e

arquivos, que resultou numa crise na indústria fonográfica norte-americana.

Esta foi uma das grandes brigas judiciais que colocaram em evidência

organizações como a Recording Industry Association of America (RIAA) contra

pequenos proprietários de websites e de aplicativos que permitiam esse tipo de

troca entre usuários. A questão é que a lei de Copyright é muito abrangente e

dá bastante liberdade ao artista e à gravadora poderem reivindicar seus

direitos, caso sintam-se ofendidos. Isto traz a necessidade de análise para

cada caso denunciado.

O caso SOPA trouxe novamente à tona essa discussão sobre os direitos

autorais, de forma mais profunda, pois impõe uma regulamentação que afeta a

internet como um todo. Com a argumentação de que o conteúdo digital pode

alcançar milhões de usuários, em poucos minutos, o projeto determina esta

ação “preventiva” imediata.

Para as empresas que trabalham no meio online como o próprio

YouTube, o Google, a Wikipedia e o Facebook, ou seja, grandes empresas que

se baseiam no compartilhamento entre usuários como modelo de negócio, o

SOPA significava o fim da sua liberdade e provavelmente de sua captação

financeira: sem conteúdo sendo compartilhado, não há usuários; logo, não há

poder de barganha e atenção disputada pela publicidade. Em extremo, essa

resolução poderia levar ao fechamento de algumas dessas empresas,

dependendo de quão radical fosse o impacto da aprovação.

5 Peer-to-peer.

Page 39: Liberdade de expressão no contexto digital, por Gustavo M. Moreno

39

Dessa forma, houve do lado dessas empresas grandes movimentos para

propagar informações anti-SOPA e até a sugestão de um boicote geral a fim de

protestar o seu descontentamento. Esta foi uma das poucas vezes em que

empresas grandes se aliaram a consumidores comuns de forma “mais política”,

com bandeiras em prol da liberdade no meio digital. Com esse aspecto mais

politizado, essas empresas conseguiram angariar facilmente adeptos aos

boicotes (outras empresas menores, sites e blogs pessoais etc.) ou, pelo

menos,usuários para difundir a mensagem.

Nesses protestos, tanto o congresso norte-americano, quanto as

empresas que defendiam o projeto eram tratados como grandes censores da

liberdade, atrasados, que não entendem – ou temem – o potencial da rede

digital. Para os congressistas e para o criador do projeto, os protestos se

restringiram a pedidos de veto, reconsiderações etc. No caso das empresas,

como a Sony, elas encontraram um inimigo mais radical, os hackers.

Uma discussão sobre a livre circulação de informações na rede digital

com tamanhas proporções não poderia deixar de chamar a atenção da

comunidade hacker. Principalmente, porque nesta discussão estão envolvidas

instituições tradicionais, como o Estado norte-americano, e a possibilidade de

maior controle delas sobre a internet. Assim, apoiando as grandes empresas

do meio digital e em favor dos usuários e do conteúdo amador, os hackers

iniciaram diversas ameaças de invasão a sites de empresas de entretenimento,

como a Sony, e associações que as representavam, como a RIIA.

Em 18 de janeiro, próximo à data de votação do SOPA no congresso

norte-americano, as empresas do meio digital começaram os boicotes, em sua

maioria, acrescentando um comunicado de que eles eram contra o projeto de

Lei e, em alguns casos, com links para abaixo-assinados que permeavam a

web. Poucas foram as empresas que decidiram fechar as atividades do site por

um dia, o que era prometido anteriormente. Um dia depois desses protestos, o

FBI fechou o site de compartilhamento P2P, Megaupload, e prendeu seu

fundador, Kim Schmitz (ou Kim Dotcom, como era conhecido na internet). Muito

não foi esclarecido se a ação era uma resposta aos boicotes do dia 18, no

entanto, para a comunidade hacker e, principalmente, para o grupo

Anonymous, essa era a hora de contra-atacar.

Page 40: Liberdade de expressão no contexto digital, por Gustavo M. Moreno

40

Sendo assim, na madrugada do dia 19 de janeiro, massivos ataques do

grupo derrubaram os sites da Sony, da RIAA e outros. Em um dos ataques,

parte do acervo digital de filmes e discos da Sony foi disponibilizado para

download gratuito, como resposta. A ação agressiva, ao contrário do que possa

parecer, obteve reconhecimento de grande parte dos usuários da internet,

principalmente nas redes sociais. Mesmo o ataque massivo ter sido efetuado

na referida noite, sites continuaram a ser derrubados nos dias seguintes, com

registro de ataques até mesmo a sites brasileiros, de artistas que trabalham

com o selo Sony, por exemplo.

Logo após essa movimentação, o deputado Lamar Smith anuncia que o

SOPA seria arquivado por tempo indeterminado. A notícia espalhou-se

rapidamente e o acontecimento foi sinalizado por muitos, também nas redes

digitais, blogs e fóruns como uma vitória da liberdade sobre a censura.

Page 41: Liberdade de expressão no contexto digital, por Gustavo M. Moreno

41

3.2. Lei Azeredo

A origem da chamada Lei Azeredo nos remete a 13 anos atrás. O

Projeto de Lei (PL) número 84, de 1999, foi de autoria do então deputado

federal por Pernambuco, Luiz Piauhylino De Mello Monteiro (PSDB). A

motivação principal para a criação do referido PL foi a necessidade de

regulamentar certos “crimes cibernéticos” que não poderiam ser enquadrados

no Código Penal (datado de 1940). O projeto foi apresentado durante a

Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática, em maio

desse ano.

