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Carlos Jaca – Linhas Gerais sobre a Universidade Conimbricence – Parte 2 1
Linhas Gerais sobre a História da Universidade Conimbricense.
Das suas origens à Reforma Universitária Pombalina de 1772.
2ª Parte
Da valorização da Universidade pela Casa Real de Avis até à acção
pedagógica de D. Manuel I.
Com a morte de D. Fernando, sem deixar filho varão que pudesse
continuar a dinastia afonsina, abria-se um grave problema dinástico que era
também, e por isso mesmo, uma complicada questão política, que envolvia a
própria continuidade da independência de Portugal.
A crise de 1383-85, o Mestre de Aviz e a Universidade.
Apenas em traços muito resumidos, se trazem a “lume” alguns episódios
respeitantes à crise despoletada pelo falecimento de D. Fernando, porquanto,
julgo que, só assim se compreenderão algumas decisões tomadas neste período
em relação à Universidade.
Ao falecer, em 22 de Outubro de 1383, o Rei deixava somente uma filha, D.
Beatriz, casada com o Rei de Castela. Conforme escritura antenupcial, feita em
Salvaterra de Magos, a 2 de Abril daquele ano, D. Fernando instituía D. Beatriz
herdeira do trono se ele não viesse a ter, ainda, um filho varão, ficando, neste
caso, Regente do Reino, D. Leonor Teles, desde que sua filha não tivesse filho
varão, ou tendo-o, não tivesse atingido 14 anos de idade.
À morte de D. Fernando passa a regência para D. Leonor que foi muito mal
recebida pelo povo, devido às relações escandalosas que esta, ainda em vida do
marido, mantinha com o galego João Fernandes Andeiro, Conde de Ourém.
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À medida que aumentava o ódio contra D. Leonor e o Conde, crescia em
todas as classes populares a simpatia por D. João, Mestre da Ordem de Aviz,
filho natural de D. Pedro I e D. Teresa Lourenço.
Em 6 de Dezembro de 1383, o Mestre, de acordo com o plano gizado,
entra no Paço e assassina o Conde Andeiro, cuja influência junto da Rainha-
Regente muito havia a recear. Entretanto, precipitados os acontecimentos, a 16
de Dezembro, o Mestre de Aviz foi aclamado
“Regedor e Defensor dos Reinos de Portugal e
do Algarve” numa espécie de “comício”
realizado no átrio da Igreja de São Domingos,
onde segundo Fernão Lopes «o comum povo
livre e não sujeito a alguns que o contrário
disto sentissem, lhe pediram por mercê, que
se chamasse Regedor e Defensor dos reinos».
Temendo as manifestações do povo,
cada vez mais hostis, D. Leonor apressou-se a
sair de Lisboa e, dirigindo-se a Santarém, daí
pressionou o genro para que fizesse valer os
seus pretensos direitos ao trono de Portugal.
Assim foi. Castela entra em Portugal e cerca Lisboa. O cerco prolongou-se,
entre Maio e Setembro de 1384, com vários episódios, resistindo a população
com raro heroísmo e, quando já estava ameaçada pela fome, surgiu nos arraiais
castelhanos uma epidemia que causou fortes estragos, obrigando os castelhanos
a levantar o cerco, mas... as situações de conflito prosseguiram em todo o País,
entre duas facções: os que eram fiéis ao Mestre (a “arraia miúda”, burguesia,
mesteirais e jovens membros da pequena nobreza, “filhos segundos”) e os
partidários de Castela, (a grande nobreza, identificada com os interesses da
classe senhorial).
Como consequência do voto popular de 16 de Dezembro de 1383, D. João,
a conselho de Nuno Álvares Pereira, convocou «todos os fidalgos e gentes da
cidade juntos na Igreja de São Domingos» e aí, da reunião realizada a 2 de
Outubro de 1384, foi tomada a decisão de nomear o Mestre “Regedor e Defensor
dos Reinos de Portugal e dos Algarves”, marcando o dia 6 do mesmo mês para a
ratificação do acto.
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Cronologicamente, era aqui o ponto onde pretendia chegar pois, como é
sabido, a Revolução continuou, terminando em Aljubarrota, com o triunfo
português, garantindo, desse modo, a consolidação da independência nacional.
Parece que não seria de todo estranho a ausência de informações relativas
ao ensino em época tão atribulada ou, mesmo, nos anos mais próximos que se
lhe seguiram. Mas, curiosamente, e talvez não, durante o brevíssimo espaço
decorrente entre a reunião de São Domingos, em 2 de Outubro, e a do Paço, no
dia 6, o Mestre de Avis despachou cinco diplomas referentes à Universidade e,
todos, com a data de 3 do mesmo mês.
A este propósito, considera o Professor Marcelo Caetano que para se obter
a referida, e desejada, ratificação, era necessário «acalmar desconfianças e fazer
concessão de novas graças. E, porventura em consequência da discussão havida
na reunião preparatória do dia 2, nos dias seguintes os letrados da chancelaria
trabalharam na redacção das “Cartas” pelas quais o Mestre procurava obter ou
assegurar a adesão das classes de que necessitava para fazer vingar a sua
causa».
Entre as várias classes, aquela cuja simpatia D. João mais ansiava
conquistar era, naturalmente, a dos juristas, professores da Universidade de
Lisboa. Deste modo se explica a concessão de uma série de privilégios e
recompensas, solicitados ou concedidos espontaneamente.
De facto, é significativo que as cinco “Cartas” de privilégio dadas à
Universidade, tenham a data do dia seguinte à reunião, isto é, 3 de Outubro,
revelando, claramente, o interesse que o Mestre tinha em trazer para o seu lado,
definitiva e rapidamente, os homens de Leis, julgando-os, e bem, a pedra angular
da reunião marcada para o dia 6. D. João tinha plena consciência que a
Universidade era o “centro intelectual da Revolução”.
Assim, por este facto, num deles que se pode chamar de primeiro, outorga
e confirma na qualidade de Regedor e Defensor dos Reinos, todos os foros, usos,
costumes, privilégios e liberdades, concedidos ao Estudo Geral pelos reis que
antecederam a sua regência. O segundo diploma determinava que o Estudo Geral
permanecesse em Lisboa, onde se encontrava desde 1377, e que «...não se
mude dela para a dita cidade de Coimbra, nem para outro nenhum lugar dos ditos
Reinos, deste dia para todo o sempre» [...] «queremos e outorgamos» [...] «que
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esteja perpetuamente o dito Estudo em a cidade de Lisboa». Este documento
parece ir ao encontro dos desejos da Universidade, já que as constantes
deslocações a que os monarcas sujeitavam professores e alunos não agradava
nem a uns nem a outros. O terceiro concedia e confirmava à Universidade
estatuto, determinando que ninguém estava autorizado a exercer o ensino sem ter
sido previamente examinado, o que veio dar grande força à Universidade, dado
que a partir daí os professores estavam em condições de impedir o exercício da
docência por indivíduos sem preparação para tal. O quarto ordenava que
determinadas Igrejas de Lisboa, que tinham sido obrigadas a entregar parte das
suas rendas para as despesas da Universidade, inclusivamente para pagamento
dos salários dos professores, e disso se sentiam isentas por favor de D.
Fernando, voltassem a contribuir com os rendimentos estipulados anteriormente a
esse favor. Por último, o quinto diploma revogava a determinação de D.
Fernando, de que só poderiam «Conselhar e dar conselho ou quaisquer outros
feitos» os doutores, licenciados e bacharéis em Direito Canónico e Civil, que para
isso tivessem a dita “Carta”. O Mestre determinava que possam «Conselhar e dar
conselho» os doutores, licenciados e bacharéis em Direito Canónico e Civil, não
obstante não possuírem “Carta”.
Sem dúvida que a ascensão do Mestre ao trono estava, essencialmente,
dependente dos juristas, porquanto, seriam eles a argumentar e demonstrar, em
Cortes, que D. João era entre todos os pretendentes o único que tinha
legitimidade.
Efectivamente, o domínio dos juristas era notório, tanto mais que D. João
se arriscou a desagradar às Igrejas do Bispado de Lisboa ao determinar que
entregassem à Universidade as rendas estipuladas para as suas despesas,
«numa altura em que o seu interesse pessoal seria o de captar a simpatia de
todas as classes», se bem que uma significativa parte da alta hierarquia religiosa
se apresentava como “legitimista”, e portanto pró-castelhana, como os Bispos de
Coimbra e da Guarda, o mesmo não acontecendo com o Arcebispo de Braga, D.
Lourenço Vicente que, sendo partidário da causa nacional, teve uma atitude
patriótica ao longo de toda a crise e muito contribuiu para o triunfo final.
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Sublinhe-se que, pelo menos, os diplomas referidos traziam a assinatura
de João das Regras, na qualidade de chanceler do Mestre de Aviz, que para tal
cargo o escolhera.
O “grão-doutor”, tal como outras figuras prestigiadas do Direito português,
era formado pela Universidade de Bolonha. Sabe-se que João das Regras teve
interferência directa na vida da Universidade, ainda que não se conheça ao certo
qual o cargo desempenhado. É bem provável que aí tivesse sido professor, reitor
ou talvez “Protector”, vaga designação que mais tarde se concretizará na pessoa
do Infante D. Henrique. Num documento, datado de Outubro de 1400, relativo à
Universidade de Lisboa, é referido «um alvará do doutor João das Regras que há
encarrego do dito Estudo», só que não se sabe que espécie de “encarrego” teria
sido esse e qual o título apropriado de quem o exercia.
Figura primacial das Cortes de Coimbra (1385), o sábio jurisconsulto soube
impugnar, com rara mestria, omitindo o nome do seu candidato, os possíveis
direitos daqueles que se apresentavam como pretendentes ao trono de Portugal:
D. Beatriz, D. João de Castela e os Infantes D. João e D. Diniz, filhos de D. Pedro
e D. Inês de Castro.
Demonstrando, através de um inteligente processo dialéctico, que o trono
estava indiscutivelmente vago e que, portanto, competia às Cortes escolherem
livremente um novo rei e «per hunida comcordamça de todollos gramdes e
comum poboo disserom que o [Mestre de Aviz] promovessem a alta dignidade e
estado de rei».
As instalações do Estudo Geral em Lisboa. Acção do Infante D.
Henrique.
A instalação do Estudo Geral foi sempre, desde início, complicada,
agravando-se, especialmente, quando das sucessivas mudanças, apresentando
dificuldades e, até, gerando situações de conflito.
Ao transferir o Estudo para Lisboa, D. Fernando procurou que a sua
instalação se fizesse precisamente no local onde começara a funcionar pela
primeira vez, porquanto, nas vésperas da mudança, a Instituição rogara ao rei que
para morada dos escolares mandasse «dar scollas ao dito estudo na moeda velha
hu ante soiya (costumava) de estar», pedido a que o monarca anuiu por Carta de
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3 de Junho de 1377 e ali se concentrariam todas as aulas, tanto ordinárias, como
extraordinárias.
