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A IMERSÃO DO ESPECTADOR NA LINGUAGEM DE BRUEGEL E MAJEWSKI 1
THE IMMERSION OF THE SPECTATOR IN THE LANGUAGE OF BRUEGEL AND MAJEWSKI
Denise Costa Lopes 2 Resumo: A transposição por Lech Majewski em ‘O moinho e a Cruz’ (2011) de ‘Cristo
carregando a cruz’ (1564), de Pieter Bruegel, o Velho, atualizou parâmetros surgidos ou difundidos no Renascimento, que envolvem noções ainda hoje muito caras à fruição do espectador, como ‘invenção’ da paisagem, geometria euclidiana, perspectiva ‘artificialis’ e cromática. Estas descobertas, somadas a leituras, usos e conceitos de épocas subsequentes, como sublime, ‘contemplatio’, forma panorama, modelo panóptico, campo de mira x campo visual, perspectivas fisiológica e múltiplas, apreendidas de forma sintética, serviram de base para a compreensão do processo de imersão do espectador numa obra de arte. Ao utilizar recursos ultra-tecnológicos da imagem digital, como efeitos 3D e incrustação eletrônica, mas também trabalhos artesanais, e ao se valer de uma narrativa que promove apagamentos, condensações, presenças-de-ausência, desterritorializações e metalinguagens que convidam à coautoria da imagem, Majewski não só ressignificou a obra e as técnicas do passado, como se assumiu como um dos mais potentes artistas visuais da atualidade, atualizando a linguagem de séculos atrás.
Palavras-Chave: Cinema e Pintura. Bruegel e Majewski. Imersão do Espectador. Abstract: The transposition by Lech Majewski of Pieter Bruegel the Elder’s ‘Christ Carrying the
Cross’ (1564) in the ‘The Mill and the Cross’ (2011) updated the parameters that emerged or diffused in the Renaissance, which involved notions that are still very important today for the fruition of the spectator, such as the ‘invention’ of the landscape, Euclidean geometry, ‘artificial’ and chromatic perspective. These discoveries, added to interpretations, uses and concepts of subsequent epochs, such as sublime, ‘contemplatio’, panorama form, panoptic model, blickfeld x blickpunkt, physiological and multiple perspectives, abstracted in a synthetic form, served as a basis for understanding the process of the spectator’s immersion into an art work. By using ultra-technological resources of the digital image, such as 3D effects and electronic inlay, but also handcrafted works, and using a narrative that promotes erasures, condensations, presences-of-absence, deterritorializations and metalanguages that invite the coauthorship of the image, Majewski not only re-signified the work and the techniques of the past, but also became one of the most powerful visual artists of the present time, updating the language of centuries ago.
Keywords: Cinema and Paiting. Bruegel e Majewski. Immersion of the spectator.
1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação, Artes e Tecnologia da Imagem do XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2018. 2 Professora do Departamento de Comunicação da PUC-Rio nos Cursos de Cinema e Arte e Design, Doutora em Artes Visuais pela EBA/UFRJ, com bolsa da CAPES na Université Lumière Lyon 2 e aulas na Sorbonne Nouvelle, Paris 3, [email protected].
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A transgressão em Bruegel
Cristo carregando a cruz (1564), de Pieter Bruegel (1525/1530-1569), o Velho,
recriado pelo polonês Lech Majewski no longa O moinho e a cruz (The mill & the cross), de
2011, promove uma leitura transgressora de um acontecimento bíblico, em forma de
questionamentos e denúncias. Retira o personagem central da berlinda e contextualiza o
calvário de Jesus a partir da aproximação com o dia a dia do seu tempo e lugar.
FIG.1– Cristo carregando a cruz (1564), Pieter Bruegel, Óleo sobre tela, 124 x 170 cm, Kunsthistorisches Museum, Viena.
Disponível: http://www.wga.hu/art/b/bruegel/pieter_e/08/11calvar.jpg. Acesso: 28/03/12.
Gólgota, o monte da caveira, ou Calvário, onde Jesus teria sido crucificado, não será
mais em Jerusalém, como narrado na Bíblia, mas ali mesmo nuns estilizados Países Baixos,
de geografia plana, rios, moinhos e inusitados rochedos. Invadidos por tropas espanholas de
trajes vermelhos, e açoitados por perseguições duríssimas e mortes, com requintes de
crueldade dos adeptos das ideias de Martim Lutero (1483-1546) que, a partir do Concílio de
Trento (1545 a 1563), seria alvo do movimento da Contrarreforma. O horror da crucificação
de Jesus será mostrado assim como mais uma violência em meio aos desmandos promovidos
em terras flamengas pelas tropas de Carlos V (1500-1558), rei da Espanha católica e
imperador do Sacro Império Romano-Germânico. Descontextualizada e desterritorializada, a
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localização tão conhecida do fato pode ser pressentida somente por uma possível alusão à
Jerusalém na uma cidade murada de castelos do lado esquerdo e ao fundo do quadro.
O calvário e morte de Jesus, pensados em associação aos violentos expurgos e
processos inquisitórios da Igreja na época do reinado espanhol nos Países Baixos, serão
confundidos ou mostrados assim, como um ato cometido pelo próprio Cristianismo. Como
Lutero, Bruegel critica o catolicismo, recriando, a partir de uma das mais conhecidas
passagens da Bíblia, os crimes cometidos pela Igreja e os infortúnios dos homens à sua
época, ao colocar Jesus assassinado e torturado pelas próprias forças da Igreja.
A composição com mais de 500 personagens, cerca de 40 cavalos, 20 pássaros e oito
cachorros, dispersos numa paisagem panorâmica, que transita do sol à chuva, da terra árida à
água, de casas humildes e pobres a palácios, de rochas e terrenos acidentais a morros
distantes e descampados, que se elevam no horizonte, foi pintada por Bruegel no auge do
contra-ataque às insurreições por problemas fiscais e tensões sociais da Reforma Protestante,
que colocava em cheque o domínio espanhol católico. Três anos depois, em 1567, o Duque
de Alba (Fernando Álvarez de Toledo y Pimentel, 1507-1582) se instalaria em Bruxelas com
uma tropa de cerca de 600 homens e iniciaria o que ficaria conhecido como o ‘Tribunal do
Sangue’, um dos processos mais duros e sangrentos da Inquisição Católica. Bruegel pinta seu
próprio calvário como premonição de que o terror iniciado, nos anos de 1520, com a Guerra
dos Camponeses, na Alemanha, ainda poderia crescer nos países do Norte.
Representante do Renascimento nos Países Baixos, Bruegel subverte. Será
responsável, entre outras coisas, pelo aperfeiçoamento de toda uma retórica da paisagem, no
momento de sua ‘descoberta’. A partir da construção de perspectivas múltiplas e
panorâmicas, Bruegel será um dos principais artífices de narrativas sintéticas de forte apuro
estético que, apesar de muito povoadas, assumem aparências simples. Embora não fosse
incomum, sobretudo na tradição flamenga, que personagens populares aparecessem na tela,
principalmente camponeses, a pintura de gênero, de cenas inspiradas na vida cotidiana,
alcançou um lugar ainda mais definitivo em Bruegel.
