linguagem e comunicação

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1 Ponto 1: Comunicação e linguagem humana 1. Conceito de linguagem e língua (revisão) 2. Conhecimento da língua e uso da língua FONOLOGIA MORFOLOGIA LÉXICO SINTAXE SEMÂNTICA Fatores que intervêm na produção e na compreensão dos enunciados e que podem fazer com que o uso que fazemos da língua não reflita fielmente o nosso conhecimento linguístico o Fatores extralinguísticos: nervosismo, cansaço o Fatores linguísticos: complexidade do enunciado (1) Um cunhado da prima de um tio do irmão do vizinho do João casou-se com uma prima da madrinha de um colega do irmão do melhor amigo do primo do professor da Maria. (2) Castelo de Chuchurumel (lengalenga tradicional) Aqui está a chave Que abre a porta Do castelo De Chuchurumel. Aqui está o cordel Que prende a chave Que abre a porta Do castelo De Chuchurumel. Aqui está o sebo Que unta o cordel Que prende a chave Que abre a porta Do castelo De Chuchurumel. Aqui está o rato Que roeu o sebo Que unta o cordel Que prende a chave Que abre a porta Do castelo De Chuchurumel. Aqui está o gato Que comeu o rato Que roeu o sebo Que unta o cordel Que prende a chave Que abre a porta Do castelo De Chuchurumel. ... PRAGMÁTICA: uso da língua em situações discursivas concretas

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Linguagem e Comunicação.

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Page 1: Linguagem e Comunicação

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Ponto 1: Comunicação e linguagem humana 1. Conceito de linguagem e língua (revisão) 2. Conhecimento da língua e uso da língua FONOLOGIA MORFOLOGIA LÉXICO SINTAXE SEMÂNTICA

Fatores que intervêm na produção e na compreensão dos enunciados e que podem fazer com que o uso que fazemos da língua não reflita fielmente o nosso conhecimento linguístico

o Fatores extralinguísticos: nervosismo, cansaço

o Fatores linguísticos: complexidade do enunciado

(1) Um cunhado da prima de um tio do irmão do vizinho do João casou-se com uma prima da madrinha de um colega do irmão do melhor amigo do primo do professor da Maria.

(2) Castelo de Chuchurumel (lengalenga tradicional)

Aqui está a chave Que abre a porta Do castelo De Chuchurumel. Aqui está o cordel Que prende a chave Que abre a porta Do castelo De Chuchurumel. Aqui está o sebo Que unta o cordel Que prende a chave Que abre a porta Do castelo De Chuchurumel.

Aqui está o rato Que roeu o sebo Que unta o cordel Que prende a chave Que abre a porta Do castelo De Chuchurumel.

Aqui está o gato Que comeu o rato Que roeu o sebo Que unta o cordel Que prende a chave Que abre a porta Do castelo De Chuchurumel. ...

PRAGMÁTICA: uso da língua em situações

discursivas concretas

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Propriedades distintivas do uso da língua: A. Inovadora / criativa

(3) borracho a. pombo novo b. homem embriagado c. indivíduo bonito (4) “Imagine que, em 1973, alguém dizia: «Vou meter o CD-ROM no PC.» Ninguém

perceberia, salvo eventualmente um funcionário mais escrupuloso da PIDE, que tentaria prender imediatamente o autor do frase e... o tal de CD-ROM. Pois é. Em 25 anos, muitas palavras apareceram e, o mais curioso, é que a maioria delas não quer dizer o que parece.”

ambientalistas arrumadores bebé-proveta clone digital euro europeísta globalização multiculturalismo parquímetro pimba realidade virtual reforma agrária telemóvel todo-o-terreno vírus electrónico

airbag bodybuilding CD-ROM disquete e-mail fast-food hacker Internet jacuzzi karaoke modem printar rave site top-less zapping

[Expresso, 10/01/1998. Pp. 90-96]

B. Simbólica

(5) Ideias verdes sem cor dormem furiosamente. C. Independente do controlo de estímulos e de estados internos Estímulo externo: X é pisado no autocarro. (6) a. X grita “Ai!” OU b. X não diz nada mas afasta-se de Y, que o pisou. OU c. X começa a saltar. OU d. X diz a Y: “Que desastrado, seu grande idiota!” OU

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e. X diz a Y: “Muito obrigado por me ter pisado, pois eu achava que os meus pés eram pequenos demais e agora sei que não são.”

