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12 PÁTIO ANO X Nº 38 MAI/JUL 2006 Lino de Macedo CAPA UMA QUESTÃO DE ESCOLHA 12 PÁTIO ANO X Nº 38 MAI/JUL 2006 “Matéria licenciada exclusivamente à Secretaria da Educação do Estado de São Paulo para uso no site do programa ‘São Paulo faz escola’. É estritamente vedada sua reprodução parcial e/ou integral por terceiros”

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Ementos (o oxigênio) possibilita, do começo ao fim, a

nossa existência física. A vida social, só para ficar-

mos em um dos ensinamentos de Marcel Mauss, de-

pende de um eterno fluxo transitivo entre o dar, o

receber e o retribuir. Do ponto de vista biológico, a

gestação feminina depende, por causalidade, de uma

parte (o espermatozóide) que só se encontra no sexo

masculino. A mútua dependência ou a interdepen-

dência que nos caracteriza (apesar de nós) não se

verifica como necessária nos seres “imortais”. O cris-

tal, por exemplo, é um minério que pode sustentar –

“para sempre” — sua condição sólida, como um tipo

de vidro que só se parte ou se transforma por atua-

ção de agentes externos a ele (dentre os quais o ser

humano e todos os seus interesses).

O que isso tem a ver com escolha? Se uma par-

te de nós está fora e se queremos nos manter como

um todo, é necessário (em uma condição mínima ou

máxima) que escolhas sejam feitas (quaisquer que

sejam seus modos ou motivos de expressão). O que

escolher? Como escolher? Por que escolher isso ou

aquilo? A qualidade ou razão de uma escolha — cons-

ciente ou inconsciente — define, por antecipação, o

que será, para melhor ou pior, de nossa vida ou da

vida do grupo a que pertencemos. Não por acaso,

aprender ou poder fazer escolhas com liberdade é um

dos direitos mais requeridos pelos seres humanos.

Sofrimento, doença, morte, injustiça ou restrição de

qualquer ordem, nesse sentido, são manifestações

de um sentimento de que nossas possibilidades de

escolha tornaram-se negadas ou cerceadas. Contu-

do, ter de ou poder escolher é assumir riscos, é tor-

nar-se responsável por nossas escolhas e suas conse-

qüências. E se os outros escolhem por nós, inscre-

vem-se em nós seus interesses, hábitos ou valores

dá no mesmo, pois isso agora é parte de nós e requer

de nós novas formas de compreensão ou realização

daquilo que nos tornamos por suas escolhas.

Por que escolhas diárias? Uma razão particular

para isso é que escolhas são sempre feitas (mesmo

que não tenhamos consciência delas). A cada respi-

ração, por exemplo, nosso modo de fazê-la determi-

na um tipo de conseqüência. A cada vez que olhamos

Ilustração: Tatia

na Sperhacke/foto orig

inal:

©

iS

tockphoto.com

/M

ikhail

Lavrenov

Desenvolver a inteligência significa saber, poder e

querer exercitá-la infinitas vezes no contexto das

experiências de nosso cotidiano e dos contextos

genéticos e socioculturais que as possibilitam

m 1997, a Pátio publicou um número sobre

inteligência. Tive a oportunidade de escre-

ver o artigo Inteligência: todos podem apren-

der. Relendo-o agora, já que a Pátio, em seu

décimo ano, acertadamente decidiu voltar

ao tema, gostei da ênfase dada à inteligência como

abertura para todos os possíveis. Sobre isso, nada

me ocorre para acrescentar ou corrigir. De fato, se

entendermos ou praticarmos a inteligência em suas

infinitas formas de ser ou de se tornar, então, quem

sabe, nossa vida, por mais que limitada ou difícil,

haverá de encontrar ou criar um outro jeito de reali-

zar ou compreender os desafios e a ventura de sua

existência.

Naquela época, no entanto, só me ocorreu co-

mentar sobre um dos lados da questão. Busco com-

pletar minhas idéias agora analisando o tema como

necessário (e não só possível), ou seja, aquilo que

não pode não ser em um sistema, aquilo que deve

ser, seja por razões de coerência, antecipação, con-

seqüência ou causalidade. Em síntese, somos todos

inteligentes (porque devemos sê-lo em algum nível),

todos temos de ser inteligentes. Mas o que é inteli-

gência? Como compreendê-la em seu modo necessá-

rio? Por que será sempre um tema fundamental, so-

bretudo para nós, pais e educadores, comprometi-

dos com o favorecimento das melhores condições para

o desenvolvimento da inteligência de nossos filhos

ou alunos? Voltar ao tema neste ano é, por isso, mais

do que uma feliz coincidência com o aniversário da

Pátio; é algo necessário para todos nós que vivemos

no Brasil.

