livro carneiro henrique comida e sociedade_uma história da alimentação
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COMID A E SOCIEDADE
uma história da alimentação
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COMID A E SOCIEDADE
uma história da alimentação
HENRIQUE CARNEIRO
, •........ , CAMPUS
©2003, Editora Cam pus LIda. - uma empresa Elsevier
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ISBN 85-352-1180-2
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Carneiro, Henrique
Comida e Sociedade: uma história da alimentação 1 Henrique Carneiro. - Rio de Janeiro: Cam pus, 2003
ISBN 85-352-1180-2
1. Alimentos ,.- História. 2. Hábitos alimentares -
História. I. Titulo.
03-0111. COO - 641.109
COU - 613.2(09)
03 04 05 06 07 5 4 3 2
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO
2 ALIMENTAÇÃO, BIOLOGIA E CIÊNCIAS NATURAIS 7
-) ASPECTOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS DA ALIMENTAÇÃO 15
4 A NUTRIÇÃO E A FOME 23
5 ALIMENTAÇÃO NA PRÉ-HISTÓRIA 45
6 COMER VEGETAIS: O SAL E OS TRÊS CEREAIS BÁSICOS (TRIGO, ARROZ, MILHO) 51
7 COMER ANIMAIS: CARNES, OVOS E LEITES 63
8 Às ESPECIARIAS, AS NAVEGAÇÕES E A MUNDIALIZAÇÃO DA ALIMENT�ÇÃO 75
9 ALIMENTAÇÃO MODERNA: AÇÚCAR, ÁLCOOL, CHÁ, CAFÉ E CHOCOLATE 87
II ALIMENTAÇÃO CONTEMPORÂNEA: INDUSTRIALIZAÇÃO E FAST-FOOD 101
II ALIMENTAÇÃO E RELIGIÃO: SACRIFícIOS, NORMAS E TABUS III
12 GASTRONOMIA E ESTÉTICA DO GOSTO 123
li A HISTORIOGRAFIA INTERNACIONAL DA ALIMENTAÇÃO 131
J4 A HISTORIOGRAFIA DA ALIMENTAÇÃO NO BRASIL 155
I) CONCLUSÃO 165
BIBLIOGRAFIA 169
ApÊNDICE BIBLIOGRAFIA DA HISTÓRIA DOS ALIMENTOS ESPEcíFICOS 179
I
INTRODUÇÃO
A alimentação é, após a respiração e a ingestão de água, a mais
básica das necessidades humanas. Mas como "não só de pão vive
o homem", a alimentação, além de uma necessidade biológica, é
um com2lexo sistema simbólico de significados sociais, sexuais,
políticos, religiosos, éticos, estéticos etc.
A fome biológica distingue-se dos apetites, expressões dos
variáveis desejos humanos e cuja satisfação não obedece apenas
ao curto trajeto que vai do prato à boca, mas se materializa em
hábitos, costumes, rituais, etiquetas. Muitos antropólogos já
sublinharam o fato de que nenhum aspecto do nosso comporta
mento, à exceção do sexo, é tão sobrecarregado de idéias. E estes
hábitos possuem uma intrínseca relação com o poder. A distin
ção social pelo gosto, a construção dos papéis sexuais, as restri
ções e imposições dietéticas religiosas, as identidades étnicas,
nacionais e regionais são todas perpassadas por regulamenta
ções alimentares.
A história da alimentação abrange, 'portanto, mais do que a his
tória dos alimentos, de sua produ�ão. distrib.uição�paro e con
sumo. O que se come é tão importante quanto quando se come,
onde se come, como se come e com quem se come. As mudanças
dos hábitos alimentares e dos contextos que cercam tais hábitos é
um tema intricado que envolve a correlação de inúmeros fatores.
Dentre todos os aspectos da cultura material, a alimentação
talvez seja um dos que mais se encontra subjacente a toda esfera
da atividade humana. A história das civilizações e da utilização
do mundo vegetal se confundem. Se incluirmos o consumo ele
carne e de outros produtos derivados de animais, considerados
menos importantes na formação das primeiras civilizações, veri
ficamos que a história da alimentação tem como objeto quase
toda a natureza viva no âmbito universal de todas as épocas, po
vos e culturas.
Como circunscrever um tema de dimensão universal, onde a
história dos alimentos se imbrica com as formas de sua produ
ção, desde a história da coleta, da caça e da agricultura até a in
dústria moderna, com as formas da distribuição, envolvendo
desde os primórdios da troca até o advento do comércio mun
dial, com as técnicas de conservação e, finalmente, com as for
mas de consumo dos alimentos?
A alimentação é um fenômeno cujo estudo foi estabelecido
nos últimos dois séculos a partir de quatro diferentes enfoques:
HENRIQUE CARNEIRO 2
o biológico, o econômico, o social e o cultural. A história da ali
mentação, dessa maneira, abrange ao menos quatro grandes as
pectos: os aspectos fisiológico-nutricionais, a história econômi
ca, os conBitos na divisão social e a história cultural (para a qual
a Antropologia trouxe grande quantidade de infG-rmações que se
imbricam com a Lingüística, a Religião e a História Geral das
Civilizações) que inclui a história do gosto e da culinária, para a
qual os livros de receitas constituem fontes primárias.
O papel dos historiadores da alimentação, segundo a pers
pectiva das ciências humanas. deveria ser o de enfocar ao menos
os seguintes problemas: a) a demanda por comida dentro de
uma economia de subsistência e no interior dos mercados, as di
ferentes maneiras de conhecer, obter, adquirit::, estocat.,-trans ..
portar e preservar alimentos, os diferentes tipos de mercados, os
preços etc.; b) as formas e técnicas de preparação; <J�s formas
de consumo; d) o ambiente sociocultural e as avaliações indivi
duais e coletivas (diferenças entre pratos ordinários e festivos,
comida como divisão social. e como ação simbólica, religiosa e
comunicativa); e) os conteúdos nutritivos e as conseqüências
para a saúde.!
Ométodo de abordagem da história da alimentaç.ão também
'pode ser múltiplo. enfocando os alimentos como plantas econô-
I T euteberg, European Food History, Londres , Leicester University Press , 1992, p. 9.
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3
micas ou animais domesticados, como mercadorias ou commodi-
ties, como valores nutricionais ou como elementos simbólicos da
cultura. Pode-se ainda abordar a questão da alimentação do
ponto de vista dos sistemas alimentares, no qual combinam-se
determinados alimentos e suas formas de produção, distribui
ção e consumo, especialmente na época contemporânea, quando
a interdependência mundial se acentua. E, finalmente, a alimen
tação pode ser interpretada a partir do estudo dos hábitos ali
mentares, de como determinados padrões de consumo se esta
belecem e se alteram.
A primeira constatação, portanto, é quanto � amplitude de
um tema que recebe contribuições de diversas disciplinas e �
qual faltam resumos bibliográficos. Um empreendimento de
pesquisa que visa esclarecer não�nas 0-,!1l.U quanto foi comi
do quando e onde, mas acima de tudo, por quais razões algo foi
comido dessa maneira específica, possui. obviamente, uma am
plitude desmesurada. Não obstante essa relativa escassez de
fontes e bibliografia e a amplitude do tema, a alimentação vem
se tornando um aspecto incontornável dos mais diversos estu
dos, e sua onipresença em todas as sociedades levou alguns dos
maiores especialistas no assunto justamente a atribuir-lhe o pa
pel de uma chave mestra, de uma prática universal reveladora de
todos os demais aspectos, idéias e conflitos de todos os povos
em todas as épocas. Além das questões políticas ou macroeco-
HENRIQUE CARNEIRO
4
nômicas, a alimentação reVela a estrutura da vida cotidiana,Ao
seu núcleo mais íntimo e mais compartilhado (o sexo é ainda
mais íntimo, mas de uma partilha social bem mais restrita). _A_
conyiyialidade manifesta-se sempre na comida compartidaj
A metáfora alimentar invade todas as esferas da vida. Em rela-
ção ao sexo, sobretudo (a doçura do amor, a lua-de-mel etc.), mas
também em relação aos textos, que podem ser saboreados, devo
rados, digeridos. Saber uabor são palav,ras derivadas de um-mes
mo radical latino (sapere, "ter gosto"). Neste caso, serão servidos,
como um aperitivo para abrir o apetite, apenas alguns aromas e
acepipes do grande banquete universal e algumas aproximações
aos que vêm tentando interpretá-lo. Este texto não tem a preten
são de ser mais do que um ensaio introdutório sobre as diversas
vertentes da história da alimentação.2 Inicialmente, serão aborda
dos, resumidamente, os distintos enfoques que constituíram a ali
mentação como um objeto do conhecimento científico. As cita
ções em línguas estrangeiras ou formas arcaicas, à exceção dos tí
tulos das obras, foram traduzidas e atualizadas.
2 Em "A história da alimenta ção: balizas historiográficas" (Ulpiano Bezerra de Meneses e Henti q ue Carneiro , Aliais do Museu Paulista: História e cultura material, Nova Série , Vol. 5, jan/ dez I 997), apre sentamos um amplo levantamento da b ibliografia disponíve l e um mapeamento de obras e de temas, a lguns dos q uais são aborda dos e de senvolvidos ne ste livro.
COMIDA E SOCIEDADE
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2
A LIME NT A ÇÃO, BIOLOGIA
E CIÊNCI A S NA TURAIS
Além dos diversos aspectos que a história da alimentação
abrange, é preciso mencionar algumas das abordagens, provin
das das mais diferentes disciplinas - Botânica, Zoologia, Medi
cina, Arqueologia, Economia, Geografia, Agronomia, Antropo
logia, Sociologia - que serviram para o esforço historiográfico
sintético que se manifestou nas primeiras tentativas de exposi
ção sistemática da história da alimentação universal.
O estudo da alimentação é um vasto domínio multidiscipli
nar para o qual a História vem oferecer uma síntese ao reunir os
recursos das diversas disciplinas para buscar desvendar em cada
período do passado as informações alimentares e para poder
efetuar a análise da dinâmica temporal das transformações da
alimentação humana.
A Botânica e a Zoologia, observando, descrevendo e classifi
cando as plantas e os animais, especialmente os de importância
econômica, marcou a passagem da História Natural para a Bio-
logia, quando a sistemática classificatória formalizou as rela
ções entre os seres vivos. Os botânicos, que em sua origem eram
médicos e se chamavam herboristas, foram os primeiros a forne
cer os dados históricos das plantas. Na época do Renascimento,
os estudos gregos e latinos sobre as plantas, traduzidos e publi
cados pela primeira vez no Ocidente, como Matéria médica, de Dios
córides, História natural, de Plínio, e História das plantas, de T eo
frasto, tratavam da flora de um ponto de vista utilitário medici
nal. Muitos herbários do século XVI chamavam-se justamente
História das plantas (De Historia Stirpium, Leonhardt Fuchs, 1542)
e História dos frutos (Frugum Historia, Rembert Dodoens, 1552), e
descreviam as plantas tanto alimentícias como medicinais a par
tir de suas supostas virtudes para o corpo humano, derivadas da
natureza do seu temperamento, quente ou frio e seco ou úmido,
e conseqüentemente relacionado com um órgão, um humor,
uma estação do ano, um momento do dia ou da noite etc. O
temperamento guent�.e�o era viste como o modelü-ide.ale,
portanto, característico do home.m..-A mulher seria fria e úmida.
O quente possuiria a qualidade de excitar e despertar. e o frio.
de adormecer e acalmar. Os alimentos quentes seriam o vinho, a_
saI, o açúcar, o mel, a canela, o cravo. a pimenta, a mostarda, o
alho. Os frios seriam a alface, o vinagre, os pepinos, o ópio, a
cânfora, os cogumelos e as frutas em geral. O vinho era uma be
bida tão quente para Galeno, o mais importante médico da épo-
HENRIQUE CARNEIRO
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nutricionais, a idéia da digestão como cozimento, as prescrições
dietéticas são pródigos informadores dos hábitos e concepções
de uma época. Boa parte das literaturas grega e latina clássicas
que se referem à alimentação era constituída de tratados médi
cos, entre os quais Hipócrates, Galeno, Oribase, Dioscórides,
Apuleio e Celso.
As ciências modernas relacionadas à nutrição desenvolve
ram-se a partir do século XIX, com um caráter interdisciplinar,
reunindo os avanços obtidos em diferentes ramos das Ciências
Naturais juntamente com os da Medicina e mantiveram um en
foque exclusivamente biológico. A investigação nutricional exa
minou o processo da digestão no corpo humano e obteve infor
mações para a otimização das dietas que podem ser modificadas
de acordo com a idade, o gênero e o tipo de trabalho realizado.