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O tríptico fílmico
O moinho e a cruz é a peça central de um tríptico fílmico realizado pelo poeta,
cineasta, compositor, escritor, diretor teatral e pintor polonês Lech Janusz Majewski.
Interpretado por Rutger Hauer (Pieter Bruegel), Charlotte Rampling (Virgem Maria) e
Michael York (Nicolaes Jonghelinck3), levou três anos para ser finalizado e usou técnicas de
CGI (computer-generated imagery) e efeitos em 3D. Baseado no livro do historiador da arte
belga Michael Francis Gibson, Portement de Croix. Histoire d’un tableau de Pierre Bruegel
l’Aîne, lançado em 1996, que analisa detalhadamente a pintura de Cristo, tem roteiro
assinado por Gibson e Majewski.
As outras partes do tríptico em movimento são The garden of earthly delights (2004),
com Claudine Spiteri e Chris Nightingale, e Onírica (2014, Field of dogs), com Szymon
Budzyk e Dorota Lis. A primeira baseia-se na célebre pintura também tríptica O jardim das
delícias terrenas (c.1500), de Hieronymus Bosch. Uma mulher escreve sua tese de doutorado
sobre a obra. Basicamente, “vê” a filosofia de Bosch em sua vida contemporânea. A última
parte dessa conversa de Majewski com grandes mestres do passado transpõe o poema de
Dante Alighieri (1265-1321), A Divina Comédia, a partir das ilustrações para as alegorias
descritas no épico criadas por Gustave Doré (1832-83), entre 1861 e 1868. Dividido em três
partes – Inferno (c.1304 e entre 1307-08), Purgatório (1307-08) e Paraíso (1313-14 a 1321) –,
o texto seria, segundo Majewski, o mais denso em imagens de todos os tempos. “Considero
Dante um artista visual, gravou sua arte visual com palavras [...] de uma forma muito
rigorosa e matemática.” (MAJEWSKI, depoimento, 2014)
3 Jonghelink, rico comerciante da Antuérpia, possuia 16 obras de Bruegel, quando este morreu, entre elas Cristo.
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FIG.2 e 3– Cenas de Onírica, filmada na catedral de Katowice, onde Majewski nasceu. Disponível:
http://cdn3.thr.com/sites/default/files/2014/03/fieldofdogs.jpg. Acesso: 20/12/15.
FIG.4 e 5– Ilustrações de Gustave Doré para O Purgatório em A Divina Comédia, com o anjo da paz. Disponível:
http://www.worldofdante.org/gallery_dore.html. Acesso: 20/12/15.
FIG.6 –Tríptico O Jardim das delícias terrenas (c.1500), Hieronymus Bosch. Oil on panel, central panel: 220 x 195 cm, wings: 220 x 97 cm. Museu do Prado, Madrid. Disponível: http://www.wga.hu/support/viewer/z.html. Acesso: 03/12/15.
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FIG.7– Cenas de The garden of earthly delights comparadas à obra de Bosch. Acesso: 20/12/15. Disponível: http://41.media.tumblr.com/9f329949c2fde3a6bc4a21eeca3d2a79/tumblr_myslwh7zou1rjdtdbo1_500.jpg.
Bruegel “instalado”
Majewski transformou seu próprio filme também em uma grande instalação, onde
paredes, telas, ou painéis digitais dispostos de modo a circundar os visitantes exibiram
trechos do longa, desconstruindo sua continuidade temporal e espacial e promovendo efeitos,
onde os corpos dos transeuntes se fundiam às imagens projetadas. O projeto batizado de Suite
Bruegel, com curadoria de Gibson, rodou o mundo e passou inclusive pelo Brasil, em 2015,
durante a VI Mostra 3M de Arte Digital, sob o título What’s appropriation? A arte de
revisitar a arte, na Fundição Progresso do Rio de Janeiro. Mas suas primeiras e mais
importantes montagens aconteceram, em 2011, no próprio ano de lançamento do filme, em
fevereiro, no Museu do Louvre, e, em junho, na 54ª Bienal de Veneza, na Igreja de San Lio,
uma das mais antigas e importantes da cidade, erguida no século IX, e reconfigurada por duas
vezes, nos séculos XV e XVII.
Apesar de a estreia de Suite Bruegel ter acontecido em Paris, foi em Veneza que o
projeto encontrou maior ressonância. Unir Bruegel ao Renascimento Italiano presente em
Veneza foi mais uma tentativa de diálogo no tempo. O trabalho de videoarte de Majewski
envolve muitas outras construções e contrapontos do passado. Suas obras em vídeo, cinema e
de artes plásticas foram exibidas em inúmeras galerias e museus do mundo, incluindo:
Galerie Nationale du Jeu de Paume, Whitechapel Art Gallery, Museo de Bellas Artes de
Buenos Aires, The National Gallery, Museu do Prado, e Art Institute of Chicago.
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FIG.8– Suite Bruegel (2011), 54ª Bienal de Veneza, Chiesa di San Lio, Veneza. Disponível:
http://www.lechmajewski.com/assets/images/10RKZ_2658.jpg. Acesso: 20/12/15.
FIG.9– Majewski's Moving Walls. Foto: Kaspars Garda, Riga, Letônia, 2014. Disponível:
http://www.arterritory.com/images/main/_MG_0395.jpg. Acesso: 20/12/15.
Suite Bruegel criou novas leituras do filme e foi chamada por Majewski de ‘vídeos
frescos’, numa analogia aos afrescos antigos. Em alguns lugares, ganhou o nome de
Majewski's Moving Walls, lembrando a ideia fantasmagórica do “atravessar paredes”4 de Aby
Warburg, onde as imagens podiam não só se fundir às texturas destas, como se auto-
penetrarem por um atravessamento das mesmas. A ideia de nos colocar imersos em meio às
cenas projetadas, que montamos com nossos olhares, se aproximou assim ainda mais à
construção de Bruegel.
4 Aby Warburg montou um Atlas de imagens, entre 1924 e 1929, que homenageava a musa grega da memória Mnemosyne, com imagens fotográficas, desenhos, páginas de livros abertas, pinturas..., formando painéis que demonstravam linhas de transmissões visuais através dos tempos e que carregariam consigo o pathos, emoções básicas engendradas no nascimento da civilização ocidental.
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A forma panorama
Edificada sob a égide da forma panorama, num ambiente monumental e
multidimensional, a pintura de Bruegel promove imersão, convida seus interlocutores a
participarem da cena como coautores e engendra efeitos de presença, que se contrapõem à
crescente fragmentação, aceleração e aproximação desenfreada das mídias atuais. Com seus
horizontes distendidos e sua leitura construída por um passeio dos olhos por uma superfície
que se desdobra no infinito, ela estaria nessa fronteira capaz de realocar o espectador frente à
sua capacidade de reconstruir um passado, um saber e, por que não, um pertencimento
perdido pela urgência da compreensão espacial e temporal que vivemos hoje a partir dos
inúmeros acessos simultâneos às informações, sobretudo imagéticas, nas redes digitais.
Recurso que pode servir de álibi para a emergência do que Andreas Huyssen aponta como
“desejo de memória”5 tão presente nas obras de Majewski.