Por que temos de fazer escolhas diárias? Uma

razão geral para isso é a nossa própria condição de

ser vivo. Somos (incluindo-se aí os vegetais e todos

os outros animais) — para continuar vivos — seres de

complementaridade ou interação: uma parte de nós,

porque nos complementa como todo, está sempre fora

de nós (nos outros, na natureza, nas coisas). O oxi-

gênio de que precisamos depende, em nosso caso,

da respiração de um ar que o contenha. Ele é um

legado das estrelas que, ao explodirem, espargem

pelo universo suas cinzas, das quais um de seus ele-

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para uma pessoa ou coisa, a maneira

como o fazemos implica um modo

de agir ou reagir do outro ou de

nós mesmos. Inteligência,

então, é uma função que

caracteriza nossa condição

geral ou particular de,

como seres vivos, fazer-

mos escolhas que a deter-

minem ou possibilitem

sua conservação e, mais

que isso, sua transforma-

ção. A inteligência dos

seres humanos, ainda que

mantendo a mesma função,

se expressa por estruturas que

são próprias a eles e que vari-

am, como extensão, realização e

compreensão, segundo diferentes for-

mas. Para Piaget, por exemplo, essas for-

mas são ordenáveis em estádios qualitativamente

diferentes (sensório-motor, simbólico pré-operatório,

operatório concreto e formal ou hipotético-deduti-

vo). Outros autores quantificam, por meio de tes-

tes, as formas e as variedades de inteligência e a

imaginam como algo predeterminado e insensível à

experiência. Outros ainda pensam a inteligência

como um outro nome para nossa necessidade e pos-

sibilidade de aprender, sujeitas às contingências que

determinam nossas experiências, cujo contexto fa-

vorece ou perturba seu desenvolvimento em uma di-

reção ou em outra.

Agir em função das escolhas que

fazemos ou reagir às escolhas que

são feitas por nós supõe coor-

denar pontos de vista. Este é

o segundo aspecto que que-

ro enfatizar. Ou seja, ser

ou tornar-se inteligente

implica fazer escolhas e,

por extensão, coordenar

perspectivas. Escolher,

como já lembrei, é assu-

mir riscos, é ganhar algo

e, por isso, perder ou se

afastar daquilo que se lhe

opõe. É impossível ser dife-

rente. Quem escolhe perde, ao

menos por ora, aquilo que está

fora, no espaço e no tempo, dos

limites de sua escolha. Não podemos

ler ou assimilar tudo o que está escrito

em um texto, porque ele permite

diferentes interpretações, por-

que jamais podemos dominar

todas as significações que

seu autor quis lhe dar (até

porque ele mesmo não tem

consciência ou interesse

em todas elas), porque ler

é destacar partes de um

texto e reorganizá-las em

função de nosso objetivo

ou possibilidades de leitu-

ra. Mais que isso, quem es-

colhe tem, como conseqüên-

cia, o problema de se reorga-

nizar — como parte ou como todo

— em função daquilo que agora é

seu, em função do que foi escolhido.

Coordenar pontos de vista significa o tra-

balho de nossa inteligência em regular, transformar,

modificar-se face ao que escolhemos ou ao que as

circunstâncias de nossa vida e os outros escolhem por

e para nós. Escolher, nesse sentido, é tornar-se res-

ponsável. É considerar as conseqüências daquilo que

fazemos ou pensamos. É admitir que somos mobiliza-

dos, que mobilizamos e que colocamos em movimen-

to muitas coisas em função de nossas escolhas, mes-

mo que não saibamos ou que não tenhamos consciên-

cia disso. Livres e responsáveis — de preferência com

alegria e leveza, com calma ou clareza — eis o desafio

dos seres humanos que podem ser, graças à

sua inteligência, o melhor de si mesmos!

E pensar que a maioria de nós não

se sabe assim, não pode ou não

quer ser assim!

Passo agora ao último

ponto de minha reflexão.

Como desenvolver a inte-

ligência? Como favorecer,

como pais ou educadores,

a inteligência de nossos

filhos ou alunos? Quais

são os fatores que promo-

vem o desenvolvimento da

inteligência? Não vou con-

siderar aqui as questões ge-

nética e sociocultural que, de

fato, limitam ou amplificam as

possibilidades de desenvolvimen-

to e de expressão da inteligência.