De especial importância é a busca de um tratamento dietético
adequado das doenças dos processos metabólicos digestivos e
excretivos a partir de uma investigação clínica. As ciências hu
manas foram consideradas, entretanto, como meios periféricos
e auxiliares para os cientistas da alimentação. Os aspectos polí
ticos, jurídicos, econômicos, geográficos e culturais, ou seja, to
das as dimensões históricas, têm sido, contudo, geralmente ne
gligenciados pelos cientistas naturais e pelos médicos.
Muitos cientistas da nutrição têm encarado o seu campo de
estudos exclusivamente como um ramo da Bioquímica. Essa
HEN RIQUE CARNEIRO
10
ca romana, que ele o interditava antes dos 22 anos, pois até essa
idade já haveria suficiente calor natural nos corpos. O chocola
te, no século XVIII, era considerado tão quente que não deveria
ser dado para crianças!
Os alimentos quentes também eram perigosos pela sua su
posta propensão afrodisíaca, devendo ser estritamente contro
lados, especialmente entre os jovens, a quem conviria sempre
uma dieta insípida, pouco condimentada, para não aumentar o
calor já naturalmente elevado. Até mesmo coisas banais como as
cenouras, os pinhões, os nabos ou a hortelã, podiam incitar atos
libidinosos. I Até o século XVIII, os tratados sobre alimentos
encaravam-nos exclusivamente de um ponto de vista médico, te
rapêutico e nutricional, dando prosseguimento às crenças mile
nares nas supostas virtudes de certos alimentos, especialmente
em relação ao sexo. Ostras, chocolate e cebolas excitariam os
"ardores de Vênus", devendo ser evitadas, especialmente pelas
mulheres castas.2
A Medicina, por sua vez, desde a Antiguidade vem buscando
desvendar os mistérios do metabolismo humano e, particular
mente, o fenômeno da digestão. A história da Medicina é uma
fonte de informações para a história da alimentação. As teorias
I Franci sco da Fonseca Henri ques. Âncora medicinal para conservar a vida com saúde. Lisboa. Miguel Rodrigues. 173 1.
2 Louis Leme ry, Traité des Alimmts. Pari s. Durand. 1755.
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dimensão física da alimentação, como um processo orgânico e
metabólico, não esgota, contudo, a dimensão humana da ali
mentação, que é também uma questão econômica, social e cul
tural além de biológica, e as Ciências Naturais não têm conse
guido verificar plenamente que a substância da alimentação
humana não pode ser derivada exclusivamente da sua dimen
são física.
Essa dupla natureza da alimentação de necessidade congênita
e ineludível de sobrevivência e de prazer culturalmente organi
zado é destacada por diversos autores, que têm claro que a comi
da é a primeira necessidade do homem, mas que também é um
prazer. A comida, assim como a respiração e o sono, faz parte
das necessidades básicas, mas também é expressão dos desejos
humanos. A definição da diferença precisa entre desejo e neces
sidade é um tema de vasta polêmica na história da Ética e da Fi
losofia, remetendo às questões da regulamentação do prazer, do
luxo e do ascetismo. As mercadorias raras e de proveniência
exótica sempre foram caras e, portanto, luxuosas e supérfluas. A
defesa ou a crítica destes novos hábitos e produtos tornou-se
um debate moral, que atribuiu ao luxo excessivo o declínio das
civilizações, particularmente a queda do Império Romano. Na
época moderna, tal debate terá conseqüências diretas na avalia
ção do papel cultural do açúcar, do álcool e das novas drogas co
loniais (chocolate, café e chá), vistas por alguns como luxos su-
COMIDA E SOCIEDADE
I I
pérfluos e decadentes e por outros como motores do comércio,
da indústria e do progresso.
As descobertas sobre a fisiologia da digestão superaram as vi
sões dos antigos hipocráticos que identificavam nela um proces
so de cocção, onde o calor seria o responsável pela assimilação
orgânica dos alimentos ao se transformarem no quilo alimentar.
Erasístrato (c. 129-200) acreditou que a digestão era um pro
cesso mecânico, mas apenas no período moderno, a partir do sé
culo XVIII, evidenciou-se a natureza química da digestão pelo
famoso cientista italiano Lázaro Spallanzani (1729-1799) que
além de realizar experiências que refutavam a geração espontâ
nea e provar a fecundação do óvulo pelo sêmen, também de
monstrou a acidez do suco gástrico, cuja composição de ácido
clorídrico foi constatada, em 1824, pelo médico inglês William
Prout (1785-1850).
Somente no século XX, a natureza b ioquímica da fisiologia
da nutrição tanto vegetal como animal ficou claramente estabe
lecida. Os corpos humanos são compostos em 93% de apenas
três elementos: oxigênio, carbono e .hidrogênio, outros 6, I %
são nitrogênio, cálcio e fósforo. A composição dos alimentos
assemelha-se à do corpo: necessitamos água, sal, carboidratos
(glicídios), substâncias nitrogenadas que contêm aminoácidos
(protídios) e ácidos graxos (lipídios), fibras e, em quantidades
mínimas, sais minerais e vitaminas, para fornecer as fontes ener-
HENRIQUE CARNEIRO
1 2
géticas e plásticas e os catalisadores bioquímicos. Esse forneci
mento obedece à necessidade de calorias (unidade de calor que é
necessária para fazer variar em um grau a temperatura de um
grama de água destilada), calculada como sendo em torno de
2.500 diárias em média para um adulto que realize apenas tra
balho leve, e também de proteínas e elementos minerais necessá
rios para a reposição plástica do organismo e de vitaminas e ou
tros minerais em quantidade ínfima para o seu funcionamento
adequado.
As descobertas em Medicina sobre a correlação entre alimen
tação e saúde permitiram a identificação de uma série de carên
cias específicas, como a de ferro provocando a anemia; a de nia
cina, a pelagra; a de frutas frescas, o escorbuto; a de tiamina, o
beribéri; e a de iodo, o bócio. Da mesma maneira, também se
desvendaram as enfermidades causadas por excessos alimentares
específicos, como o de gorduras causando colesterol em dema
sia ou o de sal provocando hipertensão arterial. A descoberta
das vitaminas, no século XX, fundamentou cientificamente a
causa de algumas destas deficiências alimentares e ampliou a
compreensão da fisiologia da nutrição.
Os estudos nutricionais identificaram nos últimos anos, a
partir de estatísticas médicas comparadas, a ocorrência de deter
minadas doenças em correlação com dietas particulares. O caso
do chamado "paradoxo francês" talvez seja um dos mais notá-
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veis e mais divulgados, pois evidenciou-se a menor incidência de
problema: cardiovasculares entre os franceses (assim como en
tre os j aponeses), apesar de uma dieta rica em colesteróis. A ex
plicação apresentada pelo hematólogo francês Serge Renaud foi
a de que o consumo moderado de vinho tinto preveniria as en
fermidades cardiovasculares. Nos anos 60, um estudo compara
do de sete países demonstrou que o quadro francês era extensivo
aos países mediterrâneos, onde além do vinho, se consumia azei
te de oliva no lugar das gorduras animais.3
3 J e f frey Steingarten, O homem que comeu de flido, São Paulo , Companhia das Letra s, 2000, p. 54.
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14
3
A S PECTOS ECONÓMICOS, SOCIAIS
E CUL TURAIS DA A LIMENT AÇÃO
A Economia e a Agronomia estudaram a alimentação a partir
da história da agricultura e do comércio, enfocando, juntamente
com a Geografia, o relacionamento da humanidade com o seu
meio físico e social na produção dos alimentos. A história da
Agricultura é um dos pontos de partida de estudos s istemáticos
das plantas de uso alimentício e das plantas cultivadas.
A história económica, por sua vez, estudou a alimentação do
ponto de vista da produção agrícola e industrial e do processa
mento e da preparação dos alimentos, assim como da sua distri
buição através do comércio e, finalmente, das condições do ar
mazenamento e do consumo, trabalhando com imenso volume
de estatísticas comerciais, fiscais e de preços, que incluem os ali
mentos no interior da história da agricultura, da indústria, do
comércio, dos transportes e da urbanização.
Como fica evidenciado nos estudos sobre a alimentação na
Inglaterra, é extremamente difícil separar abastecimento de
consumo. As investigações sobre volumes de produção, vias de
distribuição, po�íticas de preços e outros índices econômicos e
estatísticos carecem de dados precisos no que se refere às épocas
passadas. Mesmo na Inglaterra, berço do industrialismo, os his
toriadores produziram relativamente poucas monografias sobre
tópicos específicos em relação a períodos ou espaços regionais
do suprimento de alimentos. I
De modo geral, todos os estudos de história da agricultura e
da criação de animais de corte abordam a questão da alimenta
ção na história. Da mesma forma, o estudo das rotas comerciais,
dos fluxos mercantis e dos sistemas produtivos abrange necessa
riamente, como parte do seu objeto, a alimentação. Pescadores
de bacalhau nórdicos expandiram zonas de pesca até descobri
rem as terras boreais; pela avidez por especiarias se abriram as
rotas marítimas do Oriente, e o tráfico do açúcar fez do Atlânti
co a principal via de trânsito entre povos e mercadorias. Além
de fazer parte da história econômica geral, a alimentação desta
ca-se, em seus múltiplos aspectos particulares, como um fenô
meno fundador da Economia, a primeira produção sendo a do
consumo material de alimentos. A capacidade das forças produ
tivas em gerá-los além da demanda de consumo imediato COllS-
1 Citando alguns estudos específic os de cida des ou regiões, em particular sobre o abastecimento em Manche ster, O ddy & Burnett (in T euteber g, op. cit., p. 19) chegam à conc lusão de q ue faltam estudos m odernos similares para a s demais cidade s da Inglaterra.
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titui o primeiro excedente social; assim, o papel do alimento lo
caliza-se no fulcro da produção e da reprodução de uma socie
dade, no' nível definido por Marx como infra-estrutura!. O
grande historiador Fernand Braud.cl, na sua divisão da Econo
mia em três níveis - o financeiro, o mercantil e o da cultura ma
terial -, situou a alimentação no último, juntamente com o ves
tuário e a habitação, ou seja, aqueles que dizem respeito à manu
tenção do corpo e à reprodução da vida cotidiana. Já se usou da
metáfora da casa para expor os diferentes âmbitos da História: a
História Social trataria da sala; a História Cultural, dos quartos;
e a História Econômica, da despensa. Na sala as pessoas intera
gem e convivem, nos quartos fazem amor, choram, rezam ou
dormem, mas na despensa reside a fonte da energia vital, os víve
res, os mantimentos, as vitualhas, as provisões.
A História Econômica da alimentação é a do farnel do via
j ante, a da semeadura e a da colheita do lavrador, da moagem,
da estocagem, do transporte, da venda e do preparo dos grãos,
das frutas que se comem nos pés e das hortas de quintais onde
a auto-subsistência provê muitas famílias. Dos circuitos finan
ceiros eletrônicos dos mercados de commodities, passando pelos
armazéns, bares e restaurantes, até os pomares e os hortos par
ticulares onde se cultivam plantas e temperos. Em todas essas
distintas espessuras da vida a História Econômica do alimento
deve penetrar para desvendar, no mundo inteiro e em cada
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casa, nos países e nas regiões, os preços, as demandas, os índi
ces de produção, distribuição e consumo. As economias da
casa, do país e do globo precisam ser vistas sempre do ângulo
da despensa.
Os enfoques em História Social relativos à alimentação_ são
múltiplos. Em demografia histórica, por exemplo, a questão da
alimentação permeia muitos dos estudos que buscam explicar
alterações populacionais devido às grandes fomes como fatores
de despovoamento. Um caso clássico foi o da crise na safra de
batatas na Irlanda em 1845-47, que matou ao menos um milhão
de pessoas e provocou intenso fluxo emigratório. Crescimentos
populacionais são relacionados com melhorias nutricionais. A
história das doenças e da saúde também está intimamente ligada
com a história do abastecimento alimentar. Os estudos sobre as
fomes também são um aspecto importante da História Social da
alimentação e se misturam com o tema das rebeliões e desordem
social, daí a importância política da alimentação, cujo controle
faz parte da formação dos Estados.
