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II
SUMÁRIO
Da (Im) Pessoalidade Científica 4
Considerações sobre a Hipótese da Interinfluência entre Pensamento, Cultura e
Linguagem 16
Vincti Spei: 32
Da Natureza do Significado e Suas Implicações 40
Considerações sobre a Alfabetização Brasileira 55
Considerações sobre a Arte no Brasil 66
Da Metáfora Funcional e Algumas Implicações 84
Da Filosofia 94
III
Pelo direito, divinamente
concedido, de pensar livre e
constantemente,
aos amigos Fabíola e Alberto e,
como em hipótese alguma poderia
deixar de ser, à Bia.
4
DA (IM) PESSOALIDADE CIENTÍFICA
ou
Uma Ensaio sobre a Hipocrisia na Ciência
“A demonstração (científica) baseia-se num
processo de reflexão, ou seja, baseia-se na articulação de
idéias de fatos, portadores de razões que comprovem
aquilo que se quer demonstrar.”
0. Introdução
A citação que introduz este ensaio provém de um dos mais
conceituados manuais de Metodologia Científica1
do Brasil. Assim como muitos
outros – na verdade, parece que todos os outros... - esse manual perece de uma
contradição filosófica muito interessante, cuja discussão não é nova, mas que acata
ainda algumas contribuições.
Os manuais de Metodologia Científica são construídos segundo uma
concepção axiomática que defende uma postura impessoal do pesquisador diante do
objeto. Uma espécie de Ciência como o processo de descobrimento do saber absoluto
e natural no qual não há interferência do pesquisador; de Ciência como um processo
capaz de desumanizar o ser que nele se insere, de forma que o texto científico deva
ser, também, desumanizado. Defende-se que uma postura realmente científica é uma
postura impessoal perante o universo.
O próprio texto do manual, porém, trai-se quando fala de “reflexões”,
“idéias” e “quereres”, que são, obviamente, atributos bem pessoais do pesquisador e
de sua ação individual. Ainda que fosse possível circunscrevermos a Ciência como
fruto exclusivamente da racionalidade humana, somente através desses mesmos
humanos se podem justificar atributos como “reflexões”, “idéias” e “quereres” em um
trabalho científico.
O fato mais científico de todos, porém, parece-nos que é o de que a
Ciência nunca foi impessoal e nunca o poderá ser enquanto fruto da ação humana,
assim como a Justiça não é cega e como a imparcialidade é uma abstração teórica mais
fácil de justificar epistemologicamente do que a partir dos efeitos práticos de sua
aplicação. Afinal de contas, desde que se tem notícia, suam quisque homo rem
memenit2
.
1. O mito da impessoalidade científica e nossos velhos manuais
1
A.J. Severino (1991). Metodologia do Trabalho Científico. 17 ed. São Paulo: Cortez.
2
Plauto. Trad.: “Cada um pensa naquilo que lhe interessa.”
5
O homem: um mamífero bípede, implume e crédulo por natureza.
Seja qual for a teoria aceita para sua origem e existência, haverá sempre na história do
homem a marca da crença e da confiança em algo que é superior a si mesmo.
Nas sociedades ditas primitivas, a relação do homem para com a
verdade, sempre intermediada por uma revelação, baseava-se na autoridade da
divindade que a revelou. O detentor da verdade sempre foi um alguém superior que,
mesmo utilizando-se de meios não tão sublimes – como os próprios homens ou a
vária natural -, ainda assim mantinha a autoridade de seu discurso e a
incontestabilidade de suas verdades com base em dois fatores primordiais: 1. a
capacidade de interferir na vida dos seres humanos, o que era uma demonstração
inequívoca de poder (ainda mais em se considerando que essa interferência nem
sempre se dava de forma amistosa) e 2. a capacidade de prever o futuro, o que era
uma demonstração inequívoca de sabedoria, uma vez que a descrição do presente
sempre foi considerada um ato típico da vil normalidade humana, assim como o
entendimento e a repetição do passado pretende-se ter sido desde sempre uma
característica igualmente humana.
Com base nesses dois fatores, as revelações permitiram fundamentar
as mais diferentes religiões, nas mais diversas culturas. A incontestabilidade da
verdade estava justamente no fato de que ela transcendia a compreensão humana,
porque oriunda de outra esfera de existência, uma esfera sobre-humana, mais
evoluída e, portanto, mais autorizada a proferir juízos.
O homem não demoraria, porém, a compreender3
que uma série
bastante grande dos fenômenos que o cercam pode ter uma explicação que
independa de uma autorização sobre-humana. Ainda mais, que essas explicações
poderiam fornecer meios de prever acontecimentos futuros e de interferir na
existência da humanidade. Já era possível prever uma seca, irrigar o solo e garantir a
colheita, subvertendo a ação divina tradicional das punições de controlar as chuvas,
castigar com a seca, provocar a fome como reprimenda pelos pecados de um povo.
Da mesma forma, era possível ao homem prever a existência de doenças e controlá-
las mesmo antes de se manifestarem, de promover o enriquecimento através de uma
ação planejada, de dominar muitos aspectos naturais de um mundo que antes
simplesmente o envolvia e o subjugava, não sendo mais este homem apenas um
objeto no meio da natureza, mas arrogando-se a senhoria dela.
Isso é apresentado de duas formas básicas nas mais diversas culturas:
1. o domínio sobre o mundo natural e a autorização de proferir verdades foram
roubados dos deuses, como em muitos mitos da cultura grega, por exemplo e 2. o
Criador concedeu ao homem o domínio sobre o mundo natural e a autorização de
proferir verdades, como na crença cristã. Dali em diante, não mais era o discurso
divino que autorizava a verdade, mas a própria humanidade criava um discurso com
suas verdades pessoais. E mais do que isso, paulatinamente a divindade se ia
afastando da humanidade, deixando-a à própria sorte, responsável por seu domínio,
prisioneira de suas próprias verdades4
.
3
Embora muitos ainda não o compreendam...
4
Um estudo extremamente interessante do afastamento da divindade pode ser lido em Richard E.
Friedman (1997). O Desaparecimento de Deus. Rio de Janeiro: Imago, 364 p.
6
Entretanto, o que mais impressionava nesse processo era a
possibilidade de sistematizar esses conhecimentos, de repeti-los e dominá-los,
reproduzindo e comprovando as mesmas asserções, que se tornavam axiomas, ou
seja, eixos sustinentes de uma nova era da humanidade, chamada a “da Luz”, “da
Razão”. Nada mais de sustos nos oráculos, nada mais de pesadelos proféticos: o
homem havia criado a Ciência.
A Ciência, a despeito do grande furor que causou na humanidade,
apresentava um grande problema e ele era o fato de que o conhecimento somente se
construía em função dos interesses de grupos específicos, de pessoas específicas e em
moldes muito específicos. E era inadmissível que um homem, por mais sábio que
fosse, usurpasse a divindade, que em sua condição sobre-humana asseverava, em
pronunciamento solene, que “a Ciência deste mundo é loucura diante de Deus. Como
está escrito: Ele enlaça os sábios na sua própria sabedoria”5
. O ser humano ainda era
apenas o mesmo ser crédulo de sempre, por natureza, e, como registra a Bíblia, parece
que o antigo proferimento “maldito o homem que confia no homem”6
ainda
continuava em vigor.
A humanidade estava não mais sob a égide plena do sobre-humano,
mas não aceitava apenas a verdade no âmbito do humano. E o que poderia autorizar
o discurso de um humano? Por que razão o discurso de um é melhor do que o do
outro? Por que razão devo permitir que alguém enfie em mim a agulha de uma
seringa com um líquido que não sei quem produziu, como foi produzido e que, na
verdade, não sei se me há de curar ou de matar? A Ciência carecia de autorização; as
verdades humanas careciam de autorização; em última instância, o próprio homem
carecia de autorização, como aquele filho inabilitado que recebe, inesperadamente, do
pai a chave do carro para namorar e desconfia de que se trata, na verdade, de uma
brincadeira de muito mau gosto. E essa autorização não era possível no homem.
Precisava ser sobre-humana. Foi encontrada, então, no mito da impessoalidade
científica.
O mito da impessoalidade científica pode ser resumido como sendo o
pensamento, reconhecidamente popular nas academias, de que o saber independe de
quem o produz e é tanto melhor quanto menos interferência houver do agente
humano sobre ele. É como se a natureza estivesse lá esperando ser descoberta e o
homem fosse dotado de um instrumento, novamente de natureza sobre-humana,
pois acima de todos e de seus interesses particulares (e, por isto mesmo, vis),
chamado Método Científico que lhe permitisse apreender esse conhecimento sem que
isso viesse a significar qualquer tipo de interferência desse agente humano sobre o
objeto de estudo. Claramente impossível. Mas, o fato é que não se tratava e nunca se
tratou, neste caso, de razão, tratava-se apenas e tão-somente, de novo, de fé. A
Ciência careceu, desde sua concepção, da autorização de seu discurso, autorização
que, ao ser humano, só é outorgada pelos olhos da fé, pela crença no que é sobre-
humano, logo mais desenvolvido que o humano e, portanto, como disse, por esta
razão, autorizado a proferir juízos.
A impessoalidade da Ciência outorgava-lhe um nível de credibilidade
do qual uma Ciência pessoalizada não poderia sequer usufruir um único quê. Não é
5
I Coríntios 3:19
6
Jeremias 17:5.
7
sem motivo que a impessoalidade7
característica das ciências ditas exatas e naturais
autorizou por muitas décadas a comunidade científica em geral a desconsiderar os
estudos chamados humanos e sociais – como a Psicologia, a Sociologia, a
Antropologia e a Lingüística entre outros – do rol da “ciências verdadeiras”. Isso pode
ter razão no fato de que a sistematização e a repetição de um procedimento científico
em uma ciência humana ou social não são tão simples e os resultados não são tão
previsíveis como nas ciências exatas e naturais. Por exemplo, posso teoricamente
colocar qualquer pessoa para ferver um litro de água ao nível do mar e os resultados
serão muito mais previsíveis do que no colocar qualquer pessoa para proceder uma
análise psicológica em cem indivíduos fóbicos. Mesmo hoje não é raro que
especialistas nas áreas humanas e sociais iniciem seus cursos e palestras pela tentativa
de provar que fazem “Ciência de verdade”, que dominam um método, etc. e tal.
Parece claro que essa aparente inferioridade das ciências humanas e
sociais reside justamente no fato, costumeiramente aceito como verdadeiro, de que
sua sistematização exige muito mais pessoalidade do cientista do que nas demais
ciências. Mas, efetivamente isso não é correto. A única diferença substancial está na
previsibilidade dos resultados obtidos a partir de cada processo de sistematização.
Os manuais de Metodologia Científica são pródigos em repetir o mito
da impessoalidade científica. Esta curta compreensão do processo científico remonta
aos primórdios da constituição da Ciência como artefato deificante do ente humano.
Vem de uma época em que houve uma necessidade existencial de substituição da
autorização concedida pela divindade pela autorização oriunda de um processo
sobre-humanamente sistemático8
que permitisse ao homem ultrapassar seus próprios
limites naturais, mas, principalmente adquirir as peculiaridades divinas de prever e
interferir na natureza. Certamente, essa fase foi um dos grandes lapsos da inteligência
humana. Temos muito claro, hoje, que a divindade e a Ciência não são concepções
excludentes e que os discursos oriundos de cada uma dessas partes também não o
são. Mais do que isso, que a autorização da verdade pode, inclusive, emanar de
nenhuma delas.
1.1. Frege e a ação das expressões indefinidas
Um dos níveis em que o mito da impessoalidade científica mais foi
sistematizado é o do chamado discurso científico. Se a autorização da Ciência estava
justamente no fato de que ela era concebida como um processo independente de
quem a praticava, cabia ao discurso científico, como parte final do processo
experimental9
revelar essa impessoalidade.
7
Traduzida de diversos modos na forma de termos como objetividade, afastamento, neutralidade ou
qualquer que se tenha ou que se queira usar.
8
Porque o ser humano, com efeito, não é cientificamente sistemático e, se o fosse, a Medicina teria as
mesmas bases que a mecânica de autos...
9
Que cientista ainda não se injuriou com os tais relatórios de pesquisa?
8
O lógico alemão Gottlob Frege, em um artigo10
no qual discute, entre
outras coisas, o valor de verdade de certas sentenças assertivas, aponta o efeito que
construções atemporais e impessoais – que ele chama indefinidas - têm sobre o
discurso. Ele diz que, quando usamos formas indefinidas, condicionamos a
interpretação do sentido das sentenças a uma circunstanciação que as torna
aparentemente verdadeiras a despeito de não exprimirem um pensamento completo
e de, sequer, serem obrigadas a ter uma referência.
Assim, quando se escreve “sabe-se”, “conclui-se” ou “vê-se”, que são
formas do presente indefinido do português, ao invés de “sei”, “concluo” ou “vejo”
(ou mesmo suas formas plurais “sabemos”, “concluímos” e “vemos”), obriga-se o
interlocutor-leitor do relato científico a circunstanciar de tal forma aquilo que foi
proferido que, não só o proferimento assume a característica de verdadeiro, mas
acaba sendo tomado como verdadeiro de alguma forma, em algum tempo, em um
cenário qualquer. Isso atribui ao discurso científico seu valor de verdade. Quando são
utilizadas as formas pessoais, porém, obriga-se a que o proferimento seja verdadeiro
no agora e no aqui, pois a verdade passa a ter como certificado de autorização
também o seu próprio proferidor e não somente o sentido ou o pensamento
intrínseco que esse proferimento possa conter. A verdade passa a ser definida como a
verdade de um e não mais como uma verdade universal que há de se realizar em
algum lugar do universo, um dia, em certas circunstâncias... Da mesma forma, os
objetivos e conceitos científicos, por se acreditar serem universais, devem, segundo a
tradição, ser construídos com infinitos verbais, de maneira a desvinculá-los de quem
os proferiu.
Ao asseverar que o cientista proceda seu relatório científico utilizando
uma forma indefinida, os manuais de Metodologia direcionam epistemológica e
filosoficamente a pesquisa científica para a crença inconfessável de que essa
impessoalidade forjada tem sido, no decorrer das últimas décadas, a única
autorização do valor de verdade do discurso da Ciência, sem o que, mesmo diante
dos fatos, os homens ainda veriam, em cada ocorrência natural ou provocada, a ação
divina e não a ação científica do homem e a teriam julgado com um simples isto foi
permitido.
Infelizmente, em um mundo em que a ação do homem sobre o meio
centraliza cada vez mais a atenção e em que a razão tem sido equiparada a outras
dimensões do pensamento humano, com a crescente valorização de aptidões
tipicamente humanas, como a criatividade artística e a complexidade lingüística,
nossos manuais de Metodologia Científica sobrevivem de passado.
2. Heisenberg e o Princípio da Incerteza
Físico e eminente pensador alemão deste século, Werner Heisenberg
(1901-76) notabilizou-se pela idealização e consolidação da Mecânica Quântica.
Embora sua teoria tivesse sido elaborada para aprimorar o nível de precisão com que
10
G. Frege (1978). “Sobre o sentido e a referência”. In: Lógica e Filosofia da Linguagem. Trad. Paulo
Alcoforado. São Paulo: Cultrix, pp. 59-86.
9
se mediam os movimentos das partículas subatômicas, Heisenberg acabou
descobrindo que
“é impossível, na descrição do mundo atômico, separar
completamente o observador do “resto da Natureza”, uma vez que o
distúrbio causado pela observação é comparado aos próprios
fenômenos que são observados.”(Fleming, 1978)11
Essa descoberta derivou de experimentos, como o descrito em
Fleming (1978)12
e que, embora longo, convém transcrever integralmente aqui:
“A visualização de um elétron se dá quando um fóton
emitido por este elétron é detectado (digamos, pela retina do
observador). Lance-se, por exemplo, um feixe de fótons de
comprimento de onda L em direção à região onde se encontra o
elétron. O fóton que com ele colidir será refletido (absorvido e
reemitido) e sua detecção nos informará sobre a posição do elétron.
Naturalmente, um fóton de comprimento de onda L não pode
determinar a posição de um elétron com precisão maior do que L. Seria
de se pensar, portanto, que a utilização de um fóton de comprimento
de onda menor fornecesse informações mais completas. Sabe-se,
porém, que a quantidade de movimento de um fóton é inversamente
proporcional ao seu comprimento de onda. Logo, para aprimorarmos a
medida da posição do elétron, estaremos automaticamente usando
fótons de maior quantidade de movimento que, ao serem refletidos
pelo elétron, transferirão a ele uma quantidade de movimento tanto
maior quanto menor for o comprimento de onda. Assim, ao
aprimorarmos a determinação da posição do elétron, estaremos
alterando o valor de sua quantidade de movimento por um valor que é
tanto maior quanto mais precisa for a determinação da posição. Uma
análise mais detalhada mostra que o valor desta transferência de
momento é incontrolável. Ora, a trajetória de uma partícula é
determinada pelo conhecimento, de um dado instante, da posição e da
velocidade da partícula. A impossibilidade desse duplo conhecimento
acarreta automaticamente a impossibilidade de determinação da
trajetória.”
“A impossibilidade desse duplo conhecimento”. Impossibilidade de
quem? Do método? Sim, do método; mas, sobretudo de seu criador, o observador. É
obvio que a partícula, por existir, tem uma posição e por movimentar-se, uma
trajetória. As (im)possibilidades humanas de identificar concomitantemente esses dois
valores, porém, interferem na consecução da verdade absoluta. O máximo que se
obtém é uma espécie de verdade parcial e pessoal, momentaneamente definida; nada,
enfim, que interesse a um ente sagrado e superior.
Mais do que por isso, a descoberta dessa impossibilidade por
Heisenberg, descoberta que passou a ser chamada de “princípio da incerteza”,
mostrava-se avassaladora em suas conseqüências epistemológicas para a Ciência
11
Henrique Fleming (1978). “O princípio da Incerteza de Heisenberg”. In: www.ciencia-cultura.com/
ciencia001.html.
12
Op.cit.
10
como foi tradicionalmente concebida, justamente porque não era uma mera
convicção filosófica, mas por ser, como apresenta Fleming (1978)13
, “a conseqüência
imprevista de uma teoria formulada para o estudo quantitativo em escala atômica”.
Em outras palavras: Heisenberg, assim como seus predecessores newtonianos,
acreditava na possibilidade imaginária de uma Ciência impessoal, em que o cientista
nada mais é do que um instrumento do sagrado que capta as verdades emanadas da
aplicação da Metodologia Científica, um tipo de “profeta da razão”. Mas, o físico
alemão deparou-se com uma impossibilidade natural, em experimentos no nível
subatômico, que demonstrava inequivocamente que esse distanciamento nunca
existiu: a Ciência não era nada mais do que uma forma de alguém ver o mundo e o
método nada mais era do que uma forma coletiva e comumente aceita de ver o
mundo.
Em ciências humanas e sociais, a impossibilidade da observação
impessoal é ainda mais acentuada e não precisa descer ao nível subatômico. É
inconcebível crer que adentramos uma sociedade e não somos notados, tampouco
que essa sociedade não mude seu comportamento por força da nossa presença, do
“distúrbio” que causamos. Da mesma forma, acreditar que um indivíduo tomado
como informante deixe de conceber formas e tipos de informação que considera mais
apropriadas ao relato científico – segundo o que ele entende do relato científico – é
pura fé.
Muito mais do que isso, porém, é que é inaceitável acreditar que o
observador não intuirá, inferirá, hipotetizará, concluirá, segundo os pressupostos
culturais que carrega consigo. E culturais, aqui, abrange “científicos”. A Ciência -
assim como a religião - faz parte da cultura de um povo. Assim como a religião
sistematiza aspectos da visão de mundo e das ocorrências naturais e não naturais do
mundo, a Ciência o faz. Muda o método; a crença permanece. Não há uma verdade
em religião, assim como não há uma verdade em Ciência, por mais que o pensamento
hegemônico e etnocêntrico ocidental insista em afirmar isso. Nossa forma “objetiva”
de ver o mundo nunca foi objetiva e o conhecimento empírico do objeto nada mais é
do que o resultado de uma equação muito simples que pode ser assim resumida:
CC + ME + CTE = RC
Em que:
CC - cultura do cientista
ME - método empregado
CTE – circunstância/tempo de emprego
RC – resultado científico.
Nesta equação de valores sempre variáveis, a menor mudança em
CC, ME ou CTE produzirá modificação em RC.
E o leitor pode perceber como a simples apresentação dessa asserção
em forma de equação dá ao saber que ela traduz uma feição de cientificidade. Alguns
estudantes já estarão se emprenhando em decorar o significado das siglas, por certo...
13
Idem.
11
Isto ocorre porque até um padrão estético14
próprio foi criado para dar ao que temos
chamado Ciência um aspecto peculiar. Assim como intuímos estar diante de um culto
religioso pela estética que ele apresenta, mesmo que sua temática não seja lá muito
apropriada para um culto, também temos a ilusão de estar diante da Ciência, quando
sentimos sua estética própria, sua forma metodologicamente definida. E se, por um
lado, sempre há aqueles que estão de plantão para lembrar as muitas atrocidades
cometidas em nome da religião, deve-se aceitar, também historicamente, as muitas
estupidezes que já foram inscritas debaixo das asas da Ciência, com tintas que
imitavam as cores de suas penas....
2.1. A pessoa do investigador
O cientista nunca passará de um ser humano. Esta obviedade
aparente tem grande ressonância epistemológica na concepção da moderna Ciência.
Como ser humano, carregado de cultura e, por ela, de parcialidades, o cientista
somente é capaz de criar ou aplicar um método de forma a atingir seu próprio nível
de compreensão do objeto. O método não supera seu criador ou aplicador em
abrangência e acuidade; simplesmente não pode fazê-lo. As deficiências naturais do
autor e do método criado ressoam inelutavelmente no procedimento científico, que
será sempre parcial e tendencioso. Não que essa parcialidade e essa tendencialidade
sejam concebidas propositadamente como partes do método. Pelo contrário, até
acabo achando que há cientistas que realmente acreditam que são imparciais... A
parcialidade e a tendencialidade residem nas deficiências naturais impostas pelo
humano fisiológico e pela carga cultural residente no humano. Citemos um exemplo:
O homem foi capaz de perceber, a certa altura de sua história, que os
cães ouviam sons que o próprio homem não ouvia. Isto tornou-se testável, porém,
apenas quando o homem foi capaz de criar uma tecnologia que se agregasse à sua
capacidade de percepção. O homem criou aparelhos que permitiam a produção
sistemática, a captação e a medição de ondas de som por ele imperceptíveis dentro de
seus limiares naturais. Esses aparelhos agregaram-se à capacidade perceptiva do
homem e ele foi capaz de “experimentar o que era ter a audição de um cão”. Seus
limiares estavam dilatados pela ação da tecnologia por ele mesmo criada, mas suas
restrições não estavam superadas e sua compreensão do objeto não podia ser
superada pela “compreensão que o aparelho e o método tinham do objeto”. O
método foi concebido a partir de uma concepção inicial da possibilidade de existência
de um espectro diferente de freqüência de onda e essa concepção não passou de uma
idéia humana sobre o objeto. Em outras palavras: intuição. Se, ao invés de conceber
um espectro diferente de freqüência de onda, o homem tivesse imaginado a ação de
espíritos animais ancestrais atuando na mente dos cães para predizer-lhes a chegada
longínqua de um estranho, provavelmente teria desenvolvido uma tecnologia que
acabaria “provando” que esses espíritos existem, nem que levasse mil anos para isso.
14
A estética da Ciência não é tema novo na Academia. Muito já se publicou nessa área, mas não caberia
aqui uma descrição detalhada de sua epistemologia peculiar. Retomarei o tema adiante com outra
finalidade.
12
E em que situação estaria a verdade científica nesse caso? Parece até que, no fundo,
em muitos aspectos da vida científica, o homem prova o que quer provar e se
convence do que quer convencer-se. Atribui causas aos efeitos, recria o fato
empiricamente, e reatribui as mesmas causas erradas aos efeitos que se repetem. É
mais ou menos como o cientista que aplica o método de medição do carbono 14 no
solo que envolve um fóssil e atribui a este a idade daquele. Se ele moer o fóssil para
aplicar o método, fica sem o material de estudo e terá de anunciar: “Ei pessoal, aquele
fóssil que nós possuíamos tinha cinco mil anos...”. Então é mais fácil acreditar que o
solo e o fóssil nele inserido têm a mesma idade. Todo mundo fica feliz e o fóssil é
preservado. Infelizmente não estávamos lá para saber quando aquele animal “virou
fóssil”. Nossas limitações de percepção, de tempo de existência, enfim, nossas
limitações humanas impõem-nos travas muito duras de romper.
Muito do que se descobriu em Ciência decorreu dessa busca
incessante em aumentar os limiares de ação e percepção que a fisiologia do homem
lhe impõem. Os microscópios, os telescópios, os espectrógrafos, o telefone, os meios
de transporte são exemplos dos resultados obtidos nessa luta pela auto-superação.
Mas, em nenhum momento, esses meios superam autoctonemente o criador. São
apenas meios. Não passam de agregados do homem. Nenhum desses meios é capaz
de compreender por si só o mundo e expor uma verdade de “per si”. Sem o homem,
não funcionam, não geram resultados. Logo, estão incondicionalmente atados às
limitações de quem os criou ou os aplica.
3. A pessoalidade na pesquisa científica
Essas limitações fazem de todo trabalho humano algo definitivamente
pessoal. A Ciência, como atividade concebida e praticada pelos homens, não é
exceção. Não há pesquisa científica impessoal. Cada cientista chega a resultados
diferentes a partir de um mesmo objeto. Claro que, depois de aceito um resultado
como o mais correto, depois de concebida a verdade científica, por assim dizer, outros
cientistas são capazes de reproduzir as idéias de outros. Seus experimentos repetitivos
e enfadonhamente imitados passo a passo com base nos procedimentos alheios
tornam-se a comprovação final de que aquilo é verdade e sentencial. Mas, verdade de
quem? Com base em quê? Com qual finalidade de proferimento?
A Ciência humana não é capaz de produzir mais do que “verdades de
um tempo” e “verdades de alguns”. Todos os procedimentos científicos são marcados
pela pessoalidade. De um modo geral – embora haja diferenças de uma ciência para
outra -, esses passos podem ser assim descritos:
O primeiro passo de uma pesquisa científica é o contato com o objeto.
Nesse contato a mente humana já divaga em uma infinidade de hipóteses e
explicações. É nesse momento que o verbo “achar” assume sua mais divina conotação.
Nessa fase, os cientistas incipientes acham que vão salvar o mundo de seus males; os
cientistas experientes acham somente que há uma resposta, mas têm certeza de que
vai dar muito trabalho para formulá-la em termos científicos, ou seja, construir essa
resposta humana e pessoal segundo a estética científica e impessoal. Nesse contato
13
com o objeto uma grande parte de nossas decisões “cientificamente calculadas” é
tomada.
Uma dessas decisões refere-se ao tamanho de nossas pernas. Este é
um momento ímpar da pesquisa científica, pois nele o cientista é obrigado a assumir
que não poderá, por mais que assim o deseje, dar um passo maior do que suas
possibilidades pessoais, tecnológicas – e até financeiras – permitem. A delimitação do
objeto, porém, também é revestida da estética científica. Justifica-se pela necessidade
de uma abordagem adequada do objeto.
A delimitação do objeto é seguida da escolha do melhor método para
uma análise. E se tenho que escolher um método, admito que com outro minhas
verdades poderiam ser, também, outras. Admito tacitamente que a Ciência não
produz “a verdade”, mas a minha verdade, que é apenas e tão-somente a permitida
pelas minhas restrições e pelo método que adoto.
Em já tendo escolhido um método - ou, em alguns casos, uma mera
técnica de trabalho – posso partir para a coleta e para seleção dos dados coletados.
Como vimos pela experiência de Heisenberg, por mais precisos que sejam meus
dados, eles serão sempre viciados pelas minhas próprias deficiências. Em pesquisa
social, a quantidade e a qualidade das variantes que interferem na coleta de dados é
simplesmente imprevisível. O mesmo vale para as ciências da linguagem. A seleção
de dados também obedece a critérios metodológicos muito bem definidos: escolho
aqueles que compreendo, aqueles que meu método dá conta de explicar, aqueles que
parecem responder aos meus anseios como pesquisador. Bem, embora não seja
politicamente correto admitir isso, nunca vi em algum trabalho científico o
reconhecimento explícito da ignorância do autor ou de sua inabilidade para explicar
um aspecto aparentemente simples de seu objeto. O que se vê sempre é “tenho
convicção de este trabalho contribui para a evolução da teoria”, “a pesquisa está
apenas no começo” ou “a Ciência ainda não consegue explicar esse fato”. Bem, parece
claro que, por mais imbecil que seja um trabalho ele permitirá o desenvolvimento do
pensamento de outros sobre o objeto, mesmo que para provar o quanto o autor
estava enganado sobre o que escreveu. Que a pesquisa está apenas no começo é
óbvio: o conhecimento que o homem tem de seu mundo e de si mesmo está - todo ele
- apenas no começo. Como alguém que se diz cientista pode ter a pretensão de
considerar que esgotou o conhecimento sobre um tema qualquer?! Agora, dizer “que
a Ciência não tem como explicar isso ainda” é como perguntar “por que Deus fez isso
comigo?”, pergunta clássica de quem sabe que falhou em algum ponto, mas não
admite seu estado culposo.
Partimos para a análise dos dados e sua interpretação. Tudo se dá nos
mesmos moldes em que se dá a escolha do método, a delimitação do objeto, a coleta
de dados, enfim, tudo se dá eivado das mesmas deficiências que acompanham o
cientista e seu método desde o princípio do trabalho. Não é por outra razão que
cientistas diferentes alcançam uma diferente compreensão de um mesmo objeto
quando usam métodos diferentes e, até, quando usam um mesmo método. É
totalmente cabível que a verdade de um não seja a verdade do outro.
14
4. A divulgação dos resultados
Este é apenas o último passo do trabalho científico, mas merece um
subtítulo separado. Existem muitos manuais de Metodologia Científica que já
conseguiram criar a falsa concepção de que a Ciência se confunde, de que ela mesma
é a escritura de monografias15
. Manuais chamados de “Metodologia Científica”, mas
que abordam exclusivamente a escritura científica, ou seja, o último passo dessa
metodologia. Há para essa modalidade de escritura toda uma descrição,
extremamente minuciosa, da estética científica. Aspectos relevantes como a editoração
do texto, que permite uma leitura clara e objetiva, referências bibliográficas, que
permitem a localização inequívoca de uma fonte, padrões de citação, que
resguardam os direitos intelectuais das idéias alheias, enfim, uma parafernália de
técnicas e padrões que são extremamente úteis na escritura científica e que lhe dão
aquela aura de sacralidade típica das revelações da verdade. E, sinceramente, acho
tudo isso muito interessante e produtivo. Acho mesmo que deve ser adotado, com
algumas ressalvas. Uma delas é a de que a vírgula não pode ser considerada mais
importante do que as palavras que ela separa.
Mas, há um aspecto muito mais grave sobre essa estética científica e
que me incomoda sobremaneira. É a impessoalidade que se exige do autor. Embora
toda a concepção do trabalho tenha sido cabalmente pessoal e que, desde o primeiro
contato com o objeto, o cientista tenha deixado suas marcas inequívocas no resultado
obtido, agora, ele é obrigado, por mera força consuetudinária, a desvestir sua
pesquisa de suas roupas originais, tirar-lhe a identificação pessoal, e vestir-lhe com as
vestes sagradas e transparentes que os verbos impessoais e as afirmações atemporais
conferem ao texto. Nada de “eus” e de “minhas verdades”. De fato, a verdade de um
homem é convertida simplesmente em “a Verdade”. E isso é, no mínimo, pernicioso.
Ao deparar-se com a verdade de um homem travestida de verdade
científica, o aprendiz fica obviamente intimidado. O instrumento de divulgação
científica assume o mesmo caráter que tem uma hóstia: precisa ser engolido, mas não
pode ser mordido! E o caso é que, muitas vezes, essa “hóstia” precisa ser mordida e
deve ser cuspida! O aprendiz de cientista acaba cristalizando essa concepção
divinizante da Ciência e a submissão tipicamente decorrente de toda concepção
divinizante faz com que esse aprendiz não se identifique como interlocutor do
relatório científico, porque não vê neste um diálogo, mas uma sentença.