Ser ou tornar-se

inteligente

implica fazer

escolhas

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Quero restringir-me ao problema da

experiência e do exercício como

dois outros fatores fundamen-

tais. Essa escolha decorre de

uma outra, que fiz aos 18

anos, cursando o primeiro

ano de um Curso de Peda-

gogia, graças aos profes-

sores Zélia Ramozzi

Chiarottino e Carlos

Funari Prósperi (em me-

mória), de devotar minha

vida profissional ao estu-

do da inteligência na pers-

pectiva de Piaget e da psi-

cologia do desenvolvimento.

Como aprender (melhor seria

apreender) ou desenvolver o ra-

ciocínio lógico? Como encontrar ra-

zão ou coerência em nossos modos de agir

ou compreender nas infinitas teias que caracterizam

o percurso de nossas vidas? Como não se perder ne-

las? Como se reencontrar nelas? Porque fazer esco-

lhas e coordenar perspectivas significa realizar um

caminho, decidindo ou sendo decidido nas muitas en-

cruzilhadas que o definem como modos de roteiro ou

de desfecho.

Se inteligência também se refere à lógica, como

a desenvolvemos (a lógica ou a inteligência) não ape-

nas como disciplina ou linguagem científica, mas como

forma de vida, cujas escolhas diárias definem quem

ou como somos? Piaget tinha uma maneira provo-

cativa, creio, de agradecer à experiência pelo que

nos possibilitava ou impedia a esse respeito. A expe-

riência, de fato, por mais intensa e duradoura que

seja, nem sempre nos ensina sobre suas próprias

contradições, que só sabem repetir e perpetuar nos-

so sofrimento e o sem sentido de nossas vidas e de

nossas escolhas. Para ele, a lógica e a matemática,

como construções humanas e necessárias, deviam a

algo que só podia ser “pseudoempírico”. Elas não

estão na experiência, ainda que só possam ser abs-

traídas ou generalizadas a partir dela. Uma escolha,

nesse sentido, se expressa por um agir, que é mais

um resultado da escolha do que ela própria. Onde

está, em uma experiência particular, a coordenação

de perspectivas? Isso nos remete ao exercício.

Desenvolver a inteligência significa saber, po-

der e querer exercitá-la infinitas vezes no contexto

das experiências de nosso cotidiano (bem como dos

contextos genéticos e socioculturais que as possibili-

Agir em função

das escolhas

supõe coordenar

pontos de vista

MACEDO, L. de. Ensaios pedagógicos: como

construir uma escola para todos? Porto

Alegre: Artmed, 2005.

MACEDO, L. de; PETTY, A.L.S.; PASSOS, N.C.

Aprender com jogos e situações-proble-

ma. Porto Alegre: Artmed, 2000.

tam). Por que exercício? Porque a inte-

ligência lógico-matemática, insis-

to, não está na experiência, ain-

da que seja adquirida nela. Ler,

no sentido que estou valori-

zando neste artigo, signifi-

ca, por exemplo, compre-

ender um texto e, mais

que isso, pouco a pouco e

em um processo sem fim,

aprender a fazer escolhas

e coordenar perspectivas

que tornam a leitura um in-

finito e eterno processo de

conhecer e saber o mundo. Em

uma perspectiva prática, pais

e mães, mesmo que não o sai-

bam, no cotidiano das relações com

seus filhos, exercitam — impedindo ou

favorecendo — um universo de escolhas e co-

ordenação de perspectivas. Os professores fazem o

mesmo no cotidiano de suas aulas, pelos modos como

agem e reagem às propostas e às condutas de seus

alunos. Estes observam, sentem, disputam, tentam

outras possibilidades, e quiçá consigam desenvolver

sua inteligência e, assim, como qualquer ser vivo,

realizem esse raro privilégio — nem sempre bem apro-

veitado — de desfrutar sua humanidade.

● Lino de Macedo é professor

do Instituto de Psicologia da USP.

[email protected]

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CAPA

Maria Thereza Marcilio

Mônica Samia

MÚLTIPLOS CAMINHOS

ENSINAR PARA A

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Ilustração: Tatia

na Sperhacke

COMPREENSÃO E OS

PARA A APRENDIZAGEM

No marco didático ensinar para a compreensão,

o critério de êxito é o desempenho dos alunos,

definido a partir de uma concepção de aprendizagem

que significa compreender, ou seja, pensar,

agir e sentir flexivelmente

Diante desse cenário, no contexto institucional,

há que se fazer uma escolha: ignorar tais descobertas

ou reconhecê-las e buscar um novo modelo de escola.

