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MÔNICA MARCONDES DE OLIVEIRA SANTOS
LIBERDADE, TORTURA E RELAÇÕES COM O OUTRO: ASPECTOS DA FILOSOFIA DE JEAN-PAUL SARTRE NA PEÇA “MORTOS SEM SEPULTURA”
MESTRADO: FILOSOFIA
PUC - SÃO PAULO 2006
MÔNICA MARCONDES DE OLIVEIRA SANTOS
LIBERDADE, TORTURA E RELAÇÕES COM O OUTRO: ASPECTOS DA FILOSOFIA DE JEAN-PAUL SARTRE NA PEÇA “MORTOS SEM SEPULTURA”
Dissertação apresentada como
exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Filosofia à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo sob orientação da Professora Doutora Thais Curi Beaini
PUC - SÃO PAULO
2006
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________
_______________________________________
À Thais Curi Beaini
AGRADECIMENTOS
À Profa. Thais Curi Beaini, minha orientadora na vida e na filosofia. Pelo incentivo constante, pela confiança depositada; pela humildade em saber ensinar respeitando seus discípulos; pelo exemplo de vida; e, principalmente, por me devolver a esperança quando tudo parecia perdido. Ao professor José Alves de Freitas Neto da Unicamp, por sua presença marcante em minha vida no passado, quando de modo magnífico, me conduziu aos caminhos da filosofia em 1999 ainda na graduação, e no presente, compondo a banca examinadora em minha defesa. “Lança teu pão sobre as águas, porque depois de muitos dias o encontrarás”. (Ec 11:1). Obrigada por tudo, professor! Ao professor Benedito Eliseu Cintra, pelas valiosas observações e sugestões apresentadas por ocasião de meu Exame de Qualificação. Ao Edson, meu marido, pelo incentivo, compreensão e apoio financeiro, fundamentais à realização desta pesquisa. Ao Herbert, meu filho, que me ensinou os “macetes” da digitação e formatação de textos. À Pamela e Yasmim, minhas filhas, que souberam compreender tão bem este momento. À Maria, minha mãe, pelos cuidados dispensados aos meus filhos, desde minha graduação. Às professoras Cidinha Anversa (minha primeira incentivadora), Mercedes Silva e Patrícia Bioto. Obrigada por acreditarem em mim! Aos amigos Mesaque Souza Reis (in memorian), Silvana, Pr. Eli e Bete, Cristina Barros, Wilson Luques Costa e Viviane Monteiro. Aos que não foram citados, mas que foram importantes em algum momento de minha vida acadêmica. Esta vitória é de todos vocês!
“Quero fazer a tentativa de alcançar a liberdade, diz
de si para si a jovem alma (...) Ninguém poderá
construir-te a ponte sobre a qual deverás transpor o
rio da vida, ninguém exceto tu própria (...) Há no
mundo um único caminho que ninguém pode seguir a
não ser tu. Onde conduz ele? Não o perguntes. Segue-
o. (...) Os teus verdadeiros educadores, os teus
verdadeiros formadores revelam-te o que é a
verdadeira essência, o verdadeiro núcleo do teu saber,
alguma coisa que não se pode obter nem por educação,
nem por disciplina, alguma coisa que é, em todos os
casos, de um acesso difícil, dissimulado e paralisado.
Os teus educadores não poderiam ser outra coisa para
ti, senão os teus libertadores”
Nietzsche
RESUMO
Esta pesquisa tem por objetivo analisar alguns aspectos da filosofia de
Jean-Paul Sartre encontrados ao longo da peça Mortos sem Sepultura.
Através de suas peças teatrais Sartre conseguiu colocar em cena quase a
totalidade de suas teses filosóficas, expressando dessa forma sua concepção de
Teatro de Situações, o qual pretende mostrar suas personagens em situações
simples e humanas e seu momento de escolha diante dessas situações. A ação
se passa na França durante a ocupação alemã, onde seis membros da
Resistência são capturados por colaboracionistas. Estes pretendem descobrir o
local do esconderijo do chefe dos resistentes que por sua vez são interrogados e
torturados um a um, necessitando a cada momento escolher como se comportar
diante daquela situação-limite.
Dessa forma, nos três primeiros capítulos desta pesquisa pretendemos
tecer uma breve análise de alguns aspectos da filosofia de Sartre relevantes para
a nossa pesquisa, no que concerne a questões como: Liberdade-Escolha,
Relações Concretas com o Outro e seus conflitos e a Relação Tortura-Violência-
Morte. Partindo dessa temática, pretendemos no quarto e último capítulo
estabelecer relações destes conceitos com as situações vivenciadas pelas
personagens de Mortos sem Sepultura. No decorrer de todo o enredo, verificamos
através dos próprios diálogos das personagens, um mergulho aprofundado no
comportamento dos indivíduos perante a tortura e como se dão as relações entre
torturados e torturadores, além de suas eventuais mudanças de postura diante da
guerra e da violência, o que fará com que em muitos momentos estas
personagens tomem atitudes inusitadas.
Ao confrontar os aspectos da filosofia de Sartre com as situações-limite
experimentadas pelas personagens na peça, procuraremos comprovar que as
situações-limite levam o homem a fazer escolhas o tempo todo, o que implica no
pleno exercício de sua liberdade. Estas escolhas por sua vez, levam o homem a
suportar as conseqüências da ação, o que implica uma moral e toda uma vida.
ABSTRACT
This research hás the objective of analyzing some aspects of Jean-Paul
Sartre’s philosophy in the play “Dead without grave”.Thorough of her plays Sartre
get to put in scene almost the total of thesis of philosophy expressing his
conception of play’s situation what intending to seen his characters in situations
simple and humans and his moment of choice in front of this situations. The action
happens in France during the German occupancy, where six members of
Resistance are captured by colaborationists. They intend to find out the resistant
chief, and for this reason, they torture the prisioners one by one, and each moment
these prisioners have to choose how to behave facing that cutting-edge situation
they were passing thorough.
Thus, in the first, second and third chapters of this dissertation we intend to
trace a short analysis of some aspects of Jean-Paul Sartre’s philosophy, wich are
relevant to our research named: Freedon-Choice, Concrete Relations with the
Neighbor and its conflicts, and the relation Torture-Violence-Death.
Starting from this theme, in the fourth and last chapter we will establis the
relation of these concepts with the situation lived by characters of the play.
Throughout the play, we can notice by the dialogues what is deep inside the
behavior of individuals who face torture and how the relationship between tortured
people and tourterers and developed.
Also the eventual profile changes front to war and violence, wich will cause,
in many times, sudden change of attitude in the characters.
By confronting Sartre’s philosophy aspects with the cutting-edge situations
lived by characters in the play, we want to prove that those situations lead mem to
make choics every moments, wich implies in the full exercise of their freedon.
And the choices lead mem to stand against the consequences of action,
wich implies in the essence of moral and a whole life.
SUMÁRIO
1 – APRESENTAÇÃO _________________________________________1
2 – SARTRE E O TEATRO DE SITUAÇÕES________________________4
CAPÍTULO I -A LIBERDADE SARTRIANA E AS ESCOLHAS DO HOMEM 1.1 - A concepção sartriana de Liberdade_________________________13
1.2 - A Responsabilidade do homem pelas suas escolhas____________37
1.3 - A Relação da Liberdade com a Moral e os Valores______________42
1.4 - Sartre e o caráter absurdo da morte_________________________47
CAPÍTULO II – A RELAÇÃO EU-OUTRO SEGUNDO SARTRE 2.1 - Considerações acerca da existência do Outro__________________52
2.2 - O Outro: um mal necessário________________________________62
2.3 - O Olhar x O conflito de Liberdades___________________________69
CAPÍTULO III – TORTURA, VIOLÊNCIA E SITUAÇÕES-LIMITE 3.1 - O problema da violência e o animal humano relatado em três
momentos da obra de Sartre________________________________________75
3.2 - A Tortura na visão de Sartre_______________________________81
3.3 - O termo Situações-Limite como parte integrante do Teatro de
Situações de Sartre________________________________________________87
CAPÍTULO IV – CONSIDERAÇÕES SOBRE A PEÇA “MORTOS SEM SEPULTURA DE JEAN-PAUL SARTRE”
4.1 – Mortos sem Sepultura____________________________________92
4.2 – As personagens em meio a situações de Liberdade e Escolha_____96
4.3 – Tortura, violência e Situações-Limite no contexto da peça_______109
4.4 – O conflito expresso nas Relações com o Outro________________122
4.5 – Outros aspectos da Filosofia de Sartre encontrados na peça_____125
CONCLUSÃO______________________________________________130
APRESENTAÇÃO
A análise de alguns aspectos da filosofia de Jean-Paul Sartre encontrados
ao longo da peça Mortos sem Sepultura constitui o tema deste trabalho.
No talento de muitas facetas de Sartre, o teatro talvez seja o seu lado mais
forte, posto que através de suas peças ele conseguiu colocar em cena quase a
totalidade de seus temas filosóficos e políticos. A maioria das peças de Sartre
possui forte tendência política1.
Nossa escolha recaiu sobre este tema pelo fato de a peça abordar vários
aspectos da filosofia de Sartre, entre eles a Liberdade, Tortura e os conflitos
existentes nas Relações com o Outro.
Escrita por Sartre em 1945 e encenada em Paris em 1946 logo após o
término da Segunda Guerra Mundial numa época em que os fatos reais ainda
estavam recentes na memória de todos, a peça chocou platéias com as cenas de
tortura e os gritos lancinantes dos maquis. Mas o propósito principal de Sartre era
mostrar as personagens em seus momentos de livre escolha diante das situações
a elas impostas.
Sartre definiu este gênero teatral como um Teatro de Situações, sendo este
considerado por ele, como o único adequado a nossa época. Assim, nessa
modalidade de teatro, o enfoque principal passa a ser a ação das personagens, no
sentido de que a ação não é determinada pelo seu caráter, mas seu caráter é
determinado pela ação. Este ato de escolha das personagens em determinadas
situações lança por sua vez o expectador acima do plano psicológico para colocá-
lo no plano moral do ato.A situação é o conjunto de condições, barreiras e de
circunstâncias sempre ”situadas” e coagidas. Entretanto, por mais obstáculos que 1 Sartre iniciou sua trajetória teatral com a peça “As Moscas” em 1943, cujo texto atenta para a força crítica implícita na lenda de Orestes, um dos mais famosos personagens da mitologia grega, que volta do exílio para vingar a morte do pai (Agamêmnon) assassinado, matando a própria mãe, Clitemnestra e o amante dela, Egisto, usurpador do trono de Argos. Com a peça, Sartre pretendia chamar a atenção para o problema da invasão alemã na França na Segunda Guerra Mundial. Havia um simbolismo evidente na peça, que demonstrava uma relação nítida da cidade de Argos com a França ocupada pelos nazistas e governada por Vichy. Egisto representa o usurpador alemão e Clitemnestra, o colaboracionista francês. Assim, a peça era na verdade um apelo à liberdade dos franceses, para que como Orestes, a comprometessem na destruição do Egisto alemão e da Clitemnestra colaboracionista, por mais caro que fosse o preço a ser pago.
1
a situação represente, ela nunca chega a anular nossa condição essencialmente
livre. Muito pelo contrário: “nunca fomos tão livres como durante a ocupação
alemã”, afirmou Sartre certa vez. Ainda de acordo com ele, cabe ao dramaturgo
inserir em sua peça conflitos que estejam engajados 2 em uma vida real. E dada à
diversidade do público, ele deve escolher situações tão gerais que digam respeito
a todos.
Dessa forma, Sartre comparou o Teatro de Situações a um Teatro da
Liberdade, uma vez que em sua obra, não é possível falar em liberdade sem se
referir à situação. A liberdade se concretiza na ação, mas para se afirmar, precisa
de um campo de resistência no mundo.A situação é o obstáculo que se deve
transpor para se realizar os fins escolhidos. Sem a situação, a liberdade acabaria
por se dissipar.
As situações-limite são definidas por Sartre como situações extremas nas
quais a liberdade está sujeita a maiores pressões, e é neste dado momento que
ela se afirma mais claramente, através das escolhas feitas pelo indivíduo.
Dessa forma, ao fazermos a leitura da peça em questão, procuramos
identificar alguns aspectos da filosofia de Sartre nela contidos. Inicialmente,
analisaremos a questão da Liberdade, cerne da filosofia sartriana, estando esta
diretamente envolvida com a escolha. Em “Mortos sem Sepultura”, os resistentes
se encontravam presos num sótão aguardando o interrogatório que culminaria em
uma sessão de tortura, e tinham de fazer suas escolhas a cada momento. Eles
deveriam escolher como se comportariam perante a tortura, decidindo até que
momento a dor se tornaria insuportável, resistindo bravamente ou se acovardando
e delatando seu chefe. A escolha recairia também sobre o modo como viriam a se
comportar perante seus companheiros. Alguns se revelariam covardes, outros
2 Alguns tradutores de Sartre explicam que a palavra francesa “engagement” tem duas implicações: em primeiro lugar, a de que estamos mergulhados na política, de bom ou mal grado, ou seja, o indivíduo toma consciência de sua responsabilidade total, diante de sua situação histórica e social e decide agir para modificá-la ou denunciá-la. Em segundo lugar, a de que temos de aceitar voluntariamente as conseqüências de uma determinada posição política em virtude das circunstâncias desagradáveis que a cercam. De acordo com Bentley, todos os artistas sérios são engajados politicamente.Nesse caso, não se trata apenas de saber se o artista tem um ponto de vista político formado, trata-se de saber se o seu ponto de vista político faz parte integrante de sua obra. Para saber mais, consultar: BENTLEY, E. O Teatro Engajado.Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1969.
2
demonstrariam coragem, e haveria ainda, aqueles que mudariam de postura
diante do desenrolar dos fatos.
Partindo dessa perspectiva, pretendemos no primeiro capítulo de nosso
trabalho tecer breves considerações sobre a concepção sartriana de Liberdade.
Para tanto, utilizamos como referencial teórico a obra magna de Sartre O ser e o
nada, na qual encontramos os elementos necessários para compor uma idéia
central sobre o significado da liberdade para Sartre.
No segundo capítulo, discorreremos sobre As Relações Concretas com o
Outro”, nos atendo principalmente no eterno conflito existente nessas relações.
Em uma leitura mais atenta da peça, pudemos identificar vários exemplos destes
conflitos, tanto nas relações entre os torturadores, como entre os resistentes, que
por várias ocasiões agiram de má-fé, deixando de assumir suas culpas diante dos
fatos, lançando-as sobre seus companheiros.
Não obstante, no terceiro capítulo, há um novo problema a se investigado: a
relação tortura-violência-morte. O tema da tortura aparece com uma insistência
quase obsessiva na obra de Sartre. Talvez esse fato se deva a alguma indignação
que ele possuía em relação à espécie humana, ou até mesmo ao fato de ter vivido
num período que abrangeu a duas guerras mundiais, e ter participado de uma
delas. A violência também parece ter sido algo preocupante para Sartre, conforme
podemos notar através de seu envolvimento com questões políticas que
envolviam repressão, como a Guerra da Argélia, a questão judaica; o racismo, etc.
A violência e a tortura nos remetem a uma outra questão: a morte. Para discorrer
sobre este assunto, Sartre reservou cerca de vinte páginas de O ser e o nada,
demonstrando dessa forma, ver a morte como “um fato contingente”, e afirmando
que “é absurdo que tenhamos nascido; é absurdo que tenhamos de morrer”.
No quarto e último capítulo, pretendemos fazer as devidas relações dos
aspectos da filosofia de Sartre analisados nos capítulos anteriores, com a peça,
procurando dessa forma, obter um olhar mais aprofundado sobre Mortos sem
Sepultura.
3
SARTRE E O TEATRO DE SITUAÇÕES
1 – JEAN-PAUL SARTRE: NOSSO FILÓSOFO EM QUESTÃO Jean-Paul Charles Aymard Sartre nasceu em Paris a 21 de junho de 1905,
filho de Jean-Baptiste Sartre, um oficial da marinha, e Anne-Marie Schweitzer,
única filha mulher e caçula da família. O pai de Sartre morreu quando o menino
tinha apenas dois anos, vitimado por uma febre intestinal contraída na
Cochinchina. Assim, Anne-Marie com apenas vinte anos, foi morar com o pequeno
Sartre na casa de seus pais. Charles Schweitzer, avô de Sartre, era visto como a
pessoa mais importante naquela casa e criou seu neto com um misto de carinho,
mimos e extremo rigor. Futuramente ele seria visto por Sartre como a pessoa que
exerceu maior influência em sua formação e sua subseqüente carreira. A posição
de Anne-Marie dentro da nova casa era de subordinação completa.
Schweitzer, avô de Sartre, era um velho e austero professor de línguas de
severos costumes calvinistas que ensinou a seu neto a disciplina, o rigor e o amor
pelas palavras. Entretanto, Sartre cresceu presenciando o conflito de crenças
religiosas em sua família que se dividia em protestantes de um lado e católicos de
outro. Isso fez com que ele adquirisse grande aversão pela fé religiosa, vindo
futuramente a optar pelo ateísmo.
Até os doze anos Sartre não manteve contato com outras crianças de sua
idade por ordem de seu avô, que contratou professores particulares para ensinar
seu neto em casa. Isso fez com que Sartre se refugiasse num mundo imaginário,
alimentado pelos livros.
A mãe de Sartre tornou a se casar, quando ele possuía a idade de doze
anos e o menino foi levado pelo padrasto para La Rochelle, onde este trabalhava
no porto. Após dois anos Sartre é enviado de volta a Paris para prosseguir seus
estudos. Mas o projeto original de Sartre já estava elaborado na infância: o de
escrever.
4
Em 1924 aos dezenove anos, Sartre ingressa na Escola Normal, no curso
de filosofia, onde conheceu Simone de Beauvoir que seria sua companheira por
toda a vida. Terminado o curso de filosofia, Sartre teve de prestar o serviço militar,
e o fez em Tours, na função de meteorologista. Ao estourar a Segunda Guerra
Mundial Sartre foi convocado para servir nesta mesma função. Em junho de 1940,
caiu prisioneiro e foi encerrado no campo de concentração em Trier, na Alemanha,
do qual conseguiu escapar após um ano, portando um falso atestado médico que
conseguira.
De volta a Paris, fundou o grupo Socialismo e Liberdade, a fim de colaborar
com a Resistência3 francesa, produzindo panfletos clandestinos contra a
ocupação alemã e contra os colaboracionistas4 franceses. Mas a guerra ainda
continuaria por mais três anos.
2 - O PANORAMA DA FRANÇA NA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL E O SURGIMENTO DO TEATRO DE SITUAÇÕES
Com a crescente escalada nazista na Europa, a partir de 10 de maio de
1940, Hitler começou a ofensiva contra a França. Os alemães invadiram a Bélgica
e a Holanda. A queda da resistência belga tornou crítica a situação: 270 mil
ingleses e 100 mil franceses aguardavam a retirada de barcos ingleses protegidos
3 Resistência - Organização que, num país ocupado por forças militares estrangeiras, reúne civis e militares empenhados em combater o inimigo com ações de sabotagem, guerrilha, etc. Na Segunda Guerra Mundial, a França possuía importantes movimentos de Resistência, cujos esforços eram coordenados por um conselho nacional formado em maio de 1943, através do qual organizaram-se os maquis (resistentes), que uma vez armados, desenvolveram suas atividades particularmente em Glières (fevereiro de 1944) e Vercors (março-abril). Mas os alemães aumentaram a repressão, conduzida pela Gestapo, ocasionando prisões de resistentes e de judeus, e deportando estes para campos de concentração. 4 Colaboracionismo – Estabelecida por ocasião da entrevista do Marechal Pétain com Hitler em Montoire (outubro de 1940), a política de colaboração era no princípio livremente consentida pelo governo de Vichy, que inicialmente acreditava que ela poderia trazer benefícios à França.Ela se traduziria na prática, por uma exploração intensiva das riquezas do país (fornecimento de produtos agrícolas e industriais), pela transferência da mão de obra para a Alemanha, mas também por um apoio militar efetivo, com a criação da Legião de voluntários franceses (LFV) em 1941 e unidades francesas de Waffen SS ( fevereiro de 1943), ou ainda a milícia francesa criada por J.Darnard em janeiro de 1943. Impopular e minoritária, a colaboração tornou-se eco da propaganda nazista, anti-semita e anticomunista, cujos temas eram desenvolvidos no rádio bem como na imprensa colaboracionista.Com a libertação, os chefes da colaboração foram julgados e a seguir executados.
5
pela frota aliada, constantemente bombardeada pela aviação alemã: todo o
material bélico desses exércitos caiu nas mãos dos alemães, e cerca de 40 mil
franceses foram aprisionados. Avançando para o sul o exército alemão venceu os
franceses, obrigando o governo a fugir para Tours, e depois para Bordeaux. No
dia 14 de junho de 1940, Paris caiu em poder dos nazistas. Em todos os países
ocupados pelos nazi-fascistas organizavam-se movimentos de resistência.
Associações clandestinas e nacionalistas procuravam paralisar o inimigo por meio
de sabotagem e ataques de surpresa, dificultando dessa forma, a ação dos
alemães. Esses movimentos tiveram grande importância especialmente na
França, Iugoslávia, Polônia e Grécia.
Somente após quatro anos na guerra, a França conseguiu sair vitoriosa
juntamente com os exércitos aliados, após estes se utilizarem uma determinada
estratégia, na qual cercaram a Alemanha por todos os lados, resultando na
rendição daquele país.
Todo esse contexto demonstrado nas linhas anteriores formou um ambiente
propício para o surgimento do Teatro de Situações5 sobre o qual iremos discorrer
a partir de agora.
O teatro do século XX é tido como teatro político6, por ter havido vasta
conscientização7 por parte dos dramaturgos no que concerne aos problemas
5 Alguns estudiosos defendem a idéia de que Sartre não foi o primeiro a fazer Teatro de Situações. As tragédias gregas já eram consideradas como pertencentes a essa categoria teatral. No século II antes de nossa era, a sociedade grega já se encontrava bastante abalada por contradições internas, com as crescentes revoltas de escravos e a intervenção dos romanos nos assuntos helênicos. Ésquilo, Sófocles e Eurípedes são exemplos de dramaturgos que definiram muito bem a tragédia grega no século V a.C. Numa estrutura rígida, o coro desempenha o papel central, representando principalmente, a “polis”.É a sociedade para os gregos, uma espécie de ordem universal que se faz presente julgando, comentando, criticando, e mesmo interferindo no conflito dos homens. As ações trágicas nas peças desses dramaturgos resumem-se em certo sentido, na desesperada e inútil luta dos homens contra o destino que lhes é imposto de forma inapelável, pelos deuses. Já a comédia clássica grega teve seu mais legítimo representante em Aristófanes, crítico implacável da ordem social. Seu teatro foi marcado pelo vigor sensorial, pela capacidade de incorporar em suas sátiras, elementos de uma obscenidade. (cf. PEIXOTO, F. O que é teatro, pp. 69-70). 6 Teatro político – Tomando-se política no sentido etimológico do termo, concordar-se-á que todo teatro é necessariamente político, visto que ele insere protagonistas na cidade ou no grupo. A expressão designa de maneira mais precisa o teatro popular, o teatro épico, o teatro documentário e o teatro de massa.Estes gêneros têm por características comuns uma vontade de fazer com que triunfe uma teoria, uma crença social, um projeto filosófico.A estética é então subordinada ao combate político até o ponto de dissolver a forma teatral no debate de idéias. 7 Podemos tomar a peça Os tecelões como um bom exemplo dessa conscientização e reflexão havida por parte de alguns dramaturgos da época.Escrita por G. Hauptmann, e encenada em 1892, a peça mostra uma greve de operários na região da Silésia, esmagada pelas forças de repressão.Levou pela primeira vez para o palco
6
enfrentados pelo homem neste século8. Entre estes, podemos destacar: guerras,
massacres, genocídios e outros tipos de violências cometidas pelo homem contra
seres de sua própria espécie. O filósofo, dramaturgo e romancista Jean-Paul
Sartre teve relevante participação como testemunha destes problemas que
atingiram a espécie humana e o mundo naquela época. A guerra mudara muita
gente, e Sartre em particular. A liberdade experimentada por seu individualismo
antes da guerra acabara-se e naquele momento, ele necessitava de um projeto de
ação que incluísse todos os homens.Iniciando sua carreira de dramaturgo, optou
por um novo gênero, o qual ele chamou de Teatro de Situações, que ele considera
o único adequado à nossa época. Partindo do pressuposto de que o homem é
livre em determinadas situações, ele faz escolhas o tempo todo, dentro dessas
situações.O termo utilizado por Sartre, foi primeiramente usado por Karl Jaspers9,
que define situações-limite como situações extremas que nos colocam em face
dos fatos mais inesperados da existência humana: o sofrimento, o acaso e a
morte. Para Sartre, são situações como estas que fazem com que o homem tome
consciência de si mesmo. Juntamente com Albert Camus, Sartre fez com que o
existencialismo francês fosse particularmente fértil no campo teatral. A filosofia
existencialista esteve particularmente preocupada com o indivíduo, sua natureza
interior e seu destino. Camus10 e Sartre11 escreveram peças que trouxeram novas
alemão as lutas sociais do proletariado, marcando época no desenvolvimento de uma dramaturgia realista (“Os tecelões” foi escrita a partir de documentos sobre a revolta operária ocorrida em 1844 na Silésia). 8É importante lembrar, que ainda no fim do século XIX houve uma grande e contundente reflexão sobre a condição humana na sociedade burguesa. Gerhardt Hauptmann (autor de “Os tecelões”) já utilizava na época elementos da estrutura de um teatro não dramático e antecipava o teatro político revolucionário, elaborando acusadores painéis sociais: seus personagens são a massa miserável debatendo-se entre a fome e o álcool, entregues à passividade e conduzindo a revolta contra a opressão. São temas dos novos tempos que invadem o palco com inusitado vigor. 9 Jaspers, Karl – Filósofo alemão contemporâneo (1883-1969). Jaspers chama as Situações-Limite àquelas em que me encontro sempre que não posso viver sem luta nem dor, em que inevitavelmente assumo a culpa ou em que tenho de morrer. Jaspers compara as situações-limite a um muro contra o qual se embate, porque é da queda que o homem pode se erguer de novo. Encarar as situações-limite sem fugir e em as negar é o único modo que ele tem de poder decifrar ou ver o que está para além delas. Porque elas estão lá, sem que sejam previsíveis nem superáveis, sem que se possa produzir alguma outra coisa, ser explicadas ou modificadas. Não é possível estruturar uma teoria geral das situações-limite. Luta, dor, culpa ou sentimento de morte são vistos por ele como situações-limite, e têm sua origem na própria liberdade. 10 Camus, Albert (1931-1960) escreveu quatro peças: Calígula (escrita em 1938, estreou em 1945), O mal-entendido (1943); Estado de Sítio (1948) e Os justos (1949). Sua filosofia foi basicamente fundamentada sobre dois pilares fundamentais: o absurdo e a revolta. Sua definição de absurdo diz respeito ao confrontamento da irracionalidade do mundo como desejo de clareza e racionalidade que se encontra no
7
esperanças para o teatro francês. Algumas delas pareceram representar uma
nova dramaturgia, uma maturidade recém-adquirida nessa tradição. Assim como
Sartre, Camus também engajou-se no movimento de Resistência durante a
Segunda Guerra. Seu principal papel nesta missão foi o de jornalista, profissão
que o obrigou a participar ativamente dos acontecimentos políticos daquela época.
Apesar disso, duas das peças escritas por Camus foram consideradas por críticos
como pertencentes ao chamado Teatro do Absurdo12 (que teve como precursor
Luigi Pirandello13, outro importante dramaturgo daquela época). São elas: Calígula
(1938) e O Mal-Entendido (1943). Especificamente em Mortos sem Sepultura,
Sartre aproxima-se ainda de outros dramaturgos na concepção de que a guerra e
a violência fazem com que o homem mude de postura, mas é diferente daqueles
que acreditavam que o teatro deveria trazer à tona o homem e sua relação com a
classe social a que ele pertencia, como Erwin Piscator 14e Bertolt Brecht15.
homem. Quanto ao conceito de revolta, ele está vinculado, em última análise, busca inconsciente de uma moral. Nas palavras de Camus: ela é um aperfeiçoamento do homem, ainda que cego”. 11 O teatro de Sartre e Camus foi ainda denominado “um teatro de tese”. Neste, o espetáculo é utilizado como instrumento para uma demonstração de questões essenciais do mundo moderno, que segundo estes dois dramaturgos, deveriam ser discutidos em cena. 12 Teatro do Absurdo – Expressão considerada pelas críticas alemã e inglesa, sobretudo após as publicações do discurso obtido sobre o Teatro do Absurdo, de Martin Esslin (1961), tendo por referência a corrente dramática anti-realista (em sua aparência exterior), antipsicológica, anti-retórica e extremamente caustica sobre a condição humana, que aproxima alguns autores do século XX (segunda metade): Samuel Beckett (Esperando Godot, Fim de Festa, Cinzas), Eugène Ionesco (A cantora careca, As cadeiras, O Rinoceronte), Albert Camus (Calígula, O mal-entendido), Arthur Adamov (A paródia, A invasão, O ping-pong) e Jean Genet (As criadas, Alta Vigilância, O balcão). Teatro de situações ilógicas, em que se manifestam contradições ou ausências de significado nos discursos e ações cotidianas, a angústia permanentemente experimentada pelo homem contemporâneo, a visão derrisória da condição humana, as artimanhas cínicas e inesgotáveis do poder de submissão.Comumente, os diálogos tornam-se jogos sem solução, já que, como assevera Adamov “ninguém entende ninguém”. As duas guerras mundiais, os totalitarismos, os valores burgueses fúteis, a ignorância ou a credulidade das massas e as narrativas de Kafka e de Camus exercem influências consideráveis sobre as perspectivas pessimistas que se projetam no Teatro do Absurdo. Nele, como observa Hildesheimer, há muitas perguntas, mas nenhuma resposta razoável ou convincente.Corre-se perversa e historicamente para o nada. Para saber mais, é válido consultar: CUNHA, N. Dicionário de Teatro.Porto Alegre: L&PM, 2001, 3a. ed. 13 Pirandello, (Luigi). Dramaturgo e escritor italiano (1867-1936).Em seus romances, contos, e, sobretudo em suas peças de teatro, salienta-se constantemente a obsessão pela pluralidade do ser individual e a inútil luta que o homem trava para atingir a verdade de sua própria identidade. Esta, sempre aparece fragmentada em hipóteses e aparências que se anulam umas às outras. Pirandello foi um homem de teatro por excelência. Entre as peças que escreveu destacam-se: Liolá (1916), Assim é se lhe parece (1917); Seis personagens à procura de um autor (1921), Henrique IV (1922) e Esta noite se improvisa (1930). 14 Diretor artístico de grande importância para o teatro internacional, deixando forte influência para aqueles que atuam neste campo.Essencialmente político, apoiado no marxismo é seu teatro. Seu livro Teatro Político (1929) é um convicto manifesto de projetos, um relato de uma trajetória difícil e contraditória, e uma reflexão vigorosa capaz de estimular qualquer conceituação. Piscator defende a arte como um meio, e não como um
8
Dessa forma, diversas situações que ocorrem durante nossa existência
podem ser consideradas situações-limite, e ao nos depararmos com elas, temos
de fazer nossas escolhas. É importante lembrar, que ao fazer uma opção, o
homem abre mão de todas as outras escolhas possíveis, ficando dessa forma,
totalmente responsável pela decisão tomada e suas possíveis conseqüências.
