literatura brasileira da contemporaneidade: um...
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Programa de Pós-Graduação em Linguagem e Ensino 1
ANAIS ELETRÔNICOS ISSN 235709765
LITERATURA BRASILEIRA DA CONTEMPORANEIDADE: UM DEBATE SOBRE AS NOVAS FORMATAÇÕES E SUA INSERÇÃO NO
CONTEXTO ESCOLAR
Patrícia Valéria Vieira da Costa (PPGLI-UEPB)1
RESUMO
O presente artigo tem como finalidade versar sobre os conceitos e manifestações literárias na atualidade, no contexto brasileiro. Considerando o meio literário um grande refrator de debates sociais e/ou culturais, pretendemos, por meio desse estudo, elaborar um panorama que indique as novas e múltiplas formatações literárias, que acompanham as mudanças de um mundo “plural”. Para tanto, traremos recortes temáticos de contos e romances da contemporaneidade, no intuito de discutir as definições da “escrita marginal”/paraliteratura, como pertencentes ou não ao campo do literário, além de debatermos sobre como essas manifestações tem tomado espaço e representado, de maneira abrangente, os movimentos sociais que pertencem à cultura do nosso país. Objetivamos, por fim, mostrar a importância do estudo das escritas pormenorizadas, ressaltando que estas reconfiguram os diversos espaços que constituem a nossa sociedade, grifando assim a sua importância no acervo de leituras no contexto escolar. Para isso, elaboraremos um tecido teórico de discussões sobre literatura da contemporaneidade e suas diversas variantes de gênero e constituição interna, por meio de ideias como as de Ludmer (2007) e sua teoria de Literaturas pós-autônomas, além de teóricos e críticos como Dalcastagnè (2012); Justino (2007); Klinger (2007); Cury (2007), Giraldo (2007); Cortázar (1983); Pires (2008), dentre outros.
PALAVRAS-CHAVE: Manifestações literárias. Escrita Marginal. Paraliteratura. Contexto Escolar.
1 A autora é mestranda em Literatura e Interculturalidade pelo Programa de Pós Graduação em
Literatura e Interculturalidade da Universidade Estadual da Paraíba.
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1 INTRODUÇÃO
Como disse Julio Cortázar, “É preciso nomear (porque nomear é apreender)”
(CORTÁZAR, 2008, p. 63). Essa parece ser uma necessidade que impulsiona muitos dos
críticos e teóricos da literatura: Pôr limites, “tipologar”. Se essa atividade não tem sido
fácil (basta olharmos os percursos históricos como faz Cortázar, principalmente nas
diferenciações do romance entre os séculos XVII-XX), atualmente ela tem se tornado
cada vez mais infrutífera, tanto para delimitar o romance como outros gêneros como o
conto.
Quanto ao conto, percebemos essa dificuldade até em manuais mais práticos
de ensino na academia, como é o caso de “Teoria do Conto”,de Gotlib (2004), que faz
parte da série Princípios e por universitários é tido como um meio simples e
esclarecedor de estabelecer conceitos. Numa leitura mais acurada, percebemos que
este livro parte de concepções formuladas, como quando traz três acepções da palavra
conto unindo-as pela definição de que “são modos de contar alguma coisa, e enquanto
tal, são todas narrativas.” (GOTLIB, 2004, p. 10), para no decorrer do livro grifar as
variadas definições sem alcançar um denominador comum, como inocentemente se
espera. O título sugestivo utilizado no singular é, no fim do livro, substituído por sua
variação no plural, teorias do conto.
Para o romance, trazemos a priori a concepção de Moretti (2009), em seu
trabalho intitulado “O romance: História e Teoria.” Esse teórico parte de princípios
clássicos de definição quanto a prosa, admitindo-a como sendo, diferentemente da
poesia, uma produção de caráter não simétrico e consecutivo, fruto de um trabalho de
adequação entre as partes, memória e etc., que atribui ao romance uma complexidade
na ação de narrar. Ao considerar a premissa básica de que o romance é extenso,
Moretti inicia sua problematização partindo da consideração de que existe uma família
de formas instituídas pelo romance, mas que provavelmente não existe um ramo
principal para tal. No entanto, nos parece que o ponto mais relevante para esta
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atividade seja o foco que o autor dá à diferenciação das produções de Romance entre
a China e a Europa. As diferenciações grifadas por ele nos saltam aos olhos como que
para mostrar os modos divergentes de realização do romance entre essas duas
regiões desde meados do século XVII até as produções modernas.
