linha poltica do pt em debate
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Trabalho preparado para apresentao no VII Congresso Latino-americano de Cincia
Poltica, organizado pela Associao Latino-americana de Cincia Poltica (ALACIP).
A linha poltica do PT em debate: conflitos intrapartidrios
Autor: Pedro Gustavo de Sousa Silva
Contato: [email protected]
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
rea temtica: Instituies polticas e conflito interinstitucional
25 a 27 de setembro de 2013
Bogot
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RESUMO
A insero do PT na esfera governativa do Poder Executivo nacional no se
deu de forma tranquila. Muitos dilemas e perspectivas vieram tona com o papel de
ser governo no mbito federal. A partir de 2003, no bastava apenas o exerccio das crticas e reivindicaes. A insero do PT na esfera governamental e as aes
decorrentes da nova funo implicaram numa srie de atritos internos. Petistas
ocupantes de cargos governamentais se viram como alvo de crticas at mesmo de
colegas do mesmo partido. Os petistas no governo protagonizaram diversas disputas com os petistas situados no Congresso Nacional e nas instncias partidrias, embora
haja excees de cada lado. Os conflitos entre os setores majoritrio e minoritrio do PT
ganharam forma de maneira mais aguda nos embates relacionados manuteno da
poltica macroeconmica; na votao da PEC do sistema financeiro; votao da
Reforma da Previdncia; expulso dos parlamentares petistas em 2003; origem do P-
SOL a partir dos conflitos internos no PT; escndalo do mensalo; Processo de Eleies Diretas (PED) do PT em 2005, etc. Meu propsito no presente trabalho
abordar os conflitos entre petistas e governo, analisando os distintos usos da linha poltica partidria pelos grupos internos da sigla. O recurso a linha poltica do PT apareceu como instrumento central dos grupos minoritrios nos conflitos internos.
Como o grupo dominante nas instncias de direo do Partido era o mesmo que dirigia
o governo, as tendncias de esquerda denunciavam tanto a cpula partidria quanto o
governo Lula.
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INTRODUO
Qualquer observador atento aos meandros da poltica brasileira sabe da
importncia do Partido dos Trabalhadores (PT) no cenrio nacional. Mesmo quando
distante dos cargos pblicos, sobretudo na primeira metade dos anos 1980, a trajetria
do Partido influenciou o rumo da sociedade. Durante a dcada de 1980 o Partido esteve
ligado s grandes greves, organizao da Central nica dos Trabalhadores (CUT) e ao
nascimento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST).
Dos anos 1980 at os presentes dias o PT se consolidou como grande
partido poltico na arena institucional. O crescimento dessa sigla na esfera eleitoral
ocorreu gradativamente, apesar dos reveses no mbito presidencial. O Partido
colecionava derrotas no pleito presidencial ao mesmo tempo em que multiplicava o
nmero de prefeitos, parlamentares e governadores. O Partido esperou 23 anos para
dirigir o Poder Executivo nacional. Foram trs derrotas consecutivas nas eleies
presidenciais ps-regime militar (1989, 1994 e 1998). Em todas elas o candidato da
sigla era Lula.
Essa situao se estendeu at o pleito presidencial de 2002, quando o
Partido optou por uma guinada na poltica de alianas. Basta lembrar-se do empresrio
Jos Alencar ( poca, estava filiado no PL) no papel de avalista do candidato Lula. A parceria PT-PL expressou a consolidao do trade-off eleitoral petista. O Lula l, de
1989, se transformou em Lula light na disputa de 2002. As razes dessa aliana com o
PL de Jos Alencar remontam ao processo de transformaes internas no PT que tem
incio em 1989. A eleio de 2002 marca o fim desse ciclo no Partido.
A insero do PT na esfera governativa do Poder Executivo nacional no se
deu de forma tranquila. Muitos dilemas e perspectivas vieram tona com o papel de
ser governo no mbito federal. Depois de 23 anos atuando no Congresso Nacional sob uma lgica de oposio, novas exigncias foram colocadas para os petistas. A partir de
2003, no bastava apenas o exerccio das crticas e reivindicaes. O PT assumiu, pela
primeira vez, a responsabilidade de gerir o governo federal e com isso novos parmetros
de ao se colocaram no rol das estratgias polticas da sigla.
A insero do PT na esfera governamental e as aes decorrentes da nova
funo implicaram numa srie de atritos internos. Petistas ocupantes de cargos
governamentais se viram como alvo de crticas at mesmo de colegas do mesmo
partido. Os petistas no governo protagonizaram diversas disputas com os petistas situados no Congresso Nacional e nas instncias partidrias, embora haja excees de
cada lado.
Durante o longo perodo de oposio, tudo conflua para atuao
disciplinada e conjunta do PT nas denncias contra os governos federais em vigor. No
havia diferenas agudas nos parmetros de ao dos petistas. Todos estes se uniam sob a
bandeira de denncia dos governos neoliberais. A situao muda completamente quando o Partido passa a ocupar a funo governativa, pois com isso tem que responder
a inmeras demandas custa muitas vezes da renncia dos princpios programticos. A
chegada da sigla ao governo impe novos parmetros de ao.
A correlao de foras internas do PT no ficou imune esfera
governamental. Muitos conflitos internos vieram tona em funo das aes
governamentais. Embora a gesto fosse composta por uma ampla coalizo de siglas de
diversas matizes ideolgicas, o PT ocupava papel central na conduo do Poder
Executivo. Os petistas tinham 60% dos cargos ministeriais e o posto de Presidente da
Repblica. Era notrio o papel dirigente da sigla no governo Lula.
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Dos vinte e um postos ministeriais concentrados na cota do PT, apenas trs
foram ocupados pelas tendncias de esquerda1. Isso contribuiu para consolidar uma
relao de externalidade entre as tendncias de esquerda e os dirigentes governamentais.