Os hábitos alimentares e suas transformações também são
objeto de investigação para a sociologia da alimentação. A ali
mentação da época atual, com a intensificação comercial, a ado
ção de novas tecnologias de produção, distribuição e consumo
de alimentos, a expansão de novos hábitos homogeneizados pe
las grandes cadeias de lanchonetes e outros fenômenos recentes,
HENRIQUE CARNEIRO
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têm sido abordados pela sociologia da alimentação contempo
rânea sob múltiplos ângulos. As relações entre a culinária e as
classes soc�ais podem ser identificadas nos gostos diferenciados
ou nas maneiras à mesa, as identidades étnicas e regionais reves
tem-se de diversos rituais gregários e alimentares, particular
mente entre emigrantes ou expatriados, os restaurantes podem
ser analisados como espaços simbólicos, caracterizados como
"teatros de comer" e estratificados em torno de posições sociais
tanto quanto de cardápios específicos. A rotinização entediante
da vida cotidiana provocada pela cultura do jast-jood, as flutua
ções dos horários das refeições e do simbolismo nelas investido,
a constituição dos papéis sexuais e das diferenciações de gênero
em torno da organização social da comida, especialmente por
meio da feminização das tarefas da cozinha, são, entre tantos
outros aspectos, rico material indispensável para as análises so
ciológicas de distintos grupos humanos.
O fim das refeições em família leva à erosão do próprio con
ceito de "refeição" numa sociedade em que nas casas vigora o
império dos microondas e no trabalho, na rua ou na diversão ex
pandem-se as práticas da "alimentação rápida", de beliscar pe
tiscos e lanches em "lanchonetes" , fenômeno que surge na fron
teira difusa entre os bares e restaurantes e que simboliza esta
nova relação com os horários e os rituais da comida. Tais trans
formações têm sido enfocadas, entretanto, no âmbito dos estu-
COMIDA E SOCIEDADE
19
dos sociológicos e antropológicos por tratar-se de processos em
pleno curso nas sociedades atuais.
Outro aspecto dos estudos culturais sobre a alimentação pro
vém da Antropologia. Preceitos e tabus alimentícios torna
ram-se assunto de competência de uma ciência social que espe
cializou-se em estudar hábitos e crenças em todo o mundo. A
Antropologia foi uma disciplina que, desde o século XIX, co
meçou a desenvolver uma etnografia sistemática dos hábitos ali
mentares e a buscar interpretá-los culturalmente. A primeira
fase caracterizou-se por um comparativismo das diferentes tra
dições culturais. A análise dos tabus, onde se destacam os ali
mentares, foi desde os primórdios da Antropologia um terreno
fértil para especulações criativas sobre o s ignificado simbólico
da alimentação. O estruturalismo na Antropologia, a partir da
obra de Lévi-Strauss, tratou da relação da alimentação com es
truturas mitológicas em O cru e o cozido (1964), Do mel às cinzas
(I 967) e Origem das maneiras à mesa ( I 9 68). A diferença entre o
cru e o cozido, para este antropólogo, fundaria a própria cultu
ra, distinguindo-a da natureza. Sua influência extravasou para o
conjunto das ciências humanas, abrindo uma fecunda via de in
terseção com a historiografia, sensibilizando-a para os aspectos
inconscientes das ações humanas e dos nexos que as regem. A
nutrição humana é uma dessas atividades cujos padrões de con
duta muitas vezes escapam dos seus próprios agentes, educados
HENRIQUE CARNEIRO
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desde a infância para considerá-los algo automaticamente óbvio
e consuetudinário. Boa parte da matéria-prima etnográfica é,
pois, em torno da alimentação, eixo ao redor do qual as diferen
tes culturas estruturam a sua vida prática assim como muitas de
suas representações.
Além desta presença difusa da questão da alimentação em
obras fundamentais de diferentes tradições antropológicas e de
uma vasta etnografia de hábitos alimentares em todo o mundo,
existem inúmeros debates no meio antropológico sobre a nutri
ção e sobre os costumes alimentares. Uma questão, em particu
lar, suscitou instigantes estudos antropológicos: a da natureza
simbólica do consumo de carne, e será abordada num capítulo
mais à frente. O tema dos hábitos alimentares é um dos que, por
excelência, pertencem à Antropologia. A investigação cultural
em nutrição tem como tema central a identificação dos hábitos
alimentares e das motivações das mudanças que eles podem so
frer. O estudo das religiões também exige a interpretação de
uma série de preceitos e proscrições alimentares, além de todo
um conjunto s imbólico, mitológico e teológico de elaborações
em torno da alimentação, cuja importância nos obriga a tratar
também desse relacionamento entre alimentação e religiosidade
num outro capítulo específico. Mas, para além das análises sim
bólicas, a Antropologia se destacou pelo mapeamento etnográ
fico dos diversos hábitos alimentares, cuja extensão e especiali-
COMIDA E SOCIEDADE
2 1
zação de caráter local e regional (por exemplo, em relação aos
índios brasileiros) impedem que este texto sequer tente relacio
ná-los, mas que um levantamento mais detalhado poderia per
mitir contrastar as constâncias, fecundações e difusões variadas.
Além desta ubíqua presença dos alimentos no escopo de qua
se todas as disciplinas que direta ou tangencialmente devem
abordá-los na constituição de seus métodos e de seus objetos es
pecíficos, cabe à História a investigação da alimentação e de
suas transformações numa perspectiva diacrônica, ou seja, ao
longo do tempo. Antes de entrarmos diretamente na história da
alimentação nos diversos períodos históricos, entretanto, deve
mos situar a questão da alimentação à luz do seu constrangi
mento mais persistente, a sua verdadeira contrapartida, que é a
história da fome.
HENRIQUE CARNEIRO
22
A definição desse conceito não é tão simples como possa pa
recer. Fome não é apenas a sensação universal que todos possuí
mos antes de comer, melhor chamada apetite, mas o estado crô
nico de carências nutricionais que podem levar à morte por ina
nição ou às doenças da desnutrição.
O médico e sociólogo Josué de Castro, talvez o maior estu
dioso brasileiro do assunto, já havia denunciado uma " conspira
ção de silêncio" existente sobre a fome. Um dos "tabus da nossa
civilização" , escreveu ele em Geogrcifia da fome (1946), acrescen
tàndo que " é realmente estranho, chocante, o fato de que, num
mundo como o nosso, caracterizado por tão excessiva capacida
de de escrever-se e publicar-se, haja até hoje tão pouca coisa es
crita acerca do fenômeno da fome" .
Essa situação, entretanto, alterou-se após o segundo pós
guerra, quando ocorreu uma verdadeira "descoberta" da fome
mundial, paralela ao processo de independência dos países colo
niais. Como explica o geógrafo Y ves Lacoste, "enquanto existiam
os elos estreitos da dominação colonial, e enquanto se procurava
mantê-los por bem ou por mal, admitir que as populações coloni
zadas estavam na miséria era, em certa medida, reconhecer o fra
casso desta famosa missão civilizadora, álibi ideológico da colo
nização".2 Esta " descoberta" da fome pelas ciências econômicas e
2 Yves Lacoste. Geografia do subdesenvolvimento. Sã o Paulo. DifeI. 1982. p. IS.
HENRIQUE CARNEIRO
24
4 ---------,----------------------
A NUTRIÇÃO E A FOME
Na Divina comédia, Dante bem definiu a fome como "a pri
meira das calamidades que assolam a humanidade. Sua conse
qüência é a morte mais miserável de todas. A fome provoca um
suplício lento, dores prolongadas, um mal que habita e se es
conde no interior da gente, uma morte sempre presente e sem
pre lenta a chegar". I
A alimentação é a luta contra a fome. Nem sempre essa luta
tem sido vitoriosa para a humanidade. O nível do povoamento
e sua localização e a densidade populacional são fatores decor
rentes da capacidade de se produzir alimentos. A produção
dos alimentos e a sua disponibilidade social têm obedecido a
uma dinâmica milenar de desigualdades distributivas e de cri
ses alimentares. As fomes assolam o passado e o presente da
humanidade.
1 Apud Jacques ChonchoI, O desafio alimentar. A fome no mundo, São Paulo, Marco Zero, 1989, p. 7.
humanas levou a tentativas de conceituá-la em seus diversos ní-
veis como fomes agudas, subalimentação crônica ou fome oculta
(carências qualitativas de proteínas ou vitaminas).
O agravamento do problema alimentar foi oficial e institu
cionalmente reconhecido com a criação da Organização de Ali
mentação e Agricultura das Nações Unidas (FAO - Food and
Agriculture Organization), originada de uma conferência realizada
em Hot Springs, Estados Unidos, em 1943. Desde então, tal or
ganização dedicou-se a realizar investigações e levantamentos
sobre a s ituação alimentar planetária. Em 1974, sob o impacto
de uma crise na produção mundial de cereais e dos surtos de
fome na África, na Ásia e na América Latina, realizou-se em
Roma, sede da FAO, uma Conferência Alimentar Internacional,
com a participação de 130 países. As resoluções desse encontro,
entretanto, só serviram para tornar o tema da fome uma preocu
pação constante da mídia mundial e para subsidiar uma série de
estudos estatísticos e econométricos, não trouxeram efetiva-
mente qualquer conseqüência prática. A situação da fome, de
nunciada por Josué de Castro, que foi o presidente do conselho
da F AO entre 1952/56, continua na pauta dos grandes proble-
mas contemporâneos.
Os métodos de cálculo da fome no mundo são objeto de con
trovérsia teórica e utilização política e ideológica. A FAO utili
za o critério de "consumo energético alimentar não menor de
COMIDA E SOCIEDADE
25
um estimado 'mínimo requerido' de 1,4 x taxa metabólica ba
sal", para afirmar no Fifth FAO World Food Survey a existência de
cerca de 490 milhões de pessoas desnutridas no mundo entre
1979 e 1981. Muitos especialistas reconhecem que esse critério
"não é suficiente a não ser para uma sobrevivência sedentária
sem trabalho físico e sem a manutenção de uma boa forma car
diovascular prolongada ( ... ) pelo critério mais apropriado de
um consumo adequado para atividade física produtiva, o núme
ro chega perto de um bilhão de pessoas".3 Outra definição mais
geral e menos quantitativista é a de fome como uma inadequa
ção no consumo individual em relação ao tipo e à quantidade de
alimento requerido para o crescimento, para a atividade e para a
manutenção de uma boa saúde.4
Os números oficiais da FAO até 1985 mostravam que houvera
uma diminuição na proporção dos famintos na população mun
dial, mas também indicavam que, em números absolutos, o nú
mero de famintos nunca fora tão grande. Nas últimas três déca
das e meia, a proporção de pessoas faminta no mundo diminuiu
pela metade - de 23 % para 10% usando os dados e métodos de
estimação da FAO. No entanto, existem provavelmente mais pes
soas famintas hoje no mundo do que em qualquer outra época an-
3 Nevin Scrimshaw, "World nutritional p roblems", in Newman, Hunger in History, 1990, p. 353.
4 Sara Millman e R obert W. Kate s, in Newman, op. cit., p. 3.
HENRIQUE CARNEIRO
26
terior. Tal evidência é ainda mais gritante diante do cálculo da
produção contemporânea de alimentos, que alcançou um volume
recorde na história humana. O suprimento global de alimentos é
atualmente suficiente o bastante para alimentar mais do que a to
talidade da população mundial com base numa dieta semivegeta
riana, mas suficiente apenas para alimentar metade da população
mundial se for estendida para todos a mesma dieta atual dos paí
ses desenvolvidos. As conseqüências do que se caracteriza como
H dieta de países desenvolvidos" no crescentemente interdepen
dente sistema alimentar global atinge o conjunto do planeta, de
vido ao impacto ambiental provocado pela destruição das flores
tas tropicais na América Latina para dar lugar às pastagens e às
plantações de forragem necessárias para aumentar o consumo
ocidental, e especialmente norte-americano, de bifes.
Muitas questões são postas para a história da alimentação e
da sua carência. Como periodizar a fome, quais os ciclos das os
cilações da sua ocorrência, como avaliar a historicidade das ca
rências, medi-las entre as camadas da população, desvendá-la
em meio a números brutos de volumes de produção ou de co
mércio? E como mensurá-la e mapeá-la nas diversas épocas e re
giões da história da humanidade? Pode-se afirmar que, na época
contemporânea, a humanidade, no seu conjunto, tem se alimen
tado mais e melhor do que em épocas passadas? Como comparar
as diferentes alimentações dos diversos estratos sociais nas va-
COMIDA E SOCIEDADE
27
riadas épocas e regiões? Como obter índices de consumo em ca
lorias, proteínas, carboidratos e vitaminas?
Durante as irrupções de crises alime�tares precipitadas por
guerras, pestes, catástrofes climáticas etc. , ocorrem os níveis
agudos de escassez, que se destacam com horrível visibilidade na
memória dos povos e com evidência numérica nas mensurações
estatísticas. Na longa duração histórica, entretanto, é mais difí
cil seguir o curso da luta pela alimentação, verificar os índices de
consumo alimentar, os períodos ou ciclos de crises, os quadros
nosológicos associados a nutrições deficitárias e, enfim, a in
fluência mais geral do tipo de alimentação na constituição b io
lógica das distintas populações.