É exatamente embasado nessas dificuldades de definição, principalmente na
contemporaneidade, dos gêneros literários, que este artigo pretende solidificar sua
discussão. No primeiro momento, pretendemos mostrar, por meio de uma discussão
teórica, como as definições do conto e do romance, em detrimento ao contexto de
produções literárias contemporâneas, parece uma atividade improdutiva. No segundo
momento, expomos na prática a diversificação dos modos de produção de contos e
romances que, num primeiro contato, podem confundir um leitor desavisado. Por fim,
exporemos como esses novos modos de se fazer literário refletem socialmente,
grifando sua importância no contexto escolar.
2 A PROBLEMÁTICA DA DEFINIÇÃO DE GÊNERO LITERÁRIO NA
CONTEMPORANEIDADE
2.1 Sobre o Conto
Piglia (2004), com a intenção primeira de quebrar a concepção tradicional,
condensa em duas teses o que vem a ser o conto, a partir de produções clássicas como
as de Edgar A. Poe. A primeira caracteriza o conto como um tecido entre duas histórias
paralelas, uma na superfície e outra secreta, que se encontram em pontos de
interseção. Posteriormente ele elenca a segunda, a de que a história secreta é a chave
para o conto, ou seja, o não dito, a alusão e o subentendido passam a ser os elementos
essenciais para a constituição do conto. Ao se utilizar posteriormente de contos como
os de Jorge Luís Borges para fundamentar seu posicionamento, Piglia (2004) arremata
as duas teses, considerando que o conto é um relato breve que é constituído em
tensões rumo ao final secreto. Essas tensões são tecidas num jogo narrativo que
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quebra a consideração simplista, como colocado inicialmente. É claro que fazer uso de
contos como os escritos por Borges é uma “mão na roda” para sublinhar essas teses,
que parecem fazer sentido, ao mesmo tempo em que, se postas como tentativa de
elaborar uma concepção para o conto de maneira geral, podem facilmente ser
questionadas.
Teles (2002), por sua vez, ingressa neste desafio de estabelecer uma teoria
sobre o conto também por meio das concepções tidas por vários teóricos, críticos e
escritores. Partido de uma definição inicial, de que o conto tem um sentido unitário de
estrutura narrativa, Teles (2002) vai caminhando pelas concepções, que aqui trazemos
de maneira reduzida: Silvio Romero (conto como um gênero pequeno e elementar);
Araripe Júnior (Conto como uma forma primitiva da prosa); Oswaldo Orico (Conto
como um soneto: tamanho determinado e tema específico) Mário de Andrade (Forma
de prevalecer sempre esteticamente sobre o assunto); Julio Cortázar (sentido do conto
como dependente dos valores atribuídos ao poema e ao jazz; ritmo, tensão, pulsação
interna, imprevisto, etc.) dentre muitos outros.
Em meio a tantas formulações, o que nos parece prevalecer é que Teles (2002),
em meio a sua argumentação, demonstra sempre retomar a concepção que ele traz
tanto de Horácio Quiroga, quanto posteriormente de Mário de Andrade, a de que em
síntese, o “Conto é o que o autor diz que é Conto”. Esta concepção se mostra tão
fundamentada por Teles (2002) que chega a fazer parte do seu próprio discurso,
quando o vemos afirmar que a distinção não tem limites rígidos, sendo que esta é
sempre dada pelas preferências e critérios do autor.
Quando Galvão (1983) elenca suas cinco teses sobre o conto e parte daí por
uma visão primeira do conto como a ação de contar, acaba por colocar em xeque (em
específico nas produções nacionais de conto) as tensões conceitualistas entre os
contos enquanto anedota (escritos para a publicação jornalística, de forma reduzida e
por isso pouco propenso a ousadias e inovações) e os contos como atmosfera (núcleo
firme de enredo, desfecho determinante, criação de estados de espírito, elementos
fragmentados) para sublinhar a predominância simples e jornalística dos contos como
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anedota na literatura brasileira atual (no caso, na época da sua publicação). Claro que,
para confirmar ou não essa tese, seria necessário nos debruçarmos sobre um
levantamento de contos escritos nesta época em específico, o que não cabe para esta
atividade. No entanto, mais uma vez os limites do conto parecem ser contestados.