O ncleo duro do governo era composto basicamente por integrantes da Articulao tendncia majoritria no PT. Coube Articulao a conduo do governo e do Partido.
Aos setores da esquerda petista restou o papel de denunciar as aes dos dirigentes
partidrios e governamentais em desacordo com a linha poltica do Partido. Os conflitos entre os setores majoritrio e minoritrio do PT ganharam
forma de maneira mais aguda nos embates relacionados manuteno da poltica
macroeconmica; na votao da PEC do sistema financeiro; votao da Reforma da
Previdncia; expulso dos parlamentares petistas em dezembro de 2003; origem do P-
SOL a partir dos conflitos internos no PT; escndalo do mensalo em 2005; Processo de Eleies Diretas (PED) do PT em 2005 durante a crise do mensalo, etc.
Meu propsito no presente trabalho abordar os conflitos entre petistas e
governo (2003-2006), analisando os distintos usos da linha poltica partidria pelos grupos internos da sigla. O recurso a linha poltica do PT apareceu como instrumento central dos grupos minoritrios nos conflitos internos. Como o grupo dominante nas
instncias de direo do Partido era o mesmo que dirigia o governo, as tendncias de
esquerda denunciavam tanto a cpula partidria quanto o governo Lula (2003-2006).
Inicialmente, o texto dispe acerca do contexto eleitoral na disputa
presidencial de 2002. Em seguida, aborda a formao do governo Lula (2003-2006),
destacando os aspectos que contriburam para o entendimento dos conflitos entre
petistas e governo. Por fim, versa sobre os conflitos e os distintos usos da linha poltica entre esses agentes.
PARCERIA LULA-JOS ALENCAR NAS ELEIES 2002
O PT, nos seus primeiros documentos de fundao, definia-se como um
Partido sem Patres. Para surpresa de muitos, o patro dessa vez estava do lado do
trabalhador no pleito de 2002. Em aliana com Jos Alencar (PL), pela primeira vez um
partido que se reivindicava dos trabalhadores com um candidato oriundo da classe operria venceu as eleies presidenciais no Brasil.
A parceria PT-PL foi efetivada custa de conflitos internos entre as
tendncias petistas. Setores mais esquerda dentro do PT eram contrrios a tal aliana.
Leal descreve as consequncias da polmica parceria:
Nunca tendo integrado o arco de alianas do PT, o PL era historicamente
encarado como adversrio, por serem ambos os partidos filiados a distintas
tradies ideolgicas e por terem notrias divergncias de concepes e
prticas. A efetivao da aliana [PT e PL] chocou parte da opinio pblica e
revoltou numerosos setores do prprio partido, gerando efeitos, como a
renncia de candidatos ao governo de estados (por exemplo, Helosa Helena,
em Alagoas); a interveno na chapa proporcional do PT mineiro, obrigado a
dividir espao com candidatos do PL; e constrangimentos por todo o pas
(LEAL, 2005: 68).
1 As expresses esquerda do PT e tendncias de esquerda so bastante usadas pela imprensa e inclusive nas disputas internas do Partido. Recorro a essas denominaes sem fazer aluso a um possvel
setor de direita dentro desta sigla. As referidas expresses servem mais para colocar tona a diviso entre
radicais e moderados no interior do PT. A tendncia Articulao um exemplo dos moderados.
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Essa aliana com Jos Alencar resultado de um processo de
transformaes internas que tem incio em 1989. No intervalo entre a eleio
presidencial de 1989 e a de 2002 o PT viveu um processo de diluio das referncias
classistas. A parceria com o PL representou o fim de um ciclo para o PT, pois esta sigla
promoveu uma guinada na poltica de alianas e, ao mesmo tempo, saiu da condio de
oposio no mbito federal.
A brusca mudana na poltica de alianas ocorreu num cenrio de muitas
especulaes quanto capacidade governativa do PT. Afinal, s vsperas da eleio de
2002, empresrios, banqueiros e analistas de risco internacionais se diziam preocupados
com a governabilidade e poltica macroeconmica do futuro governo brasileiro, especialmente se o eleito fosse Lula.
Durante entrevista Folha Online, o ento presidente da FEBRABAN2
Gabriel Jorge Ferreira declarou que sua preocupao com relao s eleies era a maneira de reduzir os juros e a poltica de alianas para assegurar a governabilidade (SOUZA, 2002). Na revista Veja, de 22 de maio de 2002, a reportagem de capa
abordava o temor dos empresrios com a possibilidade de Lula ser eleito. Segundo a
matria, o mercado se abalava a cada subida do candidato nas pesquisas: Entre o empresariado, a maioria se diz preocupada em como o PT vai tratar da dvida externa,
da taxa de juros e do equilbrio das contas pblicas (SECCO & LIMA, 2002). Essa ideia era generalizada em meio ao empresariado e investidores. Em
matria da Folha Online, datada de 08 de junho de 2002, o investidor George Soros
afirmou que o Brasil tinha duas escolhas: Jos Serra ou o caos. Na avaliao de Soros,
se Lula vencesse as eleies, os mercados mundiais, achando que o petista daria um
calote, se preveniriam contra essa possibilidade. Ao assumir, Lula enfrentaria uma
situao to adversa que no restaria outra escolha seno efetivamente dar o calote
(ROSSI, 2002).
Cerca de um ms depois dessa entrevista, Lula lanou a Carta ao Povo
Brasileiro. A partir da divulgao desse documento, o ento candidato passou a ser mais
bem visto pelo empresariado. Ainda assim, alguns investidores expressavam receio
diante do eventual governo petista:
A diretora de risco soberano para Amrica Latina da S&P Jane Eddy disse
que apesar de o candidato Presidncia do PT, Luiz Incio Lula da Silva, ter
assumido publicamente o compromisso de manuteno da meta de supervit
primrio e da inflao, ainda h uma desconfiana de como o partido agir
quando estiver no poder. A analista de risco soberano para Brasil da agncia
de classificao de risco Standard & Poor's Helena Hessel disse hoje que a
principal preocupao da agncia com uma possvel vitria do PT nas
eleies presidenciais com a governabilidade. (...) Em teleconferncia realizada hoje, Hessel destacou o fato de Lula no ter experincia administrativa como motivo de preocupao. Hessel ressaltou ainda a
possibilidade do PT no obter apoio suficiente no Congresso para realizar
todas as reformas necessrias (COTTA, 2002).