É descrito como um projeto que “dispõe sobre os crimes cometidos na

área de informática, suas penalidades e dá outras providências”6. A explicação

sobre o teor do documento é a seguinte: “caracteriza como crime informático

ou virtual os ataques praticados por ‘hackers’ e ‘crackers’, em especial as

alterações de ‘home pages’ e a utilização indevida de senhas”. No entanto, o

documento não contribui para a definição desses atores, apenas criminaliza os

atos invasivos no meio digital.

A abrangência do texto do projeto ainda causava ambiguidade nas

definições dos crimes e, por isso, retardou o processo de avaliação nas duas

casas. Em 2008, apenas, o ex-senador e deputado federal por Minas Gerais,

Eduardo Azeredo (PSDB), relator do projeto, apresentou um novo texto,

substitutivo ao original. Quando apresentado, porém, foi mais uma vez

severamente criticado, sendo apelidado por grupos contrários ao projeto como

o “AI-5 digital”. Além disso, passou a se chamar “Lei Azeredo”.

Uma das linhas de discussão sobre o tema, que segurou o projeto,

achava por certo criar um Marco Civil para o uso da internet, antes de

criminalizar as ações na rede. Dentre os que defendiam esse pensamento

estava o professor Ronaldo Lemos, diretor do Centro de Tecnologia e

Sociedade da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro

6 Cf. Projeto de Lei nº 84, de 1999. In: Diário da Câmara dos Deputados. Brasília, 11 de maio de 1999.

Page 42: Liberdade de expressão no contexto digital, por Gustavo M. Moreno

42

e diretor do Creative Commons Brasil. Em 2007, Lemos escreveu para o UOL7

defendendo a criação do marco civil regulatório da internet, antes da tipificação

dos crimes, como propunha o deputado Azeredo, alegando que a exemplo de

outros países era necessário ter a experiência do marco regulatório para que

uma legislação penal fosse feita sobre ele. Segundo ele, era preciso definir

quais direitos a rede digital proporciona aos usuários e, a partir disso, decidir

quais atos são puníveis perante a lei.

Com a discussão restrita basicamente às portas do Congresso Nacional

e sem muitas definições, o projeto foi ganhar outro momento de relevância, em

julho de 2011, quando foi aberto para debate público em fóruns no portal criado

pela Câmara dos Deputados, o E-democracia8. É importante destacar que não

só a Lei Azeredo foi discutida nesse sistema, mas também o PL sobre o Marco

Civil da Internet.

Também é preciso salientar que no primeiro semestre desse ano o

cenário mundial tornara-se propício para esse tipo de debate no Legislativo.

Para os governantes ao redor do mundo a motivação veio depois de uma série

de ataques que passaram a se tornar recorrentes de crackers a sistemas de

instituições públicas por todo o globo. Nesse meio, o Brasil buscou agilizar

essa discussão, trazendo à tona novamente a Lei Azeredo, que ainda não era

bem vista por boa parte dos internautas.

As brigas políticas entre a bancada da oposição, que apresentou o

projeto, e a base aliada ao governo intensificaram-se. Enquanto a Lei Azeredo

mantinha-se estagnada – e a proposta do Marco Civil também vinha se

arrastando – a base governista anunciou que iria criar uma outra lei, específica

para punir invasores no meio online, em decorrência principalmente de ataques

de crackers ao email pessoal da presidente Dilma Roussef, no final de 2010.

Um dos autores do novo PL (nº 2.793 de 2011) – e porta-voz sobre o

assunto para a imprensa – foi o deputado federal por São Paulo, Luiz Antonio

Teixeira Ferreira (PT). O novo projeto foi pensado para o caso específico de

7 V. UOL NOTÌCIAS. Internet brasileira precisa de marco regulatório civil. 2007. Disponível em: http://tecnologia.uol.com.br/ultnot/2007/05/22/ult4213u98.jhtm, acessado em 27 de agosto de 2012. 8 http://edemocracia.camara.gov.br.

Page 43: Liberdade de expressão no contexto digital, por Gustavo M. Moreno

43

invasão e roubo de dados ou implantação de vírus em sistemas de terceiros. A

objetividade do texto e a posição política favorável para a aprovação eram

grandes argumentos que poderiam invalidar a famigerada Lei Azeredo.

Outro escândalo com vazamento de arquivos pessoais seguidos de

extorsão, envolvendo a artista Carolina Dieckmann, foi o estopim para que a

discussão tomasse um rumo definitivo o mais breve possível. Sendo assim,

para que os ânimos se acalmassem, foi acordado que ambas as leis seriam

aprovadas. A primeira delas a ser aprovada, no entanto, foi o PL da base

governista.

Para que a Lei Azeredo fosse aprovada seria necessário reduzir os mais

de 20 artigos para apenas cinco, extraindo dele as maiores polêmicas. Dessa

forma, o texto final foi aprovado em 23 de maio de 2012 pela Câmara dos

Deputados como uma atualização ao Código Penal brasileiro.

Page 44: Liberdade de expressão no contexto digital, por Gustavo M. Moreno

44

4. METODOLOGIA DA PESQUISA DE CAMPO

Introduzimos no capítulo anterior o cenário no qual os dois casos se

deram e o desenvolvimento de cada um deles para, agora, delimitarmos a

pesquisa em campo. Serão analisados nos capítulos restantes o discurso dos

jornais Folha e O Estado de São Paulo a fim de descobrirmos quais conceitos

foram defendidos por eles durante os casos SOPA e Azeredo.