2.2 Sobre o Romance
Iniciemos por Giraldo (2007), que problematiza uma maneira de realização do
romance contemporâneo em relação à mistura de gêneros, ou, como ele coloca, as
“Obras híbridas”. Tendo como corpus de pesquisa as produções de Roberto Bolãno, o
autor elenca características cabíveis a diversas produções atuais, como as de autores
como Cortázar e Octávio Paz. Dentre muitas, Giraldo trata da mistura entre crítica e
ficção como uma marca patente, elemento constituinte da tessitura da narrativa, que
torna o romance de certa forma inclassificável para “caber” em moldes de num gênero
limitado. Essa tendência à hibridez, como coloca o autor, se dá principalmente na
constatação do teor biográfico e/ou crítico ao mesmo tempo que ficcional das obras
contemporâneas, maneira esta que possibilita a literatura falar de si própria, como é o
caso de Bolãno e tantos outros como Borges, por exemplo.
Klinger (2007) trata este teor “híbrido” como sendo um retorno do autor (em
relação a sua “morte”, no século XX). Ao elencar a auto-ficção como característica
contemporânea para os romances, a autora problematiza o que foi já colocado por
Giraldo (2007) entre as fronteiras do “real” e do ficcional, e centra a discussão para a
presença nos romances em detrimento a outros gêneros como a autobiografia,
memórias, diários, e etc., como marcas de um suposto “eu” na ficção. Aqui, nos vale
lembrar também do discurso de Bakhtin quando coloca essa tendência como já
pertencente ao romance:
Qualquer gênero pode ser introduzido na estrutura do romance e, de fato, é muito difícil encontrar um gênero que não tenha sido alguma vez incluído num romance por algum autor (...) Todos esses gêneros que entram para o romance introduzem nele suas linguagens e, portanto, estratificam sua unidade linguística e aprofundam de novo
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modo seu plurilinguismo. (BAKHTIN, 1988, apud MACHADO, 1990, p. 138)
De fato, parece-nos que certo “hibridismo” permeia as produções romancistas,
e se essa tendência foi algo que de forma mais superficial já existiu em produções
historicamente mais antigas, atualmente ele vem com força total, marcando em
definitivo sua presença. Em “novas geografias narrativas”, de Cury (2007), temos um
panorama da produção brasileira que de maneira ampla recorre a novos modos de
realização do romance. Partindo da premissa de que a produção contemporânea não
possui uma vertente fundadora, Cury (2007) elenca características da ficção brasileira,
a começar pela raiz estabilizada no solo urbano. A escrita para as grandes cidades
passam por mudanças na forma de se dizer, e dessa maneira reformulam gêneros: “O
espaço da cidade assume feição performática, exibindo cenas rápidas, sketches que
rompem com formas enunciativas consagradas, deslocando técnicas e gêneros
narrativos, sob o olhar de narradores também eles condenados ao seu movimento
vertiginoso.” (CURY, 2007, p. 9)
A violência, a denúncia social decorrente da exclusão e a própria auto-reflexão
da literatura, como coloca Cury, parecem ser os aspectos mais pontuados pela
literatura brasileira contemporânea (e aqui, como não lembrar de Ferréz, com sua
literatura tão próxima da autobiografia, da denúncia social e por isso muitas vezes não
considerada como texto literário). Além disso, Cury grifa o caráter memorialístico,
numa mistura entre memórias coletivas e individuais, mesclando o particular e o
universal. Essa mistura nos remete a Pires (2008), quando coloca que estamos em
meio a “uma produção literária que se quer deliberadamente plural e em constante
diálogo” (PIRES, 2008, p. 60).
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3 ENTRE ROMANCE E CONTO: AS DIFICULDADES DE DEFINIÇÃO DE GÊNERO E A
REPRESENTAÇÃO DA OUTRIDADE EM CONTOS NEGREIROS, O GRANDE DEFLORADOR
E BANDIDOS E MOCINHAS
3.1 Bandidos e Mocinhas, de Nelson Motta
Bandidos e Mocinhas, de Nelson Motta, no princípio parece ser um romance
policial clássico, com único narrador, capitulação comum, uma certa linearidade. No
entanto, outras marcas sublinham as características do que hoje tem se tornado o
“romance” principalmente por duas questões abaixo discutidas.