A palavra panorama “vem de duas raízes gregas que significam onividência; trata-se,
é claro, de abraçar com o olhar uma vasta zona” (AUMONT, 2004, p.55). Sua primeira
utilização é de difícil precisão, mas é a partir dos anos de 1770, quando se dá o início e a
expansão dos formatos técnicos da imagem panorâmica, que o termo começa a ser utilizado:
“The use of the word panorama in abroad or metaphorical sense seems to have begun almost
simultaneously with the invention of technical terms.6” (OETTERMANN, 1997, p.6)
Um grande número de inventores, ligados ou não ao entretenimento, irá criar a partir
desses anos projetos que, em última análise, promoviam vistas amplas. O arquiteto e
urbanista Claude-Nicolas Ledoux (1736-1806) com seus edifícios em formas circulares para
um silo de alimentos em Mauperthuis (1847), para a cidade de Chaux (1775) e para uma
Salina em Arc-et-Senans (1774-79); o arquiteto Étienne-Louis Boullée (1728-99) com
Cénotaphe à Newton (1780), um memorial fúnebre em forma de globo circular, com 150m de
diâmetro; bem como o filósofo e jurista inglês Jeremy Bentham (1748-1832) e seu
Panopticon para a modernização de penitenciárias, seriam alguns deles. 5 O pensador alemão identifica uma transformação radical na temporalidade, provocada pela compressão espacial e temporal a partir de complexa interseção de mudança tecnológica, mídia de massa e novos padrões de consumo, trabalho e mobilidade global, que gera desejos de ancoragem capazes de propiciar extensão do espaço e tempo, dentro dos quais possamos respirar e nos mover. 6 O uso da palavra panorama no exterior ou no sentido metafórico parece ter começado quase simultaneamente com a invenção de termos técnicos.
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FIG.11– Planta da Salina em Arc-et-Senans (1774-79), Claude-Nicolas Ledoux. Disponível:
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/7/7b/Arc-et-Senans_-_Plan_de_la_saline_royale.jpg. Acesso: 20/08/15.
FIG.12– Cenotáfio de Newton, 1780, de Étienne-Louis Boullée. Disponível: http://highlike.org/media/2012/09/Etienne-
Louis-Boullee.jpg. Acesso: 20/08/15.
Destes, o modelo pan-óptico (pan, total; óptico, olho; olho que tudo vê), que teve
origem com os estudos de Bentham, por volta de 1785, para a construção de novas prisões e
que coloca o sujeito como objeto de atenção e vigilância permanente, foi o mais difundido,
sendo amplamente utilizado na construção também de hospícios, escolas e locais de trabalho,
conforme analisado por Michel Foucault em Vigiar e punir (1975). A novidade, que
racionalizava a observação e o controle, contava com uma torre alta instalada no meio de
uma estrutura circular a fim de permitir que uma só pessoa pudesse vigiar simultaneamente
um sem número de presos sem que esses pudessem saber em que momento ou de qual ângulo
estariam sendo observados.
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FIG.13– Panopticon, corte do desenho do arquiteto inglês Willey Reveley, realizado em 1791. Disponível:
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/1/11/Panopticon.jpg Acesso: 05/01/16.
Rocha pneumática e panóptica
Além de privilegiar a forma panorama, o quadro de Bruegel, instala um moinho,
alegoria holandesa, em cima de uma estranha pedra que se assemelha a essa estrutura. A
partir de uma visão de 360º, o moleiro, ou a própria rocha que, segundo Moisés, seria Jesus,
também poderiam observar todos os passos dos seres viventes locais. Sobre a rocha, que
praticamente divide a tela entre luz e trevas, as pás do moinho que, em verdade, refazem a
cruz que Jesus carrega, domina toda paisagem do alto: “The heavens, up there, turn like a
mill wheel. Cleomedes 4”7 (GIBSON, 2012, p.47). Estão acima dos homens, controlando
tudo, não só como um governante dotado de leis humanas, mas também como “prehistoric
megalith, appears to emboy some primal enigma”8 (GIBSON, 2012, p.60). A comparação
com formações rochosas da Idade do Bronze, como o alinhamento Stonehenge, localizado na 7 Os céus, lá em cima, giram como uma roda de moinho. Cleomedes 4. Cleomedes foi um astrônomo grego, que escreveu On the Circular Motions of the Celestial Bodies. 8 Megalíticos pré-históricos, que parecem encarnar algum enigma primal.
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planície de Salisbury, no sul da Inglaterra, enfatiza duas coisas: a estranheza do recorrente
acidente geológico nas pinturas de Bruegel, não característico na região, e a conexão com
algo divino, tal como expresso no livro de Gibson. “‘You are not under the law but under the
grace’, Romans 6:14. Note that the concept of grace implies a notion of reciprocity and of
relationship that is lacking in the concept of law9”. (GIBSON, 2012, p.60)
FIG.14– Detalhe da rocha perfurada, sugerindo um interior, no quadro de Bruegel. Disponível:
http://www.bosz.com.pl/resources/The%20Mill%20and%20the%20Cross%2044%20EN.pdf. Acesso: 20/12/15.
As construções mais inventivas no filme de Majewski surgem exatamente da
exploração dessa ideia e da representação do espaço vazio interior à pedra. A rocha na época
de Bruegel possuía um simbolismo muito específico de segurança, mistério e refúgio.
Majewski vai potencializá-lo, reforçando a ideia de que o moinho em seu cume é um espaço
panóptico, de onde se avista toda a superfície mostrada na tela, transformando o local numa
fábrica de pão e, consequentemente, a rocha em alimento e fonte de vida. Como um Deus, o
moleiro, fazedor de pão, anima e pode acompanhar e controlar todos os passos dos cidadãos
dali. Se as pás do moinho param, toda a vida para. Relação explícita de poder, exemplificada
no congelamento literal do movimento dos personagens abaixo do moinho na cena em que
suas pás param de rodar.
9 Não estais debaixo da lei, mas debaixo da graça, Romanos 6:14. Note que o conceito de graça implica uma noção de reciprocidade e de relacionamento que falta ao conceito de lei.
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FIG.16– Cena do moinho parando, com visão panóptica de cima. Disponível:
https://rorydean.files.wordpress.com/2012/11/millcrossatl2.jpg. Acesso em 20/12/15.
A inspiração para o vazio interior da rocha, segundo Majewski, não veio apenas das
evidências de buracos e reentrâncias nesta ou da presença humana em seu topo, mas
principalmente da ideia, oriunda da tradição judaica, da rocha pneumática que Moisés
carregou pelo deserto e que foi responsável por fornecer água e comida ao povo10. A
interpretação vinda de São Paulo era de que a rocha era o próprio Jesus, alimento e olhar
panóptico, que controla não pelo poder, mas pela graça, pela troca enigmática e primal.
Transformar a rocha na fornalha dos pães, criar seus espaços ocos e labirínticos, tal como
inventado pela revolução arquitetônica promovida por Fillipo Brunelleschi no início da
Renascença em Florença, foi a solução mais rica em referências que Majewski poderia ter
fornecido a partir do que Bruegel nos sugere.