Deparamo-nos, então, com um enorme problema no fun-

cionamento das instituições educativas: se elas são ins-

tituições coletivas, como organizar o ensino — as roti-

nas, os grupos, os currículos e os programas — conside-

rando as diferentes maneiras de aprender? O primeiro

passo é assumir que este é um desafio urgente, pois de

outra forma o modelo de ensino permanecerá alicerçado

em um pressuposto falso em relação à aprendizagem.

Em uma visão sistêmica, consideramos estar aí um dos

motivos do fracasso da escola: insistir em ensinar a to-

dos de uma só maneira e no mesmo ritmo.

COMO ORGANIZAR A PRÁTICA PEDAGÓGICA

CONSIDERANDO AS INTELIGÊNCIAS MÚLTIPLAS?

Foi fazendo perguntas similares a esta que a equipe do

Projeto Zero, liderada pelo professor Gardner, iniciou

uma investigação que buscava estreitar a distância en-

tre as teorias sobre aprendizagem e os processos de

ensino. Assim, pesquisando o que faziam os professores

bem-sucedidos em suas aulas, nasceu o marco didático

denominado ensinar para a compreensão. O critério de

êxito é o desempenho dos alunos, e este é definido a

partir de uma concepção de aprendizagem que, na lin-

guagem dos pesquisadores, significa compreender, ou

seja, pensar, agir e sentir flexivelmente.

Este é um dos grandes desafios da escola contem-

porânea: assumir que diferenças nos estilos de apren-

dizagem não são problemas, mas forças e possibilidades.

É nesse ponto que a teoria das inteligências múltiplas

pode ajudar na proposição de um ensino mais eficaz.

Ensinar para compreensão é fruto de uma investigação

que procura a coerência entre essa concepção de in-

teligência e a prática pedagógica. Alguns princípios ser-

vem para nortear a prática:

As decisões sobre como ensinar que o pro-

fessor toma ao enfrentar a complexidade do

universo de uma sala de aula refletem suas

concepções, seus preconceitos, sua visão

de mundo. Elas respondem a questões como:

para que serve a escola? Qual a relevância daquilo que

ensino? Como o sujeito aprende? Todos podem apren-

der? Como lidar com tantas diferenças? Como posso en-

sinar aos alunos para que realmente aprendam? Este

artigo propõe analisar como os processos de ensino são

uma conseqüência — consciente ou não — das crenças

sobre o processo de aprendizagem, a partir de uma con-

cepção sobre inteligência, e como isso tem um impacto

na prática pedagógica.

As concepções sobre inteligência sofreram, ao lon-

go do tempo, muitas transformações. Na atualidade, ela

continua sendo objeto de estudos e pesquisas. Fare-

mos uma opção pela teoria das inteligências múltiplas

desenvolvida pelo professor Howard Gardner. Ele pro-

põe uma teoria que assume uma visão pluralista da men-

te, ou seja, a estrutura da mente humana é comum a

todos os indivíduos, mas o seu funcionamento é único.

Privilegia, ainda, um enfoque cultural: passa-se de uma

visão individualista da inteligência para uma visão

contextualizada. Segundo Gardner (2001), à medida que

uma capacidade é valorizada em uma cultura, ela pode

contar como uma inteligência; porém, na ausência des-

se endosso cultural ou de campo, a capacidade não

seria considerada uma inteligência, e a inteligência ou

inteligências são sempre uma interação entre as incli-

nações biológicas e as oportunidades de aprendizagem

que existem em dada cultura. Outra contribuição des-

sa teoria é a visão expandida da inteligência, o que sig-

nifica que ela existe também fora do corpo físico do

indivíduo. Os seres humanos não trabalham sozinhos,

usando vários elementos do seu entorno essenciais às

suas atividades. Assim, faz sentido pensar neles como

parte do equipamento intelectual do indivíduo.

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CAPA

1. Torne os alunos conscientes de suas forças e habili-

dades. Utilize as inteligências múltiplas para apóia-los e

não para classificá-los. Eles devem conhecer as diferen-

tes inteligências, identificando-as em suas preferências

e habilidades, nas formas como resolvem problemas. Se

tiverem essa consciência, também poderão apoiar os

professores na escolha das estratégias que melhor aten-

dam ao grupo e sejam geradoras de aprendizagem. Isso

implica uma nova relação de poder na sala de aula: o

professor assume o papel de guia e orientador, manten-

do uma interlocução permanente com os alunos.