A primeira nos remete novamente a discussão de Giraldo (2007), ao tratar da
mistura entre teor biográfico e ficção. No livro supracitado essa questão vem como
que fundamental para o próprio desfecho da trama. Isto porque o temos na narrativa
um personagem que pretende escrever sobre os acontecimentos que o cercam. Como
um autor, que busca em suas vivências artefatos para a produção da ficção, Pedro
Fortuna utiliza a história da vida real como uma espécie de autobiografia para realizar
a escrita de seu livro. O interessante, na trama, é perceber a reflexão que esta
condição imputa. Evidenciar estas marcas de autobiografia, por meio de um
personagem, problematiza uma forma de fazer narrativas que tem tomado o espaço
nas escritas contemporâneas. Além disso, essa forma de fazer o romance, para o leitor,
parece ser interessante para elencar as dúvidas quanto ao narrador, isto porque o fim
da narrativa é dado pela leitura do manuscrito de Pedro Fortuna, que além de escrever
sobre o desfecho do crime, traz em seu corpo textual um trecho que foi exatamente o
que iniciou a narrativa de Bandidos e mocinhas. Dentre as muitas possibilidades, nos
perguntamos se essa maneira de fazer não grifa a possibilidade de estamos lendo não
a narrativa de um narrador onisciente, mas o próprio livro de Pedro, uma espécie de
ficção que comporta outra.
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A segunda nos leva a discussão sobre a outridade. Ambientalizada em solo
urbano, Bandidos e Mocinhas grifa relações entre diversos sujeitos sociais. Com um
narrador em 3ª pessoa, a obra nos conduz por um passeio entre os “mundos
diferentes” postulados numa mesma cidade. A proposta do autor, ao mostrar as
relações na favela, e da favela com a classe média/alta, marca o olhar do outro sobre
as margens. Enquanto a trama principal do crime se realiza, temos como pano de
fundo certa “denúncia” que silenciosamente vai se construindo para marcar as
relações de poder entre bandidos e juízes, a corrupção por parte da lei, a
criminalidade, etc.
3.2 Contos Negreiros, de Marcelino Freire e O grande Deflorador, de Dalton Trerisan
Ao nos depararmos com obras como Contos Negreiros, de Marcelino Freire e O
grande Deflorador, de Dalton Trerisan, notamos que esta essência primordial
permanece: os contos contam algo. Para isto, basta nos determos na leitura de Vai,
Valentão e Coração, de Trevisan (2000) e Freire (2005) respectivamente. Em Vai,
valentão temos a presença de um único narrador, além de um espaço e tempo
constituídos de maneira mais “clássica”. Em Coração a narrativa é montada em ordem
cronológica, vai pouco a pouco constituindo a história de maneira linear. No entanto,
este conto também nos serve de ponto para partimos para as revisões de um conceito
clássico: o narrador. Nele, temos o inicio efetivado pela primeira pessoa, que é
quebrado no parágrafo posterior pela continuidade tomada de um narrador em
terceira pessoa: “Célio conheceu Beto na estação de trem...”. Este narrador onisciente
inicia a história do caso amoroso, que será continuada novamente pelo narrador em
primeira pessoa, no terceiro parágrafo: “Depois encontrei com ele de novo”. Temos
aqui contos que de fato contam, no entanto sua estruturação, seu modo de dizer,
revisa muitos dos conceitos clássicos, como veremos nos próximos tópicos.
A escrita de Marcelino Freire, no primeiro contato, já nos remete a uma
musicalidade, um ritmo, como já é proposto na numeração de seus contos, na obra
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chamados de “cantos”. Retomando a aproximação feita por Cortázar (2006) e grifada
por Piglia (2004), os contos de Freire parecem um Jazz. Este efeito por vezes é dado
pela aproximação da sua produção a características da poesia, um lirismo que é
envolto na estrutura de uma narrativa. As rimas se fazem presente, como vemos em
Caderno de Turismo: “O que danado a gente vai fazer em Lisboa? Bariloche ou Shangri-
lá? Translados para lá. Para cá. (...) Nuca tinha ouvido falar em Viña del Mar. Val-
paraíso. A gente não devia sair do lugar.” (FREIRE, 2005, p. 67) Da mesma forma em
Meus amigos coloridos, quando vemos: “Lembrei de novo da floresta fálica. E do dr.