Bruegel pinta de maneira tão detalhada que faz você achar que sua pintura é realista. Então você descobre que isso é loucura [...] De onde é essa paisagem completamente surreal que não tem nada a ver com sua terra? [...] Um homem que só viveu perto do mar em um país que é tão plano como esse piso. [...] Ele viajou para os Alpes, viu as montanhas e ficou absolutamente chocado. [...] Os símbolos da natureza eram antropológicos. O lago era o olho; floresta era o cabelo. Tudo significava algo. A montanha e a rocha eram o corpo de Jesus Cristo porque têm
10 And all ate the same pneumatic food, and all drank the same pneumatic drink. For they drank from the pneumatic rock which followed them – and the rock was Christ (1Cor 10,3s) (THIESSEN, 2013). Todos comeram o mesmo alimento pneumático e beberam a mesma bebida pneumática. Para aqueles que beberam da rocha pneumática, que os seguiam, a rocha era Cristo.
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rachaduras e feridas. [...] Bruegel é um cara da fantasia. [...] Aprendi sobre o Midrash. Moisés, que anda no deserto com uma rocha pneumática, é uma imagem bonita. [...] Ele a golpeia com seu cajado e água sai dela. Na verdade, a tradução direta dos israelenses atravessando o deserto não está na nuvem que os seguia, mas na rocha que os seguia. Gosto da ideia de uma rocha vazia. Descobri a janela no lado da pedra. Vi que era um lugar habitado, com um espaço vazio dentro. Isso coincide com o Midrash sobre Moisés e a rocha pneumática e foi assim que ele criou esse interior. (MAJEWSKI, depoimento, 2014)
Sublime e forma panorama
A gruta, corpo de Jesus, segundo Móises e sua rocha pneumática, refúgio misterioso e
metafórico usado por Bruegel, e ampliado por Majewski, seria a encarnação possível do
ambiente circular do panorama. Forma responsável por sua aproximação com o sublime11.
Bernard Comment, historiador do formato, vai destacar a obra do pintor suíço Caspar Wolf
(1735-83) como a melhor tradução para as redefinições do sublime que começam a aparecer
a partir do século XVIII. Segundo ele, Wolf “par l’inscription de l’individu dans un
environnement qui l’écrase et l’exalte en même temps”12 estaria em concordância com as
novas reflexões acerca do sublime que surgiam. Em L’intérieur de la grotte aux Ours près de
Welschenrohr13 (1777), o personagem se encontra numa posição muito semelhante a de um
observador de panorama, ao mesmo tempo protegido e ameaçado por essa gruta, na fronteira
exata entre luz e sombra.
11 Do latim sublimis, que tem suas raízes na Antiguidade e que etimologicamente vem do latim sublimis, composto de sub-limen: “o que está suspenso na arquitrave da porta”, o termo surge diretamente relacionado com a terminologia da retórica, é o genus grande, grave ou... sublime, que se caracteriza pelo tipo de linguagem elaborada, de ornato vigoroso, patético. Sua função é comover: é o local onde domina o pathos – o grau mais violento dos afetos, mais indicado para promover o impulso que conduz à ação. Se define como algo que se eleva, que se sustenta no ar ou que nos transporta para fora de nós mesmos. É uma das construções mais caras à ideia de que a partir da contemplação da arte podemos experimentar ou sentir algo que nos faz ter conhecimento até de nós mesmos ou de irmos além de nós mesmos. Foi e sempre será um dos pilares de todo desejo estético. Com Immanuel Kant e sua Crítica da Faculdade do Juízo (1790) esse desejo foi muito além do belo, prazeroso e agradável. Sua força extrema se encontra na capacidade de nos revelar o inacessível, o incomensurável, aquilo que não podemos exprimir e que, por isso mesmo, nos apavora por medo, respeito, ou pelos dois. O termo usado desde a época greco-romana – que ganhará maior visibilidade a partir da tradução francesa de Nicolas Boileau (1636-1711), em 1674, do Tratado sobre o sublime, escrito entre os séculos I e III, possivelmente por um anônimo e atribuído a Pseudo-Longinus, Dionísio Cassius Longinus (213-273), será revisto por Edmundo Burke (1729-1797) em Investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do Sublime e do Belo (1756-1757), influenciando, sobremaneira, Kant, e melhor elucidado por Jean-François Lyotard (1924-1998), em Lições sobre a analítica do sublime (1991) e O sublime e a vanguarda (1982), se tornará notório no fim do século XVIII e por todo século XIX, quando transformado em categoria estética por Kant, e levará a um exacerbamento e a um quase esgotamento do método do contemplatio e do efeito do tromp l’oeil, tal como utilizado até hoje. (BARBAS, 2006) 12 Ao inscrever o indivíduo em um ambiente que o esmaga e o exalta ao mesmo tempo. 13 O interior da gruta aos ursos perto de Welschenrohr.
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14 www.compos.org.br
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FIG.17– L’intérieur de la grotte aux Ours près de Welschenrohr, Caspar Wolff. 1777, huit, 42,3 x 34,5 cm, Museé de la
Ville de Soleure. Disponível: https://40.media.tumblr.com/tumblr_md1p77NNq61qgnsyxo1_500.jpg. FONTE: COMMENT, 1993. Acesso: 20/01/15.
FIG.18– Detalhe do Panorama of Thun and its Surroundings (1809 – 1814), de Marquard Wocher (1760 – 1830), oil on canvas, 7.5 x 38.3 m. Depositum Gottfried Keller-Stiftung, Kunstmuseum Thun. Photo: Christian Helmle. Disponível:
http://koyre.ehess.fr/docannexe/file/908/bigg_panorama_eng.pdf. Acesso: 20/01/15.
Parmi les attributs du sublime, Burke évoque la frayeur, l'obscurité, la vastitude et l'infinitude. Autant d'aspect qui, sous une forme ou sous une autre , seront à la base du panorama [...] l'obscurité, dont Robert Barker fait une condition d'accès à la rotonde, redoublée par la plate-forme ombragée qui contraste avec l'éclairage zénithal tombant sur la toile à partir d'une source lumineuse dérobée.14 (COMMENT, 1993, p.54)
Os panoramas, assim como as pinturas românticas, ao explorar, sobretudo, a vastidão
da natureza, os fenômenos ambientais, o gênero das vedutas15, as visões do alto,
reproduzindo situações de viajantes solitários em observação à distância, se aproximavam
tanto do ideal de sublime, quanto da atitude de introspecção, reverência e devoção solicitada
pelo contemplatio16. O tipo de visão que promoviam, repetindo exaustivamente o contraste
14 Entre os atributos do sublime, Burke evoca o apavoramento, a escuridão, a vastidão e a infinitude. Muitos dos aspectos que, de uma forma ou de outra, serão a base do panorama [...] a escuridão que Robert Barker fez como condição de acesso à rotunda, reforçada pela plataforma sombreada contrastando com a claridade zenital caindo sobre a lona de uma fonte de luz discreta. 15 O vedutismo (de veduta, ‘vista’ em italiano), gênero pictórico do Settecento, sobretudo de Veneza, consistia em vistas panorâmicas geralmente urbanas em perspectiva, quase cartográficas, que descreviam lugares de forma minuciosa. Concebidas como lembranças, quase como postais, para viajantes estrangeiros, as vedute foram muito usuais e encontraram maior ressonância nas paisagens de Canaletto, Giovanni Antonio Canal (1697-1768). 16 Termo usado no medievo, como último estágio da Leitura Divina (Lectio Divina), prática católica que parte da leitura do texto sagrado (Lectio), passando pela reflexão silenciosa sobre o mistério da vida (Meditatio), pela oração (Oratio) como resposta ao que Deus falou, num diálogo íntimo com este, até chegar à contemplação
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15 www.compos.org.br
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próximo e limitado do espectador contra o caráter longínquo e amplo da paisagem, “ilustra
perfeitamente os sentimentos do sublime como formulado, por exemplo, pelo poeta, lorde
Byron17, que uma vez perguntou se as montanhas, montes e nuvens não fariam parte de si
mesmo e de sua alma, assim como ele era parte de todos eles”. (WOLF, 2008, p.50)
Ao criar um espaço oco e se voltar ainda mais para a ideia de um horizonte que se
vislumbra a partir de um interior escuro que se abre para uma exterioridade luminosa,
Majewski reforçou ainda mais a relação entre fruição panorâmica e a ideia do sublime em
Immanuel Kant (1724-1804). A gruta, corpo de Jesus, segundo Móises e sua rocha
pneumática, refúgio misterioso e metafórico usado para Bruegel e ampliado por Majewski,
seria a encarnação do ambiente circular do panorama.
