literatura portuguesa iv um duplo saramago
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
UM DUPLO SARAMAGO
MARCELO TAVARES DOS SANTOS
SÃO PAULO2012
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
UM DUPLO SARAMAGO
Trabalho apresentado na disciplina Literatura Portuguesa IV, sob a orientação da Profa. Dra. Marlise Vaz Bridi
SÃO PAULO2012
Neste excerto, iremos apresentar questões presentes num dos últimos
livros do português José Saramago, falecido em 2010. A obra se chama “O
homem duplicado”. Alguns aspectos da obra pertinentes ao homem
contemporâneo serão assinalados.
A narrativa relata os acontecimentos na vida de Tertuliano Máximo
Afonso, professor de História. Sua vida enfadonha, sem sentido e com um
relacionamento frouxo com Maria da Paz, é modificada quando descobre uma
pessoa exatamente idêntica a ele ao assistir a um filme. A incessante busca é
apresentada sempre com muitas dúvidas e com temor pelo protagonista. Uma
tragédia acontece após ambos se encontrarem. Um terceiro ser aparece ao fim
do livro.
Percebemos que no interior do livro há inúmeras pequenas histórias as
quais invocam as ações, aparentemente banais e irrelevantes, das
personagens, que dão dinâmica à narrativa clara e que ao serem somadas em
nada obscurecem o leitor ao intento do narrador: “Tertuliano Máximo Afonso
voltou para a sala, sentou-se no sofá e, fechando os olhos, deixou-se reclinar
para trás. Durante uma hora não se moveu, mas, ao contrário do que se
poderia julgar, não dormiu” (SARAMAGO, 2002, p. 281).
Todas as personagens da obra, inclusive o próprio narrador, mostram-se
de alguma forma envolvidas pela possibilidade da existência do múltiplo na
sociedade atual.
O aparecimento dum terceiro ser idêntico nos faz pensar acerca dum
mistério que vai além do pensamento racional e mundano. Ao mesmo tempo,
lembramos da possibilidade de um novo outro elemento igual ser produto de
experiências genéticas, possibilidade científica da realidade atual.
O estilo narrativo
A História é tema recorrente do autor de “Memorial do Convento”.
Tertuliano é o representante da história formal (ROSA, 2006, p.2). A narrativa
pós-moderna tenta trazer o passado, mas de outra forma. Propõe também um
novo modelo de escrita, como forma de ampliação de possibilidades artísticas.
O ar que visa dar graça pode ser incluído no rol da modernidade
posterior literária, o texto saramaguiano relata: “Não nos esqueçamos de que
Tertuliano Máximo Afonso, além de ser o conhecido professor de História que
sabemos e um reputado estudioso das grandes questões do audiovisualismo”
(SARAMAGO, 2002, 72, grifo nosso)
Em “O homem duplicado”, nota-se o uso rarefeito de pontos finais,
utilizando-se, por seu turno, as vírgulas. O que pode gerar algum desconforto e
também confundir o leitor menos atento. Essa forma também aproxima a
narração da forma oral, duma contação de histórias. Os grandes autores
buscam em seus escritos deixarem suas marcas, como no caso de Saramago,
o não seguimento das regras de pontuação.
Quiasmo simples existe onde “o segundo grupo faz espelhar ao mesmo
tempo as significações vocabulares e as funções sintáticas do primeiro grupo.”
(COIMBRA, 2006, p. 5). De fato, durante a obra se observam muitos deles,
como “Por minha culpa, Também por culpa minha.” (SARAMAGO, 2002, 32).
Coimbra nos chama ainda atenção para uma forma muito interessante de
quiasmo que é aquela que ocorre implicitamente, onde a construção da
sequência original deve acontecer com a participação do leitor: “a razão
sempre tem o cliente” (Ibidem, p. 11). O receptor duplica as frases,
comparando a escrita na obra com a original, que está em sua mente. A ideia
também de inversão é fornecida pelo uso do quiasmo.