Salém. Fiquei sabendo que o dr. Salém não está lá muito bem.” (FREIRE, 2005, p. 92)
Rima e musicalidade se misturam, e por vezes nos vemos acompanhando os passos,
como no final do mesmo conto acima citado: “Falo daquele negronegronegronegro ali,
rebolando.” (FREIRE, 2005, p. 97) Rebolamos junto com ele.
Outro aspecto que parece rever a questão tradicional do conto é a aproximação
das produções de Freire ao gênero dramático. Ler seus contos nos imputa criar as
ações, imaginar cenas e esta disposição para tal é formulada em primeiro lugar pela
própria estrutura: Os diálogos diretos dos personagens entre si, por vezes
entrecortados pela presença de um narrador, marcados ou não pelo sinal do discurso
(-). Como exemplo temos Linha de Tiro. Neste conto espaço, tempo, personagens e
etc. são detectados, mas sua forma de dizer é estabelecida sem a presença de um
narrador, e sim feita por um diálogo, que mais nos remete a uma encenação: “-Não
quero./ -Hã?/ Já disse que não quero./ -O quê?/ -Chocolate...” (FREIRE, 2005, p. 45)
Em segundo lugar, temos a sensação de um texto dramático pelas marcas da
oralidade exatamente pela falta de pontuação, que nos remete a uma fluência no falar
que não permite pausas, que pede fôlego, que grita o que quer dizer (dentro da
temática proposta pelo autor, é um grifo para a sua produção). Como exemplo tempos
os contos: Trabalhadores do Brasil- “Enquanto Zumbi trabalha cortando cana na zona
da mata pernambucana Olorô-Quê vende carne de segunda a segunda ninguém vive
aqui com a bunda preta pra cima tá me ouvindo bem?” (FREIRE, 2005, p. 19) e Curso
superior- “O meu medo é entrar na faculdade e tirar zero eu que nunca fui bom em
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matemática fraco no inglês eu que nunca gostei de química geografia e português o
que é que eu faço agora hein mãe não sei.” (FREIRE, 2005, p. 97)
Esse teor dramático se faz presente também nos contos de Dalton Trevisan. Em
Uma negrinha acenando temos a construção de um diálogo estruturado, que é
entrecortado pela presença de um narrador. A conversa dos dois personagens vai se
desenrolado num tecido discursivo que, como vimos também nos contos de Freire,
questionam os aspectos tradicionais: “Sandália velha de couro. Sem bolsa./ -De volta
do emprego?/- estou paquerando/ -Não diga. Faz isso todo dia?/ -Quando não
chove...” (TREVISAN, 2000, p. 7) Por vezes também encontramos nos contos de
Trevisan a dramatização feita apenas pelo locutor, como no caso de Olha Maria. Nesse
conto, o fluxo da fala do personagem nos remete a uma ação contínua, sua pontuação
recheada por pontos nos remete a uma fluência de justificativas para o ato que a
personagem está para cometer. Na tentativa de elevar sua gama de justificativas a
qualquer custo, a personagem “barra” a possível colocação de um interlocutor: “-
Olha, Maria, estão me judiando demais. Pelo amor de Deus, não abuse. Pelo amor de
minha filha, não quero ser criminoso. Vocês estão procurando. Não me façam isso.
(...)” (TREVISAN, 2000, p. 67).
A estrutura poética também é trabalhada em Trevisan. Em Querida amiga nos
sentimos mais uma vez em contato com certo tipo de oralidade, agora posta em
versos. A marca da fluência do desabafo da personagem é grifada pela falta de
pontuação, principalmente no “fim” do conto, isto por que a ausência de um ponto
final indica o ciclo de vida pela qual a personagem vive, todas as situações recomeçam:
“Chorei a última lágrima/ Com dois buracos no rosto/ Ele está chegando ouço a chave
da porta/ Começa tudo de novo ” (TREVISAN, 2000, p. 80)
Por fim, trazemos uma última característica aqui elencada: Ausência de um
núcleo central. Piglia (2004), em suas “Teses sobre o conto” grifa a tese de que “um
conto conta sempre duas histórias”. Partindo desse pressuposto, que vai de contra a
consideração clássica de que o conto contém apenas um núcleo central, temos em
Trevisan o Conto Aula de Anatomia, que nos possibilita perceber nitidamente a
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presença dessas duas histórias: “-Hoje foi a aula de anatomia. O meu primeiro cadáver.