Múltiplas perspectivas A perspectiva artificialis preponderante à época na Itália, em Bruegel perde a
centralidade e se fraciona em, pelo menos, sete ou mais perspectivas difusas sobre a
superfície plana. Segundo Majewski, reconstruir a variedade desses pontos de fuga na tela do
cinema foi seu maior desafio. Para explicar tal engenharia, Majewski coloca o próprio
Bruegel (Hauer) em cena a traçar diagonais e linhas perpendiculares e paralelas num papel. A
superfície dividida em forma de grade por essas variadas linhas perspectivas achata ou realça
áreas, provocando não só ilusões de profundidade ou de proximidades, como também sutis
oposições entre grupos, espaços e posicionamentos.
A geometria euclidiana de formulação matemática foi usada entre os artistas da
Europa do Norte não apenas de forma a criar simetrias precisas, mas muito mais para
fragmentar espaços, nublar ou mesmo esconder ambientes e fatos narrados. Como num
puzzle a oferecer leituras psicológicas, sociais, econômicas e religiosas simultâneas diversas.
Cores e, principalmente, luzes são usadas também para inserir noções de passagem de tempo
e de oposições, bem como transmitir sensações de mundos interiores. A perspectiva
(Contemplatio), técnica que carregava a ideia do desprendimento das palavras e da entrega a uma adoração espiritual de comunhão com Deus, não mais a partir do entendimento racional, mas pelo sentimento da sua própria presença imanente, como um enxergar Deus nas coisas do mundo de forma serena, não necessariamente passiva, mas a partir de uma observação de completa entrega. (AZAMBUJA, 2014) 17 George Gordon Byron (1788-1824), poeta britânico romântico, autor de Don Juan e A Peregrinação de Childe Harold.
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artificialis ganha assim outras variantes, como a ênfase na perspectiva cromática tão afeita
aos recursos da pintura a óleo, utilizada em maior escala nos países nórdicos desde o século
XIV e largamente desenvolvida a partir de Jan van Eyck18 (1395-1441).
Puzzles em movimento
Toda composição arquitetada por Bruegel parte da fragmentação e reconstrução
criativa de um movimento. Os diversos grupos representados estão unidos por meio de
imbricadas superposições espaciais de planos, construídas a partir de ângulos perspectivos
precisos, que dificilmente são percebidos. A engenharia transmite à cena muita simplicidade
e naturalidade, apesar dos grandes esforços empreendidos. Assim, ele nos insere no quadro a
assistir ao desenrolar dos fatos como ele próprio, pintado no canto direito da tela, por detrás
de um instrumento de tortura, como mais um de seus protagonistas imersos à cena.
FIG.19– Detalhe de Cristo carregando a cruz (1564), Pieter Bruegel, Kunsthistorisches Museum Wien. Disponível:
http://www.artchive.com/viewer/z.html. Acesso: 28/03/12.
O quadro pode ser lido também como um filme prestes a ser editado em fabulosas
sequências por nós, seus interlocutores, numa linguagem cheia de ritmos, sons, luzes, cores e
surpresas de combinações quase infinitas. Os encadeamentos entre os diversos grupos soam
livres, mas, se prestarmos atenção, veremos que embora tênue e montada de forma a não nos
deixar perceber sua força, seguem um percurso mapeado da esquerda para a direita,
perfazendo o próprio calvário de Jesus. Um protocolo de ligas meticuloso e invisível entre os
18 Eyck teria desenvolvido uma tinta a óleo melhor, de secagem rápida, aplicada, sobretudo, em madeiras polidas, o que teria proporcionado uma difusão maior da técnica.
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elementos nos é dado, e em cada recorte da cena há um núcleo dramático, edificado a partir
da construção de ângulos muito bem definidos.
O olhar não será estático. Precisará se deslocar de um canto a outro, espreitar buracos
na rocha, passar por sombras, se perder no horizonte, desviar-se de lanças, saltar poças
d’água, percorrer círculos, andar com cães, mirar o chão, correr, trotar, se elevar com
pássaros... A geometria sinuosa aparenta simplicidade, mas se faz por inúmeras
complexidades. A cena repleta de instantâneos simultâneos revela momentos triviais. Toda
eloquência e expressividade da crucificação de Jesus são varridas para longe a fim de jogar
luz sobre o gesto cotidiano, banal, gratuito, recalcados, talvez, num inconsciente óptico sobre
o grande episódio bíblico.
Ao se deparar com o quadro, o espectador é levado a acompanhar um certo balé de
movimentos que perpassa toda a superfície bidimensional da tela, criando diversas ilusões de
profundidade. Todos os caminhos percorridos com o olhar possuem quase uma mesma e
curiosa importância dentro da construção pictórica espacial proposta, como se respeitassem
mesmo uma certa coreografia cenográfica. É essa equivalência de “olhares” perspectivos que
de fato nos carrega para dentro da obra e nos traz a veracidade do fato narrado.
É a razão que vê e não o olho
A perspectiva fabricada por Bruegel e os pintores da Renascença, se tornou, segundo
a historiadora Anne Cauquelin, “a própria escrita de nossa percepção visual”. A partir da
construção de distâncias diferenciadas entre os personagens por meio de perspectivas
traçadas na superfície plana se confere à cena toda uma simultaneidade, que permite que
todos retratados participem de modo mais ou menos instantâneo do fato narrado. Afinal, “o
olho que percebe deve dobrar-se a uma verossimilhança” (CAUQUELIN, 2007, p.80). Pois, é
“a razão que vê, e não o olho.”