Para tal, observaremos as matérias publicadas entre julho de 2011 e

maio de 2012. O período selecionado abrange, principalmente, a volta da Lei

Azeredo à pauta do Congresso (em julho), o jogo político entre a base aliada e

a oposição até a sua aprovação em maio do ano seguinte. Nesse meio tempo,

temos a apresentação, debate e arquivamento do SOPA no Congresso norte-

americano e suas repercussões.

Faremos um estudo comparando a cobertura do SOPA e da Lei Azeredo

pelos dois veículos de comunicação no meio online, analisando todas as

matérias publicadas nos portais que representam os jornais na internet no

período destacado. Será observado não só o volume de conteúdo publicado

mas o teor dessas matérias, principalmente, no que diz respeito a possibilidade

de engajamento do leitor a partir delas. Não esperamos um pedido aberto

convocando os leitores para tomarem partido sobre os casos, mas que haja

informações que enriquecem o debate e despertam o interesse para o assunto

liberdade de expressão no meio digital.

A linguagem da internet é o hipertexto e para que este seja bem utilizado

é necessário aproveitar ao máximo os recursos multimídia. Dessa forma, será

levado em conta se na matéria constam objetos interessantes que

complementem o texto como fotos, infográficos, vídeos etc. Além disso,

observaremos se todos os recursos querem dizer algo mais do que a simples

ilustração.

Todas as matérias foram extraídas na qualidade de assinante dos

periódicos. Ambos os jornais possuem filtros mais ou menos severos para a

Page 45: Liberdade de expressão no contexto digital, por Gustavo M. Moreno

45

leitura do conteúdo postado no meio digital. E a maioria das matérias são

reproduções de conteúdo do impresso, porém abertas às possibilidades do

hipertexto. Ao todo, foram observadas 155 notícias, dos mais variados tipos:

notas, podcasts, factuais, entrevistas, artigos de opinião etc. Cada um desses

registros contém, pelo menos, uma referência explícita sobre algum dos casos

e está devidamente referenciada nos mecanismos internos de busca dos

portais destacados. Realizamos uma varredura por data e também por

palavras-chaves que poderiam trazer à tona essas notícias, dentro do período

selecionado, como: SOPA, Azeredo, pirataria, projeto de lei etc.

A análise do discurso dos veículos citados segue o método de Laurence

Bardin (1977) que consiste em um conjunto de técnicas do campo da

Comunicação, realizado por “procedimentos sistemáticos e objetivos” de

descrição do conteúdo das mensagens a fim de permitir inferências relativas à

produção ou à recepção dessas mensagens. O método pressupõe uma

categorização do material a ser analisado a fim de auxiliar o observador

quantitativamente e qualitativamente sobre índices muito subjetivos, que estão

contidos nas mensagens.

Apresentamos como foram divididas as matérias para este trabalho.

Grande parte do conteúdo exprime, de uma forma ou de outra, argumentos que

mostram a aceitação ou não do que propõem as leis. Dessa forma, temos

como eixo principal as categorias que expõem argumentos sobre a lei: o texto

apresenta mais argumentos favoráveis ou desfavoráveis à lei, explicitamente.

Ainda nesse eixo temos as matérias que reportam um fato, sem expor a

opinião do jornal explicitamente no texto, no entanto, os recursos do hipertexto

direcionam o leitor para matérias que fazem este papel ou os infográficos e

imagens tiram a suposta neutralidade do texto. Também há aqui as matérias

que fazem mera referência sobre o caso em texto com outro assunto

relacionado.

Também levamos em conta, apenas para o caso SOPA, o volume de

matérias que são apenas reprodução de agências de notícia. Deliberamos pela

diferenciação desse tipo de registro por não expor diretamente a voz do

veículo. Porém, a publicação das mesmas reflete também a aceitação dos

Page 46: Liberdade de expressão no contexto digital, por Gustavo M. Moreno

46

veículos à lei. Assim, separamos as matérias de reprodução com argumentos

favoráveis e desfavoráveis à lei.

A partir dessa divisão poderemos traçar nossas inferências sobre o

conteúdo dos jornais. Como os casos têm proporções distintas, serão

analisados separadamente a seguir. Nesta separação temos: 120 matérias

dedicadas ao SOPA contra 35 dedicadas à Lei Azeredo.

Page 47: Liberdade de expressão no contexto digital, por Gustavo M. Moreno

47

5. ANÁLISE DE MÍDIA

5.1. A cobertura do caso SOPA

O projeto de lei norte-americano, Stop Online Piracy Act (SOPA), foi

bastante comentado em toda a mídia, principalmente na internet. As redes

sociais, blogs e sites ficaram em polvorosa. E a mídia não poderia deixar de

trazer a versão jornalística dos fatos que ocorreram no início de 2012. A nossa

seleção traz 120 matérias dedicadas ao tema, sendo 80 delas de autoria do

jornal O Estado de S. Paulo e 40, da Folha de S. Paulo. A maioria das notícias

acompanhava a onda de protestos contra a lei e apresentava, em sua maioria,

argumentos desfavoráveis a ela. Essa contrariedade à lei pode ser encarada, à

primeira vista, como um levante em defesa dos ideais de liberdade e

privacidade na rede digital. Veremos se a forma como os veículos trouxeram

isso à tona pode realmente aprofundar esses conceitos.