Só é possível responder às questões colocadas pelo drama da
fome em sua perspectiva diacrônica através do exame compara
do dos níveis históricos de escassez ou abundância na produção
agrícola e das formas de produção e distribuição que constituem
o equilíbrio ou o desequilíbrio alimentar em dada sociedade.
Por equilíbrio pressupõe-se o consumo em níveis satisfatórios,
quantitativo e qualitativo, de proteínas, calorias e vitaminas.s
5 Existe uma vasta b ib li ografia médica sobre a nutrição humana. onde tenta-se definir a quantidade de calorias, de pr oteínas e de v itaminas q ue c onstituem urna raçã o al imentar a dequada e q ue pode ser fac ilmente obtida em obras de referência médica geral ou nos relatórios da FAO e da O MS, e ntre os q uais: Besoins en Calcium , Roma, 1961; Besoins ln Protéines, Roma, 1965; Besoins en Vitamines A, Thiamine, Riboflavine et Niacine, Roma, 1967; Besoins eM Ácide Ascorbique, Vitamine D, Vitamine B 12, Acide Fo/ique, et Fer, Roma, 1970; e Energy and Protein Requirements, Genebra, 1973.
HENRIQUE CARNEIRO
28
Nesse sentido, a história da alimentação é a história da luta
contra a fome. A história da fome é interligada com a história da
abundância. Tal história começou a colher seus dados e a buscar
sistematizá-los no século XIX. Um dos primeiros estudos foi o
de Cornelius Walford, que, em 1878, apresentou à sociedade
estatística de Londres dois importantes comunicados sobre a
fome no mundo, nos quais analisava as causas de mais de 350
surtos de fome que haviam flagelado os povos ao longo dos sé
culos.6 Este esforço para se fazer a estatística histórica da fome
se inscreve nos passos precursores da constituição de uma de
mografia histórica. Desde então, tem havido muitos estudos so
bre fomes regionais e crises alimentares, relações entre as crises
agrícolas, os preços e as rendas, assim como descrições do de
senvolvimento das fomes localizadas, apontando para correla
ções entre preços de cereais, especialmente do milho, e taxas de
nascimentos e mortes, indicando relações diretas entre o tipo de
alimentação e os índices de fertilidade e de mortalidade, de emi
grações e de epidemias.
O crescimento demográfico é um dos elementos que pode in
dicar um aumento nos padrões de consumo alimentar em épo
cas passadas, pois a superação dos índices de mortalidade pelos
de natalidade tenderia a manifestar uma melhoria nas condições
6 Jac ques Chonchol, op. cit., p. 8.
COMIDA E SOCIEDADE
2 9
de vida, particularmente da nutrição, permitindo às populações
melhor resistência às doenças e prolongamento da expectativa
de vida. Outras características antropo�étricas ligadas à nutri
ção, como peso, altura, vulnerabilidade a certas doenças, tam
bém são objeto de estudo para a história da fome.
Doenças causadas por carências alimentares específicas, como
o escorbuto (hemorragias causadas por carência de vitamina C), a
pelagra (avitaminose que causa perturbações digestivas, epidér
micas e nervosas), o bócio (hipertrofia da glândula tireóide), a
anemia (fraqueza causada por diminuição dos glóbulos verme
lhos) ou o beribéri (polineurite com dores nevrálgicas), também
podem ser um indicativo do tipo de alimentação de épocas ou re
giões específicas, como é o caso, por exemplo, das populações es
cravas no Brasil, cuja típica tristeza, chamada banzo, além da nos
talgia dos exilados, também seria um sintoma típico da anorexia e
exaustão provocadas pelo beribéri.? Também são características
as enfermidades derivadas de superabundância, como é o caso da
obesidade, do colesterol elevado ou da diabetes contemporânea.
A deficiência específica de ferro e de iodo ainda afeta cerca de
500 milhões de pessoas na atualidade.
Um dos impedimentos maiores para o estudo histórico da
fome é a dificuldade de se obter cálculos precisos do teor da nu-
7 Renato Pinto Venâncio e Maria Cé lia da S. Lanna, "Banz o. Desnutrição e morre do escrav o" , i" Ciência Hoje, vol. 2 1, n2 126, 1997, pp. 42-47.
HENRIQUE CARNEIRO
30
trição dos diversos segmentos sociais das diferentes sociedades.
Alguns autores tentaram estabelecer parâmetros teóricos para se
poder esboçar a comparação de dados de distintas procedências
no tempo e no espaço, efetuando estimativas de composição ca
lórica para associações de alimentos diferentes. O uso abusivo
de tais cálculos estimativos de valores nutricionais de dietas
passadas foi objeto de crítica por outros historiadores.8
As amostragens numéricas e os dados estatísticos só vieram a
se tornar mais precisos a partir da época moderna e, especialmen
te, da contemporânea, quando a econometria e as fontes oficiais
de censos e outros levantamentos puderam fornecer estimativas
ex atas de produção, circulação e consumo dos alimentos. A maior
parte dos estudos produzidos sobre a história da alimentação re
fere-se, portanto, ao período histórico pós-industrial.
No balanço geral das transformações ocorridas desde o iní
cio da época moderna, há indicações claras de ter havido um
agravamento das condições de penúria de grande parte da popu
lação européia. Entre os séculos XIV e XVIII, as condições nu
tricionais pioraram na Europa, o que refletiu-se até mesmo na
8 "Após a fisi ologia da nut tição ter sido institucionalizada na segunda metade do século XIX, a ca dêmicos te nta ram pela p rimeira vez converter as qua ntidades de comida consumidas, como determinado pelas estatísticas, em calorias e nas três mais imp ortantes unidade s de nutrição - prote ína, gordura e carboi dratos. Apesar de este método ter sido pouco usado inicialmente, tornou-se comum desde a metade do século XX C ... ) é espantoso o quão ingenuamente e a criticamente alguns historiadore s têm usado estes cálculos fisiológicos em contextos históricos." T euteberg, op. cit., p. 12.
COMIDA E SOCIEDADE
3 1
altura média do povo. Durante o período moderno, o capitalis
mo mercantil se expandiu traficando as especiarias e, mais tarde,
o açúcar, produtos híbridos de alimento�droga, do mundo colo
nial para a Europa, enquanto no próprio continente europeu as
condições nutricionais das populações sofriam carências cres
centes. Somente após o final do século XVIII iniciou-se uma re
cuperação que redundou em melhorias na quantidade e na qua
lidade da alimentação, além de avanços na higiene alimentar e
nas condições sanitárias que evitaram contaminação bacteriana,
como a invenção dos meios de esterilização dos vidros e das la
tas. As duras condições de fome do período moderno somente
se atenuaram para os europeus no século XIX e, ainda em
1845-47, cerca de um milhão de irlandeses morreu de fome de
vido à quebra da safra de batatas, ao aumento dos preços e à au
sência de socorro.
A partir da época industrial, no século XIX, verificaram-se
diversas alterações na agricultura e na economia que ampliaram
a oferta de alimentos e as possibilidades de sua aquisição na Eu
ropa, fenômeno que foi chamado "revolução dietética". Ao
mesmo tempo, a incorporação das economias agrárias pré
capitalistas da África e da Ásia ao mercado mundial, submeten
do-as a especializações de exportação (monoculturas de algo
dão, cana-de-açúcar, chá, anil etc.) e ao regime de flutuação dos
preços mundiais, ajudou o decadente Império Britânico a equi-
HENRIQUE CARNEIRO
3 2
librar a sua balança comercial e aumentou a disponibilidade de
gêneros alimentícios nos países metropolitanos. Para os países
coloniais, entretanto, teve resultados desastrosos provocando
grandes crises de fome que chegaram a aniquilar cerca de um
quarto da população do Marrocos entre 1878-84, a provocar
20 milhões de mortos na China, em 1877, e, na Índia, sete mi
lhões de mortos em 1878-79 e cerca de 16 milhões em 1897,
entre outras cifras estonteantes referentes aos demais países. No
balanço geral do final do século XIX, o sacrifício total de seres
humanos dessas três ondas de seca, fome e epidemias não deve
ter sido inferior a 30 milhões de vítimas. Cinqüenta milhões de
mortes é considerado como um cálculo mais realista.9
Ao longo do século XX, tais morticínios continuaram a su
ceder não só em crises localizadas, mas como formas endêmi
cas de fome, carências específicas e subalimentação generaliza
da. É um paradoxo contemporâneo que ocorra um crescimen
to da fome no planeta na época atual, quando a produção agrí
cola é a maior de toda a história da humanidade - atingiu-se
no final do século XX cerca de dois bilhões de toneladas de ce-
reais - e, devido a diversos recursos tecnológicos (fertilizan
tes, agro tóxicos e engenharia genética) que possibilitaram uma
verdadeira revolução agrícola, tendo crescido, ao longo do sé-
9 Mike Davis, Holocaustos coloniais, Rio de Janeir o, Recor d, 2002.
COMIDA E SOCIEDADE
33
culo XX, em índices superiores ao crescimento populacional,
refutando na prática as previsões malthusianas que tanto im
pacto produziram no século XIX.
As teorias sobre a fome relacionam-se com as teorias sobre o
crescimento populacional e sua relação com o crescimento na
produção. Duas perspectivas teóricas a esse respeito surgiram no
século XIX: a de Thomas Malthus e a de Karl Marx. A teoria
malthusiana, como é sabido, considerava que as populações cres
ceriam em progressão geométrica (exponencialmente), enquanto
os meios de subsistência apenas em progressão aritmética (linear
mente). Marx, discordando com veemência de Malthus, apresen
ta uma teoria da população específica para o modo de produção
capitalista, onde a rápida acumulação de capital reduz a necessi
dade de trabalho, criando um excedente relativo de força de tra
balho, um "exército industrial de reserva", condenado ao desem
prego ou subemprego, a baixos salários, condições de vida mise
ráveis e fome persistente. Marx encontra, portanto, as raízes da
fome e de outras formas de miséria humana nas relações de opres
são e exploração ligadas à organização da produção.
As conquistas técnicas da Revolução Industrial refutaram os
pressupostos de Malthus. Nem as populações cresceram geome
tricamente nem a capacidade produtiva aumentou numa progres
são simplesmente aritmética. A mecanização agrícola e os trans
portes modernos produziram um salto nos volumes de produção
HENRIQUE CARNEIRO
34
no mundo. Ester Boserup (1965) apresentou uma teoria que, ao
contrário das previsões malthusianas, identificou no crescimento
populacional um mecanismo provocador de inovações tecnológi
cas e, no longo prazo, de melhorias nas condições de vida. Uma
abordagem, apresentada mais recentemente pelo economista in
diano Amartya Sen, laureado com o Nobel de Economia em
1998 por seus estudos sobre o cálculo da pobreza, denominou jai
lure entitlement exchange, ou um fracasso no direito à disposição de
comida, a razão da ocorrência de fomes, interpretando as suas cau
sas estruturais como resultantes da pobreza e não da inexistência
de comida na região em causa. Outras interpretações, por outro
lado, enfatizam como principal fator causador da fome no T er
ceiro Mundo o controle do mercado mundial pelas grandes mul
tinacionais (Cargill, Nestlé etc.) cuja estratégia básica é ampliar
seus lucros, manipulando as cotações internacionais dos preços e
opondo-se ao estabelecimento de estoques internacionais regula
dores de preços em mãos de organismos estatais para assistência
de populações famintas. l O
A idéia de que se poderia acabar com a fome no mundo com o
aperfeiçoamento dos recursos tecnológicos da Revolução
Industrial, que vão desde a invenção dos refrigeradores ou dos
fertilizantes químicos, há cerca de um século, até a atual mani-
10 Susan Ge orge, O mercado dafome, Rio de Janeiro, Paz e Terr a, 1978.
COMIDA E SOCIEDADE
3 5
pulação genética com a conseqüente criação de novas e mais re
sistentes espécies vegetais e animais, animou um otimismo cien
tificista característico do século XX. E, de fato, pôde-se verifi
car, no início do século XX, um salto significativo na melhoria
da nutrição média das populações de diversos países, particular
mente daqueles que desenvolveram a mecanização da produção
e distribuição agrícola.