A imagem condensada oferecida por Bruegel num quadro com eventos simultâneos
tão diversos poderia ser entendida por Cauquelin, e muitos outros, como a própria “‘lei da
perspectiva’, que tece, entre os elementos armazenados no saber, a teia de uma ‘visão
sintética’. A proporção e a superposição dos planos levam a ‘ver’, ou seja, a compreender
aquilo que a visão sensível particular, muitas vezes dissimula.” (CAUQUELIN, 2007, p.84)
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Toda proposição de Bruegel parte de algo relativamente novo, que estava sendo
gestado, inclusive como terminologia, por ele e seus pares do Norte, desde o século XV: a
paisagem. A espacialização vasta, dilatada, por onde o olhar do espectador deveria se
espalhar, contribuía de forma decisiva para a compreensão e o sentimento do que estava
sendo narrado. Apesar de toda uma retórica pictórica dessa construção já ter sido trilhada
àquela época, sobretudo nos Países Baixos, será a arte da Europa do Norte, no século XVI,
que irá aprofundá-la, tendo Bruegel como um dos seus maiores artífices.
A perspectiva, segundo Cauquelin, seria “uma espécie de máquina de olhar a
paisagem” e teria nascido com o imperativo de ‘mostrar o que se vê’. Enquanto a função da
retórica da paisagem era ordenar os diversos elementos numa superfície plana de maneira a
dar a eles um vínculo capaz de nos convencer de que ali estes podiam interagir de forma
natural como construção mental. Essa natureza entendida e sentida a partir da pintura
encontrou em Bruegel um pródigo criador de sutis elos invisíveis e belos.
Ocultar ao invés de ‘mostrar o que se vê’
Embora amarrado às convenções de sua época e apegado à realidade humana de seu
tempo, Bruegel constrói sua obra muitas vezes ocultando, escondendo e sugerindo mais do
que ‘mostrando’. Ao contradizer muitas vezes o “mostrar o que se vê” da ordem
renascentista, antecipa séculos de proposições da pintura moderna, deslocando importâncias,
desprezando histórias oficiais e, o mais importante, nos obrigando a participar de forma
vigorosa da construção da narrativa que propõe, em coautoria. No quadro em questão, Cristo
não apenas é mais um em meio ao povo, como não se encontra muito bem visível no
emaranhado dos que se dirigem à Gólgota. Embora esteja exatamente no meio da tela, onde
duas diagonais saídas dos vértices do quadro se cortam, está caído de joelhos abaixo de uma
cruz, escondido por outros personagens e desenhado numa proporção menor do que muitos
outros. Ao igualar Jesus aos outros personagens da tela, Bruegel parece querer nos dizer que
só interessa lembrar o calvário de Cristo como o infortúnio de mais um diante do terror que
se abatia sobre os Países Baixos.
Mas é em Paisagem com a queda de Ícaro (1555) que Bruegel vai mais longe. Ali
não se trata apenas de esconder, mas literalmente de não mostrar. Se Jesus é pintado com o
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corpo comprimido e as pernas arqueadas, nessa só há os pés e parte das pernas de Ícaro
visíveis. Afundando ao mar, com algumas penas esvoaçantes à volta, seu nome dá título ao
quadro, não deixando dúvidas de que é o protagonista. Mas, como em Cristo, será difícil
achá-lo. O que torna impensável imaginar a recepção dessa obra à época, tamanha a
originalidade da composição.
FIG.20–Paisagem com Ícaro (c.1555), Pieter Bruegel, 74 x 112 cm. Musée Royaux des Beaux-Arts, Bruxelas.
Disponível: http://www.wga.hu/index1.html. Acesso: 28/01/2015.
Incompleto, Ícaro é apresentado como os galãs e as pin-ups dos filmes
hollywoodianos. Por closes de detalhe, pequenas pistas metonímicas a serem seguidas para
que o espectador possa ir se familiarizando aos poucos e construindo junto a história. Mas
aqui não há suspense, nem glamour. O que interessa a Bruegel nos dois casos é humanizar o
mito grego e o símbolo cristão. Compará-los aos homens. Tirá-los de suas divindades e dizer:
é a condição humana a coisa mais complexa e importante a ser pensada e entendida. A vida
cotidiana do seu tempo e lugar e os elementos naturais que resplandecem em suas paisagens,
como o mar, as luzes e cores estarão sempre em foco.
Daí, termos, como em Cristo, um Ìcaro quase imperceptível frente ao lavrador grande
de costas do primeiro plano, ao pastor com suas ovelhas a olhar para o alto num declive mais
abaixo, e ao pescador de cabeça abaixada numa pedra. Nenhum desses homens, ocupados
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com seus humildes afazeres de subsistência, parecem ter visto o grande, trágico e mitológico
Ícaro cair do céu19. Assim como Jesus passa em direção ao calvário em meio a trabalhadores
em seus ofícios, crianças brincando e toda sorte de trivialidades comuns à vida que também
não para. A nos dizer também que muitas vezes o que é importante, o que vai entrar para a
história e ser lembrado por eternidades, nos passa despercebido de imediato.
Majewski vê nesse feito a maior contribuição filosófica da pintura de Bruegel:
Bruegel sempre afoga o evento principal no meio da multidão, para que você não o veja. Você é falsamente capturado por diferentes pequenos detalhes sem importância. É muito parecido com a vida real. Bruegel está dizendo que, se você estivesse testemunhando a queda de Cristo hoje, você não iria notar porque outros eventos estariam acontecendo [...] Bruegel é, absolutamente, fantástico em fazer você pensar como as coisas são na realidade. Ele sempre mostra seus heróis em queda. Ícaro está caindo. Cristo foi ao chão. Foram derrotados [...] Não têm nada, mas, espiritualmente, seus valores [...] representam transcendência e, em verdade, são considerados vencedores. (MAJEWSKI, depoimento, 2014)
O desejo pela transcendência e o ponto de vista do alto, como do próprio Dédalos
vendo o filho cair, também é uma característica recorrente nas paisagens de Bruegel, que se
repetirá em Cristo. Bruegel, assim como muitos outros pintores e cineastas sensíveis à
questão da natureza, estava profundamente interessado em ter na paisagem um objeto de
contemplação, fonte para o contemplatio.
Em Ícaro e Cristo temos a presença dos protagonistas construídos por uma quase
ausência. Uma “não-presença”, um vazio, ou uma presença-de-ausência, que transforma a
imagem imponderável, imaterial, num duplo dela mesma. Como se essa só pudesse se tornar
visível a partir de uma ilusão, de uma realidade irreal, tamanha a força de suas inúmeras
representações passadas. Uma reprodução construída a partir de sutis sugestões, capaz de
atiçar em seus observadores ávidos por respostas prontas, acostumados a imagens palpáveis,
repletas de materialidades indubitáveis, o frescor da descoberta e da elaboração livre de
personagens já muito enraizados no inconsciente coletivo. Imagens que surgiriam de
complementariedades cheias de significações para seus interlocutores.
19 Ícaro era filho de Dédalo, grande construtor, que ergueu o labirinto que aprisionara o Minotauro, e que por desobedecer a Minos e ajudar Ariana e Teseu a matar o Minotauro, fora ali preso com o filho. Dédalo constrói asas coladas com cera para os dois fugirem de Creta sobre o mar Egeu. Mas adverte para que o voo seja feito numa altura média para não molhar, nem derreter a cera. Fascinado com a liberdade, Ícaro voa alto, as penas se desprendem com a cera derretida pelo sol e ele despenca no mar, morrendo, sob o olhar do pai. (CHEVALIER & GHEERBRANT, 1998.)