“Se é certo que o homem é livre numa determinada
situação e que se escolhe a si próprio e em por essa situação,
teremos de apresentar no teatro situações simples e humanas e
liberdades que se escolhem nessas situações. O que o teatro pode
mostrar de mais emocionante é um caráter em processo de
formação, o seu momento de escolha, de livre decisão, o que
compromete uma moral e toda uma vida. E como só há teatro
realizando a unidade dos expectadores, é necessário encontrar
situações tão gerais, que sejam comuns a todos. (...) Parece-me
que a tarefa do dramaturgo é escolher entre situações-limite, a que
melhor exprima suas preocupações e apresentá-la ao público,
como a questão que se opõe a certas liberdades”.16
fim: está subordinada a tarefas políticas urgentes. O teatro precisa assumir-se enquanto instrumento de agitação e propaganda, sem abdicar de sua condição de arte: quanto mais artístico, mais político.Piscator buscava em suas peças retratar os temas mais diversos da Alemanha da década de 1920: petróleo, mazelas do capitalismo, guerra e revolução. Revolucionou a técnica teatral com inovações como o palco giratório, a esteira rolante, o filme, dados estatísticos e complexos mecanismos nos bastidores: para revelar a engrenagem da História sob um ponto de vista materialista e revolucionário, o palco precisa estar equipado.Sobre a trajetória deste dramaturgo, consultar: PISCATOR, E. Teatro Político. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968. 15 Opondo-se ao drama aristotélico (que apresentava apenas relações inter-humanas individuais – objetivo essencial do drama rigoroso da “peça bem-feita”), Brecht considerava que a forma épica de teatro é a única capaz de apreender aqueles processos que constituem para o dramaturgo a matéria para uma ampla concepção de mundo. O homem concreto só pode ser compreendido com base nos processo dentro e através dos quais existe. Brecht teve grande relevância para a Alemanha da década de 1920. Além disso, era poeta e romancista. Transformou o fazer teatro.Pode-se afirmar que seu teatro era político, e, sobretudo, social.Provocando a discussão em suas encenações, trouxe o teatro dialético, o qual oferecia peças que suscitassem a discussão. Sobre a biografia de Brecht, é válido consultar: PEIXOTO, F. Brecht, vida e obra. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1978. 16 SARTRE, J.P. Situations II. Paris: Gallimard, 1948.
9
Foi através de suas peças de teatro que Sartre tornou-se realmente
famoso, tendo conseguido colocar em cena quase a totalidade de seus temas,
entre eles, a liberdade, vista por Sartre como o cerne de sua filosofia, e tida por
ele como aspecto imprescindível na obra de arte. Dentro dessa perspectiva, Sartre
afirma que:
“A finalidade da obra de arte é recuperar esse mundo,
mostrando-o tal como ele é, mas como se tivesse origem na
liberdade, sendo na cerimônia do espetáculo (ou da leitura) que
essa recuperação é consagrada. Eis o papel fundamental da
liberdade na obra de arte: a obra de arte é um ato de confiança na
liberdade, e uma vez que os expectadores e autor só conhecem
essa liberdade para exigir que ela se manifeste, a obra de arte
pode ser definida como uma apresentação imaginária no mundo,
na medida em que exige a liberdade humana, de forma que o
escritor, homem livre que se dirige a homens livres, tem apenas um
único tema: a liberdade”.17
No decorrer de nossas vidas nos deparamos constantemente com
situações-limite que nos obrigam a tomar decisões imediatas e viver suas
conseqüências, o que implica afirmar que em todos esses casos está em questão
o exercício da liberdade do homem.A liberdade é definida por Sartre como um
recuo do ser-em-si. Essa liberdade definida ontologicamente não é uma noção
abstrata, mas deve se manifestar concretamente através da escolha de uma ação,
da tomada de decisão.Ser livre é realizar escolhas concretas. Não há liberdade
em abstrato, ela é sempre situada e coagida. Entretanto, é pelos obstáculos que
se interpõem à realização de um ato concebido, pela distância entre o fim
escolhido e a consciência (distância imposta pela existência real do mundo) que
se realiza a liberdade, e de acordo com Sartre, esta se afirma mais claramente
17 SARTRE, J.P. Que é a literatura? São Paulo: Ática, 1987, p.39.
10
quando sujeita a maiores pressões. Ao relacionar essas idéias à sua concepção
de teatro, Sartre esclarece que o homem só se define pela ação e o teatro é
essencialmente ação.Tal concepção é reforçada em uma série de textos,
conferência e entrevistas de Sartre sobre teatro, que mais tarde vieram a compor
o livro Um Thèatre de Situations, no ano de 1973. Nesses textos, o filósofo dizia
criar personagens que são forçadas à escolha e à ação. Estas personagens vão
formando suas características e constituindo seus destinos a partir de situações
vividas em perfeita harmonia com o princípio de que a “existência precede a
essência” e com a visão do homem como projeto vir-a-ser. Ao Teatro de Situações
de Sartre opõe-se o teatro clássico, cujo conflito essencial seria desencadeado por
“caracteres” formados a priori. Por exemplo, Orestes de Eurípedes chega a Argos
com um destino traçado, o Orestes de Les Mouches chega à cidade sem uma
determinação definida, a possibilidade de vingança se constitui a partir da relação
que se estabelece com sua irmã, Electra. Sartre confirma este raciocínio, quando
afirma que:
“A situação é um chamado: ela nos cerca; ela nos propõe
soluções, nós devemos nos decidir. É para que a decisão seja
profundamente humana, para que ela coloque em jogo a totalidade
do homem, a cada vez é preciso colocar em cena situações-limite,
quero dizer, que apresentam alternativas em que a morte é um dos
termos. Assim, a liberdade se descobre em seu mais alto grau
porque ela se aceita para poder se afirmar”.18
Nesse momento, tudo o que o ator pode faze é persuadir por contágio. Seu
ofício é reproduzir através de palavra por palavra, gesto por gesto, a totalidade da
obra, promovendo sobre o expectador um contágio afetivo e lançando este para
dentro de seu personagem.
18 SARTRE, J.P. Situations II. Paris: Gallimard, 1948.
11
Autor e ator sabem que no exercício de seu ofício, a única maneira de
atingir os expectadores é fasciná-los o máximo possível.
“Eis porque no teatro, mais do que em qualquer outro gênero
literário, é preciso escrever com palavras fortes, palavras que
impressionem, posto que as réplicas passam rápido, e não se pode
retomá-las para melhor compreendê-las. Além disso, é preciso
também pôr em cena atitudes teatrais, isto é, é preciso que os
gestos e as palavras postas em cena admitam certa ênfase para
impressionar o expectador, é preciso que os atos representados
assumam uma certa monstruosidade”.19
Dentre as várias peças escritas por Sartre, escolhemos Mortos sem
Sepultura20 para ser analisada com certa profundidade em nosso trabalho. Ao
fazermos a leitura da peça, identificamos nela alguns aspectos relevantes da
filosofia de Sartre, sobre os quais pretendemos discorrer no percurso desta
dissertação. Entre estes, podemos destacar principalmente: a relação liberdade-
escolha-responsabilidade, a tortura e os conflitos nas relações com o outro.
19 ALVES, I.S. O drama da existência: Estudos sobre o pensamento de Sartre. São Paulo: Humanitas, 2003. 20Vale lembrar que Mortos sem Sepultura foi encenada no Brasil, primeiramente no TBC (Teatro Brasileiro de Comédia, situado em São Paulo), com direção de Fernando Peixoto, no ano de 1954.Nessa época, a peça não teve muita repercussão. Já nos anos 70 em plena ditadura militar, a peça estreou no Teatro Maria Della Costa, também em São Paulo, onde permaneceu por várias semanas, obtendo desta vez uma melhor aceitação por parte do público.O cartaz da peça foi elaborado pelo artista Elifas Andreatto, e mostrava um prisioneiro amarrado em um pau-de-arara (símbolo de tortura típico do Brasil), mas com um soldado ao fundo, portando uma farda nazista. Uma grande quantidade desses cartazes foram vetados e apreendidos pela censura, tão logo ocorreram as primeiras apresentações, sob a alegação de que “o pau-de-arara é uma invenção brasileira”.
12
CAPÍTULO I
A LIBERDADE E AS ESCOLHAS DO HOMEM.
1.1- A CONCEPÇÃO SARTRIANA DE LIBERDADE
Neste ponto de nosso trabalho, pretendemos destacar alguns aspectos da
concepção sartriana de liberdade, procurando nos ater em algumas questões que
consideramos relevantes para nossa pesquisa.
Para Sartre, a liberdade surge na origem do Para-Si. Este é definido por
Sartre como o caráter do ser que tem consciência de sua existência. A
consciência é um “ser-para-si, porque é auto-reflexiva, visto que pensa sobre si
mesma”.
Na concepção de Sartre, a existência precede a essência, mas esse fato
aplica-se a um único ser: o homem, pois só ele é livre, o que significa que ao
contrário de outros seres, o homem não é predeterminado.
Primeiramente o homem existe, se descobre, surge no mundo, e só depois
se define. Inicialmente ele não é nada. Não existem idéias inatas, anteriores ao
surgimento do homem e destinadas a orientar sua vida, indicando que caminho
ele deve seguir. Só depois será alguma coisa, e tal como a si próprio fizer. O que
ele virá a ser dependerá de suas escolhas. No tocante a essa questão Sartre
define que:
“O homem é antes de mais nada um projeto que se vive
subjetivamente, nada existe anteriormente a esse projeto. Nada há
no céu inteligível, e o homem será antes de mais nada o que tiver
projetado ser. Não o que ele quiser. Porque o que entendemos
vulgarmente por querer é uma decisão consciente”.21
21 SARTRE, J.P. O ser e o nada. São Paulo: Vozes, 1997, p.181.
13
Na citação vista anteriormente Sartre mencionou a palavra “projeto”, termo
muito utilizado por ele em sua filosofia. Portanto, aqui se faz necessário
esclarecermos o significado de tal palavra, já que ela se encontra inserida no
próprio conceito de liberdade sartriana.
Sartre define como projeto a propriedade da realidade humana de ser
continuamente lançada adiante de si e de estar sempre no futuro, ou seja, em tudo
o que fazemos, participamos daquela ação no momento presente, mas já sabendo
aonde queremos chegar, ou seja, já prevendo qual será o nosso objetivo final
sobre aquela ação. Por exemplo, nesse momento escrevemos esta pesquisa,
porém já estamos pensando na conclusão deste trabalho, ou melhor, no fim de
nosso projeto, na totalidade a alcançar. O homem não é nada mais do que o seu
projeto, só existe na medida em que o realiza através de seus atos.
Estamos para além de tudo o que fazemos, sempre no futuro em relação a
nós mesmos. Paulo Perdigão nos dá alguns exemplos pertinentes a este aspecto
da filosofia de Sartre:
“A linguagem, por exemplo: ao falar ou escrever, estou já
no fim da sentença, no significado geral do que pretendo
expressar. Ao caminhar em uma direção, sou orientado pelo fim
futuro que projetei: levanto-me para apanhar um livro na estante
situada a certa distância e, se não me desoriento no meio do
caminho, é porque cada um dos meus movimentos é determinado
pelo futuro projetado (o ato de ler o livro). O corpo, também é
passado para a consciência. Estou sempre à frente de meu corpo:
em um jogo de tênis, a minha consciência já está no gesto futuro
de rebater a bola enquanto o corpo é passado com relação a esse
gesto futuro, e tenho de conduzí-lo até lá. Sem o futuro, não
seríamos sequer capazes de dar um passo orientado, esboçar o
mais leve gesto coordenado”.22
22 PERDIGÃO, P. Existência e liberdade. Porto Alegre: L&PM, 1995, p.82.
14
Tomemos um outro exemplo: um professor quando entra na sala para
ministrar uma aula, deverá ter projetado com antecedência o conteúdo a ser
ensinado para seus alunos, ou seja, ele deverá ter bem definido o ponto no qual
ele pretende chegar, e qual será a conclusão daquela aula.
O mesmo ocorre com um palestrante. Antes de proferir sua explanação
sobre determinado tema, ele necessitará de um projeto previamente estabelecido
sobre os assuntos que serão abordados na referida palestra, para que ele possa
ter dessa forma, seus objetivos alcançados.
Porém, cabe-nos lembrar, que o projeto original ao qual Sartre se refere
não é algo decidido nem determinado definitivamente, pois se trata de um projeto
sobre a qual não temos consciência plena, mas não pode ser definido como
inconsciente. Por isso, ele não é uma determinação definitiva do para-si, e sim,
uma escolha que surge fundamentada pela sua própria liberdade, apesar de não
haver vinculação do projeto com a nossa vontade, ou como nos exemplifica
Perdigão:
“Ao agirmos voluntariamente, fazendo valer as nossas
decisões, apenas captamos pela reflexão o projeto já estabelecido
por nossa liberdade originária. Agimos assim para nos
recuperarmos enquanto ser que atua e decide, para nos
apropriarmos dessa liberdade originária através de uma decisão
reflexiva (posicionamos nossa própria consciência que somos
enquanto liberdade). Daí a satisfação que acompanha o ato
voluntário. Fiz o que quis. Mas o fim visado já estava anteriormente
posto: quando agimos por vontade a decisão já estava tomada”.23
23 PERDIGÃO, P. Existência e Liberdade.Porto Alegre: L&PM, 1995, p. 82.
15
Considerando essa afirmação, é lícito supor que a consciência apresenta
uma intencionalidade, e o para-si em seu ser mesmo, é intencional, ou seja: para
Sartre, todo ato humano é por princípio intencional. A liberdade é o ato de se fazer
como consciência de ser-no-mundo, ato de escolher a si como projeto existencial,
condição que se realiza de modo situado, sem que seja determinado senão pelo
próprio sujeito: o homem. Este é antes de mais nada, o seu fazer-se; é o que
escolheu para si mesmo. A noção de sujeito abarcada na filosofia sartriana é de
fundamental importância para o seu conceito de liberdade, uma vez que a
liberdade somente é liberdade de um sujeito cuja consciência é autônoma para
escolher, ou seja, é intencional. Dessa forma, o sujeito livre sartriano é aquele
elaborado na esteira da filosofia cartesiana, na medida em que Descartes
promulgou a liberdade do pensar e da consciência do sujeito. Nessa perspectiva
define Sartre:
“Como ponto de partida não pode existir outra verdade senão esta:
penso, logo existo, é a verdade absoluta da consciência que
apreende a si mesma. Qualquer teoria que considere o homem
fora desse momento em que ele se apreende a si mesmo, é de
partida, uma teoria que suprime a verdade, pois fora do cogito
cartesiano, todos os objetos são apenas prováveis e uma doutrina
de probabilidade que não esteja ancorada numa verdade
desmorona no nada, para definir o provável temos de possuir o
verdadeiro”.24
Dessa forma, a liberdade aparece como condição fundante do sujeito:
24 SARTRE, J.P. Questão de método. São Paulo: Abril Cultural 1987, p.54.
16
“Certamente, eu não poderia descrever uma liberdade que fosse
comum a outro e a mim, não poderia, pois, considerar uma
essência de liberdade. Ao contrário, a liberdade é o fundamento de
todas as essências posto que o homem desvela as essências
intramundanas ao transcender o mundo rumo às suas
possibilidades próprias”.25
Entretanto, é importante lembrar que entre Sartre e Descartes existe uma
diferença. Descartes inicialmente elaborou o raciocínio que definia o pensamento
como a essência do ser e que sua mente era separada do corpo. Naquele
momento, todo o que ele tinha, porém, era sua idéia de uma coisa pensante.
Assim, para mostrar que não estava sendo enganado, ele precisava provar a
existência de Deus, pois essa seria a única garantia de que nossas idéias são
claras e definidas são verdadeiras e que não estamos sendo iludidos por nenhum
gênio maligno. Assim, Descartes deu-se por satisfeito ao usar a prova de uma
versão ontológica de Anselmo e afirmar que a idéia de um Deus perfeito deve ter
uma causa. O homem é cheio de defeitos e não pode ser essa causa, de modo
que Deus deve ser a causa de nossa idéia da perfeição dele. Partindo desse
pressuposto, Descartes considerou que havia conseguido comprovar a existência
de Deus. Em Situações I, Sartre procurou definir a visão que Descartes tinha
sobre Deus, relacionando essa idéia à liberdade do homem, e ressaltando um
ponto em que discorda de Descartes, pelo menos em parte:
“Ora, o Deus de Descartes é o mais livre dos deuses que o
pensamento humano forjou; é o único Deus criador. Com efeito,
não está submetido a princípios – nem sequer ao da identidade –
nem a um bem soberano de que seria o único executor. Não criou
apenas os existentes, de acordo com regras que se teriam imposto
25 SARTRE, J.P. O ser e o nada.Petrópolis: Vozes, 1997, p.212.
17
à sua vontade, mas criou ao mesmo tempo os seres e suas
essências, o mundo e as leis do mundo, os indivíduos e os
princípios elementares. (...) Assim, Descartes oscila perpetuamente
entre a identificação da liberdade com a negatividade ou negação
do ser – o que seria a liberdade de indiferença – e a concepção do
livre-arbítrio como simples negação da negação. Em resumo,
faltou-lhe conceber a negatividade com produtora”.26
Porém, ao final de suas considerações sobre “A liberdade cartesiana”,
Sartre, diz “não censurar Descartes pelo fato de ter atribuído a Deus o que nos
pertence por direito” (no caso, a liberdade):
“Serão precisos dois séculos de crise para que o homem
recupere a liberdade criadora que Descartes atribuiu a Deus e para
que se conceba finalmente essa verdade, base essencial do
humanismo: o homem é o ser cuja aparição faz com que o mundo
exista. Mas não censuramos Descartes pelo fato de ter atribuído o
Deus o que nos pertence por direito; admiramo-lo principalmente
por ter, numa época autoritária, lançada as bases da democracia,
por ter seguido até o fim as exigências da idéia de autonomia e por
ter compreendido, muito antes de Heidegger, que o único
fundamento do ser era a liberdade”.27
Certa vez Sartre afirmou que o homem é livre mesmo quando preso em
uma cela. Mas como se explica tal afirmação?
26 SARTRE, J.P. Situações I. São Paulo: Publicações-Europa-América, 1947, pp.295-296. 27 Ibid, p. 301.
18
De acordo com Sartre, não devemos entender o verdadeiro conceito de
liberdade como o mesmo que “obter o que se quer”, mas sim, querer
autonomamente. Esse querer envolve toda a ação humana. O problema da
liberdade diz respeito ao querer e não ao poder (poder para alcançar o que o
querer indica) e é por isso que o sucesso não importa em absolutamente nada
para liberdade: não se é menos livre porque não se consegue o que quer, mas
seríamos não-livres (o que é impossível) se nosso querer fosse condicionado.
Então, no caso do homem preso numa cela mencionado anteriormente, não
se quer dizer que ele é sempre livre para sair da prisão, mas sim, que ele é
sempre livre para procurar se evadir, ele pode sempre projetar sua fuga. Já o
sucesso ou fracasso desse projeto não diz respeito à liberdade, pois é na ação
livre que o homem se constrói como sujeito. Assim, toda ação, escolha, objetivo
ou condição de vida são frutos da liberdade humana. E esta deixa de ser uma
conquista humana para ser uma condição de existência do homem. Nessa
perspectiva, a consciência do homem, ou na terminologia sartriana, o Para-si não
é algo prontamente determinado, as ao contrário, o Eu ou a consciência passa a
existir a partir do momento em que ela se lança no futuro, na concretização das
escolhas, sendo assim preenchida pela liberdade.Já o exercício da liberdade em
nossas ações é sempre intencional e sempre movido por uma vontade consciente
dos princípios norteadores dessa escolha e dos fins às conseqüências dessa
ação. Na ação livre o homem é consciente dos princípios de sua ação, ou seja,
não existem valores morais nos quais se possa fundar a ação humana.
Nesse contexto de ausência de princípios norteadores de ação, é
consagrada a passagem do texto “O existencialismo é um humanismo”, no qual
um jovem pergunta a Sartre se ele deve ir para a guerra ou cuidar da mãe. A
resposta do filósofo foi a de que não existe uma regra, um valor ou um modelo, ou
mesmo uma resposta que seja correta e que sirva de parâmetro para a decisão a
ser tomada pelo jovem. Ou seja, é de sua total responsabilidade a escolha que ele
fizer, pois o jovem é livre para erigir os seus valores. Em suma: não existem
valores éticos universais para a vida humana.
19
Na filosofia de Sartre a existência preceda a essência. Se quisermos existir
ao mesmo tempo em que construímos nossa imagem, esta imagem é válida para
todos: escolhendo-me escolho o homem. Essa co-responsabilidade dá
fundamento à angústia. Nenhum indivíduo escapa à sua profunda e total
responsabilidade de escolher para si a humanidade inteira.
Para Sartre, a não-existência de Deus é o princípio fundamental, o homem
está abandonado, pois não encontra em si, nem fora de si, nenhuma realidade a
que se apegar.Conforme Sartre menciona em O existencialismo é um
Humanismo, no século XVIII, para o ateísmo dos filósofos suprime-se a noção de
Deus, mas não a idéia de que a essência precede a existência.Filósofos como
Diderot, Voltaire e Kant defenderam o conceito de natureza humana, onde cada
homem é um exemplo particular de um conceito universal. Se tomarmos como
exemplo vários homens de épocas e classes sociais diferentes, veremos que
estes possuem as mesmas qualidades de base, mas sua essência continua a
preceder a existência histórica encontrada na natureza. Porém, no existencialismo
ateu representado por Sartre Deus não existe, dessa forma, há pelo menos um ser
no qual a existência precede a essência, e que existe antes de poder ser definido
por qualquer conceito: o homem. Por isso, não há natureza humana, visto que não
há um Deus para a conceber. O homem é livre e sem desculpas.A liberdade
humana fundamenta-se na autonomia da escolha concreta, na ação:
“Com efeito, tudo é permitido Se Deus não existe, fica o
homem, por conseguinte abandonado, já que não encontra em si
nem fora de si uma possibilidade a que se apegue. Antes de mais
nada, não há desculpas para ele.(...) O indivíduo é livre. Ele não
apenas tem liberdade, mas é liberdade. Nós construímos tudo: até
mesmo nossos valores, regras e imposições.(...) Assim, não temos
atrás de nos, nem diante de nós no domínio luminoso de valores,
justificações ou desculpas.(...) O homem está condenado a ser
livre, condenado não porque criou a si próprio, e no entanto livre,
porque uma vez lançado ao mundo, é responsável por tudo quanto
20
fizer..(...) Se com efeito, a existência precede a essência, não será
nunca possível referir uma explicação a uma natureza humana
dada e imutável, por outras palavras, não há determinismo, o
homem é livre, o homem é liberdade”.28
O homem estando condenado a ser livre carrega nos ombros o “peso do
mundo inteiro”, é responsável pelo mundo e por si mesmo como maneira de ser.
Sartre recusou a idéia de determinismo29 e demonstrou que somos nós que
escolhemos nossas ações e assim, tornamo-nos livres, controlamos nossas vidas
e ganhamos a possibilidade de mudá-la. Essa liberdade é condicionada por
questões concretas e, ao procurarmos resolver os problemas anulamos uma
realidade e tornamos real uma outra. O fato de escolhermos, de realizarmos
nossos projetos e acabarmos com uma situação e criarmos outras nos tornam
agentes de nossa história e da história da humanidade. Não há algo ou alguém
movendo nossas vidas, ou seja, não há determinismo. Somos nós os
responsáveis pelas nossas vidas, enquanto seres que escolhem a todo o
momento.
Em entrevista concedida ao jornal Correio Brasiliense30 Bornheim afirmou
que de acordo com Sartre, o determinismo pode ser biológico, social ou
psicológico. “Sartre não aceitava nenhuma forma de determinismo. Ele
considerava que o homem inventa esse determinismo para se proteger contra a
liberdade porque é difícil ser livre. Há a responsabilidade absoluta, mas não é uma
coisa aleatória, você tem que reinventar a responsabilidade em função de cada
ato cometido”.
28 SARTRE, J.P. O existencialismo é um humanismo. São Paulo: Abril Cultural, 1974, p.15.
29 Determinismo é o termo empregado a partir do século XIX para referir-se à realidade conhecida e controlada pela ciência, e no caso da ética, particularmente ao ser humano como objeto das ciências naturais e ciências humanas (sociologia e psicologia), portanto, como completamente determinado pelas leis e causas que condicionam seus pensamentos, sentimentos e ações, tornando a liberdade ilusória. (CHAUÍ, M. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 1999, p. 361). 30 BORNHEIM, G. Entrevista concedida ao Correio Brasiliense em março de 2000 e publicada em 15 de setembro de 2002. Bornheim não se considerava sartreano, mas foi um dos principais pesquisadores de Sartre no Brasil Faleceu em 05 de setembro de 2002.
21
Aqui, convém mencionar, que na peça Mortos sem Sepultura, Sartre
demonstra suas personagens em pleno exercício de liberdade, mas trata-se da
liberdade na concepção sartriana, ou seja, uma liberdade na qual Deus não existe,
cabendo somente ao homem suas decisões e eventuais conseqüências.
O fato de o homem ter sido lançado ao mundo, sem justificativas e
gratuitamente nos remete a um conceito muito utilizado por Sartre: a contingência.
Quando falamos de contingência estamos nos referindo a uma
característica fundamental do próprio ser. O romance “A náusea” expressa
literariamente a contingência do ser-no-mundo, a angústia de ser. O livro é, pois,
uma análise feita pelo próprio sujeito dessa obsessão essencial do homem, mas
que ele procura mascarar ordinariamente pela vã agitação da vida. Roquentim (o
protagonista) encontra-se num estado de abstração que exige uma completa
reflexão sobre o íntimo das coisas. O que lhe aparece então, é a contingência, a
gratuidade do que o cerca e dele mesmo. Essa contingência, ou seja, a gratuidade
de sua própria existência, provoca em Roquentim sensações de náusea que
causam nele uma ruptura consciente com os outros e o mundo, sem que ele
descubra seu significado. No decorrer da história ele experimenta esta sensação
várias vezes e em diferentes lugares. Para Roquentim não existe uma razão que
explique a existência dos seres e dos acontecimentos, nenhuma coisa traz
consigo sua razão de ser. Nada contém em si mesmo sua própria definição. Tudo
é pura continência, absurdo, acaso. O argumento de João da Penha contribui
nessa perspectiva, quando ele afirma que:
“Comumente, acredita-se que o mundo é obra divina criada
para o homem, o que implica aceitar a necessidade dessa criação,
logo de uma finalidade dela. Afirmar então que algo é contingente,
é supor que sua existência é sem sentido, sem explicação. Dizer,
por exemplo, que o mundo é contingente, é descrer que sua
criação obedeceu a uma vontade superior, que assim procedeu,
determinando desígnios. Num mundo contingente, portanto, o
homem sente-se jogado nele, sem qualquer ponto de referência
22
que não seja ele mesmo. Não há leis morais estabelecidas que lhe
orientem a vida – cabe-lhe criá-las”.31
“A náusea”, traz ainda a inscrição de autoria de um escritor francês, que
procura definir em apenas uma frase a situação do protagonista Roquentim:
“É um homem sem importância coletiva, exatamente um
indivíduo”.32
Dessa forma, no decorrer do romance, Roquentim descobre importantes
verdades: o mundo é contingente, ou seja, não é absolutamente necessário, e
quanto a nós, estamos demais nele, sobrando, por nada e para nada,
radicalmente gratuitos. Os objetivos nos permanecem estranhos, opacos;
impenetráveis, ininteligíveis.A nossa vida só encontra solidez quando está atrás de
nós, morta, irrecuperável, transformada em passado. No presente não temos
nunca uma essência necessária, como uma pedra o uma árvore. Portanto, a
contingência é algo que está relacionado ao acaso e à ausência de um
determinismo rígido.
Em seu tratado de ontologia fenomenológica O ser e o nada publicado em
1943, Sartre esclarece ainda o termo possibilidade, como também sendo algo
relacionado à sua concepção de liberdade. O homem é o ser dos possíveis, está
aberto a todas as possibilidades. Isto ocorre porque ele não é um ser
predeterminado.Ao assumir livremente algumas dessas possibilidades ele projeta
um modo de existir, além de projetar-se na existência, num tipo de experiência
que a realidade humana define mais como futuro do que como passado.O homem
só será aquilo que fizer de si a partir de um projeto de existência. Mas se ele pode
assumir qualquer possibilidade, significa que não está determinado para alguma 31 PENHA, J. O que é existencialismo.São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 80. 32 SARTRE, J.P. La nauseé. Paris: Gallimard, 1938.
23
coisa em particular. Isso nos leva a crer que todas essas possibilidades são
igualmente contingentes, pois nenhuma o atrai mais do que a outra e o homem
não tem por obrigação assumir alguma entre elas.
Assim a liberdade originária concebida por Sartre só pode realizar-se a
partir da escolha radical de um projeto a ser assumido num mundo contingente.
A questão da contingência parece-nos estar diretamente relacionada a
facticidade33, visto que ao nascer já nos encontramos obrigatoriamente situados
em um lugar e uma circunstância qualquer:
“Não sou livre nem para escapar ao destino de minha
classe, minha nação, minha família, nem sequer para construir
meu poderio ou minha riqueza; nem para dominar meus apetites
mais insignificantes ou meus hábitos. Nasço operário, francês,
sifilítico, hereditário ou tuberculoso. (...) Bem mais do que parece”
fazer-se “, o homem parece” ser feito “pelo clima, a terra; a raça; a
língua; a história da coletividade da qual participa; a
hereditariedade, as circunstâncias individuais de sua infância, os
hábitos adquiridos, os grandes e pequenos acontecimentos de sua
vida”.34
Em O Ser e o Nada, Sartre faz algumas relações entre liberdade e
facticidade e nos deixa claro que o compromisso é uma espécie de noção
mediadora entre esses dois conceitos. Mas tudo depende da conduta que cada
um assume em relação a cada elemento da facticidade. Dessa forma, Sartre
reafirma a contingência do mundo histórico: ninguém está predeterminado a
33 Facticidade – Termo introduzido por Fitche para designar o caráter contingente do que é e impossibilidade em que estamos de justificar por intermédio de uma dedução racional a realidade do mundo. Fenomenologia contemporânea retomou o termo – principalmente Heidegger e Sartre – para exprimir a idéia de que nossa existência é um fato decerto constatável, as sem fundamento, sem razão e até, a princípio, absurda. A partir disso, Sartre chega à conclusão de que o homem, desvinculado de qualquer obediência a uma necessidade que organizaria sua vida, é soberanamente livre. 34 SARTRE, J.P. O ser e o nada. Rio de Janeiro: Petrópolis, Vozes, 1997, p.130.
24
qualquer coisa, por mais fortes que sejam os fatos que compõem uma situação.
Cada indivíduo é sujeito de sua história. Neste momento, faz-se importante
lembrar ainda, que a noção de facticidade leva-nos ao engajamento ou ao
compromisso. Franklin L.e Silva nos explica melhor essa afirmação, quando
menciona que:
“Diríamos que, primeiramente, não se trata tanto de
assumir um compromisso quanto de reconhecer que estamos
irremediavelmente comprometidos. (...) Como nascemos sempre
num dado contexto real e concreto, já estamos, somente por isso,
comprometidos com ele, isto é, com o mundo no qual temos de
viver. Ainda que venha optar pelo quietismo e pela indiferença, tais
atitudes não deixam de representar a maneira pela qual respondo
às solicitações do meu mundo, da minha época, da minha classe,
e, portanto, a forma como me comprometo com os problemas do
meu tempo”.35
O exercício da liberdade se dá no denso universo de possibilidades que
formam a teia complexa de tudo aquilo que devo afirmar ou negar, aceitar ou
recusar, superar ou evitar, transpor ou contornar. Nesta sucessão de atos
concretos, cada um se faz Ser.
Para Sartre a existência precede a essência, mas esse fato aplica-se
somente ao homem, pois só ele é livre, o que significa que ao contrário de outros
seres, o homem não é predeterminado.Ou seja: o homem é compreendido como
ser-no-mundo e possui consciência sobre todos os seus atos. Essa consciência,
em determinado sentido vive voltada para si própria, o que Sartre denomina “para-
si”. A consciência é para-si, porque aparece a si mesma e só existe na medida em
que aparece. Então, podemos dizer que a consciência permanece presa a si
mesma sem conseguir-se abandonar-se.
35 SILVA, F.L.S. Liberdade e Compromisso. In: Revista Cult, n. 91, Abril/2005. pp. 50-51.
25
Sendo a consciência para-si, ela opõe-se ao em-si, o qual Sartre define
como um ser que exclui atividade e passividade, por estas serem noções
humanas relativas ao comportamento do homem e aos instrumentos de seu
comportamento. O em-si encontra-se ainda, além da negação e da afirmação, por
estas características serem oriundas a consciência. O em-si é o que é, ou seja,
absolutamente idêntico a si mesmo, além de ser supérfluo para toda a eternidade,
ou seja, não podemos derivá-lo de nada, nem de outro ser, nem de uma lei
necessária. Perdigão nos ajuda a definir o em-si, quando afirma que:
“Sartre usa então a expressão Em-si, pra designar o Ser,
compreendendo a realidade material, o mundo inorgânico dos
objetos e o organismo humano: é porque o Ser está fechado em si,
preso a si mesmo. O Em-si designa tudo o que existe, exceto a
consciência humana (...). O Em-si na se reduz à sua aparição à
consciência, não necessita do Para-si para existir enquanto
aparição ou fenômeno (assim como não preciso de um espelho
para existir, mas para aparecer a mim)”.36
O conceito-chave que Sartre vai buscar na fenomenologia é aquele que
afirma a intencionalidade da consciência. Esta é definida como a faculdade que
permite ao homem o conhecimento ou a avaliação do que se passa em si mesmo
e à sua volta. Perdigão utiliza-se de um exemplo fundamentado na filosofia de
Sartre, que cabe à definição da palavra consciência.