Nesse cenrio de 2002, muitos temiam que Lula tentasse, no novo governo, um retorno ao modelo de interveno do Estado na economia nos moldes da
estratgia de substituio de importaes (BACHA; BONELLI, 2005: 167). Esse
modelo de substituio de importaes emerge no pas no governo Kubitschek (1956-
60) e perdura at os anos 1980. Segundo Franco (1999), os pilares desse modelo
2 FEBRABAN significa Federao Brasileira de Associaes de Bancos.
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consistem no binmio inflao & proteo. A inflao e os dficits fiscais apareciam como mecanismos para viabilizar, atravs da poupana forada, a sustentao de
elevados nveis de investimento pblico. Quanto proteo, os governos buscavam
elevar a segurana e rentabilidade dos investimentos privados mediante proteo,
controles de preos, de salrios e de crditos.
Esse modelo de industrializao marcado pelo binmio inflao & proteo cai em desuso nos anos 1990. O Plano Real abriu caminho no governo FHC (1995-2002) para um desvio radical do modelo estatizante de substituio de importaes que prevaleceu no regime militar (BACHA; BONELLI, 2005: 167). Esse Plano, que a princpio parecia uma poltica restrita ao controle inflacionrio, evoluiu
durante dois mandatos presidenciais (1995-2002) para um dos mais ambiciosos projetos
de reestruturao do capitalismo brasileiro desde a dcada de 1930 (VIANNA apud
ABU-EL-HAJ, 2007).
O binmio inflao & proteo deu lugar a combinao abertura e estabilizao durante a dcada de 1990. O governo FHC (1995-2002) buscou implementar essa combinao mediante insero do pas no processo de globalizao;
deslocamento do impulso do crescimento para o setor privado; esforo de atrao do
capital estrangeiro e privatizaes. Para Franco (1999), o eixo central desse projeto
residia na acelerao da taxa de crescimento da produtividade atravs do aprofundamento do processo de abertura. Por abertura entende-se a des-represso dos coeficientes de importao (FRANCO, ibid: 44).
Essa estratgia de integrao competitiva no mercado mundial
implementada pelos interdependentistas no governo FHC se contrapunha ao projeto dos petistas. Os investidores tinham receio da possibilidade de Lula estancar esse
processo de abertura do pas. A dimenso da desconfiana dos setores especulativos
com o ento candidato Lula pode ser percebida nas reaes do mercado ao desempenho do petista nas pesquisas eleitorais. O fato de Lula liderar as pesquisas das
eleies 2002 aparecia como um dos fatores que motivaram as fugas de capitais, as crises cambiais, as perdas de reservas, a elevaes da taxa de juros e a manuteno de
uma taxa de crescimento medocre (SICS et al, 2007: 519)3. A fim de sinalizar para empresrios e investidores que a candidatura Lula
no representava ameaa para os credores internos e externos, a cpula petista resolveu buscar um avalista para cumprir a funo de vice. O papel de Jos Alencar era justamente acalmar o empresariado desconfiado das pretenses de Lula.
Empresrio milionrio do setor txtil, dono de 11 fbricas, ex-presidente da
Federao das Indstrias de Minas Gerais e ex-vice-presidente da
Confederao Nacional da Indstria, Alencar, 71, j tem papel definido na campanha: o de "avalista" de Lula junto a investidores e empresrios.
Confirmar o senador na vaga de vice tornou-se fundamental para o sucesso
da candidatura de Lula, de acordo com anlise da cpula petista. (...) Na
campanha, ele diz que procurar mostrar aos empresrios as intenes de Lula, dando como garantia seu exemplo pessoal: Como empresrio, tenho de pensar a longo prazo, e a garantia de estabilidade e mudana responsvel
o Lula (ZANINI, 2002).
A dupla Lula-Jos Alencar obtm 46,44% da votao vlida no primeiro
turno e 61,27% no segundo turno. Pela terceira vez consecutiva a eleio ficou
3 Os outros fatores apontados por Sics et al que contriburam para formao desse quadro de pequeno
crescimento foram as crises do Mxico, da Rssia, dos pases asiticos, da Argentina, os atentados de 11 de setembro de 2001, as fraudes Enron/Anthur-Andersen (...) (ibid: 519).
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polarizada pelas candidaturas do PT e do PSDB. Em 1994 e 1998, Fernando Henrique
Cardoso (PSDB) e Lula (PT) disputaram no primeiro turno o posto de Presidente da
Repblica. Na eleio de 2002 houve segundo turno entre Jos Serra (PSDB) e Lula
(PT). A candidatura de Lula recebeu o apoio de vasto leque de foras polticas no
segundo turno: PT, PL, PC do B, PMN, PCB, PSB, PPS, PDT, PTB, PV e setores do
PMDB4.
Para Csar Benjamin (2002), transformar Lula num candidato em que todos
os atores relevantes da FIESP ao MST, do Citibank ao PCdoB possam reconhecer-se um pouco consistiu na estratgia do PT, executada com grande coerncia. Essa ampla
aliana eleitoral, contudo, padece de uma contradio intrnseca: quanto mais intensas
so as articulaes de bastidores e mais amplas as alianas, menos autenticidade, clareza
e capacidade de mobilizao tm o candidato (BENJAMIN, ibid).