A primeira aparição do projeto de lei norte-americano contra pirataria nos

jornais selecionados foi em meados de novembro de 2011. O periódico Folha

de S. Paulo publicou primeiro em 7 de novembro uma coluna de Ronaldo

Lemos, professor e diretor do Creative Commons no Brasil. O autor tem uma

coluna semanal (chamada “Internets”) na Folhateen, sessão voltada para

adolescentes. O texto, “EUA querem lei dura contra a pirataria”9, virou também

um podcast, no mesmo dia, para a Rádio Folha. O conteúdo, opinativo,

comparava o projeto de lei com o Patriot Act10 por conta do seu caráter invasivo

e extranacional. Ambos os conteúdos são acessíveis apenas por assinantes. O

assunto não foi abordado novamente até o dia 23 de novembro.

9 V. FOLHA DE SÃO PAULO. EUA querem lei dura contra a pirataria (online). 2011. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/multimidia/podcasts/1001015-ronaldo-lemos-eua-querem-lei-dura-contra-a-pirataria.shtml, acesso em 19 de setembro de 2012. 10 O Uniting and Strengthening America by Providing Appropriate Tools Required to Intercept and Obstruct Terrorism Act (USA Patriot Act) foi assinado em 2001 como resposta aos atentados de 11 de setembro contra os Estados Unidos. A lei ampliava os poderes do governo norte-americano no combate ao terrorismo ao redor do mundo.

Page 48: Liberdade de expressão no contexto digital, por Gustavo M. Moreno

48

No jornal O Estado de S. Paulo, o tema surgiu em 13 de novembro,

como uma matéria do caderno dedicado à tecnologia, Link. Vale destacar que a

sessão é apresentada no portal do jornal como um conjunto de blogs, voltados

a assuntos de tecnologia. Por esse caráter próximo aos blogs, os textos

tendem a ser mais opinativos. O texto, “Uma lei para vigiar e punir”, destacava

o projeto como ameaça à liberdade, citando-o como o “mais anti-internet em

toda a história legislativa do país”11.

Essa primeira abordagem mostra uma tendência que será seguida pelos

dois veículos de comunicação. A retórica contra a lei será mostrada de forma

mais aguda, no entanto, no jornal Estado. As matérias com argumentos

desfavoráveis à lei explícitos no texto somaram quase a metade (47,5%) de

todas as publicações do periódico. A essa soma podemos acrescentar as

matérias das agências de notícias internacionais, como EFE e Reuters, ao

todo, 10 matérias reproduzidas sobre o assunto. Dessas, apenas 2 traziam

argumentos favoráveis à lei antipirataria.

O jornal Folha, que apresentou 19 notícias argumentando contra a lei

explicitamente no texto, abasteceu-se com um número maior de matérias de

agências. Foram 12 publicações reproduzindo informações de agências

internacionais com argumentos desfavoráveis à lei, nenhum favorável. Essa

representação soma 30% de todo o conteúdo sobre o tema publicado pelo

veículo durante o período destacado.

As notícias que apresentam o caso no Estado, ainda em 2011, trazem

como argumentos principais negativos à lei o “estrangulamento financeiro”12 ao

qual o referido projeto se propõe, comparando a estratégia à utilizada para

retirar o Wikileaks do ar. O periódico também se mostra contra a punição ao

site por causa de ações realizadas pelo usuário (que também é punido). Na

Folha, os textos mais antigos reforçam que a lei é “repleta de conceitos

11 V. O ESTADO DE SÃO PAULO. Uma lei para vigiar e punir (online). 2011. Disponível em: http://blogs.estadao.com.br/link/uma-lei-para-vigiar-e-punir/, acesso em 19 de setembro de 2012. 12 V. O ESTADO DE SÃO PAULO. Golpe duro (online). 2011. Disponível em: http://blogs.estadao.com.br/link/golpe-duro/, acesso em 19 de setembro de 2012.

Page 49: Liberdade de expressão no contexto digital, por Gustavo M. Moreno

49

vagos”13 e debruçam-se também na exclusão da instância jurídica para o

bloqueio de determinado conteúdo.

Em janeiro, os debates dos jornais começam a girar em torno dos

prometidos blecautes pelas empresas de tecnologia, como Google, Facebook e

Wikipedia. As matérias listam ações de cada site e o que pretendiam fazer,

inclusive disponibilizando o link para a referida página de cada empresa. Nesse

ponto, observa-se pouca ou quase nenhum ponto de balanceamento com

argumentos a favor da lei.

No caso do jornal Estado de S. Paulo, podemos citar as polêmicas

declarações de Rupert Murdoch ao presidente dos EUA, Barak Obama, e ao

Google. Murdoch é dono da NewsCorp, conglomerado de telecomunicações

detentor de emissoras como a rede Fox e periódicos como The Wall Street

Journal e The Times, e se irritou com uma declaração da Casa Branca, a qual

demonstrava repúdio ao SOPA. Claramente a favor da regulamentação, ele

expôs sua indignação na ferramenta de microblog, o Twitter, atacando

diretamente Obama, dizendo que ele havia se aliado aos lobistas do Vale do

Silício. A matéria do jornal expõe o fato, com links externos para referenciar

tanto a declaração da Casa Branca, quanto a lei. O conteúdo sobre a lei está

linkado a esta matéria por meio da seguinte frase: “a restritiva proposta

antipirataria que está sendo discutida pelo governo americano”14 e direciona o

usuário para outra matéria com argumentos desfavoráveis à lei. Isso mostra,

por exemplo, que o jornal expôs argumentos a favor da lei, mas guia o leitor

para sua própria opinião, desfavorável ao projeto.