36 PERDIGÃO, P. Existência e Liberdade.Porto Alegre: L&PM, 1995, p. 39.
26
“Para caracterizar melhor essa propriedade, podemos recorrer a
uma metáfora: Tento descobrir a significação de uma pintura,
aproximando os olhos da superfície da tela. Nesse caso, nada
consigo ver. Em seguida, tomo um recuo que me permita avançar
o quadro com o olhar. Da mesma maneira como (em termos de
espaço físico) preciso me afastar do objeto a ser percebido
exatamente para poder percebê-lo, também a consciência precisa
recuar de algum modo diante do objeto visado para ser consciente
dele”.37
Considerando essa afirmação, parece-nos lícito supor que a consciência é
algo que necessita se colocar à distância do mundo das coisas, para estar em
condições de presenciá-las. A consciência só existe na medida em que se
aparece.
Entretanto, convém aqui lembrarmos, que a consciência está atrelada ao
Ser, ou seja, está ligada a ele por fortes vínculos, mas ao mesmo tempo está à
distância dele. Sobre essa questão, Perdigão afirma que “a consciência é que faz
com que o Ser se mostre. Ela não cria o mundo, apenas o constata. Da mesma
maneira, é a consciência que traz interrogações ao mundo e coloca os “porquês”.
Sartre conclui a primeira parte de O ser e o nada, definindo que:
A consciência é um ser para o qual em seu próprio ser
ergue-se à questão do seu ser, enquanto este ser implica um ser
outro que não ele mesmo. (...) toda consciência é consciência de
alguma coisa”. 38
37 Ibid, p.38. 38 SARTRE, J.P O ser e o nada.Petrópolis: Vozes, 1997, p.34.
27
Dizer que a consciência é intencional significa dizer que toda consciência
intenciona um objeto qualquer. Inicialmente essa proposição implica que não há
consciência que não seja posicionamento de um objeto, ou seja, o ato de visar um
objeto configura a consciência. A primeira conclusão que podemos obter dessa
definição é que a intencionalidade é o que caracteriza a consciência, ou seja, que
não há consciência fora do ato intencional. Dessa forma, a intencionalidade não
poderia ser uma propriedade da consciência, isto é, uma característica indiferente
ao modo de existir da consciência, mas sim, a única forma de existência para a
consciência. A noção de intencionalidade (denominada dessa forma por Husserl)
traria consigo uma segunda conseqüência: não há consciência sem o objeto ao
qual ela se dirige. A idéia de intencionalidade libera a consciência de qualquer
interioridade que a sustentaria fora da intenção e a transformaria em “coisa”.
Passemos neste momento, à questão de temporalidade em Sartre, onde se
encontram inseridos o passado, presente e futuro, sobre os quais discorreremos
aqui, de forma sucinta.
O Passado No capítulo “A temporalidade” de O ser e o nada”, Sartre lança a seguinte
pergunta: Qual é o ser de um passado? O senso comum formula duas
concepções vagas a esse respeito: o passado não é mais.Tudo é presente,
inclusive nossas recordações. Mas Sartre discorda dessa afirmação, pois se todos
os modos de ser do homem estiverem destinados Por essência a um perpétuo
presente, suprime-se dessa forma, todos os meios de compreender sua relação
originária com o passado.
A segunda concepção também imprecisa de acordo com Sartre, seria
aquela segunda a qual o passado teria uma espécie de existência honorária. O
passado de um acontecimento estaria recolhido e perderia a eficiência sem perder
o ser. Sartre encerra o capítulo afirmando que o passado é um Para-si
recapturado e inundado pelo Em-si, pois aquilo que pode ser um Para-si deve sê-
lo lá longe, atrás de si, fora de alcance, ou seja, como afirmava Hegel, “nossa
28
essência está no passado”. Isto ocorre porque o nosso passado não pode ser
eliminado, é uma inelutável contingência, algo de irreparável que tem de ser, dado
e acabado.
“O passado é um Em-si que carrego atrás de mim,
exatamente como o rabo do peixe para o corpo da sereia.
Representa uma ameaça: é como se alguma coisa me
perseguisse, prometendo coagular-me em objeto, transforma-se
em um ser já feito. (...) Colocar-me no presente é um modo de
escapar ao passado. Ao fazê-lo, deixo um rastro atrás de mim: a
petrificação de meu ser, a redução de minha transcendência à pura
facticidade, a conversão total do para-si e em si”.39
Sou o ser pelo qual o passado vem ao mundo, entretanto, ele é algo
irremediável, visto que a liberdade não pode modificá-lo de forma alguma.Para
que tenhamos um passado, é necessário que o conservemos em existência por
nosso próprio projeto rumo ao futuro: não recebemos nosso passado, mas a
necessidade de nossa contingência comporta o fato de que nós não podemos
escolhê-lo.Porém, só eu posso decidir a cada momento sobre o valor do meu
passado.
O Presente O estudo do passado nos remete ao presente. Diferentemente do passado
que é Em-si, o presente é definido por Sartre como Para-si. O presente tem um
significado relevante em nossa existência, pois aquilo que existe nele se distingue
de qualquer outra existência, por seu caráter de presença. Tomemos o exemplo
de uma sala de aula composta pó diversos alunos. Quando o professor faz a
chamada, o aluno responde “presente”! Esse presente significa uma oposição à 39 PERDIGÃO, P. Existência e Liberdade.Porto Alegre: L&PM, 1995, p. 74.
29
ausência desse aluno. Assim, o presente consiste na presença do Para-si ao Em-
si, ou seja, o presente entra no mundo pelo homem.
Existe uma relação infinita entre o presente e o passado, pois esta é a
forma como a consciência se reconhece no presente, conforme observa Perdigão:
“O presente onde nos colocamos logo se petrifica em
passado e temos a imediata necessidade de um novo presente.
Assim, o presente é perpétua fuga, e só nos aparece quando já
está transcendido e se desvaneceu em passado (uma simples
concentração mental basta para provar que é, com efeito,
impossível pensar o presente, como diz Hegel, quando digo eu
sou, já não o sou. O novo presente de que necessitamos aonde
iremos nos resguardar da aproximação do passado), nós o
recolhemos do futuro, espécie de eterno fornecedor do presente,
essa salvaguarda temporal de sermos devorados pelo em-si”.40
O Futuro No que concerne ao futuro, Sartre faz a seguinte análise: o futuro é algo
indeterminado, um possível, é aquilo que posso vir-a-ser, mas não
obrigatoriamente aquilo que serei, pois existe sempre a possibilidade de eu não vir
a ser.
O Em-si não pode ser futuro, nem conter uma parte deste. O futuro é o que
tenho-de-ser, na medida em que não posso sê-lo. É o que aguarda o Para-si que
sou. Projetando-nos no futuro para fundirmo-nos com aquilo que nos falta, pois de
acordo com Sartre, o futuro representa aquilo que nos falta, além de não ser visto
por ele como Em-si, apesar de não ter o modo do Para-si, já que é o sentido
deste. O futuro é aquilo que ainda não é, sendo apenas possibilidade, pois ao
mesmo tempo em que aparece no horizonte para me anunciar o que sou a partir
40 PERDIGÃO, P. Existência e Liberdade.Porto Alegre: L&PM, 1995, p. 74-75.
30
do que serei.Futuro é a contínua possibilidade dos possíveis como sentido do
Para-si presente na medida que esse sentido é problemático e escapa
radicalmente ao Para-si presente. Por exemplo, a possibilidade de ir visitar um
amigo que não vejo há muitos anos é verdadeiramente um possível que sou.Mas
os possíveis mais próximos (o tipo de condução que utilizarei para chegar a meu
amigo, por exemplo), permanecem indeterminados no presente.
Neste momento, convém ressaltar que existe uma eterna relação entre
passado-presente-futuro, porquanto somos seres temporais.Consideremos aqui, a
discussão feita por Merleau-Ponty em torno da célebre “Metáfora do Rio”, na qual
o tempo é comparado a um rio que escoa, fazendo a analogia entre o curso do
tempo e o curso das águas. É importante ressaltar que essa ilustração nos mostra
com clareza a posição de Sartre, nisso semelhante à de Merleau-Ponty.
Na metáfora em questão, o tempo flui como um rio que passa. As águas
correm de modo contínuo, vindo da fonte em direção ao mar, como o tempo que
também escoa de modo contínuo Assim, o presente aparece como conseqüência
do passado e o futuro, como conseqüência do presente, tal como as águas que
vêm lá de trás e vão sempre para adiante.Encontro-me agora, sentado à beira do
rio.A água que passa diante de mim foi produzida há alguns dias atrás nas
montanhas, e vai agora em direção ao mar.
Entretanto, lembra Ponty, que as massas de águas que passam agora
diante de mim e vão para o mar não vão em direção ao futuro como ingenuamente
supõe a metáfora, ao contrário, elas desaparecem no passado.
“Ora, a partir do momento em que introduzo o observador,
quer ele siga o curso do riacho ou quer, da margem do rio, ele
constate sua passagem, as relações do tempo se invertem. As
massas de água já escoadas não vão em direção ao porvir, elas se
perdem no passado”.41
41 PONTY, M. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994, pp. 550.551.
31
Além disso, a metáfora afirma que o que está para (as águas da montanha),
vêm lá de trás do lado da fonte, do passado.Entretanto, o que está para vir (na
ordem do tempo) não é passado, e sim, o futuro. De onde já se pode facilmente
verificar que a metáfora clássica inverte as relações do tempo. Posição
semelhante encontramos com relação ao senso comum, que supõe o futuro
preparado por detrás de nós, a partir do nosso passado, como as águas que vêm
“das nossas costas”. Para o senso comum, o tempo vem do passado. Porém,
como lembram Sartre e Merleau-Ponty, o que vem é o futuro, e o que escoa vai
para o passado, de modo que em vez de dizer que o passado impele ao presente
e o presente ao futuro, seria preciso dizer antes, que o tempo vem do futuro e vai
para o passado.
Dessa forma, a água que vem da fonte será futuro para mim se eu estiver à
margem do rio; a água que acaba de passar será passado para mim se eu estiver
à margem do rio.
Ou, de acordo com o raciocínio de Sartre: “todo futuro do Para-si presente
cai no passado como futuro, juntamente com esse mesmo Para-si”.42
Ou ainda, como nos explica M. Ponty:
“Não é o passado que empurra o presente, nem o presente
que empurra o futuro, para o ser, o porvir não é preparado atrás do
observador, ele se premedita em frente dele como a tempestade
no horizonte. Se o observador, situado em um barco segue a
corrente, pode-se dizer que com a corrente ele desce em direção
ao seu porvir. Mas o porvir são as paisagens novas que o esperam
no estuário, e o curso do tempo não é mais do que o próprio
riacho: ele é o desenrolar das paisagens para o observador em
movimento. Portanto, o tempo não é um processo real, uma
sucessão efetiva que eu me limitaria a registrar. Ele nasce da
42 SARTRE, J.P. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1997, p.182.
32
minha relação com as coisas nas próprias coisas. Nas próprias
coisas o porvir e o passado estão em uma espécie de
preexistência e de sobrevivência eternas; a água que passará
amanhã está neste momento em sua nascente, a água que acaba
de passar está agora um pouco mais embaixo,no vale. Aquilo que
para mim é passado ou futuro está presente no mundo”.43
A angústia da liberdade Após a breve definição de consciência vista anteriormente, parece-nos lícito
afirmar, ser a consciência algo inseparável da escolha, estando ambas
diretamente ligada uma à outra. É preciso ser consciente para escolher e é preciso
escolher para ser consciente segundo Sartre, que define consciência e escolha
como uma só coisa.
O homem vive de escolhas o tempo todo, pois a cada momento tem de
escolher aquilo que será no instante seguinte. Através da liberdade o homem
escolhe o que há de ser. É a escolha que permite criar seus valores e construir
sua essência como ser humano. Não há como fugir a essa escolha, pois só a
recusa em escolher já é uma escolha. Assim, o homem é responsável por tudo
aquilo o que escolhe e faz. Não há desculpas para ele, que não pode culpar os
outros ou as circunstâncias por seus erros.
Na concepção de Sartre, escolhemos o mundo, escolhendo a nós mesmos,
ou seja, por ser liberdade o fundamento de todos os valores, o homem reconhece
seu caráter universal, e ao defendê-lo, o faz para si e para todos os homens.
Dessa forma, ao escolher para si, o homem escolhe também para os outros.
Entretanto, essa liberdade não é absoluta, ela está restrita pela sociedade,
que possui suas regras e convenções. Por esse motivo em determinados
momentos, o homem entra em conflito com o meio social ao qual pertence.
43 PONTY, M. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994, pp. 551-552.
33
Apesar disso, existe no homem uma coerência interna no que diz respeito
às suas ações, ou seja, há uma maneira própria de ser de cada pessoa frente às
situações. É o que Sartre chama de Projeto Fundamental.
O Projeto Fundamental não é inconsciente nem anterior aos nossos atos.
Ele é contemporâneo às nossas decisões e está inserido nelas. Podemos ainda
dizer, que ele penetra em nossas escolhas, emoções e tendências. Todas as
manifestações concretas da vida humana são diferentes manifestações desse
projeto fundamental.
Entretanto, o homem possui a opção de mudar ou não mudar seu projeto
fundamental, pois enquanto vivo, ele não é isso ou aquilo definitivamente.
Mas nesse momento, convém ressaltarmos um aspecto importante da
filosofia de Sartre: a angústia advinda da liberdade exercida pelo homem.Toda
escolha feita por ele envolve uma grande responsabilidade, já que como afirma
Sartre, é uma escolha que envolve toda a humanidade. E isso gera no homem
uma enorme angústia.
De acordo com Perdigão, existem dois tipos de angústia: uma de origem
temporal, outra e natureza ética, sendo ambas decorrentes do fato de o Para-si
ser livre e não ter como se precaver contra a permanente possibilidade de fazer
uma nova escolha de sua maneira de ser.
No caso da angústia temporal, uma decisão do passado não pode
determinar obrigatoriamente uma decisão atual, nem uma decisão tomada no
presente decidirá o que serei amanhã, ou seja, o destino de nossas escolhas corre
risco permanente, já que não temos domínio sobre o futuro. Sobre esse fato,
Perdigão cita o exemplo de Sartre anteriormente já mencionado anteriormente em
uma de suas obras:
“Deixei de fumar há um ano, mas preciso a toda
hora reiterar aquela decisão, porque a qualquer momento,
sou livre para mudar de projeto e voltar ao cigarro”.44
44 PERDIGÃO, P. Existência e Liberdade. Porto Alegre: L&PM, 1995, P. 112.
34
O segundo tipo seria a angústia Ética (referente aos valores). Nesse caso, a
certeza e que os valores morais têm como único fundamento possível a nossa
decisão de criá-los. Explicando melhor: a vida é permanente escolha e através de
cada decisão nossa, definimos a nós mesmos por nós mesmos. A cada instante
optamos por um valor, uma regra e conduta. Nos angustia também saber que não
temos a quem recorrer para orientar nossas escolhas.Existem valores morais
estabelecidos pela sociedade, como por exemplo: “o bem existe”, “não devemos
mentir “, “é preciso ser honesto”, etc.
Entretanto, não há nada que nos diga que decisões tomar, nada justifica a adoção
de um valor em detrimento de outro. Ou, como nos adverte Perdigão:
“Nada, exceto a voz de minha consciência. A liberdade que sou é o
único fundamento a que posso me apegar. (...) os valores
dependem de mim e são aquilo que houver decidido que sejam.
Para que o certo e o errado existam para mim, é preciso que a
minha consciência intencione constituí-los como tais”.45
Assim, nos encontramos “arremessados” em um mundo sem valores
preestabelecidos. Sabemos que eles dependem de nossa liberdade e do
compromisso que cada homem assume face às suas decisões. Em relação a
estas pode ocorrer o arrependimento, quando mudamos nosso projeto e
colocamos em questão o valor constituído anteriormente.
Essa questão dos valores nos remete novamente àquela já vista
anteriormente que diz respeito à responsabilidade pelas escolhas do homem e a
angústia gerada por elas. Sartre acredita que todas as pessoas sentem esta 45 Ibid, p. 113.
35
angústia e ansiedade, mas alguns a disfarçam, pois tentam escapar do paradoxo
de estarem condenados à liberdade. A esse comportamento, Sartre denomina
“má-fé”, conceito que João da Penha procura definir através da seguinte citação:
“Livre, consciente disto, o homem se angustia porque se vê
compelido a escolher. A angústia da liberdade é a angústia de
optar, de fazer escolhas contra a sua liberdade para fugir dela,
tentando assim, escapar da angústia que lhe provoca a
consciência de ser livre, o homem se refugia na má-fé Forçado
pelas circunstâncias a agir, a escolher, o que significa assumir a
responsabilidade pela decisão que tomar, o indivíduo busca
disfarçar essa exigência, adotando uma atitude de má-fé – finge
escolher, sem na verdade escolher”.46
No romance A Náusea escrito em 1938, Sartre nos fornece alguns
exemplos de má-fé. O primeiro deles refere-se ao Autodidata, companheiro de
estudos de Roquentim na biblioteca. Inconsciente de que nos é vedada a
apreensão do mundo, ele resolve apossar-se dele através dos livros e dedica sua
vida a ler todos os volumes da biblioteca, em ordem alfabética.
Luís C. Maciel cita um outro exemplo de má-fé contido na mesma obra: a
má-fé exercida pelos burgueses de Bouville, aos quais Roquentim (o protagonista)
devotava enorme desprezo. Esses burgueses procuravam fugir da angústia de
serem totalmente livres, através da atitude mentirosa que adotavam em relação a
si e aos outros. A esse respeito, diz Maciel:
“A má-fé, entretanto, é mais evidente nos burgueses de
Bouville. Esses sujos pretendem salvar-se da contingência,
46 PENHA, J. O que é existencialismo. São Paulo: Brasiliense, 1990, p.80.
36
negando a liberdade, instituindo falsos valores petrificados, e
petrificando a eles próprios, numa pose desumana. Roquentim
passeia pelo museu de Bouville e olha com asco os retratos dos
grandes pilares da comunidade: rígidos, sérios, petrificados pela
respeitabilidade, eles sacrificaram a única fonte do valor
existencial: a liberdade”.47
Sartre denuncia e denomina como má-fé, a falsa tranqüilidade daqueles
que vivem tranqüilamente e seguros de si mesmos, e que se crêem justificados se
instalando e se instalando e se petrificando numa atitude de conforto que eles
chamam de “felicidade” (apesar da angústia vivida por eles). Eles homens, aos
quais Sartre chama de “salafrários” evitam os problemas fundamentais de sua
existência. A falsa importância com a qual os “salafrários” compõem e si mesmos
uma imagem complacente e tranqüilizadora, esconde o caráter mais agudo e mais
angustiante de sua liberdade e de sua responsabilidade, imagem essa feita por
sua honorabilidade, sua posição social, a consciência segura de seus direitos.
Mas nada disso é suficiente para justificar um homem, visto que a importância
exterior e mundana não é suficiente para constituir uma verdadeira vida moral e
uma verdadeira sinceridade humana. Um valor moral pode tornar-se máscara em
vez de inquietude, falsa justificação em vez de responsabilidade. Portanto, Sartre
desconfia de todos os valores morais, na medida em que estes se degradam,
tomando totalmente o aspecto de convenções.
Mas se o homem estiver desengajado das rotinas, das convenções e das
rotinas pré-fabricadas que poderiam ajudá-lo a viver é colocado descoberto e
afrontado, sem escapatórias, com seu destino em toda a pureza e a sua condição
humana. Aquele que se faz covarde poderá mudar sua atitude, mudando sua
posição ou sua postura no que diz respeito a esse fato. Ele não será covarde toda
a vida e assim não o quiser. O mesmo ocorre com um herói. Para Sartre, o que
conta é o compromisso total. A consciência permanece sozinha e vazia se o
homem não tiver a coragem de fazê-la viver, de engajá-la num projeto. É 47 MACIEL, L.C. Sartre: vida e obra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, p.52.
37
conquistando por seus projetos, pelo sentido que lhe dá, pelas transformações
que lhe impõe o mundo, que a consciência encontra seu verdadeiro destino,
fazendo da responsabilidade, reivindicação lógica das conseqüências de nossa
liberdade.
1.2 – A RESPONSABILIDADE DO HOMEM PELAS SUAS ESCOLHAS Na quarta parte de O ser e o nada que trata a questão da liberdade,
podemos encontrar uma subdivisão que se refere à responsabilidade do homem.
Esta é tomada por Sartre, no sentido de a consciência de ser o autor de um
evento ou objeto. Mesmo que o resultado de uma atitude minha seja o fracasso e
eu me sinta culpado por isso, essa culpa seria ma escolha minha, por ter sido eu
quem escolheu interpretar assim o evento, lançando sobre mim a culpa elo meu
fracasso. Em suma: é a liberdade que se escolhe culpada. A essa consciência
Sartre denomina responsabilidade. Na condição de ser totalmente livre, o homem
“carrega o peso” de ser responsável pelo mundo inteiro e por si mesmo. Nada
nem ninguém pode livrá-lo desse peso. Nossa responsabilidade abrange toda a
espécie humana e por esse motivo, torna-se algo opressivo ao para-si, o qual
deve assumí-la com a consciência orgulhosa de ser o seu autor.Ou, como nos
adverte Sartre:
“Nossa responsabilidade é muito maior do que poderíamos
supor, porque ela engaja a humanidade inteira (...) sou responsável
por mim mesmo e por todos. Escolhendo a mim, escolho o
homem”.48
48 SARTRE, J.P. O existencialismo é um humanismo. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 12-13.
38
Convém ainda lembrar, que ao escolher uma possibilidade, o homem nega
todas as outras. A responsabilidade é uma conseqüência de minha total liberdade.
Tudo aquilo que me acontece é meu.
“Se sou mobilizado em uma guerra, esta guerra é minha guerra, é
feita à minha imagem e eu a mereço. Mereço-a primeiro, porque sempre
poderia livrar-me dela pelo suicídio ou pela deserção. (...) Por ter deixado
de livrar-me dela, eu a escolhi; pode ser por fraqueza, por covardia frente à
opinião pública, porque prefiro certos valores ao valor da própria recusa de
entrar na guerra (a estima de meus parentes, a honra de minha família,
etc). De qualquer modo, trata-se de uma escolha (...) Portanto, se preferi a
guerra à morte ou à desonra, tudo se passa como se eu cerceasse inteira
responsabilidade por esta guerra”.49
Partindo dessa perspectiva, parece-nos lícito supor que não temos
desculpa alguma diante das situações que permeiam nossa existência. Não há
situações inumanas: as mais atrozes situações de guerra e as piores torturas não
criam um estado de coisas inumano. Não há acidentes na vida, mesmo ao se
tratar de uma guerra para a qual fui mobilizado, visto que cada um tem a guerra
que merece50.
Eu sou responsável por tudo, menos pela minha responsabilidade, porque
não sou fundamento de meu ser, tudo se passa como se eu fosse coagido a ser
responsável. Eu me encontro só e sem auxílio, envolvido num mundo em que
assumo integral responsabilidade, sem poder arrancar-me a essa
responsabilidade, porque sou responsável mesmo por meu desejo de fugir às
responsabilidades. Isso ocorre devido a facticidade absoluta do Para-si. Esta
significa que o Para-si está num mundo, ou seja, está “em situação”. O Para-si,
embora escolhendo o sentido de sua situação e constituindo-se a si mesmo como
49 SARTRE, J.P. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1997, p.678-679. 50 Ibid, p. 680.
39
fundamento de si mesmo em situação, não escolhe sua posição. É o que faz com
que ele se apreenda a um só tempo, como total responsável de meu ser, na
medida em que é seu fundamento e como totalmente injustificável.O fato de eu ter
nascido refere-se à minha facticidade, porém, esta só irá aparecer na medida em
que eu vier a transcendê-la rumo a meus fins, já que no início, ela é inapreensível
e inconcebível.
“Assim, a facticidade está por toda parte, porém,
inapreensível; jamais encontro senão a minha responsabilidade,
daí porque não posso indagar ‘por que nasci?’, maldizer o dia de
meu nascimento, ou declarar que não pedi para nascer, pois essas
diferentes atitudes com relação ao meu nascimento, ou seja, com
relação ao fato de que realizo uma presença no mundo, nada mais
são precisamente, do que maneiras de assumir com plena
responsabilidade este nascimento e fazê-lo meu. (...) Minha
facticidade consiste simplesmente no fato que estou condenado a
ser integralmente responsável por mim mesmo”.51
Sartre escolhe como personagem principal do romance “A Náusea”,
espécie de diário metafísico, um intelectual, Antoine Roquentim, um homem só, se
responsabilidades e sem gostos, que descobre na angústia, que nada tem motivo
ou justificação. E, no entanto, essa gratuidade não o livra de sua liberdade e de
sua responsabilidade que pertencem à sua própria essência.Essa liberdade
exigente que é dada ao homem numa existência onde nada o acolhem ou ajuda,
se manifesta sob a forma de um mal-estar. A gratuidade se torna amargura,
porque se descobre o vazio de uma liberdade sem conteúdo, e, sobretudo, porque
se descobre também, que a liberdade não elimina a responsabilidade do homem.
51 SARTRE, J.P. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1997, p.681.
40
Roquentim conclui que todos os homens (inclusive ele), se encontram
vazios e desorientados. O que estes fazem não passa muitas vezes, de agitação
vã e de falsa importância. A náusea então seria, ao mesmo tempo, a questão do
porquê de nossa vida, somada à terrível vertigem de não sentir resposta imediata
a essa questão. A conseqüência disso é a responsabilidade, que devemos
constatar em nós pelo simples fato de existirmos.
Ao ver que a existência não tem sentido o homem sente medo e gostaria de
não estar aí. Ele gostaria de limitar-se e deixar-se viver, receber uma existência
que não precisasse ser justificada, existir simplesmente como existem as coisas,
sem preocupações, sem esforços, sem responsabilidades. Entretanto, não é
assim que as coisas se passam. Esta liberdade que nos é dada, só tem
fundamento na ação, ou seja, é preciso de um esforço por parte do homem para
torná-lo eficiente.
A responsabilidade é primeiro sentida como horror, pois no primeiro
momento nós gostaríamos de poder recusá-la, mas não podemos nos livrar desse
jogo arriscado, porque existimos e temos horror deste eu que existe, e que deve
encontrar uma justificação para si. Do mesmo modo que não nos escolhemos
livres também não nos escolhemos responsáveis, mas como tudo que nos
acontece, nos acontece por causa de nossa liberdade, isso implica também na
existência da responsabilidade em cada um de nossos atos.
A assunção é, pois, o temo para o qual aponta a doutrina sartriana de
liberdade.Quando o homem diz sim ou não a uma situação em que se encontra
mergulhado está optando por assumí-la. Ainda que ele se cale, esta atitude
também será considerada uma escolha.
“Além disso, liberdade é liberdade de escolher, mas não
liberdade de não escolher. Daí resulta que a escolha é fundamento
41
do ser escolhido, mas não fundamento do escolher. E daí a
absurdidade da liberdade”.52
A absurdidade da liberdade mencionada por Sartre na citação anterior
reside no seguinte raciocínio: a liberdade do Para-si não é um dado nem uma
propriedade, ela só pode ser escolhendo-se. Entretanto, essa liberdade é sempre
comprometida e a escolha sempre incondicionada. E uma escolha dessa natureza
feita sem ponto de apoio pode parecer absurda. Isso porque de acordo com
Sartre, a liberdade é escolha de seu ser, mas não fundamento de seu ser. Sartre
menciona o suicídio como exemplo claro de uma escolha absurda cometida por
um indivíduo, mas absurda, não porque careça de razão, mas porque não houve
possibilidade de não escolher.
1.3 – A RELAÇÃO DA LIBERDADE COM A MORAL E OS VALORES Após a publicação do Tratado de Ontologia Fenomenológica L’être et le
néant Sartre afirmava a necessidade de elaborar uma moral fundada nos
princípios de sua ontologia. De acordo com ele, questões relevantes como
liberdade, responsabilidade e valor, só poderiam encontrar respostas no terreno
moral. Marx formulou uma citação na qual ele dizia que os filósofos apenas
interpretaram o mundo, e agora era preciso transformá-lo. De acordo com
Bornheim, esta frase pode ser aplicada ao pensamento de Sartre, desde que nela,
a palavra mundo seja substituída pela palavra homem, posto que em sua
ontologia, Sartre não conseguiu disfarçar um inconformismo em face da condição
usual do homem. Ele concluiu O ser e o nada com uma série de questionamentos
“que só poderiam encontrar resposta no terreno moral”.53Ou seja, o raciocínio de
Sartre conduz obrigatoriamente a uma ética. A promessa de Sartre não foi
52 SARTRE, J.P. O ser e o nada.Petrópolis: Vozes, 1997, p. 593. 53 SARTRE, J.P. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 765.
42
cumprida no que se refere à elaboração dessa ética, talvez porque como afirma
Bornheim “seu pensamento se emaranhou num impasse”.Mas conforme já
afirmamos, há indícios na obra de Sartre que permitem vislumbrar as diretrizes
básicas que seriam utilizadas na análise sobre a problemática moral. Um destes
indícios seria o que se refere à psicanálise existencial. Tal psicanálise procura
determinar a escolha original realizada por cada indivíduo, que na verdade,
constitui o projeto fundamental de cada homem.Sartre rejeita o postulado do
inconsciente, pois se o homem sabe em que consiste seu projeto fundamental,
esse projeto é vivido plenamente por ele, entretanto o fato do homem ser
totalmente consciente não quer dizer que seu projeto lhe seja totalmente
conhecido. A psicanálise existencial se propõe a tornar conhecido o que o para-si
compreende desde sempre. E o sentido dessa teoria desemboca na prática
transformadora do homem.
A Má-fé também se constitui em outro aspecto diretamente relacionado à
formação de uma moral sartriana, por ser algo que bloqueia a espontaneidade
inventiva dos atos:
Todo homem que se refugia na desculpa de suas
paixões, todo homem que inventa um determinismo é um
homem de má-fé”.54
Outro resquício que poderia levar Sartre à elaboração de uma moral, seria a
questão da Responsabilidade, sobre a qual já discorremos na divisão anterior
deste capítulo.
Em O Existencialismo é um Humanismo, onde ele afirma que sua filosofia
é a única apta a dar dignidade ao homem. Este, ao nascer é lançado num mundo
54 SARTRE, J.P. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1997, p 763.
43
que não quisera, numa situação que não escolheu, sendo apenas “uma criação”,
segundo Sartre. O homem se resume na possibilidade de tomar decisões numa
dada situação, ou seja, ele está constantemente “para ser feito”.
“Uma vida... é feita com o futuro, como os corpos são feitos
com o vazio”.55
Sartre recusa toda a moral tradicional com valores preestabelecidos. Não
há moral geral e nem sinais no mundo indicando quais atitudes devemos tomar.
Nossos valores somos nós que teremos que criar. O mundo nos oferece situações
que parecem limitar nossa liberdade. Os homens respondem apenas por um
projeto que serve como referência ao futuro. Tudo o que existe deve ser
ultrapassado.
Em O Existencialismo é um Humanismo Sartre faz menção a dois tipos de
moral: uma concreta, imediata, as que diz respeito somente a um indivíduo. A
outra, seria uma moral mais larga, que abrange um vasto grupo, uma coletividade
nacional.