As causas motivadoras dessa aliana foram bastante debatidas. Para
Coutinho (2002), foi a desfavorvel conjuntura internacional associada com outros
fatores menos essenciais que motivou a poltica de alianas do PT na campanha de
2002. O xito eleitoral da sigla ocorreu num contexto bem adverso tanto no mbito
internacional quanto nacional. No quadro internacional havia um refluxo das foras de
esquerda em todas as vertentes: nos Estados Unidos e na Europa predominavam
governos conservadores, enquanto na Amrica Latina a situao da esquerda tambm
no era favorvel. Somado a isto havia tambm a vulnerabilidade externa diante da qual
obriga o governo Lula a negociar as metas desejadas. O mercado tambm estava desfavorvel s manobras do novo governo (COUTINHO, ibid).
No mbito nacional, as dificuldades residiam nas privatizaes e na reforma
do Estado, ambas realizadas pelo governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).
Estas medidas do governo Cardoso desativaram muitos instrumentos necessrios para
implementar o novo modelo econmico prometido por Lula na campanha. Esse novo modelo econmico proposto priorizava a produo em detrimento da especulao financeira. Por isso Coutinho considerou natural e correto o fato do PT ter buscado uma interlocuo com a burguesia industrial, formando aliana com o empresrio Jos
Alencar.
Machado (2004) vai buscar no prprio PT as causas motivadoras da aliana
com o PL de Jos Alencar. O resultado eleitoral de 1989 desencadeia o processo
responsvel pela aliana do PT com o PL no ano de 2002. Os fatores a seguir
impulsionaram a progressiva integrao do PT ordem: (1) crise do campo da esquerda
provocada pelo desmoronamento da Unio Sovitica; (2) ofensiva neoliberal no mundo
e inclusive no Brasil; (3) crescimento da insero institucional do PT desde 1988 e (4) o
debilitamento do movimento social constituidor do Partido (MACHADO, ibid).
O autor menciona tambm a avaliao feita por Lula e o crculo dirigente
partidrio mais prximo dele (Campo Majoritrio5) acerca da derrota eleitoral de 1989.
Tal grupo atribuiu a um suposto excesso de radicalismo a causa da derrota. Assim,
bastava adquirir um tom moderado que os setores empresariais, proprietrios de terra e
camadas mais abastadas das classes mdias deixariam a rejeio de lado. O resultado
concreto disso foi a ampliao das alianas e propostas em cada disputa eleitoral.
Prevalecia a crena entre alguns dirigentes petistas do aspecto fundamental de uma
aliana desse porte (PT-PL) para ganhar as eleies e at mesmo governar. Diz
Machado (2004): Ganhar a confiana do grande capital foi o objetivo central da
4 O PSTU declarou voto crtico em Lula e o PCO se posicionou pelo voto nulo. 5 O Campo Majoritrio foi formado em 1995 pelas tendncias moderadas do PT a fim de obter o comando
da sigla. Ele resultado de um processo de alianas e acordos entre distintas tendncias, dentre as quais
se destaca a Articulao.
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imposio da aliana com o PL, e j era uma preocupao antiga de Lula e de outros
dirigentes. Apesar da guinada na poltica de alianas e das concesses programticas
em favor de grandes grupos econmicos, a candidatura de Lula ainda assim conseguiu
agregar boa parte das esquerdas. Pelo fato de Lula assumir vnculos com as elites nas
eleies 2002 e ainda assim agregar vrios setores das esquerdas, Benjamin (2002)
considerou o petista um enigma sem condies de ser decifrado no momento daquelas
eleies presidenciais. O referido autor indagou se Lula seria Fausto, Maquiavel ou
Riobaldo?
Se ganhar a eleio [de 2002] e honrar as garantias que vem dando aos
poderosos, Lula ser Fausto, o personagem de Goethe que vendeu a alma ao
diabo e obteve com isso o que sempre almejara. Se ganhar e conseguir virar o
jogo, mostrando-se fiel aos setores populares que sempre o apoiaram, ter
realizado uma impressionante operao poltica, digna de Maquiavel, que
poder mudar a histria do Brasil. Se perder a eleio em um segundo turno com Jos Serra, por exemplo por ter sido abandonado pelas elites que vem tentando cativar com tanta paz e amor, lembrar Riobaldo Tatarana. Ao
entrar para o cangao, o antolgico narrador de Grande serto: veredas
tambm vendeu a alma ao diabo. Comportou-se sempre de acordo com o pacto. No fim da vida, porm, perplexo e solitrio, descobriu que o diabo no
a havia comprado. Fausto, Maquiavel ou Riobaldo. O futuro dir qual foi o
papel de Lula na histria contempornea do Brasil (BENJAMIN, 2002).
O enigma Lula j nos apresenta elementos mais concretos para sua elucidao. Lula no s ganhou a eleio de 2002 como tambm garantiu a reeleio
quatro anos mais tarde. Ao invs de qualquer medida no sentido de descuidar do
controle da inflao ou de promover calote aos credores internos e externos, o governo,
sob a direo do PT, tratou com rigor o problema da dvida pblica supervit primrio elevado, combinao de juros altos com dlar desvalorizado, altos tributos, disciplina
fiscal e metas de inflao. Outrora o candidato mais temido pelos mercados, Lula disputou a reeleio em 2006 defendendo os resultados do governo mais ortodoxo na economia desde a redemocratizao do pas (PATU, 2006: A12).
A poltica macroeconmica implementada pelo governo no contou com o
apoio unnime dos petistas. Durante toda a gesto (2003-2006), setores do PT
pressionaram de diversas formas a reorientao desse modelo macroeconmico.
Conflitos de outra ordem tambm fizeram parte da relao entre PT e governo Lula. A
escolha de alguns ministros gerou os primeiros atritos internos no PT na condio de
partido de governo. Sem a aprovao das tendncias da esquerda petista, empresrios e executivos vinculados aos segmentos combatidos pelo Partido foram convidados para
integrar a gesto. Partidos polticos sem afinidade ideolgica com o PT tambm
compuseram o primeiro escalo do governo.