Não se sabe ao certo se o Estudo terá ocupado as casas da “Moeda
Velha”, doadas por D. Fernando, no sítio da “Pedreira”, mas se as ocupou pouco
tempo se conservou nelas, visto que em Carta de 2 de Maio de 1389, dirigida ao
almoxarife de Lisboa, D. João I informa-o de que o Estudo Geral «não tem casa
em que leiam os ledores dele». E, assim, determina «que logo vista esta carta,
sem outra delonga (demora) entregueis ao dito Estudo, ou a seu certo procurador,
as ditas casas da dita
“Moeda Velha” que
vós, os reitores e
lentes do dito Estudo,
disserem que lhes são
pertences para lerem
nelas, e vós não lhes
leveis nenhum aluguer
delas em nenhuma
maneira» [...].
Porém, esta nova situação terá sido tão precária que, apenas passados
quatro anos, o rei, por Carta de 25 de Fevereiro de 1393, em reconhecimento dos
serviços prestados pela Ordem de Santiago e pelo seu Mestre Mem Rodrigues de
Vasconcelos, doava-lhes o edifício, em prejuízo da Universidade: «temos por
bem, e de nossa livre vontade, e certa ciência, e poder absoluto, lhe damos e
doamos, e lhe fazemos pura doação, a ele, dito Mestre, para ele e para dita sua
Ordem, entre os vivos valedora, deste dia para todo o sempre, de guisa (maneira)
que não possa ser revogada, das nossas casas que chamam da Moeda Velha,
que são na nossa mui nobre leal cidade de Lisboa, junto com a Porta da Cruz, em
que soe de estar as escolas...e que ele e a dita Ordem façam delas o que lhes
prouver...».
Tendo chegado esta real decisão ao conhecimento da Universidade, e no
sentido de garantir os seus direitos, o Estudo apressou-se a tomar posse das
referidas casas, atitude que o Mestre de Santiago não permitiu. Alarmada com tal
situação, o Estudo recorreu para D. João I, alegando a doação que lhe fizera D.
Fernando.
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Apesar da entrega das casas à Ordem de Santiago e ao seu Mestre para
que «delas e nelas façam o que lhes prouver», e «que esta doação seja valedora
para todo o sempre», oito meses depois, por Carta Régia de 31 de Outubro de
1393, D. João I querendo «fazer graça e mercê à dita Universidade do dito
Estudo, visto como lhes as ditas casas da dita Moeda Velha foram dadas primeiro
por o dito rei, nosso irmão, (D. Fernando) temos por bem, e mandamos, que eles
hajam e logrem e possuam as ditas casas pela guisa [modo] que até aqui fizeram,
não embargando que das ditas casas hajamos feito mercê e doação ao dito
Mestre de Santiago».
Contudo, ainda não foi desta que o edifício da “Moeda Velha” foi ocupado
definitivamente, pois o Estudo continuou sem «casas próprias em que lessem e
fizessem seus actos escolásticos de todas as ciências, antes andava sempre por
casas alheias e de aluguer como cousa desabrida e desalojada».
Sem dúvida que, para a generalidade dos portugueses, e até
ultrapassando fronteiras, o nome do Infante D. Henrique está exclusivamente
ligado à nossa epopeia marítima. De
facto, foi tão grande a sua acção neste
sector que, julgo, serem mesmo muito
poucos aqueles que o associam a
outros aspectos da vida nacional, como
foi o caso da sua ligação à
Universidade portuguesa, na qualidade
de seu “Protector”, (cargo a que me
referirei oportunamente).
Precisamente por conhecer as
dificuldades por que passava o nosso
ensino superior, o Infante D. Henrique,
considerando as vantagens que
resultariam para a Universidade de vir a instalar-se em edifício próprio, adquiriu,
na freguesia de São José, em Lisboa, por «quatrocentas coroas de ouro das
velhas de bom ouro e justo peso da moeda cunho d’el rei de França» umas casas
das quais, logo no próprio dia, lhe fez doação.
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Segundo se julga, pela documentação conhecida, é esta a primeira vez que
o Infante D. Henrique surge ligado à Universidade, já na qualidade de “Protector”.
Na escritura da aquisição do edifício ficava determinado como deveriam ser
aproveitados os compartimentos para as aulas, e quais as disciplinas que viriam a
ser ali ministradas:
«Eu comprei [as casas] para nelas se haver de ler de todas as ciências
aprovadas pela Santa Madre Igreja, a saber, as sete artes liberais, Gramática,
Lógica, Retórica, Aritmética,
Música, Geometria, Astrologia; e
estas todas ordenam que se leiam
na casa pequena que está a par
da grande térrea cujas portas
saem à clasta [para o claustro], e
aí se tem pintadas as sete artes
liberais afora a Gramática que é
de grande arruído (o ensino desta
matéria era feita em voz alta e em
coro, o que incomodaria as aulas
próximas), a qual mando que se
leia na casa de fora que é das
pertenças das ditas casas; e a
Lógica se leia na Loja, que se
corre também de fora para o quintal; e a Medicina se leia também na outra loja
parede em menos com esta, que se corre para dentro, e aí seja pintado Galiano.
Nos sobrados destas, no primeiro se leia a santa Teologia, e aí esteja pintada a
Santa Trindade; e no segundo se leia de Decretais, e aí esteja pintado um Papa;
e no de sobre as Artes se leia de Filosofia Natural e Moral, e aí esteja pintado
Aristóteles, e na sala parede menos com esta, que está sobre o alpendre da
clasta, se leiam as Leis, e aí esteja pintado um Imperador; e na sala grande da
metade esteja uma cadeira e bancos para resguardo [respeito] de algum lente se
crescer [vier a mais] para nela se fazerem os actos solenes».
A transcrição demonstra, plenamente, que o Infante D. Henrique pretendia
instalar o Estudo Geral em edifício próprio e suficientemente amplo, compatível
com o seu estatuto de instituição de ensino superior, e com todas as disciplinas,
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de modo que pelo seu currículo se colocasse ao nível das Universidades
completas. Sublinhe-se, que em relação às Artes Liberais o nosso Estudo ainda
não ministrava a Retórica, a Aritmética, a Geometria e a Astrologia. D. Henrique
pretendeu dar boas condições materiais ao Estudo Geral, mas exigindo, em troca,
que nele se ensinassem «todas as disciplinas aprovadas pela Santa Madre
Igreja», tomando por “ciências”, naturalmente, os ramos do saber.
O facto de o Infante desejar que a Universidade funcionasse com todas as
disciplinas, e relevando o estudo da Aritmética, a Geometria e a Astrologia
(Astronomia) pode, e é admissível, levar a crer que “O Navegador”, já com o
pensamento voltado para o mar, reconhecesse a conveniência de se começar a
ensinar as referidas disciplinas.
Nos inícios do séc. XVI, D. Manuel I, que muito se interessou pela
Universidade, e foi seu “Protector”, entendeu proceder a nova mudança de local
e, assim, fez por «mercê e doação à dita Universidade de outras casas em lugar
que parece mais conveniente, edificadas em forma e disposição de escolas
gerais».
Acerca do local onde D. Manuel resolveu erguer o novo edifício, e das
casas aproveitadas para esse fim, há o testemunho de Damião de Góis
informando que o monarca «mudou as escolas gerais de Lisboa, que estavam
acima da Igreja de São Tomé contra o muro velho, e as fez de novo abaixo de
Santa Marinha onde eram os Paços do Infante D. Henrique, seu tio».
O novo edifício, conhecido por “Escolas Gerais”, nome que perdura ainda
na toponímia lisboeta, funcionou até que a Universidade foi transferida para
Coimbra, em 1537.
Os “Estatutos” de 1431.
No mesmo ano em que a Universidade de Lisboa teve casa própria,
estabeleceu também para si novos “Estatutos”, jurados na Sé de Lisboa, e em
que talvez haja influência do Infante D. Henrique, visto terem sido promulgados
precisamente na ocasião em que nos aparece o “Protector” da Universidade
empenhado em beneficiá-la, doando-lhe novo edifício.
Alguns autores designam este Regimento por “Estatutos” de 1431”, mas o
seu conteúdo abarca apenas aspectos particulares e não gerais, do
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funcionamento do Estudo e, assim nem todos os historiadores da Universidade
portuguesa o consideram Estatuto.
O “Estatuto” de 1431, não tem qualquer
relação com as sugestões do Infante D. Pedro
expressas na “Carta de Bruges”, em 1426,
conforme verificaremos em devido tempo. Não se
refere ao currículo dos cursos, aos programas, não
alterando a estrutura do Estudo Geral. O
Regimento limitou-se a tratar de estabelecer, ou
fixar, as condições em que deveriam ser atribuídos
os graus de bacharel, de licenciado e de doutor,
«não só no aspecto escolar da sua preparação
como também no das cerimónias que deveriam ser
respeitadas na atribuição desses graus». Trata-se,
apenas, de uma fixação de normas de natureza burocrática, possivelmente
acrescentada de outras novas.
Os “Estatutos” que a Universidade formulou para seu governo, em 16 de
Julho de 1431, incluem, abreviadamente, as seguintes cláusulas:
O ano lectivo constava de oito meses; os doutores e mestres usariam nas
aulas e actos académicos o hábito doutoral; os leitores, licenciados e bacharéis
vestiriam trajo honesto, pelo menos talar (até aos calcanhares), ao passo que o
dos escolares bastaria chegar «usque ad mediam tibiam» (até ao meio da perna);
para evitar as diversões da mocidade estudantil, aos escolares não lhes era
permitido, de modo a não perderem os privilégios académicos, ter em casa
cavalos, jumentos, cães, aves para caçar, nem «continuadamente» mulheres
suspeitas; para um estudante alcançar o grau de bacharel era obrigado a
frequentar, após concluído o estudo preparatório da Gramática e da Lógica,
durante três anos, de oito meses lectivos, a Faculdade em que se pretendia
graduar, defendendo conclusões publicamente (exame geral e final); o acto para
licenciado decorria na Igreja, tirando o ponto de manhã e defendendo-o, de tarde,
perante os Lentes, Reitores, Cancelário e Licenciados que serviam de substitutos;
o grau era conferido pelo Cancelário, seguindo-se uma refeição aos Lentes, à
custa do graduado e propinas em dinheiro; aquele que tomava o grau de
Magistério ou Doutor em Teologia, fazia acto solene de véspera, sobre uma
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questão proposta pelo presidente, sendo argumentado por quatro doutores – era
o acto de “Vesperias” e o examinando era chamado o “Vesperisando” – o grau
dava-se na Igreja no dia seguinte, vindo o doutorando entre charamelas e vários
doutores ouvir a Missa do Espírito Santo; pagas as propinas de barretes e luvas,
o doutorando recebia o grau e pagava um jantar aos Lentes e no dia seguinte, os
escolares faziam uma cavalgada em que acompanhavam o novo doutor.