Coberto por lençol imundo. De fora só o pé descalço. Alguém o descobriu: Com medo
menina? ‘Estou com pena.’/- Quer dar um beijinho? (...)”(TREVISAN, 2000, p. 34) Como
podemos perceber, enquanto temos narrado pela primeira personagem a aula de
anatomia, temos pelo segundo o indicativo da narrativa de uma relação sexual, que vai
se desenvolver durante todo o conto. Aqui, diferentemente da intenção de Piglia
(2004) em grifar a importância da segunda história para o desfecho, temos na verdade
o entrelaçamento de ambas como um jogo do discurso. O desfecho aqui é algo que
não se concretiza, esse conto parece querer continuar, não há um final para os
indicativos as ações que estão sendo praticadas simultaneamente.
4 LITERATURA CONTEMPORÂNEA: UMA DISCUSSÃO SOCIAL QUE NECESSITA ESTAR
NO CONTEXTO ESCOLAR
Ao perfazer o percurso proposto por este estudo, facilmente nos
questionamos: Para quem essas produções literárias atualmente estão sendo
destinadas? Um fato óbvio é que a literatura sempre foi objeto restrito à classe
intelectual. Desde as margens a produções “artisticamente” elaboradas, o destino
sempre foi o olhar mais refinado da classe dominante (aqui, tanto pessoas de fato
afortunadas quanto pessoas de amplo conhecimento cultural). Resta-nos então saber
se atualmente as produções literárias tem atingindo a grande massa populacional.
Esse questionamento se torna bastante amplo e precisa de tempo para um
levantamento estatístico para ser fundamentado. Porém, alguns pontos podem ser
levantados. O que temos presenciado atualmente é uma disputa mercadológica, uma
literatura feita sobre encaixe para atender a determinado público. Como coloca Pires
(2008), o tempo e o espaço da literatura brasileira contemporânea também segue o
ritmo do mercado editorial. No entanto, essas disputas continuam voltadas para
públicos restritos, isto porque os meios de acesso à literatura permanecem
problemáticos: as livrarias continuam a vender livros com preços exorbitantes; a
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educação pública continua, em muitas regiões, podando o acesso a livros, seja pela
ausência de tais, seja pelo despreparo dos profissionais para utiliza-los; etc. O boom da
tecnologia nos serviu como um meio que nos imputa a leitura2, entretanto, a leitura de
literatura, independente de qual parte ela advém, continua voltada para pessoas que
tenham acesso ao menos a cultura (no nosso país, raras exceções).
Por fim, temos a literatura marginal como um elemento que grita a nossa
cultura diversificada, mas nos perguntamos: Não seria esta um novo meio de produção
exótica? Não estaríamos, como num jogo de eterno retorno, escrevendo sobre
margens, ou nas margens, para um público restrito? (Aqui vale grifar as literaturas
brasileiras provindas das favelas, que tem conquistado um amplo público ledor nos
países europeus). Enquanto profissionais da educação temos o dever de levar para a
sala de aula a maior quantidade de produções literárias diversificadas, se pretendemos
que por meio da identificação com os textos, o aluno frua. Nesses termos, as obras
aqui discutidas nos rementem a refletir sobre um plano de fundo social que, por vezes,
representa a vida dos alunos, o meio em qual vivem. Ao ressignificar a sociedade a
literatura se aproxima do aluno que, de uma maneira ou outra, se encontra naqueles
escritos e por meio deles pode se desenvolver, construir um olhar crítico sobre suas
vivências.
REFERÊNCIAS
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2 Mesmo com a ampla disponibilidade de obras em formato PDF, não acreditamos no acesso assíduo de
tais por parte dos jovens brasileiros. A internet tem sido apenas um meio de entretenimento.
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