O prximo passo para compreenso dos conflitos consiste na observao da
composio do governo Lula (2003-2006) aps o pleito de 2002. Pretendo observar os
agentes partidrios e setores sociais que foram inseridos no rol de ministrios.
FORMAO DO GOVERNO LULA
Verificar a partilha dos cargos entre os prprios petistas e demais aliados
constitui uma tarefa importante para decifrar os dissensos entre o par PT-governo. A
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coalizo de apoio ao governo foi composta a partir das siglas e setores da sociedade que
apoiaram Lula no pleito de 2002. O primeiro escalo do Poder Executivo inclua desde
o PC do B at o PL e PTB.
A ampla e heterognea coalizo governamental no tinha muitos
representantes da esquerda petista nos cargos ministeriais. A representatividade desse
setor na Cmara Federal saltou de 12 deputados para 28 nas eleies 2002 (ZORZAN,
2002). Esse aumento no nmero de parlamentares da esquerda petista no Congresso
Nacional no se refletiu em termos de ministrios.
A pequena participao desse setor no Poder Executivo desponta como
aspecto de suma relevncia para o entendimento dos conflitos entre PT e governo. A
composio do Poder Executivo privilegiou os integrantes do Campo Majoritrio,
gerando descontentamento nos setores da esquerda petista.
Alguns ministrios foram preenchidos por pessoas sem filiao partidria.
Por exemplo: os empresrios Roberto Rodrigues e Luiz Fernando Furlan6 ocuparam,
respectivamente, o Ministrio da Agricultura e o Ministrio do Desenvolvimento. Ricci
(2005) chama a ateno para o fato de que os empresrios convocados para compor o
governo no tinham relao com os segmentos empresariais mais progressistas ou
mesmo vnculos com as plataformas das lideranas dos pequenos e microempresrios,
segmento que Lula buscou ampliar desde as eleies de 1994. Organizaes mais
progressistas como o Grupo de Institutos, Fundaes e Empresas (GIFE), o Instituto
Ethos e a oposio empresarial direo da FIESP foram preteridos do Poder
Executivo.
A composio heterognea dos ministrios, do ponto de vista de origem de
classe e de partido poltico, reflete o arco de alianas feito pelo PT no segundo turno das
eleies 2002. Oito partidos que apoiaram Lula no pleito eleitoral assumiram cargos no
primeiro escalo do governo PT, PL, PDT, PSB, PPS, PC do B, PV e PTB. O PMN e o PCB, partidos componentes da coligao vencedora desde o primeiro turno, no
ocuparam ministrios; mesmo assim permaneceram na base aliada. No Congresso
Nacional, Lula contava ainda com os votos de setores do PMDB e da maioria da
bancada do PP7.
O rol de ministrios ficou distribudo de acordo com a seguinte tabela:
6 poca, Furlan presidia o Conselho de Administrao da Sadia e era vice-presidente da FIESP.
Rodrigues era vice-presidente do Conselho de Empresrios da Amrica Latina e defensor do agronegcio. 7 O PP (Partido Progressista), ex-PPB e descendente direto da Arena (Aliana Renovadora Nacional),
sigla que deu sustentao ao regime militar (1964-1985), anunciou a adeso formal base de apoio do
presidente Lula em maio de 2003. Para aderir ao governo, os congressistas do PP mantiveram vrias
indicaes feitas para cargos federais de segundo e terceiro escales durante os anos da gesto Fernando
Henrique Cardoso. Maiores informaes sobre a adeso do PP ao governo Lula podem ser vistas na Folha
Online do dia 16 de maio de 2003.
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Tabela 1 - Nomeao ministerial por partido
Partido Quantidade de
Ministrios
PT 21
Sem filiao partidria 7
PL 1
PSB 1
PDT 1
PC do B 1
PPS 1
PTB 1
PV 1
TOTAL 35 Fonte: Folha Online (Arquivos Folha) e (Especial Governo Lula). Disponveis em:
.
Acesso em: 01 jun. 2006 (Arquivos Folha);
. Acesso em: 01 jun. 2006 (Especial Governo Lula, 2002b).
Nota-se a quantidade significativa de ministrios concentrados pelo PT,
ocasionando uma diviso desproporcional dos cargos de primeiro escalo entre os
aliados. Coube ao PT um total de vinte e um postos ministeriais num universo de trinta
e cinco, ficando ento com 60% desse total. Essa situao guarda semelhana com
apenas dois momentos na histria do Brasil republicano: governo Dutra (1946-51) e o
governo Sarney (1985-90). No primeiro caso, o PSD detinha cerca de 50% dos postos
ministeriais; no incio do governo Sarney, o PMDB teve mais de 70% dos postos.
A primeira formao do ministrio do governo Lula no seguiu a risca o
critrio da diviso dos cargos conforme a quantidade de cadeiras parlamentares das
siglas aliadas. Com exceo do PT, as demais siglas receberam cada uma apenas um
ministrio. O PTB, que possua 41 deputados federais, e o PV, com seis, ficaram com a
mesma cota ministerial. A quantidade de ministros sem filiao partidria era de 20%.
A soma desse nmero de indicaes no partidrias com o total de ministros do PT
equivalia a 80% dos cargos ministeriais. Isso significa que 4/5 do primeiro escalo do
Poder Executivo estava sob controle do PT e de tcnicos.
A tabela a seguir mostra a proporo de cadeiras parlamentares de cada
partido na Cmara Federal e o nmero de ministrios de cada sigla.