A moral dos homens deve ser uma criação perpétua, uma vez que o mundo
oferece sempre novas situações.Não há verdades absoltas, valores universais,
nem sabedoria perpétua aos quais devemos prender-nos. Nenhuma experiência
do passado deve comprometer nosso futuro, sublinha Sartre. O homem sartriano
nunca será condicionado por um passado. É desligado de toda obrigação anterior
e totalmente livre. Mas à medida que nos desliga do passado, Sartre
imediatamente nos torna responsáveis pelo futuro. “O que é já morreu, o que deve
ser está vivo”. Eis porque em sua ontologia o homem que está vivo não é. O
homem não pode estar comprometido ao mesmo tempo, pelo passado e pelo
futuro. Um valor demasiado grande dado a passado poderá corromper e enviscar
o futuro.
55 SARTRE, J.P. A idade da Razão.São Paulo: Abril Cultural, 1979, p.216.
44
Considerado como uma longa introdução a uma futura ética sartriana, L’etre
et le nèant demonstra dois tipos fundamentais de relação. Através destes, é
constituído o palco em que se desenvolve o comportamento do homem.
Bornheim define aqui, estes dois tipos de relação:
“Considerado como o prolegômenos a uma ética futura, a
filosofia de L’ etre et le Nèant” autoriza dois tipos fundamentais de
relação. A primeira é a relação do sujeito consigo mesmo, visto que
o para-si se manifesta antes de mais nada, como presença a si:
toda moral só pode descobrir seu fundamento na subjetividade do
sujeito. A outra relação é a do sujeito-objeto, em última instância,
não há mais uma relação intersubjetiva no existencialismo, pois
como vimos, o conflito que preside o relacionamento com o outro
termina por frustrar qualquer tentativa de superar a categoria do
objeto”.56
Nos dois tipos de relação a que nos referimos anteriormente estão contidos os
elementos basilares da ética: liberdade, compromisso, responsabilidade e valor.
Vamos, entretanto, nos ater a este último, por ser considerado por Sartre, o mais
importante entre eles. É a liberdade que estabelece os valores. Por essa razão, a
liberdade é o valor supremo. Escolher é agir livremente, mesmo quando essa
escolha se faz necessária. Nessa perspectiva, a liberdade será a condição de
todos os valores, visto que o valor implica a escolha, e esta implica a liberdade.
Mas a liberdade só existe quando inclui a razão57, porque na verdade é a razão
que escolhe. Assim, ambas não podem estar separadas, visto que se implicam
mutuamente.
56 BORNHEIM, G. Sartre: Metafísica e existencialismo. São Paulo: Perspectiva, 2000, p.124. 57 Razão – Para Sartre Razão e Liberdade são inseparáveis e implicam-se mutuamente. A liberdade só existe enquanto inclui a razão, porque de fato é a razão que escolhe. Uma “liberdade pura” separada de uma razão que a justifique e, na verdade a constitua, seria apenas uma forma da indiferença e da passividade ou, em última análise, do acaso. Se existe liberdade é porque há razão: é esta que pode, além de justificar, fazer surgir a escolha como tal. (cf JOLIVET, R. Sartre ou a Teologia do Absurdo. São Paulo: Herder, 1968).
45
Mas Sartre objeta que pode haver liberdade de escolher o necessário,
ainda que este necessário implique numa obrigação moral ou signifique um
destino irrecusável, mas que tomo meu pela escolha. A razão pode, além de
justificar, fazer surgir a escolha como tal. Somente a razão pode, por exemplo,
confirmar uma morte inevitável que decido, todavia, afirmar livremente.
A liberdade de escolha e a razão são fatores que se encontram inseridos na
escala de valores do ser humano.Então, retornemos a essa questão, explicitando-
a melhor: o Para-si é liberdade compreendida como autonomia de escolha, e uma
vez que a liberdade é absoluta, o valor não poderia apresentar consistência
objetiva, posto que ele brota da subjetividade. O homem é o ser pelo qual os
valores existem, conforme nos afirma Bornheim:
“Assim, como não há uma natureza humana que dite o que
o homem deve fazer, também não há uma ordem pré-estabelecida
de valores. Desse modo, o valor que encontra sua gênese no ato
livre, é absolutamente indeterminado: escolher é inventar. Disso se
infere que o homem é apenas seu projeto, só existe na medida em
que se realiza, ele é tão somente o conjunto de seus atos”.58
Porém, aqui torna-se necessário deixarmos claro que para Sartre não existe
liberdade “pura”. Esta depende das circunstâncias, onde o homem poderá perder
a liberdade exterior. Apesar disso, ninguém jamais poderá privá-lo de sua
liberdade interior, visto que essa se encontra separada da situação e da ação. A
liberdade interior define essencialmente a autonomia de um pensamento que não
escolhe e não decide. Já a liberdade exterior, identifica-se com o puro
determinismo.
Em razão da existência da má-fé, Sartre recusa toda moral tradicional que é livre
para o mal e não para o bem. Podemos arrumar justificativas e desculpas para
darmos a entender que fomos “vítimas das circunstâncias”. O fato de não termos 58 BORNHEIM, G. Sartre: Metafísica e Existencialismo. São Paulo: Perspectiva, 2000, p.125.
46
tido um grande amor ou uma grande amizade; de não termos encontrado alguém
digno de se casar conosco ou de não termos escrito um livro são alguns exemplos
de má-fé praticada por nós. Todo homem que se refugia na desculpa de suas
paixões e que inventa um determinismo é considerado por Sartre, um homem de
má-fé, ao passo que esse procura fugir da angústia de ser totalmente livre através
da atitude mentirosa que adota em relação a si mesmo e aos outros.
Já os valores, são estabelecidos pela liberdade, defende Sartre. Por essa
razão, a liberdade é o valor supremo, conforme nos explica Jolivet:
“Escolher é sempre, por definição, agir livremente, mesmo
quando acontece de a escolha ser necessária, e nessa
perspectiva, a liberdade será verdadeiramente a condição de todos
os valores, visto que se o valor implica a escolha, esta implica a
liberdade. Mas a liberdade só existe quando inclui a razão, porque
de ato, é a razão que escolhe. Uma ‘liberdade pura’ separada de
uma razão que a justifique e, na verdade, a constitui seria apenas
uma forma da indiferença e da passividade, ou, em última análise,
do acaso. Razão e Liberdade implicam-se mutuamente”.59
Sartre finaliza, afirmando que cada homem tem de inventar o seu caminho
no risco e na dificuldade, a cada instante, sem outro guia que não seja sua
consciência, pois essa é a própria definição de liberdade. Mas esse caminho é
sempre mais humano, diferentemente dos caminhos dos animais, por exemplo.
Sou livre para o meu destino que é humano, e por isso assumo-me a mim mesmo,
e minha liberdade se perfaz nesta escolha.O homem só existe na razão, e essa
abstrai as essências.
59 JOLIVET, R. Sartre ou a Teologia do absurdo. São Paulo: Herder, 1968, p.75.
47
1.4 – SARTRE E O CARÁTER ABSURDO DA MORTE Vida e morte não são para nós humanos simples acontecimentos
biológicos. Viver e morrer são a descoberta da finitude humana, de nossa
temporalidade e de nossa identidade: uma vida é minha, e minha a morte.
Morrer é um ato solitário. Morre-se só, a essência da morte é a solidão. O
morto parte sozinho e os vivos ficam sozinhos ao perdê-lo.Resta saudade e
recordação.
Enquanto estamos vivos decidimos o que somos, damos um sentido ao
nosso passado e aos nossos projetos.Mortos, somos reduzidos à condição de
puro passado e nossas ações são dadas como acabadas.
Em sua filosofia, Sartre sublinha o “Caráter absurdo da morte”.Para ele, a
morte nada tem de humana, mas é um limite, o termo final da vida humana.
Se o animal ignora que vai morrer, o mesmo não acontece com o homem:
embora não se possa experimentá-la diretamente, a morte aparece como um
escândalo e como manifestação radical que “arranca” o homem do universo.
“Já foi dito muitas vezes que estamos na situação de um
condenado entre condenados, que ignora o dia de sua execução,
mas vê serem executados a cada dia seus companheiros de
cárcere. Não é totalmente exato. Melhor seria comparar-nos a u
condenado à morte que se prepara valentemente para o derradeiro
suplício, toma todos os cuidados possíveis para desempenhar um
bom papel no cadafalso, e no meio tempo, é levado por uma
epidemia de gripe espanhola”.60
60 SARTRE, J.P. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 654.
48
Aqui, Sartre evidencia que a morte chega inesperadamente, destruindo
todos os nossos projetos futuros, além de ressaltar que a morte é um fato
contingente, absurdo e acidental, assim como o nascimento, pertencendo ambos a
facticidade do Em-si. Certa vez Sartre afirmou que é absurdo que tenhamos
nascido, é absurdo que tenhamos de morrer.61
Sartre e Heidegger possuíam visões diferentes sobre o caráter da morte na
existência humana, ocasionando alguns pontos de discordância entre ambos.
Heidegger deu forma filosófica à humanização da morte. Se o Dasein62 não
padece nada, precisamente porque é o projeto e antecipação, então deve ser
antecipação e projeto de sua própria morte enquanto possibilidade de não mais
realizar presença no mundo. Na medida em que o Dasein determina o seu projeto
rumo à morte, realiza a liberdade-para-morrer e constitui a si mesmo como
totalidade pela livre escolha da finitude. Assim, o ser da realidade humana é visto
por Heidegger como um ser-para-a-morte: como existir é estar exposto à
possibilidade de morrer, a morte (ameaça que pesa sobre o homem desde seu
nascimento), faz parte da realidade humana, sendo considerado algo que lhe é
essencial. Para Heidegger, escolhemos livremente a nossa morte como um
projeto, uma possibilidade suprema, que irá concluir e dar acabamento final ao
nosso ser, até então, inconcluso, ou seja, a morte é um projeto que dá sentido
acabado e definitivo à nossa vida. Ele refere-se à morte, ainda como um meio de
alcançarmos enfim, a nossa unicidade de pessoa, totalizando-nos como ser
individualizado, pois a morte é a única coisa que ninguém pode fazer por mim.
Dessa forma, ela torna-se individualizada por Heidegger em cada um de nós, por
ser algo que ninguém pode fazer por nós.
Sartre menciona uma evidente má-fé neste raciocínio formulado por
Heidegger, pois para Sartre não é a morte que individualiza nosso ser por torná-lo
61 Ibid, p.670.
62 Dasein – Termo utilizado por Heidegger para designar o caráter específico da existência humana, o privilégio que lhe é próprio de poder interrogar o ser ao mesmo tempo em que se delimita como “presença intencional”. A descrição do Dasein, ao mesmo tempo psicológica e ontológica, insiste particularmente nos fenômenos da angústia (o homem se reconhece contingente) e da preocupação (o ser do homem manifestando-se no projeto, que é afirmação de uma liberdade e interpretação do mundo). Cf. DUROZOI, G. e ROUSSEL, A. Dicionário de Filosofia.Campinas: Papirus, 1993.
49
finito e acabado. Mesmo que o homem fosse imortal, continuaria sendo finito e
acabado, conforme nos informa a temporalidade. Ele sublinha ainda, que a morte
não constitui minha unicidade de pessoa.Pelo contrário: é a unicidade do Para-si
que determina a morte como algo meu, pois não é apenas na morte que
experimento algo que ninguém pode fazer por mim: em qualquer ato sou
insubstituível e único, porquanto ninguém pode amar ou sofrer por mim, vivendo o
amor e o sofrimento que são meus. Minha individualidade não necessita da morte
para se constituir. Porém a morte, como algo imprevisível, retira todo o sentido da
vida.
“Assim, a morte jamais é aquilo que dá vida a seu sentido.
Pelo contrário, é aquilo que suprime da vida toda significação. Se
temos de morrer, nossa vida carece de sentido, porque seus
problemas não recebem qualquer solução e a própria significação
dos problemas permanece indeterminada”.63
Ao abordar a questão da morte, Sartre se preocupa ainda, em enfatizar a
posição do Outro no tocante a este fato.O problema da existência do Outro,
aspecto que veremos no próximo capítulo de nossa pesquisa, começa a ser
esboçado aqui.
Sartre argumenta que o Outro se faz guardião de minha morte e como ser-
para-si, ele toma uma determinada posição sobre minha morte, podendo escolher
entre a indiferença, o esquecimento o ao grau de valor ou sentido aos meus feitos
enquanto vivo. Em suma: após nossa morte, estamos “nas mãos dos vivos”, pois
enquanto vivo posso desmentir o que o Outro descobre em mim projetando-me de
imediato rumo a fins diferentes, posso esquivar-me de suas ações contrárias ao
meu ponto de vista, ou posso defender-me ao meu modo, quando necessário.
63 SARTRE, J.P. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 661.
50
“Estar morto é ser presa dos vivos. (...) Enquanto vivo,
posso desmentir o que o outro descobre em mim, projetando-me
de imediato rumo a fins diferentes e, em qualquer caso, revelando
que minha dimensão de ser-para-mim é incomensurável com
minha dimensão de ser-para-outro. (...) Morrer é ser condenado a
não existir, a não ser pelo outro, e a ficar devendo a este sentido e
o próprio sentido de sua vitória”.64
A morte está fora de minhas possibilidades e não pertence à estrutura
ontológica do para-si, por se tratar de um limite, um termo final da vida
humana.Representa o triunfo do Outro sobre mim, apesar da existência daquele
ser algo totalmente contingente. Não teríamos conhecimento da morte se o Outro
não existisse, conforme menciona Sartre:
“Neste sentido, qualquer que seja a vitória efêmera obtida
na luta contra o Outro, e ainda que tenhamos nos servido do Outro
para ‘esculpir nossa própria estátua’, morrer é ser condenado a
não existir, a não ser pelo Outro, e a ficar devendo a este seu
sentido e o próprio sentido de sua vitória”.65
Por fim, Sartre conclui, contra Heidegger, que a morte é um fato contingente e
pertence por princípio à nossa facticidade. Não podemos tomar uma atitude com
relação à nossa morte, nem esperá-la, por se tratar de algo irrevelável à realidade
humana. Mas todo corpo que foi vivo foi significante, pois por mais modesta e 64 SARTRE, J.P. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 666. 65 SARTRE, J.P. O ser e o nada, p. 666.
51
fugidia que tenha sido sua relação com o mundo, ele abriu e constituiu um
caminho e nele deixou rastro. Este rastro sobrevive, embora apagado. Reavê-lo e
fazê-lo reviver é tarefa dos vivos, que poderão optar sobre qual imagem farão dos
mortos após a partida destes.
A morte estará sempre para-além de minha subjetividade, posto que em
minha subjetividade não há lugar algum para ela.
“E esta subjetividade não se afirma contra a morte, mas
independentemente dela, embora esta afirmação seja
imediatamente alienada. Portanto, não poderíamos pensar a morte,
nem esperá-la, nem nos armarmos contra ela, mas também nossos
projetos, enquanto projetos – não devido à nossa cegueira, como
diz o cristão, mas por princípio – são independentes dela. E, ainda
que haja inúmeras atitudes possíveis frente a esta irrealizável ‘a
realizar além do mais’, não cabe classificá-las em autênticas e
inautênticas, posto que, justamente, sempre morremos ‘além do
mais’”.66
CAPÍTULO II
A RELAÇÃO EU-OUTRO SEGUNDO SARTRE
2.1 – CONSIDERAÇÕES ACERCA DA EXISTÊNCIA DO OUTRO O problema da existência do Outro foi tratado por Sartre de modo bastante
amplo no decorrer de sua obra, especialmente em L’être et le néant. O fato de o
homem estar condenado a ser livre nos remete à idéia de solidão desse homem.
Mas esta fica agora irremediavelmente comprometida com a presença do Outro. 66 Ibid, p.671.
52
Surjo num mundo já habitado pelo Outro, e assim, passo a ter plena
convicção de sua real presença. Ele não é mero objeto, reconheço-o como
consciência, como sujeito, como para-si igual a mim. Estou tão consciente da
existência do Outro quanto da minha própria existência.
“(...) antes mesmo de qualquer encontro com o Outro, eu já
tenho de ser consciente dele de algum modo. Isto é: minha relação
com a consciência do Outro deve anteceder à primeira aparição
mesma do corpo do Outro frente a mim. O Outro deve fazer parte
de minha consciência desde o nascimento, como parte constituinte
do meu ser. Há uma predisposição ontológica do Para-si para
reconhecer o Outro enquanto sujeito. Assim, o Outro deve fazer
parte de mim como estrutura do Para-si que sou. Seu corpo
aparece depois quando o encontro. É então, na consciência, que
devemos buscar a existência do Outro, e não fora dela. (...) A
realidade humana é sempre Para-si-Para-Outro”.67
O Outro me aparece sempre como um objeto que devo conhecer e isso faz
com que a questão da intersubjetividade limite-se a um problema de
conhecimento. Ao abordar a questão da existência do Outro, Sartre destaca
inicialmente o problema da vergonha.”Tenho vergonha do que sou”. Mas o fato é
que só sinto vergonha diante de alguém. Ao cometer um gesto desastrado ou fútil,
levanto a cabeça e observo que alguém estava ali e me viu. Verifico subitamente
toda a vulgaridade de meu gesto e sinto vergonha de mim, tal como apareço ao
Outro, ou seja, sem a existência do Outro, meu lado vergonhoso não poderia
existir.
67 PERDIGÃO, P. Existência e Liberdade. Porto Alegre: L&PM, 1995, P.138.
53
“O Outro é mediador indispensável entre mim e mim
mesmo, sinto vergonha de mim tal como apareço ao Outro. (...)
Reconheço que sou como o Outro me vê. (...) Assim, a vergonha é
vergonha de si diante do outro, essas duas estruturas são
inseparáveis”.68
É preciso que o Outro me veja, para que eu venha a saber que sou desta
ou daquela maneira. É o juízo dos outros, a maneira como eles me vêem, que
reflui sobre mim e interfere na minha maneira de ser e aprender o que sou.
Sartre menciona o exemplo de alguém que observa outras pessoas sem ser
visto, por exemplo, pelo orifício da fechadura (...) Mas se surge alguém e me vê
vendo, me fixa como um voyeur. O domínio que eu antes possuía da situação se
inverte, agora me submeto a juízo do olhar do Outro. Sou o que ele acha que sou.
Envergonho-me e mostro minha vergonha. O Outro me vê no meu rubor e meu
constrangimento, na minha justificativa ou no me disfarce. E porque ele a vê, eu
também a vejo por meio dele.Agora sou um voyeur para mim mesmo, sou alguém
envergonhado e só me apreende por meio do Outro.
Necessito do Outro para captar por completo todas as estruturas de meu
ser, ou seja, o Para-si remete ao Para-Outro. A aparição do Outro na minha
experiência refere-se a fenômenos fora de minha experiência. Através do cogito69
cartesiano, somos conduzidos a uma verdade indubitável de nossa existência.
Sartre dedicou-se a mostrar a partir da obra “A transcendência do ego”, que o
cogito constitui a primeira evidência a partir da qual se coloca ao mesmo tempo a
questão do sentido dessa existência e da sua liberdade. O cogito comprova-se na
pura facticidade (em sua existência como fato imediato, aqui e agora), mas como
centro dos sentidos possíveis a serem inventados incansavelmente.
O cogito deve ser o ponto de partida para tentarmos extrair daquilo que nos
permite afirmar a realidade da existência do Outro. 68 SARTRE, J.P. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1997, p.290. 69 Cogito ergo sun (Descartes, Discurso do Método IV) – Argumento que extrai da existência do pensamento atual, a realidade da alma enquanto substância individual. “Sou uma coisa que pensa” (ID Meditações, II 6) cf LALANDE, A. Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
54
Descartes apreende Deus como perfeito, e através do cogito, coloca o
indivíduo como um marco entre Deus e o nada. O indivíduo por sua vez, tem com
o outro uma relação peculiar, diferente da relação que ele possui com os objetos.
A essa relação Sartre denomina negação interna. Essa relação é recíproca, o
outro é aquele que não sou eu.
Entretanto, posso converter-me em objeto para o outro e nesse caso, ele
perde sua objetividade, tornando-se sujeito da relação.Mas posso também
converte-lo em objeto e nesse caso, perco minha objetividade, assumindo a
posição de sujeito da relação. O outro-objeto é um ser real e concreto que exclui
de mim através de minha negação interna, organizando-o junto com os outros
objetos do mundo em função de meus próprios fins. Ele é apreendido por mim
através de meu saber e de minha experiência, devendo permanecer preso à
objetividade que constituí para ele:
“A negação é interna porque o outro se constitui como
outro si mesmo pela negação de mim-mesmo: o outro não ‘é’ eu.
Mas eu não sou o outro do mesmo modo que não sou a mesa.
Pois o modo como não sou o outro vai incidir na maneira como me
apreenderá enquanto sendo eu mesmo”.70
A análise da intersubjetividade leva Sartre a desenvolver ainda, uma
Ontologia do Corpo. Uma vez que ou bem sou objeto para o Outro, ou então o
outro se faz objeto para mim, há que se concluir que em ambos os casos nos
referimos ao corpo. Porém, neste momento surgem as questões: “O que é meu
corpo? O que é o corpo do Outro?”.
70 SILVA, F.L Ética e Literatura em Sartre. São Paulo: Unesp, 2004, p.186-187.
55
Para melhor investigar análise do corpo, Sartre dividiu-a em três dimensões
ontológicas. Na primeira delas ele levanta a seguinte questão: “O que é meu corpo
para mim?”.
Primeiramente, é importante lembrar, que em relação ao meu corpo, tudo o
que sei é proveniente do Outro, ao passo que este me capta como “corpo-no-
mundo”.
Por outro lado, devemos considerar que o corpo manifesta minha
contingência no mundo, já que a realidade humana é necessariamente
contingente. Assim, encontramos no corpo uma facticidade radical que caracteriza
o para-si, facticidade que resulta de minha contingência. Por outro lado, o corpo é
aquilo que eu nadifico, que deve ser compreendido como ultrapassado: um em-si
compreendido pelo para-si nadificador. Meu corpo é um corpo no meio do mundo
e minha relação com o mundo deve passar necessariamente pelo meu corpo.
Este, entretanto, expande-se através das coisas, tornando-se assim co-extensivo
ao mundo, especialmente em nossa relação com coisas e utensílios.É importante
ressaltar a preocupação que Sartre possui em não separar consciência de corpo.
Contrariando toda a tradição filosófica ocidental que apresenta o homem como um
ser composto de corpo e alma, Sartre nos define como sendo inteiramente corpo e
consciência.
“(...) É evidente que a consciência só pode existir seu corpo como
consciência. Assim, portanto meu corpo é uma estrutura
consciente de minha consciência”.71
Sartre nos remete ainda, à questão da transcendência do corpo, tratada por
ele de uma forma bastante peculiar. Meu corpo como referência no mundo situa-
se sobre dois pontos: quando estou situado no mundo, meu corpo é ponto de
71 SARTRE, J.P. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1997, p.416.
56
vista, mas quando o ultrapasso em direção àquilo que tenho-de-ser, meu corpo é
ponto de partida.
Dessa forma, pudemos ter um breve panorama do significado de “meu
corpo para mim”, segundo Sartre. Passemos agora, à questão que procura definir
o significado de “Meu corpo para Outro”.
Na segunda dimensão ontológica da análise do corpo, intitulada “O corpo
para Outro”, Sartre afirma que tanto faz estudar o modo como meu corpo aparece
ao outro, quanto o modo como meu corpo aparece a mim.72 Ele faz ainda, questão
de sublinhar que devo captar primeiramente o Outro como aquele para quem
existo como objeto. Expliquemos melhor: o Outro existe para mim primeiro, capto-
o como corpo depois, já que o corpo do Outro é para mim uma estrutura
secundária. Entretanto, o corpo do Outro não pode ser confundido com sua
objetividade. Não posso ter um ponto de vista sobre o meu corpo, ao passo que o
corpo do Outro me aparece originariamente como algo sobre o qual posso adotar
um ponto de vista. Além disso, ele é captado por mim de forma radicalmente
diferente da forma como capto os objetos do mundo.
Já o meu corpo não pode ser utilizado como um instrumento que está fora
de mim, pelo fato de que o meu corpo sou eu. Devemos considerar ainda, que o
corpo do Outro é constituído por um conjunto de órgãos sensíveis, o que em leva
a ser conhecido pelos sentidos do Outro.Nós podemos sentir a presença do Outro
por toda parte, na medida em que nos deparamos com coisas-utensílios que se
revelam utilizadas e conhecidas por ele.
“Esta sala onde espero o dono da casa revela-me em sua
totalidade, o corpo de seu proprietário. Essa poltrona é poltrona-
onde-ele-se-senta, essa mesa é mesa-na-qual-ele-escreve, esta
janela é janela por onde entra a luz que-ilumina-os-objetos-que-vê.
Assim, ele está esboçado por toda parte, e este esboço é esboço-
objeto. Um objeto pode a qualquer momento vir a preencher tal
72 Idem, ibid.
57
esboço com sua matéria. Mas isso não impede que o dono da casa
ainda “não esteja aí”. Está em outro lugar, está ausente”.73
A ausência é uma estrutura do ser-aí. Mas se a pessoa que estava ausente
(tomemos como exemplo o dono da casa da citação anterior) de repente aparece
frente a mim, esta aparição não modifica em nada a estrutura fundamental de
minha relação com ela. Eu existo para essa pessoa, ela fala comigo, e eu, por
minha vez, posso olhá-la e captá-la. Desse modo, descubro que a facticidade dela
é algo explícito.
O corpo do Outro, é, portanto, a facticidade da transcedência-transcendida,
na medida em que se refere á minha facticidade, além desse corpo nos ser dado
imediatamente como aquilo que o Outro é.
Sartre termina esta análise afirmando que a corporeidade e objetividade do
Outro são rigorosamente inseparáveis.
Na terceira (e última) dimensão ontológica do corpo, Sartre trata o problema
do meu corpo como objeto para-outro, atendo-se na questão do Olhar.
Eu existo para mim como conhecido pelo Outro. Com a aparição do olhar
do Outro, tenho a revelação do meu ser-objeto e passo a ser conhecido pelo Outro
como corpo. O olhar faz com que a existência do meu corpo seja revelada a mim,
minha facticidade é objetiva e meu corpo torna-se alienado. Para ilustrar melhor
essa questão, Sartre utiliza o exemplo da timidez:
“A experiência de minha alienação faz-se em e por
estruturas afetivas, como a timidez. ‘Sentir-se enrubescer’, ‘sentir-
se transpirando’, são expressões impróprias que o tímido usa para
explicar seu estado: o que ele quer dizer com isso é que tem
consciência viva e constante de seu corpo, tal como é, não para si
mesmo, mas para o outro”.74
73 SARTRE, J.P. O ser e o nada.Petrópolis: Vozes, 1997, p.430. 74 SARTRE, J.P. O Ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 335.
58
Sartre enfatiza ainda, que é dos conceitos por meio dos conceitos do Outro
que eu conheço meu corpo. A aparição do Olhar do Outro faz com que eu tenha a
revelação do meu ser-objeto, pois sou conhecido pelo outro como corpo, através
do qual manifesta-se o sentido profundo da facticidade. Para ilustrar esse fato,
Sartre utiliza um exemplo no qual se refere a uma criança pequena:
“(...) esta aparição do corpo como coisa-utensílio é muito tardia na
criança: é em qualquer caso, posterior à consciência do corpo
propriamente dito e do mundo como complexo de utensilidade; é
posterior à percepção do corpo do outro. A criança sabia há muito
tempo pegar, puxar, empurrar, segurar, antes de aprender a tocar
e ver sua mão. Olha para ela, e ela se afasta de seu campo visual,
vira o rosto e procura-a com o olhar, como se não dependesse de
si mesmo voltar a colocá-la ao alcance de sua vista. É por uma
série de operações psicológicas e de sínteses de identificação e de
reconhecimento, que a criança chegará a estabelecer tabelas de
referências entre o corpo-existido e o corpo-visto. Ainda é preciso
que já tenha anteriormente iniciado seu aprendizado do corpo do
outro. Assim, a percepção de meu corpo situa-se
cronologicamente, depois da percepção do corpo do outro”.75
Ao se referir ao corpo, Sartre suprime a distinção entre consciência e corpo:
existimos em consciência da mesma maneira como existimos corporalmente. Meu
corpo sou eu. Eu o existo, portanto, não posso usá-lo como algo que se encontra
fora de mim. Por outro lado, não me é possível vê-lo como um “amontoado” de
órgãos e membros. Não chegarei a ver meu cérebro ou minhas vértebras
75 SARTRE, J.P. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 449.
59
executando suas funções. Poderei vê-los somente através de exames como
radioscopias, por exemplo. Neste caso, verei tais imagens em uma tela, sendo
apresentadas a mim, ao passo que me encontro fora destas. Se anteriormente vi
dissecações de cadáveres humanos ou livros de fisiologia ou anatomia, concluo
que meu corpo é constituído exatamente como aqueles que observei em tais
circunstâncias.Não vejo meu corpo como ele é visto por médicos, cientistas ou
psicólogos, fisiologicamente, pois não posso assumir o ponto de vista do Outro
sobre mim. Tal tarefa seria impossível. Entretanto, há membros e órgãos que se
encontram fora de meu corpo, o que me possibilita tocá-los, apalpá-los. Mas esses
membros e órgãos são utilizados pelo corpo para executar diversas funções e
neste caso, sou considerado “o outro” em relação a estas partes de meu corpo.
Por exemplo, apreendo meu olho como órgão sensível, mas não posso vê-lo
vendo, não posso captá-lo enquanto ele me revela um aspecto do mundo.
Citemos um outro exemplo, elaborado por Sartre: “Minha mão revela todas as
características dos objetos, mas não revela a ela mesma76”. Observo minha mão
tocar os objetos, mas não a conheço em seu ato de tocá-los. Esse acontecimento
exige que eu tome a distância necessária de minha mão e neste momento, ela se
torna para mim como qualquer objeto que posso avistar naquele momento.
Em Sursis, Sartre nos fornece um claro exemplo que reforça esta idéia:
“No meio da Pont-Neuf, ele parou e pôs-se a rir. (...) Estendeu as
mãos e passou-as devagar sobre as pedras do parapeito (...) havia
suas mãos no parapeito branco: quando as olhava, pareciam de
bronze. Mas justamente, porque as podia olhar, não lhe pertenciam
mais, eram de outro de fora, como as árvores, como os reflexos do
Sena, mãos cortadas. Fechou os olhos e elas tornaram a ser dele
(...) Minhas mãos: a inapreciável distância que me revela as coisas
e delas me separa para sempre”.77
76 SARTRE, J.P. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 386. 77 SARTRE, J.P. Sursis.São Paulo: Abril Cultural, 1974, pp. 384-385.
60
O Outro conhece de meu corpo, as partes que são visíveis a ele, e seria incapaz
de reconhecer um de meus órgãos internos, caso o visse exposto dentro de um
vidro, como Sartre procurou descrever no conto Intimidade do livro O Muro, em
uma fala da personagem Lulu:
“Ele me ama, mas não ama minhas tripas; se lhe mostrassem meu
apêndice num vidro, não o reconheceria; ele vive a me apalpar,
mas se lhe pusessem o vidro nas mãos não sentiria nada
intimamente, não pensaria: ‘isto é dela’; deveríamos poder amar
tudo de uma pessoa, o esôfago, o fígado, os intestinos. Talvez não
gostemos dessas coisas por falta de hábito, se as víssemos como
vemos nossas mãos e nossos braços, talvez as amássemos; é por
isso que as estrelas-do-mar devem amar-se melhor que nós, elas
se estendem sobre a praia quando faz sol e expelem o estômago
para fazê-lo tomar ar e todos podem vê-lo; eu me pergunto por
onde faríamos sair o nosso, pelo umbigo, talvez”.78
Dessa forma, cabe, pois concluir, que o Outro é um ser que me vê, assim
como eu o vejo. Só posso negar ser o Outro porque me sei visto por ele. Durante
toda nossa existência, somos objeto do olhar do Outro, ou seja, existimos sob
esse olhar. E através do olhar, primeiramente, percebo o corpo do Outro para
depois ter a percepção de meu corpo. Meu ser precisa ter o Outro como
referência, para saber com certeza que existo como consciência alheia.
Entretanto, mesmo que ocorra a ausência do Outro, nunca estamos sós: mesmo
estando trancado em meu quarto, posso estar em relação com o Outro, através de
uma carta do Outro sobre minha mesa, através do livro que leio (esse livro foi
78 SARTRE, J.P. O Muro.Trad. H. Alcântara Silveira. São Paulo: Nova Fronteira, 1982, p. 91.
61
escrito por alguém, no caso, o outro); posso ver na parede o quadro que alguém
pintou, ou estar ouvindo uma música (que foi composta e está sendo cantada por
alguém). Porém, o “ser-visto”, faz com que meu corpo se torne um em-si-para-
outro, como experiência que se torna perpétua em nossa existência, pois
conformadamente me submeto a conhecer meu corpo através de informações
dadas pelo Outro, o qual, através de seu olhar, seu saber e sua linguagem, torna-
se fator essencial ao conhecimento de meu corpo e de meu ser-no-mundo.