Micali (2011) nos atenta para o aparecimento da metanarrativa: “Ao
contrário da errónea afirmação deixada cinco linhas atrás, que contudo nos
dispensaremos de corrigir in loco uma vez que este relato se situa pelo menos
um grau acima do mero exercício escolar” (SARAMAGO, 2002, p. 43).
Em compensação a escolha por um narrador onisciente em terceira
pessoa diminui o número de possibilidades de interpretação. No interior da
narrativa ocorre “o inimaginável convertido em realidade, o absurdo conciliado
com a razão” (Ibidem, 2002, 167), onde o narrador declara o descrédito em
relação ao universal, e se deixa banhar por pensamentos relativistas, onde o
importante atualmente não é entender e aceitar as coisas que acontecem, mas
vê-las apenas algum sentido, quando possível.
Rosa (2006, p. 4) nos ilumina com seus estudos em aspectos pós-
modernos presentes. Vejamos:
Poderei falar com o senhor Daniel Santa-Clara, perguntou Tertuliano
Máximo Afonso quando a mulher dele atendeu, Suponho que é a
mesma pessoa que ligou para aqui no outro dia, estou a reconhecê-lo
pela voz, disse ela, Sim, sou eu, O nome, por favor, Não creio que
mereça a pena, o seu marido não me conhece, Também o senhor não
o conhece a ele, e apesar disso sabe como se chama, É natural, ele é
actor, portanto uma figura pública. (SARAMAGO, 2002, p. 177)
O trecho “É natural, ele é actor” nos deixa confuso sobre qual
personagem o teria enunciado. A multiplicidade não é apenas na existência dos
personagens, mas também ocorre no aspecto interpretativo.
A criação artística é pensada em trechos como: “as palavras eram tão
poucas que nem sequer as tínhamos para expressar algo tão simples (...)
enquanto as palavras, aquelas e todas as mais, essas vieram ao mundo com
um destino nevoento, difuso.” (Ibidem, 61). A essa dificuldade em relação ao
uso das palavras nos faz lembrar do célebre poema “No meio do Caminho” de
Carlos Drummond de Andrade: “No meio do caminho tinha uma pedra / tinha
uma pedra no meio do caminho”.
No jogo entre realidade e ficção, Alavarce (2008) apresenta o caráter
duplicado no interior da narrativa:
desde que se divorciou, Máximo Afonso servimo-nos aqui da versão
abreviada do nome porque à nossa vista a autorizou aquele que é seu
único senhor e dono, mas principalmente porque a palavra Tertuliano
estando tão próxima, apenas duas linhas atrás, viria desservir
gravemente a fluência da narrativa” (SARAMAGO, 2002, p. 11-12)
O primeiro nome Tertuliano não foi usado em primeiro momento, porque
ele permitiu que o narrador assim o fizesse. O narrador completa que tal
retirada está relacionada diretamente ao ato de escrever.
Presente e futuro irão se encontrar: “os seus traços físicos e a
problemática eventualidade de que em um futuro, auxiliados pela
demonstração de talento suficiente, poderiam vir a ser postos ao serviço da
arte teatral ou da arte cinematográfica” (Ibidem, p. 35, grifo nosso). No excerto
fica evidente o caráter irônico. O erro de Tertuliano em não contar para Maria
da Paz de seu ser duplo possibilita na concretização do desastre
automobilístico e a perda de sua amada. Em virtude de seu fracasso pessoal
ele se torna ator. O próprio narrador tem um caráter dúbio para com o leitor,
deixa pistas, utiliza-se de ironias, pois sabe o final da história.
A realidade e a ficção deveriam ter o mesmo valor, deveriam se mesclar.
Discute-se o que é viver e o que é fazer literatura:
A vida real sempre nos tem parecido mais parca em coincidências que
o romance e as outras ficções, salvo se admitíssemos que o princípio
da coincidência é o verdadeiro e o único regedor do mundo, e nesse
caso tanto deveria valer aquilo que se vive como aquilo que se escreve,
e vice-versa. (Ibidem, p. 170-171).