Após a metade do século XX, ao final da Segunda Guerra
Mundial, o problema da fome emergiu, entretanto, como a
grande realidade mundial irrefutável: o número dos desnutridos
vai de 500 milhões a I bilhão e 130 milhões, dependendo das
diferentes estimativas. No final do século XX, estima-se que -
as avaliações variam segundo a fonte - um pouco mais de 400
milhões até cerca de I bilhão de pessoas sofram de desnutrição
de forma constante. Para a FAO, tratava-se de 450 milhões de
pessoas em 1974. Para o International Food Policy Research Institute
(IFPRI, Washington D.C), o dobro, ou seja, 900 milhões de
pessoas . Para a UNICEF, em 1980 esse número é de 780 mi
lhões. E para o Banco Mundial, essa população atinge I bilhão e
130 milhões de desnutridos. I I
No segundo pós-guerra conheceu-se um boom econômico na
Europa, que afastou do velho continente as fomes massivas após
II Chonch ol, op. cil. , p. 9.
H ENRIQUE CARNEIRO
36
os momentos de fome aguda da Segunda Guerra Mundial.
Embora não se possa dispor de cálculos seguros para o conjunto
do planeta, pode-se afirmar que houve, na segunda metade do
século XX, uma melhora relativa da alimentação diante da situa
ção anterior da crise dos anos 30 e da guerra. Tal situação, no
entanto, sofreu uma piora no final do século XX. No balanço
dos dois últimos séculos da época contemporânea, verificamos
que o regime alimentar não se aperfeiçoou de maneira contínua.
Na Europa, obteve-se um relativo bem-estar somente a partir da
segunda metade do século XIX, enquanto nos países pobres, es
pecialmente da África, as condições de vida declinaram no últi
mo quarto do século XX.
A fome contemporânea não se limita à fome causada pelos
cataclismas naturais que destroem colheitas. É na distribuição
que se concentra o problema do abastecimento alimentar con
temporâneo, dado que os índices de produção crescem avolu
mando uma quantidade nunca antes vista de estoques disponí
veis nos países ricos.
T ais desequilíbrios têm sua origem na constituição da econo
mia moderna. Contrariando uma visão do senso comum, que vê
na época medieval um período de extrema carência alimentar e
na época moderna uma relativa melhoria, o período moderno
surge, aos olhos de estudos recentes, como uma época, na Euro
pa, de queda da qualidade do consumo alimentar, submetido ao
COMIDA E SOCIEDADE
37
monopólio dos cereais, e de grandes fomes, enquanto no perío
do medieval, exceto quando de catástrofes climáticas muito gra
ves, vivia-se de uma dieta mais diversificada, abastecida por pro
dutos de bosques e hortas que o mundo moderno verá desapare
cer com o cercamento das terras, a expulsão dos camponeses, o
inchamento urbano e a constituição do proletariado moderno.
Ao mesmo tempo em que se expandia o comércio de longo
curso e se iniciava a introdução das plantations de açúcar nas co
lônias, para o qual se intensificou a um nível nunca antes visto
o tráfico de escravos, numa diáspora africana para a América, a
alimentação camponesa na Europa declinava consideravel
mente em qualidade e em quantidade. A alimentação cerealífe
ra, impondo-se à maioria da população européia, limitou a di
versidade de produtos de subsistência existente no período
medieval, assim como diminuiu o consumo de carne até seu
desaparecimento em amplas camadas sociais. O cercamento
dos campos, a expulsão dos camponeses da terra, de cuja pro
priedade são cada vez mais excluídos , a alta generalizada de
preços, entre outro fatores, provocam, entre os séculos XVI e
XVIII, algumas das maiores crises de abastecimento e as gran
des fomes se generalizam.
Nessas épocas de fomes, generalizaram-se também as dietas
dos períodos de crise, baseadas na ingestão de raízes e vegetais
impróprios para o consumo, como o joio e, particularmente, de
HENRIQUE CARNEIRO
38
cereais contaminados pelo ergot ou esporão, um fungo do cen
teio que provocava s intomas de perturbações mentais. Seus efei
tos causaram epidemias de delírios coletivos em diversas aldeias
européias nas épocas medieval e moderna. Nestes transes provo
cados por contaminação do pão com ergot, a expressão mais co
nhecida era a dança coletiva e convulsiva, chamada dança de São
Vito. Essa mania dançarina era resultado de uma crença coletiva
que atribuía as perturbações mentais a picadas de tarântulas e
adotava a música convulsiva como terapia, estando na origem
do ritmo italiano conhecido como tarantela. Alguns historiado
res abordaram estes fenômenos de uma alimentação deletéria e
causadora de distúrbios psíquicos coletivos levantando a hipó
tese da contaminação ergótica ter causado também diversas ou
tras manifestações de comportamentos b izarros, ocorridos ex a
tamente nas áreas de plantio do centeio, tais como práticas iden
tificadas à bruxaria. 12 No Brasil, Josué de Castro listou dezenas
de plantas tóxicas usadas em dietas de épocas de seca e fome no
Nordeste, os chamados alimentos "brabos" , entre os quais des
tacam-se os cactos e, especialmente, os troncos espinhosos e ri
cos em água do xiquexique da caatinga. 1 3
1 2 Piero Campore si, Le Pain Sauvage. L 'Imaginaire de la Faim de la Renaissance au X VIIIe Siiele, Paris, Le Chemin Vert, 1 9 8 1; e Mary Kilbour ne Matossian, Poisons of the Paste Molds, Epidemies, and History, Ya le, Yale Uni versity Pre ss, 1989.
13 J osué de Castro, Geografia da fome, Rio de Janeir o, Antares, 1 987, pp. 220-227.
COMIDA E SOC IEDADE
3 9
A miséria e a fome não foram sempre iguais nem nasceram
com a expulsão do paraíso e a maldição de ganhar o pão com o
suor do rosto. Longe de ser um flagelo imutável das sociedades
humanas, a carência tem uma história. A economia moderna
transformou o antigo status social da pobreza e da fome medie
vais, ampliando o número dos miseráveis e lançando-os para
fora de suas origens. A acumulação capitalista primitiva baseou
se na desterritorialização de amplas camadas sociais antes vin
culadas à agricultura, transformando-as em marginais. A histó
ria deste processo de pauperização na Europa na época moderna
mostra como a pobreza e a fome desempenharam papéis dife
renciados na Idade Média e na época moderna.14 Na sociedade
medieval, os pobres cumpriam um papel funcional ao servir
para justificar a instituição da caridade praticada pela Igreja, va
liosa não apenas do ponto de vista simbólico, na construção da
ideologia cristã, mas também necessária economicamente como
fonte de renda para o clero, que, por meio das esmolas, arreca
dava quantias não desprezíveis numa sociedade de limitada cir
culação monetária. Além disso, a fome como jejum era apresen
tada pelo cristianismo como manifestação de humildade, como
valor, que levava a que ela fosse buscada por um tipo particular
de faminto voluntário que eram os peregrinos, os monges e os
14 Bronislau Gereme k, Os filhos de Caim. Vagabundos e miseráveis na literatura européia / 400- / 700, São Paulo, C ompanhia das Letras, 1995.
HENRIQUE CARNEIRO
4 0
eremitas, além dos dias de jejum previstos no calendário religio
so para todos os fiéis.
As situações de desigualdade social medieval, mais ou menos
estáveis, perturbadas apenas por crises pontuais como a do sécu
lo XIV, foram sucedidas por um abrupto e crescente empobre
cimento de camadas cada vez mais amplas das populações da
Europa moderna. O período que se segue à grande unificação
do planeta pelas navegações européias com os produtos do co
mércio de longo curso ampliando sua esfera de consumo e po
pularizando gêneros como o açúcar, as especiarias, as bebidas
coloniais, além das novas espécies americanas difundidas pelo
mundo, foi também um período de estratificação social acelera
da na Europa, com imensos setores da população camponesa re
duzidos à desnutrição crônica, ao mesmo tempo em que nas
Américas o impacto combinado da contaminação por doenças,
derrota militar, desagregação política e social, perda generaliza
da dos cultivos extensivos e crises alimentares levou à morte de,
ao menos, 90% da população original do continente, que caiu
de cerca de 80 a I OO milhões para menos de l O nos primeiros
50 anos da colonização.
No século XX, a divisão desigual do produto social conti
nuou sendo, antes de tudo, uma divisão diferenciada dos níveis
de acesso ao consumo alimentar. As grandes fomes contempo
râneas não decorrem estritamente da falta de alimentos disponí-
COMIDA E SOCIEDADE
4 1
veis mas no que Amartya Sen chamou incapacidade de obter co
mida, ou seja, falta de recursos para comprar alimentos, como
demonstram os estudos sobre a Índia: Trata-se não simples
mente de um problema de falta de pão, mas de insuficiência do
"ganha-pão". I S
Os estudos sobre as grandes fomes do final do século XIX e
início do XX mostram que, apesar dos fatores climáticos cícli
cos ligados ao aquecimento do oceano Pacífico chamado EI
Nino, havia alimentos, mas eles se tornaram indisponíveis devi
do ao aumento de preços e à sua exportação (a Índia continuou
exportando alimentos durante as três grandes fomes dessa épo
ca). A ausência de um socorro do Estado era justificada em base
aos mais estritos liberalismo e utilitarismo económicos, do mes-
mo modo como havia sido feito com a fome irlandesa de 1846,
o Estado britânico não interviu no mercado para baixar preços
nem diminuiu a extorsão fiscal nas três grandes fomes ocorridas
na Índia entre os anos 1876-79, 1889-91 e 1896-1902, quan
do morreram dezenas de milhões de pessoas.
Os paradoxos do desequilíbrio na distribuição da renda
mundial aguçaram as desigualdades globais. Na Europa, nos
Estados Unidos e no Japão desenvolveram-se, a partir do final
da Segunda Guerra Mundial, sociedades de abundância e segu-
15 A. Sauvy, apud Lacoste, op. cit., p. 42.
HENRIQUE CARNEIRO
4 2
rança alimentar plena, onde o fantasma da fome praticamente
desapareceu. Tais conquistas decorrem dos novos recursos téc
nicos, como também das reivindicações sociais organizadas que
impuseram o chamado we/jare state, ou seja, as garantias de segu
ro-desemprego, assistência médica e outros benefícios. Nos paí
ses periféricos, contudo, a integração das suas economias ao
mercado mundial resultou em especializações de mono cultivos,
crises de fome, depreciação dos preços dos produtos tropicais
de exportação e dependência estrutural do hemisfério sul aos
mecanismos políticos, comerciais e financeiros que beneficiam
os oligopólios internacionais.
COMIDA E SOCIEDADE
43
r
5
A LIME NTAÇÃO NA PRÉ - HI S T ÓRIA
o tema da alimentação na Pré-História possui um impor
tante volume de trabalhos especializados que discutem, do
ponto de vista da Antropologia e da Arqueologia pré-histó
rica, as origens da agricultura, apresentando diferentes inter
pretações da importância relativa da atividade da caça, da cole
ta e dos primórdios do cultivo. A Arqueologia, a partir de sua
vocação de tratar dos vestígios materiais, foi uma disciplina
histórica que forneceu informações à história da alimentação
não apenas da Pré-História, como também das épocas antiga,
medieval e até mesmo contemporânea. A bibliografia sobre
Arqueologia pré-histórica, ao tratar de vestígios materiais e
buscar identificar sistemas de subsistência, trata em sua quase
totalidade do tema da alimentação. Não irei examinar aqui
esta bibliografia especializada, mas tão-somente apresentar al
gumas referências que discutem aspectos da alimentação nas
sociedades ágrafas.
Na década de 1920, antes mesmo do estabelecimento da da
tação precisa pelo carbono 14 (descoberta por Willard F.
Libby, em 1945), o grande arqueólogo 'australiano V. Gordon
Childe ajudou a popularizar o termo "revolução neolítica" dei
xando marcada a noção de uma transformação na forma de ob
tenção dos alimentos como o grande desafio vencido pela hu
manidade na sua primeira grande ruptura cultural, aquela que há
cerca de 8 ou 9 mil anos teria levado a que a espécie humana, em
diversas regiões, domesticasse certas plantas adquirindo o apren
dizado do seu cultivo. Entre estas, destacaram-se certas gramí
neas selvagens produtoras de grãos que se tornaram "sativas" ,
ou seja, cultivadas. Antes da agricultura, por milhares e milhares
de anos, a humanidade vivera de uma vocação onívora de coleto
res. As técnicas do fogo, como assar e defumar já haviam se de
senvolvido, assim como a secagem, a salga e a estocagem, mas a
dependência de recursos escassos e incontroláveis não permitira
a ampliação do povoamento. A técnica do cozimento relacio
nou-se com a domesticação dos cereais e, possivelmente, com a
fabricação da cerâmica (embora haja outras formas de cozimen
to, como pedras ferventes em recipientes de couro ou madeira).