Os Professores Lopes de Almeida e Mário Brandão consideram que, até
muito tarde, a Universidade nunca terá possuído um corpo definido de estatutos,
orientando-se pelos regulamentos, a pouco e pouco estabelecidos, sendo muito
provável que nunca tivesse chegado a codificar a sua legislação interna e, deste
modo, os estatutos, no sentido genérico atribuído ao termo, sejam aqueles que
nos inícios de “Quinhentos” lhe outorgou D. Manuel I.
O declínio da autonomia universitária.
Recorde-se que, logo no início da 1ª parte deste estudo, a propósito da
autonomia institucional da Universidade, foi referido o seguinte: «Os monarcas
reinantes, à medida que o seu poder político vai aumentando durante os sécs.
XIV e XV, vão chamando a si, a pouco e pouco, a tutela da corporação
Universitária e diminuindo as regalias e liberdades que tinham sido inicialmente
seu apanágio», acrescentado que, sobre este assunto, em relação ao que foi
acontecendo nas Universidades em geral, verificou-se «literalmente sem tirar nem
pôr», na Universidade portuguesa desde os fins do séc. XIV e, sobretudo, no
decorrer do séc. XV.
Como se sabe a Universidade nascera como «uma corporação
independente, governada pelas autoridades designadas pelos escolares, regida
pelos estatutos livremente promulgados pela congregação académica».
Com efeito, o Estudo Geral, pela sua tradição, pelo seu regulamento e pela
influência da organização universitária europeia, era um organismo autónomo, no
qual o poder real não se fazia sentir tão intensamente como noutros
departamentos do serviço público. Porém, a par do que se passava além
fronteiras, a necessidade de reforçar o Estado e as aspirações da Nação, era de
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molde a que o rei não fosse mero espectador, restringindo a sua acção a
ponderar as propostas que a Universidade lhe apresentava.
O rei, a partir de agora, tem sempre a seu lado a alta burguesia, a
aristocracia do dinheiro (que ele, em agradecimento, transforma, não raro, em
novos nobiliarcas de “fresca data”, de brasão e título), e nela se vai apoiar contra
a superioridade do clero e da nobreza (da qual uma boa parte – aquela que
manteve fidelidade ao juramento de vassalagem à rainha Beatriz – tinha passado
para Castela, obediente aos seus compromissos feudais). Conta ainda com uma
nova “aristocracia de toga”, a dos legistas, servindo o rei através da necessária
fundamentação jurídica.
Durante o já longo período da sua história, a Universidade beneficiou
sempre da solícita protecção dos monarcas, bem documentada através de
numerosos diplomas de confirmação de privilégios, já anteriormente obtidos e da
concessão de novas mercês. Porém, se esses privilégios e mercês foram
vantajosos ao progresso da Instituição, esta não deixou de pagar, por isso, uma
“factura” bem elevada - a perda da autonomia.
A lenta, mas imparável evolução histórica que alterou o sistema político
medieval, sacrificando os privilégios das classes e instituições aos interesses de
um poder central forte e absoluto, a pouco e pouco, foi exercendo a sua acção
sobre o Estudo fundado pelo “Rei Poeta” e “Lavrador”, cerceando-lhe
gradualmente as primitivas liberdades, transformando-o numa Instituição
praticamente subordinada ao poder real.
Apesar da grande protecção que D. João I dispensou à Universidade,
certamente em retribuição dos auxílios que lhe prestou na subida ao trono, foi
durante o seu reinado que a Instituição, já centenária, começou a sujeitar-se ao
poder real, diminuindo a sua autonomia.
Em Carta de 26 de Janeiro de 1415, o Rei de “Boa Memória” nomeava
Lourenço Martins para o cargo de provedor e recebedor das rendas universitárias,
sobrepondo-se, assim, às autoridades do “Estudo”, a quem competia nomear os
seus funcionários.
Perante esta insólita infracção da autonomia da Universidade, o corpo
docente sentiu-se agravado e protestou junto do Rei: «dizendo os Reitores e
oficiais que a eles pertencia de porem o dito recebedor porque eles tinham
privilégio de poder criar e fazer oficiais».
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Então, D. João I fixou um prazo à Universidade para provar os direitos que
invocava, mas, como não o quisesse ou pudesse fazer, a nomeação real tornou-
se válida. Dirigindo-se, de novo, ao rei, declarava aceitar a nomeação de
Lourenço Martins, e que, futuramente, o cargo de recebedor ficasse sob
nomeação da Universidade, embora condicionada por confirmação real.
Também sob o governo de D. Afonso V foram nomeados alguns lentes
pelo rei, contra o que reagiram os escolares e a Universidade. Perante os
protestos, o monarca prometeu não voltar a proceder assim. Mais significativo, no
sentido do enfraquecimento da autonomia da Universidade, é o facto de que
pertencendo-lhe, até então, o direito de promulgar os seus estatutos, privilégio de
que usou ainda em 1431, agora, o mesmo rei , em Carta de 12 de Julho de 1476,
censurava a Instituição por via de se meter a interpretar os seus estatutos em vez
de os cumprir como estavam estabelecidos.
Submetida ao poder real, a Universidade foi «minuciosamente
regulamentada em quanto às faltas dos lentes, duração dos cursos, repetições
dos textos, formas das substituições e anos de frequência. Diante desta absorção,
a Universidade perdia o seu carácter autónomo, e de federação de estudos
(universitas studii)».
Os “Protectores”.
A dependência da Universidade acentuava-se à medida que se reforçava a
centralização política e, nesse sentido, D. João tinha necessidade de colocar à
frente do Estudo pessoa da sua inteira confiança.
Para a gradual extinção da autonomia universitária contribuiu,
indubitavelmente, a criação do cargo de “Protector dos Estudos de Portugal”, o
qual teria surgido no reinado de D. João I. Supõe-se que o primeiro a exercê-lo foi
o Dr. João das Regras, baseando-se a hipótese nas palavras já transcritas de que
aquele chanceler teria o «encarrego do dito estudo». É, possivelmente, neste alto
funcionário, «encarregado da Universidade», que se deve buscar a primeira forma
do cargo de “Protector”, cujas funções eram muito latas e bem diversas das do
“Conservador”. Ao passo que este é um simples funcionário, o “Protector” é um
alto personagem da Corte.
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Da acção de João das Regras parece nada saber-se, assim como do
tempo que exerceu o cargo. Porém, o Professor Damião Peres afirma ser
verosímil supor que teria contribuído para o progresso dos estudos jurídicos, pois,
uma carta régia, datada de 25 de Outubro, faz referência a três Lentes de Leis e
três de Cânones que, então, ensinavam na Universidade.
A João das Regras sucedeu no cargo Gil Martins, também doutor em Leis
por Bolonha, Chanceler-Mor do Reino e, tal como o antecessor, teve o
«encarrego do dito estudo».
No terceiro lugar desta sucessão surge, na lista dos detentores do cargo, o
Infante D. Henrique que numa carta, datada de 1436, a seu irmão D. Duarte, se
intitula, precisamente, de “Protector”: «Vosso irmão e servidor, o infante dom
Henrique, Governador da Ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo, Duque de Viseu
e Senhor da Covilhã e Protector dos Estudos de Portugal» […]. Julga-se ser esta
a primeira vez que a denominação de “Protector” aparece num documento
conhecido, embora não signifique ter sido nessa data (1436) que o Infante ocupou
o cargo. Há autores que fazem recuar a data para 1418, mas a afirmação parece
ser pouco consistente.
Efectivamente, não há qualquer documento da nomeação ou eleição do
Infante D. Henrique para “Protector” da Universidade, porém, parece legítimo
fazer recuar a data para 1431, porquanto, é a partir deste ano que nome do
“Navegador” aparece estreitamente ligado à Universidade, através da Carta de
doação, já referida, e de outros importantes diplomas. De facto, pelo tom geral da
Carta verifica-se que esta não se limita a doar «determinada coisa…Muito mais
do que isso: indica quais as disciplinas que deviam ser ministradas na
Universidade e onde, imagens ou símbolos a colocar em cada sala, as obrigações
da Universidade, etc.» Acrescente-se, ainda, se se tratasse de um particular, este
limitar-se-ia a fazer a doação, mas não faria sentido que o mesmo se
intrometesse na vida da Universidade. E mais, saliente-se a importância que o
Infante atribuiu ao documento de doação, o qual termina deste modo: «E em
testemunho disto mandei dar esta minha cara à dita Universidade e mando que
outra se ponha e esculpa em uma grande pedra que está posta na parede das
ditas casas sobre a Porta para sempre».
A acção do Infante D. Henrique no sector do ensino já foi referida no
capítulo anterior, dando conta que a Universidade portuguesa beneficiou com tão
Carlos Jaca – Linhas Gerais sobre a Universidade Conimbricence – Parte 2 15
alta protecção, porém, sendo o “Navegador”, uma pessoa estranha à Instituição, a
sua influência nela não deixou de constituir nova interferência na autonomia do
Estudo.
Por morte de D. Henrique, o cargo foi herdado pelo seu sobrinho, o Infante
D. Fernando, juntamente com o mestrado da Ordem de Cristo e os outros bens e
cargos de seu tio.
O cargo de “Protector” passou ainda no reinado de D. Afonso V a ser
exercido, temporariamente, pelo próprio soberano. O Rei “Africano” tinha tal
apreço pelo Estudo que, ao confiar a Regência a seu filho, D. João,
provavelmente em 1475, quando preparava a partida para Castela onde pretendia
defender os direitos de sua sobrinha, D. Joana, a “Beltraneja”, ao trono
castelhano, lhe escreveu uma carta a fim de lhe recomendar a manutenção dos
privilégios da Universidade, declarando: «bem sabeis o grande cargo que temos
da Universidade e Estudo de Lisboa por ser coisa que tanto a nós e a todo bom
Rei pertence de ter e seus Reinos, onde se acham os sabedores assim para
ensinarem a Santa Fé Católica, como para aconselharem os príncipes sua
consciência e justiça, pelo qual nós determinamos agora de não cometermos o
cargo do dito Estudo a alguma pessoa. E o queremos em nós ter até mandarmos
aos Reitores dele e oficiais que o hajam de fazer, posto que todos os outros
nossos cargos a vós deixamos».