A linguagem volta à tona quando Tertuliano e a professora de Literatura
estão dialogando: “seria preciso ir mais longe, identificar nos diversos
componentes da expressão as analogias, directas e indirectas, com o estado
de espírito que se quis representar” (Ibidem, 148). Parece que a cultura formal
não dá conta de todas as formas existentes da cultura popular. A linguagem
popular também é apresentada em “nem te vi nem te conheço” (Ibidem, 31).
Rosa bem lembra que ditados populares também aparecem: “nunca jogues as
pêras com o destino, que ele como as maduras e dá-te as verdes” (Ibidem, 16).
O autor utiliza-se da intertextualidade com um ramo do conhecimento
humano, no caso, a História: “em que as matérias históricas fossem estudadas
do presente para o passado em vez de o serem do passado para o presente”
(Ibidem, 149).
Os três nomes próprios que compõem o nome de Tertuliano Máximo
Afonso podem nos propor que sua personagem esteja dividida, fragmentada.
Em nosso mundo atual podemos tomar café da manhã no Rio de Janeiro e
jantarmos em Paris. Ao lermos o texto, podemos pensar se o Máximo não é
algo irônico, pois ele não passa de um medíocre professor. O seu duplo
também é um medíocre ator. O fracasso profissional também os une, mesmo
que Tertuliano pense: “Eu, ao menos, sou professor de História, murmurou”
(Ibidem, p. 89). A divisão e a multiplicação conferem a Tertuliano um caráter
universal para o mundo em que agora vivemos.
António Claro utiliza-se do nome de Daniel Santa-Clara em seus filmes.
Ele não é tão claro assim, ele é alguém acostumado com o jogo de cena.
Como ator ele deve ser capaz de se aproximar, de compreender e de ser o
outro. Consegue até passar uma noite com a namorada de Tertuliano. Helena
ao conversar pelo telefone com Tertuliano apresenta o caráter dúbio de seu
esposo: “Todos nós andamos por aí, mais ou menos somos todos figuras
públicas, o número de espectadores a assistir é que difere” (Ibidem, p.177).
“Youtube”, “Facebook” e outras maravilhas do mundo virtual permitem que
qualquer um de nós possa se transforma em pessoas conhecidas em pouco
tempo, podendo ocorrer de forma não planejada e quase imediata.
Um texto de caráter elevado procura dialogar com escritos anteriores a
fim criar personalidade. O estilo e o tema permitem que outros textos se
insiram numa obra. Essa situação intertextual pode ser através de
semelhanças, diferenças, transformações e ampliações. Assinala Todorov: “A
literatura é criada a partir da literatura, não a partir da realidade, quer seja esta
material ou psíquica” (1975, p. 14). Mesmo assim, possui um caráter não-
literário, passível de exprimir categorias filosóficas. Uma obra por mais
singular e inovadora que seja, tende a possuir um caráter mais amplo,
genérico.
O fantástico Tertuliano Claro
A questão da identidade é fulcral neste romance. A existência dum outro
objeto/ser idêntico é inerente à modernidade. Imaginemos uma pessoa do
século XVI no interior dum supermercado e ver produtos iguais dispostos em
prateleiras. Isso lhe causaria um grande espanto. Talvez essa pessoa
acreditasse que seria o fim dos tempos.
Bauman (2003, p. 20, grifo do autor) prenuncia: “’Identidade’, a palavra
do dia e o jogo mais comum da cidade (...) substituta da comunidade (...).
Nenhuma das duas está à disposição em nosso mundo rapidamente
privatizado e industrializado, que se globaliza velozmente”. A sociedade atual é
uma fábrica formada por pessoas assustadas e ansiosas, marcada pela
separação dos ambientes do lar e do trabalho. A relação entre as pessoas é
marcada pela impessoalidade: na obra, não ficamos sabendo os nomes dos
professores de Matemática e de Literatura, bem como o do diretor da escola.