Discordar do relato científico impessoalizado é como discordar de
Júpiter. Com quem discutir? A quem perguntar? Contra quem proferir? Quem me
responderá? Ou, muito mais do que isso: será que tenho direito de perguntar? O
direito de perguntar e retorquir, aliás, acaba sendo um direito de uns poucos
privilegiados que alcançam as elevadas esferas dos títulos acadêmicos, pessoas que
sempre proferem coisas inteligentes quando abrem suas sacratíssimas bocas.
É imprescindível que a Ciência seja pessoalizada. Temos que
entender que o formato dos continentes mudou nos mapas no decorrer dos tempos,
porque os homens e suas máquinas enxergaram os continentes de formas diferentes;
15
Ou também artigos, ensaios, dissertações e teses, que igual forma são, eventualmente, monografias,
isto é, quando escritos por um só autor.
15
que o tratamento da úlcera mudou no transcorrer da história da medicina, porque os
cientistas entenderam essa patologia de diferentes formas; que a concepção de
linguagem mudou no decorrer do tempo, porque os lingüistas enxergaram esse
objeto de maneiras díspares. Enfim, que a Ciência só é capaz de produzir verdades de
homens e de seus tempos, que precisam ser assim enxergadas. O que claramente
defendo é que o cientista precisa ter o direito de mostrar sua cara na escritura que
produz, pois o eu científico não transformará a Ciência em algo execrável, como,
mutatis mutandis, o eu poético não transformou a poesia em algo pernicioso.
Mas, porque há tanta resistência em pessoalizar a Ciência e sua
escritura? Certamente, porque isso retirará delas sua aura de divindade e isso
significaria retirar dos modernos fiéis seguidores da santa mãe Ciência os esteios que
sustentam sua concepção de mundo, da mesma forma que a desilusão com seu deus
pode levar um fiel deísta à loucura. E é possível indicar, pelo menos, uma só boa
razão para insistir nessa pessoalização?
5. Conclusão
A Ciência é o resultado da ação do homem e do método por ele criado
e adotado sobre seu objeto de estudo, numa circunstância e num tempo dados. Essas
peculiaridades dessacralizam a Ciência como concebida, por exemplo, na tradição
newtoniana, e a pessoalizam. Essa dessacralização é relevante ou mero desejo
oriundo de uma concepção acadêmica equivocada?
Respondendo a essa pergunta e à última do item anterior, creio que
há, pelo menos, uma e suficiente razão para insistir na dessacralização e na
conseqüente pessoalização da Ciência. A autorização da verdade, como se presta às
coisas práticas e cotidianas não precisa e não deve emanar de algo divino. É
imperativo que o homem seja capaz de separar o que tem origem natural do que foge
a sua compreensão, o que é efeito da própria ação humana, do que não lhe é peculiar,
as verdades que são meramente humanas, das que não são. Essa é a única maneira
que enxergo de fazer o homem simples entender quando é a mão de outro – ou a
ausência dessa mão - que lhe faz sofrer ou ser feliz. A única forma que consigo
conceber de fazê-lo entender, por exemplo, que não são as leis econômicas de
mercado, inquestionáveis em suas origens e alcance, que o fazem miserável, mas sim
a ganância de outro homem. É a única maneira realmente científica de tirar das costas
da divindade, do destino, da Ciência e dos princípios inelutáveis da nova ordem
social o dolo que cabe ao próprio homem.
Guajará-Mirim, 29 de agosto de 2000.
16
CONSIDERAÇÕES SOBRE A HIPÓTESE DA
INTERINFLUÊNCIA ENTRE PENSAMENTO, CULTURA E
LINGUAGEM
0. Introdução
O objetivo deste trabalho é revisitar a idéia whorfiana de que a
linguagem determina o pensamento, idéia esta que pode ser considerada uma
ampliação dos postulados anteriormente lançados por Boas e Sapir. Conhecida
posteriormente como hipótese Sapir-Whorf, ou como hipótese do relativismo
lingüístico, esta idéia de determinação encontra sérias restrições, mesmo se nos
baseamos nos exemplos dados nos estudos do próprio Whorf. O resultado desta
revisita é uma ampliação da proposta de Whorf, postulando-se uma hipótese de
interinfluência cíclica entre pensamento, cultura e linguagem. A comprovação
empírica desta hipótese, pretende-se, deve ser possível em qualquer língua. Utilizo
neste estudo, porém, a língua moré, da família Chapakura, da Amazônia, cujas
características estruturais se configuram especialmente adequadas ao que se propõe.
1. A Hipótese Sapir-Whorf
É conveniente, para abordar a hipótese Sapir-Whorf, retroceder um
pouco no tempo até Boas. Este autor afirmava1
que, uma vez que o conjunto de
experiências humanas difere de povo para povo, as línguas se constituem como
sistemas classificatórios diversos, em função das necessidades de expressão
virtualmente criadas em cada comunidade lingüística. Assim, para Boas, as línguas
possuem embutido em si um princípio de classificação da realidade, mas, a despeito
disso, são as diferentes experiências de uma comunidade que acabam por gerar
diferentes formas lingüísticas. Embora levasse em conta esta diferença entre as formas
de expressão e de classificação, Boas considerava que apenas uma fração do que o
falante constrói mentalmente, como sendo seu conceito global do objeto, é expresso
na fala. Dessa forma, além de classificatórias, as línguas eram consideradas por Boas
como sistemas altamente seletivos e econômicos, que determinam escolhas a uma
comunidade lingüística.
As idéias de Boas foram aprofundadas por Sapir, seu discípulo mais
ilustre. Assim como seu mestre, Sapir cria2
que as línguas são realmente sistemas
classificatórios, mas deu mais ênfase ao fato de que esses sistemas são construídos
1
Cf. F. Boas (1911).
2
Cf. E. Sapir (1921, 24)
17
segundo determinações coletivas. Além disso, Sapir acrescentou às idéias de Boas o
postulado de que cada língua possui uma estrutura sistêmica diferente que
determina, em função de sua completude formal, que tipos de classificações serão por
ela realizadas. Então, se uma língua é uma forma de atuação social, os padrões
estabelecidos em sociedade nela são repetidos, mas vinculados à própria estrutura
orgânica do sistema. Em uma passagem memorável, Sapir argumenta:
“the instrument makes possible the product, the product
refines the instrument.3” (Sapir, 1921)
Este asserto expressa um dos mais significativos progressos de Sapir
em relação à teoria de Boas: o fato de que a influência entre o pensamento (social) e a
linguagem (sistema lingüístico) ocorre, não em uma via de mão única, mas
mutuamente.
Whorf, aluno de Sapir, abandona esta última parte da doutrina
sapiriana e estabelece4
que a linguagem atua determinantemente sobre o pensamento
e, conseqüentemente sobre as ações humanas. Ele mantém, porém, a idéia de que é
através da completude formal aludida por Sapir, completude esta que reflete as
peculiaridades orgânicas da língua, que esta influência se dá. Embora ele mesmo não
o tivesse dito claramente, a obra de Whorf sugere que cada língua cria um padrão
distinto de pensamento no povo que a fala.
Essa proposição, chamada de hipótese Sapir-Whorf, embora tenha
tido sua maior defesa apenas em Whorf, claramente é o desenvolvimento de uma
idéia mais ampla e genérica de que a linguagem, mais especificamente, os sistemas
lingüísticos, foram os elementos primordiais no processo evolutivo humano e
responsáveis pela distinção entre o homem e os símios. O raciocínio pilar é bastante
simples: uma vez que o sistema lingüístico é capaz de determinar o comportamento
do ser que o usa, a criação do primeiro sistema lingüístico teria sido o marco inicial em
uma longérrima mudança comportamental dos antepassados humanos e o primeiro e
decisivo passo na separação das raças e na determinação de seus comportamentos tão
distintos.
Muitas objeções podem ser levantadas à essa proposição de explicar a
capacidade humana de linguagem e a evolução da espécie. Creio que três dessas
objeções, entretanto, merecem uma atenção especial. Destaco-as e comento-as a
seguir:
a. a hipótese Sapir-Whorf não apresenta resposta clara para o fato de
que línguas com padrões formais semelhantes não geram, obrigatoriamente, padrões
culturais semelhantes entre os povos que as falam. Se houvesse uma determinação
tão forte como Whorf postula, uma semelhança mais estreita de padrões culturais
seria esperada, por exemplo, entre os habitantes das diversas comunidades falantes
do português ou do inglês. Entretanto, não se constata haver tanta sintonia cultural
assim entre os falantes do Brasil e de Goa, ou entre os falantes norte-americanos de
Nova Iorque e os falantes da Guiana;
3
“O instrumento permite criar o produto, o produto refina o instrumento.”
4
Cf. B. L. Whorf (1939)
18
b. embora seja clara a questão de que cada língua funciona como um
depósito cultural sine qua non na construção do inconsciente coletivo e da visão de
mundo de uma comunidade, a percepção que os homens têm do mundo pode ser
igualmente explicada por fatores que vão do biológico ao puramente social. Isso
merece explicação mais apurada. Vejamos:
Um índio moré aprende, em sua cultura, que a árvore do tipo X tem
como nome , “o pacu come”. Este nome, na verdade uma metáfora
funcional5
, leva a criança moré, desde a primeira vez em que o ouve, a formular uma
questão inicial acerca do objeto, que poderíamos definir como sendo “por que esse
objeto leva esse nome?” e, a partir dessa questão, a entronizar um conhecimento
prático bastante importante para sua nação, porque referente à sobrevivência, que é a
busca e a consecução de alimento. Assim, se o pacu se alimenta dos frutos desse tipo
de árvore, e se os moré alimentam-se de pacus, a presença de tal planta na beira de
um rio ou lago pode indicar a presença de pacus, e isso está implícito na metáfora que
nomeia a própria árvore. Entretanto, a língua moré tem sido substituída pelo
espanhol nos últimos cem anos, e essa mesma árvore passou a ser conhecida entre os
morés como “canduru”, o nome espanhol. O fato é que os morés não perderam o
conhecimento de que os pacus se alimentam dos frutos do canduru, porque a prática
cotidiana da pesca induz à necessidade desse tipo de conhecimento, mas tal
informação perdeu seu registro lingüístico e, agora, são necessários outros meios que
conduzam à indagação inicial que levava ao conhecimento da serventia do objeto
determinado. É por essa razão que qualquer empréstimo lingüístico constitui-se, a
despeito da aparência de “ganho”, em uma perda incalculável para a cultura e a
identidade de uma comunidade qualquer.
Isso induz à conclusão seguinte: não há provas claras de que cabe
exclusivamente à linguagem determinar ou sequer ordenar a percepção que temos do
mundo, embora ela possa ajudar nesse processo de construção mental;
c. a hipótese whorfiana não explica o fato de ser possível, a qualquer
ser humano normal, aprender uma nova língua natural sem modificar
substancialmente seus padrões culturais ou de pensamento. Se a linguagem é
determinativa, uma nova língua deveria determinar novos padrões de
comportamento. Não parece ser o caso. E isso também merece atenção especial.
Whorf, como qualquer outro autor de enfoque materialista histórico, implicitava em
seu texto que o desenvolvimento da linguagem e, mais especificamente, do sistema
lingüístico pelos seres humanos teria sido o passo decisivo na bifurcação evolutiva
que conduziu o homem para um lado e os demais símios para outro lado da
evolução, uma vez que as conformidades biológicas e mesmo a postura não seriam
suficientes para tal modificação. Entretanto, essa proposição teórica, pretensamente
explicativa da atual condição humana, contém uma contradição interna ainda
intransposta e que merece ser destacada em dois pontos básicos:
1. a ciência moderna já comprovou sobejamente6
que o aprendizado
de uma língua constitui-se em uma incrível acutização na utilização da estrutura
5
Introduzi o termo metáfora funcional em C. Ferrarezi Jr. (1997). Refiro-me ao tipo de metáforas
criadas em uma comunidade de fala com uma função social, cultural ou mesmo lingüística específica,
além da função de nomear um objeto determinado.
6
Sobre isso cf. D.I. Slobin (1980).
19
biológica humana disponível de que resulta a capacidade de comunicação. Assim é
que uma criança utiliza, nos primeiros meses de sua vida, uma gama muito maior de
sons do que aqueles que virá usar quando, efetivamente, tiver incorporado o sistema
fonético e o fonológico de sua(s) língua(s) materna(s). Da mesma forma, o espectro
gestual de uma criança é muito maior nos primeiros anos de vida do que após a
lapidação dos gestos e posturas imposta pela sociedade a ela. O aprendizado de uma
língua, portanto, é uma ação que fere aos princípios básicos da teoria da evolução,
porque constitui-se em uma “involução”, no sentido em que restringe o uso das
capacidades naturais presentes no ser humano, principalmente se acreditamos que a
filogênese repete a ontogênese. Parece claro que aceitar o desenvolvimento dos
sistemas lingüísticos como um passo decisivo na evolução é ferir a idéia de
“progresso” no desenvolvimento, ou ainda, pode consistir em aceitar que o homem
tenha evoluído até um limite brutalmente superior ao atual e, depois, acutizado suas
capacidades, o que cria altos e baixos inconcebíveis no processo de seleção natural da
maneira como é apresentado pelos evolucionistas.
2. o segundo aspecto refere-se aos efeitos do aprendizado de outras
línguas sobre o homem. Sabe-se que o aprendizado de outras línguas interfere no
quociente intelectual dos indivíduos em ordens bastante significativas. Neste aspecto
é que considero possível uma comparação, grosso modo, entre o computador e a
mente humana - e basicamente só nesse aspecto: um computador que tenha uma
capacidade y instalada, somente poderá dela fazer uso através da instalação dos
programas adequados e utilização da linguagem artificial que permita o
aproveitamento de tal capacidade y. Da mesma forma, a mente humana apresenta-se
com um potencial surpreendente e sua utilização é otimizada com o aprendizado de
novos sistemas lingüísticos. Ora, à luz dessas considerações, analisemos o que seriam
duas das crenças centrais acerca da evolução do homem, segundo Farias (1971):
a. o desenvolvimento dos sistemas lingüísticos é parte de um
processo evolutivo da humanidade;
b. a evolução das espécies resulta de um processo de adaptação que
consiste basicamente no aprimoramento de uma capacidade biológica para sua
utilização em determinada função vital.
Com base nesses dois fundamentos, poder-nos-íamos convencer de
que a uma provável monogênese lingüística7
permitiu, em função da evolução dos
sistemas lingüísticos independentes, que esses mesmos sistemas viessem a tornar-se
intercambiáveis. Que espécie de evolução biológica teria permitido, porém, a
adaptação do conglomerado neurológico cerebral dos homens de forma a permitir a
manutenção das estruturas arcaicas e o intercâmbio lingüístico dos sistemas recém-
desenvolvidos? E faz sentido essa pergunta na medida em que se constata que as
estruturas de linguagem que teriam pretensamente sido desenvolvidas por outras
espécies, como das abelhas, formigas, cães, gatos, símios inferiores, etc., são
simplesmente inintercambiáveis. Somente o ser humano é capaz de intercambiar
diferentes sistemas lingüísticos. E isto está de tal forma previsto em sua estrutura
neurológica que amplia as funções intelectivas inatas. Não parece haver resposta para
isso se levamos em conta o fato de que o processo evolutivo deveria alterar as
estruturas anteriores, promovendo uma adaptação progressiva do organismo e
7
Cf. M. Ruhlen (1991).
20
aprimorando as atividades intelectivas em uma direção única que deveria ser
exatamente a direção da evolução do sistema lingüístico. Mesmo porque já se sabe, há
muito, que o aprendizado de um sistema lingüístico interfere no desenvolvimento
biológico do ser humano. Entretanto, a estrutura neurológica mental,
independentemente do sistema lingüístico adotado, é hoje a mesma em todos os seres
humanos. Mais do que isso, todos nós mantemos a capacidade de aprender sistemas
lingüísticos rudimentares e de intercambiá-los, embora não tenhamos mais a
capacidade de correr eficazmente a quatro pés, como acredita-se que fizemos no
período pré-“erectus”, respirar debaixo d’água, como no período pré-pulmonar, etc.
Tal contradição poderia desfazer-se se pensarmos existir um derradeiro contra-
argumento evolucionista neste tema.
Chomsky (1997) argumenta que a aparente diversidade dos sistemas
lingüísticos parece estar-se desvendando em uma incrível simplicidade funcional,
comum a todos esses sistemas e biologicamente determinada pelas estruturas
neurológicas humanas. Assim, os sistemas gramaticais do português e do chinês, por
exemplo, são, na verdade, muito mais parecidos do que se possa pensar, bastando,
para tal constatação, apenas uma análise funcional mais acurada. Eu mesmo tenho
trabalhado no intuito de demonstrar isso. Argumento alhures8
que todos os sistemas
lingüísticos conhecidos utilizam uma mesma estrutura subjacente de traços
semânticos para superficializar as mais variadas construções gramaticais possíveis.
Esse argumento pode levar a pensar que, na verdade, a estrutura biológica já
desenvolvida pelo homem é que poderia ter diferentes utilizações no
desenvolvimento dos sistemas lingüísticos. Em outras palavras: da mesma forma que
o homem teria desenvolvido suas mãos com polegares opostos para manusear
artefatos rústicos e, depois, acutizado suas potencialidades na lapidação de jóias ou
na confecção de obras-primas da pintura, poderia ter desenvolvido o cérebro e,
depois, acutizado suas funções. Mas, a pergunta que remanesce é: e com que
finalidade se teria desenvolvido o cérebro de tal forma? Ou mais propriamente: com
que finalidade a estrutura cerebral destinada à linguagem ter-se-ia desenvolvido, uma
vez que os motes da evolução, deve crer-se, são manter-se e perpetuar-se? Às mãos, a
teoria evolucionista atribui a necessidade de manusear objetos rústicos, e isso teria a
ver com manter-se. Além do mais, nessa hipótese, os objetos já estariam lá presentes
como motivos para o desenvolvimento e, aludindo novamente Sapir, ter-se-ia um
caso típico em que o objeto refinou a ferramenta. E quanto ao cérebro, se a linguagem
lhe é uma acutização como a lapidação de jóias o é para a as mãos, com que finalidade
ter-se-ia desenvolvido? Os símios inferiores e as demais espécies animais mantêm-se e
perpetuam-se sem que para isso se lhes exija capacidade lingüística sequer
assemelhada à do homem. Ademais, os diferentes sistemas lingüísticos - como
instrumentos rústicos aprimorados no decorrer do tempo - deveriam ter gerado, em
função da diversificação das línguas, diferentes evoluções neurológicas mentais nas
diferentes raças, já então espalhadas pelo globo. Mas, isso não ocorreu.
Decididamente, ainda não há resposta para isso e, sinceramente, creio
que não haverá, por uma simples razão: a estrutura neurológica cerebral humana
responsável pela linguagem somente se pode justificar pela necessidade de
comunicação lingüística entre esses seres, isto é, pela necessidade de aprender uma
8
C. Ferrarezi Jr. (1998b)
21
língua, o que pressupõe a existência dessa língua. E a acutização promovida pelo
aprendizado de uma língua, como disse anteriormente, constrói um paradoxo
evolucionista para a existência de uma estrutura tão mais complexa do que a
necessária. A possibilidade de intercambiar os sistemas lingüísticos, por sua vez,
demonstra que a estrutura neurológica presente não foi desenvolvida apenas com
finalidades funcionais imediatas, mas prevista para uma utilização muito mais
complexa e diversificada. Finalmente, as pesquisas de monitoramento
computadorizado do córtex cerebral, há muito, apontam para uma utilização
progressiva da área cerebral com o aprendizado de novas línguas - donde a
substantiva otimização cognitiva verificada -, o que ratifica a idéia de que há muito
mais potencial do que utilização do cérebro humano nessa área, o que é, a meu ver, o
maior paradoxo existente na teoria evolucionista sobre o desenvolvimento da
linguagem como fator decisivo na bifurcação evolutiva homem/símios, sobretudo se
levamos em consideração a então inexistência do “instrumento língua” para motivar
uma pretensa evolução. Creio que, embora não a tenhamos esgotado, para as
finalidades desse artigo basta-nos a argumentação até aqui desenvolvida. Retornemos
à hipótese whorfiana.
Desde seu estabelecimento, a hipótese de Whorf, portanto, talvez
por sua vaguidade, possivelmente derivada do fato de a obra de Whorf não
apresentar formulações mais esclarecedoras quanto aos fundamentos de suas idéias,
tem sido abordada de forma igualmente vaga. Mas, creio que, como proposição
teórica, ela nos fornece pistas interessantes que podem ser juntadas às idéias originais
de Boas e Sapir para a montagem de uma hipótese mais abrangente, descartado, é
claro, o determinismo evolucionista que combati acima. Vejamos:
a. parece consensual que há um tipo qualquer de influência da língua,
como sistema classificatório, sobre os atos praticados pela comunidade que a fala;
b. por outro lado, pode-se também notar que os atos praticados pela
comunidade chegam a influenciar a língua dessa mesma comunidade;
Juntemos a estas duas idéias, postulados mais recentes, como os de
Franchi (1977), baseado em Humboldt (1836), ratificados em Coudry (1988) e em
Geraldi (1993):
“Não há nada imanente na linguagem, salvo sua força
criadora e constitutiva...Não há nada universal, salvo o processo - a
forma, a estrutura dessa atividade. (Trata-se de) um sistema simbólico
mediante o qual se opera sobre a realidade e constitui referências em
que aquele se torna significativo.”(op.cit. p.55)
Esta idéia de constitutividade, de processamento contínuo, criativo,
dinâmico, histórico, quase-estruturante, somada aos postulados de Whorf e seus
antecessores, pode conduzir a uma nova hipótese, mais consistente, sobre o
relativismo lingüístico.
22
2. A Hipótese da Interinfluência Cíclica entre Pensamento, Cultura e
Linguagem
Neste ponto, já posso expor com mais detalhes a hipótese central
deste trabalho e, baseado nas conclusões colhidas até aqui, elaborar seus argumentos
básicos, partindo para testá-los nos títulos subseqüentes:
Hipótese da interinfluência entre pensamento, cultura e linguagem:
pensamento, cultura e linguagem interagem, interinfluenciando-se de forma cíclica.
São os argumentos básicos desta hipótese:
a. a cultura de uma comunidade é o conjunto de todos os
instrumentos desenvolvidos por essa mesma comunidade, para conduzir
controladamente as ações da própria comunidade. Cultura é, pois, toda a produção
intelectiva externalizada de uma comunidade humana qualquer (Geertz, 1970);
b. a cultura de uma comunidade é o reflexo do pensamento dessa
comunidade, da visão que esta comunidade tem de seu mundo e de sua realidade
nesse mundo (Lévi-Strauss, 1968);
c. a língua é o principal instrumento de que dispõe essa comunidade
para expressar os valores de seu pensamento, sendo portanto o principal instrumento
de estabelecimento da cultura (Lévi-Strauss , 1968, Posey, 1984, Hymes, 1966);
d. como instrumento de estabelecimento dos valores da cultura, a
língua atua sobre a própria cultura, na medida em que a estabelece ou em que pode
ser utilizada para refutá-la. Assim, a língua atua sobre o pensamento, por
conseqüência;
e. atuando sobre o pensamento e a cultura, a língua atua sobre si
mesma, uma vez que é instrumento a serviço do pensamento e da cultura. Forma-se
daí um processo cíclico de interinfluência entre pensamento, cultura e linguagem, de
tal forma constituído que é tênue a linha de separação que permite ver mais
claramente a influência de um sobre o outro.
Uma ilustração hipotética demonstra bem o que quero apresentar
nestes argumentos básicos, Nos títulos subseqüentes procurarei, apresentando
exemplos da língua moré, confirmá-los mais claramente:
Em uma determinada língua L utilizada por
uma comunidade C, com suas peculiaridades culturais, o
nome estabelecido para um certo pássaro rapineiro é
“destruidor”. A rapina, nessa cultura, sempre foi mal vista,
pois trata-se de um povo criador de galinhas e codornizes,
e o pássaro recebe um nome que, na língua dessa
comunidade, significa “aquele que destrói, que danifica”.
Esse nome tem, portanto, uma conotação ruim na cultura
dessa comunidade.
23
As gerações que surgirem tenderão a ver o
pássaro destruidor como nocivo, maléfico. Isto é a língua
influenciando as novas gerações de falantes, mas porque já
foi influenciada pelo pensamento e pela cultura
anteriormente, no ato de nomeação do pássaro. Mas,
digamos que, em um momento qualquer de sua história,
essa comunidade seja afetada por uma praga de roedores
que destroem as lavouras de milho, colocando em risco,
mesmo a criação das galinhas e codornizes que dependem
do alimento advindo daquelas plantações. O pássaro
destruidor poderá assumir um papel importante no
combate a essa praga e passar a ser visto como o
“destruidor da praga”, ganhando uma conotação boa na
cultura. O sentido da palavra que designa o nome do
pássaro será modificado em conseqüência da mudança do
pensamento e da decorrente mudança da cultura. As novas
gerações receberão valores culturais diferentes expressos
pelo nome do pássaro, pois o ciclo de interinfluência entre
linguagem, cultura e pensamento atuou decisivamente.
Podemos representar esse processo pelo seguinte esquema:
pensamento= cultura= linguagem=
visão de avicultores trato de avicultores “destruidor (das aves)”
realidade 1 realidade 1 realidade 1
pensamento= cultura= linguagem=
visão de avicultores trato de avicultores “destruidor (da praga)”
realidade 2 realidade 2 realidade 2
Nesse esquema, a interligação dos balões indica a inter-relação
existente entre pensamento, cultura e linguagem, tanto sincrônica como
diacronicamente. Cada um dos balões refere-se a uma realidade contextual e a seta
com duas pontas indica que o movimento não é seqüenciado, mas cíclico, num ir e vir
interinfluenciante. A seta de uma única ponta indica a direção cronológica, isto é, a
passagem, no tempo, do primeiro ao segundo estágio de desenvolvimento.
Passemos agora a exemplos atestados na língua e na cultura morés.
3. Uma Pincelada sobre Cultura e a Língua Morés
O povo moré, da etnia Chapakura, da Amazônia, não é exceção aos
demais povos indígenas da América, que passam por um flagrante processo de
24
aculturação e conseqüente caboclização. Estimado em quatro mil índios em 1950 e
contando com cerca de cento e cinqüenta indivíduos em 1969 (Grasso, 1982), esse
povo vive atualmente na aldeia boliviana de Monte Azul, às margens do rio Azul,
afluente do rio Guaporé. Dos quase duzentos indivíduos conhecidos atualmente,
apenas cerca de dez, todos anciãos, falam a língua moré suficientemente bem para se
constituírem como prováveis informantes. Os demais, ou entendem malmente o que
os anciãos falam, ou nem sequer compreendem qualquer expressão na língua.
O processo de pacificação pelo qual passou o povo moré, atingiu
também outras seis nações Chapakura, cujas línguas são dadas como extintas:
kitemoka, napeka, torá, chapakura, urupá e yaru. Outras línguas permanecem
temporariamente vivas: do miguelenho conhece-se um falante idoso vivo; do kuyubi,
um em mesma situação. As nações residentes no Brasil, às margens dos rios Laje e
Pacaás Novas, no território do município rondoniense de Guajará-Mirim, são as que
se encontram mais fora de risco, do ponto de vista das populações. Trata-se das
nações oro wari (oro win, oro nao, oro mon, cao oro waje, oro waram, oro eo, oro
waram txien e oro at). Algumas contam com quase mil falantes, como a oro nao9
.
A língua moré possui a peculiaridade de ser isolante, segundo a
tipologia humboldtiana (Humboldt, 1836). Os recursos utilizados por esta língua são
pouco conhecidos, uma vez que diferentes dos que são utilizados pelas línguas
aglutinantes e flexionais e já que não se tinha notícia anterior de descrição de outra
língua natural puramente isolante. Vejamos, portanto, muito sumariamente, alguns
aspectos da gramática do moré10
:
Em moré não há, em princípio, quaisquer tipos de afixos ou clíticos,
flexionais ou derivacionais. Todas as unidades mórficas são lexemas independentes,
invariáveis e plenamente isolados, apresentando obrigatoriamente uma das quatro
estruturas seguintes: #CV:# ([u] “o vento”), #CVC# ([] “o osso da perna”),
#CVCV:# ([] “o caminho”) ou #CVCVC# ([] “a onça”). Pode-se
considerar, porém, que o estágio atual da língua apresenta forte tendência à
flexivização, por influência extrínseca, provavelmente.
O moré, como as demais línguas Chapakura e quaisquer outras, usam
formas de concordância e regência como recursos convencionais para garantir a
inteligibilidade dos seus enunciados através da harmonização de traços semânticos
subjacentes11
.
Assim como nas demais línguas naturais, o contexto da enunciação
em uma língua puramente isolante é não só um auxílio para a interpretação do
enunciado. Trata-se de um dos recursos mais importantes da língua para que o
falante possa levar a interpretação a efeito satisfatoriamente, principalmente para a
recuperação dos elementos elididos. E é justamente nesse contexto mínimo definido e
compartilhado pelos interlocutores que se estabelecem os parâmetros do bom senso
comum que servem de esteio para a construção e interpretação dos diversos
enunciados, inclusive os poéticos, os mitológicos e os meramente figurativos.
Quanto a uma taxonomia lexical, diríamos que os lexemas do moré
podem ser utilizados indistintamente na qualidade do que tradicionalmente
9
Segundo dados da Superintendência Regional da Funai em Guajará-Mirim fornecidos em 1996.
10
Para uma explicação mais detalhada cf. C. Ferrarezi Jr. (1998a).
11
Sobre isso cf. C. Ferrarezi Jr. (1998b).
25
chamaríamos de “verbos”, “nomes substantivos”, “nomes adjetivos”, “nomes
adverbiais”, “locativos”, etc. Ou seja, os lexemas dessa língua possuem um sentido
original abstrato que é gramaticalizado como “nome” dos diversos tipos ou “verbo”,
etc., única e exclusivamente no nível do enunciado. Exceção a esta característica
“ataxonômica” dos lexemas Chapakura pode ser feita àqueles que designam
significados meramente gramaticais, ou seja, àqueles que parecem existir em função
da estrutura da língua, de sua gramática, e que exprimem significados como pessoa
gramatical, inter-relação entre os sintagmas, elementos de um sintagma ou sentenças,
etc. A esses lexemas igualmente isolados e independentes poderíamos, com
propriedade, chamar de conectivos gramaticais. Entretanto, aos outros, não lhes cabe
nenhuma das designações tradicionalmente encontradas nos manuais. Houvemos
por bem designar as únicas duas classes de lexemas dessas línguas, portanto, de:
1. classe aberta - à primeira, com significados exteriores à estrutura
gramatical da língua. Esta classe, como é próprio das classes ditas nocionais, cresce ou
diminui em número de elementos com o desenvolvimento histórico da língua;
2. classe fechada - à segunda, composta por cerca de dez lexemas,
cujos significados têm natureza gramatical. Trata-se de um paradigma mais rígido,
uma vez que não há a necessidade de alterações em seus elementos ou de acréscimos,
visto que a estrutura atual da língua é suficiente para a expressão cabal do
pensamento e da cultura de seus falantes.
Uma terceira classe poderia ser considerada, mas não no nível lexical.
Trata-se da classe dos “pronomes”. Na verdade, essas línguas não possuem lexemas
pronominais simples, entendido o pronome em sua acepção tradicional. Há grupos,
parcialmente cristalizados nessa língua, de lexemas que funcionam como anáforas,
catáforas ou determinantes nominais. Conviria considerá-los como uma espécie de
“classe sintagmática”.
Uma vez que a língua não possui uma morfologia interna
significativa e já que somente existem morfemas lexicais indecomponíveis, não há
componente lexical com regras morfofonológicas cíclicas alternando-se com regras
morfológicas de inserção de morfemas. Podemos, portanto, considerar que, em moré,
o input do componente lexical vazio coincide com o input do componente pós-lexical.
Estas brevíssimas observações sobre a estrutura da língua moré serão
suficientes para entendermos os exemplos comprobatórios da hipótese de
interinfluência entre pensamento, cultura e linguagem. Passemos a eles.
4. Atestando a Interinfluência entre Pensamento, Cultura e Linguagem
Há, pelo menos, três fatos estruturais da língua moré - mas, não
exclusivos a ela - que servem de forte argumento para comprovar a hipótese até agora
defendida. São eles:
1. as concordâncias reveladas através das palavras gramaticais;
2. as construções figurativas e;
3. as gramaticalizações de pressuposições mitológicas em paráfrases
de nomes próprios.