Saliente-se, ainda, que D. Afonso V, ao subir ao trono, concedeu bolsas a
filhos de vários cortesãos e funcionários que pretendiam apoios para «aprender
no estudo», não indicando, porém, se as mercês eram destinadas à Universidade
portuguesa ou às do estrangeiro, contudo, parece ser quase certo que a grande
maioria se aplicava no Reino. Em grande parte a concessão era atribuída a filhos
de nobres, mas havia-os também de legistas e de físicos, (médicos), permitindo,
assim, que os bolseiros seguissem a carreira dos progenitores.
Em 1476, por Carta de 23 de Agosto, D. Afonso V confiou o cargo de
governador e “Protector” da Universidade a seu sobrinho, D. Rodrigo de Noronha,
Bispo de Lamego, que por pouco tempo o exerceu, pois veio a falecer no ano
seguinte, sendo, então provável que o Rei voltasse a desempenhá-lo.
Em 1479, declarava-se um complicado litígio entre a Universidade e os
Cabidos do Reino, por via da união ao Estudo de uma Igreja em cada Diocese,
cuja autorização era proveniente de Roma. A resistência, por parte do clero, era
Carlos Jaca – Linhas Gerais sobre a Universidade Conimbricence – Parte 2 16
encabeçada por D. Jorge da Costa, o famoso Cardeal “Alpedrinha”, um dos mais
consideráveis personagens da política e da Igreja portuguesa nesta época. D.
Afonso V, que era íntimo do purpurado, com a intenção de apagar a ”fogueira”,
sanando o conflito, convidou-o a aceitar o lugar de “Protector” e, nesse sentido,
logo escreveu à Universidade, em 27 de Fevereiro, recomendando-lhe a sua
eleição para o dito cargo «por aquela maneira que o foram os Infantes meus tio e
irmão que Deus haja e eu agora sou».
Efectivamente, a 8 de Março, a Universidade cumpria a recomendação do
Rei, elegendo D. Jorge da Costa, nomeação logo confirmada por Carta Régia de
29 do mesmo mês. Ignora-se, porém, se “Alpedrinha” chegou a desempenhar o
cargo de “Protector”, pois não se conhece qualquer vestígio documental.
Finalmente, quando, em 1495, sobe ao trono D. Manuel I, filho e herdeiro
de D. Fernando, que fora mestre da Ordem de Cristo, a própria Universidade tem
a iniciativa de o nomear seu “Protector”. A partir de então, o protectorado foi
sempre exercido pelos reis.
O cargo de “Protector do Estudo”, foi, como se vem observando, da maior
influência na política de cerceamento da autonomia universitária. Porém, o facto,
em si, não deixou de ter, deve acentuar-se, algumas consequências benéficas,
bastando lembrar, por exemplo, como se verá, que sem a evolução operada
nunca teria sido possível a D. João III levar a cabo a sua obra de progresso do
ensino universitário português, colocando a Universidade de Coimbra ao nível das
mais famosas da Europa.
O Infante D. Pedro e a Universidade.
O Infante D. Pedro, Duque de Coimbra, quarto filho de D. João I e de D.
Filipa de Lencastre, e que foi Regente do Reino durante a menoridade de D.
Afonso V, distinguiu-se, no conjunto dos seus irmãos, pela vasta cultura adquirida
não só pelo estudo a que muito se dedicava, mas também no convívio com
gentes de outras nações por onde se aventurou, partindo um homem medieval e
regressando um homem moderno.
Carlos Jaca – Linhas Gerais sobre a Universidade Conimbricence – Parte 2 17
“O Príncipe das Sete Partidas” (partes) – Este Infante da Casa de Avis, esteve
ausente durante alguns tempos de Portugal, percorrendo a Europa entre 1425 e
1428. Por estas viagens, ficou conhecido pelo “Príncipe das Sete Partidas”.
Como querem uns, como Jaime Cortesão, terá saído do Reino por
desavenças com o Rei, seu pai, despeitado pela preferência que D. João
manifestava por D. Henrique, segundo outros com o objectivo de ganhar
conhecimentos e experiência em relações internacionais. Com efeito, é de crer
que a sua viagem tivesse tido motivos diplomáticos, porquanto, durante o tempo
que se manteve fora do País, foi o “embaixador” de Portugal em terras
estrangeiras, «aí firmando o prestígio desse velho reino que se abria à Europa e
ao mundo», vendo-se «cumulado de honrarias e elevado aos mais destacados
protagonismos».
Esteve na Hungria onde conviveu com o Imperador Segismundo,
combatendo a seu lado, contra os Turcos e os Hussitas, recebendo como
recompensa o ducado de Treviso. Visitou Barcelona, Veneza, Pádua, Ferrara,
Roma, onde foi recebido pelo Papa Martinho V. Entrou em contacto com os meios
flamengos, romanos e venezianos. Junto do Duque de Borgonha esforçou-se pelo
desenvolvimento do comércio luso-flamengo e foi por seu intermédio que se
intensificaram as nossas relações marítimas com Écluse, Bruges e Southampton.
Adquiriu conhecimentos científicos, da ciência do mar e da cartografia, trazendo,
consigo, de Veneza, o “Livro de Marco Polo” e, possivelmente, um mapa-múndi
com o traçado das vias comerciais entre o Oriente e a Cristandade. Já no
regresso viajou pela Península Ibérica, estabelecendo contactos diplomáticos com
os reis de Aragão, Navarra e Castela.
O seu périplo europeu permitiu-lhe o conhecimento exacto de um outro
sistema de comércio (economia de mercado) e a convicção de que a riqueza
imóvel recuara perante a riqueza do comércio de trânsito.
Durante os anos que decorreram entre o seu regresso e o ser chamado à
vida política, dedicou-se a um estudo atento, raramente saindo das suas terras de
Coimbra. O cronista Rui de Pina refere-se à sua cultura: «foi bem latinizado e
assaz místico em ciências e doutrinas de letras e dado muito ao estudo». Foi
impulsionador das traduções para português de várias obras latinas, e ele próprio
verteu para a língua portuguesa a obra “De Beneficies”, com o nome de “Virtuosa
Benfeitoria”, que glosou e ilustrou com exemplos de diversos autores e da sua
Carlos Jaca – Linhas Gerais sobre a Universidade Conimbricence – Parte 2 18
própria experiência, trabalho que dedicou a D. Duarte. Restam, ainda, umas
dezenas de cartas de grande interesse para o conhecimento da época. Neste
aspecto, notável é a “Carta de Bruges”, enviada a Duarte que, como escreveu
Oliveira Martins, constitui um verdadeiro programa de política cultural para o País.
A “Carta de Bruges” – a célebre “Carta” enviada pelo Infante D. Pedro foi escrita
entre Dezembro de 1425 e Abril de 1426, não sendo, porém, dirigida a D. Duarte,
como Rei, conforme se lê nas cópias («carta que o Infante Dom Pedro enviou a
el-rei , de Bruges»), pois a referida data prova que, nessa altura, D. João I ainda
era vivo. Pela leitura verifica-se que foi enviada ao «muy alto e muy honrado
Príncipe, e muito prezado Senhor». Quer dizer que a carta foi endereçada a D.
Duarte, enquanto Príncipe. Segundo A. Moreira de Sá, a indicação de ter sido
dirigida a «el-rei» e de «Bruges» significa apenas que «a cota foi aposta anos
depois de ter sido recebida a
carta, portanto já no reinado de
D. Duarte».
O Infante enviou para D.
Duarte uma extensa carta, «um
verdadeiro memorando»,
passando em análise as
principais questões do País, já,
certamente, à luz de algum
distanciamento da Corte
portuguesa por um lado, e do cabedal de sabedoria e de informação que a sua
presença no estrangeiro lhe proporcionara, respondendo a certo questionário
(“rolação”) que lhe dirigira seu irmão.
D. Duarte, consciente das suas responsabilidades de futuro rei, desejava
conhecer e estudar com antecedência os problemas mais prementes dos
portugueses e, estar, desse modo, apto para os resolver mais tarde com
«equidade e acerto».
A “Carta de Bruges” é um documento notabilíssimo «pela lucidez do
diagnóstico, pela coragem de, a seguir a cada problema, propor uma solução,
quase todas inteligentes, de bom senso e em princípio exequíveis».
Carlos Jaca – Linhas Gerais sobre a Universidade Conimbricence – Parte 2 19
A “Carta”, como já referi, é muito extensa e abarca vários assuntos. Da
comparação entre o que observou e o que sabia passar-se em Portugal deu
notícia o Infante D. Pedro no que respeita ao ensino. Porém, essa referência trata
apenas do baixo nível dos nossos prelados quanto ao conhecimento da língua
latina e da criação de colégios universitários.
Efectivamente, a sua primeira preocupação pedagógica incide sobre a
preparação escolar que deveriam ter os futuros prelados, dando a entender que
da sua competência dependia a qualidade dos súbditos, acentuando que só se
deveriam dar ordens eclesiásticas àqueles que quisessem ser clérigos e, pelo
menos, não as dessem a quem não tivesse conhecimento da língua latina. Foi,
precisamente, durante a sua permanência no estrangeiro que o “Príncipe das
Sete Partidas” se inteirou do baixo nível cultural dos clérigos portugueses:
«segundo vi e ouvi dizer a outros fora, nas terras de Espanha (ou seja na
Península Ibérica) é havido por grande míngua o conhecimento do latim». Com
efeito, no sínodo que o Arcebispo de Toledo reuniu em Aranda, em 1473, foi
reconhecida a necessidade de «não se promover às ordens sacras quem não
soubesse latim e que esta ignorância nos eclesiásticos fosse motivo para não
serem admitidos no ministério paroquial ou nas prebendas».
Ao terminar esta sua primeira apreciação do estado do ensino em Portugal,
D. Pedro, a fim de que os prelados não se pudessem escusar com a falta de
professores que ensinassem latim, propõe que a Universidade seja reformada:
[…] a mim me parece que a Universidade da vossa terra devia ser
emendada, e a maneira vos escreverei, segundo ouvi dizer a outro que nisto
entendia mais que eu.
Primeiramente, que na dita Universidade houvesse dez ou mais Colégios
em os quais fossem mantidos escolares pobres, e outros ricos vivessem dentro
neles as suas próprias despesas, e todos morassem do Colégio a dentro e
fossem regidos por o mestre que de tal Colégio tivesse carrego, a ordenança disto
é tal.