Cabe ainda lembrar, que a existência de meu corpo e do corpo do Outro
pode gerar um conflito, já que ou bem sou objeto para o Outro, ou o Outro se faz
objeto para mim, e esse fato pode gerar um empecilho à comunicação das
consciências.
Assim, não posso captar-me como apareço ao Outro, pois nunca poderei
me ver da forma como o Outro me vê. Na última entrevista de Sartre que
antecedeu sua morte, podemos encontrar um exemplo que se aplica a essa
situação:
“Segundo os outros, sei o que minha velhice implica a quem me vê
de fora, mas não sinto a minha velhice. A velhice é uma realidade
minha que os outros sentem. Os outros é que são a minha
velhice”.79
2.2 – O OUTRO: UM MAL NECESSÁRIO Na divisão anterior deste capítulo discorremos acerca de nossa existência como
corpo no meio do mundo. Estando agora cientes da resposta à esta questão,
79 Testamento de Sartre. Porto Alegre: L&PM, 1980, p.33.
62
podemos a partir daí, examinar as Relações concretas com o Outro. Estas são
comandadas pelas minhas atitudes em face do objeto que sou para o Outro.
O existencialismo elevou a questão do Outro a uma posição central e Sartre, por
sua vez, descreveu a intersubjetividade de maneira magistral no que tocante à
elaboração de sua filosofia. Antes dele, outras correntes filosóficas se limitavam a
tratar da nossa maneira de estar presente no Outro e de nossa maneira de fazer o
Outro estar presente à nossa subjetividade.Mas Sartre deixou claro que não basta
pensar o Outro como aquele que é visto por mim, mas ele deve também, ser visto
como aquele que me vê, aquele que invade minha subjetividade.
Conforme vimos anteriormente, não existe uma consciência isolada. Cada
homem existe no mundo com outros homens e interage com eles. A convicção da
existência do Outro é um dado imediato em minha vida. Tenho plena certeza da
existência do Outro, como de minha própria existência. Reconheço-o como
consciência, como sujeito e Para-si igual a mim, portador do mesmo poder de
nadificação, da mesma intencionalidade e de fazer o mundo o lugar dos seus
projetos.
O termo alteridade (originário do latim “alter”: outro), designa a
multiplicidade de consciências, o caráter daquilo que é o Outro.
Mas o simples conhecimento do Outro não me dá condições de apreendê-lo
como sujeito, mas apenas como objeto e sua consciência é impenetrável a mim,
está fora do meu alcance, “o Outro é a consciência que eu não sou”. Ainda assim,
antes mesmo de qualquer encontro com o Outro, já tenho de ser consciente de e
de algum modo.Ele deve fazer parte de minha consciência como parte constituinte
de meu ser. É na consciência que devemos buscar a existência do Outro. Assim, a
realidade humana é sempre Para-si-Para-outro.
Quando dois homens estranhos se encontram pela primeira vez,
independente de sua classe social e interesses, ambos se reconhecem
reciprocamente como homens, como se aquela relação sempre tivesse existido,
posto que somos desde o nascimento, o Para-si-Para-outro. Cada homem
reconhece o caráter humano do Outro e tem sua humanidade reconhecida pelo
Outro. Este é um ser que me vê, assim como eu o vejo: só posso negar o ser do
63
Outro porque me sei visto por ele. Sou objeto de olhar e existo sob o olhar de
alguém. Diante dessas afirmações, concluo que posso reconhecer o Outro como
consciência, liberdade e projeto. Mas é importante lembrar que apesar do Outro
ser igual a mim em minha condição humana, ele é aquele que eu não sou e possui
um projeto único, próprio, singular, insubstituível e realiza-se em uma ação única.
Essa compreensão imediata da singularidade de cada homem revela-me a sua
liberdade.
Par obter qualquer verdade objetiva a meu respeito dependo do Outro. Ele
é indispensável para que eu me conheça. Sozinho eu não teria como fazer uma
representação de mim e não poderia saber-me visto objetivamente.
“Para obter um pensamento objetivo sobre mim, preciso da
mediação do Outro. Ele é o intermediário indispensável que remete
de mim a mim mesmo. Se eu estivesse sozinho no mundo, jamais
teria como me atribuir qualidades. Eu me conheço objetivamente
pelos conceitos que o Outro formula sobre mim. Aquilo que sei
sobre mim (meu caráter, meu corpo), provém do mundo como o
Outro me vê”.80
Entretanto, na relação eu-outro ocorre um conflito de liberdades. Necessário para
mim, o Outro é também um mal (um mal necessário). Minha liberdade é
ameaçada pela liberdade alheia.
“Não podemos constranger o Outro a pensar de nós o que
queremos: se o olhar do Outro me censura, torno-me objeto de
reprovação; se me admira, torno-me objeto de admiração. Também
80 PERDIGÃO, P. Existência e Liberdade. Porto Alegre: L&PM, 1995, p. 143.
64
não podemos fazer o Outro agir como desejamos. (...) O Outro faz
de mim um mero instrumento de seus possíveis, se assim o
desejar. (...) O Outro me faz um ser indefeso perante uma
consciência que me julga. (...) De certo modo, somos escravos do
Outro, que é nosso juiz e senhor. Não temos para onde fugir”.81
A primeira atitude para com o Outro: o Amor, a Linguagem e o Masoquismo.
A primeira atitude para o Outro se refere ao amor, a linguagem e ao
masoquismo, conforme vimos no título acima. Expliquemos melhor: o Para-si
possui duas condutas de posse pelas quais tenta assimilar a liberdade do Outro.
A primeira conduta seria um projeto de nos apoderarmos da liberdade
desse alguém e que essa pessoa consinta em fazer de mim um centro de
referência absoluto em torno do qual ordenam-se as coisas do mundo. Posso
tentar assimilar a visão que o Outro possui de mim, pretendendo roubar a
consciência alheia enquanto consciência livre. Pretendo ter de mim essa visão
exterior que só o Outro possui.
Assim, esforço-me para ser o mais possível corpo, e menos possível
liberdade. Quero ser eu mesmo responsável pelo que o Outro faz de mim.
Sartre utiliza como exemplo aqui, o amor. O amante reivindica a liberdade
do amado e pretende apropriar-se dele como sujeito livre. Por isso, a amante faz-
se o mais possível objeto para o amado. Quero que a pessoa amada se conserve
como consciência e assim me faço o mais possível coisa para capturar a visão
que ela tem de mim.Por isso esse projeto é falho, pois nesse caso ocorre um
conflito de projetos, o que pode conduzir um dos amantes à atitude masoquista.
Isso ocorre no momento em que um deles abandona sua subjetividade para
perder-se na subjetividade da pessoa amada.Ele sabe que sua subjetividade é um
obstáculo, por isso busca fazer-se apenas um objeto para que o Outro possa
possuí-lo integralmente. Ou seja: deixa livre a subjetividade do amado e extermina 81 PERDIGÃO, P. Existência e Liberdade. Porto Alegre: L&PM, p. 146.
65
a sua própria. Entretanto, essa tentativa termina em fracasso. Podemos possuir o
corpo do amado, o seu exterior, mas não a sua subjetividade.
A segunda atitude para com o Outro: a Indiferença, o Desejo, o Ódio e o Sadismo.
O fracasso da primeira atitude para com o Outro pode ser ocasião para que
adotemos a segunda.
Conforme vimos anteriormente, toda tentativa de assimilação da
consciência alheia está fadada ao fracasso.
Ao ver-me em perigo diante do olhar do Outro, adoto a segunda atitude
colocada por Sartre: contra-ataco o olhar do outro, reenviando-lhe o meu olhar. O
objetivo dessa tentativa é afrontar a liberdade do Outro, o qual é visto por mim
como um objeto.A partir do momento em que olho em direção ao olhar do Outro,
esse se desvanece e não vejo mais do que olhos. Neste momento, o Outro torna-
se um ser que possuo e que reconhece minha liberdade. Penso que minha meta
foi alcançada. Mas percebo que não posso apropriar-me da liberdade do Outro,
pois tudo o que me restou dele é um “outro-objeto”. Posso escolher refugiar-me na
indiferença, imaginando que estou sozinho no mundo fingindo não enxergar outras
liberdades. Mesmo assim, continuarei a ser objeto para o Outro, ainda que eu
pretenda ignorar esse fato. Ou seja: a indiferença, neste caso implica em minha
“cegueira” com relação aos outros, e esses têm para mim mera função de objetos:
o bilheteiro nada mais é do que sua mera função de coletar ingressos, o garçon
nada mais é do que a atitude de servir os fregueses. Porém, minha indiferença
com relação ao Outro nada mais é do que uma atitude vinda de mim que resulta
em um novo fracasso em minha tentativa de apreender a liberdade do Outro.
Assim, posso fazer uma nova tentativa: através do desejo sexual, procuro
roubar a atitude alheia pela objetividade.No ato sexual, viso possuir o corpo da
amada como um corpo dotado de liberdade, captando-o como um corpo alheio
com consciência alheia. Vejo a carícia como a expressão de tocar a liberdade
66
corporificada do Outro. Nesse momento, sinto-me como que apoderando-me
dessa liberdade. Entretanto, também o desejo sexual como modalidade de
buscarmos a liberdade do Outro se destina ao fracasso. A realização do desejo
faz desaparecer o desejo de possuirmos a consciência encarnada do Outro, pois
no clímax dessa relação me volto para o meu próprio gozo e nesse momento, a
consciência alheia é excluída ao mesmo tempo em que meu desejo é
suprimido.Desse modo, a pretendida apropriação da consciência alheia através da
carne não foi conseguida, e a liberdade do Outro continuou intocável. Na área
sexual, resta, contudo, outra alternativa: o sadismo. Este pode ser definido da
seguinte forma: o sádico deseja possuir a transcendência do Outro como pura
transcendência, e, no entanto como corpo, ocorre uma impossibilidade de
apropriar-se da consciência encarnada, já que o Outro perde sua transcendência
ao apresentar-se como objeto. Assim, o Outro torna-se instrumento nas mãos do
sádico, que age à força sobre o Outro. Mas ao apropriar-se da carne do Outro
através da violência e da dor, o sádico visa na realidade, apropriar-se da liberdade
do Outro.
“O sadismo é um esforço para encarnar o outro pela
violência, e esta encarnação à força já deve ser apropriação e
utilização do outro. O sádico procura – tal como o desejo – despir o
outro dos atos que o disfarçam (...) Portanto, há uma encarnação
pela dor... (...) é da liberdade que o sádico tenta apropriar-se”.82
O sadismo não procura suprimir a liberdade daquele a quem tortura, mas
sim, obrigá-la a identificar-se livremente com a carne torturada.
82 SARTRE, J.P. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 500.
67
“Eis porque o sádico irá exigir provas manifestas desta
servidão de liberdade do Outro pela carne. Seu propósito será
fazer com que ele peça perdão, obrigará o outro se humilhar por
meio da tortura e da ameaça, irá forçá-lo a renegar o que lhe é
mais caro. (...) O sádico se coloca como aquele que dispões de
todo o tempo do mundo” . 83
Todavia, a liberdade alheia é por princípio um campo fora de alcance, por
isso, quanto mais o sádico se propõe a tratar o Outro como instrumento, mais a
liberdade do Outro lhe escapa. Assim, na atitude sádica do homem percebemos
mais uma tentativa fracassada de apreender a liberdade do Outro.
O empreendimento da morte do Outro Todos os projetos até agora aqui demonstrados, foram frustrados. Dessa
forma, resta uma última tentativa de possuir a liberdade do Outro: o
empreendimento de sua morte. A finalidade desta, é não deixar que ele guarde
segredo do que nós somos objetivamente. A essa livre determinação, Sartre dá o
nome de ódio (ou consciência odiosa).O Para-si abandona seu projeto de uma
possível união com o Outro e idealiza um mundo onde este não exista.Não há
como ignorar o Outro, que por sua vez, representa não só um único indivíduo, mas
toda a espécie humana.
O Outro que odeio representa na verdade, “Os Outros”.
Entretanto, a tentativa de eliminarmos o Outro, também redunda em
fracasso, uma vez que não poderia evitar que o Outro houvesse existido ou
tivesse levado consigo para o túmulo algo que jamais poderei conhecer sobre
mim.
83 SARTRE, J.P. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 500.
68
“Se o Outro está vivo, posso sempre mudar a imagem que
ele tem de mim. Mas o aniquilo, o que fui para ele está petrificado,
irremediavelmente fixado em uma essência pura. A morte do Outro
sempre empobrece o que sou objetivamente. Á medida que os
outros morrem, morre com eles um pouco mais daquilo que sou
objetivamente no mundo”.84
2.3 - O OLHAR E O CONFLITO DE LIBERDADES “Vêem-me, logo existo!” 85 afirma o personagem Daniel em Sursis. Esta
afirmação resuma a angústia de existir sob o olhar do Outro. Entretanto, ele
comunica essa sua descoberta para Mathieu, para que este se conscientize de
que ele vê o Outro, e não somente é visto.
“É neste sentido que se utiliza a fórmula do cogito: não é
possível fugir do olhar do Outro porque não há como duvidar de
que a existência está vinculada a esse olhar”.86
Na concepção de Sartre, a realidade humana é para-si-para-outro.
O homem que vejo passar na rua, o vendedor ambulante ou o mendigo que
ouço cantar de minha janela ao para mim, meros objetos. Mas essa relação de
objetividade entre o Outro e mim, é uma relação essencial à minha existência e
totalmente previsível de minha parte. Ou seja: entre mim e o Outro há uma relação
fundamental. O Outro me vê. Percebo seus dois globos oculares vindo em minha
direção a todo o instante. Quando eu apreendo o olhar, cesso de perceber os
olhos que em vêem. Nesse momento, tomo consciência de ser visto. Esse olhar
84 PRDIGÃO, P. Existência e Liberdade. Porto Alegre: L& PM, 1995, 153. 85 SARTRE.J.P. Sursis.Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Difel, 1964, p. 335 86 SILVA, F.L. Ética e Literatura em Sartre. São Paulo: Unesp, 2004, p. 194.
69
se manifesta nos olhos do Outro, mas me devolve a mim mesmo. Mas o que
representa para mim ser visto?
Suponhamos que eu vá ao cinema.Já ao adentrar o saguão encontro
muitas pessoas pelo caminho.Algumas compram balas, outras disputam lugares,
ou riem durante a sessão que ainda não terminou. Quanto a mim, vejo todas
aquelas pessoas como objetos.Só eu me sinto sujeito. Eu os meço, classifico,
analiso. Sinto que entre aquelas pessoas só eu tenho projetos e consciência.Já
sentado de repente meu olhar encontra um olhar que me observa. Minha posição
muda, ao passo que esse olhar me transforma em objeto. Esse olhar me
escapa.O dono desse olhar se recusa a tornar-se objeto de meu olhar. É como um
duelo.E finalmente pelo olhar do Outro, tomo consciência de que ele é também
consciência.
“Pois o mundo em que surjo é um mundo em que o outro já
habita. E o conflito é constitutivo, pois mesmo minha intenção de
respeitar a liberdade do outro já constitui um projeto acerca de sua
liberdade e por isso a violenta. Quando duas pessoas se medem
pelo olhar, é inevitável que uma tente paralisar a outra, isto é,
apossar-se da liberdade da outra. O ser-para-outro é
estruturalmente conflituoso”.87
Assim, toda minha relação com o Outro está condicionada pelo “ser visto”.
O olhar do Outro me rouba o mundo que era meu e rouba minha intimidade.
Quando o olhar do Outro me fixa, ocorre uma espécie de “hemorragia” em minha
consciência. Esta perde o seu caráter de ser presença a si e é dominada pelo
olhar. O Outro me reduz então a objeto e minha reação imediata passa a ser a
vergonha. Mas poderei fingir que não a sinto, disfarçando-a com a má-fé.
87 SILVA, F.L Ética e Literatura em Sartre: Ensaios Introdutórios. São Paulo: Unesp, 2004, p. 190.
70
“Pelo olhar vivo a solidificação de minhas possibilidades.
Se, como vimos, sou minhas possibilidades, não posso deixar de
sê-las. Mas através do olhar do Outro elas são alienadas. Por isso,
o Outro como olhar é apenas isto: minha transcendência-
transcendida. O Outro se resume em ser a morte escondida de
minhas possibilidades, e uma morte da qual me envergonho,
porque a vivo”.88
O olhar do Outro me remete a mim, diz Sartre. Sou um ser olhado e nada
sei a respeito desse olhar. Sei o que é ser olhado, capturado pelo olhar do Outro,
mas não sei definir este olhar a partir de sua origem no Outro.
“Assim, só estou capacitado a formular sobre mim um juízo
objetivo, saber-me de determinado modo (vergonhoso, covarde,
feliz, generoso, colérico, alto, gordo, feio, etc), porque esse tipo de
autoconhecimento passa pelo Outro. Ele é o intermediário
indispensável que remete de mim a mim mesmo. Se eu estivesse
sozinho no mundo, jamais teria como me atribuir qualidades. Eu
me conheço objetivamente pelos conceitos que o Outro formula
sobre mim. Aquilo que sei sobre mim (meu caráter, meu corpo),
provém do modo como o Outro me vê”.89
Capto olhar do Outro como o próprio cerne de meu ato, como solidificação
e alienação de minhas possibilidades. O Outro como olhar é minha 88 BORNHEIM, G. Sartre. São Paulo: Perspectiva, 2000, p.88. 89 PERDIGÃO, P. Existência e Liberdade. Porto Alegre, L&PM, 1995, P. 143.
71
transcendência-transcendida. Com o olhar do Outro, a “situação” me escapa, já
não sou dono daquela situação. A aparição do Outro faz surgir nessa situação um
aspecto não desejado por mim do qual não sou dono e que me escapa por
princípio, posto que sou minhas possibilidades, não posso deixar de sê-las, mas
através do olhar do Outro elas são alienadas.
No romance Le Sursis Sartre no fornece um exemplo esclarecedor no
tocante a essa discussão:
“(...) Certamente já experimentastes no metrô, no saguão
de um teatro, no trem, a impressão súbita e insuportável de ser
espiado por trás. Tu te voltas, mas o curioso mergulhou o nariz em
seu livro, nem chegas, a saber, quem te observava. Retomas tua
primeira posição, mas sabes que o desconhecido reergue seus
olhos. (...) Eis que o senti pela primeira vez no dia 26 de setembro
às três horas da tarde, no parque do hotel. E não havia ninguém,
compreendes, Mathieu, ninguém. Mas o olhar estava lá”.90
Conforme afirmamos anteriormente, o homem é um ser-para-outro e o olhar
por sua vez, revela a existência indubitável desse Outro para quem nós somos. O
olhar me revela como um fato a existência do Outro e minha existência para-outro.
Mas de acordo com o que vimos na divisão anterior deste capítulo, eu e o
outro são duas liberdades que se afrontam mutuamente e por vezes, tentam
paralisar-se pelo olhar. Pelo fato de existir como limite à liberdade alheia, o
homem fará tentativas constantes de possuir a liberdade do Outro, posto que essa
característica faz parte de cada indivíduo. Ou seja: o Para-si jamais terá uma
atitude de passividade absoluta diante do Outro. Assim a palavra final de todo o
problema da intersubjetividade resume-se o conflito congênito que ocorrerá entre
mim e o Outro.Esse tema aparece em uma das melhores peças do teatro de
Sartre: Huis-Clos (Entre Quatro Paredes) como poderemos observar a seguir.
90 SARTRE, J.P. Sursis. Trad. De Sérgio Milliet. São Paulo: Difel 1964, p. 102.
72
“O Inferno são os Outros” O olhar, as relações com o Outro e seus conflitos são assuntos tratados
como foco principal na peça Entre Quatro Paredes (Huis Clos91, título original em
francês). Escrita por Sartre em 1944 chamava-se inicialmente Os Outros.A ação
da peça desenrola-se no inferno. Não o inferno da mitologia cristã, com diabos,
garfos e chuva de enxofre, mas um salão decorado no estilo do Segundo Império,
com três poltronas e uma estátua de bronze sobre a lareira.
Levados um a um a este espaço pelo criado, chegam os “mortos” Garcin,
Inês e Estelle, respectivamente, um homem de letras, uma funcionária dos
correios, lésbica e uma mulher da alta sociedade. Essas três pessoas deverão
viver aqui para sempre, sem poder sair, sem dormir, sem comer e em sequer
piscar os olhos. Enclausurados e condenados à vida em comum, não tardam em
tornar a convivência entre eles, verdadeiramente insuportável. Inês é a primeira a
reconhecer que o carrasco naquele estranho inferno será cada um deles para
cada um dos outros. Os pecados cometidos por eles na terra foram
respectivamente: Garcin: em vida, era incapaz de amar e tolerar a esposa, por
isso jogara sadicamente com ela. Alegando uma posição pacifista, fugira do
serviço militar. Posteriormente, fôra preso e depois executado. Inês: lésbica, levou
sua amante ao suicídio. Estelle: burguesa e ninfomaníaca, trouxe a morte ao
amante e ao filho. Os três necessitam-se mutuamente para se se sentirem
justificados e livres da culpa através do olhar dos outros: “Olhe para mim – diz
Garcin a Estelle – preciso que alguém me olhe quando dizem que sou um
covarde” 92. A questão do olhar do Outro sobre nós surge em vários trechos da
peça, portanto, vamos destacar neste momento, aquele que talvez explicite melhor
este problema: Estelle, uma das personagens que se preocupa em manter a
beleza de sua aparência, num determinado momento se dá conta de que não 91 Huis Clos em 1993 é encenada pela quinta vez no Brasil em montagem dirigida por Antônio Abujamra. Rebatizada O inferno são os Outros, a peça marca a reabertura do Teatro Glória, no bairro do mesmo nome, na zona sul do Rio de Janeiro.(“Abujamra encena clássico de Sartre”, in: Folha de São Paulo, Ilustrada, 30 de julho de 1993). 92 SARTRE, J.P. Entre quatro paredes.Trad. de Guilherme de Almeida, 1954, p.42.
73
tinha à sua disposição u espelho, através do qual pudesse ver sua própria imagem
refletida. Então Inês (a personagem homossexual), convida Estelle a mirar-se na
pupila de seus olhos. Após realizar tal experiência, Estelle sente-se intimidada e
subjulgada pelo olhar de Inês.
Quem necessita do olhar justificador, entretanto, nega-o ao Outro. Essa
batalha de consciências se processa num torturante ciclo de insatisfações. Inês
procura Estelle, porque quer seu olhar sobre ela ao mesmo tempo em que o nega
a Garcin: o mesmo acontece quando Estelle procura Garcin, e este, por sua vez,
assedia Inês. Dentro dessa perspectiva, Maciel nos afirma que:
“Essa batalha de consciências, no diz Sartre, é o mais
horrível de todos os instrumentos de tortura que podem ser usados
no inferno. Os condenados não precisam de um torturador: eles
próprios se servem... como nos restaurantes automáticos. Cada
um procura sua justificação, mas a liberdade de um sempre
termina onde começa a do Outro”.93
As preocupações filosóficas demonstradas por Sartre na peça Entre Quatro
Paredes são nitidamente inseparáveis das teses de O ser e Nada: o essencial das
relações entre consciências é o conflito. Se o Outro existe, a existência do homem
está ligada ao julgamento que o Outro faz de si.
Garcin, Inês e Estelle foram condenados ao inferno por terem assumido a
liberdade que lhes facultava sua condição humana. Sendo obrigados a torturar-se
mutuamente, descobrem o verdadeiro inferno: uma consciência não pode furtar-se
a enfrentar outra consciência que a denuncia.
A presença do Outro é uma constante em nossas vidas, mesmo nas
ocasiões em que se ocorre sua ausência física. Ainda que ninguém nos veja,
existimos sempre para todas as consciências.Garcin, ao perceber que eles 93 MACIEL, L.C. Sartre: Vida e Obra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, p.104.
74
estariam eternamente naquele lugar de onde nunca poderiam sair, conclui
desalentado:
“(...) Vocês são só duas? Pensei que eram muitas, muitas
mais. Então isto é que é o inferno? Nunca imaginei... Não se
lembram? O enxofre, a fogueira, a grelha... Que brincadeira! Nada
de grelha. O inferno são os Outros”.94
Numa interpretação moral da peça, podemos concluir que as outras
pessoas são o inferno, porque a sua presença faz-nos recordar como foi
inadequado o nosso comportamento em determinadas situações. A situação-limite
de Huis-Clos revela a essência da relação entre o homem e seu próximo. Certa
vez, um crítico perguntou a Sartre se a situação seria a mesma no caso de
estarem reunidos no inferno um general, uma freira e uma mãe de família. Sartre
respondeu que a máscara de respeitabilidade de três personagens essa natureza
logo desapareceria, revelando idêntica má-fé. Mesmo que Che Guevara, Simone
de Beauvoir e Calvino estivessem se entreolhando, eles também não seriam
capazes de evitar que suas vidas deixassem de ser um inferno.
CAPÍTULO 3
TORTURA, VIOLÊNCIA E SITUAÇÕES-LIMITE
3.1 – O PROBLEMA DA VIOLÊNCIA E O ANIMAL HUMANO RELATADO EM TRÊS MOMENTOS DA OBRA DE SARTRE
94 SARTRE, J.P. Entre Quatro Paredes.Trad. de Guilherme de Almeida. 1954 p.52.
75
O problema da violência foi tratado de formas diferentes através da obra de
Sartre. Nota-se que em muito de seus escritos ele tomou por base situações reais
das quais participou persistentemente como ativista político e escritor engajado de
sua época.
Desde 1939 quando partiu para a frente de combate na Segunda Guerra
Mundial na função de soldado meteorologista, Sartre começou a sofrer profundas
mudanças no que concerne à sua moral individualista e idealista. Fatos como a
guerra, a mobilização e o convívio em campo de concentração nazista impactaram
fortemente o seu lado de escritor pequeno-burguês e acabaram por trazer
notáveis mudanças à sua personalidade, tornando-o “um homem responsável pela
humanidade inteira”. A oposição ao colonialismo ocidental também passou a ser
uma fonte característica de Sartre a partir de 1946, somada às suas constantes
manifestações de apoio aos movimentos de libertação nacional nos países
subdesenvolvidos. Suas tomadas de posição mais vigorosas e que tiveram maior
repercussão na imprensa de todo o mundo, referem-se à independência da
Argélia, ao socialismo instalado em Cuba por Fidel Castro e à luta no Vietnã.
Entretanto, a luta pela independência da Argélia parece ter sido o momento
determinante de sua adesão à causa dos países subdesenvolvidos.
Colônia da França desde 1930, a Argélia sofreu o domínio dos franceses
por mais de um século, através da força das armas e pelo apoio da elite local.
Com a Segunda Guerra Mundial, radicalizaram-se as aspirações nacionalistas
naquele país, levando-o a um movimento revolucionário liderado pela FLN95
(Frente de Libertação Nacional), a qual entre 1954 e 1962 promoveu uma guerra
civil naquele país. A luta entre colonos e nacionalistas argelinos degenerou-se em
sangrentos atentados terroristas de parte a parte. Mas após plebiscito realizado na
França em 1961 pelo presidente Charles de Gaulle, 75% dos franceses
95 FLN (Frente de Libertação Nacional). Partido nacionalista argeliano fundado em 1954 para organizar a insurreição armada na Argélia. Em 1958, a Frente nomeou o governo provisório da República da Argélia (GPRA), com o qual a França negociou em 1962 a independência do país. A constituição de 1963 transformou a FLN no partido único da Argélia.
76
declararam-se favoráveis à independência da Argélia. Assim, em março de 1962,
de Gaulle reconhece a independência argelina.
No que se refere ao relacionamento de Sartre com seu próprio país, os
últimos anos da guerra argelina estiveram entre os mais infelizes de sua vida. Ele
ficou profundamente desapontado com as declarações vindas de líderes franceses
contrários à independência da Argélia, os quais afirmavam que Sartre deveria ser
fuzilado por estar lutando por aquela causa.A forte oposição sofrida por Sartre
resultou em dois ataques à bomba feitos em seu apartamento pela OAS96, sendo
o primeiro deles realizado em 19 de julho de 1961, e o segundo em 7 de janeiro de
1962.Felizmente, em ambas as ocasiões, Sartre estava ausente de sua
residência.
Passemos agora a uma outra questão na qual Sartre também esteve
engajado: o problema do Colonialismo e Neocolonialismo em países do Terceiro
Mundo. No tocante a esta questão, Sartre escreveu um prefácio para o livro de
Fanon97, que tratava justamente desta questão.Sartre conheceu Fanon em 1961
quando este havia terminado de escrever Les Damnés de la Terre, sendo este
uma à beira da exaltação sobre a libertação dos povos colonizados, que se daria
através da violência.Um dos resultados do encontro foi o prefácio de Sartre escrito
para o livro que ficou famoso. Sobre este, Sartre fez questão de afirmar que:
“Este livro não tinha nenhuma necessidade de um prefácio.
Tanto menos que não se dirige à nós. No entanto, fiz-lhe uma para
conduzir até o fim a dialética”.98
96 OAS – Organização francesa extremista, decidida a conservar a Argélia francesa a qualquer custo. Ela almejava conseguir este objetivo, intensificando a própria guerra da Argélia através de ataques provocadores a civis árabes e em parte, aterrorizando qualquer um que defendesse na França metropolitana o fim da guerra através de um acordo negociado. 97 FANON, Frantz. Psiquiatra e teórico político francês (1925-1961). Médico em Blida, na Argélia, deixou seu posto em 1956, para reagrupar-se à FLN (Frente de Libertação Nacional) e tornar-se um dos principais teóricos do anticolonialismo. 98 SARTRE, J.P. Situations V. Paris: Gallimard, 1964, p. 148.
77
Demonstrando revolta através de suas palavras, em uma das passagens
deste prefácio, Sartre fez ainda questão de sublinhar que:
“A violência colonial não tem somente a finalidade de impor
respeito a homens escravizados, procura também desumanizá-los.
Nada será poupado para liquidar-lhes as tradições, substituir-lhes
as línguas pela nossa para destruir-lhes a cultura sem dar-lhes na
nossa, embrutecer-lhes-ão de fadiga. Desnutridos, doentes, se
ainda resistem, o temor terminará o serviço: apontam fuzis para os
camponeses, vêm civis que se instalam em sua terra e obrigam-no
pelo chicote a cultivá-la para eles. Se ele resiste, os soldados
atiram é um homem morto; se cede, se degrada, não é mais um
homem, a vergonha e o medo vão fissurando seu caráter,
desintegrando sua pessoa”99
Fanon sustentava a tese de que só a luta armada e a violência poderiam
levar à libertação, países subdesenvolvidos tidos como colônias de países
europeus. E pelo menos no que se refere ao enfrentamento dessa questão, Sartre
demonstrou concordar plenamente com Fanon:
“Nossas almas são racistas. Elas aproveitarão lendo
Fanon, esta violência irreprimível ele a mostra perfeitamente, não é
uma tempestade absurda, nem a ressurreição de instintos
selvagens, nem muito menos efeito do ressentimento: é o próprio
homem se recompondo. Esta verdade a conheceríamos, penso eu,
e a esquecemos: as marcas da violência, nenhuma doçura as
apagará: é a violência que unicamente pode destruí-las.”100
99 SARTRE, J.P. Situations V .Paris: Gallimard, 1964, p. 144. 100 Ibid, p.149.
78
Num plano mais pessoal, a determinação de Sartre aliar-se mais
intimamente àqueles que seu país explorou de forma vergonhosa, levou-o em
1965, a dar um passo bastante curioso.Este reside no fato de naquele mesmo
ano, Sartre ter adotado uma moça argeliana. Seu nome: Arlette El-Kaim.
Estudante de filosofia, ela defendia entusiasticamente as idéias de Sartre, tendo
algumas vezes sido repreendida por seus professores. Nos anos que se
sucederam, Arlette desempenhou um importante papel como secretária de Sartre,
colaborando com importantes publicações deste filósofo. Foi ela quem editou o
sumário das conclusões alcançadas pelo Tribunal de Russel101, e quem preparou
o texto em inglês intitulado On Genocide elaborado por Sartre, além de um
sumário de provas e julgamentos do Tribunal Internacional de Crimes de Guerra.