Após ter assistido ao filme estar ciente de sua duplicação, Tertuliano
pensa na possibilidade de ser fruto de sua imaginação. Há uma ambigüidade
entre realidade e sonho, capaz de acontecer no plano do fantástico. Se o fato
estranho realmente aconteceu é devido a motivos incompreensíveis. Essa
hesitação é que dá vida ao fantástico, mas para isso o leitor deve “considerar o
mundo das personagens como um mundo de criaturas vivas e a hesitar entre a
explicação natural e uma explicação sobrenatural dos acontecimentos
evocados” (TODOROV, 1975, p. 39). O leitor deve se identificar com as
situações não comuns que ocorrem nas vidas das personagens.
A própria ciência, fruto do pensamento racional humano, pode nos
colocar envoltos de situações que beiram o incrível ou a loucura, ou seja, a
ausência de uma própria compreensão racional:
Ora, ora, duzentos mil milhões de quilômetros em lugar de cem, Não
esqueça que o que chamamos de realidade foi imaginação ontem, olhe
o Júlio Verne, Sim, mas a realidade de agora é que para ir a Marte, por
exemplo, e Marte em termos astronômicos até se pode dizer que está
ali ao virar da esquina (SARAMAGO, 2002, p. 14).
A ciência diminuiu as distâncias, ao menos, as físicas. A própria ciência
foi transformada em objeto de entretenimento graças ao cinema maravilhoso
de Georges Méliès e as posteriores publicações de histórias em quadrinhos.
Não podemos esquecer que a ciência pode hoje duplicar indivíduos.
Todorov (1975, p. 124, grifo do autor) pronuncia algo que não podemos
deixar escapar: “Assim, aí se pode generalizar o fenômeno das metamorfoses
e dizer que uma pessoa se multiplicará facilmente. Nós nos sentimos todos
como várias pessoas: aqui, a impressão se encarnará ao plano da realidade
física.”
A palavra “espelho”, a exemplo de outras, como “duplicação”, aparece
várias vezes durante a obra. Tertuliano de forma narcísica se observa várias
vezes na frente do objeto capaz de refletir seu próprio corpo na busca de
descobrir como os outros veem o seu eu.
As confidências de Tertuliano são apresentadas, uma espécie de alter
ego, chamada na obra de “senso comum” e que visam caracterizar o
personagem, que no caso, é um homem metódico e cauteloso: “não devo
transformar isto numa tragédia, tudo quanto é possível suceder, já sabemos
que se sucederá”. O “senso comum” se torna mais uma voz atuante na
narrativa, multiplicando o protagonista. O “senso comum” parece ser outro
personagem com quem Tertuliano dialoga: “Serias melhor companhia se não
quisesses ter sempre razão, Nunca presumi de ter sempre razão, se alguma
vez errei fui o primeiro a dar a mão à palmatória” (SARAMAGO, 2002, 224). Os
personagens não se constroem somente através de suas ações, mas também
através de seus pensamentos.
A descoberta de Tertuliano por outro ser idêntico permite-nos lembrar
da literatura fantástica, que tem muitos representantes, como Jorge Luis
Borges. O nome completo de Tertuliano Máximo Afonso é citado com
exaustão. Lopondo (2010, p. 3) percebe que o excesso também se dá a
situações em que o personagem se envolve e seus pensamentos: “que seu
noivo, amante, amigo de cama, ou como quer que se lhe chame nos tempos de
hoje, se prepara para bater com a porta” (SARAMAGO, 2002, p. 64). A
professora também relata que Tertuliano tem origem latina e é diminutivo
originariamente de “Tertius, o terceiro” (GUÉRIOS, 1981, p. 236 apud
LOPONDO, 2010, p. 4, grifo de LOPONDO). Na História, temos o jurista
cartaginês Tertuliano que se converteu às ideias cristãs, onde suas escritas
apresentariam um ser “quase fanático” (SOUZA, 2008, p. 60 apud LOPONDO,
2010, p. 4, grifo de LOPONDO). Tertuliano fica obcecado pela ideia de
conhecer o seu duplo.