Na cidade de Lisboa e em seu termo há, da Universidade, cinco ou seis
igrejas, e nestas se podiam fazer outros tantos Colégios, e a cada um que tivesse
um vigário que desse os sacramentos, e dessem a este mantimento pertencente
da igreja, e o mais fosse para os escolares que para aquele Colégio fossem
deputados, e estes dormissem num paço que tivesse celas, e comessem
Carlos Jaca – Linhas Gerais sobre a Universidade Conimbricence – Parte 2 20
juntamente num lugar, e fossem cerrados de uma só clausura, e que estes,
senhor, depois que ouvissem dois anos na Universidade, fossem graduados e
lessem por juramento, e havendo eles tal criação com ajudoiro da graça de Deus
seriam bem acostumados eclesiásticos, e ainda os bispos com seus cabidos
poderiam fazer cada uns Colégios para seus naturais, e os monges pretos
[beneditinos, excepto os de Cister] outrossim para si, e os cónegos regrantes
outro, e os monges brancos [de Cister] outro, e ordenassem estes Colégios por
maneira dos de Oxónia [Oxford] e de Paris, e assim cresceriam os letrados e as
ciências, e os senhores achariam de onde tomassem capelães honestos e
entendidos, e quando tais promovessem não seriam desditos [desditosos], e além
disto se seguiria que vós achareis letrados para oficiais da justiça, e quando
alguns vos desprouvessem [faltassem] teríeis de onde tomar outros, e eles
temendo-se do que poderia acontecer serviriam melhor e com mais diligência, e
destes viriam bons beneficiados que seriam bons eleitores, e daí bons prelados,
bispos e outros; para isto havia mister bons ordenadores no começo, e parece-
me, senhor, que se a vossa mercê isto quisesse mandar haveria grande honra a
terra e proveito por azo da sabedoria que deve ser muito prezada, que a muitos
tirou, e tira, de mal fazer, mas deviam ser tais ordenadores que já estiveram nas
ditas Universidades, bons homens e avisados dos costumes, ou mandardes
alguém que vos escrevesse o regimento dos ditos Colégios». […] (Transcrição
parcial).
A reforma preconizada pelo Infante D. Pedro consistia, como refere a
“Carta de Bruges”, no estabelecimento, entre nós, do sistema colegial em vigor
nas Universidades de Oxford e Paris que, certamente, visitou ao percorrer as
«sete partidas do mundo».
Que o Infante estava plenamente convencido das vantagens do plano
demonstra-o na “Virtuosa Benfeitoria”, onde se encontra uma passagem
abordando a mesma questão, procurando provar os benefícios que adviriam para
o Reino se fosse determinado «que cada bispado e religião ordenassem certos
colégios e os estudantes que em eles houvessem, recebendo seus graus fossem
lentes por certos anos segundo se costuma em Paris, em Oxónia, onde aos
mestres se não paga preço pela ensinança que outorgam, porque em suas
leituras são obrigados por juramento». Assim, haveria bons letrados e prelados no
Carlos Jaca – Linhas Gerais sobre a Universidade Conimbricence – Parte 2 21
Reino e aconselhando, para o corpo docente desses Colégios, o seu
recrutamento, pelo menos de início, entre os professores das Universidades de
Paris e Oxford.
A necessidade de Colégios à volta da Universidade, e no País, para ricos e
pobres, correspondia à perspectiva do Infante como consequência da sua
peregrinação cultural pela Europa, ao aperceber-se das vantagens das referidas
instituições que muito tinham a ver com a evolução social das Universidades.
Aconteceu que nem D. Duarte, nos breves cinco anos do seu reinado
(1433-1438), nem o Infante D. Henrique, como “Protector” da Universidade, nem o
próprio Infante D. Pedro, como Regente, deram execução a este plano reformador
que teria, transmitido, certamente, um tom mais europeu à nossa cultura científica
do século XV e, sem dúvida, uma profunda mudança na estrutura universitária.
Ao tomar conta da Regência, durante a menoridade do Príncipe D. Afonso,
o Infante D. Pedro, ficando senhor de todo o governo, ao contrário do que era de
esperar, não procedeu à remodelação da Universidade.
Vários condicionalismos tê-lo-ão impedido de levar a bom termo o plano
que pretendia implantar na Universidade portuguesa: dificuldades de ordem
económica, sobretudo ligadas aos custos das viagens de descoberta e exploração
da costa africana, a iminência de guerras internas e externas, fazendo desviar dos
sectores produtivos, homens e dinheiro, bem como a intriga política em que o
envolveram durante os dez anos da sua Regência, nomeadamente após D.
Afonso V ter atingido a maioridade e que veio a ter um trágico desfecho, em 1449,
com a morte do Infante na Batalha de Alfarrobeira, tendo feito abortar um projecto
pelo qual lutou durante alguns anos.
Considere-se ainda que, a Universidade, como organização corporativa,
governada predominantemente pelos estudantes, passaria a ser uma instituição
«gravitando em torno dos interesses e competições científicas e morais, sob a
autoridade dos Principais (Directores) dos colégios». Deste modo, não causará
admiração se tão profunda reforma viesse a encontrar a resistência de costumes
e interesses consolidados.
Projecto de uma Universidade em Coimbra - Apesar da conjuntura política lhe
ser particularmente adversa, num movimento encabeçado pelo seu irmão natural,
D. Afonso, que ele elevara a Duque de Bragança, fazendo crescer os ódios e as
Carlos Jaca – Linhas Gerais sobre a Universidade Conimbricence – Parte 2 22
intrigas contra a sua pessoa, o Infante D. Pedro não se alheou da existência da
Universidade.
Não é de rejeitar que o Regente, perante tais circunstâncias, tivesse
mudado de ideias, tanto mais que, provavelmente, estaria convencido da
impossibilidade, ou inutilidade, da reforma do Estudo num meio como o da
Capital, pouco propício ao seu progresso.
Sentindo a falta que a Coimbra, sua cidade ducal, fazia a Instituição, depois
dela ter sido privada em 1377 e na impossibilidade de a transferir sem violar a
promessa feita por seu pai à Universidade, em carta de 3 de Outubro de 1384, em
pleno período de crise política, fixando-a para sempre em Lisboa, o Infante tomou
a resolução de fundar em Coimbra uma segunda Universidade, em conformidade
com os seus ideais pedagógicos.
O novo Estudo Geral foi criado por Carta passada em nome de D. Afonso
V, datada de Leiria, em 21 de Outubro de 1443. Portugal passaria agora a ter, em
meados do século XV, duas Universidades. O diploma ocupava-se de quatro
pontos fundamentais: das razões da criação do Estudo Geral de Coimbra; da
indicação dos dois “Protectores” do novo Estudo; das disciplinas a ensinar e dos
privilégios de que gozaria o Estudo.
Na introdução a Carta refere «que os reis da piedosa lembrança de que
nós descendemos» […] ordenaram, «na muito antiga, nobre e abastada cidade de
Coimbra um Geral estudo de todas as ciências por que é um gracioso dom do
Espírito Santo outorgado aos homens» […]. «E continuando assim o dito Estudo
por tempos, o muito virtuoso e nunca vencido príncipe el-rei D. João, meu avô (a
Carta, como referi é escrita em nome de Afonso V), que Deus haja mandou o dito
Estudo para a muito nobre e sempre leal cidade de Lisboa» […]
D. João I transferira o Estudo Geral para Lisboa «por algumas justas
razões» e dele saíram letrados «em desvairadas ciências que lhe fizeram grandes
serviços que pelo seu claro saber alumiaram os escuros entendimentos e
trouxeram verdadeira honra e proveito a sua terra».
Agora caberia ao Infante continuar essa obra de valorização do saber e,
assim, justificava a criação de um Estudo em Coimbra: «[…] o Estudo de Lisboa
não basta para todos porque muitos moram em lugares tão alongados que
deixam de aprender por não virem tão longe de suas casas. Outros, por azo das
pestilências que às vezes na dita cidade acontecem, se partem do Estudo, e por
Carlos Jaca – Linhas Gerais sobre a Universidade Conimbricence – Parte 2 23
não acharem no reino outras escolas onde possam estudar; andando assim
ociosos lhes avém que esquecem quanto aprenderam. E ainda alguns por
homízios e ruídos são estorvados, outros pela muita conversação dos amigos e
parentes não podem com repousado espírito estudar. E assim lhes é necessário
que vão, com grandes despesas e trabalhos, buscar estudo fora da terra onde
muitos nunca mais tornam». Daí o ter decidido criar em Coimbra outro Estudo
Geral que poderia servir não só os portugueses como também os estrangeiros.
O solene compromisso de D. João I demonstra, de modo bem claro, o forte
desejo dos professores verem a sua Universidade em local definitivo. Porém, nem
todos os alunos participavam dos mesmos desejos, porquanto, muitos teriam
vantagens, especialmente os do centro e norte de Portugal, com a existência de
uma Universidade em Coimbra.
Podemos ainda acrescentar o facto do Infante D. Pedro ter vivido alguns
anos na sua cidade e, também, não será de todo descabido considerar que o
Mosteiro de Santa Cruz e as autoridades religiosas desejassem recuperar o
prestígio cultural que a transferência da “Alma Mater” tinha causado a Coimbra.
Para “Protectores” do novo Estudo foram escolhidos o próprio Infante D.
Pedro «meu muito amado e apreciado tio e pai nosso tutor e curador» e o
Arcebispo de Braga, D. Fernando da Guerra. Para futuro ficariam, desde logo,
designados como “Protectores” os que viessem a ser Duques de Coimbra,
descendentes legítimos de D. Pedro, e os que viessem a ser Arcebispos de
Braga.
As matérias a leccionar seriam todas as que se encontram aprovadas
«pela Santa Igreja de Roma, como se lêem nos outros Estudos Gerais». Quanto
aos privilégios foram concedidos «todollos privilégios e franquezas e liberdades e
execuções que a universidade de lixboa pollos Rex passados som outorgados».
Lançadas as bases legais da Universidade seguiam-se os passos a fim de
conseguir os meios económicos que proporcionassem o seu regular
funcionamento, tendo o Regente logo providenciado nesse sentido.
Assim, a 4 de Julho de 1444, considerando que «os estudos que ora
mandamos fazer em a cidade de Coimbra são obra santa e de grande honra e
proveito para esta terra», determinou que o produto de todos os resíduos da
cidade de Coimbra e seu termo fosse entregue ao tesoureiro da Universidade.
Carlos Jaca – Linhas Gerais sobre a Universidade Conimbricence – Parte 2 24
Generosamente, o Infante, cedeu ao projectado Estudo «huma boa e grande
cantidade de renda das suas próprias terras».
Recorrendo ao clero, e com a mesma finalidade, solicitou ao Cabido
conimbricense que fizesse ao Estudo «alguma doação e renda perpétua». O
pedido foi bem recebido e, por escritura de 24 de Maio de 1446, o Cabido doava
as rendas de São Tiago de Almalaguês, pertença da de São Pedro de Almedina,
«por considerar quanto a história das letras é necessária e proveitosa a todos e,
em especial, às pessoas eclesiásticas que hão-de reger e encaminhar a si
mesmas e a outros, a guardar os mandamentos de Deus e a praticar a virtude».
