literatura e fome2

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Page 1: Literatura e fome2

LITERATURA E FOMELITERATURA E FOMEANA KIFFER

Page 2: Literatura e fome2

Plano da aulaPlano da aula

De que modo o comer e o dizer se relacionam?

Qual relação haveria entre a literatura e a fome?

A representação literária da fome insere-se em qual contexto de discussão sobre o próprio da literatura?

Como a cultura e a literatura brasileiras vem abordando essa questão?

Somente uma “literatura engajada” falaria da fome? E o que define exatamente uma literatura engajada?

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DE QUE MODO O COMER E O DIZER SE RELACIONAM?

Poderíamos começar num ponto longínquo, tal como se nos oferecem as narrativas do Antigo Testamento, perguntando: como foi que a comida operou a nossa primeira distinção enquanto mortais?

O primeiro traço que nos deu um corpo, e para tanto nos apartou de deus. A deus os seres vivos (através do sacrifício), aos homens somente os vegetais. Isso porque: Não Matarás!

Como lembra Julia Kristeva (1980), a autorização para comer a carne só aparece depois de um grande cataclismo. O Dilúvio e com ele a constatação de que o “objeto do coração do homem é o mal” (KRISTEVA, 1980).

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A separação seria a partir de agora instaurada não mais entre o vivo e o vegetal, mas sim, entre a carne e o sangue. O sangue sendo o limite que demarca a impureza do homem, mesmo sangue que deve, por conseguinte, ser purgado sendo entregue a deus. A carne a ser comida pelo homem deve ser, portanto, uma carne sem sangue, que dissipe todo e qualquer fantasma da carnificina. Lembro: não matarás! Os animais comestíveis pelo homem devem obedecer a uma taxonomia que garanta que são animais herbívoros. Para evitar que o homem coma um animal carnívoro, o campo da impureza se estende do sangue para uma série lógica e abstrata, que faz entrever, como leu Kristeva, que o puro é da ordem e o impuro da mistura, da desordem.

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A relação entre a comida e a fundação do humano é crucial. Não há como separar, nesse sentido, o que se come do que se pode ser. A constituição da humanidade do homem, no sentido mesmo de sua mortalidade e de sua separação de Deus é designada através da comida.

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Por isso muitas das figurações da fome na literatura apontam para um processo continuado de desumanizar, seja através da aproximação entre o homem e o animal (Graciliano e Josué de Castro), ou do homem monstruoso (Dante, Dostoievski, Artaud), ou do homem insano (Hamsum, Artaud), ou do homem curiosamente mais perto de Deus do que todos os outros homens humanos (Kafka, Glauber Rocha, incluiria também aqui o documentário Estamira, de Marcos Prado).

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o estudo do filósofo francês Jérome Thélot intitulado No início era a fome: tratado do intratável (2005) vai também postular a fundação do mundo através da fome. Para Thélot a fome é o afeto universal, posto que mesmo aqueles que têm o que comer sentem fome. Ela é quem vai dar o mundo aos homens. Isso porque a fundação do mundo se faz a partir da distinção entre o comível e o incomível. Eu posso comer o próprio filho mas não o tecido de minha camisa. Crueldade intrínseca à fome.

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A fome instaura, desse modo, o nomear do mundo: “afetado pela fome o homem fala: forçosamente” (THELOT, 2005). Um pathos da fome é aquele que une e desune fome e palavra.

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Qual relação haveria entre a Qual relação haveria entre a literatura e a fome?literatura e a fome?

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Para o autor francês a fome e a palavra se colocam num continuum

a fome seria o afeto poético por excelência, o jejuador seria aquele que rejuntaria a potência da palavra, palavra da fome, que renuncia à satisfação (à retórica do mundo) para reencontrar o Verbo.

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Para o filósofo falar dá a fome quase que a mesma satisfação que a comida, quase o mesmo esquecimento que a comida provoca da própria fome. É nesse sentido que tal como a comida a palavra será constitutiva, para o autor, da humanidade do homem.

Nesse sentido ele encontra Kristeva na leitura do Antigo Testamento.

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Mas eu gostaria que nós discutíssemos essa hipótese.

Isso porque temos que interrogar como a cultura brasileira vem contribuindo e questionando essa tradição

Nem só de palavra a fome vive, é o que de uma maneira muitas vezes trágica aprendemos com a história do Brasil.

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Como a cultura e a literatura Como a cultura e a literatura brasileiras vem abordando brasileiras vem abordando essa questão? essa questão?

Romances de Trinta – denúncia e engajamento

Tabu da Fome – Josué de Castro (1945)Estética da Fome – Glauber Rocha (1965)

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TRECHO da CARTA de GRACILIANO RAMOS ao pintor CANDIDO PORTINARI

“A sua carta chegou muito atrasada, e receio que esta resposta já não o ache fixando na tela a nossa pobre gente da roça. Não há trabalho mais digno, penso eu. Dizem que somos pessimistas e exibimos deformações; contudo, as deformações e a miséria existem fora da arte e são cultivadas pelos que nos censuram. O que à vezes pergunto a mim mesmo, com angústia, Portinari, é isto: se elas desaparecessem, poderíamos continuar a trabalhar? Desejaremos realmente que elas desapareçam ou seremos também uns exploradores, tão perversos como os outros, quando expomos desgraças?” (RAMOS, 1946, Acervo Projeto Portinari)

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Pontos para discutir: Tradição da burguesia como classe

artísticaPara escrever hei de ter comido?Autorização X Desautorização à palavraRepresentar o outroAutorepresentar-se

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Somente uma “literatura Somente uma “literatura engajada” falaria da fome? E o que engajada” falaria da fome? E o que define exatamente uma literatura define exatamente uma literatura engajada? engajada?

Tradição modernaO que mudou e quando começaram as

mudanças?