26
Vejamos uma a uma:
4.1. Concordâncias
Observemos o exemplo abaixo:
3. //[a onça ][apontativo de objeto/ passado / neutro [o
jacaré]]]
Apresentado na ordem sintática direta portuguesa, este exemplo
parece claro em função de sua tradução para o português, língua que tem uma
sintaxe de ordem rígida. Mas, em moré, como quase não há restrição à ordem dos
termos nesta sentença, ela pode apresentar outras formas naturais:
4. 5. 6. 7. , etc.,
todas paráfrases perfeitas de 3, “a onça caçou o jacaré” , e nunca com
o significado “o jacaré caçou a onça.” Como a inteligibilidade deste enunciado é
garantida? Com base no recurso da concordância. Os lexemas , , e , associam-
se em função de seus sentidos “apontativo de objeto”, “tempo passado” e “marca de
gênero neutro”, em uma estrutura “verbal” composta que indica que “um referente
de gênero neutro foi alvo de alguma ação no tempo passado”, que tem sentido em
função dos dois outros nomes presentes na sentença.
Uma pergunta que parece imediata é “de onde vem a idéia de
caçar?”. Pragmaticamente, estabelece-se em todas as línguas que a economia
enunciatória é, sempre que possível, um recurso bem vindo. No moré, o apontativo
de objeto, quando aparece só na sentença, tem seu significado atribuído em função
da ou das relações empiricamente conhecidas ou culturalmente determinadas entre o
elemento agente e o elemento paciente da sentença. Quando isso não é possível,
aparece o lexema ou conjunto de lexemas específico necessário à interpretação. Em
português, algumas palavras assumem esta mesma característica polissêmica do
apontativo moré, como ocorre, por exemplo, com a palavra “coisa”, utilizada na
qualidade de verbo em:
1. Mãe, olha aqui o Joãzinho que está me coisando! (no sentido de
chateando, atazanando)
2. Pára de coisar essa televisão, menino! (no sentido de mexer, fuçar)
3. Joãzinho coisou a Mariazinha e ela engravidou... (no sentido de
copular)
4. Essa mania de ficar coisando as coisas dos outros ainda acaba com
esse moleque. (no sentido de mexer sem permissão, vasculhar ou fuçar)
27
Assim, como os dois nomes presentes na sentença são de seres
naturalmente caçadores, mas que também podem ser caçados, atribuir o sentido de
caçar ao apontativo, neste caso, tornou-se um estatuto pragmático da língua e cabe à
determinação do gênero de cada um a definição de quem foi caçado (e de quem
caçou, por conseqüência).
Em uma oração tipicamente transitiva do moré, o nome que assume a
função que em português chamaríamos de verbal, vem associado a um lexema do
mesmo gênero do objeto. O nome para onça é masculino; o nome para jacaré é
neutro. Assim, somente se pode interpretar esta sentença como significando “a onça
caçou o jacaré”, independentemente da ordem em que os termos sejam apresentados,
se se conhece o gênero dos nomes nucleares onça, ejacaré. Mas, se
a língua não possui qualquer tipo de afixação ou flexão de gênero, ou seja, se as
palavras do moré são totalmente isolantes, logo, invariáveis, de onde vem a
informação de que é masculino e é neutro? Da cultura.
Na mitologia moré esses traços culturais determinados na língua são
revelados através da constituição de mitos e lendas. A onça, por exemplo, aparece na
mitologia como sendo um homem castigado e transformado em animal, e o jacaré um
dos seres assexuados e estéreis que o deus peixe mantinha sob sua custódia (uma
espécie de eunuco das profundezas, algumas vezes aludido como sendo uma mulher
estéril). Hoje, mesmo que os falantes do moré desconheçam sua mitologia e aceitem
tacitamente o gênero dos nomes da língua, como o fazem os falantes do português,
pode-se verificar a influência da cultura sobre a forma gramatical e da forma
gramatical sobre o pensamento, uma vez que os referentes têm mais probabilidade de
serem vistos como espécies que refletem o gênero de seus nomes.
4.2. Construções figurativas
Segundo Greimás & Courtés (1979) e Black (1954-55 e 61), uma
construção figurativa na língua é uma operação definível nos termos de uma função.
No caso de uma metáfora, a função exigirá que o sentido de um elemento de um
paradigma semântico seja transferido para um elemento de outro paradigma
semântico. No caso de uma metonímia, a transferência de sentido dar-se-á entre
elementos de um mesmo paradigma. Esta forma12
de ver tais funções como operações
entre ou dentro dos paradigmas nada mais é do que uma representação das relações
de transferência de sentido por similaridade (metáfora) e por contigüidade
(metonímia) da Semântica estruturalista. Mas, a pergunta que deve ser feita é: quem
ou o quê estabelece esses paradigmas? Creio haver suficientes provas de que é a
cultura que os estabelece.
Na língua moré, como os lexemas básicos (ou simples) são poucos, em
função de sua natureza isolante, e, em conseqüência, os lexemas compostos pela
combinação dos lexemas básicos são em número muito maior proporcionalmente, a
língua recorre demasiadamente às construções nominais figurativas. Assim, seja para
12
Sobre isso, cf. C. Ferrarezi Jr. (1998c).
28
nomes comuns de seres, antropônimos, topônimos, etc., temos quase sempre uma
combinação que gera uma figura. Um dos desafios a que me propus foi verificar,
junto aos informantes, o que, para eles, se constituía num empréstimo de significados
entre elementos de paradigmas diferentes e o que se constituía num empréstimo de
significados entre elementos do mesmo paradigma. Alguns dados são especialmente
significativos:
8. / [ areia / cabeça]
“corvina de água doce”
Para nossa cultura, isto poderia ser considerado como uma metáfora
entre peixe e areia, ou até, em última análise, como uma mera descrição do fato de
que este tipo de peixe possui duas pequenas pedras de cálcio em uma cavidade do
osso occipital. Mas, para os morés, que consideram este tipo de peixe como um dos
elementos mitológicos que nasceram da areia da praia, trata-se de uma metonímia. A
cultura e o pensamento moré estabelecem uma relação de contigüidade entre este
peixe e a praia que forma um único paradigma identificável. O mesmo acontece com
9. / [está deitado em/ areia]
nome dado a certo pássaro de hábitos praianos (“cuyabo” da praia),
igualmente considerado um dos seres nascidos das areias das praias do rio Azul.
Como se pode notar, também aí se nota a interinfluência entre a
linguagem e pensamento. Aquela expressa as idéias sobre o mundo, idéias que
compõem o pensamento da comunidade que a fala. Por sua vez, essas idéias aceitas e
refletoras da visão do mundo pelos morés (ou seja, o pensamento) interferem na
cultura.
Uma das formas mais interessantes e notáveis de interferência nos
hábitos culturais por parte da língua é a indicação indireta, através dos nomes dos
seres, da tecnologia mais própria para ser utilizada na realização de certa tarefa e
dominada pela comunidade de fala. Quando o nome de um animal mostra que ele
vive na praia ou no alto das árvores mais altas da mata, este nome dá ao caçador do
animal pistas interessantes sobre que tipo de tecnologia deve ser utilizada para a caça.
O mesmo se dá quando o nome de um rio indica que suas águas são turbulentas, o
nome de um lugar indica que seu relevo é rochoso e íngreme, ou o nome de uma
comida indica que ela deve ser assada, cozida ou comida crua. Em todos esses casos, a
língua traz em si informações funcionais significativas à cultura e que refletem a
forma como a comunidade vê seu próprio mundo.
4.3. Gramaticalizações de pressuposições mitológicas
Em uma cultura como a moré, em que os mitos e lendas estavam
muito vivos na alma dos falantes até há bem pouco tempo (e que, aliás, ainda o estão,
29
na alma dos cerca de dez anciãos restantes), muitas vezes, é possível ver como
elementos da cultura refletem-se na estrutura gramaticalizada para uma determinada
sentença ou nome próprio13
. Narro aqui um fato interessante ocorrido em uma das
sessões de coleta de dados com o informante principal. Veja-se o dado abaixo:
10. ////
[jaguatirica (caçar + arara)] / caçar / passado /masculino/ arara]
“A jaguatirica caçou a arara.”
Esta sentença foi dada como paráfrase do nome composto
“jaguatirica”, que significa literalmente “caçar arara”. O fato interessante
desta sentença é que o tempo gramatical expresso é o passado e não um tipo de
presente contínuo, como ocorre na grande maioria dos exemplos de paráfrases de
nomes compostos colhidos. Isto se explica de forma muito interessante. Os nomes
para jaguatirica e para arara foram atribuídos, segundo os informantes, de forma
mítica, em um passado remoto, definido pelos morés como “ancestral”. O nome da
jaguatirica deve-se, segundo eles, ao fato de ela ter caçado uma arara em especial (que
por sua vez era um guerreiro transformado em ave), e não por ela ser um animal
destro caçador de araras ainda hoje. Esse fato mitológico é que obrigaria o verbo ao
passado.
Este dado apresenta de forma bastante interessante a interinfluência
que venho defendendo. As alterações gramaticais às quais o falante se obriga ao
montar esta sentença parafrástica, como a determinação do tempo gramatical
passado, não podem ser justificadas de outra forma que não pela influência da
cultura na forma da língua, o que resulta em uma influência no - e já um reflexo do -
pensamento de quem usa essa língua como falante nativo. Este dado moré remete ao
fato de que o falante somente pode usar sua língua coerentemente se este uso
obedece aos padrões culturais em que esta língua se insere e para os quais ela foi, de
certa forma, desenvolvida e está devidamente adaptada.
Ao construir uma sentença em moré ou em outra língua qualquer,
para descrever um determinado objeto, é imprescindível que o falante parta de sua
visão cultural do objeto para descrevê-lo usando o sistema lingüístico como
instrumento nessa descrição. É por isso que uma representação lingüística do
significado do nome da jaguatirica na cultura e na língua morés obriga o verbo ao
passado. É por isso, também, que as línguas que utilizam o sistema gramatical de
classificadores nominais na estruturação de suas concordâncias internas exigem dos
falantes que aprendam a enxergar o mundo em conformidade com a visão cultural
expressa na língua. Para falarmos em yanomami, por exemplo, em que os
classificadores são representativos da forma física dos objetos, a construção de uma
sentença exige um tipo de visão do mundo que não tem a menor importância em
inglês ou português. Para construir a frase yanomami correspondente à portuguesa
“A canoa está no rio.”, precisamos saber a que grupo de nomes “canoa” e “rio”
13
No sentifo fregeano; cf. G. Frege (1978)
30
pertencem, em função de sua conformação física aparente ou culturalmente
estabelecida. Em português ou inglês isso não tem a menor importância gramatical. E
por que digo “conformação física aparente ou culturalmente estabelecida”?
Como argumentei alhures14
, é com base no pensamento e na cultura
de uma comunidade que esta realiza a constituição dos paradigmas utilizados no
sistema lingüístico. Inserir dois quadrúpedes ou duas árvores ou duas flores em um
mesmo paradigma parece um ato quase natural, porque as semelhanças aparentes
entre os elementos desses conjuntos são tão evidentes que dispensam maior atenção.
Certos seres ou objetos, entretanto, não permitem tal classificação óbvia. Um bom
exemplo disso ocorre na cultura yanomami, segundo a qual avião e canoa pertencem
ao mesmo paradigma e recebem idêntico afixo classificador. Isso se dá, não porque
avião e canoa são meios de transporte, mas porque o “corpo” do avião, segundo os
yanomami, tem a mesma forma física do “corpo” da canoa. Para chegar a tal
conclusão, os yanomami tiveram que filtrar culturalmente sua visão de um avião de
tal maneira que as asas, a cauda, as turbinas ou hélices, as rodas, tudo isso foi
desprezado em função da forma de “canoa” do corpo de uma aeronave cortado
longitudinalmente ao meio. Nesse caso, a classificação não foi estabelecida em função
de aspectos meramente aparentes, muito menos o foi de forma evidente a qualquer
cultura, mas com base nos princípios culturais interpretativos do mundo utilizados
pelos yanomami na constituição de seus paradigmas lingüísticos, uma vez que, nessa
língua, todos os nomes têm que ser classificados.
É bastante provável que no desenvolvimento natural da língua
yanomami esses aspectos aglutinantes se flexivizem, de tal forma que esses
classificadores, atualmente bem distintos, venham a fazer parte da estrutura dos
lexemas de tal forma que os futuros falantes não possam mais neles reconhecer a
origem cultural, do mesmo modo que acontece com a maioria dos falantes - não
filólogos - das línguas neolatinas. Mas, de forma alguma isso indica que a constituição
dos paradigmas dessa língua não adveio de aspectos do pensamento e da cultura dos
povos que as originaram ou desenvolveram.
5. Conclusão
Na hipótese que defendi neste trabalho, as palavras-chaves são
influência e ciclicidade, diferentemente da hipótese whorfiana, que defendia a
determinação unilateral da linguagem sobre o pensamento. Penso haver um ganho
descritivo bastante grande com esta nova hipótese em relação aos fatos observáveis
nas línguas naturais, como demonstrei através do moré. Esta hipótese permite, entre
outras coisas, dar respostas às três restrições que fiz no título 1 à hipótese de Whorf.
Mais do que isso, ela permite explicar relações funcionais entre a linguagem e os fatos
culturais de um povo, bem como entre a linguagem e o padrão de pensamento de
14
C. Ferrarezi Jr. (1998c)
31
cada comunidade. O poder previsivo da hipótese também é muito maior em relação
ao da teoria proposta por Whorf.
Outro ganho que considero significativo é a acolhida que esta
hipótese dá à separação, comum na Antropologia e na Sociologia modernas, entre
cultura e pensamento, o que não ocorre na hipótese whorfiana.
7. Referências Bibliográficas:
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.
FERRAREZI Jr., C. (1997). A Hipótese da Interinfluência entre Pensamento, Cultura e Linguagem.
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POSEY, D.A. (1984/1987). “Etnobiologia: Teoria e Prática.” in Suma Etnológica Brasileira. Edição
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Acadêmica.
WHORF, B. (1939). Lenguage, Pensamiento y Realidad. ed Barral. (outras informações não
disponíveis)16
.
15
Este texto foi fornecido como material didático para discussão durante atividade letiva da
Universidade Estadual de Campinas. Não me foi possível conseguir os demais informações
bibliográficas.
16
Idem nota anterior.
32
VINCTI SPEI1:
Um brevíssimo ensaio antropológico
Ao grande mestre e amigo Clodomir Santos de Morais
0. Introdução:
Tratamos aqui de um profícuo campo de estudos sociológicos e
antropológicos: associativismo. Uma proposta de estudo com a participação de
múltiplos agentes de diversos níveis acadêmicos é o mote. Cabe, antes de entrar em
nosso ensaio, portanto, uma descrição, mesmo que sumária, do porquê e do como para
que os dados sejam estes e não outros.
A academia ensina que o primeiro passo metodológico para a
realização de uma pesquisa de campo é a elaboração de instrumentos adequados de
coleta de dados. Elaboramos um questionário que procurava levantar dados em quatro
campos temáticos diferentes sobre os grupos associativos de Guajará-Mirim. Foram
estes os temas levantados:
1. Da associação - sua natureza, origem, magnitude e estrutura
organizativa interna. Pretendemos, com esta parte do questionário, levantar os
aspectos orgânicos que dão sustentação ao funcionamento de cada associação.
Críamos - e confirmamos nossa crença - que o organismo da associação refletiria o
nível de desenvolvimento da consciência organizativa de seus membros, bem como
ditaria grandemente as possibilidades de tornar concretos os objetivos aos quais a
organização propõe-se.
2. Do funcionamento - levantamos, neste capítulo, aspectos funcionais
não orgânicos da associação. Aqui se pretendeu averiguar de que forma os associados
dispõem de seus meios organizacionais, como usam os recursos que possuem, qual é o
aproveitamento que fazem de uma estrutura que construíram ou herdaram.
Objetivávamos, ao inserir tal tema, verificar até que ponto uma estrutura orgânica
define os rumos de uma associação. Constatamos que influi sucesso da empresa,
porém não da forma determinante como comumente se apresenta, uma vez que a
estrutura orgânica não é nada sem movimento. Assim como um corpo humano,
complexíssimo, obra-prima viva e ainda fora do controle total de seus possuidores, que
cai inerte, inútil, putrefato sem o movimento que a vida lhe confere.
3. Dos associados - quem são, que idade têm, onde trabalham e qual é
o nível de formação acadêmica. O que se queria averiguar era a relação entre a vida
social e a vida associativa. Não queríamos constatar o reflexo da ideologia artesã ou
1
Prisioneiros da Esperança. Trata-se de uma célebre frase romana utilizada em relação aos miseráveis de
uma nação.
33
operária no funcionamento da associação, tese importante, mas suficientemente
comprovada. Buscávamos, isto sim, uma relação entre as necessidades cotidianas do
associado e o fato de ele ser associado.
4. Opiniões e perspectivas dos associados - trabalhamos, aqui, com a
imagética do associado: como ele se vê e como ele vê a associação. Mais do que isso,
como ele acha de se deveria ver e deveria ver sua associação. Os princípios gerais da
imagética psicossocial seriam testados e, de forma alguma, refutados. A inter-relação
entre a imagem egocêntrica, calcada nos sentimentos pessoais desenvolvidos no
íntimo sapiens e a imagem alteregocêntrica, calcada nos arquétipos socialmente
construídos de um homo symbolicus e, ainda, faber.
Estes capítulos obrigatoriamente preenchidos de nosso questionário
subsidiar-nos-íam em nossa análise global do movimento associativo em Guajará-
Mirim. Mas, ainda uma outra espécie de dados nos interessavam: aqueles que se
abstraíam do complexo imagético do pesquisador. Abrimos, então, um capítulo para
observações livres, daquelas que mais se nos configuram como fofocas e bisbilhotices
de alguém que, de fora, chega para ver como somos e o que pensamos. Eram mesmo
estas as que queríamos; e decididamente as alcançamos. Como as uvas maduras que a
gralha negou à raposa, se nos vieram doces e cheias de revelações embriagantes sobre
a forma como o cidadão comum vê as associações...dos outros.
Estes questionários foram aplicados em um intervalo de cerca de uma
semana por um corpo eclético de pesquisadores: graduandos, graduados, especialistas
e membros comuns da comunidade. Em uma segunda data, os questionários foram
repassados à dupla de mestrandas que trabalharam os dados estatisticamente,
procurando retirar deles algumas conclusões preliminares. O trabalho de tratar
cientificamente os dados brutos durou mais uma semana. Meu trabalho pessoal
resumiu-se à orientação e organização do trabalho como um todo, emitindo o mínimo
de sugestões possível2
e, agora, o feitio do brevíssimo ensaio que se segue.
I. Organismo social
O que é um organismo social, se não um ser vivo em que cada célula
luta pelo alimento que pelo corpo circula? Se cremos que a organicidade do mundo
biológico determina a composição dos conglomerados de indivíduos aos quais
podemos, também, chamar organismos, não temos outra resposta que não a de
considerar a questão acima como uma indagação auto-respondida: trata-se mesmo
uma sociedade de um ser vivo. Como diria Farias, a mais complexa e sublime “forma
de organização da matéria viva”3
E o homem, nada mais do que “uma célula viva
integrada no seu grupo social e dele integrante”4
.
Mas, obviamente, como um organismo vivo qualquer, que evolui em
sua existência da forma unicelular à multicelular, esperar-se-ia que as sociedades
2
“O mínimo possível” é um eufemismo para “o quanto achei necessário”. Obviamente “o mínimo
possível de sugestões” é nenhuma.
3
FARIAS, Álvaro de. Homem, O Mago Pensador: Pensar- o que é? São Paulo, Edicon, 1984.
4
Idem.
34
refletissem esta mesma evolução, mas no nível de sua existência, muito mais longeva
do que a da maioria dos seres vivos que conhecemos. Assim, se um ser humano passa
do unicelular ao multicelular e complexo em algumas semanas, e do multicelular e
complexo à sua maturidade em poucos decênios, a escala cronológica das sociedades,
formadas por estes mesmos seres humanos, sociedades estas que constituem formas
de vida organizada em estruturas muito mais intrincadas, porque constituídas de
organismos complexos de per si - os homens-, e se estas sociedades têm a
peculiaridade de serem regenerativas, porque capazes de substituir suas células-
indivíduos por outras igualmente funcionais, conseqüentemente sua cronologia será
mais dilatada. Falamos de séculos, milênios talvez, se pudermos provar que a
organicidade de nossas sociedades advém da organicidade das sociedades ditas
primitivas. Ou mesmo, se pudermos comprovar - isto sim parece-me mais lógico - que
nossa sociedade é, ela mesma, o organismo social primitivo que consideramos
germinal, que já se encontra em avançado estágio de amadurecimento5
.
Considerada a longevidade de um organismo social, podemos admitir
que as fases apresentadas por Farias6
são lógicas e palpáveis. Em um parágrafo
encontrado na página 55 da obra citada, Farias assim resume a história das sociedades
humanas:
“Ultrapassava-se, assim, a era histórica em que as
organizações internas dos agrupamentos sociais baseavam-se na
espontânea e necessária solidariedade diante de um inimigo
comum - o mundo selvagem. Iniciava-se a era da pressão das
necessidades individuais e das relações de competição no seio
dos agrupamentos e entre os próprios indivíduos.”
Duas fase são explicitadas neste parágrafo. Excetuado o período pré-
social, dois outros em cujas interinidades perdurou relações diferentes entre o homem
e a natureza determinaram comportamentos distintos do ser humano na qualidade de
célula de um organismo social. Farias descreve o fato de que o homem era indivíduo,
por suas relações unívocas com o mundo. Em função do advento de tecnologias e
necessidades diversas, o homem se agrupou e surgiu o trabalho socialmente
determinado. O homem constitui, então agrupamentos; organiza-se, enquanto
matéria viva, de forma mais complexa, porque torna a si mesmo, unidade complexa e
integral, uma partícula de uma unidade ainda mais complexa, da qual ele ainda estaria
longe de compreender a cabalidade. Novas tecnologias e novas necessidades, porém,
viriam a promover uma segunda e mais assustadora transformação, aquela em que o
homem desenvolve a capacidade de abstrair necessidades, criando-as em função da
descoberta do seu poder de projetar. Surge o escravismo, e com ele o organismo social
simples, mas unívoco que se formara, torna-se em um emaranhado de re-indivíduos.
O homem havia redescoberto a individualidade, através de um confronto de
interesses personalistas que respondiam às projeções abstratas de necessidades nem
sempre tangíveis, quase sempre ilusórias. Farias comenta:
5
Ou, quem sabe, já se encontra em degenaração putrificante. Não se pode olvidar que a morte é parte
da evolução do organismo vivo e colabora para a continuidade da vida no sistema.
6
FARIAS, Álvaro de. Da Babel à Comunicação. São Paulo, Matra, 1971.
35
“Esta pulverização ou atomização alienou os
indivíduos uns dos outros, alienou-os das relações de produção
na natureza, dessa natureza da qual inegavelmente provêm e
para a qual inegavelmente retornam.”(op.cit., p.56)
Intrigante evolução de um organismo: de unidades-indivíduos a
unidades com indivíduos e depois a unidades pulverizadas por seus próprios
indivíduos. Este processo, diacronicamente determinado, que constitui a evolução
orgânica das sociedades humanas, pode ser representado como a seguinte
transcorrência de estágios: unidade complexidade de unidades unidade na
complexidade.
Não é incomum que os estágios evolutivos, diacronicamente
determinados, de um organismo vivo sejam reproduzidos sincronicamente em sua
existência. Assim é que os mesmos princípios que propiciaram ao homem sua
transformação de unicelular a multicelular e complexo7
coexistem no organismo
maduro, ensinando a própria história como um filme que se repete milhares de vezes
para quem o quiser assistir. Na Lingüística, não raras vezes encontramos nitidamente
os diferentes estágios diacrônicos da evolução de uma língua em sua estrutura
sincrônica. E as línguas, tanto quanto as sociedades, são organismos vivos, complexos,
multifacetados.
É assim que, nesta selva social individualista aludida por Farias,
encontram-se representados e visíveis diferentes estágios da evolução orgânica das
sociedades humanas. O associativismo participa representativamente de um desses
estágios - a nosso ver, o primeiro e mais longínquo.
II. Argumentum Baculinum8
Deveríamos nos perguntar o porquê de os homens se agruparem em
associações, se já vivem em sociedade. A resposta, a meu ver, só se encontra na
diacronia do processo evolutivo descrito anteriormente.
Em uma sociedade que se pauta em relações determinadas pela
capacidade de abstração de seus indivíduos e, por isso mesmo, uma sociedade
altamente simbólica, imagética, e ainda mais, que se caracteriza por um individualismo
atomizante, sobreviverá, segundo as normas da natureza para os seres vivos, aquele
que estiver melhor preparado. Na maioria das vezes, o preparo que a natureza exige se
resume à força - real ou abstrata - que o organismo exibe.
Em um mundo de relações do tipo sujeito-objeto, a demonstração de
força obviamente será real e concreta. O sujeito deverá ser capaz de demonstrar suas
aptidões para a sobrevivência sobrevivendo. Estas demonstrações típicas dos
irracionais, mas igualmente presentes nas sociedades humanas, cria a imagem
infecunda de que a força sobrepuja a razão em quaisquer circunstâncias naturais. O
7
É conveniente deixar claro que não falo aqui da evolução da espécie, mas da evolução do indivíduo, de
sua geração a sua maturidade.
8
“Argumento do cacete”. Velha expressão latina que se refere ao poder da força sobre a razão.
36
rato que se esconde em uma pequena reentrância da parede e sobrevive diante das
garras afiadas e muito mais rápidas do gato é um singelo exemplo de que outros
fatores, que não o poder traduzível em força bruta, concorrem para determinar a sorte
dos organismos em um sistema biodiverso.
Em um mundo de relações do tipo sujeito-abstração objetal, a
demonstração de força poderá, e provavelmente o será, de igual forma, uma abstração.
Não se traduzirá simplesmente na sobrevivência do sujeito, mas compreenderá outros
fatores de complexidade inimaginável em que os arquétipos imagéticos e símbolos
socialmente construídos fluem e refluem na construção de um sistema ao qual Farias
se refere como sendo de “feições de coisas”9
. A demonstração de poder em uma
sociedade como a nossa pode ser simplesmente uma encenação, uma farsa. São mais
raras as demonstrações concretas de força, em um sistema de relações como as
sociedades modernas, do que as teatralizações. O homem moderno desenvolveu
grande e velozmente a capacidade de representar-se forte sem o ser. A linguagem
concorre como arma surpreendente para isso, mas há outros artifícios para a mesma
finalidade.
Em uma sociedade atomizada, em que os indivíduos atuam uns contra
os outros em busca de seus interesses pessoais, mas que se caracteriza por ser pautada
em relações calcadas em abstrações, o mega-indivíduo, aquele que se possa abstrair e
representar como o mais poderoso de todos, certamente terá mais sucesso. O
indivíduo que encarna as qualidades orgânicas essenciais a um ser vivo, ou seja, as
capacidades de regenerar-se e ser longevo, de demonstrar força na hora certa e, se
necessário e em último caso, de demonstrar concretamente a força que possui, terá
muito mais chances de sobrevivência do que o indivíduo comum. Entretanto, este
indivíduo não existe, exceto na imaginação dos ficcionistas e dos ingênuos, que
fizeram de homens comuns super-heróis detentores de poderes incalculáveis. Este
mega-indivíduo deveria ser - e efetivamente acabaria sendo - criado, não como
resultado de um projeto humano de desenvolvimento, mas como resultado natural da
evolução do organismo social. Este mega-indivíduo é a associação.
O associativismo constitui novamente o estágio inicial da evolução do
organismo social, quando o homem-indivíduo labutava sozinho com a natureza. Só
que, agora, a natureza é a sociedade atomizada e o indivíduo é o mega-indivíduo, a
associação, o sindicato, a congregação, que luta por seus exclusivos interesses
traduzíveis pela intersecção entre o interesse pessoal de cada um de seus sócios e a
afinidade destes entre si. O homem-célula ressurge agora dentro deste mega-
indivíduo, que luta contra as forças “naturais” do organismo social em busca de sua
sobrevivência.
E os recursos? Teatralizações de sua força - ou pseudo-força -, na
maioria das vezes. Assim como dois machos que disputam uma mesma fêmea, os
mega-indivíduos das sociedades modernas testam seus instrumentos de intimidação
no interior do sistema biodiverso: o tamanho, o ruído, a imponência de suas formas e,
em último caso, a demonstração de sua força no embate direto. Da mesma forma, as
associações e congêneres teatralizam sua força através de seu tamanho- traduzido no
número de seus associados; de seu ruído- traduzido na capacidade de a associação
“gritar” seu poder diante do organismo social; da imponência de suas formas-
9
Idem, p.57.
37
traduzida nos seus objetivos confessados (mas, raramente os verdadeiros), no
montante de recursos que gere, na sua sede própria, na sua popularidade e
credibilidade diante das massas; e, finalmente, de sua força real, quando precisa- e se
consegue- concretamente agir no organismo social. Através do recurso extremo do
argumentum bacalinum, se não conseguiu intimidar aquele que se opõe aos seus
interesses particulares, a associação demonstrará sua aptidão para sobreviver como
mega-indivíduo no organismo social.
A razão de as associações surgirem em momentos de crise dentro de
uma determinada classe de indivíduos é, assim, plenamente explicada. Quando os
esforços de indivíduos comuns não resulta satisfatório, torna-se necessária a criação de
um mega-indivíduo que responda mais satisfatoriamente às exigências do organismo
biodiverso da sociedade. Não se torna difícil compreender, conseqüentemente, o
porque das afinidades de interesses entre os membros associados e os tipos de
cobranças realizadas entre os membros de um agrupamento associativo.
Mas, assim como um organismo humano depende da integração
dialeticamente harmônica entre suas células, para sua sobrevivência como organismo,
o mega-indivíduo moderno depende de uma mesma qualidade de integração entre os
membros associados para que sobreviva. Neste ponto, porém, a falta de consciência
cooperativa, refletida na falta de consciência organizativa, dos indivíduos das
sociedades modernas, é uma espécie de microorganismo nefasto que cancerígena as
células e as necrosa dentro do corpo desprovido de anticorpos, de uma associação
desestruturada - como a maioria. Este indivíduo-célula que insiste em ser um
indivíduo isolado, assume uma dimensão desproporcional no interior do corpo
associativo, impedindo a harmonia entre as partes.
Quando os interesses de uma célula falam mais alto do que os
interesses do organismo, energia demasiada é destinada a essa célula doente e a
tendência natural é que outras morram de inanição. Esvaziam-se as assembléias,
morrem as associações. O individualismo, o sectarismo e outros comportamentos
ideologicamente determinados, presentes em indivíduos-células da grande maioria
das associações nas sociedades modernas, respondem pelo fracasso de um sem-
número de empreitadas desses agrupamentos humanos.
O saneamento dessas doenças no corpo associativo só é possível com a
modificação, por um instrumento apropriado, da conformação imagética do
panegírico que representa a associação, como instrumento de resolução de todos os
problemas humanos, nas mentes dos associados. Torna-se necessário recuperar no
homem o sentido da unidade social cooperativa existente no interstício da primeira
mutação social aludida por Farias,10
aprimorando-o com uma consciência organizativa
modernamente construída.
Não cabe aqui uma profecia. A evolução do organismo social, porém,
tem demonstrado que à fase do ser-indivíduo, representado hoje pelo mega-
indivíduo, que é a associação (e seus congêneres), segue-se uma fase de cooperação
entre os seres-indivíduos, que se tornam indivíduos-células. Seguir-se-á tal evolução?
Seria próprio perguntarmo-nos isto: conseguirá o homem a cooperação dialeticamente
harmônica entre os mega-indivíduos- realidades incontestáveis das sociedades
modernas?
10
Ibidem.
38
III. Vincti Spei
O contingente de dificuldades que a vida em modernas sociedades
trouxe aos homens tem sido dificilmente aceito- e mais raras vezes superado- ao nível
pessoal. As respostas colhidas, na grande maioria dos questionários, demonstram que
aos membros das associações (grande maioria dos quais se constitui de pessoas com
enormes dificuldades sociais) resta a esperança imploratória, que desejam seja
premeditória, de que a evolução social continue e chegue-se a uma harmonia11
que
lhes permita, finalmente, a consecução de seus objetivos particulares, quase sempre
abstratos, mas outras vezes orgânicos, através do mega-indivíduo que procuram
constituir.
Este desejo de igualdade, ideologicamente marcado e confessável,
esconde os desejos biológicos íntimos de satisfação das necessidades pessoais
concretas, mas também das necessidades abstratas culturalmente desenvolvidas. Esta
necessidade de satisfação pessoal faz dos associados prisioneiros da esperança, vincti
spei, como diriam os latinos.