Neste momento, vamos discorrer sobre mais um problema que mereceu a
atenção de Sartre: a Questão Judaica.
Sartre publicou o livro Reflexões Sobre a Questão Judaica em 1946, logo
após o término da Segunda Guerra Mundial. Ele considerava esta fase, própria
para eventuais “ajustes de contas”. E segundo ele, havia muitas contas a ajustar,
sobretudo na França, onde o colaboracionismo havia sido um fenômeno
disseminado, que serviu para auxiliar os alemães em seus objetivos no que se
refere ao extermínio do povo judeu.
Sob o nazismo, o anti-semitismo francês ganhou força: milhares de judeus
foram denunciados, presos, deportados e enviados para o massacre em campos
de extermínio.
Mas por outro lado, a França possuía a Resistência, da qual Sartre fazia
parte.Assim, após a libertação da França, os fatos vieram à tona, fazendo com
que colaboracionistas fossem presos e julgados.
101 Em 1967, Sartre aderiu à idéia de Bertrand Russel de formar um tribunal de intelectuais de todo o mundo para julgar Lyndon Johnson e o governo dos Estados Unidos, com criminosos de guerra em vista das atrocidades cometidas pelas tropas norte-americanas no Vietnam.
79
A Questão Judaica é um livro curto, cujo objetivo seria o de despertar as
consciências para o problema do preconceito contra os judeus. Num determinado
momento de sua vida, Sartre afirmou que passou a ter uma ligação profunda com
alguns judeus, entre os quais: Arlette El-Kaim (sua filha adotiva), Benny Lévy (seu
discípulo e secretário particular), e Annie Cohen-Solal (sua biógrafa). Conhecendo
mais intimamente essas pessoas, Sartre tinha um poderoso motivo para lançar luz
sobre a face oculta da sociedade francesa. Em algumas passagens do livro, ele
menciona nomes de dois homens, aos quais ele “ataca” com palavras ásperas.
Seus nomes são: Charles Maurras e o romancista Louis-Ferdinand Céline, sendo
este último um colaboracionista que veio posteriormente a ser julgado e
condenado. Fatos como estes, fizeram com que o livro se tornasse ainda mais
polêmico. Some-se a isso a declaração feita por Sartre em certa ocasião, na qual
ele afirmou que este livro seria uma forma de ele declarar guerra ao anti-
semitismo, conforme ele deixa bem claro na seguinte citação:
“E divertido ser anti-semita. Pode-se espancar e torturar
sem medo os judeus: quando muito, estes irão apelar para as leis
da república, e as leis são brandas. (...) Destruidor por ofício,
sádico de coração puro, o anti-semita é no fundo do coração, um
criminoso. O que ele deseja, o que ele prepara é a morte do
judeu”.102
Com efeito, nem todos os inimigos do judeu exigem explicitamente sua
morte, mas tomam atitudes que visam rebaixá-lo, humilhá-lo e baní-lo do convívio
social. E todas estas atitudes podem ser consideradas como homicídios
simbólicos. Através da prática do anti-semitismo, os homens demonstram sua
condição animal contra os judeus, visto que ambos não se diferenciam no que se
refere à sua condição humana. Os judeus diferenciam-se por sua religião e por
alguns costumes que deveriam ser respeitados. Ou, como afirma Sartre: 102 SARTRE, J.P. Reflexões sobre a Questão Judaica. São Paulo: Ática, 1995, p. 32-33.
80
“O anti-semitismo é, em resumo, o medo em face da
condição humana. O anti-semita é o homem que quer ser rocha
implacável, torrente furiosa, raio destruidor – tudo, menos
homem”.103
3.2 – A TORTURA NA VISÃO DE SARTRE
La Question O tema da tortura aparece insistentemente na obra de Sartre. Poderemos
encontrá-lo inscrito em algumas de suas peças de teatro, contos e prefácios de
livros e artigos escritos para jornais e revistas de sua época.
Dessa forma, pretendemos aqui nos ater a três ocasiões em que Sartre
utilizou-se desta questão para chamar a atenção de leitores e líderes políticos no
que se refere a este problema.
Comecemos por um fato real ocorrido com um jornalista de origem
comunista chamado Henri Alleg, durante a Guerra da Argélia. Em junho de 1957,
Alleg havia sido preso por tropas de pára-quedistas franceses naquele país, e
mantido durante um mês como prisioneiro. Durante este tempo, ele foi brutalmente
torturado e presenciou outros prisioneiros árabes e europeus serem submetidos
ao mesmo tratamento. O governo francês permitia, e, portanto praticava a tortura
na Argélia. Em fevereiro de 1958, Alleg publicou o relato de suas experiências em
um livro intitulado La Question, o qual foi imediatamente proibido pelo governo
francês.
103SARTRE, J.P. Reflexões sobre a Questão Judaica, p.35.
81
Sartre encarregou-se de escrever o prefácio deste livro, ao qual nomeou
Une Victoire. Este prefácio apareceu na revista L’Express, que foi apreendida pela
polícia em 6 de maio de 1958, em Paris.
Vejamos um trecho do prefácio escrito por Sartre para o livro de Alleg,
aonde ele expressa sua vergonha por tais atos cometidos pelos franceses contra
os argelianos:
“Em 1943, na Rue Lauriston104, havia franceses que
gritavam de angústia e de dor, a França inteira os ouvia. O
resultado da guerra ainda era incerto e não queríamos pensar no
futuro. Uma coisa única parecia-nos impossível: que um dia, em
nosso nome, se pudesse fazer os ouros gritarem. O impossível não
é o francês: em 1958 em Argel, tortura-se regularmente,
sistematicamente, todo o mundo o sabe, desde o senhor
Lacoste105 até os agricultores do Averyon, mas ninguém fala sobre
isso. Ou quase ninguém (...) A França está tão muda como durante
a Ocupação, mas até então, havia a desculpa de que o país estava
amordaçado. No estrangeiro já se chegou a uma conclusão: nós
não cessamos de degradar-nos”.106
Sartre via o problema da tortura dentro de um contexto especificamente
político. Na base do uso sistemático desta, Sartre reconhece um projeto mais
importante do que a simples coleta de informações. O objetivo preciso da
colonização seria neste caso, o de transformar os nativos em criaturas sub-
humanas. Sua única função seria então servir os homens “por direito divino”, da
nação colonizadora, e a tortura funcionaria como a arma exatamente adequada a
104 Aqui, o escritor refere-se às instalações que a Gestapo possuía nesta rua de Paris durante a Ocupação alemã. 105 Ministro residente da Argélia desde fevereiro de 1956 até maio de 1958. 106 SARTRE, J.P. Une Victoire (prefácio do livro La Question e Henri Alleg). Paris: Gallimard, 1958.
82
esta ambição. No caso da guerra da Argélia, a prática da tortura serviu para
destruir em cada vítima em particular o silêncio e a resistência de todo um povo.
Mas quando um homem consegue como Alleg, resistir a todo tipo de tortura
e ao mesmo tempo silenciar-se, ele coloca em evidência a condição animal dos
torturadores, os quais só podem vencer negando sua própria humanidade.
Em O Ser e o Nada, Sartre afirma que o “homem permanece livre mesmo
sob tortura”.Com esta afirmação, ele pretende dizer que pelo fato de a tortura ser
uma situação extrema, no momento em que ela ocorre, a liberdade humana
aparece de uma forma mais pura e o torturado poderá optar sobre o modo como
reagirá àquela tortura.
Os Seqüestrados de Altona Ainda durante a Guerra da Argélia, Sartre escreveu a peça “Os
Seqüestrados de Altona”, que tinha na tortura, um dos componentes de seu
enredo.
Vamos, portanto, neste momento, fazer uma breve análise desta peça,
como o segundo exemplo que escolhemos para demonstrar como Sartre tratou o
problema da tortura em sua obra.
Os Seqüestrados de Altona, escrita em 1959, é considerada por críticos
como umas das melhores e mais originais peças escritas por Sartre. Conforme ele
confessou certa vez durante uma entrevista, seu objetivo nesse caso, era dar um
retrato aos franceses da consciência de um torturador. Num momento em que os
franceses praticavam a tortura na Argélia, o espelho nazista era perfeitamente
adequado. Naquela época Sartre se encontrava em plena campanha contra a
Guerra da Argélia e através da peça conseguiu combinar o comprometimento
político com o estudo generalizado da condição humana que caracteriza a
literatura existencialista. Assim como em As Moscas, em Os Seqüestrados de
Altona as idéias foram expressas por alegoria.
83
A peça estreou em Paris no Théàtre de La Renaissance a 23 de setembro
em 1956, permanecendo até 4 de junho de 1960 e possuía quatro horas de
duração. A história passa-se na Alemanha de 1956 e descreve os esforços feitos
por um oficial alemão para esconder de si próprio o real significado das torturas a
que ele submeteu um grupo de partisans107 russos durante a Segunda Guerra
Mundial.Assim, desde o término da guerra em 1946 e após a derrota nazista,
Frantz Von Gerlach vivia trancado no sótão da casa de seu pai, onde passa anos
sem se comunicar com ninguém da família, com exceção de sua irmã Leni, com
quem vive uma relação incestuosa. Dado como oficialmente morto Frantz não
sabe dos acontecimentos políticos do pós-guerra. Desconhece a reconstrução da
Alemanha Ocidental com a ajuda dos norte-americanos vitoriosos.
O pai de Frantz costuma enviar mensagens ao filho através de Leni, que,
no entanto, não as entrega, com o intuito de preservar de qualquer influência
externa seu relacionamento incestuoso com o irmão. Porém, o pai, Gerlach, está
sofrendo de câncer e terá somente mais seis meses de vida, por isso, necessita
falar urgentemente com o filho, pois diante das circunstâncias, pensa em cometer
suicídio. Assim, Gerlach consegue enviar a mensagem ao filho, através de
Johanna, cunhada de Frantz e esposa de seu irmão Werner.Quando Frantz
recebe visita de Johanna, seu mundo ilusório desaba, e ele volta à realidade,
tendo de abandonar sua postura de má-fé. Ele descobre que a Alemanha tornou-
se o país mais próspero da Europa Ocidental, precisamente devido á derrota que
ele diz ter desesperadamente tentado evitar através das torturas que infligiu aos
partisans.
Johanna possuía um amor imaginário por Frantz, que desmorona quando Leni
conta a ela a verdade. Assim, Johanna volta para seu marido Werner, enquanto
Frantz, confrontado por um mundo em que nenhuma de suas ações fazem
sentido, sai com seu pai, para ambos cometerem suicídio em um passeio de carro.
Já Leni, opta pelo seqüestro voluntário e tranca-se no quarto de Frantz, passando
a viver isolada de tudo e de todos dali em diante.
107 Partisan – Combatente voluntário não pertencente a um exército regular e que luta por um ideal nacional, político, religioso, etc (designa mais especificamente os guerrilheiros da Resistência contra os invasores nazi-fascistas na França, na Itália, Bálcãs, etc durante a Segunda Guerra).
84
Através da peça, pode-se concluir que Frantz oscilava entre a negação de
que tivesse torturado alguém (má-fé), e a afirmação de que só a tortura poderia ter
evitado uma derrota desastrosa dos alemães. Na última cena, quando Frantz vê o
pai novamente após treze anos, concorda em cometer suicídio juntamente com
ele, somente sob uma condição: seu pai teria de reconhecer que era responsável
por tudo o que havia acontecido.
Mas Frantz, sabendo que só poderia acreditar nisto por um curto período de
tempo, sugere que eles se suicidem imediatamente. Em suma: conclui-se daí, que
Frantz passou todos aqueles anos fugindo de suas responsabilidades, e continuou
fazendo-o até o fim de sua vida. Assim termina a peça.
Entretanto, conforme afirmou Sartre em um debate no Teatro Natal em São
Paulo por ocasião de sua visita ao Brasil em 1960, Sartre afirmou que embora a
trama de Os Seqüestrados de Altona se passasse na Alemanha, era na verdade,
o caso da Argélia que ele estava fixando.Porém era preciso tomar uma certa
distância para que o tratamento do tema não fosse repudiado.
“Na França todos perceberam que, embora Les Seqüestres
d’Altona se passe na Alemanha, era o caso da Argélia que eu
estava fixando. Precisa-se de uma certa distância, sem o que todos
repudiariam o tratamento do tema. Uma sociedade culpada que
imputa a si mesma certos crimes reconhece-os logo na família
alemã que aceitou o regime nazista. Aqueles que participam de um
mecanismo de opressão acabam também, inevitavelmente, por
torturar. Mas para uma sociedade que não carrega semelhante
fardo, talvez escape o verdadeiro significado da peça.
Conversando, certa vez, com uma jornalista sueca, expus minhas
dúvidas se Os Seqüestrados de Altona interessaria ao público de
seu país Na Suécia não existe a consciência do marasmo, de
apodrecimento, trazida pela política colonialista. Ela replicou então,
que a peça interessaria de qualquer modo, pois os suecos haviam
85
sofrido com os alemães. Verifiquei imediatamente que ela havia
compreendido às avessas o que pretendi exprimir no texto”.108
O Muro
Num terceiro exemplo de como Sartre trabalhou a questão da tortura em
sua obra, podemos nos tomar como exemplo o conto “O Muro”. Um ano após a
publicação de La Nausée em junho de 1939, Sartre publicou seu segundo livro de
ficção: um volume de cinco contos, intitulado Le Mur. Este é talvez considerado o
livro mais conhecido de Sartre nos países de língua inglesa.O primeiro conto Le
Mur (O Muro, em português) que dá título ao livro, tem como protagonista o
personagem principal Pablo Ibbieta, o qual é colocado frente a frente com a tortura
e a morte.
Ibbieta, durante a Guerra Civil espanhola é aprisionado pelos fascistas que
o ameaçam de fuzilamento caso ele não revele o esconderijo de seu chefe Ramón
Gris.A partir daquele momento, ele vê seus companheiros de cela sendo fuzilados
um por um, e resolve protelar sua morte, indicando um falso esconderijo aos
inimigos, na esperança de salvar o chefe e aguarda a descoberta da mentira.Após
refletir por algum tempo, Ibbieta tenta pregar uma peça nos fascistas, ao dizer que
seu chefe está escondido no cemitério, em um túmulo ou na cabana dos
coveiros.Logo após, quinze homens partem daquele local para averiguarem se
realmente era verdade o que Ibbieta dissera. O homem que o interrogara minutos
atrás prometera que se Ibbieta estivesse falando a verdade, seria libertado
imediatamente.
“Partiram com ruído e eu esperei pacatamente sob a guarda dos
falangistas. De quando em quando sorria porque imaginava a cara
que eles iam fazer. Sentia-me embrutecido e malicioso. Imaginava-
os levantando as lápides, abrindo, uma a uma, a porta dos
108 ROMANO, L. A. C. A Passagem de Sartre e Simone de Beauvoir pelo Brasil em 1960.São Paulo: Fapesp, 2002, p.327.
86
túmulos. Eu me representava a situação como se fosse outro. Esse
prisioneiro obstinado a bancar o herói, esses graves falangistas
com seus bigodes e esses homens uniformizados correndo entre
os túmulos, todo era de um cômico irresistível”.109
Entretanto, em meio àquelas circunstâncias, outra situação-limite se revela: o
acaso e contingência que governam a realidade.O chefe Ramón Gris, por
precaução, abandonara seu esconderijo e refugiara-se no local indicado por
Ibbieta, ou seja: no cemitério. É encontrado e morto. Ao descobrir o que
aconteceu, Ibbieta explode num riso histérico.
Garcia (o padeiro): “– Pegaram o Gris. (...) Esta manhã.
Ele fez besteira. Deixou o primo terça-feira porque tiveram
uma briga. Não faltaria quem se dispusesse a escondê-lo,
mas ele não queria comprometer ninguém. ‘Ia me esconder
na casa do Ibbieta’ – disse ele –‘ mas como ele foi preso,
vou me esconder no cemitério’ “.110
Pablo Ibietta: “Tudo se pôs a girar e me surpreendi
sentado no chão – ria tão forte que as lágrimas me vieram
aos olhos”.111
3.3 – O TERMO SITUAÇÕES-LIMITE COMO PARTE INTEGRANTE DO TEATRO DE SITUAÇÕES DE SARTRE
109 SARTRE, J.P. O Muro (trad de H. Alcântara Silveira). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. 110 Ibid, p.33. 111 Idem, Ibid.
87
Dentre suas inúmeras realizações como filósofo, romancista, crítico literário,
ensaísta e escritor engajado politicamente, foi através do teatro que Sartre tornou-
se mais conhecido publicamente.Se considerarmos afirmações de críticos de sua
época, parece-nos ser lícito afirmar, que o teatro é o lugar onde se coloca em
cena quase a totalidade de suas teses.
Considerado um dos intelectuais mais importantes de nosso tempo, Sartre
conseguiu demonstrar através de sua obra as inquietações das gerações do pós-
guerra. Seu teatro repercute grandemente ainda hoje, tanto no que concerne ao
estudo acadêmico, quanto à encenação de suas peças em vários países do
mundo, inclusive no Brasil. Sendo assim, parece-nos impossível separar o filósofo
do dramaturgo, já que sua filosofia encontra-se quase que totalmente arraigada
nos temas de suas peças. O ponto-chave do teatro sartriano expressa-se através
da ação de suas personagens, como explica o crítico Sábato Magaldi:
“O homem sartriano se define pela ação. Daí ser
absolutamente válido assimilar-se a ética de Sartre ao
conceito de teatro, concluindo que o palco é o lugar ideal
para a realização de seu pensamento e de sua arte”.112
A citação anterior no remete à seguinte indagação: até que ponto a
dramaturgia de Sartre pode ser considerada apenas um instrumento de suas
idéias filosóficas?
Benedito Nunes procura responder a esta questão ao argumentar que:
112 MAGALDI, S. Sartre: Dramaturgo Político. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1964, p.109.
88
“Encontramos na dramaturgia de Sartre um jogo dialético,
sustentando e justificando a ação dramática. É essa dialética da
liberdade humana traz em si mesma nos limites específicos do
tempo do drama, o sentido e as idéias que a constituem e
esclarecem. As idéias não vêm de fora, não são extrínsecas à ação
teatral”.113
O Teatro de Situações de Sartre caracteriza-se por um eterno conflito entre
a consciência do homem tentando agir livremente, e a situação enfrentada por ele
em determinado momento, que lhe demarca limites à sua ação. Ou seja, o homem
é livre, enfrenta as mais diversas situações e vê-se obrigado a fazer escolhas
diante dessas situações E diante dessas situações de decisões extremas, o
homem entra em confronto com o seu meio, o que o leva a refletir sobre sua
própria condição. E esta forma de teatro contribui dentro desse contexto, pois o
que o teatro pode mostrar de mais verdadeiro é exatamente o momento de
escolha, de livre decisão, por isso, falar em Teatro de Situações é inevitavelmente
falar em Teatro da Liberdade. E na obra de Sartre, não é possível falar de
liberdade sem se referir à situação.Através das situações surgem obstáculos, e a
liberdade necessita justamente destes para se afirmar. Ela necessita de um
campo de resistência no mundo, de algo que a contrarie. Em suma: sem
obstáculos, não há liberdade.
“A situação é o obstáculo que se deve transpor para se
realizar os fins escolhidos, sem a situação a liberdade se
desvaneceria, sendo que a liberdade se afirma mais claramente
quando sujeita a maiores pressões, quanto maior o obstáculo,
quando a situação é extrema, daí a afirmação de que os franceses
113 NUNES B. Reflexão sobre o Teatro de Sartre. “O Estado de São Paulo”, Suplemento Literário, p.4, 1960.
89
nunca foram tão livres quanto durante a ocupação alemã na
Segunda Guerra”.114
Uma situação é geralmente definida pelo lugar que o homem ocupa, pelo
seu passado imutável, pelo seu corpo e pela existência do Outro. Através destas
características peculiares a seu ser, o homem se depara com obstáculos e
resistências que não foram criados por ele e que não pode evitar. Entretanto, irá
depender do projeto de cada homem o fato de uma determinada situação adquirir
aspectos favoráveis ou negativos. Por isso, Sartre rejeita os gêneros da tragédia e
do drama burguês, para optar pelo Teatro de Situações, posto que neste é
mostrado o momento de livre escolha do indivíduo em uma determinada
situação.O teatro para Sartre tem a função de mostrar as opões e implicações de
quando o indivíduo faz sua escola perante a vida, sendo esta composta de
sucessivas situações-limite.Certa vez durante uma entrevista, Sartre afirmou que
não há diferença entre o teatro e a vida. Esta afirmação reside justamente no fato
de que o homem define-se nas situações, e o Teatro de Situações, seria dessa
forma, o locus privilegiado da captura do momento em que o homem faz escolhas
e assume suas eventuais conseqüências. Note-se o seguinte exemplo de Sartre:
“Se o teatro deve mostrar o momento de livre escolha em uma
determinada situação, então para Sartre não é adequado à nossa
época o drama psicológico que coloca em cena o conflito entre
caracteres prontos. O enfoque passa a ser agora a ação dos
personagens, isto é, a ação de um personagem não é determinada
pelo seu caráter, mas seu caráter é determinado por sua ação O
ato joga o expectador acima do plano psicológico para colocá-lo no
plano moral. (...) O teatro de Sartre tem a liberdade não só como
114 ALVES, I.S. Que é Teatro de Situações? In: O Drama da Existência. São Paulo: Humanitas, 2003, p. 110.
90
condição de possibilidade, mas também como tema
fundamental”.115
Dessa forma, o teatro deve mostrar o momento de livre escolha, dando
enfoque à ação dos personagens. O dramaturgo deve escolher temas e situações
com as quais o público se identifique e que estejam amplamente relacionados com
a vida real, para que essas situações possam tocar o expectador.A função dos
atores também é fator fundamental.Suas palavras e gestos devem conter grande
ênfase, com o objetivo de impressionar o expectador o máximo possível.
“O papel do dramaturgo é pôr em cena conflitos que apaixonem e
interessem ao expectador, que são conflitos de direitos atuais,
engajados em uma vida real. E dada a diversidade do público, o
dramaturgo deve escolher situações tão gerais que digam respeito
a todos”.116
Em suma: o enfrentamento dessa questão baseia-se na compreensão de
que diversas situações que ocorrem durante nossa existência podem ser
consideradas como situações-limite, e ao nos depararmos com elas temos de
fazer nossas escolhas, o que nos torna responsáveis pelas eventuais
conseqüências advindas destas escolhas. De acordo com Sábato Magaldi:
“O homem sartreano se define ela ação. O drama,
também, por sua própria etimologia. Daí ser absolutamente válido
115 ALVES, I.S. Que é Teatro de Situações? In: O Drama da Existência.São Paulo: Humanitas, 2003, p. 111. 116 ALVES, I.S. Que é Teatro de Situações: In: O Drama da Existência. São Paulo: Humanitas, 2003, p. 110.
91
assimilar-se a ética de Sartre ao conceito de teatro, concluindo-se
que o palco é o lugar ideal para a realização de seu pensamento e
de sua arte. A cada instante, a personagem sartreana fica dividida
pela necessidade de escolha, e a resposta ao dilema se traduz
sempre por um ato ou um gesto. O homem se fazendo, se
inventando em face de novas situações explica a trajetória de
Sartre para um futuro amoldável, e o palco traz também a angústia
do vácuo em direção a um mundo que é incessantemente criado.
Impelido muitas vezes por situações forjadas, com o objetivo de
mostrar uma concepção própria do homem, o teatro de Sartre
nunca deixa por isso de ser teatral. Não se trata, propriamente de
uma dramaturgia de tese. É o próprio teatro se pensando”.117
CAPÍTULO 4
CONSIDERAÇÕES SOBRE A PEÇA “MORTOS SEM SEPULTURA” DE JEAN-PAUL SARTRE
4.1 – MORTOS SEM SEPULTURA Dentre as peças escritas por Jean-Paul Sartre, talvez a que melhor tenha
explorado a questão das situações-limite, seja Mortos sem Sepultura.Escrita em
1945, o enredo se passa em 1943, na época em que os exércitos nazistas
invadiram a França. Foi montada no Théàtre Antoine em Paris, no ano de 196.
Naquela época, iniciava-se a Guerra Fria118 e a direita pretendia “enterrar o
117 MAGALDI, S. Sartre: Dramaturgo Político. In: Aspectos da Dramaturgia Moderna. São Paulo, 1964, p. 109. 118 Guerra Fria – Expressão que define o período marcado por permanente tensão política entre as potências do Ocidente após a Segunda Guerra Mundial, tendo de um lado a liderança da ex-URSS e de outro o bloco sob influência dos EUA. O termo surgiu para refletir a situação de hostilidade e corrida armamentista crescentes, que em algumas ocasiões esteve próxima da deflagração de um confronto armado real de proporções apocalípticas. O período da Guerra Fria foi caracterizado por dois grandes conflitos locais: A
92
passado” o mais rápido possível. Assim, no momento em que os antigos traidores
ameaçaram “levantar a cabeça”, Sartre julgou oportuno reavivar a memória dos
franceses através da peça. Esta é dividida em quatro quadros e estes,
subdividem-se em cenas.Composta por nove personagens, seis deles são
patriotas, membros da Resistência Francesa durante a Segunda Guerra Mundial
(também chamados de maquis119 ).São eles: Jean (o líder do grupo), Lucie
(namorada de Jean); Canoris, Henri, Sorbier e François (um garoto de apenas
quinze anos, irmão de Lucie).
Os outros três personagens são soldados franceses, colaboracionistas dos
exércitos alemães: Clochet, Landrieu e Pellerin. Estes pretendem descobrir o local
do esconderijo do chefe dos maquis, para capturá-lo.
Na peça, temos de um lado os resistentes, que têm entre si, um pacto
firmado de não dizerem nada, e de outro lado, os colaboracionistas, que estão
dispostos a submeter os resistentes aos mais diversos tipos de tortura, para
obterem deles as informações de que necessitam. Dessa forma, encontramos
expressa uma batalha ferrenha entre dois campos visivelmente opostos. Quando
os presos não falam nada durante a tortura, sentem que estão vencendo, mas
desde que expressem suas dores, ainda que seja pelos gritos, os torturadores
sentem-se vitoriosos. Mas ainda que sejam levados à morte, a intenção dos
resistentes é não deixar que os torturadores saiam vitoriosos.
No início da peça, os resistentes já se encontravam presos e algemados em
um sótão semi-escuro na penumbra de um antigo prédio, local de onde aguardam
serem chamados para interrogatório. O local da tortura é uma antiga sala de aula
do mesmo prédio, para a qual os maquis são chamados um a um.
Guerra da Coréia, na década de 50, e a Guerra na Indochina, que durou desde o início dos anos 60 até o início da década de 70. O período testemunhou também a divisão da Europa em dois blocos militares antagônicos: a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), no lado ocidental, e o Pacto de Varsóvia, na Europa Oriental. Muitos analistas consideram as revoltas que as revoltas civis no leste europeu e na ex-URSS em 1989 levaram ao fim da Guerra Fria. (cf Enciclopédia Larousse). 119 Maquis – Membros da Resistência Francesa durante a Segunda Guerra Mundial, que se escondiam dos alemães e colaboracionistas para escapar da vingança. Geralmente, seu esconderijo de dava em locais constituídos por vegetações predominantemente arbustivas de formação densa e de difícil penetração.
93
Inicialmente na peça, através dos diálogos, nota-se que os próprios
resistentes se encarregam de se torturar por estarem ali e não poderem mais lutar
pela libertação de seu país.
O primeiro a ser chamado à sala de tortura é Sorbier, que se considera o
mais fraco de todos, pois teme falar. Mas resiste na primeira vez, retornando ao
sótão um tanto ferido e sentindo-se humilhado pelos torturadores.
Jean, o chefe, não estava presente no início da trama, mas os milicianos
inadvertidamente, o prenderam e o levaram ao mesmo local onde estavam os
outros, sem saberem que ele era o chefe dos maquis. Agora, os prisioneiros
teriam algo a esconder, e isso era muito importante para o seu fortalecimento.
Assim, eles não seriam torturados por nada. Mas ao se encontrar preso
juntamente com seus liderados, Jean sente-se excluído do grupo, pois eles já não
mais compartilhavam da mesma realidade (Jean não será levado à tortura, já que
os colaboracionistas não sabem quem ele é). Por esse motivo, ele se tortura a
todo o momento, por não estar passando pelo mesmo sofrimento que seus
companheiros.
O segundo preso a ser levado à tortura, é Canoris. Ele tem a postura de um
homem que enfrenta a tortura a está pronto para morrer a qualquer momento. Mas
se puder sobreviver a tudo aquilo sem se portar como um traidor ele escolherá a
vida, com todos os novos desafios e responsabilidades que ela trouxer. Assim,
Canoris tem a atitude que Sartre aprova, ou seja, ele exerce sua liberdade através
de suas escolhas, assumindo sua responsabilidade por elas, sem desculpas.
Começa o Segundo Quadro da peça. Aqui, tem início uma conversa entre
os torturadores, através da qual Sartre procura mostrar como se dá a relação
entre eles. Landrieu, Pellerin e Clochet travam um diálogo através do qual, pode-
se perceber que Clochet pretende se sobressair em relação aos outros dois, além
de demonstrar grande frieza em relação ao trabalho que exerce, adotando dessa
forma, uma postura sádica. Landrieu, por sua vez, mostra um certo
arrependimento por estar servindo aos alemães, apesar de ser o verdadeiro líder
dos torturadores e milicianos que se encontravam naquele lugar. Já Pellerin, diz
não se arrepender de nada.
94
Desta vez, Henri é levado à tortura. Neste ponto da peça, Sartre nos dá
uma descrição dos tipos de tortura aos quais Henri é submetido, os quais veremos
mais à frente deste texto. Mas os soldados não conseguem arrancar nada dele,
senão gritos. Pouco tempo depois ocorre a volta de Henri ao
sótão.Consecutivamente, Sorbier é levado novamente à tortura, pela segunda vez
no mesmo dia. Os colaboracionistas vêem-no como um covarde e acreditam que
se ele for pressionado com maior rigidez, acabará por revelar quem é seu chefe.
Entretanto, neste momento, em meio àquela situação-limite, Sorbier toma uma
atitude totalmente inesperada: após distrair os torturadores, salta sobre o
parapeito da janela, pulando prédio abaixo, suicidando-se, talvez por considerar
que aquela seria a melhor solução naquele momento.Porém, antes de fazê-lo,
através de sua última fala na peça, ele se declara vitorioso por não ter delatado
seu chefe. Aqui, Sartre ressaltou a questão da escolha de Sorbier, que culminou
com um trágico desfecho.
Tem início o Terceiro Quadro da peça. Lucie é a próxima a ser levada à
presença dos três carrascos, que a estupram, passando pouco mais de duas
horas em poder dela.Quando Lucie retorna ao sótão, já não se senta mais a
mesma pessoa, e percebe não ser capaz de sentir amor por mais ninguém nem
mesmo por Jean. Aqui, nota-se que ela começa a mudar de postura em meio
àquela situação-limite que vivia, visto que antes da tortura possuía um
determinado comportamento, e após a tortura, havia mudado de postura em
relação aos fatos. Jean, por sua vez, continua torturando-se a si próprio, e diz ser
o mais infeliz entre todos eles, apesar de não ter sofrido fisicamente como seus
companheiros. Estes, por sua vez, responsabilizam ao próprio Jean pelo mal que
ele sente. François, irmão de Lucie, era o único a não assumir a culpa por estar
ali, e afirmava ter feito apenas o que lhe mandaram fazer, tendo assim, a atitude
que Sartre denomina como “má-fé”. Nos constantes diálogos que ocorrem entre os
prisioneiros do sótão, todos percebem que François está apavorado, e na primeira
chance que tiver, delatará Jean, o chefe do grupo. Diante deste fato, seus
companheiros decidem matá-lo, com o consentimento de sua própria irmã, Lucie
(na cena, Henri aperta-lhe a garganta, e nenhum dos outros o detém, o que faz
95
com que todos eles sejam responsáveis pela morte de François). Posteriormente,
Henri diria que resolveu matar François, porque acreditava que tanto ele como os
outros teriam poucas horas de vida a mais do que François, por isso, não se
sentia culpado por tê-lo matado.