2. Estimule a cooperação e a autonomia dos alunos. É

necessário que se construa um ambiente cooperativo, o

qual estimule o desenvolvimento da autonomia. Mais uma

vez, retoma-se a idéia de protagonismo: o professor apóia

o aluno, criando condições para que este tenha ferra-

mentas que lhe permitam alcançar determinadas metas

de aprendizagem, que se sinta comprometido com seu

próprio processo, além de compreender que pode apren-

der com a diferença, muitas vezes personificada em seus

colegas, que têm formas de aprender diferentes das suas.

3. Compartilhe as metas de aprendizagem. Uma das ta-

refas importantes do professor é selecionar o que é

central na abordagem de um conteúdo e direcionar o

ensino para esses aspectos. Na sociedade con-

temporânea, o essencial não é a quantida-

de de informações, mas sim saber

encontrá-las e utilizá-las, o que sig-

nifica perguntar, duvidar, analisar,

experimentar, errar, imaginar; em

resumo, aprender a aprender.

Traçar metas orienta o cami-

nho, tanto no que se refere

ao alcance quanto à profun-

didade e direção da inves-

tigação. Além disso, compar-

tilhar essas metas com os

alunos ajuda-os a se com-

prometer com seu próprio

processo de aprendizagem,

além de tornar possível sua

auto-regulação.

4. Elabore atividades (desempe-

nhos) que vão além da informação,

sejam diversificadas e apresentem

níveis progressivos de profundidade. Co-

locar o conhecimento em prática, em dife-

rentes situações e de maneiras diversas, constitui o pi-

lar da aprendizagem para a compreensão. A prática pe-

dagógica deve privilegiar tarefas intelectualmente esti-

mulantes, envolvendo os alunos para que possam ex-

pandir, reconfigurar e aplicar seus conhecimentos, tal

como explicar, demonstrar, dar exemplos, fazer analo-

gias, estabelecer relações. Devem fazê-lo de maneira

reflexiva, recebendo retroalimentação que lhes permi-

ta progredir. Esta pode ser oferecida pelo professor,

pelos colegas, por materiais ou fichas de auto-avalia-

ção. As atividades devem variar desde aquelas que colo-

cam em jogo as concepções iniciais dos alunos até aque-

las que exigem sínteses e elaborações mais profundas.

5. Utilize diferentes estratégias e recursos de ensi-

no. Realizar uma prática que envolva múltiplas estra-

tégias de ensino conduz a melhores resultados na

aprendizagem A complexidade do ato de aprender

exige tempo, múltiplas experiências e apoio constan-

te. Além disso, considerando que compreender é usar

o conhecimento flexivelmente, a variedade de situa-

ções permite que se estabeleçam diferentes cone-

xões. Trazendo novamente a visão expandida da inte-

ligência, podemos inferir que a possibilidade de com-

preender bem algo está intimamente relacionada aos

recursos disponíveis.

6. Utilize diferentes “pontos de entrada” para a apren-

dizagem. Um dos grandes desafios do professor, segun-

do Meirieu (1998), é gerar no aluno a necessidade de

aprender, fazer com que nasça o desejo de aprender.

Uma maneira de conquistar isso é elaborar diferentes

formas de ensino para um mesmo conceito. Decidir qual

é a melhor forma de apresentar um conteúdo é muito

importante.

Um professor competente, além de do-

minar o conteúdo, conhece os melho-

res meios de alcançá-lo. Por isso,

está sempre atento para buscar

recursos que ajudem os alunos

a acessar os conteúdos de múl-

tiplas maneiras. Se eles vêem

um tópico através de uma

única perspectiva, é prati-

camente certo que esse

conceito terá uma dimen-

são rígida e o seu uso será

limitado.