O associativismo tem esse poder quase místico de desenvolver, no
indivíduo-célula que o constrói e o compõe, uma fé comparável à do homem que
constrói um ídolo e, depois, prostra-se diante dele. A apologia ao associativismo, como
uma forma de resolução dos problemas modernos, que se vê atualmente nos mais
diversos rincões, segue-se da constatação da necessidade do mega-indivíduo ou é mais
uma abstração cultural? A quem interessam os prisioneiros da esperança, com seus
vícios artesãos e sua típica incapacidade de concretizar projetos?
Através do associativismo dois objetivos muito distintos podem ser
alcançados: o de conseguir coisas e o de fazer crer que se pode conseguir coisas.
O primeiro se consegue com a constatação de que o ser-indivíduo é
impotente diante de uma sociedade atomizada como as modernas o são. Através dessa
constatação e de um processo centrípeto que faz com que indivíduos, atômicos em seu
organismo social, descubram suas propriedades comuns e resolvam unir-se,
indivíduos efetivamente se unem, formando um corpo maior e mais forte, para
alcançar a consecução de seus objetivos.
O segundo se presta à transferência de responsabilidades, geralmente
por parte do estado e das facções sociais que nutrem a certeza de tirar partido, em
proveito próprio, da fraqueza dos seres-indivíduos que os cercam, à própria
incapacidade desses mesmos indivíduos explorados de constituírem um mega-
indivíduo sadio, capaz de competir com igualdade de condições no interior do
organismo biodiverso. Desta forma, essa espécie de associações já nasce doente,
dependente dos benefícios gotejados pelo estado, por políticos ou por pseudo-
mecenas que se apresentam como o cérebro que, ao mesmo tempo em que instiga as
pernas a pular um alto muro, as condena, depois do malogro, porque elas não o
puderam fazer.
Não é sem razão que as associações pesquisadas, sem exceção,
aguardam do estado muitas providências que elas mesmas deveriam tomar. Mais
11
Entenda-se, aqui, por harmonia o equilíbrio ideal que permitiria a distribuição eqüitativa de renda e a
garantia do direito de suprimento das necessidades básicas a todos os membros de uma sociedade.
39
intrigante ainda, porém, é o fato de que os associados culpam-se mutuamente
(diretorias a membros e membros a diretorias) pelos fracassos de seu agrupamento. Na
mesma intensidade em que se formara o espírito dos prisioneiros da esperança, forma-
se agora um espírito de desolação diante da incapacidade autoatribuída e
aparentemente intransferível de construir e de administrar a própria felicidade. A
apologia se esvanece e o mega-indivíduo sucumbe em conseqüência da inanição de
suas células. Os prisioneiros da esperança tornam-se prisioneiros da própria imagem,
por eles mesmo construída quando se perdeu, em uma sucessão de desilusões, a
imagem de seu mega-corpo, esperança de poder malograda e infame. Nada mais do
que a evolução natural do organismo social, auto-regenerativo, em que células dão
lugar a células. Drasticamente desorientador, porém, por tratar-se de nossos pares.
IV. Conclusão
As associações são, portanto, ao mesmo tempo, uma conseqüência
natural da evolução do organismo social e um instrumento habilmente utilizado por
certos grupos de indivíduos das modernas sociedades individualistas e atomizadas em
função da consecução de seus objetivos pessoais. São, também, um instrumento
importante, que se constitui num como que mega-indivíduo, capaz de conseguir, no
desenrolar da luta interna a um organismo social, aquilo que um indivíduo-célula
nunca seria capaz de fazer sozinho.
Esta concorrência de interesses intrínsecos e extrínsecos, próprios e
alheios, se reflete claramente nas respostas dadas pelas diretorias e membros das
associações de Guajará-Mirim. A desorganização de arquivos e assembléias, a desunião
entre os membros, a esperança nas ações governamentais, enfim, a debilidade desses
organismos associativos, tão-somente refletem este jogo de interesses em seus
diferentes estágios evolutivos.
Não se pode, entretanto, utilizar a “naturalidade” evolutiva do
fenômeno como desculpa para o imobilismo. Já que outras vezes utilizei, neste
trabalho, aforismos latinos, conviria considerar, aqui, um último: Nihil agere delectat12
.
Àqueles que coube a oportunidade de adquirir a consciência da essência de qualquer
que seja o fenômeno, cabe a conseqüente responsabilidade de utilizar este
conhecimento em prol da humanidade. Sem aplicação objetiva, o conhecimento é
inócuo, logo, não é conhecimento.
Guajará-Mirim, maio de 1998.
12
É agradável nada fazer.
40
DA NATUREZA DO SIGNIFICADO E SUAS IMPLICAÇÕES
0. Introdução
Para que um estudo sistemático qualquer se estabeleça como ciência é
mister que três fatores estejam nele muito bem definidos: o objeto, o objetivo e o
método.
O objeto é aquilo que se estuda, o elemento material ou imaterial que
concentra as atenções do cientista e a respeito do qual são formuladas, primeiramente
as hipóteses e, depois de comprovação científica, as mais variadas teorias com base
nas teses estabelecidas.
O objetivo é aquilo que se almeja alcançar, o ideal da ciência em
questão. Descrever, compreender, resolver, controlar, modificar são objetivos que
comumente aparecem integrados em um que é o mais mais amplo e genérico objetivo
de todas as ciências: proporcionar ao homem a compreensão e o domínio sobre os
seus mais variados objetos de estudo e, a partir disto, a compreensão e o domínio
sobre os mundos físico e não físico.
O método é o meio utilizado para estudar o objeto e para cumprir o
objetivo. O método deve ser entendido também como abrangendo o conjunto de
tecnologias específicas (aparelhadas ou não aparelhadas) utilizado para a consecução
dos objetivos da ciência; o método inclui, portanto, cada uma das técnicas e cada
instrumento desenvolvido para os fins de uma ciência. Desta forma, todo o arsenal
tecnológico de uso científico existente constitui, no âmbito dos três fatores que
descrevi, parte do método das ciências.
A Lingüística é uma ciência. Tomemo-la como exemplo e a crivemos
quanto aos três elementos acima apresentados.
Ao falar de Lingüística como ciência, é cabível considerar Ferdinand
de Saussure como fundador da Lingüística moderna no sentido em que foi o primeiro
pesquisador a delimitar com mais clareza esses três fatores descritos. A visão histórica
que Saussure possuía dos estudos lingüísticos o levou a considerar que
“a matéria da Lingüística é constituída inicialmente por
todas as manifestações da linguagem humana, quer se trate de povos
selvagens ou de nações civilizadas, de épocas arcaicas, clássicas ou de
decadência, considerando-se em cada período não só a linguagem
correta e a “bela linguagem”, mas todas as formas de expressão.”
(Saussure, 19891, p. 13)
1
F. de Saussure (1916/1989). Curso de Lingüística Geral. São Paulo: Cultrix.
41
Esta visão aparentemente ampla da linguagem como produto da ação
humana seria “post mortem”, no Curso de Lingüística Geral, circunscrita ao âmbito
da língua falada. Aliás, cabe ressaltar que, sem tal circunscrição, não entendemos o
porquê de Saussure citar a forma “bela” e a “não bela” como matéria de estudo da
Lingüística. Isto se deu obviamente em função de os pesquisadores que o
antecederam terem, em sua maioria, tomado somente a língua escrita como base de
estudos. Diríamos então que, desde Saussure, é bastante próprio - e, creio, sem
objeções inquestionáveis até hoje - definir a Lingüística tendo como objeto a língua,
sendo assim parte
“determinada e essencial dela (a linguagem)... ao mesmo
tempo, um produto social da faculdade da linguagem e um conjunto
de convenções necessárias adotadas pelo corpo social para permitir o
exercício dessa faculdade nos indivíduos.” (Op.cit., p.17)
É incontestável que o conceito de língua evoluiu bastante de Saussure
até hoje, o que nada mais é do que decorrência clara e natural de sua posição de
objeto de estudo de uma ciência. E justamente por isso, isto é, por tal evolução
conceitual, é que se pode ainda manter a língua como objeto primário da Lingüística.
O objetivo da Lingüística também foi apresentado por Saussure em
seu Curso:
“A tarefa da Lingüística será:
a. fazer a descrição e a história de todas as línguas que
puder abranger, o que quer dizer: fazer a história das famílias de
línguas e reconstituir, na medida do possível, as línguas-mães de cada
família;
b. procurar as forças que estão em jogo, de modo
permanente e universal, em todas as línguas e deduzir as leis gerais às
quais se possam referir todos os fenômenos peculiares da história;
c. delimitar-se e definir-se a si própria.” (Op.cit, p.13)
Parece claro que, a despeito de todos os avanços alcançados pela
Lingüística neste século, estamos longe ainda de cumprir os dois primeiros objetivos
lançados por Saussure e, creio, isto se dá não somente pela imensidão do objeto de
estudo, mas - e principalmente - porque não conseguimos ainda cumprir com
exatidão o terceiro objetivo, este, aliás, a aparente razão da elaboração do Curso de
Saussure por seus alunos.
O método da Lingüística deveria ter sido o instrumento capaz de
levar-nos à consecução desse objetivo mais íntimo desta ciência. Com o
desenvolvimento metodológico deveríamos ter sido capacitados a compreender os
limites da Lingüística e a ver bem claramente cada uma de suas atribuições.
Pode-se afirmar seguramente que o primeiro efeito do método
aplicado ao objeto sobre a ciência da linguagem já era claramente notado mesmo no
tempo de Saussure e já aparecia definido no Curso. Falo das subdivisões da
Lingüística. Foi por meio da aplicação dos métodos de análise dos sistemas
lingüísticos até então desenvolvidos que Saussure pôde propor uma ciência da
linguagem subdividida em Fonologia, Semiologia e Gramática (esta considerada em
42
dois eixos principais: estudo das relações sintagmáticas e estudo das relações
associativas).
O subseqüente desenvolvimento metodológico da Lingüística, seja
pelo desenvolvimento de novas técnicas, seja pelo avanço tecnológico do
instrumental utilizado nas pesquisas, permitiu verificar nuanças de seu objeto central
que permitiram uma subdivisão mais acurada desta ciência de modo a propiciar um
estudo ainda mais abrangente e detalhado desse objeto. É comum aceitar-se hoje
(embora não sem objeções) uma divisão muito mais complexa da Lingüística do que a
apresentada por Saussure, como a que se vê em Cagliari (19902
):
“Assim podemos dividir a Lingüística em Fonética,
Fonologia, Morfologia, Sintaxe, Semântica, Análise do Discurso,
Pragmática, Sociolingüística, Psicolingüística, etc.” (p. 42)
É de se esperar que cada uma dessas subdivisões apresentadas por
Cagliari, inclusive a subdivisão “etc.”, tenha em seu âmbito muito bem definidos o
objeto, o objetivo e o método que orientam seus estudos e fundamentam suas teorias.
E é claro que esses objetos, objetivos e métodos devem ser harmônicos em relação aos
da Lingüística como “ciência-mãe”; mas, certamente isto não significa que serão os
mesmos. Neste artigo, preocupo-me com a Semântica, subdivisão à qual me tenho
dedicado mais intensamente nos últimos dez anos. Crivê-mo-la a respeito desse três
fatores essenciais como fizemos com a Lingüística:
A Semântica tem sido definida comumente como “a ciência que
estuda o significado.” Esta definição, por si só, determina, pelo menos, o objeto e o
objetivo da Semântica:
1. o objeto, o significado;
2. o objetivo, compreender o significado, ou como diria Saussure
mutatis mutandis: “as forças que estão em jogo, de modo permanente e universal,
em todas as línguas e deduzir as leis gerais às quais se possam referir todos os
fenômenos peculiares da história”3
no que concerne ao significado.
Quanto ao método, caberia à Semântica, também em consonância
com as idéias saussureanas, definir-se a si mesma e delimitar-se, circunscrever-se,
desenvolver uma metodologia e um instrumental específicos para o trato com seu
objeto peculiar de estudo. A Semântica estaria, assim, clara e solidamente definida
como ciência. A questão não é tão simples como parece à primeira vista, porém, como
já observaram Ilari e Geraldi (19924
):
“A palavra ciência evoca domínios de investigação
claramente definidos, a respeito dos quais os cientistas aperfeiçoaram
métodos de análise unanimemente aceitos e elaboraram
conhecimentos coerentemente articulados e fiéis aos fatos. Ao contrário
disso, a Semântica é um domínio de investigação de limites movediços;
semanticistas de diferentes escolas utilizam conceitos e jargões sem
medida comum, explorando em suas análises fenômenos cujas relações
não são sempre claras: em oposição à imagem integrada que a palavra
ciência evoca, a Semântica aparece, em suma, não como um corpo de
2
L. C. Cagliari (1990). Alfabetização e Lingüística. São Paulo: Scipione.
3
Idem, p. 13.
4
R. Ilari e W. Geraldi (1992). Semântica. São Paulo: Ática, (Série Princípios, no
8).
43
doutrina, mas como terreno em que se debatem problemas cujas
conexões não são sempre óbvias.” (p. 6)
Esta constatação da difusibilidade da Semântica deve levar-nos a
desconsiderá-la como ciência? Nem tanto ao mar, nem tanto à terra... Creio que a
questão primordial está ainda no âmbito das definições - ou mais propriamente, da
compreensão dos fatores integrantes da ciência Semântica - e não tanto no que se
refere ao conjunto dos estudos desenvolvidos, da terminologia utilizada, do
desenvolvimento de teorias no campo daquilo que se tem chamado de Semântica,
mesmo porque grande parte desses estudos é extremamente rigorosa no que tange
ao que podemos definir como metodologia científica.
O que relato no parágrafo anterior parece ser um elemento
explicativo do fato de muitas teorias semânticas não apresentarem o poder explicativo
e o poder preditivo esperados de teorias científicas, embora sejam elaboradas sob
rigorosos critérios de cientificidade e por pesquisadores reconhecidamente
competentes. Paralelamente, quando a Física, por exemplo, explica o movimento de
um corpo e prediz a possibilidade de reprodução do mesmo movimento em
condições idênticas, da mesma forma que prediz as alterações nas propriedades do
movimento do mesmo corpo em condições diversas, ela o faz porque detém um
conhecimento exato - ou quase isso - do objeto de estudo e do método a aplicar nesse
estudo. Quando, por outro lado, a Semântica propõe teorias acerca do significado, tais
asserções mostram-se, na maioria das vezes, insatisfatórias pelo simples fato de que
não detemos uma noção exata de “que espécie de coisa”5
é o significado, logo, não
sabemos bem a que espécie de objeto devemos aplicar tais teorias, ou seja, que espécie
de coisa estamos descrevendo e que espécie de eventos devemos prever. E, se não
temos noção exata do objeto de estudo, não há como circunscrever a ciência que o
estuda, tampouco especificar um corpo doutrinário e metodológico coerente e aceito
unanimemente, como reclamam Ilari e Geraldi6
.
Durante milênios a pergunta “o que é o significado?” tem ocupado a
mente de estudiosos da linguagem e de filósofos. Sem esta reposta não podemos
manter o estatuto de ciência para a Semântica, a menos que consideremos um outro
escopo para esta ciência que não o comumente proposto. O presente ensaio versa
sobre essa celeuma histórica, apresentando uma revisão da teoria tradicional através
de uma proposta de restruturação da Semântica enquanto subdivisão da ciência da
linguagem.
1. Brevíssima - e possivelmente imprecisa - História do Conceito de
Significado.
A questão de que espécie de coisa é o significado está tão
intimamente ligada à própria natureza humana e à das manifestações do pensamento
5
Para relembrar Katz. (J. Katz (1972). “O Escopo da Semântica”. In: M. Dascal (org.) (1982).
Fundamentos Metodológicos da Lingüística: Semântica. Campinas: Ed. do Organizador. pp. 43-61.)
6
Idem.
44
que raramente foi possível ao homem analisá-la de uma maneira imparcial e
realmente científica através um prisma unicamente lingüístico. A correlação da
língua com as demais manifestações do pensamento humano - e do significado com
tais manifestações, por conseqüência - fez com que o significado fosse sempre
explicado à luz de outras teorias, ora da Filosofia, ora da Teologia, das ciências
naturais, enfim, a partir de um ponto de vista que não estritamente próprio de uma
ciência da linguagem. Assim é que as concepções de significado desenvolvidas até
hoje estão, em sua maioria, eivadas de critérios de outras ciências ou crenças, de tal
forma que cumpre conhecer um pouco do pensamento da época em que essas
concepções foram formuladas, para que se possa compreendê-las.
Do que se tem notícia nos estudos lingüísticos, provavelmente
Heráclito, filósofo grego, tenha sido o primeiro estudioso a sistematizar idéias acerca
do significado. Para Heráclito, o significado era o próprio pensamento humano. O
“logos”, a palavra, era sua expressão. Ao pensar, o homem criava significados; ao
falar, os expressava. Heráclito não via significados na natureza ou fora da língua. Eles
eram como idéias absolutas, cuja existência dependia da existência do pensamento.
Aristóteles, embora baseado em uma lógica mais formalizada, agregou à idéia de
Heráclito uma visão mitológica - bem ao gosto helênico, diga-se - de que o significado
atuaria em relação à palavra como uma espécie de espírito encarnante. Ainda se
falava das idéias, mas agora destas em forma de uma energia transcendental que se
encarnava na palavra e dela fazia uso como corpo formal durante o tempo que lhe
aprouvesse, devendo-se desencarnar e retornar em outra palavra quando a evolução
do sistema lingüístico assim o exigisse - ou ainda justamente para provocar tal
evolução. Assim foram, por muito tempo, explicados os fatos históricos facilmente
detectáveis de significações antes relacionadas a uma palavra que, mantidas na
cultura, passavam a ser referidas por outra ou outras palavras. Para uma cultura que
separava corpo e espírito dando a ambos existência quase independente, não se
tratava de uma explicação somente representativa, como também bastante acessível.
A lógica formal grega, por sua vez, se hoje objetivamente analisada,
não contribuiu muito na definição de um conceito de significado. Auxiliou, sim, na
elaboração de um método bastante complexo de tratamento das manifestações do
significado nos diferentes níveis do estudo lingüístico, desde a simples “teoria do
certo e do errado”, que apontava para uma tendência normativista semelhante à de
Paninì em sua gramática do sânscrito do Século IV a.C., até a formulação mais
complexa do raciocínio lógico, tanto em sua modalidade indutiva, quanto na clássica
forma dedutiva do silogismo.
A visão aristotélica do significado permaneceu quase inalterada até
meados do século XVII. Neste grande hiato da história dos estudos lingüísticos, pouco
de novo foi concebido no que concerne ao significado, sendo que a reprodução das
idéias gregas constituiu-se como norma científica. Por volta dos anos 1600, já
constituído o mosteiro de Port-Royal e já bem desenvolvida uma filosofia cristã
católica na Europa, os senhores de Port-Royal conseguiram sistematizar uma nova
teoria da significação com fundamentos teológicos e filosóficos nomeados de
“racionalismo” que, para eles, constituíam bases lógicas e naturais. Por que lógicas?
Por que a natureza era tida lógica e seu funcionamento tido como definido por uma
lógica superior e divina. Por que naturais? Porque tais concepções seriam aquelas que
melhor representariam a essência dos fatos do mundo.
45
A Bíblia, até então privilégio da elite católica, tinha finalmente sido
acessada pelos monges e por alguns leigos que buscavam a compreensão de cada
palavra em um estudo ardente e ininterrupto. Como se sabe, o relato bíblico
apresenta a criação como obra da palavra do Criador. A deparação com frase “e disse
Deus” repetida diversas vezes na gênese do mundo segundo as Escrituras e as muitas
interpretações ontológicas que dela decorreram, fez desenvolver-se uma visão
bastante tentadora da noção de significado. As palavras primordiais do Criador (fiat
lux, por exemplo), aquelas utilizadas por Ele para fazer surgir os elementos naturais,
eram encaradas como sendo o meio condutor da energia criadora que resultou nos
objetos do mundo físico, ou seja, o meio pelo qual Deus criou as substâncias de um
mundo que era “sem forma e vazio”7
. E foram essas mesmas palavras que,
posteriormente, passaram a denominar as substâncias através delas criadas. Isto
levava a enxergar a palavra como um instrumento do processo da criação, mas
também como uma ferramenta divinamente concebida para a intermediação entre o
mundo físico e a compreensão humana racional desse mundo. Logo o significado da
palavra passaria ser visto como sendo aquilo que ela gerara, o próprio objeto, a
substância. As palavras cujas significações eram substâncias passaram a ser chamadas,
então, pelos monges de Port-Royal de palavras de significação própria e, mais tarde,
de substantivos – ou palavras que designam substâncias; as palavras que se referiam
às propriedades das substâncias ou às decorrências dessas substâncias, como ações e
demais fenômenos imateriais, eram consideradas como tendo uma significação
imprópria e receberam o nome de acidentes8
.
Essa associação do significado ao objeto do mundo ao qual a palavra
se refere parece ter prevalecido até o final do século XIX e, em muitos aspectos
prevalece até hoje. A maioria dos dicionários do português, por exemplo, não
apresenta a significação da palavra, mas dá uma descrição das propriedades do seu
referente, o que se pode chamar com mais precisão de extensão do significado. Assim
é que procuramos a significação da palavra “pernilongo”e encontramos “inseto da
família tal, etc. e tal.” É claro que isso não é o significado da palavra, mas a descrição
da substância por ela referida. O significado da palavra “pernilongo” pode ser
definido grosseiramente como “pernas longas” ou ainda “aquilo/aquele que tem
pernas longas”. E nesse sentido, um avestruz ou uma girafa seriam “pernilongos”.
Mas, a especialização dessa palavra em relação ao inseto não permite facilmente tal
uso. Mais do que isso, faz crer que o próprio inseto seja o significado da palavra. Tal
concepção é não somente repetida como alimentada pela maioria dos dicionaristas.
Apenas alguns trabalhos do gênero “dicionário” apresentam a significação das
palavras mas, mesmo assim, comumente seguida da descrição do referente.
Tal confusão entre a significação da palavra e seu referente foi
discutida pelo filósofo alemão Gottlob Frege, no clássico ensaio “Sobre o Sentido e a
Referência”9
. Frege utiliza grande quantidade de argumentos para sustentar
logicamente a afirmação de que o significado não é o objeto ao qual uma palavra se
7
Gênesis 1:2.
8
Cf. Arnauld e Lancelot (1992). Gramática de Port-Royal. Tradução de B. F. Basseto e H. G. Murachco.
São Paulo: Martins Fontes.
9
G. Frege (1978). Lógica e Filosofia da Linguagem. Tradução de Paulo Alcoforado. São Paulo:
Cultrix/EDUSP.
46
refere e que é necessário diferenciar, ainda, o objeto real e a palavra daquilo que é
compartilhado socialmente como sendo o significado desse sinal e daquilo que cada
um entende particularmente como sendo sua significação. Frege diz que
“A referência e o sentido de um sinal devem ser
distinguidos da representação associada a esse sinal. Se a referência de
um sinal é o objeto sensorialmente perceptível, minha representação é
uma imagem interna, imersa das lembranças de impressões sensíveis
passadas e das atividades internas e externas que realizei.” (Op.cit., p.
64)
Para Frege, então, o sinal é o elemento que remete à significação. No
caso da língua, é a palavra. A referência é a substância - quando ela existe, ressalva
Frege. O sentido é a idéia compartilhada sobre o referente, isto é, uma concepção
geral que permite o entendimento dos significados das frases entre os falantes.
Finalmente, a representação é minha concepção pessoal acerca do referente. Essa
separação entre o significado e a substância era o resultado direto do neo-
racionalismo europeu do Século XVIII, segundo o qual deve haver uma grande
valorização da objetividade representada pela separação entre o fenômeno, seu
estudo e o estudioso. Essa separação foi responsável pelo aprimoramento do conceito
de objetividade científica e também pela idéia de que seria possível proceder ao
estudo de um objeto de maneira tão imparcial e descomprometida com os resultados
que a própria presença do pesquisador deveria passar despercebida, sendo que as
conclusões científicas tornar-se-iam cabalmente ininfluenciáveis. É óbvio que um
racionalismo desse nível negaria as idéias teológicas e filosóficas de Port Royal,
procurando lançar bases mais humanistas e menos teológicas para o estudo da
realidade – essa negação do sobrenatural acabou formulada sob a égide da
objetividade.
Foi nesse tipo de clima intelectual que essa idéia de que o significado
era um tipo de entidade socialmente construída, compartilhada e passível de análise
objetiva aparece, também, em Saussure, contemporâneo europeu de Frege. Para
Saussure, o significado era um tipo de imagem mental criada por interação social na
mente do falante. Sem dúvida, uma proposta conceitual bastante próxima à de Frege,
embora a proposta de Saussure não abrangesse claramente os quatro níveis da de
Frege (matéria, imagem socializada, imagem pessoal e sinal).
As idéias de Frege e Saussure em relação o significado tiveram uma
vida mais curta que as idéias de Aristóteles, não porque fossem piores, mas em função
até de já existir, no Século XX, um grupo muito maior de pesquisadores da
linguagem, em uma ciência então razoavelmente constituída que era a Lingüística. E,
nesse sentido, Saussure foi o maior responsável pela negação de grande parte de suas
próprias idéias: ele mesmo idealizou a estruturação da Lingüística científica. Essas
idéias de imagens mentais, as socialmente definidas (o sentido, para Frege; o
significado para Saussure) ou as pessoalmente construídas (as representações, para
Frege) sofreram grave objeção já na década de 30 deste século, quando se argüia
sobre uma resposta teórica que explicasse o fato de que há muitas palavras para as
quais atribuímos significados, mas para as quais não possuímos ou desenvolvemos
nenhuma imagem mental descritível. Entretanto, além de objetar das concepções de
Saussure sobre as imagens mentais, as escolas lingüísticas, até a década de sessenta,
47
pouco conseguiram avançar na elaboração de um conceito de significado, embora
tenham procedido grandes descobertas em relação a este objeto. Mais do que isso, os
estudiosos estruturalistas deram um grande passo comprovando a divisibilidade do
significado com seus sistemas de análise binária.
No início da década de sessenta, Chomsky e sua equipe inauguram
nos Estados Unidos a escola gerativista. A idéia fulcral dessa escola é a de que a
geração da linguagem humana passa por vários estágios sucessivos, sendo que o
primeiro deles, o mais profundo e primordial, é puramente semântico. Isto é, a
geração da linguagem humana é um processo que nasce na significação pura e vai
até a expressão lingüística, e desta de volta à significação pura, no ato de
compreensão do que foi anteriormente gerado. O principal argumento da escola
gerativista era inatismo das estruturas lingüísticas humanas. Este argumento era
justamente o principal fator negado pela escola psicológica piagetiana e a base dos
estudos de seu mentor, o pesquisador suíço Jean Piaget. O resultado quase óbvio foi o
confronto das duas teorias em uma grande série de debates acirrados10
que resultaram
mais na separação dos pesquisadores das duas linhas do que em uma formulação
realmente explicativa do que é o significado. Mas, como vimos, todos os
fundamentos da escola gerativista estavam fincados em um conceito de significado,
ou melhor, todas as esperanças dessa escola estavam baseadas na possibilidade de se
apresentar um conceito claro, objetivo e coerente de significado e, assim, de poder-se
delimitar exatamente as propriedades de um componente semântico. Não é sem
razão que em poucos anos de existência a escola gerativista tenha-se dedicado de
forma tão intensa a uma teoria das transformações. Não porque pretendesse a partir
das transformações explicar que espécie de coisa é o significado, mas justamente
porque não sabia que espécie de coisa era o significado e, assim, não se tinha como
dedicar a uma teoria específica da geração. A busca de respostas transformacionais
não foi nada mais do que uma tentativa frustrada de transformar o desconhecido em
conhecido através de complexíssimos processos pseudo-explicativos de como uma
significação pura torna-se uma frase da língua.
Enquanto a grande massa de pesquisadores da linguagem11
fazia do
gerativismo uma teoria “sintático-florestal”, cuja maior preocupação era explicar por
meio de árvores que transformavam qualquer coisa no que o pesquisador precisasse,
houve uns poucos gerativistas que procuraram dedicar-se, obviamente orientados
pela necessidade, à busca de uma resposta satisfatória a respeito de que espécie de
coisa é o significado, sem a qual as idéias gerativistas não teriam muito mais
fundamento do que as de Aristóteles ou a dos monges de Port-Royal. Entre esses
pesquisadores destaca-se Jerrold J. Katz, certamente a maior esperança gerativista (ou
talvez coubesse ler “chomskyana”) de uma solução para a questão do significado.
10
Como exemplo desses debates cf. M. Piatelli-Palmarini (1979/1983). Teorias da Linguagem, Teorias
da Aprendizagem: O Debate entre Jean Piaget e Noam Chomsky. Tradução de Álvaro Cabral. São
Paulo: Cultrix.
11
Principalmente nos Estados Unidos e em seus países culturalmente colonizados, como o Brasil, uma
vez que os europeus mantiveram em grande monta sua tradição histórico-comparativa, tratando até
com certo desprezo a onda gerativa. Conta-se, como exemplo dessa distância, que certo lingüista
europeu de renome teria dito em um congresso: “Deixe-os gerar a linguagem que depois nós
utilizamos a Lingüística para analisá-la.”
48
2. O Erro Gerativista Acerca do Significado
Em 1972, Katz apresentou à comunidade científica um ensaio
denominado “O Escopo da Semântica”12
, no qual procurou explicar porque a
Semântica tinha problemas históricos como ciência, bem como porque não se havia
chegado a um conceito bem definido sobre o que é um significado. Cumpre aqui
mostrar, com base nesse texto que se tornou um dos pilares filosóficos da teoria
gerativista e assim foi mantido por muito tempo, em que aspectos Katz e seus
seguidores se equivocaram e quais as conseqüências desses erros.
O primeiro passo dado por Katz no caminho de uma teoria do
significado foi ratificar a posição de que a Semântica é a ciência que estuda o
significado lingüístico. Assim, Katz procurou afastar as acusações de que a própria
teoria gerativa não era científica, pois fundamentada em uma concepção do
componente semântico como base de toda a linguagem. O segundo passo de Katz foi
o de tentar explicar o porquê de, em sendo a Semântica uma ciência, não ter ela
conseguido sequer delimitar seu objeto de estudo. O argumento básico de Katz é o de
que
“Tem havido alguns equívocos sobre a maneira pela qual
o estudo do significado deveria proceder ao tentar responder à questão
(“o que é o significado?”)...
A questão “O que é o significado?” não admite uma
resposta direta, “isto ou aquilo”; sua resposta é, ao contrário, uma
teoria toda.” (Op.cit. p. 45-6)
Katz diz, então, que os lingüistas e filósofos que se ocuparam dos
estudos semânticos não procederam metodologicamente de forma equivocada: ou
não foram até onde deveriam. Para ele, os semanticistas poderiam ser divididos em
dois grandes grupos: o dos que interromperam os estudos contentes com respostas
parciais e o dos que simplesmente tentaram responder à questão central encarando-a
de forma inadequada, ou seja, de forma filosoficamente equivocada, o que, na prática,
acabava gerando igualmente respostas parciais.
Katz argumenta que essa trajetória científica galgada pela Semântica
era natural de ciências cujos objetos são demasiadamente complexos e que outras
delas, como a Astronomia e a Física também haviam passado pelos mesmos estágios
de compreensão parcial. Ele propõe, então, que a compreensão do problema “O que é
o significado?” passa, obrigatoriamente, pela compreensão das propriedades do
significado verificáveis em um conjunto definido de fenômenos já fartamente
conhecidos, mas que segundo Katz mereceriam melhor explicação. São elencados e
exemplificados os seguintes fenômenos: sinonímia, paráfrase, similaridade, diferença,
antonímia, hiperonímia, hiponímia, significatividade, anomalia, ambigüidade,
redundância, analiticidade, sinteticidade, falsidade, indeterminação, inconsistência,
12
J.J.Katz (1972). “The Scope of Semantics”. In: Semantic Theory. New York: Harper and Row.
Este texto tem versão brasileira, utilizada para os fins do presente ensaio, publicada segundo referência
citada na nota de rodapé no
5.