Porém, o novo Estudo Geral de Coimbra apenas contava com os
rendimentos doados pelo Infante D. Pedro e pelo produto da venda dos resíduos,
já que de Roma não chegou a vir qualquer sinal de concordância respeitante à
anexação dos bens da Igreja, tornando, assim, insuficiente os meios para
começar a funcionar além de que, três anos mais tarde, em 1449, a vida de D.
Pedro era sacrificada em Alfarrobeira.
Ao contrário do que era de esperar, com a morte do Infante D. Pedro, a
fundação da Universidade de Coimbra não iria cair no esquecimento.
Quando D. Afonso V tomou definitivamente conta do poder e, como, aliás,
era da “praxe”, logo procedeu à confirmação dos privilégios da Universidade de
Lisboa. sem deixar de procurar uma solução para
a nova Universidade de Coimbra, criada por seu
tio, morto em Alfarrobeira.
Confirmar a fundação da Universidade e os
seus privilégios seria desagradar aos inimigos do
Infante, tal como aprovar a nomeação dos
descendentes de D. Pedro para “Protectores” o
que, certamente, não estava nos propósitos do
Rei. Por outro lado, não confirmar os privilégios
era liquidar à nascença o novo Estudo o que, sem
dúvida, iria contrariar a população da cidade e, até, um bom número de possíveis
alunos, não deixando de ser politicamente uma decisão contra indicada.
Para evitar todos estes inconvenientes, D. Afonso V, como se nada se
tivesse passado a respeito do Estudo nos anos imediatamente anteriores, tomou
a seguinte resolução: por Provisão de 22 de Setembro de 1450, deu ordem para
Carlos Jaca – Linhas Gerais sobre a Universidade Conimbricence – Parte 2 25
se estabelecer em Coimbra a nova Universidade, e que «se levantassem outros
Estudos nas mesmas casas das Escolas antigas, junto aos seus Paços, que são
os do Colégio Real, e que esta Universidade tivesse os mesmos privilégios que a
de Lisboa, declarando que não convinha haver neste Reino uma só
Universidade». E, tendo como objectivo pôr efectivamente a funcionar o Estudo
de Coimbra, o Rei comprometeu-se a dar todos os anos, segundo o costume da
Universidade de Lisboa, três mil reais brancos.
Poucos dias decorridos, D. Afonso V nomeou Reitor Frei Álvaro da Mota,
mestre em Teologia, «o maior letrado dos Dominicanos dos meados do século
XV». Na mesma data, 30 de Setembro de 1450, publica uma “Carta” nomeando
Conservador João André, com atribuições idênticas às do «conservador do
Estudo da nossa cidade de Lisboa».
Apesar do forte impulso dado por D. Afonso V à Universidade fundada por
D. Pedro, em Coimbra, julga-se que o novo Estudo nunca chegou a funcionar e,
embora se desconheça qualquer prova documental, não é de rejeitar que alguns
protestos de Lisboa tenham contribuído para levar o monarca a desistir da
execução do projecto.
O que se sabe ao certo, é que os Estudos Gerais só voltaram a Coimbra
quase um século depois, em 1537, com D. João III.
O Colégio do Doutor Mangancha – Entre os professores da Universidade um
havia muito chegado aos Príncipes de Avis: o Doutor Diogo Afonso de
Mangancha, privado, especialmente, do Infante D. Pedro.
Figura de grande relevo cultural, em Portugal e no estrangeiro, no segundo
quartel do séc. XV, foi Mestre em Artes e Doutor “in outroque jure” (em ambos os
Direitos, tanto em Leis, como em Cânones), Lente de Leis no Estudo, político
astuto e orador afamado que, deu prova do seu saber em Bolonha quando por ali
passou como jurista, fazendo parte da embaixada portuguesa ao concílio de
Basileia (1436-1437), sustentando brilhantemente um debate público na
Universidade.
Mangancha, exemplo típico da nova classe de legistas saídos do povo e
elevado aos mais altos cargos políticos, amealhou bens, tanto móveis como de
raiz, aparecendo a colaborar com D. Duarte no “Leal Conselheiro”, a defender a
Carlos Jaca – Linhas Gerais sobre a Universidade Conimbricence – Parte 2 26
nomeação do Infante D. Pedro para Regente do Reino e, finalmente, a ajudar o
Infante D. Henrique nos negócios da Universidade.
A ajuda e estreita colaboração prestada aos Príncipes de Avis quis ele
prolongá-la, para além da morte, através da disposição testamentária de 9 de
Dezembro de 1447, determinando que os seus bens fossem destinados, após o
falecimento, à fundação de um Colégio junto da Universidade.
Provavelmente, esta meritória resolução teria sido influenciada por D.
Pedro, na “Carta de Bruges” (1426), se bem que, quando o Infante caiu em
desgraça durante o ano de 1447, o Professor, como tantos outros lhe ” virou as
costas”, ao deixar expresso no seu testamento: «Peço por mercê ao infante D.
Pedro que com o meu testamento não haja de ver, nem se entremeta per bem
nem per mal; e se tal coisa recrecer, deixo a el-rei que per si e per conselho de
outros, e não dele, o determine».
Na referida disposição testamentária, Mangancha determinava que fosse
instalado na ampla casa onde residia, em Lisboa, «um colégio nas nossas casas
da morada da beira de São Jorge, nas quais se
recebessem dez escolares pobres de todo, e quatro
servidores». O testamento caracteriza-se pelas
minúcias a que desce, e até por algum pitoresco,
relativas à vida interna do Colégio, à dormida e à
alimentação dos escolares e, quanto ao ensino
propriamente, determina que os colegiais deveriam
ter mais de 16 anos e ser já gramáticos, excepto os
que fossem sacerdotes, desde que cursassem
gramática. Excluía da admissão ao Colégio os «ricos, barrigueiros
[amancebados], tafuis [janotas], bêbados, volteiros [desordeiros], gagos, nem de
outros maus costumes, peitudos, e de narizes tortos, bochechudos, que têm
rosmaninhos nos rostos, ainda que sejam bons…e se algum se lançar a folgar,
sem continuar o estudo, à vista da Universidade e Colégio, seja lançado fora dele,
sem nunca mais tornar».
A estadia no Colégio era por tempo limitado – o suficiente para os estudos
universitários; assim, os colegiais que começassem a frequentar gramática
poderiam permanecer nele dez anos; os que já a tivessem cursado sete e os que
terminavam o estudo das lógicas, cinco. Se algum dos colegiais, antes de
Carlos Jaca – Linhas Gerais sobre a Universidade Conimbricence – Parte 2 27
terminado o prazo lograsse o grau de mestre ou doutor, deveria abandonar o
Colégio dentro de cinco meses. Nesta Instituição estabelecer-se-ia uma biblioteca
pelos livros do Doutor Mangancha, que ali se guardariam presos por cadeias.
Este Colégio, à semelhança dos de Oxford e de Paris, ficava sob a fiscalização da
Universidade, à qual prestariam contas o Reitor e o Escrivão, que deviam ser
colegiais.
O Colégio chegou a estabelecer-se, porém teve pouca duração, visto
constar de uma escritura, lavrada a 4 de Julho de 1459, que todos os bens do
Doutor Mangancha foram incorporados no património da Universidade.
Só mais tarde, depois da transferência da Universidade para Coimbra, em
1537, graças a D. João III, o estabelecimento dos colégios se tornou realidade.
Após a sua ascensão ao trono, D. João II tomou uma série de medidas no
sentido de retirar poder à aristocracia rural e a concentrá-lo em si próprio,
contrariando as atitudes de seu pai, D. Afonso V. Efectivamente, desde o início do
seu reinado apresentou-se como o “tipo” de Príncipe do Renascimento, numa
«imagem antecipada do “Príncipe” de Maquiavel».
Durante os catorze anos de governo, toda a sua energia foi posta ao
serviço de uma luta implacável contra a nobreza e da gloriosa empresa dos
Descobrimentos, não retomando, assim, por esses motivos a tradicional política
régia de protecção à Universidade, não se lhe conhecendo muitas notícias
referentes ao Estudo, o mesmo já não acontecendo com o seu sucessor, D.
Manuel, que procurou empreender a reforma que já há muito se tornava
necessária.
A acção pedagógica de D. Manuel I. Os Estatutos Manuelinos.
A sucessão de D. João II coube a D. Manuel, seu primo e cunhado, devido
à morte prematura do herdeiro, o Príncipe D. Afonso, tanto mais que sua irmã, a
Rainha D. Leonor se opunha à elevação do bastardo D. Jorge, por entender que
só a D. Manuel cabia a herança do marido o que, jurídica e politicamente, era a
única solução.
Carlos Jaca – Linhas Gerais sobre a Universidade Conimbricence – Parte 2 28
Logo que D. Manuel I foi elevado ao trono, a Universidade de Lisboa
mandou-lhe participar pelo Reitor Álvaro Eanes e Mestre João de Magdalena a
sua eleição de “Protector”, honra que o monarca aceitou por carta de 11 de
Dezembro de 1495, como, aliás, veio a acontecer com todos os seus sucessores.
Vivia-se uma fase culminante da história do Ocidente e de Portugal, em
que a invenção da tipografia, o espírito da Renascença começava a irradiar da
Itália pela Europa e os descobrimentos condicionavam um novo rumo da política,
da economia mundial e do próprio pensamento.
Em plena época dos Descobrimentos
portugueses, D. Manuel vai interessar-se bastante
pela Universidade, nos aspectos de instituição,
ampliação e modernização dos edifícios, bem como
pela promoção de estudantes e professores. No
desejo de desenvolver a cultura em Portugal, e
reconhecendo o atraso da Universidade
Portuguesa em relação ao estrangeiro, para onde
se deslocavam os portugueses que procuravam
instruir-se, promoveu a reforma dos Estudos Gerais, reforma essa que, embora
permeável às «tendências expostas pelo Humanismo, não deve ser encarada
como uma reforma humanista típica, dirigida e executada por escolares com fins
meramente intelectuais», porquanto levava a marca do Estado e situou-se entre
os grandes objectivos da centralização política.
A Universidade de Lisboa para além do seu fraco nível intelectual e da sua
constante indisciplina, tanto da parte dos mestres como dos discípulos,
procurando conservar os antigos privilégios, bem como deter o monopólio cultural
do País, embora não conseguisse acompanhar a cultura humanista do tempo,
punha em causa a autoridade indiscutível do Rei.
Com efeito, é no reinado do Rei “Venturoso” que surgem as primeiras, e
verdadeiras, querelas, conhecidas, entre o Estudo Geral e a autoridade régia.
Assim, sob o pretexto de conceder um novo edifício à Instituição e de aumentar
os vencimentos dos seus professores, D. Manuel impôs à Universidade
portuguesa um novo regulamento – eram os “Estatutos Manuelinos”, de 1503 –
que consideravelmente lhe cerceavam a autonomia tradicional, ao mesmo tempo
que tentava pôr fim a notórias irregularidades.