Neste momento da peça, restam apenas restam apenas três sobreviventes:
Lucie, Henri e Canoris, fora seu líder Jean, que logo seria solto pelos
colaboracionistas. Antes de ser solto, porém, Jean revela aos três um plano para
livrá-los de subseqüentes torturas: após ser solto, Jean resgataria o corpo de um
amigo já morto, que se encontrava dentro de uma gruta, e colocaria seus
documentos no bolso do cadáver. Sua intenção era fazer com que os
colaboracionistas pensassem que o cadáver era dele.Jean pediu aos três
sobreviventes, que este plano fosse revelado aos colaboracionistas somente
quatro horas após sua partida, de modo que ele tivesse tempo suficiente para
executá-lo.
No dia seguinte, os três prisioneiros são chamados para interrogatório
novamente, mas desta vez, juntos. Os carrascos descobrem que na noite anterior,
em conjunto, eles decidiram optar por assassinar François. Na cena que segue,
Lucie, Henri e Canoris decidem contar aos torturadores a história inventada por
Jean, na qual os carrascos parecem acreditar, posto que mandam alguns
soldados milicianos para averiguarem se é verdadeira. Mas mesmo sem ter
certeza da verdade, Clochet atira neles pelas costas no momento em que estão
indo embora, matando aos três, demonstrando uma violência desnecessária
naquele momento. Termina a peça.
Podemos encontrar vários aspectos da filosofia de Sartre arraigados no
enredo de Mortos Sem Sepultura. Esta pesquisa não busca esgotar a análise de
tal obra, porém, pretendemos destacar aqui, alguns pontos que consideramos
relevantes para uma análise mais aprofundada da peça, o que procuraremos fazer
nas próximas páginas desta pesquisa.
96
4.2 – AS PERSONAGENS EM MEIO A SITUAÇÕES DE LIBERDADE E ESCOLHA
PRIMEIRO QUADRO
Um sótão iluminado por uma trapeira120, confusão de objetos heteróclitos: arcas, um fogão
velho, um manequim de costureira. Canoris e Sorbier estão sentados. Um numa arca, outro num
mocho velho. Lucie no fogão. Estão algemados. François caminha de um lado para o outro. Está
também algemado.Henri dorme, deitado no chão.121
Assim inicia-se o Primeiro Quadro de Mortos sem Sepultura. A breve
descrição vista acima nos dá uma idéia da situação dos maquis logo após sua
captura pelos colaboracionistas. Do lado de fora do prédio, havia cerca de 300
resistentes mortos, que podiam ser avistados pela janela do sótão (trapeira).Neste
momento, têm início os primeiros diálogos entre os prisioneiros. Em algumas das
falas, podemos comprovar o quanto eles se culpavam por não poderem mais lutar
pela resistência de seu país contra os alemães (o que não deixa de ser uma
escolha).
Sorbier: Morreram muitos outros. Mulheres e crianças.
Mas eu não dei pela morte deles. Ao passo que a miúda, ainda
parece que a ouço gritar. Não podia guardar só para mim esses
gritos.
Lucie: Ela tinha treze anos. Foi por nossa causa que
morreu.
120 Abertura ou janela sobre o telhado. 121 SARTRE, J.P. Mortos sem Sepultura.Trad. Francisco da Conceição. Lisboa: Presença Editorial, 1965, p. 11.
97
Sorbier: Foi por nossa causa que todos morreram.122
Neste capítulo, nos propusemos a abordar o problema da Liberdade e da
Escolha, na concepção de Sartre, relacionando estes conceitos ao comportamento
das personagens na peça. Parece-nos um tanto quanto contraditório empregar o
conceito de Liberdade em uma situação tão específica quanto a tortura, visto que
desde o início do enredo todas as personagens já se encontravam presas e
aguardando para serem interrogadas.
Os Resistentes franceses tinham em comum o projeto de não delatarem
seu chefe, independente do que acontecesse. Tratava-se de um plano
coletivo.Entretanto, neste caso poderia ser levado em conta o lado individual de
cada um dos presos, visto que durante a tortura cada um deles estaria sozinho,
tendo assim, a opção de continuar fiel ao pacto resistindo aos diversos tipos de
tortura, por mais cruéis que fossem; ou poderiam quebrar o silencio, delatando seu
chefe. Aqui, faz-se interessante notar, que apesar dos resistentes estarem presos
em poder dos colaboracionistas, ainda possuíam a Liberdade de Escolha, e esta
segundo Sartre, depende única e exclusivamente do próprio homem, somente ele
pode escolher o que poderá ser no momento seguinte de sua vida, ou seja,
somente o homem pode escolher o seu destino.
Embora houvesse um forte pacto de não cederem à tortura, todos se
encontravam em meio a uma situação-limite, portanto, o acordo estabelecido
previamente entre eles, se concretizaria no plano individual, quando cada um
deles fosse chamado para interrogatório.
Porém neste momento, surge-nos a seguinte pergunta: Os resistentes
encontravam-se presos naquele local por escolha própria?
Se considerarmos o raciocínio concebido por Sartre, no qual ele afirma que
o homem escolhe o tempo todo e em todas as situações, então podemos
considerar afirmativa a resposta a esta questão.Os seis prisioneiros haviam
escolhido resistir à investida alemã na França, e a partir do momento em que 122 SARTRE, J.P. Mortos sem Sepultura, p.11.
98
fizeram tal opção, sabiam que poderiam sofrer conseqüências por tal ato, assim
sua prisão naquele momento era uma conseqüência do exercício de suas
liberdades. Entretanto, um deles (François, irmão de Lucie) escolheu adotar o
comportamento que Sartre denomina como “Má-Fé”, no qual ele não assumia sua
responsabilidade por estar preso juntamente com os outros, conforme veremos
nas falas que seguem:
Sorbier: François!
François: François o que? Acaso me preveniram quando
fui ter convosco? Disseram-me que a Resistência precisava de
homens, mas nunca me falaram de que ela precisava de heróis. Eu
não sou um herói; não sou herói! Fiz o que me disseram: distribuí
panfletos a transportei armas, e vocês diziam que eu estava
sempre de bom humor. Mas ninguém me fez saber o que me
esperava. Juro-vos que nunca soube em que é que me metia.123
No início, os resistentes realmente não tinham nada a esconder, pois
sequer sabiam do paradeiro de seu líder, Jean, e dessa forma, pensavam em uma
maneira de escapar ao sofrimento quando fossem levados à tortura.
Canoris (aproximando–se de François): Tu não tens
nenhum dever, François. Nem dever, nem segredo. Nada sabemos
e nada temos a calar. Cada um que arranje maneira de escapar
aos sofrimentos. Os meios não têm importância.124
123 SARTRE, J.P. Mortos sem Sepultura, p. 30. 124 Ibid.
99
Sorbier: Os meios não têm importância... Evidentemente,
grita, chora, suplica, pede-lhes perdão, revolve a tua memória em
busca de qualquer coisa que lhes possa confessar, alguém que
lhes possa entregar.
Aqui, convém ressaltar eu Sorbier considerava-se um covarde. Mas como
nos lembra Sartre, um indivíduo que nasceu covarde não precisa necessariamente
morrer covarde, ele pode mudar de postura no momento em que assim o desejar.
No entanto, Sorbier sempre se considerara covarde, e naquele momento,
continuava a manter a mesma postura. A seguinte fala confirma nossa afirmação:
Sorbier: Gostaria de me conhecer. Já sabia que
acabariam por me prender e que um dia, haveria de me encontrar
encostado à parede, diante de mim mesmo, sem outra alternativa.
Dizia então com meus botões: agüentarás tu o golpe? É o meu
corpo que me preocupa, compreendes? Tenho uma porcaria de
corpo com nervos de mulher. Pois bem, chegou o momento, ao
trabalhar-me125 com os instrumentos do ofício. Mas fui roubado:
vou sofrer por nada, morrerei sem saber o quanto valho.126
Pouco tempo depois desta afirmação, Sorbier é levado pelos torturadores, e
tanto ele quanto seus companheiros não sabem qual será sua reação diante da
tortura. Depois de um certo tempo, os quatro prisioneiros ouvem os primeiros
gritos de Sorbier. Em um ato simultâneo a esse acontecimento, os milicianos127
abrem a porta do sótão, e surpreendentemente trazem Jean, que não vem 125 O verbo trabalhar utilizado neste contexto, refere-se ao próprio ato da tortura. 126 SARTRE, J.P. Mortos sem Sepultura. 1965 p. 32. 127 Milicianos - Soldados subordinados aos colaboracionistas.
100
algemado, pois não sabiam que ele é o verdadeiro líder. Os colaboracionistas o
capturaram e resolveram prendê-lo somente para averiguação no tocante à sua
pessoa, sem desconfiarem de quem ele era na verdade.
Após a tortura, Sorbier é levado de volta ao sótão. Ao ver-se novamente entre
seus companheiros, afirma que se soubesse onde estava Jean, ter-lhes-ia
dito.Neste momento, avista Jean e se surpreende ao vê-lo ali, admite que agora
pelo menos, eles teriam algo a esconder quando fossem levados à tortura.
Entretanto, Sorbier dizia naquele momento, já se conhecer verdadeiramente e
sabia que se ele se encontrasse novamente nas mãos dos carrascos, delataria
seu chefe.
Alguns minutos depois, os milicianos vêm buscar o segundo dos maquis a
ser torturado: Canoris. Este, diante da tortura, decide não gritar. Certo tempo
depois, retorna ao sótão, conduzido pelos milicianos.Canoris tem a atitude que
Sartre aprova: encarna o homem de ação, que ao enfrentar a tortura está pronto
para morrer. Mas se há possibilidade de viver sem trair, ele escolherá a vida com
todas as novas lutas e responsabilidades que ela há de trazer.Para ele, as vitórias
são sempre provisórias e não podem ser eternizadas. Jean, por sua vez, sofre por
não estar na mesma situação de seus liderados e por não poder fazer nada por
eles, sentindo-se por isso, excluído do grupo.
Cai o pano. Termina o primeiro ato da peça.
SEGUNDO QUADRO
Uma sala de aulas.Bancos e carteiras. Paredes caiadas de branco. Na parede do fundo,
um mapa da África e o retrato de Pétain128. Um quadro preto. Á esquerda, uma janela. Ao fundo,
uma porta. Um aparelho de rádio em cima de uma mesinha, junto à janela.129
128 PETAIN, Philippe – Militar e político francês (Cauchy-à-la-Tour, Pas-de-Calais, 1856, Ilha de Yeu, 1951). Vencedor em Verdum em 1916 sucedeu a Nivelle no comando supremo dos exércitos franceses do Nordeste (1917-1918). Ministro da Guerra no Gabinete Doumerge (1934), embaixador em Madri (1939), em junho de 1940 tornou-se chefe do governo e firmou armistício com a Alemanha e a Itália. Marechal da França, chefe do Estado francês instalado em Vichy durante a Ocupação Alemã, exerceu uma política de
101
Neste ato da peça, Sartre procura nos mostrar a conduta e a visão dos
torturadores acerca daquela situação. Vamos aqui prosseguir, procurando mostrar
as situações de liberdade e escolha neste segundo quadro.
Os três torturadores colaboracionistas, Clochet, Landrieu e Pellerin,
dialogavam. Pellerin e Landrieu alegavam estar com fome e decidiam o que iriam
comer no almoço, ao mesmo tempo em que Clochet (o mais sádico entre eles),
procurava escolher qual dos prisioneiros seria o próximo a ser torturado.Após os
três se alimentarem, mandam buscar Henri e o submetem a vários tipos de tortura
para que ele confesse (nos aprofundaremos mais na questão da tortura no
próximo tópico deste capítulo).Enquanto sofre sucessivos maus-tratos, Henri grita
por várias vezes, o que faz os torturadores sentirem-se vitoriosos. Nesse
momento, ligam o rádio e o colocam em alto volume para disfarçar o som vindo
dos gritos.Entretanto, percebem que Henri jamais delatará seu líder, por mais que
o torturem.Os carrascos levam-no embora, e decidem que o próximo torturado
será novamente Sorbier, pois consideram-no um covarde e presumem que ele não
suportará mais uma sessão de tormentos e acabará desta vez,
confessando.Buscam Sorbier, pela segunda vez no mesmo dia. Iniciam com ele,
mais um interrogatório, no qual ele admite que realmente é um covarde. Com uma
pinça, começam a lhe arrancar uma das unhas. Ele pede para que o soltem para
que ele confesse o que eles lhe pedem, mas nesse momento,
surpreendentemente, Sorbier faz uma escolha trágica perante a situação-limite
que enfrentava:
Sorbier: O que vocês querem saber? Onde está o chefe? Eu sei.
Os outros não sabem, mas eu sei. Eu estava ao facto dos seus
colaboração, estabelecendo um Estado hierárquico e autoritário. Foi condenado à morte em 1945, mas teve sua pena convertida em prisão perpétua na Ilha francesa de Yeu, situada no Atlântico. 129 SARTRE, J.P. Mortos sem Sepultura. Trad. Francisco da Conceição.Lisboa: Editorial Presença, 1965, p. 63.
102
segredos. Ele está...(Designando bruscamente um ponto atrás
deles )...Acolá! (Todos se voltam. De um salto ele alcança a janela
e trepa para o parapeito). Ganhei! Não se aproximem, senão salto!
Ganhei! Ganhei!
Clochet: Não te armes em idiota. Se falas, nós livramos-te!
Sorbier: Malandros! (gritando).Ei, lá em cima! Henri Canoris, não
falei! (Os milicianos lançam-se sobre ele. Sorbier salta no
vácuo).Boas noites!130
Os torturadores haviam deixado uma das janelas aberta para “refrescar o
ambiente”. Mas não imaginavam que Sorbier faria uma escolha tão inusitada como
suicidar-se, atirando-se pela janela do prédio. Término do Segundo Quadro.
TERCEIRO QUADRO
O sótão. François, Canoris, Henri, sentados no chão uns ao pé dos outros.Formam um grupo unido
e fechado. Falam entre si, a meia voz Jean passeia em torno deles com um ar infeliz. De tempos a
tempos, faz um gesto como que para se associar à conversa; depois arrepende-se e prossegue a
sua marcha.131
Os prisioneiros conversam para procurarem se distrair. Através dos
diálogos, percebe-se que Lucie fora levada pelos torturadores anteriormente e
naquele momento, já estava nas mãos deles há duas horas. Henri afirma que com
mulheres os carrascos costumavam se divertir. Jean sente-se perplexo diante de
tal situação, e ao mesmo tempo, sente-se desprezado por seus companheiros.
Àquelas alturas eles já sabiam do suicídio de Sorbier e de vez em quando, um
deles subia no fogão e através da trapeira, avistava o cadáver de Sorbier com o 130 SARTRE, J.P. Mortos sem Sepultura.Trad. Francisco da Conceição.Lisboa: Editorial Presença 1965, p. 89. 131 SARTRE, J.P. Mortos sem Sepultura Trad. De Francisco da Conceição.Lisboa: Presença Editorial, p. 93.
103
crânio esmagado, caído há vários metros abaixo do local ode eles estavam
presos.Lucie retorna ao sótão. Após a tortura que sofreu, ela começa a
demonstrar uma mudança de postura perante aquela situação. Horas antes,
dissera a Jean, que independentemente do que ocorresse com ela nas mãos dos
torturadores, cada vez que ela olhasse para Jean, não haveria nos seus olhos,
nada, senão amor.
Jean (dirigindo-se primeiramente aos outros, e depois a Lucie):
Não me chateies. Ela é minha e eu nada tenho a dizer, mas ela é
que não me tiram. (Para Lucie): Fala. Tu não és como eles, pois
não? Não é possível que sejas como eles. Por que não me
respondes? Ainda me queres?
Lucie: Já não te quero.
Jean: Minha doce Lucie.
Lucie: Nunca mais serei doce, Jean.
Jean: Já não me amas?
Lucie: Não sei. (Jean dá um passo em direção a ela).Suplico-te
que não me toques. (com esforço) Julgo que ainda te amo. Mas já
não sinto o meu amor. (cansada) Já não sinto absolutamente
nada.132
Algum tempo depois, numa conversa com François, Lucie afirma que
apesar de tudo o que sofreu nas mãos dos torturadores, não delatou seu chefe, e
pede que ele faça o mesmo quando chegar a sua vez, ainda que os carrascos
causem a Jean sofrimentos difíceis de suportar.
132 SARTRE, J.P. Mortos sem Sepultura. Lisboa: Editorial Presença, pp. 105-106.
104
Lucie (com violência): Eles não me tocaram. Ninguém me
tocou. Eu era de pedra e não senti as mãos deles. Olhei-os no
rosto e pensei: não acontece nada (com paixão).E nada aconteceu.
Por fim, já lhes causava medo (pausa). François, se tu falas, então
eles ganharão a partida. Dirão com os teus botões: ”Acabamos por
tê-los na mão!” Sorrirão das suas recordações, comentando: “Com
a garota divertimo-nos à grande”. É preciso enchê-los de vergonha.
Se eu não esperasse tornar a vê-los, enforcava-me agora mesmo
nas grades desta trapeira. Não dirás nada?133
François encolhe os ombros sem responder (silêncio).134
Na verdade, aquela situação era para os prisioneiros, um jogo no qual eles
pretendiam sair vencedores. Quanto a Jean, este se declarava o mais infeliz do
todos, pois apesar de seu corpo não ter passado por nenhum tipo de sofrimento,
ele dizia não ter a consciência tranqüila.E seus companheiros o ironizavam cada
vez que ele mencionava este fato.
François (saltando para Jean).
Olhem para ele! Olhem bem para ele! O mais infeliz de todos nós!
Comeu e dormiu! Tem as mãos livres, tornará a ver a luz do dia,
regressará à vida! E é o mais infeliz. Que queres tu? Que te
lamentemos? Porco!135
Àquela altura dos acontecimentos, François encontrava-se em meio a um
estado uma tensão emocional muito grande. Qualquer ruído causava-lhe um
sobressalto, e ele já não conseguia mais engolir a própria saliva. Cada vez mais 133 SARTRE, J.P. Mortos sem Sepultura. Lisboa: Editorial Presença, 1965, p.108. 134 Idem, ibid. 135 Idem, p.109.
105
assustado, revela aos outros que na primeira chance que tivesse, denunciaria
Jean.
François: Denuncio-te! Denuncio-te! Faço-te partilhar das nossas
alegrias (...) Denuncio-te, pois. E pronto. Será tudo tão simples:
eles aproximam-se de mim, a minha boca abre-se por conta
própria, o nome sairá espontâneo e eu ficarei de acordo com a
minha boca. Há alguma coisa a atrever? Salvar-te-ei, Lucie. Eles
hão de poupar-nos a vida.136
Os companheiros de François constatam sua última afirmação e percebem
que François colocará tudo a perder, caso chegue às mãos dos torturadores.
Dessa forma, surpreendentemente, decidem assassiná-lo, no que Lucie, sua irmã,
dá pleno consentimento.Jean tenta impedir, mas ao final acaba por permitir aquele
ato desesperado, tornando-se um dos cúmplices do assassinato de François.
Lucie: Ele tem de se calar. Os meios não interessam.
François: Vocês não vão...(eles não respondem).Juro-vos que não
falarei (eles não respondem).Lucie. Socorro, não os deixes
fazerem-me mal, não falarei; juro-te a ti eu não falarei.
Henri aproxima-se de François e começa a apertar-lhe a garganta.
François olha para ele e depois começa a gritar: Lucie! Socorro!
Não quero morrer aqui esta noite! Não me mates na escuridão!
(Henri aperta-lhe a garganta).Lucie! (Lucie vira a cabeça).Odeio-os
todos. 137
136 SARTRE, J.P. Mortos sem Sepultura. Lisboa: Editorial Presença, 1965, p. 110. 137 Idem, p. 137.
106
A situação-limite vivida pelos resistentes naquele momento acabou por
gerar-lhes uma tensão excessiva, levando-os a assassinarem um dos seus.
Henri: Pronto, está morto.
Canoris: Decidimos em conjunto e somos todos responsáveis.
Jean: Em que é que se tornaram? Por que não morreram com os
outros? Causam-me horror.138
Jean acusa a todos como sendo responsáveis pela morte de François,
embora não tenha tomado nenhuma atitude concreta para impedí-los, o que
comprova uma atitude de má-fé vinda de sua parte.
Lucie afirmava sentir-se uma outra pessoa, muito diferente daquela que
Jean conhecera há alguns meses, ao demonstrar uma mudança de postura diante
da situação-limite que vivia frente àquelas circunstâncias. Dirigindo-se a Jean, faz
a seguinte afirmação:
Lucie: Eu sou outra. Não me reconheço a mim própria. Há
qualquer coisa na minha cabeça que se deve ter fechado. (...) Amei
meu irmão, que deixei que matassem. O nosso amor está tão
longe, porque me vens tu falar dele? (...) Esperava o fim da guerra,
esperava-te todas as noites: já não tenho futuro, já não espero
senão a morte e morrerei só. (Pausa) Deixa-me. Nada temos a
dizer, não sofro e não preciso de consolo.(...) A única coisa que
138 SARTRE, J.P. Mortos sem Sepultura.Lisboa: Editorial Presença, 1965, p. 116.
107
desejo é que eles venham buscar-me outra vez e me batam para
que eu possa voltar a calar, e troçar deles, e fazer-lhes medo.139
Jean, abatido: Não passas de um deserto de orgulho.
Lucie: E eu sou culpada disso? Foi o meu orgulho que eles
feriram. Odeio-os, mas estou em poder deles. Mas também os
tenho em meu poder. Sinto-me mais próxima deles do que de ti.
(Ri).Nós! Queres que eu diga: nós! Tens os pulsos esmagados
como os de Henri? Tens feridas nas pernas como Canoris?
Vejamos, tudo isso é comédia: tu não sentiste nada, imaginas
simplesmente.140
Através de suas falas, Lucie confirma a concepção de Sartre, na qual ele
afirma que somos nós quem decidimos a intensidade da nossa dor, fato que está
diretamente relacionado à questão da escolha.
Lucie (dirigindo-se a Jean): Podes partir os ossos, podes
cegar os olhos, mas és tu que decides tua própria dor.141
Por meio desta afirmação, Lucie reforça a tese de Sartre, na qual ele afirma
que “não há situação que possa ser considerada inumana”. E mesmo que
tenhamos que determinar o que é inumano em uma determinada situação, esta
decisão não deixa de ser humana, e quanto a nós, teremos de assumir total
responsabilidade por ela. Dessa forma, caberá a nós determinar o coeficiente de
adversidade das coisas a até mesmo seu grau de imprevisibilidade. Ou, como nos
adverte Perdigão:
139 Idem, p. 126. 140 SARTRE, J.P. Mortos sem Sepultura. Lisboa: Editorial Presença, 1965, p. 126. 141 Idem, p.27.
108
“A dor física é um dado objetivo. Se, porventura, sou torturado para
confessar um segredo, não será a dor que me fará ceder ou resistir: se
meu fim consiste em dar mais valor ao segredo do que ao sofrimento, irei
julgar a dor tolerável e resistirei sem cessar; caso contrário, elejo-a
insuportável e confesso o que me exigem. Se estou excursionando a pé e
desisto de prosseguir a caminhada, não é a condição de minha
musculatura que me faz interromper a marcha. Certo: o aclive da encosta
que escalo, e a noite mal dormida, um modo como existo neste momento,
enquanto corpo. Mas o que determina a minha desistência é a maneira
como eu padeço essa fadiga, de acordo com o fim que projetei: se não
estou tão interessado em atingir o cume da encosta, desistirei ao menor
sinal de esgotamento”.142
Um dos fatores fundamentais da condição humana é, de acordo com
Sartre, a liberdade, a qual ele define como sendo a escolha incondicional que o
próprio homem faz de seu ser e de seu mundo. Por exemplo: Quando julgamos
estar sob o poder de forças externas mais poderosas que a nossa vontade, esse
julgamento é uma decisão livre, cada indivíduo age conforme suas escolhas. Se
dissermos estar enfraquecidos, a fraqueza essa fraqueza é uma decisão nossa.
Quando dizemos estar exaustos, a exaustão também é uma escolha vinda de
nossa parte. Por isso, Sartre afirma que “estamos condenados à liberdade”. É ela
que define a humanidade dos humanos, sem escapatória.
4.3 – TORTURA, VIOLÊNCIA E SITUAÇÕES-LIMITE NO CONTEXTO DA PEÇA.
142 PERDIGÃO, P. Liberdade e Existência. Porto Alegre: L&PM, 1995, P. 84.
109
A Tortura Conforme mencionamos anteriormente, Sartre demonstrou grande
preocupação com a questão da tortura em todo o decorrer de sua obra.De acordo
com G. Mattoso:
“(...) A tortura pode ser definida como todo o sofrimento a
que uma pessoa é submetida por outra, desde que de propósito da
segunda e contra a vontade da primeira”.143
A peça Mortos sem Sepultura tem como tema central, justamente as
relações entre torturadores entre torturados e torturadores em meio a uma
situação limite durante a Segunda Guerra Mundial.
De acordo com Sartre, a tortura é algo inerente ao sadismo, aspecto, que
ele “destrincha” com propriedade na Terceira Parte de O ser e o Nada.Para ele, o
sadismo teria como ênfase a apropriação instrumental do Outro-encarnado, ou, “a
negação de ser encarnado e fuga de toda facticidade e, ao mesmo tempo,
empenho para apoderar-se da facticidade do Outro”.144 Mas, uma vez que não
pode realizar a encarnação do Outro por meio da própria encarnação, o sádico
busca utilizar o corpo do Outro como instrumento de modo a realizar no Outro uma
existência encarnada.
“O sadismo é um esforço para encarnar o Outro pela
violência, e esta encarnação à força já deve ser apropriação e
utilização do Outro. O sádico procura descobrir a carne por baixo
da ação”.145
143 MATTOSO, G. O que é Tortura. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 29. 144 SARTRE, J.P. O ser e o nada.Petrópolis: Vozes, 1997, p. 495. 145 Idem, p. 496.
110
O sádico busca na verdade, a liberdade do Outro, é desta que ele tenta
apropriar-se. E ao cometer um ato de sadismo, ele se colocará como aquele que
dispõe de todo o tempo do mundo. Será calmo, agirá sem pressa, dispondo de
seus instrumentos como um técnico, testando-os, tal como um chaveiro testa
diversas chaves em uma fechadura, supondo que esta fechadura se abrirá
automaticamente, quando ele tiver “encontrado a chave certa”, ou seja, o sádico
utiliza-se de muita paciência, dispõe de vários meios, visando um fim que será
alcançado automaticamente, mas por outro lado, este fim predeterminado só pode
ser realizado com a livre e total adesão do Outro.
O seguinte diálogo entre os três torturadores logo no início do Segundo
Quadro nos dá uma noção acerca de seu comportamento perante a tortura,o que
não deixa de envolver uma postura sádica:
Clochet: Passemos ao seguinte?
Landrieu: Espera um minuto. Ao menos para mastigarmos
alguma coisa.
Clochet: Mastiguem se quiserem. Entretanto, eu talvez
possa ir interrogando outro.
Landrieu: Não, isso te dá demasiado prazer. Não tens
fome?
Clochet: Não. (...) Quando trabalho não tenho fome.146
146 SARTRE, J.P. Mortos sem Sepultura.Lisboa: Editorial Presença, pp. 63-64.
111
Os três carrascos ressaltam seu lado animal em pleno exercício de sua
função.Entre eles, Clochet é o que mais demonstra estar à vontade no “trabalho”
que executa, sem se importar com a intensidade do sofrimento causado pelas
torturas praticadas nos resistentes, utilizando-se até mesmo do sangue de Canoris
para impressioná-los (a poça de sangue encontrava-se no chão, e fôra resultado
da tortura empregada em Canoris):
Landrieu: Depois manda lavar isto.
Clochet: O que?
Landrieu: Isto: Foi aqui que o grego sangrou. É
desagradável.
Clochet: Não se deve limpar o sangue. Pode ser que
impressione os outros.147
Henri, (um ex-estudante de medicina antes da guerra) um dos prisioneiros
resistentes, é o terceiro deles a ser torturado. Diante do interrogatório e dos socos
aos quais é submetido, não delata seu chefe, e ainda desafia os torturadores com
respostas irônicas às perguntas que eles lhe fazem. Por fim, quando os carrascos
começam a cansar-se, desamarram suas mãos que inicialmente estavam atadas
aos braços da cadeira, e submetem-no a um tipo de tortura ainda pior, executado
por Clochet:
147 SARTRE, J.P. Mortos sem Sepultura. Lisboa: Editorial Presença, 1965, p. 66.
112
Clochet: Enfiem os paus nas cordas. (os milicianos
introduzem dois paus nas cordas que prendem aos pulsos de
Henri). Perfeito. Vão fazê-lo girar até que fales.
Henri: Não falarei.
Clochet: Agora ainda não. Daqui a pouco gritarás.
Henri: Experimentem fazer-me gritar.
Clochet: Não és nada humilde. Devemos ser
humildes. De quanto mais alto caíres, mais depressa
quebras os ossos.Torçam. Lentamente. Então? Nada?
Não. Torçam, torçam. Esperem: o homem começa a sofrer.
Então? Não? (...) Estás a suar. Afliges-me. (Limpa-lhe o
rosto com o lenço). Torçam. Grita ou não grita? Estás a
mexer-te. Podes impedir-te de gritar, ms não consegues
ficar quieto com a cabeça. Que aflito estás. Como tens as
mandíbulas cerradas. Estarás com medo? (...) Não te
largaremos. (Toma-lhe a cabeça nas mãos). (...) Torçam.
(pausa, triunfante). Vais gritar, Henri, vais gritar. Vejo o
grito inchar-te o pescoço; sobe aos teus lábios, só mais um
pequeno esforço. Torçam. (Henri grita).Hei! (Pausa).Como
deves sentir vergonha. Torçam. Não parem. (Henri grita).
Vês? Só custa o primeiro grito. Agora, docemente, com
naturalidade, vais falar.
Henri: Não me arrancarão senão gritos.148
Na cena que segue, Sartre narra a continuação da tortura a que Henri é
submetido, até o momento em que seus pulsos são partidos e ele perde os
sentidos. Clochet dá-lhe álcool para beber. Assim que ele acorda, a tortura
148 SARTRE, J.P. Mortos sem Sepultura. Lisboa: Editorial Presença, 1965, pp. 77-78.
113
recomeça em um outro local que ficava alguns andares abaixo de onde ele se
encontrava.
Henri grita. Landrieu vai até a porta e fecha-a. Novos
gritos, que soam distintamente, através da porta. Landrieu dirige-se
para o aparelho de rádio e faz girar o botão.149
Landrieu: São esses gritos. É preciso ter uns nervos de
ferro.150
Enquanto Henri gritava durante a tortura, Landrieu aumenta o volume do
rádio para “abafar” o som dos gritos. Por fim, Landrieu conclui que ainda que
matem Henri, não obterão dele a confissão de que necessitam. Dessa forma, ele é
levado de volta à presença dos torturadores e dos milicianos na sala de aula
utilizada para tortura. Pellerin bate-lhe mais uma vez e ordena que o algemem e o
levem ao sótão novamente.
Violência Agora, falemos um pouco a respeito da violência, outro tema tratado em
várias obras de Sartre, tendo sido ainda, um tema dominante na vida francesa nos
anos posteriores à produção de Os seqüestrados de Altona.