49
implicação, pressuposição, interrogação e resposta possível. Sobre esses fenômenos
Katz afirma:
“Qualquer teoria que ofereça uma resposta a “O que é o
significado?” deve responder às questões... e outras análogas, e
qualquer teoria que responda a tais questões deve oferecer uma
resposta a “O que é o significado?” (Op.cit., p. 50)
Muitos dos fenômenos propostos por Katz para explicação já eram, à
sua época, perfeitamente compreendidos e explicáveis e, obviamente, não devemos
crer que o próprio Katz não possuía respostas convincentes para os fenômenos que
ele listou e os quais foram, por ele mesmo, exemplificados em seu ensaio. Não
somente Katz conhecia boas respostas para as questões que ele formulou, como
também conhecia a evolução da idéia de significado, apresentada sucintamente no
mesmo texto. Mas, a despeito disto, Katz não conseguiu apresentar, nem nesse texto e
nem depois dele, uma resposta para que tipo de coisa é o significado.
Se procurarmos trilhar o caminho proposto pelos gerativistas,
provavelmente não chegaremos mais longe do que eles próprios chegaram na pessoa
de Katz. Podemos, sem muita dificuldade, listar o conjunto das principais
propriedades do significado implicadas em cada um dos fenômenos descritos por
Katz. No geral, creio que é próprio dizer, com base nos fenômenos que são por ele
ressaltados e sem maiores problemas, que o significado é um tipo de coisa que:
a. toma parte em relações de equivalência e pode nelas ser analisado;
b. é subdivisível;
c. é organizável segundo as dimensões de sua extensão , isto é,
segundo a dimensão lógica de sua referência (unidade, conjunto, classe);
d. é oposicionável a outro significado;
e. associa-se a sinais, mas somente se especializa em relação a um
sinal quando este é contextualmente definido;
f. quando definido, pode acarretar implicações;
g. quando definido, pode fazer subentender pressuposições;
h. pode ser valorado;
i. pode ser comparado a outros significados em diversos aspectos;
j. não é garantido pela mera existência do sinal, mesmo que
considerado diretamente relacionado a esse sinal.
Entre outras, essas são propriedades do significado que deveriam ser
suficientes para, ao menos, construir-se o esboço de uma teoria convincente do
significado, nos moldes que propõe Katz ser possível construir. E, porém, não o são. A
causa dessa incongruência entre a proposta gerativista e a realidade lingüística
concernente ao significado, a meu ver, está no fato de que a concepção filosófica de
significado e, conseqüentemente, a concepção teórica e metodológica da Semântica
em que essa proposta se baseia estão equivocadas. Katz não errou somente ao propor
que se estudassem os fenômenos lingüísticos de natureza semântica para que se
chegasse a uma teoria do significado, como errou também em crer que o significado é
algo de natureza lingüística. Katz não estava equivocado quanto a dizer que o
significado não é um tipo de coisa que se defina como “isto ou aquilo”; o erro consiste
em acreditar que significado é um tipo de coisa que se defina com uma teoria
50
lingüística. Assim, por “efeito cascata”, Katz também erra ao afirmar que “a Semântica
é o estudo do significado lingüístico”, simplesmente porque esse objeto denominado
“significado lingüístico” não existe. Podemos falar em sentidos e representações, nos
termos de Frege, como atributos a certos sinais de uso lingüístico, mas o significado
em si não tem natureza lingüística. Assim, além do fato de que a Semântica não pode
estudar o “significado lingüístico”, principalmente pelo fato de que não há objeto que
se refira a esta expressão - e a Semântica, como ciência que é, não prescinde de um
objeto - Katz errou igualmente por supor a veracidade da tradicional afirmação de
que cabe à Semântica o estudo do significado. E não cabe.
3. Da natureza do significado e suas implicações
Certamente, a maior contribuição do ensaio de Katz à moderna
Semântica está no fato de que ao propor o estudo dos fenômenos lingüísticos de
natureza semântica, Katz propiciou a verificação inequívoca de que o significado não
é um objeto de natureza lingüística. Há três argumentos simples e suficientes para
comprovar isso, a partir mesmo da teoria gerativa:
a. o significado independe do sinal e não está a ele vinculado de
forma orgânica, podendo ser suscitado lingüística ou não lingüisticamente;
b. o pensamento humano não é processado lingüisticamente, mas em
forma do que hoje ainda só podemos, por pura ignorância, chamar de “significações
puras” ou, em última instância, de “significados”;
c. a possibilidade de tradução entre línguas indica que não há uma
relação determinativa entre o significado e o sistema lingüístico que o representa, mas
que qualquer significado é plenamente representável por qualquer sistema
lingüístico, independentemente das peculiaridades orgânicas desse sistema.
Podemos afirmar com grande margem de segurança, portanto, que os
sistemas lingüísticos são intermediários entre as significações puras apreendidas pelos
seres humanos e o mundo e seus eventos. O significado não é, assim, um
componente da língua, embora intimamente relacionado a ela. A estranheza inicial
dessa afirmação pode ser minimizada se percebemos que o som também não é um
componente lingüístico, mas apenas um meio - entre tantos outros - utilizado com
finalidades lingüísticas. Como conseqüência de se perceber isto sobre o som, e mesmo
sobre sua produção e sua utilização lingüística, chega-se à conclusão de que a
Fonética é obviamente uma ciência híbrida, do domínio também da Física (Fonética
Acústica), da Fisiologia (Fonética Articulatória), etc., e não exclusivo da Lingüística
como crêem alguns, embora suas conclusões apresentem importantes aplicações
diretas para a Lingüística. Já a Fonologia, a Sintaxe e a Análise do Discurso são
ciências típicas do domínio lingüístico, pois seus objetos são tipicamente lingüísticos.
Entretanto, mesmo estas estão modernamente se hibridizando, passando a integrar-se
a outras ciências: a Fonologia e a Fisiologia, criando a Fonologia Articulatória; a
Análise do Discurso unindo-se à Sociologia e à Psicologia; a Lingüística Geral unindo-
se à Neurologia, surgindo a Neurolingüística, entre tantas outras, em um claro
51
reconhecimento de que a linguagem é um objeto demasiadamente complexo para ser
estudado através de uma ótica monolítica.
Desta forma, o que nos cabe estudar na Semântica - e já existe um
cabedal bastante satisfatório de métodos para tanto - não é o significado e sua
natureza, mas as manifestações lingüísticas do significado. Os fenômenos elencados
por Katz são exemplos inquestionáveis dessas manifestações lingüísticas. E se as
respostas às questões propostas por Katz não nos fornecem uma resposta a “O que é
o significado?”, não é por outra razão que não a de que a Semântica não possui
métodos para o estudo do significado, mas apenas para o estudo de suas
manifestações lingüísticas. Isto porque a Semântica sempre se comportou -
certamente porque sempre foi e continua sendo - como a ciência que estuda as
manifestações lingüísticas do significado, e não o significado em si mesmo, assim
como a Fonologia estuda as manifestações lingüísticas do som e não o som em si
mesmo, uma vez que o som em si mesmo não é do domínio da Lingüística, mas
apenas as aplicações lingüísticas de suas propriedades o são.
A percepção de que o significado não é um objeto de natureza
lingüística tem como implicação direta o reconhecimento tácito de que uma teoria
gerativa que se pretenda à explicação do fenômeno da geração da linguagem
partindo do significado terá, obrigatoriamente, que ser uma teoria interdisciplinar. A
explicação de que espécie de coisa é o significado compete muito mais à Neurologia
(ou, em última instância, à híbrida Neurolingüística) do que à Semântica. A esta cabe
estudar as inúmeras manifestações do significado nas línguas, em suas
aparentemente infinitas nuanças, descobrir que tipos de leis regem essas
manifestações e dar, a partir daí, sua contribuição para a consecução dos objetivos da
ciência-mãe, a Lingüística.
Voltando à questão de crivar a Semântica como ciência, fica claro,
então, que:
1. seu objeto é o conjunto das manifestações lingüísticas do
significado, e este objeto é não somente muito bem conhecido como
competentemente abordado por grande parte dos semanticistas;
2. seu objetivo deve ser encarado, em consonância com os da
Lingüística Geral, conforme proposto por Saussure, como sendo algo que se define
em estudar as forças que estão em jogo, de modo permanente e universal, em todas
as línguas e deduzir as leis gerais às quais se possam referir todos os fenômenos
peculiares da história no que concerne às manifestações do significado, e isto a
Semântica tem feito com satisfatória competência;
3. seu método abrange diferentes formas de análise, desde as análises
propostas pela lógica formal, passando pelas decomposições estruturalistas, pela
análise dos traços semânticos nos moldes gerativistas, indo à contextualização
discursiva das análises mais modernas e chegando à análise interfacial proposta
hodiernamente. Em outras palavras, a Semântica, ao longo de sua longa existência,
desenvolveu e tem a seu favor uma gama bastante respeitável de métodos de análise
que permite a continuidade e o aperfeiçoamento de sua ação científica.
Esclarecida, portanto, a cientificidade da Semântica e descartado o
significado puro como objeto de estudo desta ciência, cabe aqui tratar de um último
fator determinante para a construção de uma teoria semântica, fator este aludido por
52
Katz, mas não tratado claramente no ensaio que citei anteriormente, embora fosse
esse seu nome. Falo de definir o escopo da Semântica.
4. O Escopo da Semântica e a Necessidade de Estudos Interfaciais
Além das manifestações do significado citadas por Katz em seu
ensaio, todas tipicamente lingüísticas e, portanto, parte do escopo da Semântica, um
outro grande conjunto de manifestações do significado nas línguas naturais, ainda
pouco explorado, merece destaque na busca da formulação de uma teoria semântica
mais abrangente: falo das manifestações estruturais. Demonstrei alhures13
como as
línguas naturais, no intuito de representar o mais exatamente possível os significados,
os utilizam como um dos recursos para construção de suas estruturas e manutenção
da inteligibilidade dos enunciados produzidos. Vejamos três exemplos desse tipo de
utilização de traços semânticos em línguas naturais para demonstrar, dentro dos fins
deste ensaio, que os rumos de uma Semântica moderna passam por estudos
interfaciais:
a. os sistemas de concordância: para estabelecer os sistemas de
concordância presentes em todas as línguas naturais conhecidas, são eleitos, no
âmbito do próprio sistema, alguns traços de natureza semântica (portanto não
lingüísticos!) que serão utilizados lingüisticamente como traços concordantes. O
português utiliza gênero, número e pessoa nesses sistemas. Assim, quando a língua
permite dizer “Os sacos pretos contêm o leite fresco”, ela constitui um complexo jogo
de repetições de traços semânticos de gênero, número e pessoa que colaboram na
estruturação e ajudam na interpretação do enunciado como mostrado a seguir:
os - significado atribuído ao artigo definido + masculino e plural
sacos - significado atribuído a “saco” + masculino, plural e 3a
pessoa
pretos - significado atribuído a “preto” + masculino e plural
contêm - significado atribuído a “conter” + 3a
pessoa e plural
o - significado atribuído ao artigo definido + masculino e singular
leite - significado atribuído a “leite” + masculino, singular e 3a
pessoa
fresco - significado atribuído a “fresco” + masculino e singular
Como se vê, é a repetição, em forma de estatutos pragmáticos da
língua, de traços semânticos gramaticalizados que cria os conjuntos concordantes que
definem os limites sintagmáticos e permitem boa parte da interpretação do
enunciado. E veja-se que não há nenhuma razão aparente para que “leite” e “saco”
13
C. Ferrarezi Jr. (1998). “Recursos para Manutenção da Inteligibilidade do Enunciado: um Estudo da
Interface Semântica/ Morfossintaxe através de uma Língua Isolante”. Vilhena: Anais do IV Seminário
de Estudos Lingüísticos e Literários.
53
tenham atribuídos a si o traço masculino ou de terceira pessoa e, tampouco, existem
nessas palavras morfemas específicos para essa atribuição desses traços, sendo que
tais traços estão presentes apenas implicitamente, sendo que, a despeito da ausência
morfológica, o falante nativo reconhece-os facilmente. O traço plural, nesses dois
casos, dependerá também da realidade constatada.
Da mesma forma que atribui traços semânticos às unidades, as
línguas criam escalas de valor para o “apagamento” desses traços no âmbito
morfológico, ou, em outras palavras, para permitir sua implicitação e uma decorrente
economia na forma. Os traços de gênero são, no português, muito mais fortes que os
traços de número. Assim é que um falante normal permite uma frase como “Os saco
preto contém o leite fresco”, mas não aceita como normal uma do tipo “*As sacos
pretas contêm a leite fresca”.
Esse fenômeno de concordância pode ser considerado como sendo
sintático, porque só tem razão de existência na e pela estruturação dos sintagmas de
uma sentença. Mas, como vimos, é inegável que tal fenômeno depende de recursos
de natureza semântica, o que demonstra a necessidade de um estudo aprofundado
da interface Semântica/Sintaxe14
;
b. a regência: trata-se de outro fenômeno tido como apresentando
uma natureza meramente sintática. A regência é o resultado da projeção diatética de
traços semânticos, presentes inicialmente nas palavras nucleares e projetados,
posteriormente, para as palavras periféricas e da projeção desses mesmos traços de
palavras nucleares para outras palavras nucleares. Essa projeção de traços cria
restrições de preenchimento nas lacunas virtuais abertas nas diáteses e tais restrições
são o que normalmente se denomina regência. Assim, em “O boi come o capim” não
há qualquer evidência de concordância que permita identificar o agente e o paciente,
uma vez que a coincidência de gênero, número e pessoa nos sintagmas sujeito e
objeto inviabiliza a interpretação através de tal crivo. Há, porém, restrições semânticas
oriundas do núcleo verbal que determinam a necessidade de um agente como
sintagma sujeito, o que dirime as dúvidas interpretativas. Há mecanismos de bloqueio
e de fortalecimento dessas projeções, há restrições internas e externas, enfim, um
conjunto bastante complexo de regras que somente pode ser definido em um estudo
interfacial que determine as influências semânticas, sintáticas e discursivas na
determinação desses mecanismos de bloqueio e fortalecimento, bem como na
imposição de restrições de aceitabilidade por parte dos falantes (por exemplo, por
qual motivo a sentença “O capim comeu o boi” tem sentido em alguns contextos e
não o tem em outros);
c. os sistemas entonacionais: um outro fator decisivo na interpretação
dos enunciados refere-se à entonação em que estes são produzidos pelo falante.
Nuanças de interrogação, afirmação, negação, ironia, espanto, medo, etc., são
demarcados, em grande parte, nas línguas naturais através das propriedades
entonacionais atribuídas pelo falante ao enunciado construído. Um estudo que dê
14
Nos moldes do que realizei em: C. Ferrarezi Jr. (1998). A Interface Semântica/Morfossintaxe. Tese
Doutoral. Guajará-Mirim: Fundação Universidade Federal de Rondônia em convênio com a University
of Pittsgurgh.
54
conta das diferentes alterações de sentido causadas nos enunciados em virtude de
questões entonacionais somente será satisfatório se tiver uma natureza interfacial
Fonética/Fonologia/Semântica/Análise do Discurso, para poder explicar e prever, por
exemplo, fenômenos do tipo: por que uma entonação dada é ofensiva em um
contexto e não o é em outro?, etc.
Esses três exemplos são suficientes, creio, para demonstrar o fato de
que as manifestações do significado vão muito além daquelas poucas presentes nos
fenômenos elencados por Katz no texto aqui referido. Conseqüência direta disso e do
fato de que à Semântica cabe estudar todas essas manifestações é que se configura
para essa ciência um objetivo de tal monta complexo que somente será passível de
realização interfacialmente, isto é, correlacionando os métodos da Semântica com os
das demais subdivisões da Lingüística e dessas com os das demais ciências, às quais
poderíamos chamar de “ciências de interface” da Semântica. Isto se dá para que se
permita uma abordagem que abarque as mais diversas manifestações do significado
nas línguas naturais. Isto se dá, também, em virtude de que todas as unidades
lingüísticas de todas as naturezas (desde um subtraço semântico atribuível a um traço
fonético de um fonema qualquer até um texto complexo) se permitem a atribuições de
sentido, sendo, portanto, representativos de um significado.
O escopo da Semântica é, portanto, a própria língua natural. Não me
refiro, porém, a todos os fenômenos de uma língua natural tomados isoladamente,
mas a todos aqueles a que se pode atribuir uma significação.
5. Conclusão
A construção epistemológica de uma ciência depende da visão
filosófica que se tem do objeto de estudo. Os equívocos históricos dessa visão do
objeto da Semântica atrapalharam o desenvolvimento desta ciência, embora a
confrontação com os fenômenos tenha sobrepujado o equívoco filosófico e permitido
a constituição de um método adequado de estudo do real objeto da Semântica. Tal
objeto não é o significado, mas o conjunto de suas manifestações no âmbito da
linguagem. Assim, ao definirmos a Semântica como a ciência que estuda as
manifestações lingüísticas do significado, estabelecemos um objetivo mais coerente
com seu método já desenvolvido e nos obrigamos ao aperfeiçoamento desse mesmo
método, permitindo, assim, que os estudos interfaciais da linguagem resultem na
consecução desse objetivo. Certamente, isso contribuirá para a consecução dos
objetivos da Lingüística como um todo harmônico e indissociável.
Guajará-Mirim, 01 de outubro de l999.
55
CONSIDERAÇÕES SOBRE A ALFABETIZAÇÃO
BRASILEIRA
"Vitate quaecumque casus attribuit"1
Sêneca
0. Introdução
Uma educação transformadora não se constrói pela ação do acaso.
Talvez esta seja uma forma óbvia demais para iniciar um artigo sobre educação, mas
certamente não se trata de uma nulidade diante do que se tem visto chamar de
educação neste país. Há como que uma síndrome de "educação por atacado", talvez
motivada pelo excessivamente rápido desenvolvimento das formas eletrônicas de
comunicação e pela facilidade com que se digitalizam informações hoje em dia, ou
mesmo motivada pela incompreensão de que as tecnologias desenvolvidas ainda não
foram capazes de modificar a natureza humana.
Os programas educacionais levados avante pelo Ministério da
Educação reforçam sobremodo essa idéia. O mestre presente, interferente e
interagente é descaradamente substituído por um mestre virtual, excessivamente
informativo, mas muito pouco formativo e nada interagente. A interatividade
proclamada nesses eventos pseudo-educativos - geralmente traduzida pela
possibilidade de enviar um fac-símile ou mensagem de correio eletrônico aos
participantes dos programas ao vivo, torcendo para que essa mensagem chegue e
receba a atenção esperada - nunca substituiu e nunca substituirá a interação face a
face, socialmente definida, humanizada. Este processo de formação não custa mais
barato, tampouco é mais eficiente do que os tradicionais cursos de formação de
professores em que eram possíveis trocas detalhadas de experiências profissionais,
além da constituição de uma rede de afinidades profissionais e pessoais
absolutamente insubstituíveis.
Mestres formados in absentia de seus mestres têm apresentado a
triste característica de querer formar seus alunos através de um processo impessoal e
desumanizado, em que as relações sociais e afetivas têm uma menor importância e
em que a maturação biológica do aluno pouco tem importado. Parece que o velho
ditado "ninguém dá o que não tem" está mais em voga do que nunca em nossa
educação. E justo em uma época de forte desestruturação social, em que a escola
precisaria atuar como um tipo de lastro laico dessa mesma sociedade, fazendo um
1
"Evitai tudo o que o acaso dá" ou "As obras do acaso devem ser evitadas" ou "Vamos criar vergonha e
construir nosso futuro"...
56
trabalho paralelo ao que algumas igrejas procuram fazer na manutenção da
humanidade dos homens dessa era.
Neste artigo, pretendo observar algumas conseqüências desse
processo de desumanização crescente de nossa sociedade dita moderna na fase de
alfabetização, tida desde sempre como marco inicial e, ao mesmo tempo, típico da
escolarização - não sem motivos, diga-se - e seus reflexos na educação como um todo.
1. Evolução decadente
"Abyssus abyssum invocat."2
Salmo 42:7
Todas as épocas da História têm suas dificuldades típicas. As épocas
não foram melhores antes e, enquanto houver vida nesta Terra, provavelmente não
serão melhores depois. Não se trata de pessimismo, mas uma constatação lógica a
partir do reflexo natural da natureza humana sobre as sociedades que criamos. A
aparência de que épocas passadas foram melhores, geralmente se justifica por
memórias pessoais de tempos de juventude ou de histórias que ouvimos de nossos
antepassados sobre quando éramos felizes e não sabíamos.
Os métodos educacionais são, geralmente, elaborados em função das
peculiaridades de um povo em dada época. Não existe método atemporal, como não
é atemporal o conjunto de idiossincrasias manifestas de uma pessoa ou de uma
sociedade - se é que uma sociedade pode ter idiossincrasias... O método chamado
tradicional de alfabetização compreende um conjunto de desenvolvimentos técnicos
que atendiam razoavelmente à clientela da época em que foi concebido esse processo
educativo. Não falarei do período em que somente as famílias riquíssimas pagavam -
ou adotavam - professores particulares para ensinar seus filhos em casa, mas do
período inicial da escolarização brasileira, quando os grandes centros educacionais se
orgulhavam de formar os filhos dos doutores3
de então no nível da quarta série
primária. Vejamos.
A criança entrava na escola, advinda de uma família que, se não era
bem estruturada, pelo menos fingia bem. Havia um pai que trabalhava, uma mãe que
se dedicava aos filhos e irmãos que cresciam juntos trocando experiências que os
socializavam desde muito cedo. As famílias eram mais participativas quanto às
convenções sociais, como as festas locais, a igreja e mesmo a escola. Os infantes eram
ensinados a alimentar-se segundo os padrões de etiqueta mais recomendados, e
sabiam que não se interrompe um adulto quando este está falando. Desmenti-lo era
2
"O abismo atrai o abismo" ou "Um abismo atrai outro abismo" ou "Desgraça pouca é bobagem"...
3
A alemã Ina von Binzer, professora particular no Brasil no período da transição Império/República,
observou em uma de suas cartas de 1881, à amiga Margarida: "O Dr. Rameiro veio buscar-me. Não sei
porque o chamam de "doutor" e duvido muito que ele próprio saiba encontrar a razão desse
tratamento. A única explicação verossímil seria a de que todo o brasileiro bem colocado na vida já
nasce com direito a esse título, o que em parte me parece uma falta de modéstia." (Ina von Binzer
(1916/1982) Os Meus Romanos: Alegrias e Tristezas de uma Educadora no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e
Terra). Parece que essa "falta de modéstia" perpetuou-se como traço cultural brasileiro.
57
um pecado mortal. Desde muito cedo, era meritório ensinar aos filhos os afazeres
domésticos. Mesmo aos meninos era dado coser uma meia furada, fazer uma barra de
calça ou pregar um botão. As meninas faziam as roupas de suas bonecas - e, muitas
vezes, as próprias bonecas - enquanto os meninos construíam seus carrinhos de lata
de óleo ou com rolimãs, faziam seus revólveres de madeira e seus arcos e flechas, com
que atacavam os companheiros mocinhos nas brincadeiras que se tornavam
representações dos filmes de far west que passavam nas poucas televisões existentes
no país. O chique era ser James West e ter um cachorro chamado Rim-Tim-Tim,
enquanto os mais revolucionários acatavam com resignação o papel de índio matador
de pioneiros desbravadores. À noite, as mães ainda contavam histórias para as
crianças, rezavam com elas e as colocavam para dormir.
Esse era o típico quadro da família brasileira que mandava seus filhos
à escola. É claro que havia também famílias bem menos estruturadas do que essas
chamadas "de posse", mas suas crianças não iam para a escola. Os métodos
educacionais não foram desenvolvidos para as crianças sem família, ou cuja família
não cumpria seu papel. Foram idealizados para crianças que vinham de casa com
uma excelente coordenação motora, proporcionada pelos afazeres domésticos e pelos
brinquedos tradicionais, que vinham com um comportamento social bem definido e
que chegavam à escola mais tarde do que chega hoje, portanto mais madura biológica
e, até cognitivamente.
O método tradicional, então, compreendia um período preparatório,
que ocupava cerca de dez páginas da cartilha com ondinhas e vogais pontilhadas, as
quais deveriam ser criteriosamente cobertas pelos alunos. Na verdade, essa fase
destinava-se mais ao aprendizado de como segurar um lápis, o que muitas vezes
ocorria apenas após o ingresso na escola.
Depois do período preparatório, iniciava-se uma fase de
apresentação dos sons básicos da língua, as vogais. Nesta fase não havia textos e os
alunos ficavam felizes por criar construções como ai, ui, oi e eu. As combinações
abstratas de sinais correspondentes a sons viriam logo em seguida. O resultado era
inquestionável: b com a dá bá e b com é da bé; depois vinha a família do c, e ninguém
perguntava - pelo menos, não às abertas - por que lhe faltavam o ce e o ci. A escola
sabia fazer seu trabalho e não seriam os fedelhos que lhe imporiam questionamentos
de ordem metodológica.
Já concomitantemente à construção das sílabas com consoantes
apareciam os primeiros textos: "O bebê baba", "O nenê mama na mamãe" e "Vovô viu
a uva do Ivo" são exemplos clássicos do tipo de texto que se construía. É claro que não
havia nenhum tipo de contestação da qualidade informativa e, muito menos da
formativa, desses textos. Os alunos haviam sido ensinados em casa a obedecer, a
nunca contestar um adulto, a seguir regras à risca. Não havia formação crítica da
criança. Descobrir a vida e sua criticidade era fato raro na maioria dos adultos, quanto
mais nas crianças! Mais do que isso, a tolerância nunca era ensinada. A verdade era
tida como única e a leitura de filósofos contestadores era um sacrilégio. O método
tradicional de alfabetização foi concebido, portanto, para um grupo de crianças que
possuíam todas as qualidades de uma criança bem formada (etiqueta, respeito social
hierárquico, coordenação motora fina, maturidade cognitiva suficiente para a
alfabetização, poucos problemas afetivos, etc. e tal) e que, ainda por cima, possuía
todas as desvirtudes de uma sociedade acrítica e - por isso - apática, que vivia o
58
deslumbramento do milagre industrial brasileiro, o afã das conquistas trabalhistas e
que sonhava com uma nação próspera em que todo mundo deveria ser feliz sem
perguntar nada. É claro que o método funcionava como um relógio. Com seis ou sete
meses os alunos liam e escreviam razoavelmente, podendo participar como
proclamadores das Sagradas Escrituras nos eventos religiosos, o que deixava os
familiares demasiadamente satisfeitos. "A escola era boa", "os professores eram bons",
"naquele tempo se aprendia mais"...diz-se.
O pós-II Guerra proporcionou às nações que encabeçavam os grandes
grupos aliados um desenvolvimento tecnológico brutal num período bastante curto
de tempo. O Brasil sempre esteve à margem desse desenvolvimento, principalmente
após a década de sessenta, quando da implantação do regime militar no Brasil. O
Brasil crescia num ritmo e numa forma muito particulares. Enquanto o crescimento
interno era irrisório, as estruturas destinadas à exportação de bens eram tidas como
orgulho nacional. Câmbios sempre favoráveis à exportação produziam superávites
colossais, que eram anunciados pelo governo como a marca do progresso. Enquanto
isso, a maioria avassaladora da população não tinha acesso aos produtos exportados,
tampouco aos nacionais de padrão inferior e começou a reforçar-se uma descomunal
concentração de renda no país. Os problemas econômicos, disfarçados pelos anúncios
de superávit nas exportações, somados aos problemas regionais habilmente utilizados
para a perpetuação do poder4
e a alguns movimentos sociais de libertação, como o
movimento de liberação feminina, começaram a desenhar um novo perfil familiar
nacional.
Nessa nova família brasileira, quando o pai e a mãe coexistem e
coabitam, não é raro que ambos tenham que trabalhar fora de casa o dia todo. São
comuns mais do que nunca os casos de famílias só com pai, só com mãe, sem ambos,
etc. "Família" é um termo que implica alguma estabilidade. Ao que parece, a estrutura
mais estável nas sociedades atuais é algo como "grupo de filhos de alguém criados por
alguém", o que acabou virando sinônimo de família, uma vez que a instabilidade das
relações matrimoniais hodiernas não permite sequer chamar um casal de família.
Mesmo porque esse casal, muitas vezes, é de homossexuais e, por questões
biológicas ainda não superadas não pode procriar. A estabilidade dessa estrutura
"grupo de filhos de alguém criados por alguém" parece durar enquanto as crianças
precisam de cuidados indispensáveis, ou enquanto suportam a convivência no grupo
"familiar".
Este novo perfil familiar conseqüencia um razoável conjunto de
modificações formativas nas crianças. A televisão é o principal companheiro de
conversa e de brinquedo5
. O diálogo está sendo exterminado. A industrialização dos
brinquedos de materiais sintéticos em larga escala proporcionou um tal barateamento
nos preços de brinquedos mais simples que, hoje, é mais barato comprar um carrinho
de plástico do que quatro rolimãs no ferro velho. A popularização do brinquedos
industrializados roubou das crianças a manufatura que lhes desenvolvia boa parte da
4
Cujo exemplo mais assombroso no Brasil é a seca nordestina.
5
Durante nossa pesquisa sobre as estruturas familiares atuais, pudemos identificar vários esquemas de
hierarquia familiar que incentivam a ausência de diálogo. Os principais são: 1. A criança é criada pela
televisão: por ela é educada e com ela conversa; 2. A criança é criada pelo irmão mais velho que, por
sua vez, é criado pela televisão; 3. A criança é criada pela babá ou empregada doméstica que, por sua
vez, é criada pela televisão.
59
coordenação motora. A quantidade de informações acessadas pelas crianças, por
outro lado, tornou-se surpreendentemente maior, o que gera uma quantidade muito
maior de questionamentos sobre o mundo. Ao mesmo tempo em que as crianças
crescem em estado de mutismo e dissociadas de relações afetivas positivas e concretas
com seus familiares (coisas como longos abraços, trocar idéias, rolar na grama e contar
segredos são completamente "demodê") são expostas a um sem-número de estímulos
que as sexualizam precocemente, transmitem-lhe uma insegurança crônica e
provocam um tal grau de desequilíbrio emocional que é cada vez mais comum a
escola ter que recorrer a psicólogos logo nos primeiros contatos com as crianças, no
intuito poder, ao menos, "acessar" essas mentes infantis.
Os padrões hierárquicos sociais, por sua vez, são cada vez menos
respeitados porque não têm representantes à altura na família. Os chefes do grupo
permanecem ausentes a maior parte do tempo. Quando têm contato com "os filhos de
alguém", que podem até ser os seus próprios filhos, esses chefes sentem-se na
obrigação de corrigir simultaneamente todos os aspectos dessas crianças que a chefia
considera insatisfatórios ou não correspondentes ao esforço exercido por ela para a
manutenção material do grupo. As únicas observações que a maioria dessas crianças
ouve de seus chefes é sobre os defeitos de caráter que elas possuem e os problemas
que elas causam à família, quase sempre sobre a alegação de que os chefes fazem sua
parte sustentando-as e que elas devem fazer sua parte obedecendo. Cansados, os
chefes do grupo, à noite, ou dedicam-se aos afazeres domésticos abdicados durante o
dia, hora em que não podem ser importunados, a tarefas do trabalho diário que
vieram para casa, no que também não podem ser importunados, ou, quando podem,
descansam à frente da televisão - "Única hora de paz do dia!" - momento em que, é
claro, conversar é terminantemente proibido. Cria-se, então, uma relação social do
tipo "quem caça manda, quem come obedece", bem mais típica das sociedades
primitivas do que de estágios posteriores pelos quais a humanidade já passou. O filho
deve respeitar o chefe do grupo porque este lhe veste, lhe dá de comer, lhe paga a
escola, o judô e a aula de língua estrangeira. O amor, o respeito ao ser humano (o
chefe, crê-se, é um exemplar de ser humano...), as hierarquias sociais abstratas que são
o fundamento das sociedades democráticas são, então, substituídas por uma relação
de poder social que tem exclusivamente a ver com a posse, quer de bens, quer de
dotes para consegui-los. Voltamos aos tempos das cavernas. Evoluímos
decadentemente. Não é difícil entender porque muitas crianças e pais retorquem a
disciplina da escola com frases do tipo: "Essa professora não tem nada a ver com isso!
Quem sustenta meu filho sou eu!" e "Você não é meu pai, não paga minha escola e
não vou te obedecer!". Essas frases são expressões incontestáveis de uma nova ordem
social rudimentar que se tem instaurado nas últimas décadas, baseada
exclusivamente em fatores concretos e não, como já foi outrora, em estatutos abstratos
como a democracia e a hierarquia social. O que diferencia uma democracia de uma
ditadura, é que naquela a hierarquia é abstratamente concebida e concretamente
obedecida e nesta a hierarquia é concretamente concebida e não há espaço para
obediência, uma vez que a obediência é um ato voluntário. A diferença entre as
ditaduras e os sistemas primitivos de organização humana baseados no "argumento
do cacete"6
está por ser descoberta.
6
Os antigos romanos diriam "argumentum baculinum".