Carlos Jaca – Linhas Gerais sobre a Universidade Conimbricence – Parte 2 29
De facto, ao que parece, as reformas de 1471 não corresponderam às
expectativas, pois o que se conhece da indisciplina universitária e o que consta de
outros indícios mais, assim o leva a concluir. Por conseguinte, a não
concretização das reformas e a consequente crise universitária levaram à
promulgação dos referidos “Estatutos” de 1503.
Pretendem alguns autores que os “Estatutos”, longe de constituírem um
regulamento «profundamente original», que teria remodelado completamente a
organização da Universidade, devem ser vistos como uma codificação já em vigor
nos fins do século XV. Por outro lado considera-se que os “Estatutos Manuelinos”
representam, efectivamente, em parte maior ou menor, uma codificação de
normas avulsas promulgadas ao longo do século XV, porém, não são apenas
isso, visto incluírem «modificações e desenvolvimentos do sistema pedagógico e
do plano de estudos com um cunho próprio».
Sublinhe-se, desde já, como nota saliente, o facto de D. Manuel ter levado
a cabo uma reforma para a qual não foi ouvida a corporação universitária, não
respeitando, desse modo, os antigos costumes da Instituição. E mais, logo no
preâmbulo era evidente a sujeição da Universidade à autoridade do Rei:
«Primeiramente mandamos que o Reitor da Universidade do Estudo de Lisboa,
Conselheiros, Lentes e todos os Oficiais juntos, não possam fazer Estatuto sobre
o regimento da dita Universidade; e quando ocorrer algum caso em que pareça
ser necessário novo Estatuto, poderão requerer ao Protector, e por sua
autoridade se fará o Estatuto que for necessário».
Plano de estudos.
As atenções de D. Manuel pelo Estudo Geral revelaram-se também,
obviamente, pela reorganização e fundação de novas cadeiras e, conforme
determinam os “Estatutos Manuelinos”, professar-se-iam catorze. As Cátedras
ordenaram-se segundo o seguinte plano: a Faculdade de Teologia passou a
incorporar a Cátedra de Véspera (a de Prima já existia); em Cânones e Leis
funcionavam as de Prima, Véspera e Terça; em Medicina, as de Prima e de
Véspera; nas Artes, a Lógica foi de novo incorporada, havendo ainda as de
Gramática e Filosofia, tendo sido esta desdobrada em Natural e Moral.
Carlos Jaca – Linhas Gerais sobre a Universidade Conimbricence – Parte 2 30
Posteriormente, foram criadas as disciplinas de Sexto, de Decretais, de
Astronomia e, ainda, a de Matemática, «por ser ciência importante ao bem
comum do reino e navegação e ornamento da Universidade». Para o
preenchimento das vagas eram afixados editais em Salamanca, Alcalá e Lisboa.
Nas matérias em que havia apenas duas cadeiras, estas eram designadas
por “Cadeira de Prima” e “Cadeira de Véspera”. Porém, quando havia três, a
restante chamava-se “Cadeira de Terça”, sendo assim designadas por via da
divisão litúrgica das horas canónicas, correspondendo às horas em que eram
dadas as lições. O trabalho escolar principiava por uma missa ao romper do Sol, e
em seguida começavam as lições dos Lentes de “Prima”: «em sahindo o Sol
comece a Missa, e em fim d’ella começarão os Lentes de “Prima” a ler…».
Um dos estímulos da reforma da Universidade por D. Manuel foi o aumento
dos salários dos Lentes: os professores das horas de “Prima” ganhavam mais do
que os de “Véspera”, e estes mais do que os de “Terça”. Em Teologia ganhavam,
respectivamente, 30 mil, 20 mil e 10 mil reais por ano. Os vencimentos diferiam
consoante as disciplinas, sendo os máximos para os professores (de “Prima”) de
Teologia, Cânones e Leis; os mínimos (10 mil) para os de Lógica e Gramática.
No plano pedagógico é um facto que os “Estatutos Manuelinos” tenham
procurado implantar e definir a separação entre um ensino de base e um ensino
superior, o que parece já ter sido pretendido nos de 1431. Nestes existe a
determinação expressa de completar o bloco das disciplinas das sete artes (artes
liberais), o que seria, provavelmente a prova desse objectivo.
O estudo começaria pela Gramática e pela Lógica, disciplinas de base, de
carácter obrigatório para o acesso a qualquer dos cursos, «espécie de ciclo de
iniciação geral, e não apenas para os estudantes que se bacharelassem em
Artes. Os que seguissem por este curso estudariam nele as restantes artes
liberais; os outros não».
Deste modo cumpriria ao Estudo Geral o ensino propriamente universitário,
considerando-se que a matéria de base (Gramática e Lógica) pudesse ser
leccionada fora daquele Estudo, tanto mais que há notícia, na época do reinado
de D. Manuel, da existência de aulas das referidas disciplinas em vários pontos
do País e, até mesmo, fora dos conventos e das igrejas. As corporações locais
auxiliadas ou estimuladas pela Coroa, facilitavam e, por vezes, «tomavam a peito
a sua organização ou desenvolvimento nas cidades da província», surgindo,
Carlos Jaca – Linhas Gerais sobre a Universidade Conimbricence – Parte 2 31
assim, núcleos escolares de Gramática, ou de Gramática e Lógica, em Évora,
Elvas, Santarém e outras localidades sob o patrocínio das respectivas
municipalidades. Será, portanto, admissível que os escolares entrassem no
Estudo Geral já preparados com o ensino de base em qualquer escola exterior, ou
então que iniciassem e seguissem no próprio Estudo, em aulas designadas por
“Gerais” (nome que se mantém no velho edifício da Universidade de Coimbra,
para designar o local onde as aulas funcionam). A partir destes estudos
preparatórios estavam abertas aos estudantes as portas dos diversos cursos,
podendo, se a isso aspirassem, vir a alcançar o bacharelato, a licenciatura ou o
doutoramento.
Os “Estatutos” não apresentam qualquer título acerca dos livros de texto,
mas através de algumas referências relativas à licenciatura e por outras fontes,
certamente que foram lidos, nos primeiros tempos da Reforma, os seguintes: em
Teologia as “Sententiarum Libri Quator” de Pedro Lombardo e talvez a “Escritura”;
em Cânones, as “Decretais”; em Leis, o “Corpus Júris Civilis” e o “Digesto”; em
Medicina, Avicena e Galeno; em Artes, a “A Arte de Pastrana” em Gramática, as
“Súmulas Lógicas” de Pedro Hispano em Lógica e a “Metafísica” e a “Ética a
Nicómaco” de Aristóteles em Filosofia Natural e a Filosofia Moral.
O método de ensino era o método tradicional ou escolástico. Diariamente,
durante uma hora, excepto os de “Prima” que liam hora e meia, os Lentes liam,
explicavam e comentavam o texto. Terminada a aula, o Lente, «descendo da
Cadeira», respondia às dúvidas e perguntas dos estudantes.
Periodicamente, ou quando o Mestre assim o entendia, havia exercícios de
repetição e “quodlibetos”, os quais não tinham em rigor o carácter do que na
linguagem do século passado, se designava por chamada. Por estes processos, o
Mestre pretendia averiguar o aproveitamento dos alunos e o seu grau de agudeza
através da proposição e resolução de argúcias e dificuldades em torno da
compreensão dos textos.
As aulas começavam «hum dia depois de Sam Lucas», em 19 de Outubro
e continuavam «até Santa Maria de Agosto, inclusive». Durante o ano lectivo não
havia férias, no entanto os feriados eram frequentes.
No acto de matrícula os alunos pagavam a propina de 13 reais e,
posteriormente, prestavam o juramento de «obedecer ao reitor em coisas lícitas e
Carlos Jaca – Linhas Gerais sobre a Universidade Conimbricence – Parte 2 32
honestas», sem o qual não podiam frequentar o Estudo. Segundo os “Estatutos”
não podiam entrar nas aulas com armas, deviam andar «honestamente vestidos e
calçados», isto é, não trazer «pelotes, nem capuzes, nem barretes, nem gibões
vermelhos, nem amarelos verdegai, nem cintos lavrados de ouro, sob pena de
perderem os ditos vestidos, a metade para o bedel e a outra metade para a
guarda das escolas», e era-lhes proibido «ter em sua casa mulher suspeita
continuadamente».
Concessão de graus.
Como já foi referido a Universidade atribuía três graus: bacharel, licenciado
e doutor.
A duração das frequências exigidas para o grau de bacharel passou a ser
de cinco anos, excepto nas Artes que mantinha os três anos, sendo o primeiro de
Lógica e os outros dois de Filosofia Natural. Saliente-se a possibilidade do
bacharelando em Artes se poder apresentar à graduação antes de completar o
triénio, sempre que os Mestres declarassem sob juramento, a sua suficiência, e
que esta fosse comprovada em «três lições disputadas, apresentadas de um dia
para o outro». Analogamente para os candidatos à licenciatura, em situação
semelhante, que recebiam assim o título de «licenciados por suficiência». Nestas
circunstâncias, referem os “Estatutos”, o Conselho, «teria respeito pela idade e
tempo de estudo dos candidatos». O grau de licenciado só poderia ser atribuído a
quem fosse bacharel, para além de outras exigências especiais.
Nos quatro cursos tradicionais, Teologia, Cânones, Leis e Medicina a
frequência era de quatro anos, ouvindo diariamente as respectivas cátedras de
“Prima”, sem o que não lhe era validado o curso. Terminado este, o licenciando
fazia um acto, solene e público, de “repetição” e respondendo aos que quisessem
arguir, e defendia conclusões ou teses, que livremente escolhia e se propunha
sustentar. As teses eram comunicadas por escrito, com dois dias de antecedência
ao bedel que, por sua vez, as comunicava ao Lente. Seguia-se o exame privado
que era a prova decisiva. Esta prova era feita com a presença do Cancelário e do
Reitor perante um júri de quatro mestres ou doutores, além do padrinho
convidado, consistindo na exposição de dois pontos, escolhidos pelo aluno, de
entre seis sorteados na manhã da véspera.
Carlos Jaca – Linhas Gerais sobre a Universidade Conimbricence – Parte 2 33
Se o candidato era aprovado, os presentes, «em hábito e aparato»,
dirigiam-se à Sé, para assistir à investidura do candidato, seguindo-se outras
solenidades e protocolos.
O doutoramento, grau essencialmente académico, dava lugar à mais
solene e aparatosa das cerimónias universitárias que, no fundo, era um acto de
consagração.