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Tabela 2 - Bancadas partidrias e peso ministerial
PARTIDO BANCADA8 %
N DE
MINISTRIOS %
PT 91 17,74% 21 60%
PFL 76 14,81% - -
PMDB 70 13,65% - -
PSDB 63 12,28% - -
PPB 43 8,38% - -
PTB 41 7,99% 1 2,8%
PL 34 6,63% 1 2,8%
PSB 28 5,46% 1 2,8%
PDT 18 3,51% 1 2,8%
PPS 21 4,09% 1 2,8%
PC do B 12 2,34% 1 2,8%
PRONA 6 1,17% - -
PV 6 1,17% 1 2,8%
PMN 2 0,39% - -
PSC 1 0,2% - -
PSL 1 0,2% - -
Sem filiao
partidria - - 7 20%
TOTAL 513 100% 35 100%
Essa concentrao de cargos ministeriais na cota do PT caracteriza uma
coalizo concentrada. Isto significa que um nico partido detm o controle de grande parte dos ministrios. Conforme Abranches (1988), a coalizo concentrada representa uma faca de dois gumes. Por um lado, confere ao Presidente da Repblica maior autonomia em relao aos partidos menores da coalizo governativa. Por outro lado,
obriga o governante a manter slidos laos com o partido majoritrio da coalizo.
No caso do partido majoritrio ser heterogneo do ponto de vista interno e
regional, desponta-se alguns riscos para o chefe do Poder Executivo. Nas palavras do
prprio Abranches: (...) a autoridade presidencial confrontada pelas lideranas regionais e de faces intrapartidrias. Mas o risco maior, neste caso, adviria de um
rompimento do partido com o presidente, deixando-o apenas com o bloco de partidos
minoritrios da aliana (ABRANCHES, 1988: 26). O PT, sigla majoritria da coalizo governativa, no se enquadra nesse perfil
de partido poltico controlado por caciques regionais. As divises intrapartidrias no PT so reflexos das disputas entre tendncias internas. As lideranas do Partido
8 Considerei como bancada apenas o nmero de parlamentares da Cmara Federal, seguindo o exemplo da literatura que trata desse assunto (caso de Meneguello [1998]).
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vinculadas s tendncias internas majoritrias agiram de forma alinhada com o governo,
evitando o confronto com o Presidente da Repblica. O mesmo no ocorreu com as
lideranas das tendncias minoritrias. Parlamentares da esquerda petista confrontaram
o governo em diversas situaes. Dentre as insatisfaes com o Poder Executivo,
constava a reclamao por cargos no primeiro escalo do governo.
Embora o PT dirigisse a maioria dos ministrios, havia setores da sigla
descontentes com a diviso desses postos governamentais. O nmero de 60% dos cargos
ministeriais nas mos dos petistas revelou dois aspectos da correlao de foras internas
no Partido: (1) hegemonia das alas moderadas e (2) dos militantes do Estado de So
Paulo. Os paulistas obtiveram sete cargos com status de ministrio, sendo que alguns
desses postos so dos mais cobiados pelos partidos. O Ministrio da Fazenda (no
mbito da economia), a Casa Civil (no mbito da articulao poltica) e o Ministrio
Extraordinrio de Segurana Alimentar e Combate Fome (no mbito das polticas
sociais) foram alguns dos postos estratgicos ocupados por representantes do PT
paulista.
Os gachos veem em seguida com cinco cargos ministeriais. Os Estados de
Minas Gerais e Bahia ficaram com dois cargos cada um. Os outros Estados que
entraram na cota petista tiveram apenas um ministrio. A regio Norte foi representada
somente pelo Estado do Acre, ocupando o Ministrio do Meio Ambiente. A regio
Nordeste teve dois cargos com o PT baiano e um com os petistas de Pernambuco. Em
termos regionais, os Estados do Sul e Sudeste concentraram 76% dos vinte e um cargos
ministeriais encabeados pelo PT.
Quanto ao eixo intrapartidrio, prevaleceu a fora poltica da tendncia
Articulao e dos militantes independentes. Os petistas das alas moderadas se ocuparam
dos ministrios mais importantes. Couberam s tendncias de esquerda somente a
Secretaria Nacional de Pesca, o Ministrio do Desenvolvimento Agrrio e o Ministrio
das Cidades. A tendncia Articulao de Esquerda se encarregou da Secretaria Nacional
de Pesca, enquanto a Democracia Socialista (DS) ocupou o Ministrio do
Desenvolvimento Agrrio e o Ministrio das Cidades.
O grupo majoritrio no PT tambm se tornou o setor majoritrio dentro do
governo Lula. O ncleo duro do governo federal era o mesmo que conduzia o Diretrio Nacional do PT. Os integrantes da Articulao formavam o grupo dirigente do
governo e do Partido, tendo em vista que detinham a maior parte dos cargos ministeriais
e dos postos das instncias partidrias. Alm da expressiva quantidade de postos de
comando, a Articulao ocupava cargos de destaque tanto na esfera governamental
quanto na partidria.
Os setores da esquerda petista, por sua vez, no tiveram a mesma vinculao
estreita com o governo Lula. Nota-se uma participao restrita das tendncias de
esquerda na composio do primeiro escalo do governo, apesar das reivindicaes
desse setor por mais espao no Poder Executivo.
A reduzida participao das tendncias de esquerda no primeiro escalo do
governo caracterizou uma ciso entre os setores minoritrios da sigla e a gesto Lula.
Isto provocou reaes contrrias da esquerda petista que perduraram durante todo o
governo. A princpio, as queixas tratavam claramente da ocupao do Poder Executivo.
Depois, ganharam um tom mais ideolgico e programtico.
Os dirigentes petistas optaram pela excluso relativa das tendncias de esquerda na esfera do governo. Essa excluso relativa comeou na formao da equipe de transio e se estendeu na composio dos ministrios. Dos cinquenta e um
membros da equipe de transio, apenas um pertencia s fileiras da esquerda petista.