60
No Brasil, para complicar, os raros programas de instrução ao
planejamento familiar são péssimos, e as crianças multiplicam-se em lares
complemente desestruturados e, por conseguinte, desestruturantes.
O resultado palpável da restruturação familiar nas sociedades
modernas - e o Brasil, nesses termos, está na vanguarda da modernidade... - é um
conjunto de crianças com carências emocionais gravíssimas, problemas de maturação
cognitiva, falta de coordenação motora ampla e fina e, o que torna bem pior tudo isso
- porque impede a ação da escola sobre a criança - não socializadas, no sentido em
que não foram habituadas a seguir os padrões hierárquicos abstratos necessários à
manutenção de qualquer sociedade democrática.
Cada vez que apresento esse quadro social em minhas palestras,
tenho sua ratificação integral por meus interlocutores, com alguma diferenciação de
um caso específico para outro. Mas, sempre e sempre, surge uma mesma e única
pergunta: "Bem, se é este mesmo o perfil geral da criança das sociedades ditas
modernas, que tipo de método educacional ter-se-ia que usar com elas?" Este é
exatamente o problema. Não se trata de escolher um método. O problema é mais do
que metodológico.
Todo método é fundamentado em uma filosofia de ação e numa
leitura particular do mundo. Ao elaborar o método tradicional de alfabetização - o que
não se fez em uma tarde... - os educadores leram nas crianças de seu tempo suas
necessidades e prescreveram uma forma de lidar com essas necessidades. Muitas
escolas brasileiras ainda atuam com o método tradicional de alfabetização, o que, por
si só, significa aplicar um método fora de ser tempo. Mas, isso, no fundo não é tão
grave como pode parecer à primeira vista. Muito pior do que isso é o fato de que
muitas escolas de hoje fazem a mesma leitura social que fizeram os criadores do
método tradicional. Essa escolas estão cegas a fatos palpáveis como, por exemplo, o
de que dez folhas de cartilha com exercícios de cobrir não desenvolvem a
coordenação motora de uma criança que, até os seis anos não fez nada além de
apertar o botão da televisão, o botão que liga o carrinho a pilha, os botões do
videogame. A escola precisa de uma nova leitura do mundo que a cerca, leitura em
que baseie sua filosofia de atuação, leitura que permita aplicar os métodos existentes -
ou criar os seus próprios - de modo eficaz.
2. Métodos ou Filosofias?
"Barba non facit philosophum"7
Há uma inter-relação bastante interessante entre a estrutura de um
método educacional e a formação de um professor8
, o que pode ser visto no esquema
abaixo:
7
"A barba não faz o filósofo" ou "O hábito não faz o monge" ou "O buraco é mais embaixo"...
8
Tornou-se bastante corriqueira na bibliografia corrente a diferenciação entre professor e educador.
Acho que isso é meio papo furado. Educador é quem educa: pode ser um padre, um chefe de grupo
61
NÍVEIS PROFESSOR MÉTODO
EDUCACIONAL
Nível de ação Formação Técnica Técnicas
Nível de concepção Filosofia de Vida Filosofia do Método
Nível de base Caráter Leitura do objeto ao qual o
método de aplica e da
realidade social na qual
será aplicado.
Tanto um método educacional quanto um professor, muito antes do
nível da ação, isto é, daquele nível em que se atua diretamente com o objeto, possuem
níveis de estruturação mais profundos, em que se baseiam suas respectivas filosofias
de ação. O caráter de uma pessoa, isto é, o conjunto que integra sua têmpera, sua
formação moral, sua visão de mundo, seus ideais, entre outros valores essenciais, é o
fundamento de uma filosofia de vida e de atuação profissional que a caracterizam.
Com base nessa filosofia de vida é que o professor aceita, ou não, um método
determinado de trabalho, aplica, ou não, uma técnica prescrita pelo sistema. A
formação técnica de um profissional é inócua e, até, perda de tempo, se não há uma
base em que essa formação se sustente. De que vale o maior técnico do mundo em
segurança bancária, se contratado por um banco usar suas técnicas para roubar a
instituição em que trabalha? De que vale o professor com maior domínio de classe da
História, se usar esse domínio para usufruir de benefícios escusos da parte de seus
alunos, para conquistar adolescentes, para ser aclamado grande líder e senhor?
As técnicas de ensino estão acessíveis a qualquer escola de hoje. Pela
TV Escola o professor aprende tudo de tudo sobre técnicas e conteúdos. Só não
aprende a ler a sua realidade particular, seu mundo pessoal, ou não está disposto a
fazê-lo. Como não consegue - ou não quer - ler seu próprio mundo, o professor não
pode construir uma filosofia de atuação sua, própria, com sua cara e adaptada às suas
idiossincrasias. Então, fica alardeando que está usando a filosofia dos Parâmetros
Curriculares Nacionais, que ele nem sabe bem o que são... Como não foi educado
para ler seu próprio mundo, esse professor é também inábil para ler o mundo de seus
alunos, não podendo ajudá-los como deveria. Parece mesmo incrível, mas duas
décadas depois de "A Importância do Ato de Ler9
", o problema de nossa educação
parece continuar sendo a leitura de mundo feita por nossas escolas. Não temos
problemas metodológicos sérios no Brasil. Temos, aliás, métodos demais para filosofia
educacional de menos.
Uma escola que se propõe a alfabetizar uma criança urbana típica
neste último ano do milênio não pode enxergar a mesma figurinha pacata que os
professores da década de cinqüenta enxergavam em seus alunos. Parece óbvio. É
óbvio. Mas, não está em aplicação. Uma criança que cresce exposta às circunstâncias
de vida que analisamos há pouco não se contenta com coisas do tipo "Tico tem o
Totó."! Na maioria das vezes, a escola terá que superar as deficiências motoras,
familiar, um colega de gangue. Professor é aquele cuja profissão é educar. Se não educa, não é
professor, mesmo que contratado para isso.
9
Paulo Freire (1982). A Importância do Ato de Ler. São Paulo: Cortez.
62
afetivas e cognitivas da criança antes de pensar em apresentar-lhe uma vogal sequer.
Isso pode demorar um ano todo. O que fazer? Fazer! Esse é o ponto aqui. A escola
tem brincado de fazer, fingido que faz. Fazer: é hora de fazer algo por essas crianças,
de verdade!
Há alguns dias entrei em uma escola e vi uma professora que
empurrava um aluno seu que lhe queria dar um abraço. O menino, de uns sete ou
oito anos, saiu realmente decepcionado. A professora alegou que ele iria sujar a roupa
que ela vestia... Em outra escola, vi uma aula com massas plásticas. Um dos alunos
colocava o bolo de massa sobre a mesa e o esmurrava estupidamente. Quando a
massa estava esparramada, ele enfiava suas unhas na massa e puxava para si como
que agredindo a massa. Repetia isso até tirar toda a massa da mesa e retomava os
murros. Olhei para a professora e perguntei sobre a criança. Ela respondeu: "Esses
meninos de hoje são todos loucos. Ainda bem que não começou a fazer isso com o
colega ainda..." Em outra escola presenciei um menino de oito anos jogando-se no
chão e esmurrando a própria cara porque tinha errado uma conta de matemática. A
professora, calmamente informou-me que se tratava de uma fato comum. São estes
casos fatos esporádicos? Não. Bem que eu gostaria que fossem. Estamos caminhando
a largos passos para uma sociedade plenamente neurotizada. As famílias, em sua
maioria, não têm condições de propiciar educação de base para as crianças. A escola
reluta em fazê-lo, pois não tem uma clara filosofia educacional que a oriente.
3. Alfabetizando no Ano 2000 como no Ano 2000
"Mater artium necessitas"10
A escola moderna conhece as fases de desenvolvimento da criança,
desde que Piaget publicou suas teorias. Até hoje as teorias piagetianas são
aperfeiçoadas: muito foi negado, muito confirmado, como é próprio de toda boa
teoria. Depois surgiram os interacionistas, Vigotskii à frente destes, embora já
falecido. Emília Ferrero e sua psicogênese, etc. etc. e mais etc. Teoria não falta, método
não falta, técnicas estão caindo do balaio. E não sou eu quem vai ditar o que falta.
Somente acho que, certamente, pelo menos uma coisa falta: filosofia educacional.
Se eu entendo meu aluno como um ser em processo de
desenvolvimento, se reconheço que atrás do número de chamada existe um ser
humano, se percebo que esse ser humano tem carências múltiplas provocadas por sua
vida familiar, o que eu faço? Cumpro o plano de curso ou educo esse aluno? Resposta
normalmente praticada nas escolas: cumpro o plano de curso! Resposta necessária:
educo esse aluno. Fácil falar. Difícil fazer? Nem tanto...
Uma pergunta extremamente pertinente aqui é: por que a escola? Por
que a família não resgata sua função? A resposta é simples, tomando como base o que
já expus anteriormente. A família não está como está por opção. A conjunção de uma
série de fatores tornou a família tradicional no "grupo de filhos de alguém criados por
10
"A necessidade é mãe das artes" ou " O ofício surge da necessidade" ou "Não dá mais para agüentar..."
63
alguém" que temos hoje. Para reverter essa condição da família, temos que reverter
todas as causas que a construíram. Coisa para muitas gerações... O sistema escolar
representa a maior rede de assistência direta do país. Ele atende cerca de oitenta
milhões de pessoas diariamente, no mínimo por duzentos dias a cada ano. Nenhum
outro sistema tem tamanha abrangência e tal estrutura. Nosso problema precisa de
resolução rápida. Não dá para esperar que as famílias restruturem-se. Aliás, chego a
crer que nunca virão a restruturar-se se a escola não agir hoje. Respondido isto,
passemos à alfabetização.
Consideremos que uma criança é um organismo que dará suporte ao
aprendizado da leitura e da escrita. Antes de iniciar esse organismo nas letras, é
necessário que ele esteja pronto. Vejamos alguns passos importantes:
a. afetividade - ame essa criança. Quanto mais problemática ela for,
mais ela precisará de seu amor como professor. Amor deve ser considerado como um
termo técnico da alfabetização de hoje, tão importante como período preparatório,
motivação, interação social, etc. Sem amor é impossível resgatar a afetividade latente
e corrigir os problemas afetivos dessas crianças. O amor do educador pelo aluno não
deve ser uma pronunciação tão-somente. Precisa traduzir-se em atos cotidianos que
se revelam na paciência, na atenção ao ouvir, num sorriso e até, quem sabe, num
abraço. O amor também se revela no cuidado com o aspecto da criança, com sua
saúde, com suas ansiedades. A escola moderna deve suprir essas necessidades básicas
de qualquer alma infantil;
b. maturação áudio-viso-motora - ondinhas pontilhadas não bastam.
A escola deve oferecer atividades muito mais complexas e duradouras. Tricô, crochê,
costura, bordado, pintura, tapeçaria, artesanato com palitos, jogos de coordenação
ampla e fina, artesanato com massas (plástica, argila, pvc, etc.), contato e aprendizado
de instrumentos musicais, fabrico de brinquedos, pintura com pincel, lápis e giz, entre
outros, são exemplos de atividades duradouras que devem ser adotadas ao longo de
todo o ano. E um ano pode ser ainda insuficiente. Essas atividades precisam deixar de
ser consideradas com enrolação e passatempo e passar a constituir parte importante
do currículo escolar de alfabetização. De uma certa forma, o sistema conhecido como
C.B.A. (Ciclo Básico de Alfabetização), que é um sistema de progressão de série com
ciclo inicial de dois ou três anos anos, responde a essa demanda de tempo relativa à
necessidade de uma preparação mais duradoura sob a supervisão de um mesmo
professor. Mas, por si só, o C.B.A. não é suficiente: exige tanto trabalho árduo junto ao
aluno como a seriação tradicional;
c. relacionamento social - o trabalho com as relações sociais da criança
precisa ser calcado na descoberta da cooperação como cerne da vida social
democrática. Tratar abertamente dos temores pessoais diante da figura do outro, de
questões como o preconceito e a estereotipia são essenciais ao convívio social. Deve-se
desestimular a disputa pessoal e a concorrência individual e enfocar sobremodo a
necessidade do trabalho conjunto, das realizações harmônicas somente possíveis com
o desenvolvimento de práticas como o diálogo democrático, a escolha democrática, o
respeito às escolhas da maioria e o respeito às opções feitas pelas minorias, a
cooperação nas realizações e o compartilhamento das vitórias e das derrotas de uma
sociedade democrática;
d. maturação das funções cognitivas básicas - muitas vezes, apenas
expostas a programas infantis meramente comerciais e de baixa qualidade o dia
64
inteiro, as crianças não são levadas a desenvolver aspectos importantes de sua
cognição. Nem mesmo as inter-relações mais simples são possíveis. Habilidades como
classificar, ordenar e nomear são ainda desconhecidas. Não se deve crer que a criança
sabe fazer essas coisas: deve-se ensiná-la a fazer. Literalmente ensiná-la a pensar,
desde as mais rudimentares formas de pensamento concreto, até as mais complexas
formas de pensamento abstrato, tudo a seu tempo, cada coisa por sua vez, com vagar
e coerência. E veja-se que isso não é o popularmente chamado caso de "burrice". A
criança não desenvolve certos tipos de raciocínio simplesmente porque nunca foi
treinada para isso, nada mais. Como acontece com alguém que nunca foi ensinado a
tocar piano e se lhe cobra que o faça;
e. o que mais aparecer - o professor não pense que ao desenvolver os
quatro aspectos acima terá preparado totalmente a criança. Muitas vezes, esses quatro
fatores respondem pela maturação que faltava, outras vezes não. Caberá ao professor
detectar esses fatores restantes. Mas, isso só será possível se ele desenvolver -
realmente! - um contato educacional com seus alunos, além do contato técnico
meramente.
Tudo bem - pode qualquer professor dizer - mas, precisaremos de
material, de salários decentes, de condições físicas e tudo mais para fazer esse
trabalho com os alunos. Há escolas em que mal se tem quadro e giz. E daí, a teoria
funciona? Sem condições de trabalho, os problemas poderão ser minimizados, mas
não se deve ter ilusões quanto aos resultados finais. O fato é que bastava gastar um
pouco menos com propaganda oficial e economizar em programas inócuos que
custam o dobro do que oferecem, que haveria dinheiro para isso. E nem falei da
corrupção do sistema público brasileiro, que gera, segundo cálculos da Fundação
Getúlio Vargas11
, cinqüenta bilhões de reais de prejuízo a cada vinte anos.
Sim, agora digamos que o professor esteja em uma escola na qual
sejam oferecidas as mínimas condições de trabalho: isso tudo feito, e bem feito, aquele
organismo infantil que dará suporte ao processo de alfabetização está pronto. É hora
de aplicar um método de alfabetização. Qual deles é o melhor?
O melhor método de alfabetização é aquele que um professor com
uma filosofia educacional coerente sabe utilizar. Nenhum método presta nas mãos de
quem não o sabe usar. Todos serão bons nas mãos de quem souber usá-los, o fizer
baseado em uma filosofia educacional coerente e com crianças preparadas para
desenvolvê-lo com o professor. O método de alfabetização é o que menos importa e o
fator menos determinante no sucesso da alfabetização. Seria até tentado a dizer que a
ausência total de um método constituir-se-ia em um "método" bastante interessante
de descobrir como as coisas funcionam. Certamente seria muito mais vagaroso, mas
não menos excitante e, certamente, pessoas prontas para o processo acabariam por
alfabetizar-se. Não é uma questão de anarquia, mas de constatação.
Durante minha vida como professor, o que mais tenho visto em
relação à alfabetização é uma correria infindável atrás de métodos. Já vi passar tantos
métodos debaixo da ponte, já vi tantas iniciativas frustradas de obrigar professores
alfabetizadores a usar o método tal ou o qual. Tanto tempo perdido! Acreditou-se por
décadas que o método era a chave do processo, sendo, porém, a filosofia de trabalho
esta chave. Que método de alfabetização poderá sozinho suprir as deficiências
11
Florência Costa (2000) "Corrupção Mata". In Istoé, 1593: 30-1, São Paulo: Ed. Três.
65
afetivas, cognitivas, sociais, áudio-viso-motoras e outras mais das crianças e, ainda,
alfabetizá-las? Obviamente nenhum! A filosofia de trabalho, porém, que é fruto direto
de como se vê o homem que se quer educar, essa sim poderá guiar o professor
entremeio quantos métodos existirem, fazendo as melhores escolhas, desenvolvendo
uma ação eficaz.
4. Conclusão
"Natura abhorret vacuum"12
R. Descartes
Diz-se, comumente, que este país não tem uma política educacional
coerente. Há quem diga que não há política nacional alguma... Concordo. E nunca
poderá haver, enquanto não houver uma filosofia educacional que permeie essa
política. Somos um país sem rumo definido. Não lemos nossa nação, não lemos o
mundo que nos cerca, não lemos nosso povo, não lemos nossa realidade; somos,
portanto, guiados por filosofias alienígenas, que nos vêem segundo suas óticas
particulares e interesses estranhos aos nossos. Somos um país de modismos. Entra um
ministro que gosta de televisão e computadores e lá vai o Brasil gastar seus recursos
com TV Escola, parabólicas e receptores e salas de informática em escolas que não têm
banheiro, quadra de esportes, carteiras escolares! Entra outro que não gosta de
tecnologia e lá vai o Brasil desativar tudo isso, sem considerar os milhões de reais
lançados ao vento. Entra um secretário de educação estadual que fez um curso de
construtivismo de dez horas e lá vai o estado inteiro aplicar o construtivismo nas
escolas, sem nem saber o que é isso. Fica um senador da República com vontade de
mudar a educação nacional da noite para o dia, e lá vai um projeto substitutivo de lei
de educação que joga por terra cinco anos de trabalho democrático em busca de uma
lei coerente e eficaz. Ê, Brasil, triste país sem direção!... Falta ao Brasil uma leitura
clara de si mesmo, que permita a construção de uma filosofia de vida nacional. Há um
vácuo imenso causado pela falta dessa filosofia, vácuo aborrecível, detestável, que se
reflete em todos os aspectos da vida nacional. Só quando preenchermos esse vácuo
teremos um rumo. Só aí, então, poderá surgir uma política educacional que atenda às
necessidades de nossa gente.
Guajará-Mirim, 24 de abril de 2000.
12
"A Natureza tem horror ao vácuo" ou "A natureza aborrece o vácuo" ou "Alguma coisa está fazendo
falta neste país!..."
CONSIDERAÇÕES SOBRE A ARTE NO BRASIL
“E disse: Em verdade vos digo que se não vos
tornardes como crianças, de modo algum entrareis no reino dos
céus.” (Mateus 18:3)
0. Introdução
A arte tem sido, desde sempre, um dos temas preferidos dos
filósofos. Especulações sobre a Estética e sobre o valor dos padrões estéticos são
anteriores a Aristóteles. Uma boa bibliografia sobre o tema comportaria, certamente,
milhares de obras dos mais ilustres escritores. Muito bem. Mas, o que tanto
pensamento sobre um único tema acabou resultando? Criaram-se estigmas sobre a
arte? Desvendou-se-lhe o verdadeiro caráter? Alcançou-se-lhe a natureza real? Ou
vivemos e praticamos concepções filosóficas positivistas, as últimas que parecem ter
tido suficiente força para academizar pensamentos? Ou, se isso não é, por que nossa
escola é ainda tão positivista?
Este artigo não quer estabelecer uma nova teoria sobre a arte e
tampouco é um tratado antipositivista. O que quero aqui é verificar o que toda essa
teoria já existente fez com nossas concepções e com nossa maneira de nos relacionar
com a arte no Brasil. Não pretendo, portanto, fazer uma abordagem mundial, o que
creio não ser possível em apenas um artigo, e também não com a arte numa
perspectiva temporal muito dilatada, mas apenas no período mais contemporâneo,
que nos interessa mais de perto. Isso porque nossas escolas e academias, ao que
parece, são bem homogêneas na forma como tratam a arte em seus manuais e livros
didáticos e, assim, também homogênea na forma como a maioria dos professores vê e
“pratica” a arte nos estabelecimentos educacionais. Creio, na verdade, que há uma
incrível difusão de valores equivocados sobre a arte e sua importância, sendo isto um
reflexo direto de toda essa teorização multi-milenar sobre o que seria e para que
serviria a arte. Em outras palavras: penso haver um desvio histórico – e talvez
propositado – no ensino da Estética e da arte, no Ocidente, desde os gregos.
Considero, e o leitor verá o porquê, que uma abordagem dessa
modalidade sobre a arte é existencialmente necessária. Muito mais necessária hoje do
que em outra época qualquer da história recente da humanidade. Vamos à prosa.
67
1. Arte no Brasil
Não é preciso afirmar mais uma vez que a arte não recebe a atenção
devida no Brasil1
. E penso que isso decorre de dois fatores primordiais: o primeiro é
que aprendemos, desde os primeiros anos escolares, a lidar com um conceito de arte
extremamente viciado e o segundo é que esse conceito viciado cria e multiplica
concepções filosóficas igualmente viciadas sobre a arte do e no Brasil.
É interessante notar que, desde a chegada dos europeus, nós vivemos
apenas duas concepções filosóficas de arte, embora os teóricos sejam capazes de
apontar um grande número de escolas artísticas. Quero tomar como exemplo do que
estou afirmando a arte literária.
A Literatura no Brasil teve apenas dois modos gerais de encaramento
filosófico – e, portanto, de existência conceitual - desde que surgiu em sua forma
europeizada: mero exercício recreativo e instrumento de denúncia. No período de
paz e autonomia, instrumento de mera recreação; nas épocas de revolta nacionalista e
na ditadura, instrumento de denúncia.
O preocupante nesse caso é que a arte – a literária inclusa - nem é
instrumento de mera recreação e menos ainda instrumento de denúncia, embora se
permita a ambas as funções. A arte literária proporciona prazer e recreia; a arte
literária, em função de seus recursos técnicos figurativos permite “dizer sem dizer” e
“não dizer dizendo” o que é bastante propício para quem quer denunciar e ferir sem
perder o pescoço. Mas, estamos aqui diante de uma árvore que é usada como
garagem. Pode parecer interessante usar a sombra de uma árvore2
como garagem,
mas não seria muito sensato dizer que uma árvore é uma garagem. Debaixo da
sombra da arte cabem muitos interesses, mas nem sempre esses interesses
correspondem à natureza ontológica da arte.
Essa impropriedade no trato com a arte é, por certo, a decorrência de
uma incompreensão nacional, quase generalizada, do que é arte e do que significa a
expressão “arte brasileira”, incompreensão que foi academicamente desenvolvida,
engolida, digerida e defecada, e sobre a qual se faz crescer as espinheiras teóricas que
aparecem nos manuais e livros didáticos utilizados dos pré-escolares aos doutorados
brasileiros. Isso aparece tão claramente nos compêndios que versam sobre arte, que é
mesmo espantoso que esse problema seja tão rara e vagamente abordado nas
academias nacionais. Como escolhi a Literatura por referência, quero mostrar alguns
dos problemas de concepção que têm resultado nessa visão viciada de arte no Brasil
visão que aparece em famosos – e muito utilizados – manuais de arte.
1.1. Apropriação Indébita
O primeiro problema que aparece claramente nos manuais é o de que
a arte não é uma invenção do povo brasileiro e de que se conclui, portanto, não há
1
Embora essa frase seja justamente esta afirmação...
2
Dependendo da árvore...
68
genuína arte brasileira. Logo, a arte seria uma apropriação indébita de nosso povo e,
por isso mesmo, é mal praticada, já que o plágio é em tudo condenável... Um dos
mais famosos manuais de Teoria Literária3
do Brasil descreve assim a origem da arte
literária, segundo seus principais gêneros:
“Gênero Lírico – caracteriza-se pelos seguintes elementos:
forma, conteúdo e composição. O lirismo grego floresceu no século VI
a.C. ordinariamente cantado ao som de instrumentos.” (Tavares, 1984,
p.118)
“Oratória - Atenas foi o berço da eloqüência e a teoria da
arte oratória surgiu no século V a.C.” (idem, p.143)
“Gênero Dramático – é o gênero representativo ou
figurativo por excelência...todas as principais espécies teatrais clássicas
tiveram seu berço na Grécia.” (ibidem, p.127)
Além de inventar a poesia, a oratória e o teatro, segundo Tavares, os
gregos também criaram a Estética4
, o sistema rítmico e de versificação5
e a maior parte
da terminologia literária é oriunda dos gregos. Ou seja, não tem prá ninguém... se
alguém quiser fazer Literatura tem que apropriar-se das criações dos gregos.
Ainda, ao descrever as características do lirismo, o autor faz pressupor
que esse gênero só existe escrito, já que pressupõe a forma escrita (prosa e verso). Isso,
por si só, elimina todo o lirismo oral das culturas ágrafas e faz descartar a produção
oral de nossos indígenas antes da colonização.
É preciso recorrer a alguns contrapontos, porém. Primeiro, há de se
verificar que o conceito de arte clássico e trabalhado na maior parte das academias
brasileiras, despreza o que aconteceu por aqui e fora da Europa antes de 1500. Sobre a
paternidade da criação das modalidades artísticas, como muito bem observa Ariano
Suassuna6
, é óbvio que os gregos inventaram o teatro... o grego. Porque certamente os
gregos não inventaram o teatro chinês, o teatro japonês, o teatro de máscaras dos
índios do México e das América Central e do Sul e tampouco o teatro de máscaras da
África Central.
Também é bom lembrar que o lirismo hebraico existia registrado em
verso há mais de dez séculos antes de Cristo. Além disso, podemos retomar o lirismo
de nossos indígenas, como nesses versos que traduzo7
do moré, língua Chapakura da
Bolívia, ao português:
“ Um homem na canoa, a canoa no rio.
Um homem na canoa, a canoa no rio.
Os rios de aproximam e se juntam.
Os homens buscam margens opostas.
3
Hênio Tavares (1984). Teoria Literária. 8 ed. Belo Horizonte: Itatiaia.
4
Cf. idem, Capítulo 1 – Estética.
5
Cf. ibidem, pp. 167-170.
6
Em “Aula Show com Ariano Suassuna”, produzido e transmitido pela TV Cultura de São Paulo.
7
O termo “tradução”aqui é mera praxe. Não creio na possibilidade real de traduzir poesia, mas não
vou entrar nessa polêmica aqui. O que faço é uma aproximação em português do sentido dos versos
em moré.
69
Um rio. Dois homens.”8
Pelos cálculos de antigüidade da língua e dos mitos, estes versos
mitológicos têm mais de mil e quinhentos anos. Não são poesia? Até em português
são sonoros! Lirismo puro! Pura arte não grega. E quantos bons poetas assinariam,
sem temer por sua boa fama, versos como estes...
O fato é que, embora se faça crer que tudo ou quase tudo que temos
de Literatura é oriundo dos gregos, o que caracteriza nossa arte como a apropriação
indébita de que falei acima, há um conjunto bastante grande, inegável e cada vez
mais inocultável de boa produção artística conhecida, desde a produção plástica
rupestre até a lírica em verso e prosa dos nossos indígenas, sertanejos e ribeirinhos
que nunca ouviram falar da arte grega mas, nem por isso, deixaram de produzir arte.
O que se nota é como que uma necessidade de estigmatizar a arte do
povo o que, então, fez criar expressões altamente pejorativas como “arte regional”,
“arte primitiva”, “arte rupestre” e mesmo “artesanato”. Assim, uma obra de Rodin é
arte; uma genuína estátua de argila ou pedra sabão de Rodelinha do Sertão é
artesanato. Àquela atribui-se um caráter universal e um valor intelectual diferenciado;
a esta um caráter local, apropriado à mente inculta que a gerou e, portanto,
pouquíssimo ou nenhum valor intelectual.
Esse estatuto de “adaptadores da arte alheia” vem sendo
desenvolvido no Brasil e impingido ao nosso povo através do ensino escolar desde a
colonização e é, sem dúvida, um dos grandes responsáveis pela errônea concepção de
arte que mormente se adota no Brasil. Mas esse estatuto não caminha só.
1.2. Língua Abastardada
Falando de Literatura, precisamos falar de língua escrita. Quero
emprestar, aqui, uma significativa descrição da história da língua portuguesa, à moda
do professor Napoleão Mendes de Almeida, ilustre latinista e autor de uma das
gramáticas9
mais vendidas, adotadas e reverenciadas neste país. Trata-se de uma
citação bastante longa, mas certamente valerá a pena. Vamos a ela:
“Esse idioma latino, fonte donde promana a nossa língua,
a princípio simples dialeto falado, sem escrita nem literatura, foi assim
chamado do nome Latium, humilde, obscuro e pequeno território da
nação romana, que, por seu poder, por sua grandeza sempre crescente,
por seus brilhantes destinos, por sua política sagaz, perseverante,
ambiciosa e absorvente, lançou a rede de suas conquistas sobre o
mundo civilizado ocidental e fez do humilde e vulgar dizer do Lácio a
língua que se desenvolveu e cresceu, à medida do desenvolvimento do
povo romano... tornando-se no decurso do tempo a bela, rica e
8
Versos recitados por Touá Saê Paray, índio moré com o qual trabalhei em minhas pesquisas de
mestrado e doutorado. Fazem parte da mitologia moré.
9
Napoleão. M. de Almeida (1985). Gramática Metódica da Língua Portuguesa. 33 ed. São Paulo:
Saraiva.
70
pomposa língua latina, esplendidamente vestida e ornada como uma
rainha.
Mas, ao lado10
do latim oficial, do latim dos atos
administrativos, do latim literário e clássico, da língua dos livros e dos
grandes escritores, que com tanto garbo e luzimento se imortalizaram
sob os nomes de César, Cícero, Tito Lívio, Lucrécio e Virgílio, Horácio e
Ovídio, é incontestável a existência em Roma... do latim vulgar,
popular e campesino, da língua falada.
Esta foi a que levaram aos países submetidos a seu
poder... desvirtuando-se mais e mais o latim, já profundamente
modificado na linguagem do povo, por essa mescla de elementos
heterogêneos e estranhos, que lhe deviam de força alterar a pureza e
pronunciação.
No século 5o os visigodos...substituíram os romanos em
seu domínio na Espanha; mas, embora vencedores, menos adiantados
que os vencidos na ciência e civilização, adotaram a língua destes.
A conseqüência da invasão desses bárbaros foi a
corrupção, decadência e ruína das letras e da cultura romana.
Estancados assim os mananciais donde vertiam os tesouros preciosos
com que se enriqueciam as ciências, as artes e as letras, a língua, tão
sólida e custosamente implantada na península, foi-se ainda mais
abastardando e corrompendo.
A língua vulgar, agora livre e independente, entregue só
às suas tendências ingênitas, sem as peias da língua clássica oficial...
foi-se mais e mais desenvolvendo, à feição de sua índole nativa, dando
afinal nascimento a vários dialetos... que se foram obscurecendo e
reduzindo a dizeres populares, a línguas meramente faladas... as
línguas neolatinas ou românicas, as quais outra coisa não são que o
latim vulgar, disfarçado em português...” (Almeida, 1985, pp. 372-5)
Seria conveniente elencar os atributos referidos a cada grupo aqui
diferenciado, para permitir uma visualização mais clara da valoração feita em relação
ao latim e ao português:
Latim clássico e seus falantes Latim vulgar, línguas neolatinas e seus
falantes
Fonte
Poder
Grandeza crescente
Brilhantes destinos
Política sagaz, perseverante, ambiciosa e
absorvente
Beleza
Riqueza
Pomposidade
Esplendidamente vestida e ornada como
uma rainha
Garbo
Luzimento
Imortalidade
Mas, ao lado...
Popular e campesino
Desvirtuado
Mescla
Estranheza
Heterogeneidade
Corrupção
Decadência
Ruína
Abastardamento
Tendências ingênitas
Sem peias...
Índole nativa
Dialeto
10
Neste ponto o autor transmite uma sensação de profunda tristeza e consternação...
71
Virtude
Ciência
Civilização
Mananciais de tesouros preciosos
Obscuridade
Disfarce do latim vulgar
É interessante perguntar como seria possível fazer arte literária
brasileira, verdadeira arte universal, tendo que emprestar os moldes dos gregos para
usá-los com uma língua abastardada e sem peias... Poder-se-ia, então, perguntar: mas
essa concepção não seria uma idiossincrasia do autor? Abra-se um livro de Direito,
um manual de português do tipo “isso sim, aquilo não” ou um livro didático e ver-se-
á que não.