Trabalhos recentes apresentam um resumo da problemática
da alimentação pré-histórica em que destaca a importância cres
cente de técnicas científicas especializadas como a análise quí
mica da constituição de ossos humanos para a determinação da
HENRIQUE CARNEI R O
46
dieta pré-histórica. Mas tais recursos são ainda limitados, como
são limitadas as amostras de fósseis, restando, portanto, os ves
tígios arqueológicos tradicionais da cultura material, para se in
vestigar a alimentação e a organização socioeconômica dos gru
pos pré-históricos. Entre estes vestígios encontram-se os pró
prios restos alimentares, os instrumentos de preparo, além de
dentes, cujo estudo da usura específica pode identificar padrões
de consumo alimentar, e de coprólitos ou fezes fossilizadas, que
as análises químicas podem analisar de forma a identificar a
composição da alimentação. I
Até recentemente, a teoria mais aceita era aquela que conside
rava que a caça organizada, particularmente de animais de gran
de porte, estaria na origem da "organização social e familiar
considerada como tipicamente humana".2 Essa idéia, entretan
to, foi questionada no início dos anos 80, denunciada como
uma visão ideológica que buscaria atribuir o prevalecimento na
primeira humanidade de instintos caçadores quando, na verda
de, os primeiros hominídeos, longe de serem orgulhosos caça
dores, não passariam de tímidos ladrões de carniça. Sem grandes
novas evidências mas com diferente interpretação dos indícios,
I Catherine P edes in Flandrin & M ontanari , História da alimentafão, São Paulo, Estação Liberdade, 1998, pp. 36- 53.
2 P edes menciona G. M endel, La Chasse Structurale ( 1977), como referência para essa hipótese teórica.
COMIDA E SOCIEDADE
47
foi proposta uma certa reabilitação dos primeiros hominídeos
como hábeis caçadores, mas cuja alimentação essencial, indica
da pelo tipo de usura dos dentes, seria ·vegetal. O Homo habilis,
nosso antepassado de mais de um milhão e meio de anos, é des
crito como um "onívoro oportunista" . A partir de um milhão
de anos atrás, quando o Homo erectus lhe sucede, uma alimentação
mais carnívora começaria a se impor. O domínio do fogo, há
cerca de meio milhão de anos, generalizou um hábito nutricio
nal diferenciado. Mas a caça em massa, de rebanhos inteiros de
renas, de bisões, de cavalos e de mamutes, só teria se tornado
factível ao fim do paleolítico, chamado "período da expansão
do homem sobre todo o planeta (em torno de 40 a 10 mil
anos)". O recuo das geleiras do período mesolítico teria trazido
a diversificação alimentar, preparando o que se chamou "revo
lução alimentar" do neolítico, com a domesticação das plantas e
dos animais.
As causas dessa transformação tão importante para a história
da humanidade - pois todas as grandes civilizações ocidentais
foram fundadas a partir dos alimentos domesticados no neolíti
co - são polêmicas, já que alguns autores se opõem à interpreta
ção da motivação econômica, identificando o surgimento do
domínio das plantas e dos animais num momento de auge da
economia de caça e coleta, mais como a expressão de uma muta
ção de ordem social e ideológica.
HENRIQUE CARNEIRO
48
Dentre as muitas perspectivas controversas de interpretação
do papel da caça na Pré-História, podemos citar outra crítica
questionadora do que foi chamado "ícone comum do carnivo
rismo humano primitivo" , ou seja, de uma passagem da coleta
para a caça como o salto essencial na evolução cultural da huma
nidade. Segundo esta teoria, a evidência arqueológica foi inter
pretada para sugerir que os grupos pré-Homo sapiens passaram da
coleta primária de alimentos para a caça entre cerca de dois a
quatro milhões de anos e que muitos dos maiores desenvolvi
mentos sociais, biológicos e técnicos pelos quais caracterizamos
as raças modernas, tais como a habilidade de fabricar instru
mentos e a divisão sexual do trabalho, também começaram a
surgir nesse mesmo período. 3 Tal interpretação é refutada por
certos antropólogos, segundo os quais, outras complexas desco
bertas culinárias e dietéticas - tais como a armazenagem, a moa
gem, o umedecimento e o cozimento das sementes - podem ter
sido, no mínimo, tão significativas na liberação humana das co
erções ambientais, capacitando a espécie para colonizar novos
hábitats e abrindo o caminho para a agricultura. Também seria
discutível que a divisão nas sociedades pré-históricas entre as
funções da caça e da coleta correspondesse à divisão de gênero
num padrão similar ao da atualidade. A atribuição da atividade
3 Nick Fiddes, Meat. A Natural 5ymbol, Londres, Routledge, 1996, pp. 55-56.
COMIDA E SOCIEDADE
49
da caça aos homens e a da cole ta às mulheres foi criticada como
uma " interpretação especulativa pró-masculina (male-biased)".4
Embora a história da alimentação na Pré-História seja a que
abrange a maior parte do tempo de existência da espécie huma
na, foi somente após a superação do longo período da cole ta e
da caça que surgiu a alimentação baseada na domesticação dos
animais e no cultivo agrícola, cujo domínio justamente funda
cada uma das civilizações, que se caracterizam por um aprovei
tamento específico dos recursos vegetais e animais do seu meio
ambiente, como, por exemplo, vales férteis irrigados por gran
des rios (Tigre, Eufrates, Nilo, Indo), que permitem um desen
volvimento agrícola.
4 I dem, pp. 60-6 1.
HENRIQUE CARNEIRO
50
COMER VEGET AIS: 0 SAL E OS TRES CEREAlS
BASICOS (TRIGO, ARROZ, MILHO)
o alimento basico da humanidade tern sido, des de 0 advento da
agricultura na revolw;:ao neoHtica, alguns graos que, domesticados,
passaram a ser cultivados. 0 grande historiador Frances Fernand
Braudel referiu-se as civiliza'roes que podem resumir-se ao domi-
nio de uma u.nica planta, como se poderia falar das civiliza'roes do
milho, do arroz ou do trigo. Sao tambem "plantas-civiliza'rao" as
que, como a vinha para os gregos, 0 cacau para os astecas, a coca
para os indios andinos e 0 cha para os chineses, constituem urn tipo
especial de alimenta'rao: as bebidas alc06licas, as drogas e as especia-
rias. 0 sal, por sua vez, e universal pois indispensavel para 0 consu-
mo humano (urn minimo de 6/8 gramas em media por dia por
pessoa, mais quando faz calor) e acompanha os cereais e as carnes
como necessidade organica, condimento e conservante.
Neste capitulo tratar-se-a das origens mais remotas da rela-
'rao da humanidade com os vegetais, cujo uso e domestica'rao
superaram uma fase meramente coletora para fundar a agricul-
tura com a chamada revolus:ao neolitica. Os principais graos, er-
vas e frutos serao identificados em sua hist6ria economica e cul-
tural na formas:ao de algumas grandes civilizas:oes. Inicialmente,
entretanto, e preciso referir-se ao sal.
o sal foi objeto de uma produs:ao localizada em algumas re-
gioes: por evaporas:ao natural nas costas dos litorais quentes (na
Europa, no maximo ate a Bretanha), por evaporas:ao da agua do
mar pelo calor do fogo, por extras:ao de jazidas subterraneas em
minas (na Austria e na Polonia, por exemplo) e por extras:ao de
superficies de salinas (em desertos especialrnente, no Saara, no
mar Morto, nos Estados Unidos, nos planaltos andinos etc.). 0
seu comercio e urn dos mais antigos, pois como genero de primei-
ra necessidade foi levado das regioes produtoras para todas as de-
mais (0 norte da Europa, particularmente, representou uma gran-
de demanda), a ponto de 0 sal ter cumprido 0 papel de moeda em
muitas regioes, com os atributos dos materiais de valor monetario
(homogeneidade, divisibilidade, conversibilidade, relativa escas-
sez, alto valor intrinseco ), tais como outros alimentos, por exem-
plo, 0 cacau. Do sal dado aos soldados no Imperio Romano, deri-
va 0 atual termo "salario", 0 controle estatal do comercio do sal
I Entre os historiadores que estudaram 0 sa!, podem ser citados Hocquet (1985),Bergier (1982) e MoUat (1968). 0 ultimo organizou, em Paris, em 1961. urn con-gresso internacional sobre 0 tcafico maritimo do sal desde 0 periodo medieval.
HENRI QUE CARNEIRO
52
de 0 tempo de Felipe, 0 Belo (1286), estabeleceu-se urn monop6-
lio espedfico sobre 0 sa!, chamado "gabela", que foi urn dos mais
odiados mecanismos fiscais de extorsao do povo. Na Frans:a, che-
gou a haver 25 mil cobradores da gabela no seculo XVII, e toda
produs:ao e comercio autonomo era punida severamente como
contrabando, havendo milhares de condenados por esse crime, a
ponto de ja ter sido afirmado que a gabela foi "uma das principais
causas da Revolus:ao Francesa".2 A dominas:ao briranica sobre a
India tambem impos urn monop6lio do sal, que foi alvo de uma
massiva campanha de Gandhi, em 1930, que desafiou a lei inglesa
liderando uma marcha ate 0 litoral para produzir sal. N as regioes
de floresta ou ausentes de comercio de sal utilizam-se cinzas de
certos vegetais como Fonte alternativa.
Mas se 0 sal e, juntamente com a agua, urn dos dois minerais
basicos de nossa alimentas:ao, a maior parte da comida da huma-
nidade foi tirada do reino vegetal. Dezoito plantas foram iden-
tificadas como a base de 75% a 80% da alimentas:ao total da
humanidade em todos os tempos e continentes.3 Entre elas,
nove saD cereais (trigo, arroz, milho, cevada, centeio, aveia, tri-
go-sarraceno, milha e sorgo); quatro saD tuberculos (batata,
2 Maguelonne Toussaint-Samar, Historia Natural y Moral de los Alimentos, Madrl, Alian-za, 1987, v. 6, p. 45.
3 Atlas des Cultures Vivriires, Benin, Hemardinquer, Keul e Randles, Paris/Haia, Mou-ton, 1971.
mandioca, batata-doce e inhame); tres sao arbustos (tamareira,
oliveira e vinha); e ha uma arvore (bananeira) e uma graminea
(cana-de-a'rucar). De todas estas plantas, oito foram domestica-
das na bacia mediterranica, quatro sao asiatic as (cana, bananei-
ra, arroz e trigo-sarraceno), quatro americanas (milho, batata,
batata-doce e mandioca) e duas africanas (sorgo e inhame). 0
Medite.rraneo foi, entretanto, 0 grande vetor da difusao de qua-
se todas elas.
Estudos economicos seriais mostraram exaustivamente a im-
porrancia dos fluxos comerciais que se desenvolveram no maior
dos mares interiores, embora, por vezes, com urn "rnediterraneo-
centrismo" demasiado voltado para a margem europeia. 0 que
nao resta duvida e que essa regiao serviu de pivo para uma integra-
'rao planetaria dramaticarnente conflituosa a partir do final do se-
culo XV. Sem discutir aqui certas afirma'roes parciais relativas a"superioridade" mediterranica, ate mesrno transcendental ("toda
a voca'rao universal supoe nascimento, ou entao transmissao me-
diterranica") ou a de que a China nao passou de urn centro secun-
dario, e preciso reconhecer a imporrancia da obra do historiador
frances Pierre Chaunu para a hist6ria da alimenta'rao.4
A expansao da humanidade deveu-se a capacidade de se obter
o maximo de alimentos no men or territ6rio possivel, 0 que foi
HENRIQUE CARNEIRO
54
designado como a "lei da dependencia do nivel de povoamento
para com 0 aparelho da prodw;:ao agricola", po is e a "aptidao
para produzir alimentos que proporciona 0 mapa das densida-
des" e "a desigualdade das rentabilidades e 0 mediador princi-
pal das desigualdades dos habitantes". A ocupac;:ao espacial dos
territ6rios estaria condicionada, portanto, a capacidade de se
produzir alimentos.
De todas as plantas cultivadas, a mais antiga foi 0 trigo (Triti-
cum vu~are), que, juntamente com a cevada, surgiu na Asia Me-
nor entre 6000 e 7000 a.c. Sua expansao pelo delta do Nilo, a
Mesopotamia e os planaltos iranianos, alem da India e da China
do norte (onde teria origem autonoma em torno de 3000 a.c.)
tornou-o 0 mais importante dos cereais. 0 comercio do trigo
foi 0 mais importante, em grande escala, de todos os comercios
anteriores a era industrial, mas mesmo assim 0 volume do seu
comercio nesse periodo nunca ultrapassou 1% da sua produc;:ao
total. Como ele se conserva por pouco tempo, as safras, se nao
fossem vendidas, deveriam ser consumidas rapidamente. Embo-
ra 0 pao branco tenha se tornado 0 alimento mais tipico da cul-
tura mediterranica, 0 trigo, tambem chamado frumento, nao era
produzido na sua margem europeia, dependente do Egito e da
Siria na epoca grega e romana e, mais tarde, da grande zona ce-
realifera da Europa central e do norte, especialmente a Ucrania
e a Polonia, cuja produc;:ao transportada a partir do Baltico fez a
COMIDA E SOCIEDADE
55
fortuna da Liga Hanseatica e abasteceu a Europa do suI durante
a epoca modema. N a Europa, H0 trigo representa, em geral, me-
tade da vida cotidiana dos homens".5 As oscilas:oes do nivel de
vida podem ser mensuradas paralelamente as flutuas:oes do pre-
s:o do trigo, cujo movimento comercial fazia-se do norte para 0
suI da Europa, caminho inverso ao tdfico do sal.