Em 1960, De Gaulle151, em meio à Guerra da Argélia, cogitou a
possibilidade de abandonar aquele país, o que levou à formação da organização
149 Idem, p. 81. 150 Ibid. 151 DE GAULLE, C. (1890-1970). General e estadista francês. Ganhou reputação primeiro como teórico militar, debatendo a questão da grande mecanização do exército francês. Quando a França se rendeu em 1940, fugiu para a Inglaterra e de lá liderou as forças francesas da França Livre. Foi chefe do governo provisório (1944-46), quando, após um desentendimento sobre a Constituição adotada pela Quarta República, retirou-se para a vida privada. Em 1947, criou o Rassemblement du Peuple Français, partido que defendia um governo forte. Seu modesto sucesso desapontou De Gaulle, que o dissolveu em 1953 e aposentou-se novamente. Voltou à vida pública em 1958, no auge da crise na Argélia. A Quarta República foi dissolvida e nova
114
OAS 152na França. Esta organização executou dois ataques a bombas de plástico
ao apartamento de Sartre na Rue Bonaparte, tendo o primeiro deles ocorrido em
19 de junho de 1961, e o outro, em 7 de janeiro de 1962. Podemos mencionar
ainda o apoio que Sartre dispensou a seu amigo e discípulo Francis Jeanson, que
organizou uma rede de simpatizantes preparados a oferecer ajuda e conforto aos
jovens franceses que se recusavam a fazer o serviço militar na Argélia, bem como
aos membros do Exército de Libertação Nacional Argelino. Entretanto, esta rede
criada por Jeanson foi descoberta pela polícia e ele ia ser processado. Mas em
seu julgamento realizado em 20 de novembro de 1960, Sartre declarou em carta
lida para o Tribunal, que se Jeanson tivesse pedido, ele teria carregado malas em
favor da Frente de Libertação nacional Argelina, ainda que estas estivessem
carregadas com explosivos, única arma que se encontrava à disposição dos
argelinos na época. Fora outros fatos já aqui citados, como os prefácios escritos
para os livros de Henri Alleg (Une Victoire) e Fanon (Les damnés de la Terre),
queremos mencionar uma citação de Sartre sobre a violência, em Crítica da
Razão Dialética. Lá, ele escreve que:
“Nada, nem micróbios, nem os senhores da Selva, pode
ser mais terrível para o homem do que uma espécie altamente
inteligente, cruel, carnívora, capaz de entender e superar a
inteligência do homem, e cujo objetivo está na destruição do
constituição redigida, para fortalecer o poder presidencial: veio então a “Quinta República”, tendo De Gaulle como presidente (1959-69). Ele concedeu independência à Argélia e às colônias africanas e dominou a Comunidade Econômica Européia, excluindo a Grã-Bretanha de seus quadros. Desenvolveu um sistema de contenção nuclear independente e em 1966 retirou o apoio francês à OTAN. Sua posição foi abalada por uma séria revolta em Paris (maio-junho de 1968), por estudantes descontentes com o contraste entre as altas despesas na defesa e aquelas na educação e serviços sociais. Os estudantes foram apoiados por trabalhadores das indústrias, no que se tornou a mais longa greve da história da França. De Gaulle foi obrigado a liberalizar o sistema de educação superior e fazer concessões econômicas aos trabalhadores. Em 1969, depois de um resultado adverso em plebiscito nacional, renunciou ao cargo (cf Enciclopédia Larousse. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 256). 152 OAS – Organização extremista decidida a conservar a Argélia francesa a qualquer custo. Ela almejava conseguir este objetivo, intensificando a própria Guerra da Argélia, através de ataques provocadores a civis árabes, e em parte, aterrorizando a qualquer um que defendesse na França Metropolitana, o fim da Guerra, através de um acordo negociado. (Cf. TODDY, P. Sartre. Rio de Janeiro: Edições Bloch, 1971, p. 144).
115
homem. Essa espécie é obviamente a nossa própria espécie,
existindo em cada indivíduo pelo intermédio dos outros, num
ambiente dominado pela escassez”.153
Aqui, vale lembrar, que o termo “escassez interiorizada” empregado por
Sartre em Critique de la Raison Dialectique enfatiza a importância que o homem
dá ao conflito como parte inevitável da condição humana, ou seja,escassez
significa a falta ou inadequação de meios para satisfazer as necessidades
humanas que se verifica no mundo. Pelo fato de o homem não encontrar no
mundo a satisfação imediata de suas necessidades, torna-se obrigado a lutar
contra a escassez, e essa luta vai determinar o movimento de toda história
humana.
Terminemos esta parte que se refere à violência, citando um trecho de
Mortos sem Sepultura, no qual Henri, Canoris e Lucie são mortos covardemente
pelas costas, por salvas de tiros disparados da metralhadora de Clochet, que se
utiliza de uma violência desnecessária sobre eles. A cena se passa no final da
peça, logo após eles revelarem o falso esconderijo de seu chefe, Jean:
Pellerin: Acreditas que eles tivessem dito a verdade?
Landrieu: Naturalmente. São umas bestas. Acabamos por
tê-los nas mãos.
Clochet (esfregando as mãos com ar distraído): Sim, sim,
apanhamo-los.
Pellerin, para Landrieu: Vai poupar-lhes a vida?
153 SARTRE, J.P. Critique de la raison Dialectique.Paris: Gallimard, 1985, p. 208.
116
Landrieu: Bem! De toda a maneira, agora...(Salva por
baixo das janelas). O que é...? (Clochet, com um ar equívoco
oculta o riso com a mão).Clochet, tu não...
Clochet faz sinal que sim, sempre a rir.
Clochet: Achei que era mais humano.
Landrieu: Patife!
Segunda salva, ele corre à janela.
Pellerin: Deixa isso, anda, não há duas sem três.
Landrieu: Não quero...
Pellerin: Teríamos boa cara aos olhos do sobrevivente?
Clochet: Daqui a um momento, ninguém pensará em nada
disto. Ninguém, exceto nós.
Landrieu: Uff!
Clochet dirige-se para o aparelho e faz girar os botões.
Música.154
Toddy P. em seu livro Sartre, fez uma observação que se encaixa
perfeitamente na visão que Sartre possuía sobre a violência vinda do animal
154 SARTRE, J.P. Mortos sem Sepultura. Lisboa: Editorial Presença, 1965, pp. 165-166.
117
humano, além de ter plena relação com as atitudes dos torturadores de Mortos
sem Sepultura:
“Todos os atos de violência são os mesmos, e se o homem
mata pela revolução, ou tortura para salvar o seu país, é o mesmo
‘macaco nu e sem pêlos’ que mata a si próprio na outra pessoa,
antes de testemunhar contra seu próprio crime a aboli-lo por sua
própria morte. (...) Eles são heróis trágicos, presos numa situação
que não conseguem entender, vítimas de seus próprios atos e
crucificados por suas próprias intenções; capazes de entender o
que está acontecendo consigo mesmo, mas não de supera-lo;
responsáveis por aquilo que são, mas incapazes de agir de outra
forma; prisioneiros do tribunal da história embora sem nenhum
carrasco a não ser eles próprios”.155
Situações-Limite Neste momento, pretendemos discorrer acerca do termo situações-limite,
que está na verdade, arraigado à própria concepção sartriana de teatro. Assim
como no conto O Muro, Sartre explora com propriedade a questão das situações-
limite na peça Mortos sem Sepultura. Nela, seis resistentes foram feitos
prisioneiros e firmam entre eles um pacto definitivo: não falar.A partir daí, está
expressa uma batalha ferrenha entre dois campos visivelmente opostos:
torturados x torturadores. Dessa forma, Sartre coloca como foco principal o
comportamento dos indivíduos perante a tortura, sejam eles prisioneiros ou
colaboracionistas alemães.
Entretanto, ao levarmos em conta as circunstâncias em que se encontram
os personagens na peça, percebemos que eles que todos eles estão em meio a
uma situação-limite. Em O Muro, Sartre exercita pela primeira vez a utilização 155 TODDY, P. Sartre.Rio e Janeiro: Edições Bloch, 1974, pp. 143-144.
118
literária do termo situação-limite.O Muro mostra seu protagonista, Pablo Ibbieta
frete a frente com a tortura e a morte, do início ao fim da história. Ibbieta, durante
a Guerra Civil Espanhola é aprisionado pelos fascistas que o ameaçam de
fuzilamento, caso ele não revele o esconderijo de seu chefe. Ao ver seus
companheiros de ela serem fuzilados um a um, decide protelar sua morte.Indica
um falso esconderijo aos inimigos, na esperança de salvar seu chefe, e aguarda a
descoberta da mentira. Entretanto, outra situação-limite se revela. Esta se
encontra diretamente relacionada à contingência. O chefe de Ibbieta, por
precaução, abandonara seu esconderijo e refugiara-se no cemitério, o mesmo
local indicado por Ibbieta. É encontrado e morto. Quando fica sabendo do que
aconteceu, Ibbieta explode num riso histérico, posto que provavelmente seria
libertado das mãos dos fascistas. Segue abaixo, uma passagem de O Muro, na
qual Sartre procura descrever as sensações de Ibbieta numa noite fria na prisão,
enquanto ele aguardava a tortura e a morte:
“O médico não parava de me olhar, com um olhar duro. De
súbito, compreendi e levei a mão no rosto; estava molhado de
suor. Naquele porão, no auge do inverno, em plena corrente de ar,
eu suava. Passei os dedos pelos cabelos e os senti empastados
pela transpiração; minha camisa estava úmida e colada à pele; há
pelo menos uma hora eu suava em bicas e não havia sentido nada.
Mas aquilo não escapou ao safado do belga, que viu as gotas de
suor rolarem sobre minha face, e com certeza pensou: ‘eis a
manifestação de um estado de terror quase patológico’, e devia ter
se sentido normal e orgulhoso de o ser, porque tinha frio. (...)
Contenta-me em me esfregar o pescoço com o lenço, porque
agora sentia o suor que pingava de meus cabelos sobre a nuca, o
que era desagradável. Logo, porém, renunciei à fricção, era inútil: o
lenço já estava molhado, era preciso torcê-lo e eu continuava a
119
suar. Suava também nas nádegas e as calças umedecidas
aderiam ao banco”.156
As situações podem fazer com que o homem mude de postura,
principalmente quando se trata de situações extremas, como o sofrimento, a morte
e a tortura, por exemplo. Diante de situações como estas, o homem poderá tomar
decisões inesperadas ao decidir o que ele será no momento seguinte, ainda que,
no caso da peça em questão, no plano coletivo, os resistentes tivessem um
projeto firmado, seria no plano individual que este projeto se reafirmaria ou não,
pois tudo dependeria de como cada um deles se comportaria no momento do
interrogatório.
Karl Jaspers157 compara as situações-limite a um muro contra o qual se
embate, porque é da queda que o homem se pode erguer novamente. Encarar as
situações-limite sem fugir e sem negar é o único modo que ele tem de poder
decifrar ou ver o que está para além delas. Porque elas estão lá se que sejam
previsíveis nem superáveis sem que se possam deduzir de alguma outra coisa,
ser explicadas o modificadas. Não é possível estruturar uma teoria geral das
situações-limite. E é precisamente nisso que reside sua grandeza. Assumir
livremente a sua ruína é a única forma do homem descobrir que essa ruína não
tem um fim, mas um novo começo.
156 SARTRE, J.P. O Muro. Trad. De Alcântara Silveira. São Paulo: Editora Nova Fronteira, 1982, p. 17. 157 JASPERS, K. Filósofo e psiquiatra alemão (Oldemburgo 1883- Basiléia, Suíça, 1969).Ensinou em Heidelberg e em Basiléia, onde se refugiou dos nazistas. Considerava a reflexão filosófica não como uma atividade teórica, mas como uma prática de um gênero único, implicando sabedoria e experiência. Pensava que a política e a história fazem parte desta reflexão porque manifestam a presença do Ser no mundo.Escreveu A Situação Espiritual do nosso tempo (1931), Filosofia da existência (1938), A bomba atômica e o futuro do homem (1958). Jaspers foi o primeiro filósofo a utilizar o termo Situação-Limite. “Chamo situações-limite àquelas em que me encontro sempre que não posso viver sem luta nem dor, em que inevitavelmente assumo a culpa e em que tenho de morrer. Não se se transformam apenas na sua aparência, sendo em relação ao Dasein, definitivas, mas não previsíveis: enquanto Dasein, nada mais vemos por detrás delas. São como uma parede que enfrentamos e na qual fracassamos. Não podem por nós serem alteradas, chegando-se apenas à clareza sem a qual não explicamos nem deduzimos outra coisa”. Cf. JASPERS, K. Philosophie.Berlin: Springer-Verlag, vol. 2, 1956, p. 203.
120
O valor existencial das situações-limite é o de acordarem e de
entorpecerem o indivíduo, situando caminhos possíveis a diferentes possibilidades
de uma escolha pessoal.
Voltando à nossa peça em questão, após a primeira enfrentada por Sorbier,
(dos resistentes ele foi o único que teve o infortúnio de se deparar com os
torturadores por duas vezes) ele afirmava já se conhecer, e se porventura voltasse
às mãos dos torturadores, quebraria o pacto.
Sorbier: Eu digo-te que entregaria até minha mãe. Não há
direito que baste um só minuto para apodrecer uma vida.
Canoris: É preciso muito mais do que um minuto. Julgar
que um momento de fraqueza pode apodrecer essa hora em que
decides abandonar tudo para te reunires a nós?E esses três anos
de coragem e de paciência? E o dia em que, apesar de derreado
cansaço, carregaste com a espingarda e a mochila do miúdo?
Canoris: Verdadeiramente? Por que serás tu verdadeiro
hoje quando te batam, do que ontem quando deixavas de beber
para dares a tua parte a Lucie?
Não somos feitos para viver em situações-limite158. Até nos
vales existem caminhos.159
Note-se que na citação anterior, na fala de Canoris, Sartre mencionou o
termo situações-limite, e apesar de na fala de Canoris ele ter afirmado que não
fomos feitos para viver em situações-limite, não há como fugir delas. Uma vez
que o indivíduo se encontra frente a esse tipo de situação, ele deverá enfrentá-las,
158 Grifo nosso 159 SARTRE, J.P. Mortos sem Sepultura. Lisboa: Editorial Presença, p. 55.
121
exercendo sua liberdade, através de suas escolhas. Pois para Sartre, são as
situações que fazem com que o homem mude de postura e é somente nelas que
ele se decide. Assim como Henri, Lucie se considera responsável pelo plano não
ter dado certo, e os resistentes terem sido capturados. E através das falas
seguintes, pode-se notar que antes da tortura, ela apresentava uma determinada
postura:
Jean (dirigindo-se a Lucie): Como é que eu vou conseguir
suportar o olhar de Henri quando ele voltar? Me diz que você me
odeia?
Lucie: Eu tenho ar de quem te odeia?
Jean: Me dá a tua mão. (Ela lhe estende as duas mãos
algemadas). Você está aí? Eu disse a mim mesmo: pelo menos
tudo acabou para ela. Terminou a fome e a dor. E você está aí!
Eles vão vir buscar você e depois vão trazer você de volta reduzida
pela metade.
Lucie: Nos meus olhos só haverá amor!
Jean: Vou ter de escutar os seus gritos.
Lucie: Vou tentar não gritar.160
Já após a tortura, Lucie apresentava uma outra postura, totalmente
diferente da anterior:
160 Idem, p.57.
122
Jean: Lucie!
Canoris: Deixa ela.
Lucie: Amor? (Ela encolhe os ombros tristemente).
Jean: Não me chateies. Ela é minha. Vocês desprezaram-
me e eu nada tenho a dizer; mas ela é que vocês não me tiram.
(Para Lucie).Fala. Tu não és como eles, pois não? Não é possível
que sejas como eles. Por que não me respondes? Ainda me
queres?
Lucie: Já não te quero.
Jean: Minha doce Lucie.
Lucie: Nunca mais serei doce, Jean.161
Dessa forma, a tentativa de Lucie definir sua postura perante a tortura sem
antes ter passado por ela, fora totalmente inútil, ou seja, após a tortura, Lucie
apresentou um reação totalmente diferente daquela já determinada antes. Nesse
caso, o desespero e a angústia não surgem apenas da possibilidade de vivermos
uma determinada situação. Como limite dessa mesma situação, surge também
nossa liberdade de decisão. Toda e qualquer situação-limite tem sua origem na
própria liberdade. Como a liberdade é luta e conflito, a culpa é inevitável. O
homem pode tentar suprimí-la, mas jamais poderá escapar a ela.
4.4 – O CONFLITO EXPRESSO NAS RELAÇÕES COM O OUTRO
161 SARTRE, J.P. Mortos sem Sepultura. Lisboa: Editorial Presença, 1965, p. 105.
123
Sei que não posso ser o Outro e persisto nessa minha negação. Sei
também que não posso agir sobre a liberdade do Outro e nem ele sobre a minha,
posto que esse ideal é irrealizável. A liberdade do Outro é fundamento de meu ser.
Mas por existir pela liberdade do Outro, não tenho segurança alguma, estou em
perigo nesta liberdade que modela meu ser e me faz ser.Enquanto experimento-
me como objeto para o Outro e projeto assimilar o Outro na e por esta experiência,
o Outro me apreende como objeto no meio do mundo e não projeta de modo
algum me identificar com ele. Assim, esse projeto de unificação é fonte de conflito
entre eu e o Outro. Entretanto, por mais conflituosa que seja a relação entre as
pessoas, tenho de admitir que esse conflito deriva da origem da liberdade.
Franklin L.e Silva explica:
“Toda relação concreta é o conflito de duas liberdades
concretas. Como solução é impossível, porque é impossível anular
a liberdade: ninguém pode anular a do outro e ninguém pode
anular a sua. Portanto, o mundo de Sartre, por ser um mundo de
conflito das consciências, não é um mundo em que uma
consciência triunfará definitivamente sobre a outra. É a liberdade
absoluta de todas as consciências em conflito que deveria impedir
a submissão e heteronomia. E isso nos faz compreender também
porque por mais forte que seja a relação de dominação, nunca é
um fato consumado. (...) O traço ontológico do conflito não
contraria a liberdade, pelo contrário, enfatiza-a (...) O
reconhecimento do outro é inseparável do reconhecimento desse
conflito”.162
Em suma: o conflito existente nas relações humanas é algo inerente à
liberdade de cada indivíduo, e por isso, esse conflito nunca deixará de existir. 162 SILVA, F.L. Ética e Literatura em Sartre: Ensaios introdutórios. São Paulo: Unesp, 2004, pp. 192-193.
124
Em Mortos sem Sepultura Sartre nos remete a esta questão, através de
várias situações vivenciadas por suas personagens. Através dos diálogos, nota-se
que os próprios torturadores (Clochet, Landrieu e Pellerin) viviam em permanente
discordância que culminava em conflitos. Citemos aqui, as falas entre eles, numa
cena que se passa logo após o suicídio de Sorbier, que saltara pela janela, a qual
em uma das cenas anteriores antes da chegada de Sorbier, Clochet pedia para
que fosse fechada:
Clochet: Bem vos dizia eu para fecharem a janela.
Landrieu avança para ele e assenta-lhe um murro em
pleno rosto.
Landrieu: Põe isto no teu relatório.
Pausa: Clochet tirou o lenço e limpa a boca. Os milicianos
regressam.
No momento das tortura de Henri, logo depois que seus pulsos foram
partidos e ele desmaiou, os torturadores novamente se desentendem:
Clochet: (no momento em que dá álcool para Henri beber).
Bebe, pobre mártir. Sentes-te melhor? Bem, vamos começar. Vão
buscar os aparelhos.
Landrieu: Não!
Clochet: O que?
Landrieu passa a mão pela testa.
125
Landrieu: Levem-no. Tratarão dele lá embaixo.
Clochet: Lá estamos apertados.
Landrieu: Quem manda sou eu, Clochet. É segunda vez
que to faço lembrar.
Clochet: Lá estamos apertados.
Landrieu: Quem manda sou eu, Clochet. É a segunda vez
que to faço lembrar.
Clochet: Mas...
Landrieu, gritando.
Quer que eu te atire um soco às ventas?
Dessa forma, podemos concluir que o conflito entre os torturadores era, na
verdade, a plena demonstração da liberdade exercida por cada um deles.
4.5 – OUTROS ASPECTOS DA FILOSOFIA DE SARTRE ENCONTRADOS NA PEÇA
1 - A Morte Sartre menciona o caráter absurdo da morte e a certeza de que ela
ocorrerá, mais dia, menos dia.A morte significa o limite à vida humana, seu temo
final.Minha morte é somente minha.Assim como o amor, ela é insubstituível, posto
que ninguém pode amar por mim e nem experimentar minha emoções.”Se
existissem somente mortes por velhice (ou por condenação explícita), eu poderia
esperar a minha morte. Mas, precisamente, o próprio da morte é que ela pode
126
sempre surpreender ates do tempo aqueles eu a esperam para tal ou qual
data”.163 Não existe uma data específica para nossa morte, pelo contrário, ela
comporta sempre a possibilidade de que venhamos a morrer de surpresa, a
qualquer momento, suprimindo da vida toda significação. Por isso, é absurdo
termos nascido, e igualmente absurdo que tenhamos que morrer.Landrieu, um dos
torturadores de Mortos sem Sepultura, reforça essa concepção de morte, vinda de
Sartre:
Landrieu: A morte, o que é a morte? Hã? O que é isso?
Mais tarde ou mais cedo temos de passar por ela: hoje, amanhã,
depois de amanhã, ou dentro de três meses.164
Encontramos a mesma concepção em uma fala de Canoris:
Canoris: Então, nada ficou definitivo: é sobre a tua vida
inteira que julgaremos cada um dos teus factos. Se deixas que te
matem quando ainda podes trabalhar, não haverá maior absurdo
do que a tua morte.165
Em uma conversa entre Henri e François, Sartre também demonstra parte
de seu raciocínio:
François: Terei esta cabeça esmagada, estes olhos...
Henri: Isso não te interessa, não estás lá para e veres. 163 SARTRE, J.P. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 657. 164 SARTRE, J.P. Mortos sem Sepultura, p. 137. 165 Idem, p. 41.
127
Após nossa morte, os vivos farão de nós a imagem que quiserem, e se
lembrarão de nós até quando lhes convier. Percebemos essa tese de Sartre
inserida em uma das falas de Sorbier:
Sorbier: Tenho os velhotes (meus pais). Julgam-me na
Inglaterra. Devem estar à mesa: jantam cedo. Se ao menos
pudesse convencer-me de que vão sentir uma beliscadurazinha no
coração, qualquer coisa como um pressentimento...Não tenho
certeza de que estão perfeitamente tranqüilos. Esperarão por mim
durante anos, cada vez mais tranqüilamente, e acabarei por morrer
no coração deles sem que disso se apercebam.166
O caráter contingente do nascimento também é lembrado por Sartre no
enredo da peça em questão:
Henri: Lucie! Achas que falávamos nos nossos mortos?
Não tínhamos tempo de os enterrar, nem sequer nos nossos
corações. Não. Não faço falta em parte alguma, não deixo nenhum
vazio. (...) Deslizei para fora do mundo e ele continua cheio como
um ovo. Tenho e concluir que não era indispensável. Teria
preferido ser indispensável. A alguém, a alguma coisa. Pronto. (Ri).
Foi completamente inútil eu ter nascido. 167
166 SARTRE, J.P. Mortos sem Sepultura. Lisboa: Editorial Presença, p. 41. 167 SARTRE, J.P. Mortos sem Sepultura. Lisboa: Editorial Presença, 1965, p. 42.
128
Passemos agora a um outro aspecto que se refere à condição animal dos
torturadores, que era ressaltada, cada vez que eles executavam “suas funções”:
Clochet: Vês, vês como é verdade? Leio nos teus olhos
(referindo-se à covardia e Sorbier). Mostra-os, esses grandes olhos
escancarados...
Sorbier: Tê-las-ás iguais quando te apanharem.
Clochet: Não te armes em forte, fica-te mal.
Sorbier: Iguaizinhos; somos irmãos. Agrado-te, hein? Não
é a mim que torturas. É a ti. 168
Landrieu, em diálogo com Clochet:
Landrieu: Olha, vamos dar cabo dos patifezinhos lá de
cima, pois bem, não me aquece nem me arrefece. A cada um, a
sua hora. Aí está o que tenho para dizer. Hoje, a deles, amanhã, a
minha. Cá por mim, sou regular. (Bebe).Somos uns animais. 169
Através dos diversos diálogos de Mortos sem Sepultura transcritos neste
trabalho, pudemos ter uma noção de como Sartre construiu suas personagens, em
cujas ações estavam expressas várias de suas teses filosóficas, cooperando
dessa forma, para um melhor entendimento de sua filosofia por parte daqueles
que procuram conhecer sua obra como dramaturgo, além de sua contribuição em
uma modalidade de teatro explorada por poucos autores de peças teatrais. 168 Idem, p. 87. 169 Idem, p. 112.
129
CONCLUSÃO:
Trilhamos com Sartre, percursos de seu pensamento, vindo de várias de
suas obras, o que nos deu subsídios para procurarmos analisar a peça Mortos
sem Sepultura, tema deste trabalho.Posto que nosso propósito era o de
reconstruir percursos da filosofia de Sartre, confrontando-os com as falas da peça
em questão no último capítulo, cabe-nos agora, à guisa de conclusão, recuperar o
caráter específico de tal relação.
Sartre teve uma infância vivida entre livros e diversos estudos. Quando
adulto, participou da Segunda Guerra Mundial como soldado meteorologista,
tendo sido feito prisioneiro em um campo de concentração, onde passou um ano
de sua vida. Tal experiência fez com que Sartre adotasse uma nova postura e
interpretação da condição humana, e o fizesse “responsável por toda a
humanidade”.De volta a Paris, engajou-se no combate ao nazismo e ao regime
colaboracionista pró-Hitler, instaurado na cidade de Vichy, capital da França
durante a Ocupação alemã no país (1940-44). Juntamente com Merleau Ponty,
Simone de Beauvoir, Jean Pouillon e outros, criaram o grupo “Socialismo e
Liberdade” 170, que visava à Resistência ao regime colaboracionista. No tocante a
esta questão, C. Liudivik observa que:
“Ganhava assim, espessura histórica, o apelo crucial ao
existencialismo a que assumamos a responsabilidade por nossos
próprios atos, abrindo mão das desculpas (a má-fé), com as quais
muitas vezes tentamos, na vida política e pessoal, esconder de nós
mesmos a angústia de sermos livres. Livres, e sem nenhuma ‘mãe’
natureza que nos possa justificar (daí o sentido eminentemente
‘matricida da rebelião existencial) Livres, e sem nenhuma divindade
benevolente que nos pudesse conduzir”.171
170 O grupo Socialismo e Liberdade visava não só enxotar as forças da Ocupação, como também as bases de um nova sociedade, em que o homem não mais fosse o lobo do homem. Com pouca eficácia, porém, o grupo já estava dissolvido, quando em outubro de 1941, Sartre começa a escrever “As Moscas”.(cf Liudivik, C., Prefácio de As Moscas. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2005, p. xiii). 171 SARTRE, J.P. As Moscas.Trad. Caio Liudivik. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005, p. viii.
130
Partindo desse pressuposto, o governo da França, agora instalado em
Vichy, assina o armistício com os alemães em junho de 1940. Antigo herói de
guerra, Pétain é visto na época, como uma espécie de “salvador da pátria”, cuja
função é recolher os cacos e iniciar a reconstrução nacional. Porém, o que restava
da França, era uma imitação e Estado, na verdade, uma “colônia” que servia aos
interesses econômicos da Alemanha e que introjetava a prática totalitária e anti-
semita. Auxiliado pela Igreja Católica, o governo de Pétain acabou por inculcar
certos valores ao povo francês, entre eles, o de que este deveria sofrer “um
aprendizado” com as culpas passadas, formando uma nova aliança com o Deus
da História. Sobre esse aspecto, Liudivik destaca:
“Pagar-se-ia no presente, pelo ‘pecado original’, nesse
caso, pelos vícios da democracia derrubada. ‘Aberrações’ como o
individualismo, a perda das antigas tradições, a rebeldia juvenil a
libertinagem, os judeus, e o perigo vermelho representado pela
Frente Popular – efêmera coalizão de socialistas, comunistas e
radicais que chegou ao poder em 1936, sendo dissolvida após
meses de violenta oposição da direita fascista”.172
Dentro desse contexto, Sartre desenvolveu um novo gênero teatral, que
denominou como Teatro de Situações. A situação é o conjunto de condições,
barreiras e de circunstâncias que o mundo impõe aos nossos projetos. Não há
liberdade em abstrato, ela é sempre “situada” e “coagida”. Entretanto, por mais
obstáculos que a situação represente, ela nunca chega a anular nossa condição
de sermos essencialmente livres. Por isso, Sartre menciona a famosa citação na
qual afirma que o povo francês nunca foi tão livre como quando estava sob a
Ocupação alemã. Igualmente, o enredo de Mortos sem Sepultura, se passa na
172 SARTRE, J.P. As Moscas. Trad. Caio Liudivik.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005, p. xiii.
131
época da Resistência francesa contra o regime colaboracionista alemão. Na peça,
temos a história de seis resistentes que são capturados e presos em um sótão de
um velho prédio, de onde aguardam o interrogatório, seguido por sessões de
tortura. O objetivo dos torturadores era descobrir o paradeiro de Jean, o chefe dos
resistentes. No decorrer de todo o enredo, verifica-se as mudanças e postura por
parte dos resistentes frente às situações-limite que enfrentavam. Podemos
entender como situação-limite, os fatos mais incontestáveis da existência humana:
o acaso, o sofrimento e a morte. Uma vez que estivermos frente a frente com
essas situações, necessitamos tomar decisões, sobre as quais teremos total
responsabilidade.
Ao fazermos a leitura da peça por algumas vezes, encontramos nela
inseridos vários aspectos da filosofia de Sartre, sobre alguns dos quais optamos
por discorrer neste trabalho, procurando nos ater, principalmente, à questão da
Liberdade, Tortura, e nos conflitos existentes nas Relações com o Outro, visto,
que uma análise de todas as teses filosóficas de Sartre contidas na peça em
questão, seria por demais extensa para uma dissertação de mestrado.
Assim, nos três primeiros capítulos, discorremos de forma sucinta sobre os
três aspectos já mencionados, para encontrá-los no último capítulo de nosso
trabalho, onde procuramos apresentar as falas das personagens, confrontando-as
com os aspectos anteriormente vistos.
Talvez o título da peça Mortos sem Sepultura deva-se ao fato, de que ao
final da história, todos os resistentes serem mortos (Sorbier suicida-se, o garoto
François é morto por seus próprios companheiros, e Henri, Lucie e Canoris são
assassinados pelos torturadores). Somente Jean, o líder se salva, pois os
colaboracionistas acabam soltando-o, por não desconfiarem de quem ele era, na
verdade. E assim como os corpos dos 300 resistentes mortos no início da peça
ficam “jogados ao relento”, o mesmo ocorre com os corpos dos resistentes
mencionados acima, após também serem mortos.Seus corpos não passam por
nenhum ritual fúnebre, por nenhum tipo de homenagem póstuma, não são
enterrados, e nem possuem uma sepultura com seus nomes nas lápides. De certa
forma, parece que Sartre, através deste fato, procurou nos demonstrar a
132
banalização da existência humana e a condição animal ressaltada através das
atitudes dos torturadores colaboracionistas.
No início da peça, apesar da situação que viviam, os resistentes
procuravam conversar entre si, procurando disfarçar suas angústia e mostrando-
se solidários uns com os outros. Na verdade, talvez fizessem isso, para tentar
manter sua sanidade diante da proximidade da morte de cada um. Eles possuíam
um ideal em comum, porém a realização coletiva desse ideal iria depender de
como cada um deles se portasse diante da tortura, não gritando, não cedendo, e
não delatando seu chefe, posto que se algum deles cometesse tal ato, faria tudo
aquilo resultar em um fracasso coletivo Imaginamos o desafio que Sartre
enfrentou ao escrever uma peça em que ele procurou demonstrar o homem tendo
uma atitude libertária num momento de risco de perda dessa mesma liberdade.
Prisão, interrogatório, tortura e morte. Eis a seqüência da situação-limite
enfrentada pelos resistentes, que realmente culmino com a morte de todos eles.
Já os torturadores e os milicianos permanecem vivos no final da peça, mas por
tempo indeterminado, segundo Sartre, já que todos nós morreremos e esse fato
pode ocorrer a qualquer momento, quando menos esperarmos, o que reforça o
caráter absurdo da morte, tão bem definido por Sartre.
Enfim, encontramos na peça Mortos sem Sepultura, diálogos entre as
personagens, muito bem elaborados por Sartre, onde se encontram implícitos,
vários aspectos de sua filosofia. É interessante observar, também, como cada um
se expressa diante da tortura, e isso diz respeito tanto aos torturados, quanto aos
torturadores. Os torturados sentem as dores da tortura, embora finjam não senti-
la, ou seja, procuram agir de acordo com o ideal do grupo. Os torturadores, por
sua vez, possuem momentos de discordância entre si, mas não deixam de exercer
seu papel de carrascos, o que culmina com a morte de todos os resistentes que
existiam naquele lugar. Através de Mortos sem Sepultura, Sartre dá sua
contribuição para o mundo da dramaturgia mundial e nos faz refletir acerca da
condição humana e seu exercício de liberdade frente a situações-limite, as quais
sempre farão parte de nossa existência.
133
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