Tertuliano fala várias vezes consigo mesmo: “Serei mesmo um erro”
(SARAMAGO, 2002, p. 28), “Se achas que deves pedir uma explicação ao teu
colega, pede-a de uma vez” (Ibidem, p. 32). O solilóquio tem o efeito de
multiplicação do eu.
O uso de disfarces através de bigodes, barbas e mudanças de voz nos
levaram a refletir sobre a verdade, a imagem e a identidade, bem como
lembram as artimanhas duma peça teatral, num tom de leve graça. A ação de
se esconder ocorrer porque não querem se denunciar. O professor de
Matemática, o qual sugere ao protagonista ver o filme em que o inusitado é
descoberto, percebe que Tertuliano não é o mesmo: “Você poderá dar-me as
razões que quiser, mas a verdade é que desde que viu aquele filme não parece
o mesmo” (Ibidem, p. 145). Tertuliano também é uma pessoa tímida, centrada
em si e que tem dificuldade para relacionamentos e para resolver seus conflitos
internos, não conhece o outro: “Ao longo dos seis meses da sua relação com
Maria da Paz não foram muitas vezes que Tertuliano Máximo Afonso precisou
de telefonar-lhe para casa” (Ibidem, p. 122).
António Claro, ator que faz filmes de pouca importância e ocupa papéis
igualmente inexpressivos, tem o papel de protagonista na vida de Tertuliano,
ao por ele ser descoberto. Tertuliano busca um novo sentido de vida após tal
acontecimento fantástico. António também busca algo inusitado e além da vida
conjugal com Helena ao se querer passar por Tertuliano na parte final da
trama. Ambos parecem estar descontentes com a vida que tinham.
Tertuliano e António acabam por se metamorfosear. O acidente
automobilístico em que o corpo de António Claro perece, outrossim, não
obstante a imagem de Tertuliano Afonso Máximo se vai. Restam apenas o
corpo de Tertuliano e a imagem, para Helena, de António Claro. Não podemos
nos esquecer de que Helena interpela Tertuliano para que permaneça no papel
de António Claro. A fatalidade permite ao protagonista que ele se torne menos
solitário e triste e com maior apelo sexual, pois até agora viveu no palco duma
vida sem sentido.
Na duplicação do eu, não podemos nos esquecer que a cópia é
originada a partir da original, onde aquela buscar viver de modo autônomo a
esta, mas pode continuar a ter uma identificação com o ser da sua gênese.
O desejo de saber quem é o original faz Tertuliano encontrar António.
Maria da Paz, Helena, Carolina (genitora de Tertuliano) despertam-se pela
curiosidade que envolve a duplicidade dos dois seres masculinos. Não
podemos esquecer que o protagonista se sente incomodado em saber que não
é o original, e sim António Claro: “que o original seja o outro e ele não passe de
uma simples e antecipadamente desvalorizada repetição” (Ibidem, p. 174).
Ocorre a disputa atual pela singularidade. A constatação dum duplo suscita a
vontade da eliminação da cópia. “Agora a conversação vai repetir-se, o tempo
arrependeu-se e voltou para trás” (Ibidem, p. 315), assim começa o
percebimento de Tertuliano – agora António Claro – na existência dum terceiro
ser. A busca pela identidade continua, há um novo recomeço. Tertuliano agora
vai ao novo encontro em companhia duma arma de fogo agora carregada,
mostrando sua incapacidade de apresentar-se equilibrado diante da nova
descoberta.
A busca pelo encontro por parte de ambos é expressa assim no
pensamento de Tertuliano: “que farei depois de saber que esse homem entrou
em quinze ou vinte filmes (...), Conhecê-lo” (Ibidem, p. 75). Para que isso
ocorra deve ocorrer um contínuo deslocamento. A capacidade de se travestir
também faz parte do sujeito contemporâneo. O sujeito não pode estar fixo no
tempo e espaço. Pode-se deslocar atualmente em direção às origens, não
obstante descrente. Para o indivíduo parece que “parte de si agora ausente”
(Ibidem, p. 157).