Arno Augustin, da Democracia Socialista (DS), foi o nico convidado da esquerda
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petista para fazer parte do grupo que conduziu a transio entre o governo tucano e a
gesto Lula. Essa situao perdurou na equipe ministerial.
A pequena representatividade da esquerda petista nos rgos ministeriais
gerou uma relao de distanciamento desse setor partidrio com os rumos da gesto
federal. Isso porque as decises centrais da arena governamental no passavam pelas
mos dos representantes da esquerda petista. De acordo com Ricci (2005: 36), o ncleo duro do governo era composto pelos ministros Jos Dirceu, Antonio Palocci, Luiz Gushiken, Luiz Dulci e o prprio Presidente Lula. Todos esses nomes so oriundos da
tendncia Articulao.
A predominncia das alas moderadas do PT no primeiro escalo do governo
no foi a nica caracterstica marcante desse momento inicial da gesto Lula. Outro
aspecto tambm se sobressaiu: a heterogeneidade de foras polticas, inclusive com
interesses opostos, atuando no Estado. O carter heterogneo da aliana de apoio a Lula
remonta ao perodo eleitoral. Com a vitria no pleito de 2002, a cpula petista d
prosseguimento composio de uma coalizo ampla e heterognea.
A composio do novo governo com um amplo leque de partidos polticos
proporcionou nus e bnus. Por um lado, a larga base de apoio do governo possibilitava
uma maioria de votos no Congresso Nacional capaz de aprovar os projetos do Poder
Executivo. Por outro lado, a heterogeneidade dessa base aliada dificultava para o
prprio governo o andamento de projetos mais controversos.
A diversidade de concepes na base aliada se manifestava no acolhimento
a determinadas polticas governamentais. Nem todos os setores do governo eram
favorveis autonomia do Banco Central, ao projeto de reforma da previdncia,
manuteno da poltica macroeconmica herdada da gesto FHC, etc. Setores do
prprio PT foram veementes crticos dessas referidas polticas governamentais.
Em algumas situaes, os petistas apareceram como os principais
contrapontos da gesto federal. A expulso dos parlamentares petistas, votao da PEC
do sistema financeiro, dissidncias no PT durante as denncias do mensalo e outras
situaes ocorridas durante o quadrinio 2003-2006 expressam o descompasso entre
dirigentes governamentais e petistas vinculados aos setores minoritrios da sigla.
A LINHA POLTICA PARTIDRIA EM DISPUTA
Os conflitos decorrentes das gestes petistas na dcada de 1980 e incio dos
anos 1990 envolviam dilemas relativos ao papel da organizao partidria na conduo
das administraes pblicas. Partido e governo travaram uma ferrenha queda de brao
para saber quem decidia os rumos das polticas governamentais. No meio dessa disputa,
havia tambm os impasses referentes ocupao de cargos nas esferas do Poder
Executivo. As tendncias internas digladiavam-se pelo comando dos postos centrais da
administrao pblica. Afinal, a tendncia com mais representantes nos escales do
governo dispunha de maior poder decisrio nas polticas governamentais.
Com a ascenso do PT ao Poder Executivo nacional, novos dilemas e
perspectivas vieram tona na agenda de debates internos da sigla. Os conflitos relativos
ocupao de cargos permaneceram. Algumas tendncias internas mostraram-se
insatisfeitas com a diviso dos cargos, enquanto outras acumularam fora e poder
decisrio nos postos estatais.
A composio pluriclassista do Poder Executivo no escondia o ncleo duro da gesto. Petistas da tendncia Articulao Jos Dirceu, Antonio Palocci, Luiz
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Gushiken, Luiz Dulci e o prprio Lula concentravam nas mos as principais deliberaes da esfera governamental. Esses petistas, antigos dirigentes do Partido antes
de iniciar a gesto Lula, foram personagens centrais na conduo do governo e na
dinmica de conflitos internos no PT. Afinal, as decises tomadas na esfera
governamental no passavam imune esfera partidria. A gesto econmica exemplo
disso. As decises governamentais no mbito macroeconmico implicaram diretamente
nos conflitos PT-governo.
O manuseio dos mecanismos macroeconmicos dividiu opinies dentro do
PT. Diante do contexto socioeconmico adverso em fins de 2002 e das inmeras
especulaes quanto capacidade governativa do Partido, os dirigentes governamentais
puseram em prtica uma poltica de controle inflacionria bastante recessiva. Diversos
setores do PT principalmente as parcelas mais esquerda mobilizaram-se para reverter a poltica econmica em vigor, gerando conflitos entre setores do Partido e o
governo.
Os petistas vinculados s tendncias de esquerda foram veementes crticos e
opositores das decises governamentais de teor econmico. Esses petistas se utilizaram
da linha poltica partidria para defender as posies contrrias ao governo. Segundo Panebianco (2005), a linha poltica desponta como instrumento de manuteno da identidade partidria. A legitimidade da organizao partidria est estreitamente
vinculada com a coerncia das aes em conformidade com a linha poltica, conforme lembra Panebianco: se a linha poltica perde credibilidade, a prpria identidade do partido fica prejudicada, pelo menos at que se adote uma linha poltica de substituio (PANEBIANCO, 2005: 81).
A esquerda petista aproveitou as denncias de corrupo (mensalo, dlar na cueca, caixa dois, etc.) contra o grupo hegemnico do Partido para fazer uso da linha poltica nas batalhas internas. As bandeiras histricas do PT eram veementemente lembradas pelas tendncias de esquerda nas disputas pela hegemonia
interna da sigla. O grupo dominante nas instncias de direo do Partido era o mesmo
que dirigia o governo.