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Além do ‘não mostrar’, Bruegel deu ênfase máxima à silhueta de suas formas. Não
detalhando demais elementos e texturas, ele conseguiu promover efeitos que mais uma vez
nos fará lembrar do cinema. Caprichando nos contrastes, forneceu nada além de vestígios a
serem seguidos, que, sem muita definição, geravam ilusões de movimento. Esses
apagamentos, condensações e deslocamentos que promoveu em suas pinturas antecederam
séculos das vanguardas artísticas e aconteceram no momento em que alguns pintores, em
especial do Norte, já vinham experimentando a realização de anamorfoses em suas telas,
como em Os embaixadores (1533), de Hans Holbein (1497-98/1543), onde uma caveira só
podia ser vista ao se entortar o quadro.
Origens e linguagens cruzadas
Como Bruegel, que levou o calvário de Cristo para a sua Flandres do século XVI,
Majewski carregou Jerusalém e os Países Baixos para a Polônia. A maior parte de O moinho
foi filmada na região mais antiga e histórica de seu país, vizinha à Katowice, seu local de
origem. Estão lá, a cadeia de montanhas jurássicas de Kraków-Czestochowa, os castelos do
estado medieval polonês de Tarnów, Debno, Pieskowa Skala, Wísnicz, Tencynek, as minas
de sal de Wieliczka, o Parque Etnográfico Chorzów, na Silésia e, em especial, a Fortaleza de
Olsztyn, a 40 minutos de carro da cidade natal de Majewski. Muito do que aparenta ser na
tela construções virtuais, maquetes, cenários artificiais, como o interior do moinho e a visão
aérea de cima dele de fato não são. Esta materialidade das locações é outro fator que confere
veracidade e força ao filme. Áustria, Nova Zelândia e República Checa também estão em
pequenas cenas, mas além de o principal ter sido filmado numa região bastante conhecida por
Majewski, o que não foi feito em externas foi produzido no estúdio do Katowice International
Trade Fair Centre. Assim, o filme é também um retorno do diretor às suas raízes.
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FIG.21 e 22– Fortaleza de Olsztyn. Disponível:
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/1/13/Castle_in_Olsztyn.JPG. Acesso: 20/12/15. Wieliczka. Disponível:http://cracow.travel/upload/object/2009-07/4236-1246950904-baracz.jpg. Acesso: 20/12/15.
Ao misturar as origem do episódio bíblico e do quadro as do seu país, Majewski
atualizou e ressignificou a narrativa do calvário, complexificando esses imaginários. Sua
Polônia, como o Cristo de Bruegel, se encontra muito escondida e camuflada, mas as
paisagens, que para nós parecem irreais, estão lá e, com certeza, foram lidas pelos poloneses
de outra maneira. Assim como as dimensões públicas, privadas, pessoais e políticas da vida
de Cristo, Bruegel, do diretor e de nossas vidas.
Como numa metalinguagem, Majewski discute também, paralelamente, a
aproximação entre o fazer fílmico e o fazer pictórico. Bruegel – não à toa interpretado por
Hauer, nascido em Breukelen, na Holanda, portanto dos Países Baixos como o pintor,
colocado em cena explicando, a partir da metáfora de uma teia de aranha, como construiria a
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perspectiva em sua obra, se equivale ao próprio diretor expondo seus artifícios para nos
aprisionar. O mesmo cruzamento de linhas arquitetado por Bruegel foi realizado com o
auxílio de computação eletrônica e técnicas de animação em 3D para o plano de filmagem.
FIG.23– Cena de Hauer no papel de Bruegel, desenhando perspectivas, construída por incrustação eletrônica. Disponível:
https://fromthereel.files.wordpress.com/2012/08/theartist.jpg. Acesso: 20/12/15.
FIG.24– Reprodução de imagem capturada da tela do monitor do computador (GIBSON, 2012, p.65).
Dirigindo a fotografia ao lado do polonês Adam Sikora, que o acompanha há muitos
anos em seus filmes, Majewski pode realizar um trabalho meticuloso de “pintar” no
celuloide. Além de ter sido o artesão do grande pano de fundo em 2D da obra de Bruegel,
usado para sobrepor os atores filmados em frente a um fundo azul, Majewski foi responsável
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também por incorporar inúmeros elementos em 3D por cima das imagens. Um céu com
nuvens conseguido numa ilha na Nova Zelândia ajudou no processo de justaposição em
camadas, que permitiu ao cineasta agir como se ele próprio fosse Bruegel. A trama montada
assim como uma tapeçaria de design gráfico, realizada a partir de suportes audiovisuais
digitais de alta tecnologia, conseguiu poderosos efeitos de incrustação eletrônica e de nuances
com a paleta de cores, arquitetando uma nova estética de representação para talvez o fato
mais conhecido do Ocidente.
Apesar de todo rigor e perfeccionismo na mistura do natural com o sintético
conquistado com um aparato ultra-tecnológico, Majewski não credita às novas possibilidades
produtivas contemporâneas o sucesso da perfeição estética de seu filme. Ao contrário, diz
que, se não aliada a um fazer quase artesanal dos primeiros tempos, ela pode não responder
satisfatoriamente aos objetivos pretendidos, como explica a partir dos efeitos de chiaroscuro
que tentou imprimir na tela. Olhar para trás, lembrar, resgatar memórias e estabelecer pontes
com o passado são interesses profundos na obra do diretor.
A tecnologia também traz limitações. Descobrimos que qualquer que fosse o tom de preto que queríamos alcançar no filme usando o Photoshop, ele nunca produzia. [...] Utilizamos um pedaço de vidro de cristal e a fuligem da chama de uma vela [...] e fizemos a transição esfumaçada para a luz. Comparamos no computador e o preto que saiu da fuligem foi duas vezes mais preto do que do Photoshop. (MAJEWSKI, depoimento, 2014)
Perspectiva “fisiológica”
Majewski identifica em Bruegel o desejo de subverter a centralidade da perspectiva
artificialis do Renascimento ao criar sete diferentes perspectivas, que muitas vezes se
contradizem sobre a tela plana. O fato é, verdadeiramente, louvável, já que hoje sabemos que
mesmo numa construção de perspectiva centrada, muitas outras perspectivas, pensadas pelos
pintores, ou não, agem sobre nosso aparelho óptico para capturarmos o todo. Nossa
capacidade de apreensão será sempre dispersa e fracionada, e “a constância perceptiva [...]
uma ilusão” (CRARY, 2013, p.293-294). Afinal, “os movimentos inconscientes do olho não
são apenas auxiliares que tornam a visão mais clara; são condições sine qua non da visão. [...]
A visão estática não existe; não existe visão sem exploração” (KOESTLER apud CRARY,
2013, p.293).