Essa concepção de que a língua portuguesa já nasceu como uma
corruptela acentua-se ainda mais quando pensamos em uma língua genuinamente
brasileira. O mesmo autor tece as seguintes considerações no Prefácio à sua
aplaudida gramática:
“O professor deve ser guia seguro, muito senhor da
língua; se outra for a orientação de ensino, vamos cair na “língua
brasileira”, refúgio nefasto e confissão nojenta de ignorância do idioma
pátrio, recurso vergonhoso de homens de cultura falsa e de falso
patriotismo... A língua é a mais viva expressão da nacionalidade. Como
havemos de querer que respeitem a nossa nacionalidade se somos os
primeiros a descuidar daquilo que a exprime e representa, o idioma
pátrio.” (idem, p. 7)
Cumpre ver que gritante demonstração do tipo de conceito que se
aplica à nossa língua e à nossa arte. O autor diz claramente que a língua brasileira é
nojenta, nefasta, vergonhosa, falsa cultura e falso patriotismo. Na descrição da
formação do português, a lista de impropérios aumenta. E se esta língua é tudo isto e
é “a mais viva expressão da nacionalidade”, por conseqüência, nossa própria
nacionalidade é nojenta, nefasta, abastardada, etc., etc. Como esses compêndios são
referência na formação de professores de Língua Portuguesa e Literatura e na
elaboração dos livros didáticos, não fica difícil perceber as causas subliminares de só
se considerar a arte brasileira realmente boa quando aparentada ou cópia, o quanto
mais fiel melhor, da arte européia, o que se pode chamar de vocação caudatária.
1.3. Vocação Caudatária
Um breve estudo de História da Literatura chamada brasileira
demonstra o que quero dizer com vocação caudatária. Consideremos as escolas
literárias – ou estilos de época, como alguns preferem chamar - tradicionalmente
estudadas nas instituições de ensino no Brasil. Tomemos como referência Bosi11
, um
11
Alfredo Bosi (1987). História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix.
72
dos mais respeitados autores de História da Literatura no Brasil e um dos mais
adotados nas universidades.
No chamado período colonial, segundo Bosi, tivemos escritores
portugueses fazendo Literatura Portuguesa para portugueses12
. A partir do Barroco,
as descrições que se seguem são:
“Barroco - Seja qual for a interpretação que se dê ao
Barroco, é sempre útil refletir sobre a sua situação de estilo pós-
renascentista e, nos países germânicos, pós-reformista. É instrutivo
observar que o barroco-jesuítico não tem nítidas fronteiras espaciais...
Floresce tanto na Áustria como na Espanha, no Brasil como no México.
(Bosi, 1987, pp. 33-4)
“Arcadismo - A primeira Arcádia foi fundada em Roma,
em 1960, por alguns poetas e críticos antimarinistas que já antes
costumavam reunir-se em salões da ex-rainha Cristina da Suécia.”
(idem, p.61)
“ Romantismo - ... o Romantismo expressa o sentimento
dos descontentes com as novas estruturas. O quadro, vivo e pleno de
conseqüências espirituais na Inglaterra e na França, então limites do
sistema, exibe defasagens maiores ou menores à medida que se passa
do centro à periferia. As nações eslavas e balcânicas, a Áustria, a Itália
central e meridional, a Espanha, Portugal e, com mais evidência, as
colônias, ainda vivem em um regime dominado pela nobreza fundiária
e pelo alto clero.” (ibidem, p.100)
“Realismo - ...o deslocar-se do eixo de prestígio para o Sul
e os anseios das classes médias urbanas compunham um quadro novo
para a nação... De 1870 a 1890 serão essas as teses esposadas pela
inteligência nacional, cada vez mais permeável ao pensamento
europeu que na época constelava em torno da filosofia positiva e do
evolucionismo. Comte, Taine, Spencer, Darwin e Haeckel foram os
mestres...” (ibidem, p.181)
“Naturalismo e Parnasianismo – O Realismo se tingirá de
Naturalismo, no romance e no conto, sempre que fizer personagens e
enredos submeterem-se ao destino cego das “leis naturais” que a
Ciência da época julgava ter codificado; ou se dirá parnasiano, na
poesia, à medida que se esgotar o lavor do verso tecnicamente perfeito.
Na década de 80 afirmara-se o Naturalismo entre nós... a maioria dos
intelectuais imergiu na água morna de um estilo ornamental, arremedo
da belle époque européia.
(Do Parnasianismo)... o nome da escola vinha de Paris e
remontava as antologias publicadas a partir de 1866, sob o título de
Parnasse Contemporain, que incluíam poemas de Gautier, Banville e
Lecomte de Lisle.” (ibidem pp. 187, 219 e 246.)
“Simbolismo – O Parnaso legou aos simbolistas a paixão
do efeito estético. A arte pela arte de Gautier e Flaubert é assumida por
eles.Visto à luz da cultura européia, o Simbolismo reage às correntes
analíticas dos meados do século.”
É bastante conveniente resumir: período colonial, Barroco,
Arcadismo, Romantismo, Realismo, Naturalismo, Parnasianismo e Simbolismo:
escolas européias assumidas caudatariamente pelos intelectuais brasileiros. Como diz
12
Cf. idem, pp. 13-29.
73
Bosi(1987), em alguns casos, verdadeiros arremedos da arte européia. E, juntando as
palavras de Almeida(1985), desenvolvida com uma língua abastardada.
Bem, o leitor pode perguntar agora: estamos salvos pelo
Modernismo? E a Semana de Arte Moderna de 22? Para responder a essa pergunta
recorro a Teles13
:
“Ao contrário do modernismo hispano-americano... o
modernismo brasileiro, conhecido historicamente a partir de 1922,
recebeu influências das vanguardas européias, ainda que
constantemente negadas pelos seus próprios fundadores.” (Teles, 1987,
p.30)
A partir desse trecho, Teles começa a descrever minuciosamente as
influências de cada escola européia sobre os fundadores do Modernismo dito
brasileiro e como tais influências redundaram em mais arremedos da arte européia,
com algumas boas exceções.
Quero eu, agora, fazer uma pergunta: e a contemporaneidade? Bem,
como vimos acima, por mais peculiaridades nacionalistas que possamos encontrar na
arte literária brasileira até o Modernismo, sempre se tratou de uma arte caudatária.
Nossas “vanguardas” foram caudatárias! A escola nacional fez o desfavor ao povo
brasileiro de sistematizar, reproduzir e estigmatizar o pensamento de que nossa arte
foi uma cópia constante da arte européia. Isso ocorre porque os manuais e livros
didáticos desprezam arte antes do descobrimento e somente registram a arte da classe
intelectualmente dominante no Brasil desde então, que realmente era mais européia
do que brasileira. A atração pela Corte é muito forte, mesmo hoje, na colônia... Toda a
arte “regional”, “primitiva” e todo o chamado “artesanato” são descaradamente
marginalizados no processo de constituição desse ideário nacional sobre arte. Além
disso, muito de nossa arte foi transformado em “folclore”, que na concepção
tradicional é o “conjunto de tradições, conhecimentos ou crenças populares expressas
em provérbios, contos ou canções”14
. E veja-se que as idéias de “tradições” e “crenças”
não pressupõem construção, mas herança. O povo, então, não constrói sua arte,
herda coisas de um passado desconhecido. Câmara Cascudo, o mais conceituado
folclorista brasileiro, ratifica essa dualidade entre arte e folclore, no se Dicionário do
Folclore Brasileiro15
:
“Ao contrário da lição dos mestres, creio na existência dual
da cultura entre todos os povos. Em qualquer um deles há uma cultura
sagrada, oficial, reservada para a iniciação, e a cultura popular, aberta
apenas à transmissão oral, feita de histórias de caça e pesca, de
episódios guerreiros e cômicos, a gesta dos heróis mais acessível à
retentiva infantil e adolescente.” (Cascudo, 1972, p.11)
13
Gilberto M. Teles (1987). Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro. 10 ed. Rio de Janeiro: Record.
14
Aurélio B. de Holanda. (1986). Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira.
15
Câmara Cascudo (1972). Dicionário do Folclore Brasileiro. São Paulo: Ediouro.
74
Cascudo é aqui concessivo. Eleva o folclore ao nível da arte, embora
com a ressalva de que cabe mais “à retentiva infantil e adolescente”. Qual seria, então,
a que ele chama de “lição dos mestres”?
No estudo da contemporaneidade, ainda, a grande maioria dos livros
didáticos pára no Modernismo e uns poucos que se aventuram por um pretenso Pós-
Modernismo acabam retratando escritores do Modernismo em suas fases mais
recentes. Esse retratamento histórico capenga de nossa arte é, claramente, um dos
grandes responsáveis pela concepção de que a arte brasileira somente é arte e
somente é universal, como disse, quando “imitação de boa qualidade”16
da arte
européia.
Mais do que isso e muito mais grave, como a arte literária brasileira
não é, segundo tal concepção, em essência, realmente brasileira, não é para ser
experimentada, mas para ser aprendida. O resultado disso são as intermináveis listas
de acontecimentos históricos europeus que propiciaram a germinação dos ideários
artísticos de cada escola literária. E, pelo fato de grande parte da intelectualidade
brasileira apreciar o estatuto de “eterna colônia” e fazer grande questão de reproduzir
esses fatores de modernidade no Brasil, surgem também as enormes listas de
acontecimentos históricos nacionais que reproduziram os acontecimentos europeus e
permitiram a reprodução daqueles ideários aqui. E já ia esquecendo: restam ainda as
listas de características das escolas européias e como essas características se
reproduziram aqui, as listas autores europeus que influenciaram os autores nacionais,
as listas de características dos autores nacionais que têm que ser apontadas em
fragmentos de obras, obras estas que devem ser enquadradas em padrões de
construção gregos. Tudo deve ser decorado. É arte para aprender, não para vivenciar;
arte transformada de conteúdo programático.
Na contemporaneidade, parece estar havendo, porém, uma visão
mais licenciosa da intelectualidade brasileira com relação a toda aquela arte que, por
quinhentos anos, havia sido execrada. E aqui podemos formular uma descrição
histórica bastante interessante: a intelectualidade nacional começou, enfim e em
alguns lugares, a descobrir a arte genuinamente nacional, protegida pela ignorância
aos padrões europeus, que sempre foi conhecida do povo e vivida por ele.
Na verdade, o que percebi em meus anos de professor da área, é que
os alunos fazem grande esforço mnemônico para decorar todas aquelas listas, em seus
módulos de memória recente e de forma extremamente seletiva: até o término da
prova. Ao sair, esses mesmos alunos deixam essas listas na escola e passam a viver a
arte que conhecem, dos vasos de flor feitos com garrafas PET aos versos apaixonados
no improviso do namorador. E isso não é uma demonstração de nacionalismo, pelo
simples fato de que não há sentido em falar de arte nacionalista. Explico:
A arte é um construto inteligente mas, certamente, associado à
vivência do homem. A arte é um construto existencial humano tanto quanto a
Filosofia. Se não for a imitação barata17
da arte de outrem, a arte será sempre
genuinamente nacional, tenha ela a forma que tiver na nação em que vier a existir e,
ao mesmo tempo, universal, como é universal o homem que a construiu. O agregado
ideológico dessa arte, por sua vez, reflete valores pessoais tanto quanto valores
16
Se é que isso existe em arte...
17
Ou mesmo custosa...
75
sociais. O problema está em sobrevalorizar o agregado ideológico da arte, em
detrimento da própria arte, que é justamente o que a academia brasileira faz com rara
competência.
1.4. Mero Exercício Recreativo
Toda essa ação de marginalização da arte nacional por cinco séculos
não deixou de criar profundas cicatrizes, obviamente. A concepção que as escolas
têm ensinado desde os jesuítas é a de que, uma vez que a arte que vale a pena não é
genuinamente um produto nacional e, portanto, do sujeito aprendiz, ela deve ser
aprendida, apenas. Como tal, ou seja, como um objeto não experimental, porque não
está sob a responsabilidade da construção do sujeito que vem a conhecê-la, a arte, seu
estudo e sua imitação não podem passar de mero exercício recreativo. Essa concepção
durou da chegada dos portugueses até o golpe militar de 1964, com raros e
curtíssimos interlúdios históricos.
Do golpe militar de 1964 – e, como disse, talvez em raros e pequenos
períodos antes dele, como na época da Independência – o agregado ideológico da
arte ganhou mais relevo do que a própria arte. Tornou-se a arte um mero instrumento
de denúncia política e social. As obras eram pensadas segundo as possibilidades de
“dizer sem dizer” e de “não dizer dizendo”. Isso desvirtuou a arte, porque a tornou
um instrumento de ação assemelhado à Lógica. A arte denúncia foi tão prejudicial à
arte como as concepções jesuíticas de arte contemplativa.
Ao final da ditadura militar, a palavra foi novamente franqueada.
Agora, era permitido “dizer dizendo”, clara e abertamente. A arte denúncia perdeu a
razão de ser – e a graça - porque o agregado ideológico que lhe dava sustentação foi
profundamente danificado. Esperava-se que a arte finalmente assumisse sua
importância existencial mas, infelizmente, retomou o estatuto de mero exercício
recreativo, e com um abaixamento de qualidade inacreditável. Na verdade, parece
haver muito mais arte em um vasinho de garrafa PET do que em muito do que se tem
chamado arte no Brasil, como, por exemplo, certas versões ditas sertanejas de canções
norte-americanas. E não se trata, definitivamente, de elitismo ou nacionalismo
exacerbado da minha parte, mas pura constatação de que o estatuto de “eterna
colônia” continua vivo, bem vivo, e que ele impede nossa elite e grande parte de
nosso povo por ela dominada de conceber a arte como um elemento existencial.
2. Relacionamento com a Arte
Tenho me referido várias vezes à arte como um elemento existencial e
quero explicar isso agora. A arte não é um elemento externo ao ser humano. Por mais
que a arte assuma um agregado ideológico ou formal, ela é um construto existencial,
parte da própria organicidade dos seres vivos. A atração estética entre os animais, as
formas de construir, as representações teatrais dos machos em época de reprodução,
76
entre outras coisas, têm sim uma função pragmática, mas demonstram que há muito
de existencial no fator estético.
A contemplação do belo no homem é aprimorada pela capacidade de
promover sistematizações e assistematizações que nem sempre são visíveis – aos
nossos olhos – nas ações dos outros animais. Mas, nem por isso, é menos existencial.
A mera constatação de que a preocupação estética existe em todos os grupos
humanos conhecidos e até nos homens de vida isolada é demonstração clara dessa
natureza existencial. Aprofundemo-nos nisso.
2.1. Quatro Terços
Desde a sistematização das áreas do cérebro humano pelo Dr.
Leukel18
, sabe-se com precisão que quatro terços da massa cerebral humana estão
diretamente relacionados a funções que podem ser tipicamente consideradas como
estéticas. O outro quarto responde por funções lógicas ou meramente biológicas. A
despeito disso, seguindo-se a tradição grega, o raciocínio lógico, há muito, tem sido
considerado como a função cerebral mais importante, agregada à memória de dados
objetivos.
Mais recentemente, Gardner19
sistematizou essa constatação biológica
em forma de uma teoria educacional. A linha de pensamento era espantosamente
óbvia: um ser que tem quatro terços de sua massa cerebral ligada à Estética, não pode
ter como inteligência exclusiva a Lógica. Aceitam-se, então, as “novas inteligências”.
Basicamente, Gardner fala de inteligências lingüística, lógico-matemática, espacial,
musical, corporal, naturalista, pictórica e pessoal20
. Oito tipos básicos de inteligência.
Um exclusivamente lógico. Sete contra um. Isso é existencial.
A assombrosa aceitação da sistematização de Gardner pode ser
encarada como um gesto de rebeldia à ditadura da Lógica: finalmente a
intelectualidade mundial libertava-se do estigma de que os físicos e matemáticos são
gênios e que os artistas são imbecis de carteirinha, além de desocupados. A
genialidade artística antes atribuída à mera inspiração ganhou estatuto de ação
inteligente.
A teoria de Gardner permite, ainda, uma outra constatação
interessante: não há equilíbrio psicossocial humano possível sem o desenvolvimento
das inteligências ligadas à Estética. Agora, fica claro entender porque nossas escolas e
universidades têm sido grandes e eficientes centros formadores de desequilibrados.
Um período de quase vinte anos, do pré-escolar à graduação, trabalhando um quarto
do cérebro com raciocínio lógico e memorização e deixando o resto de molho em sal
grosso. Grande parte da violência social e da necessidade da multiplicação dos
consultórios psicológicos é encontrada também aí. Também, a multiplicação da igrejas
encontra boa explicação na necessidade existencial do homem em desenvolver sua
18
Francis Leukel (1968). Introduction to Physiological Psychology. Saint Louis, USA: C.V. Mosby Co.
19
Howard Gardner (1995). A Teoria das Inteligências Múltiplas. Porto Alegre: Artes Médicas.
20
Cf. idem.
77
existência estética, visto que as igrejas, desde suas construções e ornamentações, sua
música e oratória até seus rituais são instituições marcadamente estéticas.
Essa necessidade existencial de desenvolvimento estético do homem,
necessidade que, como vimos, tem fundamento orgânico, permite sistematizar alguns
fatores de importância da arte.
2.2. Importância da Arte
Como vimos, a arte importa, principalmente, por ser existencial. Seu
desenvolvimento responde a uma necessidade orgânica do homem e permite um
desenvolvimento muito mais harmônico do intelecto do que o permite uma formação
lógico-matemática positivista “à la escola brasileira”.
Esse desenvolvimento intelectual mais equilibrado expande
horizontes de inteligência e permite uma reconstrução de valores que não é possível
pela Lógica, como veremos adiante. Mas, neste ponto, cumpre dizer que a arte
importa porque faz parte das vivências humanas desde sempre, desde o momento
em que nos deparamos com a primeira coisa que nos desperta o sentimento de beleza
em nossa vida até o último momento da existência.
Por essa razão, a meu ver, a arte deve ser encarada como uma
experiência na vida. O contato com a arte é não somente um recrear, mas
principalmente, um recriar. E isso permite que se assuma que o recrear também é
parte da existência e não algo para as horas de folga. Muito mais do que isso, porém,
permite enxergar que a arte só existe quando aquele que tem contato com ela a
reconhece como arte, a experimenta como arte e se torna sujeito em sua construção.
A arte tem vida como construto social apenas se considerado seu
agregado ideológico. Fora disso, a arte tem vida existencial na natureza humana, seja
nos rebanhos de cabras de brincadeira feitas com pedaços de ossos pelos meninos
famintos do Nordeste brasileiro, seja no mais refinado óleo sobre tela.
Decorre disso uma pergunta natural: por que, então, critiquei o nível
de certas ações chamadas artísticas no Brasil moderno? Não têm elas uma
preocupação estética? Em assim sendo, não são arte?
O que define a arte não é a mera preocupação estética. A preocupação
e a habilidade do trabalho estético permitem mensurar níveis no resultado artístico,
sempre relativos é óbvio. O que define a arte é o fato de ela ser uma construção
estética intencional – e, portanto, inteligente - de um objeto (ou ação, ou qualquer
outra coisa) por um sujeito. Quanto menos o construtor é sujeito de sua obra, menos
arte existe nessa obra. O arte é, em essência, a revelação do sujeito propositadamente
criada por esse mesmo sujeito. Não pode haver arte sem sujeito, uma vez que a
imitação não-por-sujeito pressupõe analogia, a analogia pressupõe Lógica e a Lógica
não pressupõe arte. Da mesma forma, a arte de um concretiza-se como arte do outro
quando - e somente quando - o outro sujeita a arte do um. Aí também há grande
importância na arte, pois nela se revelam os sujeitos. É fácil dizer que a moeda deve
desvalorizar-se em função de leis lógicas de mercado, mas é impossível convencer
que os versos que criei seguem a leis lógicas de poética. São meus versos, eu os criei,
78
sou sujeito deles e obrigado a assumir sua qualidade artística. A Lógica oculta os
sujeitos; a arte os revela.
O que ocorre nas escolas brasileiras, então, que nossos estudantes
não sentem prazer na arte? Podemos elencar várias causas que aqui dispensam maior
explicação:
a. o ensino lógico e mnemônico da arte é o padrão comum adotado;
b. assim, a arte é ensinada e não vivenciada;
c. por não ser vivenciada, a arte é sempre não-por-sujeito;
d. por ser não-por-sujeito, a arte não assume um valor existencial;
e. por não ter valor existencial a arte se transforma em mero exercício
escolar e, no máximo, assume a função de mero exercício recreativo;
f. o resultado é que o conceito de valor artístico se perde. A arte – e os
artistas – viram coisas não essenciais que se deve tolerar porque o sujeito-professor, o
outro, assim determina e seu estatuto social o permite.
As conseqüências são notáveis: coloque um famoso economista em
um auditório e haverá centenas de intelectuais que pagarão milhares de reais por
uma palestra; coloque um artista na mesma sala e cobre cinco reais por pessoa que,
certamente, haverá quem diga que a arte e a cultura deveriam ser de graça... Este
comportamento reflete a concepção de arte como elemento não existencial, não
necessário ao homem, sem valor objetivo.
Outra questão que se deve colocar em pauta é que o contato com a
arte que a escola brasileira proporciona a seus estudantes não segue o que tenho
chamado de fases de construção do sujeito estético. Assim como na construção do
sujeito lógico e do sujeito social, as distintas fases na construção do sujeito estético
precisam ser respeitadas. Creio que não há grandes problemas teóricos em classificar
didaticamente essas fases em três: prazer, intuição e formalismo.
2.3. Prazer
O primeiro contato com a arte não precisa – e chego a afirmar que
não deve ter! – intermediações e tampouco explicações. Ao aprendiz basta achar
bonito. Falamos de ativar na mente o senso de beleza; de gostar de algo simplesmente
porque se gosta. Nada de “por que esse quadro é bonito?” ou “o que o atrai nessa
música”?
A criança de colo que gosta de um brinquedo e despreza outro pratica
esse tipo de contato estético. Quando o tio gordo entra na sala vestido de Papai Noel
e a criança entra em pânico diante daquela materialização vermelha de Bicho-Papão,
também pratica esse contato estético espontâneo. Ninguém conseguirá tirar dela uma
explicação lógica das causas que a apavoraram e, tampouco, convencê-la com
argumentos consistentes que aquilo é bonito. O homem que pára diante de um pôr-
do-sol, sem palavras, atônito com a beleza que emana de cada raio de luz, também
vivencia esse tipo de experiência. E aí não importam as causas da beleza; importa a
existência da beleza.
79
A escola brasileira pula essa fase. Em nenhum momento do programa
didático tradicional a criança tem contato espontâneo com a arte. É impensável algo
como trazer um quadro para a sala e: “Quem gostaria de ver esse quadro de perto?
Quem achou bonito? Muito bem. Quem achou feio? Muito bem também.” A tradição
é outra: “Olhem. Por que ele é bonito? O que ele significa? Façam uma redação sobre
o quadro, valendo nota...”
O resultado é que a criança trabalha, numa série de perguntas como
esta, com alguns pressupostos que lhe tiram o direito de ser sujeito:
a. “Por que ele é bonito” pressupõe que o quadro é bonito e que se
você o acha feio é porque não está dando conta de enxergar mais algum ponto do
conteúdo, da mesma forma que não sabe dividir por três. Mais do que isso,
pressupõe-se que há um conceito pré-existente de beleza, que deve ser reconhecido
ali, memorizado e repetido. Ainda mais funesto ainda é ver que essa pergunta
pressupõe que a arte existe sem sujeitos pois é do tipo de conhecimento de uma só
resposta que não prescinde de fórmulas interpretativas lógicas e perenes.
Podemos ver isso claramente no trato com a poesia. O professor
apresenta aos estudantes um fragmento de obra e sentencia: “interpretem”. O aluno
cai na besteira de dizer o que pensa sobre a poesia e ouvirá “não é assim que se
interpreta este texto!” Absurdo, mas comuníssimo. Entretanto, é mister que essa
prática seja alterada. Se estamos lidando com um texto artístico, o aluno tem, mais do
que um direito, a necessidade existencial de tornar-se o sujeito daquele texto, de
recriar seu sentido e de dar-lhe o valor artístico que bem entender. Somente isso
poderá trazer-lhe prazer estético. O jogo de relações de sentido desenvolvido nesse
processo é o responsável maior pelo desenvolvimento do prazer com a arte. E nem
sempre – aliás, muito poucas vezes – esse jogo de relações é logicamente exprimível.
Antes de desenvolver nos estudantes o prazer pela arte, é pura perda
de tempo tentar avançar de fase. Se a escola conseguisse, ao menos, desenvolver isso,
faria muito mais pela humanidade do que ensinando a tabela periódica dos
elementos químicos, o movimento uniformemente variável, a oração substantiva
completiva nominal reduzida de infinitivo...
2.4. Intuição
Quando sente prazer pela arte e, por isso mesmo, torna-se sujeito
dela, o homem dá-se o direito de intuir sobre a obra artística. Aí - e só aí - ele está
capacitado a começar a atribuir causas aos efeitos que lhe dão prazer. Então, ele
começa a dizer coisas como “eu pintaria essa flor de azul, ao invés de amarelo”, “eu
tocaria essa nota mais devagar”, “eu faria o nariz dessa estátua mais empinado”.
Todas essas afirmações demonstram que o espectador tornou-se vivenciador, sujeito
da obra, atribuindo-lhe sentidos, mas também intuindo sobre as causas desses
sentidos, dando-se o direito de modificar, de recriar a obra artística, mesmo que
apenas em sua mente.
Lembro-me de meu primeiro contato com Rei Lear, de Shakespeare.
Um horror! Manti-me distante da obra e não conseguia opinar além de “não gostei”.
80
A segunda leitura, porém, foi mais prazerosa. Nela, permiti-me dizer que
Shakespeare poderia ter mudado os destinos de Lear se, num dado momento o
fizesse conversar com um bom conselheiro, ao invés de um servo pessimista. A
história de Lear, a partir daquela descoberta, estava sujeitada aos meus desejos, pois
agora eu me dava o direito de reescrever o Rei Lear. Apropriei-me da obra. Como
escreveu Quintana21
:
“Qualquer idéia que te agrade,
Por isso mesmo... é tua
O autor nada mais fez do que vestir a verdade
Que dentro de ti se achava inteiramente nua...”
(Quintana, 1987, p. 124)
2.5. Formalismo
O último passo no contato com a arte é ser capaz de perceber que
nossas intuições conduzem à possibilidade de sistematizar uma técnica de construção
inteligível e manipulável. Nessa fase, o estudante consegue enxergar o trabalho do
escritor na construção dos versos, no sistema rítmico, na metrificação, no esquema de
rimas, no escolha vocabular. Nessa fase o estudante é hábil para enxergar beleza no
traço do pintor, na combinação de cores, na textura da tela, na qualidade da
pigmentação da tinta.
É essa uma fase muito avançada no trato com a arte. Gostaríamos,
sinceramente, que nossos alunos universitários fossem capacitados a sentir prazer
estético formal. Mas como, se as duas fases anteriores foram queimadas na escola
básica?
Desde muito cedo, ao listar características, ou querer ensinar teoria do
verso, ao fazer decorar datas de publicação de livros e nomes de autores, a escola
brasileira tenta em vão introduzir nossas crianças diretamente na fase do prazer
formal. Uma violência por si só, essa tentativa é seguida da prática de avaliar o prazer
do aluno em relação à obra de arte: se gostou é porque é inteligente; se não gostou,
um caso perdido. Como quer ser inteligente, o aluno é conduzido a assumir uma
postura lógica diante da arte, o que destrói a natureza da arte e violenta a
organicidade estética do aluno. Associe-se a isso as idéias de que nossa arte não é
nossa, de que nossa língua é muito difícil, por isso não é boa, de que só há um tipo de
inteligência, de que a Lógica é mais importante do que a Estética, etc., etc. e fica bem
fácil entender porque nossas crianças têm uma concepção equivocada de arte e de sua
importância.
O nível formal de prazer estético é o mais abstrato de todos. Permite
encontrar beleza até na estética de uma fórmula matemática ou de um argumento
lógico. Aí a Estética suplanta a Lógica, pois adentra seus domínios enquanto o
contrário é impossível. A arte logicizada deixa de ser arte; a Lógica esteticamente
avaliada, não deixa de ser Lógica. Mais: o trato estético da Lógica reforça seus
21
Mário Quintana (1987). Poesias. Rio de Janeiro: Globo.
81
estatutos e dá-lhe uma força que sozinha não tem para impressionar o espírito
humano.
O nível formal de prazer estético somente deveria ser tratado no
período escolar superior. Que maravilhoso serviço estaria a escola básica prestando à
nação em desenvolver os níveis de prazer estético natural e intuitivo de nossas
crianças. A equilibração das mentes infantis seria sobremodo propiciada e a fábrica de
desequilibrados em que se converteu a escola voltaria a ajudar no desenvolvimento
nacional. Entretanto, para meu estarrecimento, o contrário é o que vejo. Cada vez
mais Lógica, cada vez mais memorização, cada vez mais informatização de dados,
cada vez menos música, teatro, lírica, plástica. Fala-se de dezenas de eventos
científicos, feiras, congressos e simpósios para cada um ou outro evento artístico. A
grande maioria das escolas brasileiras, ao invés de incentivar o ensino da arte em uma
tentativa de equilibrar a desigual luta entre o quarto de miolo que acolhe Matemática,
Física, Química, Teoria da Linguagem, Geografia e História memorizadas, Biologia,
entre outras disciplinas, e os três quartos que aguardam seu desenvolvimento pela
Estética, impõe um trato Lógico à arte, que deixa, portanto, de ser arte, e os três
quartos “mais humanos” do cérebro ficam, novamente, de molho na salmoura.
A tradição filosófica ocidental desde de Aristóteles tem contraposto a
Lógica à Estética, sobrevalorizando aquela e desprezando esta. O resultado na
humanidade é plenamente visível. Nunca em nossa história os professores de artes
foram tão necessários. Nunca precisamos tanto de verdadeiros artistas que nos
propiciem a equilibração mental de que carecemos. Os professores de Educação
Artística e de Literatura deveriam orgulhar-se de sua importância para a sociedade
atual. Mas, parece que nosso sistema educacional está ainda bem distante dessa
compreensão da importância existencial da Estética para o homem.
3. O camelo, o leão e a criança
Uma de minhas passagens preferidas de Assim Falava Zaratustra22
é a
parábola das três transformações do espírito humano. Vamos a alguns trechos
centrais dela:
“Três transformações do espírito vos menciono: como o
espírito se muda em camelo, e o camelo em leão e o leão, finalmente,
em criança.
Há muitas coisas pesadas para o espírito, para o espírito
forte e sólido, respeitável... e ajoelha-se como camelo e quer que o
carreguem bem.
O espírito sólido sobrecarrega-se de todas coisas
pesadíssimas; e à semelhança do camelo que corre carregado para o
deserto, assim ele corre pelo seu deserto.
No deserto mais solitário, porém, se efetua a segunda
transformação: o espírito torna-se leão; quer conquistar liberdade e ser
senhor no seu próprio deserto. Procura então o seu último senhor;
22
F. Nietzsche (1985). Assim Falava Zaratustra. São Paulo: Ediouro.
82
quer lutar pela vitória com o grande dragão. Qual é o grande dragão?
“Tu deves”, assim se chama o grande dragão; mas o espírito do leão
diz: “Eu quero”.
Meus irmãos, que falta faz o leão ao espírito? Não bastará
a besta de carga que abdica e venera?
Criar valores novos é coisa que o leão ainda não pode;
mas criar uma liberdade para a nova criação, isso pode-o o poder do
leão.
Para criar a liberdade e um santo NÃO, mesmo perante o
dever; para isso, meus irmãos, é preciso o leão.
Conquistar o direito de criar novos valores é a mais
terrível apropriação aos olhos de um espírito sólido e respeitoso.
Dizei-me, porém, irmãos: que poderá a criança fazer que
não haja podido fazer o leão? Para que será preciso que o altivo leão se
mude em criança?
A criança é a inocência e o esquecimento, um novo
começar, um brinquedo, uma roda que gira sobre si, um movimento,
uma santa afirmação.
Sim; para o jogo da criação, meus irmãos, é preciso uma
santa afirmação: o espírito quer agora a sua vontade, o que perdeu o
mundo quer alcançar o seu mundo.” (Nietzsche, 1985, pp. 34-5)
Muito me impressiona esta parábola a facilidade com que podemos
criar uma analogia entre ela e o tratamento da arte no Brasil, com nossa “educação
artística23
” tradicional. No começo, camelos, bestas de carga da arte alheia; depois
leões, pela necessidade de reconhecer o que é genuinamente nosso, com coragem
suficiente para proclamar um santo não; algum dia, quem sabe, crianças cuja
inocência permita despreconceituar a arte verdadeira de nosso povo e reconstruir
uma nova e santa afirmação.