Gardner (2000) iden-

tificou pelo menos seis

“pontos de entrada” ao co-

nhecimento, que ajudam os

alunos na aprendizagem de de-

terminados conteúdos. São eles:

● narrativo: o conteúdo é acessado

pelos elementos narrativos do tema

(vídeos, filmes, histórias, entrevistas, etc.);

● lógico-quantitativo: enfoca-se o conceito recorren-

do a considerações de ordem numérica ou de proces-

sos dedutivos;

● experiencial: envolve habilidades ou experiências fí-

sicas, como usar o corpo, manusear os materiais que

incorporam ou transmitem o conceito;

Diferenças

nos estilos de

aprendizagem

não são problemas,

mas forças e

possibilidades

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SAIBA

+GARDNER, H. Estruturas da mente: a teo-

ria das inteligências múltiplas. Porto Ale-

gre: Artmed, 1994.

GARDNER, H. e COLS. Utilizando as compe-

tências das crianças. Porto Alegre: Artmed,

2001. (Projeto Spectrum, v. 1.)

GARDNER, H. e COLS. Atividades iniciais de

aprendizagem. Porto Alegre: Artmed,

2001. (Projeto Spectrum, v. 2.)

GARDNER, H. e COLS. Avaliação em educa-

ção infantil. Porto Alegre: Artmed,

2001. (Projeto Spectrum, v. 3.)

● estético: a ênfase recai nas características sensoriais

(cores, linhas, formas, expressão e composição);

● fundacional ou existencial: aborda a face filosófica

dos conceitos;

● social cooperativo ou interpessoal: privilegia as expe-

riências sociais (debater, argumentar, apresentar alter-

nativas distintas, desempenhar diversos papéis).

Fica evidente que, assim como as diferentes inte-

ligências relacionam-se, isso também acontece com os

“pontos de entrada”: é possível identificar aspectos

predominantes de um ou outro, mas sempre há uma

relação entre os elementos.

7. Comprometa-se com uma avaliação diversificada. Qual-

quer prática comprometida com os processos de aprendi-

zagem deve centrar-se na busca de evidências de que os

alunos estão aprendendo. A avaliação é um componente

do processo de aprendizagem, sua função é oferecer sub-

sídios para que os alunos monitorem e aprofundem sua

compreensão. Para isso, é necessário que ela seja contí-

nua, que ofereça momentos de retroalimentação, que es-

teja estreitamente articulada com as metas de aprendiza-

gem, que tenha critérios claros e compartilhados e que

seja composta de instrumentos diversificados, com ênfase

nas forças dos alunos, e não em suas fraquezas. A padroni-

zação dos instrumentos é incoerente com a concepção

das inteligências múltiplas.

Na verdade, o que essa abordagem didática pre-

tende é uma transformação da escola, não apenas no

campo didático, como mais uma “novidade” para que

tudo permaneça igual. Ela pressupõe uma mudança na

cultura institucional, englobando valores, crenças, lin-

guagem, papéis representados pelos diferentes atores

sociais e nas relações de poder. É preciso que a escola

coloque-se como agência responsável pelo desenvolvi-

mento de homens e mulheres capazes de entender o

mundo em que vivem, de enxergar os problemas que

afligem a humanidade e de encontrar soluções que per-

mitam a continuidade da história e a convivência solidá-

ria e cooperativa. É preciso que ela se comprometa

com a formação de sujeitos sensíveis às limitações da

condição humana, que possam construir sistemas soci-

ais mais justos. Sem alterar a dimensão profunda da cul-

tura institucional, os processos educativos e a organi-

zação da escola permanecerão inalterados ou mudarão

apenas na forma.

Em síntese, um dos caminhos para uma escola de

qualidade é encurtar as distâncias entre teoria e práti-

ca, entre professor e aluno, entre ensino e aprendiza-

gem, entre informação e compreensão, entre escola e

vida. Aceitar esse desafio significa comprometer-se com

uma tarefa que é descrita por Meirieu (1998) como ge-

rir a escola para que todos os alunos aprendam, man-

tendo a riqueza das suas diferenças.

REFERÊNCIAS

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GARDNER, H. Inteligências múltiplas: a teoria na prática. Por-

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POGRÉ. P. Ensinar para a compreensão. Pátio — Revista Peda-

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35, p. 16-19, 2005.

WISKE, M.S. La enseñanza para la comprensión: vinculación

entre la investigación y la práctica. Buenos Aires: Paidós, 1999.

● Maria Thereza Marcilio é mestre em

Educação pela Harvard Graduate School

of Education e coordenadora do Núcleo

de Educação da Avante — Educação

e Mobilização Social.

[email protected]

www.avante.org.br

● Mônica Samia é pedagoga,

psicomotricista e responsável pelo Grupo

de Formação de Educadores do Núcleo

de Educação da Avante — Educação

e Mobilização Social.

[email protected]

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