Para o mesmo caso, na Folha, temos um contraponto às declarações de

Murdoch no próprio texto o que, consequentemente, desloca a matéria que

apresentaria argumentos em defesa da lei, como contrária a ela. A notícia

traduz primeiro a declaração de Murdoch no Twitter: "O líder em pirataria é o

Google, que transmite vídeos gratuitamente e vende [publicidade] a partir

13 V. FOLHA DE SÃO PAULO. Projeto antipirataria nos EUA endurece penas e opõe poderosos. 2011. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/tec/1010505-projeto-antipirataria-nos-eua-endurece-penas-e-opoe-poderosos.shtml, acesso em 19 de setembro de 2012. 14 V. O ESTADO DE SÃO PAULO. Rupert Murdoch apoia a ‘Sopa’ e critica Obama (online). 2012. Disponível em: http://blogs.estadao.com.br/link/rupert-murdoch-apoia-o-sopa/, acesso em 19 de setembro de 2012.

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50

deles. Não é de se espantar que gaste milhões em lobby" e, logo depois,

apresenta os argumentos contrários a ela: “na verdade, a indústria do

entretenimento gasta mais com lobby que as empresas do Vale do Silício, diz

Alan Webber, analista do Altimeter Group”15.

Nesses dois exemplos, para um mesmo caso, temos que os jornais não

deixaram de apresentar argumentos do lado que apoia a lei, no entanto, com

recursos do hipertexto ou declarações diretas, mostrou que são contra a

aprovação do projeto.

Outro ponto de destaque foram as matérias durante as manifestações

online das empresas de tecnologia, como Wikipedia, Google, Facebook e

outras menores. Na Folha, grande parte das matérias relativas aos blecautes

foram reproduções de outros jornais, como The New York Times, ou de

agências de notícias internacionais. A única intervenção do jornal nesses textos

é a presença de um subtítulo: SOPA, para um trecho que explica o teor da lei

e, em alguns deles, um infográfico falando sobre a lei, sua proposta e as

penas.

No Estado, o texto “Leis antipirataria mobilizam a internet”16, publicado

na data dos protestos online, dia 18 de janeiro de 2012, além de situar o leitor

sobre o fato, deixa à disposição um vídeo que foi amplamente divulgado na

data em questão, pela organização Fight for the Future17. O vídeo demonstra

uma posição totalmente contrária ao SOPA e vem logo ao final do texto, com a

sugestão para que o usuário o assista pois ele mostra “didaticamente como

funcionariam e as implicações das leis sendo propostas”.

Nesse ponto o jornal Estado declara uma posição mais direcionada com

esses recursos do que a Folha, que expõe menos essa contrariedade à lei,

tanto no texto, quanto nos recursos do hipertexto.

15 V. FOLHA DE SÃO PAULO. Rupert Murdoch ataca Barack Obama por oposição a lei antipirataria (online). 2012. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/tec/1035052-rupert-murdoch-ataca-barack-obama-por-oposicao-a-lei-antipirataria.shtml, acesso em 19 de setembro de 2012. 16 V. O ESTADO DE SÃO PAULO. Leis antipirataria mobilizam a internet (online). 2012. Disponível em: http://blogs.estadao.com.br/link/leis-antipirataria-mobilizam-web-saiba-mais/, acesso em 19 de setembro de 2012. 17 http://www.fightforthefuture.org/

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51

No final de janeiro, ainda temos na Folha uma coluna de Hélio

Schwartsman, denominada “Duelo de titãs”18, que mostra uma posição mais

equilibrada sobre o caso SOPA. Ele concorda que a lei propõe ações

excessivas em prol do Copyright, no entanto, é um dos primeiros do jornal a

não defender veemente o outro lado, da liberdade irrestrita da rede digital,

alegando que pensar apenas na liberdade sem levar em conta as

regulamentações é errado. Acima de tudo, é fruto da inexistente tradição

cultural de achar errado baixar um conteúdo que é protegido no mundo físico,

no online, sem custos. Esse é um dos poucos textos que apresenta uma

argumentação contra a liberdade, mas também não é totalmente em prol da lei

em questão, que precisa ser revista.

No Estado, temos uma publicação logo após os protestos, no dia 19,

também a favor da regulamentação. O artigo, no entanto, é uma tradução de

um texto escrito originalmente por David Pogue, do jornal The New York Times,

chamado “Put Down the Pitchforks on SOPA”19. Nele, Pogue chama a atenção

para o perigoso imediatismo ao lutarmos contra a lei. Ele esmiúça a estratégia

da lei sem negar que foi feita para a indústria do entretenimento e que é um ato

desesperado ao passo que a pirataria fugiu ao controle. No entanto, é errado

achar que ter conteúdo (principalmente o previamente protegido) de graça é

um direito natural do homem. Ao mesmo tempo, ele edifica a ação na internet e

a reação do governo em ouvi-la, travando a aprovação da lei.

O Estado também mostrou uma sobrevida do caso com mais fôlego. A

referência ao caso SOPA depois dos acontecimentos que culminaram com o

arquivamento da lei em janeiro foi maior no Estado (21 publicações) do que na

Folha (5 publicações). As matérias em ambos os periódicos foram

massivamente publicadas obviamente na editoria de tecnologia, com algumas

notícias pautadas também nos cadernos Economia & Negócios, no caso do

Estado de S. Paulo, e Mercado e Colunistas, no caso da Folha. É importante

destacar esse movimento pois será uma diferenciação importante quando

18 V. FOLHA DE SÃO PAULO. Duelo de titãs (online) 2012. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/1038765-duelo-de-titas.shtml, acesso em 28 de setembro de 2012. 19 V. versão original THE NEW YORK TIMES. Put Down the Pitchforks on SOPA. 2012. Disponível em: http://pogue.blogs.nytimes.com/2012/01/19/put-down-the-pitchforks-on-sopa/, acesso em 28 de setembro de 2012.