O acidente de automóvel permite que os corpos de António e Maria
deixem de ter vida. Mas a troca dos documentos oficiais permite que aquele
que morreu continue vivo e o que está vivo morra. A burocracia também pode
funcionar como um muro que impede o contato das pessoas com a realidade.
A identidade do ser humano pode ser reduzida a um calhamaço de papéis?
O fato é que em “O homem duplicado”, realidade (História) e fantasia
(história) se encontram. São forças capazes de transformar não somente os
personagens e o narrador, mas, sobretudo, o leitor. A atividade literária é fonte
de conhecimento acerca da identidade humana. Sobre isso, Hutcheon (1991, p.
34) diz: “A ficção pós-moderna (...) o objetivo de questionar tanto a relação
entre a história e a realidade quanto a relação entre a realidade e a linguagem”.
Na concepção de pós-modernismo, o passado precisa ser inventado duma
outra forma.
A vida após a Revolução Industrial mudou definitivamente a forma de
nós seres humanos nos vermos. A possibilidade fantástica de produção em
massa associada à incessante busca pelo novo nos causou um novo problema:
o da identidade. A cultura de massa nos permitiu a comercialização do
Inconsciente (JAMESON, 2005, p.21), onde todos podem partilhar das mesmas
informações e também terem as mesmas opiniões, mas ao mesmo tempo
estarem desprovidos duma avaliação mais crítica em relação a elas. O
desfecho de “O homem duplicado” nos faz indagar quantos seres idênticos há,
afinal.
No atual estágio da humanidade, as mercadorias são tratadas como se
fossem seres humanos e chegam a ser acumuladas com apego afetivo. O
cinema possui a capacidade de multiplicar a imagem dum ator, tratado como
um produto de caráter industrial. Aliás, a crise em que o protagonista se
envolve é gerada pela exposição midiática duma outra pessoa idêntica.
Mantoury (2011, p. 72) lembrou-nos muito bem do filme “La double vie
de Véronique”, de Krzysztof Kieslowski. Weronika vive na Polônia, e Véronique,
em Paris. A presença conjunta das duas mulheres é celebrada por uma
fotografia. Outro filme que se relaciona com a duplicidade é “Gêmeos, mórbida
semelhança”. Há dois ginecologistas gêmeos, onde um deles tem uma
personalidade mais influente. Eles dividem inclusive suas parceiras. O mais
tímido se torna dependente químico e projeta instrumentos cirúrgicos
anatomicamente estranhos. Ao fim, ambos estão perturbados
psicologicamente. O mais influenciável acaba tirando a vida de seu irmão
dominador, com seu consentimento, num procedimento cirúrgico. A morte aqui
também está presente.
“Não trabalho para viver; vivo para trabalhar”, assim podemos resumir a
vida dos seres que habitam as áreas urbanas das grandes e médias cidades.
Tertuliano, primeiramente, e o professor de Matemática, em seguida, estão a
conversar: “esta maldita rotina, esta repetição, este marcar passo, Distraia-se,
homem, distrair-se foi sempre o melhor remédio (...), mas precisa de se distrair
com histórias que não ocupem demasiado espaço na cabeça” (SARAMAGO,
2002, p. 13). O marasmo da vida ditada por um tempo em que não podemos
perder faz com que nós busquemos meros passatempos, onde temos que se
contentar com o espetáculo que é fornecido na televisão e cinema, a fim de
recarregarmos nossas baterias. Os saturados efeitos especiais fazem-nos
acreditar que o mundo já está pronto. “A imagem apaga a ideia”, diz nosso
poeta Manoel de Barros.
Dentro da tradição ocidental, o apego aos estímulos oriundos dos
sentidos, e mais especificamente aqui, o da imagem, sempre foi tratado como
algo pertencente às pessoas de menor capacidade intelectual. Platão (2009, p.