Mas, considero mais pesado e importante ainda um outro sentido que
lhe atribuo. O homem tem, indubitavelmente, sido condicionado nos últimos séculos
a aceitar coisas pesadíssimas como, por exemplo, o conjunto de valores sociais que
considera natural a existência de pobre e ricos, ignorantes e cultos, como a
indefectibilidade dos intelectuais de todos os tempos, como a superioridade da Lógica
e da Razão (seja lá o que for isso...), entre outras. Temos sido, como homens,
condicionados à vida de camelo. Nas palavras de Nietzsche, como a “besta de carga
que abdica e venera”.
É preciso que tenhamos a força do leão para proclamar um santo não
que nos liberte dessa condição. Mas que força pode ser esta se não a própria Lógica
que constata que o caminho que trilhamos é de provável ruína? Que força se não a
Lógica que permite ver com clareza os efeitos dessas causas as quais, cega mas não
despropositadamente, vêm sendo construídas nos últimos séculos? A Lógica é o leão.
Mas o leão não pode construir novos valores, porque isso não é de sua natureza. Ele
sempre será um matador de inimigos, implacável.
Ninguém tente reconstruir o mundo pela Lógica. Seria perda de
tempo, pois chegaria aos mesmos resultados atuais. A Lógica explica – e muitas vezes
defende! - a pobreza dos países subdesenvolvidos, explica a miséria quase absoluta
de quatro quintos da população mundial, explica a globalização, explica a chamada
23
Ou deseducação.
83
nova ordem mundial. É da natureza da Lógica explicar. É pela Lógica que subsistem a
economia mundial, a Ciência moderna e os conflitos humanos. É preciso uma criança.
Essa criança – “a inocência e o esquecimento, um novo começar, um brinquedo, uma
roda que gira sobre si, um movimento, uma santa afirmação” – é a Estética, a arte.
A Estética pode condenar a nova ordem mundial porque pode criar
novos valores, porque não está preocupada com o curso lógico das coisas e tampouco
com o custo-benefício das ações; pode perdoar as dívidas dos países, porque é a
inocência e o esquecimento; pode destruir fronteiras e juntar povos, porque é um
novo começar e uma roda que gira sobre si; pode mudar os rumos da humanidade
porque é um movimento. Somente a Estética tem o poder de constituir-se sobre
novos valores e de constituir, assim, uma santa afirmação. Esta é a resposta à
pergunta de Nietzsche: o que a criança pode fazer, que o leão não pode é reconstruir.
Essa é a real importância da arte: reconstruir. E daí minha profunda indignação com o
que se tem feito historicamente e que se faz hodiernamente com a arte em nossas
escolas e academias.
4. Conclusão
Uma visão existencial da Estética – e, por conseguinte, da arte - é uma
das poucas maneiras viáveis que possuímos de mudar alguma coisa na ordem atual
das coisas. É imperativo que as academias brasileiras assumam essa responsabilidade.
Ao que chamei de processo de equilibração, neste artigo, não consigo atribuir outro
agente motivador que não as universidades e escolas.
Creio que apenas um sistema educacional que se preocupe com os
três quartos de cérebro que temos sido obrigados a guardar em sal grosso durante os
últimos séculos terá condição de alterar alguma coisa.
E como essa alteração constitui-se sempre e necessariamente como
um “santo não” à ordem atual, podemos compreender a gigantesca resistência
daqueles que se satisfazem com o atual estado das coisas. Acho que é por isso a Bíblia
registra que aquele que não se fizer como criança não poderá, de forma alguma,
entrar no reino dos céus...
Guajará-Mirim, 17 de dezembro de 2000.
84
DA METÁFORA FUNCIONAL E ALGUMAS IMPLICAÇÕES
0. Introdução
Apresentei alhures1
, embora de forma pouco sistematizada, o conceito
de metáfora funcional. No decorrer desses últimos anos, porém, meus estudos
semântico-pragmáticos com a língua portuguesa e a línguas indígenas da Amazônia
têm demonstrado a necessidade de uma formulação mais completa dessa concepção
teórica e a análise, mesmo que preliminar, de algumas de suas implicações mais
diretas nos estudos lingüísticos que levem em conta os aspectos culturais de uma
língua, além dos aspectos meramente formais tradicionalmente estudados.
Esta é a pretensão deste pequeno ensaio: uma apresentação formal do
conceito de metáfora funcional e a demonstração da importância deste conceito nos
estudos lingüísticos e antropológicos, o que passamos a ver.
1. Metáfora
Em um artigo sobre metáfora e metonímia2
considerei que uma
metáfora é um tipo de construção lingüística que permite a atribuição de um sentido
construído dentro de um paradigma cultural definido a outra palavra (ou construção
multivocabular) que, literalmente, pertencia a outro paradigma cultural estabelecido.
Assim é que quando chamo João de “touro”, estou transferindo, deslocando,
reapropriando sentidos de um paradigma cultural (características do animal touro)
para outro paradigma cultural (características do animal homem).
No corpo de minha obra em Semântica é importante observar que
não creio em sentidos pré-definidos para palavras das línguas naturais. Creio que
tudo pode ser expresso por tudo, desde que a construção social da expressão assim o
permita. Posso identificar qualquer referente usando qualquer palavra desde que haja
uma construção social que explicite (ou implicite) esse processo; assim também posso
expressar quaisquer sentidos, mesmo os mais complexos, com qualquer palavra ou
expressão, desde que esse sentido seja associado à expressão que uso/usarei dentro do
processo de criação do cenário3
enunciatório compartilhado entre mim e meu
interlocutor. Não existe nenhum sentido a priori, nenhuma regra pré-definida de
significação. O que existe - e que nos dá essa sensação de pré-existência dos sentidos –
é um conjunto de construções mais comuns em uma comunidade, construções que
em uma época definida já tiveram sentidos a elas comumente associados, e que,
justamente por isso, são mais conhecidas e repetidas pelos falantes. Mas essas
1
Celso Ferrarezi Jr.(1997). Nas Águas dos Itenês. Dissertação de Mestrado. Campinas : UNICAMP, e
Celso Ferrarezi Jr.(1999). Considerações sobre a Hipótese de Interinfluência entre Pensamento, Cultura
e Linguagem . UNIR/GM: CEPLA Working Papers.
2
Celso Ferrarezi Jr.(2000). “Metáfora e Metonímia: uma Análise através dos Paradigmas Semânticos”.
In: Discutindo Linguagem com Professores de Português. São Paulo: Terceira Margem.
3
Uso cenário significando o conjunto máximo de situações e informações levadas em conta, consciente
e inconscientemente, por um falante ao atribuir um sentido qualquer a uma expressão lingüística.
85
construções mais comuns são tão passíveis de modificação quanto quaisquer outras
estruturas da língua4
.
Na construção dessas associações de sentido parece não haver
nenhuma regra lingüística de ordem puramente gramatical explícita, ao contrário do
que há na construção das formas lingüísticas. Diferentemente, a gramática não é nada
mais do que uma construção em segundo plano, tão momentânea quanto o restante
do processo de especialização do sentido da expressão.
O sentido de uma expressão lingüística qualquer só se especializa em
um contexto5
e este, por sua vez, só se especializa em um cenário. E é por essa razão
que nenhuma palavra ou expressão tem sentido a priori, mas tem especializado o seu
sentido no processo de comunicação entre interlocutores, processo em que são
consideradas muito mais informações do que as etimologias e as peculiaridades
gramaticais das palavras de uma língua. Aliás, como diz Bakhtin6
, é somente quando
falantes podem desprezar a consciência dos aspectos gramaticais de uma língua,
quando não precisam mais ficar racionalizando suas construções lingüísticas para
criar expressões inteligíveis e especializar os sentidos das expressões dos outros, que
se pode dizer que realmente falam essa língua.
Aceitar essa concepção de que nenhuma construção lingüística tem
um sentido a priori representa aceitar implicações muito vastas para a teoria
lingüística. Uma das que mais me fascinam é a de que, por esse prisma, toda escritura
é um “defunto lingüístico que, para ser entendido, precisa ser ressuscitado”. A escrita
fornece palavras e partes de um contexto, mas não fornece cenários7
em que esses
contextos sejam especializados e possam criar condições para a especialização dos
sentidos das palavras, além do que, em comparação com os recursos comunicativos
usados numa interação de fala, os recursos da escrita são pífios. Por isso é muito mais
freqüente a falha de comunicação na escrita do que na fala; por isso é, muitas vezes,
muito mais fácil entender com exatidão o que se ouve do que aquilo que se lê. Mas,
para os fins deste artigo, uma outra implicação importante sobre a especialização de
sentidos de palavras e expressões na comunicação é a de que, no bojo do processo de
comunicação, toda construção é funcional. E funcional por três razões básicas:
a. porque deve funcionar como elemento de comunicação;
b. porque, além de ser elemento de comunicação, deve funcionar
adequadamente dentro do contexto e do cenário em questão;
c. porque, funcionando adequadamente no contexto e no cenário,
terá a função de consolidar o processo de compartilhamento de conteúdos entre os
interlocutores, sendo elemento ao mesmo tempo constituído e constituinte desses
mesmos contexto e cenário.
4
E a História das línguas tem mostrado que alterações no sentido de estruturas lingüísticas comuns a
uma comunidade são muito mais freqüentes do que, por exemplo, profundas alterações na fonologia e
na sintaxe.
5
Uso contexto significando o restante do texto, a construção textual e intertextual mais imediata em
que se insere uma expressão lingüística,
6
Cf. M. Bakhtin (1999). Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec.
7
Um dos fatores mais relevantes na especialização dos sentidos na fala, e que constituem parte do
cenário de enunciação, é o conjunto de traços semânticos complementares fornecidos pela entonação
da fala, inexistente na escrita.
86
Em razão disso, toda construção lingüística – e toda metáfora, por
conseqüência – é funcional. Mas, quando refiro-me a “metáfora funcional” o faço em
relação a uma função muito mais específica e bastante relevante na construção e
perpetuação de uma cultura, função que não é exercida por palavras ou expressões
que deixarem de ser consideradas como “figuras da realidade”, palavras que só são
entendidas pelos falantes como índices de referentes, às quais chamarei aqui,
seguindo a tradição gramatical, de literais.
Voltemos, deste ponto, à metáfora: como uma construção metafórica
implica, portanto, nessa transferência de sentidos, especificamente entre paradigmas,
só pode ser definida como tal, de forma única e independente, dentro de cada
cultura, uma vez que em cada cultura teremos classificações semânticas naturais
diferentes, agrupamentos naturais distintos. Isso é que permite uma construção seja
metafórica em uma cultura e, por exemplo, metonímica em outra, já que a metonímia
se caracteriza pela transferência de sentidos entre termos de um mesmo paradigma.
Cumpre notar, também, que a metáfora, na maioria das línguas, não é
obrigatoriamente uma construção lexicalmente complexa, nem obrigatoriamente
multivocabular e com tratamento estético de tipo poético como “as lindas pérolas dos
olhos de Maria”. Ao contrário, esse perece ser um tipo de mais raro de metáfora, cuja
finalidade estética – pode-se considerar assim – sobrepõe-se à função de transferência
de informações da metáfora cotidiana. A maioria das metáforas se concretiza nos
nomes atribuídos pela língua aos diversos referentes que representam. Trata-se de
palavras comuns, de uso diário, de nomes de pessoas ou de alcunhas atribuídos a
esses referentes.
Nesse momento, portanto, convém falar um pouco sobre nomes, para
poder retomar a construção do conceito de metáfora funcional.
2. Nomes e metáforas
O estudo dos nomes das línguas tem uma importância muitas vezes
desprezada. Se consideramos que as línguas são como que “depósitos” naturais de
conhecimento humano - depósitos de cultura – e percebemos que esses depósitos são
feitos essencialmente nos nomes dos referentes, entendemos o porque dessa
afirmação.
Consideremos que toda língua possui um conjunto de palavras
nominais – e, muitas vezes, apenas radicais nominais – das quais nenhum falante é
capaz de recuperar a motivação8
de sua atribuição como significante de um referente
qualquer. São palavras “básicas”, cuja origem quase sempre só pode ser identificada
por profundos estudos etimológicos e, mesmo assim, nem sempre sendo possível
identificar as atribuições e derivações do sentido. Essas palavras são, em sua maioria,
uma “herança” lingüística dos tempos ancestrais, de colonizações, de contatos
lingüísticos. Por outro lado, existem nomes que têm o sentido de sua construção
facilmente identificado, que atuam de forma mais complexa do que como meros
8
Uso motivação no sentido saussureano. Uma palavra qualquer da qual o falante não possa recuperar
o tipo de recurso utilizado em sua construção será por ele considerada arbitrária, sem motivação
aparente para sua construção.
87
significantes-índices de um referente qualquer. Tomando isso como certo - e creio que
não há grande contestação dessa afirmação na academia – podemos, então, grosso-
modo, dividir os nomes de uma língua em dois grupos principais: motivados e não
motivados9
. Estes, constituiriam esse grupo básico de palavras que a teoria lingüística
tem chamado de “literais”, terminologia que, como disse, mantenho aqui; o outro
grupo, sobre o qual os falantes podem recuperar de alguma forma a motivação de sua
atribuição, parece ter duas origens distintas: uma origem cultural complexa e outra
meramente lingüística .
As construções cuja motivação é cultural, podem ocorrer a partir das
palavras literais, seus sentidos e referentes (João é um “touro”) ou pela motivação
direta do nome por características dos referentes (“bumbo”). Esses seriam os nomes
motivados ou, em última instância, nomes figurativos, ou seja, baseados em algum
tipo de figuratividade cultural. No primeiro caso, temos uma metáfora; no segundo
caso uma imitação sonora10
, uma onomatopéia. Para os fins deste artigo, interessa-nos
mais o primeiro tipo, ao qual voltaremos adiante.
O outro tipo é o da atribuição de um nome a partir de uma
construção meramente lingüística, portanto, unicamente baseada em aspectos
estruturais do sistema da língua. Veja-se a diferença: quando chamo o doce caseiro de
amendoim originário do sudeste brasileiro de “pé-de-moleque” tenho uma motivação
cultural: o doce tem a aparência de um pé cascudo e escuro, como se acredita ser um
pé de moleque; uso palavras literais e construo uma palavra composta de natureza
figurativa. Entretanto, quando digo que a pessoa que faz ou provoca muitos
casamentos é “casamenteira”, tenho, para esta construção uma motivação meramente
lingüística resultante da construção regular portuguesa de cas (radical) + a (vogal
temática) + -ment (sufixo) + -eir (sufixo) + -a (desinência do gênero feminino ). Não
há, neste último caso, nenhuma transferência de sentidos de uma palavra literal ou
referente para outra palavra que designa um outro referente qualquer (até porque
apenas uma “consciência de filólogo” permite a identificação detalhada dos
constituintes mórficos dessa palavra como a apresentei acima). Aliás, para a maioria
dos falantes do português casamenteiro/a é apenas a junção de casament + -eir + -a
ou, como em alguns relatos que colhi, apenas de casamenteir + -a. Esse tipo de
motivação lingüística também não interessa propriamente à construção desse artigo.
Deve-se observar que os nomes, como significantes nocionais
utilizados para identificar cada um dos elementos de cada cultura, sem exceção,
acabam comportando-se como indicadores das características desses elementos e
alteram nossa forma de pensar o referente. As palavras nominais de uma língua
atuam na configuração que fazemos de nosso mundo, na visão que temos dos
elementos que o constituem. Assim é que um menino muito magro de cabeça grande
chamado João, pode ter suas características físicas despercebidas por alguns dos seus
colegas de classe enquanto chamado de “João”, mas passa a ter suas idiossincrasias
corporais muito mais evidenciadas aos olhos dos demais logo após ser alcunhado por
um colega – ou seja renomeado - de “Prego”. Da mesma forma, Maria tem sua
gordura muito mais destacada quando recebe o apelido de “Botijão”; os óculos de
9
Celso Ferrarezi Jr.(1997). Nas Águas dos Itenês. Dissertação de Mestrado. Campinas: UNICAMP.
10
Que também tem influência cultural, uma vez que os sons prototípicos atribuídos aos elementos
naturais variam da cultura para cultura e são diferentemente materializados nas respectivas línguas .
88
Joana passam a ter muito mais destaque quando ela é chamada de “Quatro-Olhos” e
as pernas tortas de Mário, nunca apareceram tanto como depois que ele ganhou
apelido de “Garrincha11
”. Assim ocorre com a valentia do menino alcunhado de
“Leão”, com a covardia do outro que é chamado de “Mingau”, com a beleza (ou
feiúra, em uma metáfora irônica ) da “Bonequinha”, e daí para adiante.
O mero mencionar dessas alcunhas, que são “renomes”, altera a visão
que os falantes têm dos referentes a elas associados. As alcunhas das cidades, das
instituições, de certas práticas, enfim, todas elas têm o mesmo efeito estruturante: por
atuarem como nomes, alteram a percepção que o falante/ouvinte tem do referente.
E aí reside um fator de grande importância na relação entre língua e
cultura: os nomes atuam como depósitos de conhecimento, que podem ser mais ou
menos reconhecidos pelos falantes, mas definitivamente como depósitos. E como tal
são utilizados pelos falantes, que recorrem a seu conteúdo informativo o tempo todo.
Uma das provas mais evidentes que temos disso é que o falante recorrerá a uma
renomeação do referente – e geralmente através de uma metáfora - quando ocorrem
dois fatos concomitantemente:
a. o falante sentir necessidade de que o nome traga em seu sentido
alguma informação relevante para uma construção cultural desejada e específica e
b. esse mesmo falante não mais conseguir identificar nenhuma
informatividade no nome usado como significante desse referente em questão –
agora, por isso mesmo , tido como literal – além da indicação direta do referente.
É esta a razão que leva um grupo de jovens a atribuir as alcunhas aos
membros da turma, uma vez que , João ,Maria, Joana, etc... não conseguem mais do
que meras indicações diretas dos seus referentes, ao passo que na hierarquização do
grupo social se faz necessária uma discriminação das características que justificam as
posições ocupadas. Se eu posso fazer chacotas com você e porque você é “Mindinho”,
mas nunca vou mexer com o seu brio se você é o “Destruidor” (a menos que se trate
de uma alcunha irônica...). Por isso, também na organização social sentimos
necessidade de atribuir nomes como professor, aluno, prefeito, presidente, marginal,
mercenário, etc..: porque as informações contidas nos antropônimos nem sempre12
denotam as informações da organização social e sobre os referentes como as
desejamos evidenciar.
Também por essa razão algumas culturas, principalmente as orientais
e as indígenas tradicionais, têm um apreço muito maior pela significação dos nomes
do que as culturas capitalistas ocidentais. Os nomes cheios de significados dos
orientais e dos indígenas expressam aspirações dos que nomeiam em relação aos
nomeados, planos, desejos pessoais, bênçãos e maldições, entre tantas outras
marcações culturais.
A troca de nomes, bastante comum em algumas nações13
, é uma
evidência bastante clara dessa função do nome na organização social, na marcação de
11
Famoso jogador de futebol brasileiro conhecido pela habilidade em driblar e pelas pernas tortas .
12
Na verdade, nas chamadas modernas culturas ocidentais, essa informatividade do antropônimo é
quase nula, preferindo-se a sonoridade do nome a sua significação.
13
Como, por exemplo, entre os judeus, como evidenciando na Bíblia (Abrão para Abraão, Jacó para
Israel, Simão para Pedro, Saulo para Paulo, entre tantos outros citados nas Escrituras).
89
funções sociais, na marcação de aspectos idiossincráticos, enfim e portanto, na
construção cultural.
Os nomes, então, quando construídos metaforicamente, passam de
mero “índice de referência” a depósitos de informações consideradas relevantes,
esclarecedoras, dignas de registro em uma comunidade. E essas construções
metafóricas, como dissemos, não obrigatoriamente têm uma grande complexidade
vocabular ou gramatical, ou se obrigam a estruturas esteticamente trabalhadas: pode
tratar-se de uma simples palavra, de uma palavra composta sem rebusques estéticos,
ou seja, pode tratar-se - e geralmente assim o é - de nomes comuns de uso cotidiano.
3. O Conceito de metáfora funcional
Retomemos, então, o tipo de construção de nomes que
considero mais importante nesse artigo: a construção figurativa que se origina de
uma metáfora, e isso com base em alguns exemplos úteis à identificação que pretendo
aqui:
Quando chamo uma árvore Citrus aurantium, que
produz laranjas, de “laranjeira”, construo um nome a partir de uma motivação
meramente lingüística e não ofereço nenhuma informação cultural adicional além
daquela que me permite a utilização da terminação “eira/eiro” juntada a um nome
qualquer de fruta (como em limoeiro, goiabeira, melancieira, mamoeiro, figueira,
jambeiro, etc...) para indicar a árvore que produz essa mesma fruta . É claro que essa
se constitui em informação cultural, mas de um tipo muito mais restrito do que, por
exemplo a fornecida pelo caboclo que chama a laranjeira de “pé-de-caba14
”. Ao
chamar a árvore de “laranjeira”, repasso uma informação que é, do ponto de vista da
lógica formal da língua, como que inerente ao referente. É quase como que uma
construção óbvia, que pode informar-me, por exemplo, de que espécie é uma muda
que ainda não produz frutos. Isso tem utilidade na língua e na cultura, mas a
motivação da construção não é stricto sensu um construto cultural e o nome atua
literalmente no vocabulário da língua. Mas, ao usar “pé-de-caba”, registro uma
informação muito mais complexa do que com o primeiro nome, uma informação que
não é inerente ao referente, cuja motivação não pode ser atribuída ao sistema da
língua e que se destingue da primeira por várias razões:
a. como sua construção não é óbvia no sistema, sua compreensão
demanda um processo interpretativo muito mais complexo;
b. as informações contidas nesse nome têm implicações funcionais
mais amplas do que a mera identificação da árvore da laranja;
c. essa informação se constitui numa construção cultural funcional –
agora no sentido que atribuo à metáfora funcional -, uma espécie de alerta aos
incautos de que é sempre de bom alvitre colher laranjas só depois de conferir se a
árvore tem uma “casa de caba”;
d. essa construção é muito mais regionalizada, muito mais específica
de uma comunidade do que a palavra “laranjeira”.
14
Caba é uma denominação comum norte-brasileira para vespa ou maribondo.
90
Da mesma forma encontramos no Brasil, para a laranjeira, nomes
como “pé-de-chá” e “mata-febre”, cujas indicações e informações terapêuticas são
evidentemente funcionais, ou seja, constituem-se cada uma como uma metáfora
funcional: a palavra metaforicamente construída apresenta uma clara função de
depósito cultural, uma função de registro, para comunidade que a usa, de algum tipo
de construção resultante das experiências vivenciais dessa mesma comunidade que
atribuiu o nome ao referente.
Entre as plantas de uso terapêutico ou culinário, essas metáforas
funcionais são muito comuns, por razões facilmente compreensíveis. Vejamos alguns
exemplos no quadro abaixo:
Nome literal
(diferente de
região para
região)
Nome científico
Outros nomes que se constituem
com metáforas funcionais no Brasil
Manjericão
Ocimum gratissimum
remédio-de-vaqueiro, erva-de-
cozinheiro
Mastruz Senebiera pinnatifida erva-santa-maria, erva-vomigueira,
Boldo Pneumos boldus erva-das-sete-dores
Salsa Petroselinum sativum cheiro-verde, erva-de-tempero
Sasifraga Parietaria officinalis quebra-pedra, rebenta-pedra
Esses cinco exemplos são suficientes para demonstrar como nomes
construídos como metáforas funcionais são informativos dentro do ambiente cultural,
como são muito mais do que meros índices de identificação de referentes. É
interessante notar, porém que, muitas vezes, um nome que funciona como literal em
nossa cultura, era uma metáfora funcional na cultura que o originou. Este é o caso da
“salsa”. Do latim Salsa ou Herba salsa, cujo sentido pode ser reconstruído como “erva
salgada” ou “erva de cozinhar comida salgada”, o que representa claramente a
utilização cultural da erva naquela comunidade. O mesmo se dá no mapuche boldo,
que gerou o português “boldo” e no latim vulgar mastrutio, que gerou o português
“mastruz” entre outros tantos exemplos.
4. Algumas implicações do conceito de metáfora funcional
Em um artigo sobre a hipótese de interinfluência entre pensamento
cultura e linguagem15
, cito um exemplo que colhi da língua moré e que considero
bastante relevante neste contexto, porque demonstra uma das mais interessantes
implicações do conceito de metáfora funcional, o qual peço permissão ao leitor para
transcrever aqui:
15
Celso Ferrarezi Jr.(1999). Considerações sobre a Hipótese da Interinfluência entre Pensamento,
Cultura e Linguagem . UNIR/GM: Cepla Working Papers.
91
“Um índio moré aprende, em sua cultura, que a árvore de tipo X
tem como nome [kxaw k
xa:pari:], “o pacu
16 come”. Este nome, na
verdade uma metáfora funcional, leva a criança moré desde a
primeira vez em que o ouve, a formular uma questão inicial
acerca do objeto, que poderíamos definir como sendo “por que
esse objeto leva esse nome?” e, a partir dessa questão, a
entronizar um conhecimento prático bastante importante para
sua nação, porque referente à sobrevivência, que é a busca e a
consecução do alimento. Assim se o pacu se alimenta dos frutos
desse tipo de árvore, e se os morés alimentam-se de pacus, a
presença de tal planta na beira de um lago ou rio pode indicar a
presença de pacus, e isso está implícito na metáfora que nomeia
a própria árvore. Entretanto, a língua moré tem sido substituída
pelo espanhol nos últimos cem anos, e essa mesma árvore
passou a ser conhecida pelo morés como “canduru”, o nome
espanhol. O fato é que os morés não perderam o conhecimento
de que os pacus se alimentam dos frutos do canduru, porque a
prática cotidiana da pesca induz à necessidade desse tipo de
conhecimento, mas tal informação perdeu seu registro
lingüístico e, agora, são necessários outros meios que conduzam
à indagação inicial que levava ao conhecimento da serventia do
objeto determinado.”(Op.cit., pp. 3-4)
Como se pode ver no exemplo, sempre que um nome atribuído por
uma construção metafórica funcional típica de uma cultura é substituído por um
empréstimo lingüístico ou, no decorrer da existência da língua, perde sua
identificação metafórica, informações da construção cultural da comunidade que o
utilizava são invariavelmente perdidas. Este seria o processo de transposição de uma
metáfora funcional ao estágio de palavra literal. E, por conseqüência, um processo
muito influente na perda de identidade, no primeiro caso, ou de evolução da
identidade cultural de uma mesma comunidade, no segundo caso.
Assim é que grande parte dos brasileiros que usam computadores não
sabe porque aquele aparelhinho, geralmente branco e com um longo fio, em que
colocamos a mão e com o qual movimentamos o cursor e procedemos a seleções na
tela do monitor, é chamado mouse. Primeiro, porque muitos desses brasileiros não
conhecem o significado da palavra inglesa mouse; segundo, porque certamente, a
relação metafórica existente no nome inglês mouse seria muito mais facilmente
identificada se, como no caso do espanhol ratón ou do francês souris, o nome do
aparelho tivesse sido traduzido para o português como “rato”.
Da mesma forma que em mouse, como utilizado na informática no
Brasil, a quase totalidade de empréstimos nominais apresenta um grau muito baixo -
às vezes realmente nulo - de informatividade em relação aos referentes. Teríamos aí,
por se constituírem esses empréstimos como palavras literais, uma relação de
arbitrariedade verdadeiramente saussuriana, ao contrário do que acontece com os
nomes construídos como metáforas funcionais.
Uma implicação decorrente desta é também evidenciada no
complemento ao excerto que transcrevi acima:
16
Milossoma duriventris: peixe comum na Amazônia, de carne muito apreciada pelos índios.
92
“É por essa razão que qualquer empréstimo lingüístico
constitui-se, a despeito da aparência de “ganho”, em uma perda
incalculável para a cultura e a identidade de uma comunidade
qualquer.”(idem, p. 4)
É bom observar que, no contexto dessa assertiva, quando falo de
“qualquer empréstimo”, refiro-me a qualquer empréstimo que venha em substituição
de um nome ou palavra da língua. Não me refiro aqui aos empréstimos nominais que
denominam objetos culturais antes desconhecidos por uma comunidade, como, por
exemplo, as palavras “cassete” e “abajur” adotadas pelo português, entre tantas
outras. Mas também não descarto a possibilidade de que essas palavras poderiam ser,
assim como vi em algumas nações indígenas que conheci, construídas ao sabor da
cultura local. Lembro-me, meio invejoso, da “casinha-de-cantar-e-dançar”17
, nome
dado aos morés para televisão, e do “corre-rápido-pela terra”, nome dado a carros e
motocicletas por essa mesma nação.
As metáforas funcionais presentes nesses nomes que venho
descrevendo são uma marca identitária da comunidade. Elas revelam a organização
do mundo, a visão que a comunidade tem de seu mundo, seu conjunto de valores
morais e éticos, enfim, um bastante complexo conjunto de traços culturais que não
são representados de outra forma nas estruturas da língua a não ser nos nomes. A
perda dessa identidade tem valor inestimável na história e na construção da auto-
imagem étnica. Ou seja, uma nação cuja língua perdeu grande parte do conteúdo de
suas metáforas funcionais, perdeu, também, grande parte de sua identidade.
Esta é, provavelmente uma das causas de a dominação imperialista,
em todos os tempos, ser sempre acompanhada da dominação lingüística.
Finalmente, cumpre observar que, juntamente com a identidade
étnica e cultural, perdem-se os valores primordiais de uma cultura. As comunidades
entram em patente decadência de valores e a auto-estima da comunidade é muito
afetada. Isso se dá porque com a destruição da nomenclatura que revela a
compreensão do mundo, destrói-se propriamente parte dessa compreensão. Torna-se
necessário, então, acatar uma nova visão de mundo que, na maioria das vezes, se
choca com as concepções próprias da comunidade, desenvolvidas ao longo de séculos
ou milênios de construção cultural. A comunidade perde suas referências, tem seus
alicerces demolidos e, por isso, entra em estado depressivo.
5. Conclusão
O conceito de metáfora funcional, como apresentado aqui, propicia
um grande número de implicações nos estudos lingüísticos. Apresentei alguns deles,
como a construção funcional de informações culturais e seu registro na língua, mas
gostaria de ressaltar três dos perigos da destruição dessas metáforas em uma
comunidade lingüística, conforme apresentei aqui: a perda de informações culturais,
a perda de identidade cultural e a perda de valores primordiais da comunidade
Esses perigos devem ser motivo de profunda meditação nos trabalhos
que têm a oportunidade de monitorar os processos de contato cultural,
17
Reconstruções de sentido aproximadas dos nomes morés.
93
principalmente entre culturas de comunidades mais frágeis (como a dos indígenas
amazônicos) com a cultura de comunidades mais fortes e agressivas (como a cultura
capitalista ocidental). Isto porque penso ser através da preservação dessas metáforas –
entre tantos outros fatores culturais, é claro – que se conseguirá preservar o
patrimônio cultural desses povos – ou, pelo menos, parte dele -, patrimônios da
humanidade, patrimônios inavaliáveis.
Guajará-Mirim, 29 de novembro de 2001.
94
DA FILOSOFIA
Cansado das tortas andanças pela mata, descansava o Curupira à rala
sombra de uma seringueira, à beira do igarapé.
- Por que tens teu tronco ferido, seringueira?
- Vês que lindos ramos ostento? Neles fazem ninhos os pássaros,
neles produzo as sementes que alimentam os peixes do igarapé. Vês as minhas raízes,
com as quais seguro a barranca do igarapé que, por sua vez, serve de morada a muitas
animálias selvagens?
- Mas, não é por teus ramos, sementes ou raízes que os homens te
buscam, senão por tua seiva, oferta que a ti custa tais cicatrizes.
- É que são apenas pragmáticos os homens.
- E por que não filosofam?
- Ainda a pragmática é dominada pela filosofia. Não há melhor forma
de ser pragmático do que filosofando. Tudo que há é regido por uma filosofia.
- E não é igualmente pragmática a filosofia da Natureza, tua mãe?
- Se assim o fosse, não teriam os pássaros os seus ninhos, os peixes o
seu alimento, o igarapé as suas barrancas, as animálias a sua morada, tu a minha
sombra, os homens a minha seiva.
- Não compreendo. Não são todas estas coisas práticas?
- A prática não prescinde da existência.
E se foi o Curupira, com seus passos tortos, pela mata densa.
Guajará-Mirim, 02 de novembro de 2000.