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52

citarmos o caso Azeredo. O assunto sobre tecnologia teve sua entrada e

permanência quase absoluta na área de tecnologia, condensando os leitores

que se interessam pelo tema.

Page 53: Liberdade de expressão no contexto digital, por Gustavo M. Moreno

53

5.2. A aprovação da Lei Azeredo

Diferente do caso SOPA, a Lei Azeredo estava há anos em tramitação

no Congresso brasileiro, desde 1999. Logo, o tema não era muito novo, mas

apresentou-se novamente em outro cenário e foi lhe dada novamente

importância nos jornais. A seleção desse trabalho concentra os esforços de

pesquisa entre julho de 2011 e maio de 2012 justamente pelo retorno da Lei

Azeredo à pauta do Congresso Nacional, pelas questões frisadas na

apresentação dos casos (capítulo 3.2.), e sua posterior aprovação, com grande

parte do conteúdo alterada ou removida.

Desse período, extraímos 35 matérias sobre o projeto de lei, somando

os dois jornais. A divisão para este caso, que repercutiu apenas em nível

nacional, foi mais igualitária, repartindo os periódicos entre 19 publicações do

Estado de S. Paulo e 16, da Folha de S. Paulo. Outra informação interessante

é que, diferente do SOPA, as editorias se mesclaram mais, gerando pautas não

só para os cadernos de tecnologia de cada veículo, mas também em Política,

Economia e Cultura. No caso da Folha, a sessão Poder (política) ultrapassou

os registros de notícias da sessão Tec (tecnologia), ao todo 7 e 6,

respectivamente. O Estado manteve o tema principalmente na sessão Link

(tecnologia), com 13 registros, enquanto o segundo com mais registros foi

Economia & Negócios, com 3 publicações.

A primeira reaparição do tema nesta seleção foi no primeiro dia de julho

de 2011, citado ao final da coluna de Nelson de Sá sobre segurança online20,

na Folha. A matéria abordava o Núcleo do Centro de Defesa Cibernética

(NuCDCiber), do exército, e citava os frequentes ataques de hackers que

estavam sendo realizados no Brasil e no exterior. Ao citar a ação do núcleo, é

comentada a necessidade de atualizar a legislação para definir crimes online e,

por fim, a necessidade de voltar a discutir leis como a Azeredo.

20 V. FOLHA DE SÃO PAULO. Governo brasileiro planeja núcleo de segurança on-line. 2011. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/tec/937952-governo-brasileiro-planeja-nucleo-de-seguranca-on-line.shtml, acesso em 19 de setembro de 2012.

Page 54: Liberdade de expressão no contexto digital, por Gustavo M. Moreno

54

No dia seguinte, a Folha ainda publicou outra matéria sobre a entrada de

uma nova lei21, a ser apresentada pela base do governo e que virá a ser o PL

nº 2.793 de 2011, específico sobre invasão em computadores. No texto, é

antecipada essa apresentação dizendo que “a medida diminui as chances de

entrada em vigor do projeto de lei 84/99”. Adiante, o texto apresenta

argumentos contrários às duas propostas, alegando que é necessário chamar a

atenção da sociedade para o problema e que devem-se criar políticas públicas

para combater os crimes cibernéticos, não só tipificá-los.

O Estado reacende o debate apenas em 3 de julho com uma matéria

publicada no Link, centrada na Lei Azeredo. No artigo, são citados os ataques

recorrentes de hackers e é mostrado um infográfico com o histórico dos

ataques com maior repercussão no Brasil e no mundo. O texto apresenta

explicitamente argumentos favoráveis à lei, incluindo declarações do relator do

projeto, o deputado Eduardo Azeredo: “apesar das críticas precipitadas, há um

sentimento de que o Brasil não pode continuar sem leis a respeito”22.

De todas as matérias publicadas sobre o assunto pela Folha de S.

Paulo, mais de 80% apresentam argumentos desfavoráveis ao projeto de lei ao

longo do período. Para o Estado de S. Paulo essa diferença é menos

atenuada, com 57,8% das matérias apresentando o mesmo índice e 31,5%

exibindo argumentos favoráveis à aprovação da lei explicitamente no texto. Os

números restantes representam as matérias que meramente citaram o caso ou

cuja opinião é reforçada apenas pelos recursos do hipertexto, mas que nesse

caso não foram expressivas.

Na Folha, a principal justificativa presente nos textos contra a Lei

Azeredo é a necessidade de existir os direitos civis antes de tipificar os crimes,

como propõe o projeto. Nesse ponto, podemos inferir duas saídas: ou o

periódico deu preferência às informações sobre o Marco Civil porque tratavam-

se de informações novas, até então, ou o novo projeto entrou no momento

certo e, por isso, enveredou a retórica do jornal contra a Lei Azeredo.

21 V. FOLHA DE SÃO PAULO. Base de Dilma vai apresentar projeto de lei contra hackers. 2011. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/poder/938079-base-de-dilma-vai-apresentar-projeto-de-lei-contra-hackers.shtml, acesso em 19 de setembro de 2012. 22 V. O ESTADO DE SÃO PAULO. Lei Azeredo volta à pauta. 2011. Disponível em: http://blogs.estadao.com.br/link/lei-azeredo-volta-a-pauta/, acesso em 25 de setembro de 2012.