Estado interno: X está sozinho em casa, com uma terrível dor de dentes (7) a. X não diz nada. OU b. X geme de vez em quando. OU c. X diz: “Outra vez esta dor de dentes! E eu que vou para Cuba no sábado!” D. Adequada ao contexto situacional e ao contexto discursivo (co-texto) Contexto situacional: fatores relacionados com os participantes na situação de discurso, tais como:

- o posicionamento físico - os papéis sociais - as atitudes - os comportamentos - as crenças

(8) formas de tratamento (9) falecer, morrer, bater as botas (10) Numa situação em que está muito calor: Está tanto calor aqui! / Não se importa

de abrir a janela, por favor? / Abre lá a janela! / Abre já a janela! (11) “Professor – Qual foi o primeiro rei de Portugal? Aluno - #Ó meu, ainda não estudei essa parte.” [Duarte 2000: 344]

(12) “Professor – Ora muito bem! E uma serra?... O menino já pisou alguma serra? Tonecas – Já sim, senhor professor! Quando era pequenino, pisei uma que me

deixou um pé a arder!... Professor – Temos nova confusão! O que o menino pisou foi uma serra de

carpinteiro... Tonecas – Pois foi! Professor – Mas eu refiro-me a outra espécie de serra! Por exemplo: à Serra da

Estrela. Tonecas – Pois é, senhor professor! Eu recordo-me perfeitamente de ter visto as

estrelas!...” [Cosme, J. de Oliveira (1988). As Lições do Tonecas.

Lisboa: Livrolândia.]

Contexto discursivo (ou cotexto): conjunto de palavras que, numa expressão linguística, são usadas em articulação com uma determinada palavra. Em certas situações, o acesso ao contexto linguístico ou cotexto é determinante para a construção do significado:

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(13) a. A chave da porta ficou na fechadura. b. O Pedro descobriu a chave do enigma.

(14) a. Seguiu-se uma chuva torrencial. b. Seguiu-se uma chuva de protestos. 3. Interação verbal

Para comunicar é necessário não só conhecer a língua, mas também um conjunto de convenções e de princípios gerais que regulam tacitamente o uso da língua, facilitando a comunicação e garantindo o seu êxito. Esses princípios fazem parte do conhecimento pragmático dos falantes. a Pragmática trata do modo como os falantes usam a língua para atingirem os seus objetivos comunicativos.

Um desses princípios é o de que o ato comunicativo só se cumpre em inter-relação. Assim, todos os participantes têm de ser igualmente activos na produção de enunciados. Os termos emissor e receptor são, por isso, muito redutores, devendo, antes, falar-se de interlocutores (locutores e ouvintes ativos).

Frase vs. enunciado

uma frase é uma unidade formal de um sistema linguístico um enunciado é uma unidade do discurso que reflete marcas de uma

produção individual e de uma situação concreta

"Quer isto dizer que a mesma frase pode estar na origem de tantos enunciados quantas as situações em que é usada e que sequências de uma ou mais frases podem constituir por si só um enunciado. Por outro lado, ainda, o que gramaticalmente pode não ser considerado uma frase (...), pode ser legitimamente considerado um enunciado." (Gouveia 1996: 385) 1 frase diferentes enunciados (15) Está um belo dia! 1 enunciado que não corresponde a 1 frase: (16) Parabéns!

Para produzir e compreender interpretar a informação, é necessário que os interlocutores recorram:

(i) aos conhecimentos (experienciais, culturais, linguísticos) que partilha com o

locutor,

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(ii) às informações dadas pelo contexto situacional imediato e pelo contexto discursivo.

Dado que o significado desejado pelo locutor pode ir para além do significado das palavras que usa, é necessário que o ouvinte:

(i) faça inferências, (ii) reconheça as alusões e convenções de uso, (iii) resolva as metáforas, as ironias e os sentidos não literais.

(problemas para os portadores de Síndrome de Asperger)

Inferências: acto de derivar uma conclusão a partir daquilo que já se sabe. (17) A: Os homens não sabem cozinhar. B: Pois é, e o Duarte é homem .... (Inferência: O Duarte não sabe cozinhar, embora B não o diga explicitamente.) (18) A: Queres café? B: O café faz-me dores de cabeça... (Inferência – decorrente de raciocínios encadeados: se o café lhe provoca dores

de cabeça, se as dores de cabeça são desagradáveis e, por regra, ninguém tem interesse em provocar a si próprio esse tipo de sensações, então B não quer café.)

(19) A: Você tem aí 500 mangos pra me emprestar? B: Não. A: E em casa? B: Tudo bem, obrigado! [Possenti, S. (2000). Os Humores da língua. São Paulo: Mercado de Letras]

(Inferência – Embora não o diga explicitamente, B não quer emprestar dinheiro a A)

Alusões: um enunciado alusivo tem sentidos que vão para além do significado literal da frase. O interlocutor deverá descobrir e atribuir ao enunciado esses sentidos.

(20) Dizes tantas mentiras que qualquer dia o lobo aparece e ninguém te liga. (alusão à história de Pedro e o lobo)

Convenções de uso (21) A: Sabe dizer-me como se chega à Faculdade de Letras?

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B: Sei.

Metáforas

(22) Os olhos da Maria são dois oceanos.

Ironias

(23) A: A Zulmira é a rapariga mais gira da turma. B: E eu sou o Presidente da República.