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O que Bruegel fez, basicamente, foi a montagem de diferentes pontos de vista da forma como o olho humano trabalha no espaço. Portanto, é natural quando você olha para a tela. Você nem mesmo sente que ele está combinando diferentes perspectivas. (MAJEWSKI, depoimento, 2014)
Poderíamos, então, analisar o feito de Bruegel a partir de Jonathan Crary, quando este
discorre sobre as pinturas da terceira fase20 de Paul Cézanne (1839-1906), confrontando
problemas impostos às questões da construção bergsoniana da “percepção pura” e da
“presença na percepção”. As linhas de fuga, onde o pintor expressa “todos” simultâneos,
“num livre jogo de forças centrífugas” (CRARY, 2013, p.292), expõem a “dissolução da
unidade, a desestabilização dos objetos”, abre “para o fluxo e a dispersão e, ainda que
parecesse juntar o olhar e o corpo ao mundo, também destruía o próprio imediatismo do
mundo e deslocava o corpo para um fluxo de mudanças, de tempo.” (CRARY, 2013, p.293)
FIG.26 e 27– Mont Sainte-Victoire (c.1895) e (c.1906), Paul Cézanne, oil in canvas, 73 x 92 cm. The Barnes Foundation,
Merion, Pennsylvania, USA. Disponível: http://www.wikiart.org/en/paul-cezanne/mont-sainte-victoire-3?utm_source=returned&utm_medium=referral&utm_campaign=referral. Acesso: 01/02/15.
Comparar a construção da perspectiva fisiológica fracionada elaborada por Bruegel às
condensações formais propostas por Cézanne na transição do Impressionismo para o
Cubismo e o Abstracionismo e às proposições bergsonianas a respeito do mecanismo da
percepção pode ser por demais ousado, mas ter grande validade ao mostrar que de alguma
forma Bruegel e muitos outros de sua época já traziam para suas telas problematizações
acerca de nossa capacidade perceptiva muito antes dessas serem cientificamente conhecidas.
20 Nessa fase, de 1878 a 1887, Cézanne se dedicou a pintar o Moint Sainte-Victoire, que ele avistava de Aix-en-Provence, para onde havia se mudado com a família, em 1880. Mas as imagens de dois dos mais de 80 trabalhos produzidos sobre esse tema, embora busquem o mesmo objetivo, não são da fase analisada por Crary, e sim de sua última fase, quando os numerosos estímulos se ligam num espaço trêmulo e ininterrupto de continuidades, já sem objetos únicos, em síntese.
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Não é de todo inútil lembrar também que, assim como Bruegel, Cézanne vai se valer
sobretudo de uma montanha para praticar seus experimentos de síntese perspectiva.
Crary leva em consideração descobertas científicas que apontam para “a natureza
fracionada do campo visual, tanto no sentido fisiológico quanto no subjetivo” (CRARY,
2013, p.286). O pesquisador óptico e oftalmologista Emile Javal (1839-1907), em 1878,
formalizou a ideia de que a visão acontece em saltos curtos e rápidos, movimentos por ele
chamados de saccadic. Essa construção, aperfeiçoada pelo filósofo Wilhelm Wundt (1832-
1920), na década de 1880, que diferenciou “campo visual” (blickfeld) de “campo de mira”
(blinckpunkt), segundo Crary, fundamenta muitas “explicações sobre a subjetividade
epistemológica, perceptiva e psicológica” (CRARY, 2013, p.288).
A consciência é interpretada como um campo de visão: os objetos entram e são primeiro percebidos apenas de modo obscuro e indefinido, como objetos visuais, cujas imagens entram no campo do olhar pelas bordas da retina. É necessário certo tempo para que os objetos cheguem ao ponto da visão clara [...] onde é possível prestar atenção e discerni-los, apercebendo-os. (WUNDT apud CRARY, 2013, p.288)
A lógica das diversas perspectivas aéreas induzidas por Bruegel em Cristo repetiria
ou reforçaria somente a própria “varredura feita pelos movimentos ativos, voluntários ou
involuntários, de nossos olhos” (CRARY, 2013, p.293), tal como previsto por Wundt e seus
estudos acerca de um “modelo de consciência e atenção ‘topológico’ ou estendido no espaço”
(CRARY, 2013, p.288).
Cinema hipnótico
O moinho, como muitas obras de Majewski, cria uma atmosfera de hipnose muito
forte. A música tema conduz em grande parte o transe. Única a acompanhar toda história, traz
a sonoridade da época de Bruegel, quando alaúdes, violas e flautas começaram a se
desvincular das vozes, constituindo peças independentes. Composta por Majewski e Józef
Skrzek, dialoga com a virada renascentista musical, quando o interesse pela música profana
cresce. Junto a sequências lentíssimas, se adapta perfeitamente ao visual do filme e segue os
mesmos tons nuançados dos figurinos e cenários, criando poderosos efeitos de sinestesia. O
uso da voz over, identificada como a voz de Deus, também contribui para a sensação de
“absorção, dissociação e sugestionabilidade” (CRARY, 2013, p.92). A alucinação hipnótica,
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que O moinho promove, nos carrega como uma força centrífuga para dentro da imagem e
segue a técnica de “mudança de foco e estreitamento da atenção, acompanhado da inibição
das respostas motoras” (CRARY, 2013, p.91), tão presente no pré e primeiro cinema, quando
rituais de magia e ilusionismo, espetáculos fantasmagóricos, sessões de mesmerismo e toda
sorte de eventos que buscavam reações paranormais, incluindo a imersão nos gigantescos
panorâmicos, fascinavam com seus misteriosos poderes.
Captura e transformação do espectador num coautor
Majewski dirigiu ainda o filme-ópera The Roe’s room (1997), Angelus (2000),
Wojaczek (1999), Gospel according to Harry (1994), Flight of the Spruce Goose (1986),
Prisioneiro do Rio (1988), realizado no Brasil, Valley of the gods (2018), óperas, peças
teatrais, performances e happenings, além de compor obras musicais clássicas e de escrever
ficções, ensaios e roteiros. Autor de 12 poemas visuais em DiVinities e de 33 instalações de
vídeo em Blood of a poet para o evento Lech Majewski: Conjuring the Moving Image, no
MOMA de Nova York, em 2006, presentes depois no filme Glass Lips (2007), Majewski se
vale de inúmeras referências poéticas, pictóricas, filosóficas e musicais em sua densa e
multifacetada carreira artística, iniciada no fim dos anos 70. Mas seu trânsito por diversas
atividades é sempre acompanhado pela predileção pelos clássicos. A partir da fruição pela
imagem em movimento da linguagem de Bruegel, atualizou o dispositivo do cinema e provou
que o desejo de transformar o espectador num coautor é muito antigo e segue técnicas de
captura e imersão perseguidas desde o Renascimento, que podem e devem ser aprofundadas
pelas novas tecnologias, a fim de criar potentes pontes entre passado e presente.
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FIG.28 e 29– DiVinites (2006), de Lech Majewski. MOMA, NY. Disponível: http://www.lechmajewski.com/assets/images/di_vinities.gif. Acesso: 20/12/15
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FIG.30, 31 e 32– Videoinstalações e fotos de Blood of a poet, a partir do filme homônimo de Jean Coctaeu de 1932, e
tableaux vivant com Deposition (c.1435), de Rogier van der Weyden, no Museu do Prado. Disponível: http://www.lechmajewski.com/html/blood_of_a_poet.html. Acesso: 20/12/15.
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WOLF, Norbert. Romantismo. Köln: Taschen, 2006.