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Dentre os textos do jornal que apresentam argumentos desfavoráveis à

lei está a publicação “'Lei Azeredo' recebe críticas em audiência na Câmara”23.

Referente à audiência pública realizada para debater a lei na Câmara dos

Deputados, o texto compila várias declarações, questionando o tempo de

registro dos dados de usuários (logs de registro) e o texto, que possui

definições muito amplas. Em um dos parágrafos é destacada a necessidade

de: “aprovação de uma lei civil sobre a internet, para, só então, aprovar-se um

projeto criminal na matéria”, referindo-se ao Marco Civil, logo em seguida.

Eduardo Azeredo responde dizendo que o texto do Marco Civil estava

prometido para 2008 e que essa demora travou a aprovação do seu projeto de

lei à época.

No Estado de S. Paulo, os argumentos contrários à lei são realmente

superiores aos favoráveis. No entanto, o jornal entrevista o deputado logo após

a entrega do texto do Marco Civil, em setembro de 2011, com perguntas

pertinentes a ele, envolvendo a questão de privacidade, por exemplo. Em dado

momento Azeredo é perguntado se é contra o anonimato na internet,

reproduzimos sua resposta a seguir: “Não precisamos do anonimato para a

liberdade do Brasil, a liberdade nós já temos. Nós já superamos há muito

tempo o estágio do qual países como Irã ou Líbia agora estão se libertando. O

que temos que garantir agora é a segurança”24. Essa é uma das poucas

declarações do deputado que exclui da resposta o jogo político que envolvia os

dois projetos.

Outra publicação do Estado merece destaque nesse meio pois é uma

das únicas que cita os dois casos juntos, o SOPA e o Azeredo, porém com

enforque em nosso território. A matéria “Contra proposta”25, publicada em

março de 2012, traz ao conhecimento do usuário uma proposta coletiva de

autoria do site de notícias Reddit. O Free Internet Act (FIA) é um documento

que contradiz as leis Sopa e Azeredo porque parte do pressuposto de que o

23 V. FOLHA DE SÃO PAULO. 'Lei Azeredo' recebe críticas em audiência na Câmara. 2011. Disponível em : http://www1.folha.uol.com.br/poder/943026-lei-azeredo-recebe-criticas-em-audiencia-na-camara.shtml, acesso em 25 de setembro de 2012. 24 V. O ESTADO DE SÃO PAULO. Eduardo Azeredo: Rede livre é algo óbvio. 2011. Disponível em: http://blogs.estadao.com.br/link/eduardo-azeredo-rede-livre-e-algo-obvio/, acesso em 25 de setembro de 2012. 25 V. O ESTADO DE SÃO PAULO. Contra proposta. 2012. Disponível em: http://blogs.estadao.com.br/link/contra-proposta/, acesso em 25 de setembro de 2012.

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ideal para uma a rede que é global só pode ser uma conduta e lei única para

todos os países que dela se utilizam. A matéria é importante porque traz o

debate para nível nacional, como uma alternativa à lei em votação, um novo

olhar além da crítica desfavorável. Dentre os tópicos destacados na matéria,

por exemplo, está a indicação de que nenhum governo pode criar leis que

censurem a web. Em nível nacional, a matéria faz a comparação: “assim como

o Free Internet Act foi proposto para combater leis duras como a Sopa, no País

o Marco Civil surgiu em oposição à Lei Azeredo, conhecida como ‘AI-5 Digital’

por promover um ambiente de vigilantismo no combate a crimes digitais”.

Mesmo com altos índices de reprovação sobre a Lei Azeredo, os jornais

não excluem a necessidade de haver uma legislação atualizada sobre crimes

na internet. Poucas das matérias, porém, preocuparam-se em trazer para o

leitor alternativas que têm a ver com a internet como um todo e não restrita ao

país. A maior defesa foi em prol do Marco Civil e dos direitos, não envolvendo

as determinações sobre crime.

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6. Considerações finais

Ao observarmos os casos SOPA e Lei Azeredo e a cobertura de ambos

pela imprensa temos em mente que o volume de publicações, por si só, não

reflete maior importância de um caso sobre o outro. Ambos referem-se a

problemas locais com consequências e repercussões distintas. O SOPA com

certeza apresentou, dentre os dois, apelos mais populares e palatáveis para

chamar a atenção dos usuários. Podemos destacar aqui principalmente a ação

promovida pelos gigantes de tecnologia defendendo conceitos como liberdade

contra a censura na web. No caso Azeredo, a natureza do debate partia da

defesa da privacidade dos cidadãos, mas ao mesmo tempo o texto deixava

uma lacuna sobre a vigilância do Estado, o que foi atacado por especialistas. A

chegada do texto do Marco Civil da internet, como proposta alternativa, ofuscou

o projeto de lei, que também estava desgastado pelo tempo em tramitação.

A cobertura do SOPA pelos dois veículos deteve-se bastante no período

dos protestos por seu caráter inusitado. O discurso defendia uma liberdade

irrestrita, mas não aprofundou tão bem o debate. Os recursos do hipertexto

levavam o internauta bem próximo do foco de debate nos EUA, com links para

as organizações contrárias, para as páginas de protesto das empresas,

imagens destacando os protestos de cada um etc.

Poucos textos mostraram-se mais equilibrados no calor do momento.