Sentidos não literais (24) Uma lata existe para conter algo Mas quando o poeta diz: "Lata" Pode estar querendo dizer o incontível Uma meta existe para ser um alvo Mas quando o poeta diz: "Meta" Pode estar querendo dizer o inatingível Por isso, não se meta a exigir do poeta Que determine o conteúdo em sua lata Na lata do poeta tudonada cabe Pois ao poeta cabe fazer Com que na lata venha caber O incabível Deixe a meta do poeta, não discuta Deixe a sua meta fora da disputa Meta dentro e fora, lata absoluta Deixe-a simplesmente metáfora (Metáfora, Gilberto Gil) http://www.youtube.com/watch?v=HOpmOmh1l6A (25) a. Chover a cântaros / ter o rei na barriga b. Mais vale um pássaro na mão do que dois a voar.

5. Relação entre linguagem e comunicação: duas capacidades cognitivas

relacionadas mas distintas 5.1. Pacientes com perturbações na linguagem (afasias)

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WILLEMS & VARLEY (2010):

Patients with severe agrammatic aphasia usually display deficits in the comprehension

and production of verbs, and these impairments are particularly evident on low

imageability, abstract verbs such as those that describe mental states (McCarthy and

Warrington, 1985). Severe agrammatism is also characterized by difficulties in de-

coding the structure of sentences, with impairment in assigning correct agent-patient

roles in reversible sentences such as “the diver splashed the dolphin”/“the dolphin

splashed the diver.” More complex structures containing subordinate clauses provoke

even greater difficulties in comprehension. There are parallel difficulties in creating

structured sentences, with output at best consisting of strings of words (usually

nouns), and at worst, restricted to social forms such as “hi,” “yes,” or “bye.”

Despite the presence of such profound language impairments, patients with severe

aphasia are able to succeed on tests of false belief understanding.

With regard to the inter-relationship between language and communication, patients

with severe aphasia have often been observed to communicate better than they talk.

Through the use of alternative communicative resources such as drawing, facial

expression, and gesture some severely aphasic individuals are able to convey quite

sophisticated messages.

(…) if language is crucially involved in communicative intention generation, the aphasic

patients should not fare well on this task. However, the patients exhibited strategies

for communication that were entirely comparable to those observed in the

neurologically healthy population. These findings indicate considerable autonomy

between language and intentional communicative capacity.

EXEMPLOS DE AFASIAS: A – Afasia de Broca: discurso pouco fluente; o paciente é capaz de decidir aquilo que pretende verbalizar mas, muitas vezes, não consegue emitir mais do que alguns ruídos. Para além disso, utiliza um pequeno número de palavras, cujo agrupamento em frases está reduzido ao mínimo. A dificuldade de articular palavras (disartria) está frequentemente associada a esta alteração. O doente enuncia as palavras de forma lenta e laboriosa, utiliza frases curtas e simples com predomínio de substantivos, verbos transitivos e adjetivos, omite artigos e proposições; mensagens telegráficas. Estes doentes podem não apresentar alterações a nível da compreensão, sendo capazes de designar objetos e imagens. Nos casos mais graves verifica-se apraxia (incapacidade de reconhecer objetos). São capazes de executar ordens simples e, na sua maioria, apresentam incapacidade de se expressar através da escrita – agrafia. http://www.youtube.com/watch?v=IIR778K8UDs

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B – Afasia de Wernicke: a expressão oral é fluida, espontânea e abundante (ao contrário da afasia de Broca), mas sem muito significado devido ao uso inadequado de palavras ou fonemas – parafasias. A alteração da compreensão pode ser grave ou moderada, mostrando-se mais acentuada para palavras isoladas do que para as frases, já que o contexto pode facilitar a interpretação. O doente é incapaz de repetir comandos em voz alta. Em casos menos graves é capaz de repetir as palavras que ouve, mas pronuncia-as e compreende-as de forma errada. http://www.youtube.com/watch?v=aVhYN7NTIKU inglês http://www.youtube.com/watch?v=vlo4Hv0Bpj4 espanhol http://www.youtube.com/watch?v=HLYGDfTy9B0 inglês OK (26) Representação das áreas de Broca e Wernicke (hemisfério esquerdo do cérebro)

5.2. População saudável: resultados da imagiologia WILLEMS & VARLEY (2010): (…) producing a communicative act for another person relies on different brain areas than those involved in language.

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(27) Ativação cerebral

A: ativação cerebral em tarefas que envolvem intenção comunicativa, independentemente da dificuldade linguística da tarefa B: ativação cerebral em tarefas em que não há intenção comunicativa Leituras:

Duarte, I. (2000). Língua Portuguesa. Instrumentos de Análise. Lisboa: Universidade Aberta, pp. 345-371.

Gouveia, C. (1996). Pragmática. In Faria, I., E. R. Pedro, I. Duarte & C. Gouveia (orgs). Introdução à Linguística Geral e Portuguesa. Lisboa: Caminho. pp.383-419.

Pedro, E. (1996). Interacção verbal. In Faria et al. (orgs.) (1996), pp. 449-475.

Pinto de Lima, J. (2006). Pragmática Linguística. Colecção O Essencial sobre Língua Portuguesa. Lisboa: Caminho.

Willems, R. & R. Varley (2010). Neural Insights into the Relation between Language and Communication. Frontiers in Human Neuroscience 4: 203. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2996040/