187) em “A República”, no Livro V, relata sua diferenciação entre dois tipos de
amantes de espetáculos: os da verdade e os da aparência. Sócrates diz a
Glauco:
Os que gostam de ouvir e de ver, respondi, acolhem pressurosos as
belas vozes, as belas cores, as belas figuras e tudo quanto é produzido
por semelhante beleza, mas sua reflexão é incapaz de observar e de
acolher solícita a natureza do belo em si.
A grande multidão, evidentemente, pertence ao segundo grupo. Na Bíblia
Sagrada, no Segundo Livro, chamado “Êxodo”, em “O bezerro de ouro”, é
relatado o apego dos filhos de Israel a um bezerro de ouro, no momento em
que Moisés está no Monte Sinai. Como acreditar em um Deus que não pode
ser visto? Moisés em seu retorno ao se deparar com cenas de bebidas,
comidas e diversão em excesso fica enfurecido e quebra as tábuas que
consigo levava.
Sobre os padrões de consumo atual: “Tirou de um armário três latas de
diferentes comidas, e como não soube por qual decidir-se, lançou mão”
(SARAMAGO, 2002, p. 16). Reflete acerca da liberdade, palavra muito
pensada na história da humanidade: quando o nosso dever de gente livre seria
questionar energicamente um destino despótico que o determinou (Ibidem, p.
17). Vivemos num mundo onde as pessoas, inclusive aquelas que estão na
ordem burocrática estatal, acreditam que a principal liberdade humana é a de
escolha econômica: “Não se pode exigir a toda a gente que seja sensata, Por
isso o mundo está como está” (Ibidem, p. 31). Uma coisa que une o mundo
parece ser o inconformismo. A vida atual é marca por profunda desilusão,
como diz Tertuliano: “Se calhar não há nada que possamos fazer, são os
problemas do mundo” (Ibidem, p. 40).
“Imagem não é nada. Sede é tudo”, assim sugeriu uma campanha
publicitária de uma marca de refrigerante, na qual diz ser diferente, mas que se
utiliza incessantemente de impulsos imagéticos para tentar ao final negá-los de
sua importância. Pessoas que acreditam que a originalidade reduz-se ao fato
de possuírem os mesmos desejos de se tornarem diferentes entre si. Para
onde vai essa sociedade em que a cultura letrada tem cada vez menos
importância, mas o valor oriundo das imagens ganha um ar supremo?
O mundo hoje
Nestes tempos em que se acreditam no fim das utopias, aqueles que se
mostram de alguma forma engajados a discutir temas como liberdade e
humanismo parecem que estão deslocados. Assim é o lusitano Saramago, que
possui grande autoridade ao apresentar o conjunto de suas ideias. Acreditamos
que Saramago deseja uma mudança social, por isso escreve.
O autor é um homem que reflete sobre seu tempo, ou seja, a ficção “O
homem moderno” apresenta importância histórica, pois apresenta aspectos do
mundo atual. O diálogo entre História e Literatura é posto em questão. O que
são a realidade e o imaginário hoje?
O homem hoje parece uma massa amorfa, onde busca sua
individualidade na defesa dum mundo altamente estratificado. Parece que está
perdido num pesadelo em que não consegue despertar.
Em tempos de termos como multiespecialistas, multilateralismo, nós,
humanos, temos que ser múltiplos. Conseguimos, graças às ciências, fazer até
cópias idênticas de nós mesmos, ou melhor, nas palavras de Tertuliano “o ser
humano repete-se” (Ibidem, p. 27). O que ainda temos é o outro como utopia.
O russo Mikhail Bakunin já dizia, no século XIX, que a verdadeira ignorância
não é ter apego ao conhecimento da cultura letrada, mas é não acreditar que o
outro deve ser capaz de trabalhar coletivamente com o eu e com os outros, a
fim duma vida mais digna e melhor.
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