Em um desses raros exemplos, do jornal The New York Times26 e traduzido

pelo Estado de S. Paulo, o problema está no tratamento do caso. O projeto é

com certeza invasivo quando aplica restrições a usuários e a sites sem

julgamento prévio da justiça. Essa defesa, porém, não pode ser universal, se

levarmos em conta que realmente há conteúdo protegido sendo pirateado.

Aqui podemos trazer novamente o pensamento de Lessig (2001) sobre a

indústria do entretenimento e sua relação esguia com a internet. É mais fácil as

empresas tradicionais procurarem subterfúgios na legislação para barrar novos

26 V. THE NEW YORK TIMES. Put Down the Pitchforks on SOPA. 2012. Disponível em: http://pogue.blogs.nytimes.com/2012/01/19/put-down-the-pitchforks-on-sopa/, acesso em 28 de setembro de 2012.

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empreendimentos – que de alguma forma os prejudicam – do que mergulhar

junto a eles num meio cujo retorno monetário é incerto.

O ideal seria essas empresas participarem do novo meio utilizando a

nova linguagem, compreendendo seus limites ao invés de tentar barrar algo

que já está disseminado radicalmente: a distribuição livre de conteúdo. A

discussão de liberdade, no entanto, para o caso SOPA, detém-se ao consumo

de material da indústria de entretenimento.

As próprias empresas jornalísticas de comunicação de massa ficam em

meio ao fogo cruzado. Como empresas, elas mesmas são criadas para gerar

lucro e cobram pelo conteúdo disponibilizado, seja no online ou offline. Essas

vozes deveriam proteger o que é do público, no entanto, elas mesmas têm que

seguir alguns preceitos capitalistas se quiserem continuar atuando.

A imprensa é que deveria ser uma das mais interessadas vozes no

debate sobre liberdade de expressão no meio online. No entanto, vemos que

os casos não foram instigantes a ponto de fazê-las aprofundar a discussão, de

forma a abrir o debate do Copyright para todo o tipo de conteúdo que é

compartilhado na internet; ou, ainda, de discutir o próprio papel da imprensa

nesse meio.

Outro ponto apresentado pela Folha na coluna “Duelo de titãs”27, é a

falta de cultura dos usuários em pensar que esse tipo de conteúdo, que é pago

no mundo físico, é distribuído livremente, mas sem respeitar o esforço de

trabalho empregado na constituição dessas obras. Observando mais a fundo é

realmente brigar por um conceito universal das democracias, que é a liberdade,

para defender um conceito privado e despolitizado: eu, indivíduo, não quero

pagar por um conteúdo de uso pessoal (por mais que ele seja pago em outro

meio). Não há pensamento político aqui.

Pela distância física das redações, a cobertura foi baseada nos assuntos

relevantes para os outros veículos no exterior, salvo as colunas opinativas

sobre o caso, mas que refletem mais a opinião pessoal do autor do que do

27 V. FOLHA DE SÃO PAULO. Duelo de titãs (online) 2012. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/1038765-duelo-de-titas.shtml, acesso em 28 de setembro de 2012.

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jornal. Por isso, refletiu-se nessa cobertura dos veículos a não preocupação

com discussões politizadas sobre liberdade, que são trazidos à tona pela

Primavera Árabe, no final de 2011, por exemplo.

O caso Azeredo não foi tão debatido, mesmo sendo um problema

nacional e próximo às redações. Os dois veículos concordam e expõem sua

preocupação com a necessidade de atualizar a legislação com a internet hoje,

mas os textos não ampliam o debate, em grande parte.

Um grande problema da discussão da Lei Azeredo é o teor desse

debate, que é pouco digerível pelo público em geral. Os assuntos mantiveram-

se principalmente em locais, de certa forma, restritos à grande parte da

população, como fóruns fechados ou o Congresso Nacional. Explico o termo

restrito para o Congresso, pois curiosamente este é o espaço que promove de

fato o debate público.

Sabemos que a representatividade dos políticos está em declínio há um

tempo, o que auxilia uma despolitização geral dos cidadãos, um sintoma

característico da contemporaneidade, como apresentado no capítulo 2. Para o

caso brasileiro ainda temos a questão de que a conexão à internet,

principalmente em altas velocidades (banda larga), ainda está se fortalecendo

no país e as pessoas começaram a se integrar ao meio digital há pouco tempo

e, por isso, muitos ainda não se interessam espontaneamente em discutir leis

para o digital.

O Marco Civil, no entanto, possui um apelo próximo ao dos opositores

ao SOPA, diferente da Lei Azeredo, que foi comparada ao SOPA no jornal

Estado, como mostrado anteriormente. O texto de Azeredo necessitava de

discussões mais profundas e próximas à sociedade – como qualquer outra lei –

porém a natureza do debate era exclusivamente jurídica e depois ganhou um

teor partidarista com outra lei “rival” para tipificar crimes na internet. Aprovou-se

a lei pelo desgaste.

Nesse ponto, acreditamos que o debate em torno dessa legislação no

Brasil tem mais expressividade do que o caso SOPA, no que diz respeito a

discutir conceitos relativos a cidadãos, não a consumidores. E isso inclui a Lei

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Azeredo, pois a iniciativa não é em prol de empresas de qualquer ramo, mas

da necessidade de atualizar a legislação, de incluir o online como meio

constituído e diferente dos outros. A definição dos termos na lei, criada em

1999, não acompanharam o desenvolvimento do seu próprio objeto, a internet,

e por conta disso desmereceram a iniciativa que, de fato, deveria ser

modificada para a aprovação.

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