Algumas ervas daninhas que nasciam em meio aos trigais tor-
naram-se tambem plantas uteis e seu plantio associou-se ao do
trigo. E 0 caso da cevada, do centeio e da aveia. Os dois ultimos
surgiram nas regioes germanicas da Europa, mas s6 a partir do
seculo V, e por serem os cereais mais resistentes ao frio delinea-
ram a fronteira setentrional da expansao cereaHfera, sustentan-
do a expansao russa para 0 norte. A aveia e a cevada acompanha-
ram a crias:ao de cavalos, e 0 centeio, unico cereal panifidvel
alem do trigo, foi usado para produzir 0 pao preto, identificado
com os povos birbaros, n6rdicos e pobres. Por ser tambem a
base do uisque e da vodca, 0 centeio tornou-se 0 cereal mais im-
portante da identidade cultural alimentar da Europa do norte,
em oposis:ao ao complexo mediterranico do pao branco de trigo
candial, vinho e azeite de oliva. 0 consumo do pao branco, con-
tudo, caracterizou mais 0 modelo dietetico das elites, pois s6
entre 1750 e 1850 ele atingiu a mesa do povo, constrangido a
HENRI QUE CARNEIRO
56
consumir papas e paes de pobres, nao so com cereais menos no-
bres como 0 centeio, mas ate mesmo com ervas daninhas ou com
centeio contaminado de fungos toxicos.
o dominio dos cereais acompanhou-se de novos recursos
tecnicos para 0 seu preparo, dos quais os mais importantes fo-
ram os fornos e os moinhos de moagem. As gran des conquistas
tecnicas ligadas ao plantio do trigo foram 0 usa do arado e, a
partir de cerca de V a.c., 0 usa da atrelagem de animais. A maior
transformas:ao na produtividade do trigo foi a ados:ao da rota-
s:ao das culturas, com 0 arroteamento seguido de pousio bienal
ou trienal da terra, que ocorreu simultaneamente tanto na Euro-
pa como na China entre os seculos XI e XIII. Ainda assim, a
rentabilidade do trigo que era de ate quatro sementes obtidas
para cada uma plantada chegou, no maximo, a relas:ao de uma
para oito. As transformaS:6es tecnicas conquistadas com 0 usa
do arado e, mais tarde, com a charrua pes ada, dependeram das
realizas:6es tecnicas da siderurgia. T ais inovas:6es foram caracte-
rlsticas da civilizas:ao dos "barbaros", superiores ao Imperio
Romano tanto no usa do arado como na siderurgia e metalurgia
do ferro. A epoca medieval foi 0 momenta de incorporas:ao e
generalizas:ao destas melhorias tecnicas ao conjunto da cultura
ocidental.
o arroz (Oryza sativa), cuj a origem e mais recente (em torno
de 2000 a.c. na Indochina, com outro bers:o africano no vale do
COMIDA E SOCIEDADE
57
Niger ao redor de 1000 a.c.), era uma graminea de solo seco e
foi a ac;:aohuman a que adaptou-a artificialmente, apos 2.000
anos de cultivo, como uma planta se~i-aquatica. 0 arrozal
inundado foi uma imensa conquista, desenvolvida na China en-
tre 0 quinto e 0 primeiro seculos anteriores a era crista, e que per-
mitiu a ampliac;:ao da produc;:ao a ponto de transforma-lo na cul-
tura de mais alta rentabilidade por hectare ate a epoca moderna.
A partir do seculo XI, a selec;:ao da variedade do arroz precoce
permitiu a obtenc;:ao de duas colheitas anuais. 0 sistema de irri-
gac;:aoda rizicultura levou ao surgimento de urn complexo siste-
ma hidraulico, que por meio da adubac;:ao com excrementos hu-
manos e 0 usa de agua corrente e lodosa (que, ao contrario das
aguas claras, nao permite a proliferac;:ao dos mosquitos anofeles
transmissores de malaria e outras doenc;:as) conseguiu alcanc;:ar
indices de densidade demografica de ate 300 habitantes por
quilometro quadrado. Esse sistema hidraulico, "0 fato capital
da historia do homem no Extremo Oriente", 6 condicionou a na-
tureza centralizada do Estado na China, abriu urn canal fluvial
como principal via de comunicac;:ao entre 0 norte e 0 suI do pais
e fez do arroz 0 alimento mais importante da Asia, embora sua
difusao pelo resto do mundo tenha sido relativamente limitada
(ainda hoje em dia, 95% da produc;:ao mundial de arroz e do
HENRIQUE CARNEIRO
58
Extremo Oriente). No Japao, 0 arroz s6 chegou no primeiro se-
culo da era crista.
o terceiro cereal mais importante do mundo, a "planta de
civiliza'}:ao" por excelencia da America, e 0 milho (Zea mays)'
Plantado desde cerca de 3000 a 3500 a.c. nos planaltos mexi-
canos, alcan'}:ou 0 Peru 2.000 anos mais tarde, produzindo a
mais alta rentabilidade por semente (de uma semente plantada
obtinha-se 80 ou ate mesmo, em casos excepcionais, 800).
Apenas com 0 usa da enxada e com poucos dias de trabalho ao
ana (cere a de 50), 0 milho garantiu altas densidades popula-
cionais e dispensou urn imenso contingente de mao-de-obra
dos afazeres agricolas que foi empregado para as monumen-
tais obras arquitetonicas das civiliza'}:oes pre-colombianas
das Americas. Sua difusao mundial ap6s a conquista espa-
nhola tornou-o parte essencial da dieta europeia, atingindo a
ltilia em torno de 1600, onde incorporou-se na forma da po-
lenta a antiga tradi'}:ao das papas e mingaus de outros cereais
que haviam sido secundarizados pela panifica'}:ao do trigo e do
centeio.
Os outros antigos cereais, como 0 sorgo (de origem africana
alcan'}:ou a Asia), 0 trigo-sarraceno e 0 milha (ou milhete), per-
deram a impordncia na epoca moderna e tornaram-se alimentos
para galinhas, assim como a cevada e a aveia serviram aos cava-
los. A cevada germinada (0 malte) transformou-se na mate-
COMIDA E SOCIEDADE
59
ria-prima predileta para a fermentas:ao da cerveja, feita sempre
de dois graos que podem ser trigo, centeio, aveia ou cevada. 0
malte era fervido e misturado com levedura, deixava-se fermen-
tar e acrescentava-se urn caldo que podia conter papoulas, espe-
ciarias, cogumelos, madeiras aromaticas, mel, aplcar, manteiga,
migalhas de pao ete.
AIem do milho, outra planta americana que tornou-se impor-
tante na Europa foi a batata (Solanum tuberosum). De origem an-
dina (cerca de 2000 a.c.), antes da colonizas:ao restringia-se aAmerica do SuI nao sendo conhecida sequer no Mexico. Na se-
gunda metade do seculo XVIII a batata espalha-se pela Europa,
e, ajudada pelo fato de produzir uma safra contradclica a do tri-
go, chegou a tornar-se 0 alimento basico de paises como a Irlan-
da. Entre as centenas de variedades de batatas que a cultura ai-
mad do altiplano boliviano conhecia, algumas se aclimataram
no Velho Mundo difundindo uma parcela desse saber agrono-
mico. Charles l'Ecluse, importante boranico frances, descreveu
pela primeira vez esse tuberculo no seculo XVI, mas s6 muito
mais tarde, ja no inicio do seculo XIX, 0 frances Parmentier
conseguiu populariza-Io na Europa. Os indios aimaras sao os
agronomos e boranicos que mais desenvolveram a cultura e a ta-
xonomia desse genero de Solanum, ao qual pertencem todas as
batatas e as variedades cujo vocabuIario indigena distingue "ul-
trapassam 250, e certamente no passado foram mais numero-
HENRIQUE CARNEIRO
60
sas".7 Atualmente, existem classificadas na Bolivia mais de 700
variedades de batata. Diversas monografias especificas de cada
urn destes alimentos perseguiram 0 percurso da migra~ao vege-
tal provocada pelo descobrimento da America e de suas conse-
quencias na altera~ao da dieta europeia.
A mandioca (Manihot utilissima), com a mais alta rentabilidade
por hora de trabalho agrkola, foi a planta mais importante das
popula~6es litaraneas da America do SuI. Nas ilhas do Caribe
havia a cultura agrkola de mais alta rentabilidade em calorias
par hectare do mundo. A pratica do conuco, plantio em outeiros
de plantas rizomaticas como a mandioca e a batata-doce, permi-
tiu a ilha de Sao Domingos alimentar, antes da vinda dos euro-
peus, uma popula~ao de oito milh6es de habitantes, numa den-
sidade de 100 habitantes par quilometro quadrado.
A popula~ao americana alcan~ava urn total de cerca de 100
milh6es de habitantes na epoca da chegada de Colombo, manti-
das alimentadas basicamente pelo cultivo do milho, da batata,
da batata-doce e da mandioca. Ap6s meio seculo, a popula~ao
diminuira em cerca de 90%. A agricultura pre-colombiana in-
tensiva foi desarticulada e restaram cultivos dispersos e ataca-
dos pelo gada dos colonizadores.
Os colonizadores, que importavam grande parte de seu ali-
mento da Europa, tambem trouxeram outros generos que se
COMIDA E SOCIEDADE
61
adaptaram muito bem nas Americas, alguns orientais ou africa-
nos como a bananeira, a cana, 0 inhame, e outros europeus,
como algumas folhas e alguns legumes (couve, ab6bora, alface,
salsa, chic6ria, alho), alem da vinha, que foi plantada em diver-
sas regioes do Novo Mundo.
HENRIQUE CARNEIRO
62
COMER ANIMAlS:
CARNES, OVOS E LEITES
A agricultura produz de lOa 20 vezes mais alimentos do que
a cria~ao de gada numa superficie da mesma extensao. 0 pro-
gresso demografico resulta, portanto, de urn recurso acentuado
a alimenta~ao vegetal. Por essa razao, a exce~ao da Europa, pra-
ticamente todas as grandes civiliza~6es foram essencialmente
alimentadas por vegetais, com 0 consumo carnivora restringin-
do-se as elites.
As civiliza~6es orientais sao pouquissimo carnivoras. Os ja-
poneses sao icti6fagos ( comedores de peixe), mas nao tern por
hahito comer ovos nem latidnios, e consomem pouca carne,
praticamente nao haven do cria~ao de gada de corte. Os india-
nos sao totalmente vegetarianos, 0 gada s6 serve como tra~ao e
fornecedor de leite, cujos derivados sao muito importantes
como alimentos. Os chineses comem todas as carnes, mesmo as
que poucos povos aceitam, como a de des, por exemplo, mas
quase nao praticam a cria~ao extensiva, a nao ser a do porco e a
do bufalo para tras:ao, e repelem 0 consumo alimentar do leite e
dos laticinios. Como afirmou Arist6teles, "ha divers as especies
de alimentos, 'e esta diversidade introduziu varios generos de
vida, tanto entre os homens como entre os animais C... ) ha tantos
generos de vida quantas as operas:oes naturais para procurar ali-
mento". I
Os insetos, que compoem 0 cardapio de muitas sociedades
coletoras indigenas, onde representam iguarias, foram abando-
nados na maior parte das culturas agricolas. No Brasil, os cro-
nistas viajantes registraram muitos destes usos: Saint-Hilaire, 0
famoso naturalista Frances que viajou pelo Brasil na epoca do I
Imperio, achou 0 bicho da taquara de urn "sabor delicadissimo
que me lembrou 0 do creme"; a formiga, segundo Johan Nieu-
hof, ex-governador holandes do Ceilao que esteve em Pernam-
buco no seculo XVII, "constitui petisco muito apreciado pelos
negros" e, conforme Francis Castelnau, Frances que, em 1843,
viajou do Rio de Janeiro ate Lima, no Peru, "os habitantes de
Sao Paulo sao muito amigos deste petisco", e Oscar Canstatt,
historiador e ge6grafo alemao, constatou, em 1893, que "ate
mesmo os europeus comem-nas as vezes". Larvas de mosca e be-
souro, piolhos, termitas, entre outros insetos, fizeram parte dos
manjares indigenas, destacando 0 de comer 0 abdomen frito da
HENRI QUE CARNEIRO
64
feme a da formiga sauva, a tanajura ou is:a, quando alada e em es-
tado de procrias:ao, petisco apreciado nao so no Brasil como em
muitos outros paises. Entre as "iguarias de bugre", a is:a torrada
tornou-se a mais aceita e popular, ate mesmo nas cidades, onde
as revoadas destes insetos sao esperadas para serem capturados e
comidos fritos ou em espetos.2
A Europa valorizou extremamente a alimentas:ao carnivora e
promoveu a crias:ao de rebanhos caprinos, ovinos e bovinos.