A investidura em cada um dos graus era acompanhada de juramento
havendo, em alguns casos, pontos em comum: todos eram obrigados a só
receberem o grau imediato na Universidade de Lisboa, a obedecerem ao Reitor e
acompanharem «sempre a Universidade em suas procissões se não forem
impedidos por justa causa». Para além disto, impunham-se obrigações especiais
para alguns: os graduados juristas juravam que não se aconselhariam nem
advogariam contra a Universidade, os doutores, defenderiam «segundo a sua
possibilidade a santa fé católica e a santa madre igreja cristã especialmente
destes reinos e cidade», e os Lentes leriam «fielmente aos escolares e a seu
proveito».
Nos “Estatutos Manuelinos” o magistério era considerado como uma
profissão digna, e tão absorvente, que o Lente tinha o dever de ocupar a sua vida
apenas com trabalhos escolares: «porquanto o acto de ler requer o Lente muito
desocupado para bem servir sua cadeira e fazer proveito aos escolares, e o
procurar ou julgar faz a isto muito impedimento pelas grandes ocupações dos
ditos ofícios, mandamos que qualquer lente que procurar ou julgar logo seja
privado,”ipso facto”, (por isso mesmo) da cátedra».
O provimento definitivo das cátedras e o das substituições interinas, fazia-
se por concurso, cujo edital se afixava à porta da Universidade durante vinte dias.
Os concorrentes ou opositores, como então se dizia obrigavam-se a jurar que não
dariam nem prometeriam, por si ou por outrem, dinheiro ou «coisa que o valesse»
a outros concorrentes para desistirem ou aos votantes para lhes darem o seu
voto, sob pena de exclusão do concurso e de pagarem vinte cruzados de ouro
para a arca do Estudo.
Pela primeira vez, as cores das Faculdades apareceram nas insígnias dos
seus graduados: branca para os teólogos, «hieroglífico da pureza e virtude que
devem guardar os professores desta ciência»; verde para os canonistas,
Carlos Jaca – Linhas Gerais sobre a Universidade Conimbricence – Parte 2 34
«significação da castidade, de que devem ser observantes os que estudam para
governar a Igreja»; vermelha para os legistas, «símbolo da Justiça que devem
observar os que hão-de governar a República»; amarelo para os médicos,
«significação da caridade, que devem ter os que curam os doentes»; azul-escuro
para Artes, «figura do céu e do ar, sua ocupação principal», da qual passou para
a Filosofia quando pela Reforma Pombalina (1772) foi criada esta Faculdade,
passando depois (1911) para Letras; o azul claro foi a cor da Faculdade de
Matemática, criada também em 1772, sendo hoje a de Ciências e Tecnologia,
bem como o azul-claro e branco. A Faculdade de Medicina manteve sempre o
amarelo. As Faculdades de Farmácia, Economia e Psicologia e Ciências da
Educação vieram a usar, respectivamente, as cores roxa, vermelha e branca e
laranja. Registe-se que as cores usadas no passado eram, em geral, as mesmas
que hoje se usam; o branco caiu em desuso em 1911, com a suspensão das
actividades da Faculdade de Teologia, e o verde quando a Faculdade de
Cânones se juntou à de Leis para formar a de Direito (1837), tendo esta última
adoptado o vermelho da Faculdade de Leis.
Administração escolar.
Na administração escolar a Reforma trouxe algumas inovações que vieram
aumentar o cerceamento de uma autonomia tradicional, pois todos os cargos,
excepto o de Chanceler, eram eleitos e confirmados pelo “Protector”. A
Universidade “Manuelina” tinha a seguinte organização:
Reitor, ao qual a “universitas scholarum et magistrorum” obedecia “como a
cabeça”. Para o cargo de Reitor, que já não eram dois como anteriormente,
passou a ser eleito, não um escolar mas «um fidalgo ou homem constituído em
dignidade», com mais de vinte e cinco anos. Ao estudante foi recusado o direito
tradicional de voto, transformando-se, assim, a Universidade, de estudantil num
organismo burocrático com tendência cesarista e magistral.
Desde que os “Estatutos” se tornaram numa ordenação real, considerava-
se necessário dá-los a conhecer, anualmente, aos estudantes: «Mandamos que o
Reitor mande a todos os estudantes, sob pena “prestiti juramenti”, que em cada
ano vão ouvir os “Estatutos” e “Ordenações” da dita Universidade, os quais o
Carlos Jaca – Linhas Gerais sobre a Universidade Conimbricence – Parte 2 35
Bedel e o Escrivão do dito Estudo lerá alta e inteligível “vox” no Geral das ditas
Escolas uma vez cada ano, o terceiro dia das Oitavas do Natal depois de comer;
e o mandado será publicado pelo Bedel à Véspera de Natal».
Juntamente com os Conselheiros cumpria-lhe declarar a vacatura das
cátedras, resolver as controvérsias entre os mestres e os estudantes sobre a
matéria das lições e apreciar as faltas dos Lentes.
Ao fim e ao cabo, a acção do Reitor exercia-se sobre toda a corporação
universitária.
Conselho Pedagógico, constituído por seis conselheiros que serviam anual e
gratuitamente. Exercia com o Reitor, que tinha voto de desempate, o governo
pedagógico da Universidade.
Junta Administrativa, formada por dez deputados, cinco Lentes e cinco
«pessoas honradas e discretas» da Universidade», superintendia no governo
económico da Universidade, nomeadamente sobre «as coisas de importância que
não tocarem às lições, Reitor e os Conselheiros». Os deputados prestavam o
juramento de «procurarem e conservarem o bem e utilidade da Universidade».
Conservador, exercia a jurisdição cível e criminal sobre os escolares, porquanto
D. Manuel confirmou os foros académicos tradicionais. Das suas decisões havia
apelação para os feitos crimes e agravos. Entre os processos submetidos ao
julgamento do conservador dominavam, ao que parece, as pendências sobre o
arrendamento de casas.
Chanceler, cargo inerente ao catedrático de “Prima de Leis”, que o exercia
gratuitamente. Esta disposição denunciava, claramente, o carácter regalista dos
“Estatutos”, pois desde a fundação da Universidade, tais funções eram exercidas
pela autoridade eclesiástica. Mais tarde, no reinado seguinte, com D. João III, o
cargo de Chanceler torna-se novamente autonómico sendo o cargo atribuído aos
Priores de Santa Cruz de Coimbra.
Recebedor, cumpria-lhe receber as rendas e pagar aos Lentes e funcionários. As
despesas deviam ser ordenadas pelo Bedel e assinadas pelo Reitor, sem o que
não seriam validadas as contas.
Bedel e Escrivão, tinha aposentadoria na Universidade. Cumpria-lhe apontar
diariamente as faltas dos Lentes, anotando no título de cada um, se «tarde veio;
pouco leu; ou não leu». Quando as faltas fossem continuadas devia notificá-las ao
Reitor.
Carlos Jaca – Linhas Gerais sobre a Universidade Conimbricence – Parte 2 36
A propósito deste último aspecto, os “Estatutos” determinavam que era
permitido aos Lentes ausentarem-se do “Estudo” «por justa causa» até quatro
meses, susceptíveis de renovação, sempre com autorização do Reitor e dos
Conselheiros. Durante a ausência as aulas seriam dadas pelo substituto que
auferia a terça parte do salário do Lente, recebendo o “Estudo” os dois terços
restantes. Se a ausência fosse por doença, ou caso o Rei o reclamasse para
qualquer serviço, então seriam para o Lente dois terços do salário.
Ao Bedel cumpria, ainda, expedir os mandados do Reitor aos Conselheiros,
Deputados, Lentes e a toda a corporação universitária, redigir os avisos para os
actos, graus e festas e o da matrícula dos estudantes. Como Escrivão tinha o
encargo os actos de «todas as coisas que pertencem à dita Universidade diante
do Reitor, Conselheiros e Deputados em seus ajuntamentos»»; exarar os
arrendamentos, organizar o livro das receitas e despesas e escrever as cartas de
graus e cursos e as epístolas que a Universidade expedisse. Pelos alvarás e carta
de curso recebia de emolumentos um real de prata.
Dois Taxadores de casas, tinham por encargo fixar o preço das rendas de casas
alugadas aos estudantes.
Dois Escrivães, ajudantes do Conservador.
Um Inquiridor, sem vencimento.
Um Solicitador e Guarda das Escolas, tinha por obrigação chamar os Lentes,
Conselheiros, Deputados e outros que faziam parte da corporação universitária,
abrir e fechar as portas, «e castigar os moços dos estudantes que perturbem os
Lentes quando lerem».
Capelão do “Estudo”, cumpria-lhe dizer missa, diariamente, após a qual
começavam logo as aulas de “Prima”.
Apesar dos bons propósitos, e melhor dotada, a Universidade portuguesa
continuou a evidenciar alguns vícios, quer no que respeitava à organização, quer
no que tocava à vida dos professores e escolares. Efectivamente, pouco se
conseguia em qualquer dos sentidos, pois tanto mestres como estudantes
resistiam ou simplesmente ignoravam as determinações régias e, como se infere
de um alvará de D. João III, muitas das disposições da Reforma de D. Manuel não
foram cumpridas pela Universidade.
Carlos Jaca – Linhas Gerais sobre a Universidade Conimbricence – Parte 2 37
A grande inovação dos “Estatutos” de 1503, que serviram de base às
reformas posteriores até ao Marquês de Pombal, (1772) terá sido a afirmação
expressa da autoridade real, cerceando alguns privilégios, tanto dos Lentes como
dos escolares, os quais a Universidade, até então autónoma, a si própria se
outorgara ou havia alcançado dos reis.
Apesar dos esforços, e sacrifícios de toda a ordem, que a Nação
desenvolveu por via da absorvente empresa dos Descobrimentos, a acção de D.
Manuel I em prol da Instituição de que foi “Protector”, pode considerar-se
benéfica, ainda que não conseguisse elevar a Universidade ao nível das
instituições similares da época, a fim de nela projectar as luzes da Renascença.
No entanto, convém recordar a outorga de novos “Estatutos” à
Universidade, a transferência para novas e melhores instalações, aumento do
salário dos Lentes passando de 10 mil a 30 mil réis, criação de novas cátedras e
diversas medidas tendentes a aumentar e melhorar o quadro docente. Neste
sentido intensificou, subsidiando, a frequência de Escolas afamadas na Europa
pelos estudantes portugueses. Este movimento da presença de portugueses no
estrangeiro, auxiliados, economicamente, por meio de “Bolsas” atingiu o ponto
máximo entre 1521 e 1550, isto é, desde o início do reinado de D. João III,
podendo afirmar-se que alguns, e não poucos, desses “Bolseiros” vieram a ter
enorme prestígio a nível internacional.
Porém, este aspecto, integrado na Reforma de D. João III, quando a
Universidade se fixou definitivamente em Coimbra (1537), será, oportunamente,
objecto de algum desenvolvimento numa 3ª parte.