Vale destacar que o descontentamento com a macroeconomia no se
restringia aos crculos minoritrios da sigla. O grupo dirigente do PT tambm emitia
sinais de desaprovao ao governo. Ao contrrio das tendncias de esquerda, a
coalizo dominante no provocava grande estardalhao nas pontuais investidas contra o Poder Executivo. Ficava a cabo dos setores mais esquerda as manifestaes pblicas
de contrariedade ao governo. A situao desses setores lembra o que Sartori chamou de
minorias intensas. Cito-o: Seja como for, o fato inquestionvel que as minorias intensas tm um peso extra nos processos de tomada de deciso; sua intensidade
compensa sua inferioridade numrica (1994: 302). As minorias intensas do PT buscavam compensar a inferioridade
numrica no Congresso Nacional e nas instncias partidrias a partir das mobilizaes
de rua. revelia dos dirigentes partidrios e governamentais, os parlamentares da
esquerda petista compareciam s marchas do funcionalismo pblico contra os projetos
do Poder Executivo. A militncia desses parlamentares junto aos movimentos sociais
reforava a presso contra o governo.
primeira vista, os conflitos entre petistas e governo parecem se resumir
velha disputa das tendncias internas em torno da linha poltica disputa pela formulao programtica, tipo de alianas eleitorais e coalizes governativas, definio
das prioridades governamentais, atuao parlamentar, etc. Contudo, nesse conflito de
aparncia apenas ideolgica desponta algo mais. Refiro-me mobilizao das
tendncias de esquerda por mais espao nas instncias governamentais e partidrias.
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A pequena participao desse setor nos cargos governamentais de primeiro
escalo tornou-se um aspecto crucial no desenrolar dos conflitos entre esquerda petista e
governo federal. Antes de 2003, as disputas internas envolviam a direo do Partido e
questes relativas s administraes petistas nas esferas municipais e estaduais. Tais
conflitos no ganharam a mesma dimenso e visibilidade dos atritos decorrentes da
gesto Lula. Com a ascenso dos petistas ao governo federal, veio tona a partilha das
responsabilidades dos grupos internos com a sustentao da gesto Lula.
Tendo em vista a pequena quantidade de cargos ministeriais obtidos, os
grupos minoritrios da sigla no estabeleceram uma relao de apoio ao governo na
mesma proporo do setor majoritrio. Havia uma estreita vinculao entre dirigentes
governamentais e dirigentes partidrios em termos de apoio recproco e ocupao de
espaos decisrios. O mesmo no ocorreu com o setor minoritrio da sigla. As
tendncias de esquerda tiveram uma relao mais distante e conflituosa com a esfera
decisria do Poder Executivo.
Isto no significa que a sustentao do governo Lula se expressava apenas
no nmero de ministrios de cada tendncia. Meu objetivo ressaltar o seguinte: a
restrita participao da esquerda petista nos rumos das polticas governamentais
contribuiu largamente para que esse setor adotasse uma postura mais incisiva contra os
projetos destoantes da linha poltica partidria. Em diversas situaes atritos relacionados manuteno da poltica macroeconmica, votao da PEC do sistema
financeiro, votao da Reforma da Previdncia, expulso dos parlamentares petistas,
escndalo do mensalo, Processo de Eleies Diretas (PED) do PT em 2005, etc. , as tendncias de esquerda decidiram pelo embate pblico com os dirigentes partidrios e
governamentais.
Vale ressaltar que os dois grupos (1) tendncias de esquerda e (2) setor majoritrio se expressavam a partir de lugares distintos. De um lado, os petistas mais esquerda ocupavam basicamente funes no Partido e no Congresso Nacional.
Esses petistas no desempenharam papel de destaque nas atividades da esfera
governamental. Do outro lado, os integrantes do setor majoritrio da sigla formavam o
ncleo duro do governo. Essa diviso dos petistas em lugares e funes distintas evidencia outro aspecto: o conflito entre tendncias de esquerda e governo era tambm
expresso das disputas entre petistas em cargos governamentais versus petistas no
Partido e no Congresso. Cada uma dessas esferas condiciona atribuies especficas.
A lgica de atuao daqueles que esto nas atividades parlamentares e nas
instncias partidrias difere substancialmente da lgica de ao presente nas atividades
de governo. As responsabilidades governamentais recaem basicamente sobre aqueles
locados no Poder Executivo. Segundo Couto (1995), o arranjo poltico brasileiro
contribui para no-responsabilizao dos parlamentares na definio dos rumos do governo. Nas palavras do autor:
O Presidencialismo (particularmente no Brasil), contribui para a no-
responsabilizao dos parlamentares na conduo do governo. o Poder
Executivo o grande responsvel pelo sucesso ou pelo fracasso da gesto
governamental aos olhos do eleitorado, muito embora vrias de suas
iniciativas possam ser vetadas pelo Poder Legislativo (COUTO, 1995: 242).
O mesmo se pode afirmar dos dirigentes partidrios sem cargos
governamentais. Eles orientam a atuao poltica com vista a organizar as demandas das
bases eleitorais e lev-las para o Estado. O pblico que os parlamentares e os dirigentes
partidrios atendem bem mais restrito do que o pblico atendido pelos governantes.
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Os petistas encarregados de cargos governamentais precisavam dialogar inclusive com
setores combatidos pelo Partido durante o perodo de oposio.
Os petistas da coalizo dominante tiveram postura bem diferenciada em comparao com as tendncias de esquerda. Os integrantes do Campo Majoritrio, na
condio de dirigentes partidrios e governamentais, faziam a defesa mais veemente do
governo. Aqueles que estavam no Congresso Nacional e na direo partidria
sinalizavam aos petistas no governo a necessidade de reorientar o modelo econmico. Ainda assim, as crticas eram bem pontuais e discretas quando se leva em conta o teor
das aes das minorias intensas. As tendncias de esquerda, submetidas basicamente aos parmetros de ao
da esfera partidria e parlamentar, pautaram a relao com os dirigentes governamentais
por meio de uma lgica de conflitos. As minorias intensas cobravam bastante o governo para agir em conformidade com a linha poltica do Partido.
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