Come-se carne para fazer a guerra. Aristoteles, no Tratado da polf-
tica, escreveu que" a guerra e tambem por si propria urn meio na-
tural de aquisis:ao; a cas:a faz parte dela; usa-se este meio nao so
contra os animais, mas contra os horn ens que tendo nascido
para obedecer recusam-se a faze-lo". A cap e, portanto, para
Aristoteles, uma guerra justa contra os animais. 0 atributo
guerreiro ligado ao consumo carnivoro remete as praticas vena-
torias, da cas:a, cuja tradis:ao e organizada com pompa pelas eli-
tes e com clandestinidade pelos pobres na busca dos recursos
florestais. Essa mentalidade e bem expressa por Rousseau, ao
afirmar no Emilio: "e certo que os grandes comedo res de carne
sao em geral mais crueis e ferozes do que os outros homens", e
ao apoiar-se numa citas:ao de Plutarco (de inspiras:ao pitagori-
2 Abguar Bastos, A pantofagia ou as estranhas praticas alimentares na selva, Sao Paulo/Brasi-lia, Ed. Nacional/1NL. 1987; e Sergio Buarque de Holanda, Caminhos efronteiras, SaoPaulo, Companhia das Letras, 1994, p. 56.
COMIDA E SOCIEDADE
65
ca) para comparar os comedores de carne com os esquartejado-
res de cadaveres.
A forma de apresenta~ao dos animals para serem comidos,
ate 0 seculo XVI, era inteirip, mas disfar~ou-se, entretanto, na
epoca moderna, quando 0 aspecto corporeo da comida passou a
ser escondido, picado em meio a molhos espessos. Da omofagia
(comer carne crua) ate a prepara~ao cuidadosa no fogo defi-
niu-se urn trajeto que foi 0 mesmo da funda~ao da cultura. A
subsistencia nos rituais de sacrificio da, omofagia expressaria a
recorrencia de urn modo arcaico de consumo da carne.
A rela~ao com os animais domesticados marcou a constitui~ao
das primeiras civiliza~6es. Nao so como alimento, trans porte,
tra~ao, decora~ao, ca~a e companhia, mas como encarna~6es do
sagrado, simbolos totemicos, personifica~6es dos deuses, os ani-
mais incitam gulas, tabus e complex as regulamenta~6es rituais.
Os principais animais usados como alimento, tra~ao e mon-
taria, 0 papel da domestica~ao dos diferentes tipos de rebanhos
em distintas epocas e continentes condicionaram muitas das ca-
racteristicas das culturas planetirias.
o cao foi 0 primeiro animal domesticado, contempodneo da
revolu~ao neolitica, e serviu de auxiliar da ca~a e.do pastoreio. 0
boi foi domesticado na Mesopotamia: (cerca de 4500 a.C.), no
Egito e em cidades lacustres da Sui~a (cerca de 4000 a.c.). 0
carneiro apareceu na Mesopotamia e nos planaltos iranianos
HENRIQUE CARNEIRO
66
(cerca de 3000 a.c.), e a cabra, urn milenio mais tarde. 0 dro-
medario no Egito (3000 a.c.) e 0 cavalo no Oriente Medio e
Europa (cerca de 3000 a.c.), tornaram-se os principais meios
de trans porte terrestre da humanidade (Chaunu, 1976:232).
Nas Americas havia urn numero muito inferior de animais do-
mesticados, apenas os camelidos americanos (lhama, alpaca, vi-
cunha), mais us ados para tr~nsporte e la do que como carne e,
entre os passaros comesrlveis de medio porte, 0 peru. Nenhum.grande animal de tras:ao nem gada de corte.
A grande revolus:ao na conservas:ao das carnes ocorreu no fi-
nal do seculo XV, quando ampliaram-se os metodos de salga
para abastecer as tripulas:6es em alto-mar e para transportar
grandes quantidades de peixe. A pesca em grande escala, desde
essa epoca, atingiu os bancos de bacalhau na Terra Nova, on de
uma corrida maritima europeia lans:ou bascos, portugueses, ho-
landeses, ingleses e franceses na cas:a aos grandes cardumes, dos
quais uma parte era salgada a bordo e embarricada, 0 "bacalhau
verde", e a outra, secada na costa da Terra Nova para 0 trans-
porte. No seculo XVIII, 60% da tone1agem da frota francesa e
constituida de bacalhau. As baleias tedo imporrancia maior
para a industria de 6leo e sabao, mas divers os outros tipos de
peixes, como sardinhas ou atuns, sedo obtidos na expansao da
pesca simulranea a expansao da navegas:ao moderna. Na Europa
cat6lica praticavam-se 166 dias de jejum religioso de abstens:ao
COMIDA E SOCIEDADE
67
de carne e ovos, entre os quais 40 dias extremamente rigorosos
durante a Quaresma, por isso 0 comercio do peixe fresco, seco e
salgado, tanto de mares como de rios, er~ fundamental. As car-
pas e os salm6es do Volga, 0 caviar russo do esturjao, 0 atum do
B6sforo, as lulas e os polvos secos da Grecia e 0 arenque do Bal-
tico, embarricado por holandeses, foram levados a suprir as ne-
cessidades de proteina e a condimentas:ao da alimentas:ao dema-
siado insipida.
A ras:ao de carne na Europa diminuiu entre 1550 e 1850.
Estudiosos alemaes concordam que 0 consumo de carne teria
decrescido significativamente da epoca medieval para 0 periodo
moderno, somente voltando a crescer ap6s 0 seculo XIX, a pon-
to de proporem 0 termo de "depecoration" (pecore, em frances, sig-
nifica animal) para a epoca moderna. Mesmo os criticos de cer-
tos aspectos dessa hip6tese admitem ser sem contestas:ao a exis-
ten cia de urn fraco consumo de carne nos tempos modernos,
embora considerem menos segura a afirmas:ao da existencia de
urn forte consumo medievaL3
o cerro e que a grande revolus:ao no abastecimento de carne
ocorreu no final do seculo XIX com a invens:ao dos navios fri-
3 As polemicas na historiografia do consumo de carne sac inumeras. Entre muitasobras e debates, podem ser citados do is congress os imernacionais dedicados a Histo-ria e aos animais: Histoire et AI/imal, co16quio de Toulouse, 14- I 6 de maio de 1987, eL'Animal dans l'Antiquiti Romaine, co16quio de Names, maio-junho de 199 I, aJem do ar-tigo "Theorie ou hypothese de travail?", de Robert Mandrou, Annales ESe., n2 16,196I, pp. 965-971.
HENRIQUE CARNEIRO
68
gorificos e da conservac;:ao da carne em lata. 0 charque sul-ame-
ricano ja representava importante fluxo comercial, abastecendo
o sertao e 0 Nordeste do Brasil. Alguns paises, como a Argenti-
na, ou regioes como 0 SuI do Brasil especializaram-se na produ-
c;:aoindustrial de carne para a Europa e para os Estados Unidos,
onde a produc;:ao local tornou os matadouros de Chicago 0
maior centro de abatimento e corte de carne do mundo.
Mas se houve urn predominio carnivoro na alimentac;:ao das
elites, tipico do Ocidente e exacerbado nos paises e nas regioes
acima mencionadas, a maior contribuic;:ao alimenticia dos ani-
mais foi pelo fornecimento de leite de alguns mamiferos, cujos
derivados (manteiga, queijos, iogurte) tornaram-se a maior fon-
te de proteinas para muitas populac;:oes, alem de ovos de aves,
repteis e peixes. As formas de se conservar e se transportar 0 lei-
te de diversos animais (cabra, ovelha, vaca, egua ete.) evoluiram
nas tecnicas dos queijos. Somente em 1867, com a invenc;:ao do
processo de transformac;:ao do leite em po, pelo suic;:o Henri
Nestle, tornou-se possivel a estocagem e reconstituic;:ao do leite,
aIem do enriquecimento da formula do chocolate. Ovos de pei-
xe, como 0 caviar, ou mais comumente de aves galinaceas foram
menos significativos na dieta moderna e so apos a era industrial
seu consumo cresceu bastante.
Nem todos os animais foram us ados para fins alimenticios,
no entanto, e nao apenas por predilec;:ao gustativa. As restric;:oes
COMIDA E SOCIEDADE
69
ao consumo de determinados animais au produtos animais de-
senvolveram-se conforme complex as regras e ritualizac;:6es em
distintas culturas. As proibic;:6es mais co~hecidas sao as judai-
cas, islamicas e indianas.
o nascimento de uma sensibilidade em relac;:ao aos animais,
assim como a atitude de condenar-se a seu consumo par moti-
vas marais au de simpatia au solidariedade interespecies, e mui-
to recente e data apenas a partir do seculo XIX em certos paises
europeus. As raizes indianas e pitag6ricas do vegetarianismo sao
ligadas a noc;:6es de pureza e contaminac;:ao, e nao tern corres-
pondencia com a visao romantica oitocentista de uma Ii amiza-
de" com as animais. 0 vegetarianismo, recusa a toda alimenta-
c;:aocarnivora (incluindo em sua versao radical todos as deriva-
dos de anima is como leite e avos), tern sua origem na tradic;:ao
filos6fica indiana, que chega ao Ocidente na doutrina pitag6ri-
ca. Tal tradic;:ao iri igualar todo consumo carnivora a urn ato ca-
nibal e recusari a ingestao de cadaveres. 0 vegetarianismo ideo-
l6gico, vinculado as crenc;:as reencarnacionistas da metempsico-
se oriental, au seja, da ideia de que as almas human as transitam
entre diferentes corp as, incluindo as de animais, nao se impori,
contudo, ao Ocidente cristao, sendo apenas no periodo contem-
podneo que a seu proselitismo conquistari adeptos. A ultima
grande corrente religiosa ocidental a propugnar pelo vegetaria-
nismo foi a heresia catara, que a Inquisic;:ao destruiu ap6s uma
HENRIQUE CARNEIRO
70
grande campanha no inicio do secuIo XIII contra os adeptos
desta seita crista que refugiaram-se no suI da Franc;:a, especial-
mente na regiao montanhesa dos Pirineus ao redor da cidade
murada de Carcassone. 0 consumo de carne constituiu no Oci-
dente urn modelo de virilidade, associado nao so a cac;:acomo
atributo tipicamente masculino, mas tambem a uma noc;:ao de
que 0 homem necessita alimentos adequados a sua func;:aoguer-
reira e belicosa.
Nos Estados Unidos, urn movimento de reforma alimentar
de inspirac;:ao religiosa, especialmente dos Adventistas do Seti-
mo Dia, propugnou por uma recusa a toda forma de tentac;:ao
alimentar, tanto de carne como de alcoo!, tabaco e ate mesmo
especiarias. As correntes asceticas encontravam uma identidade
entre 0 vegetarianismo e a castidade, ambos opondo-se a sedu-
c;:aoda carne. 0 reverendo W.S. Graham, a partir de I 830, foi 0
grande apostolo vegetariano dessas seitas protestantes.
o vegetarianismo aparentemente tern crescido nas socieda-
des ocidentais apos a onda contracultural dos anos 60. Algumas
pesquisas indicam urn percentual de 6,7% dos norte-america-
nos que se declaram vegetarianos. Mas os que de fato praticam
uma dieta isenta de carne, ovos ou leite de qualquer tipo, os cha-
mados vegans, sao ~ma parte muito pequena; a tendencia maior e
a urn abandono das carnes vermelhas ou de urn ovolacteovegeta-
COMIDA E SOCIEDADE
71
A literatura moderna e contemporanea captou de forma mui-
to sensive1 as questoes eticas e os dilemas morais ligados ao uso
dos animais como alimento. 0 escritor sul-africano J.M. Coet-
zee, no livro A vida dos animais (2002), apresenta um interessante
debate sobre as justificativas mora is do tratamento dado aos
animais pe10s homens. Sua personagem principal compara as
atrocidades nazistas com a crias:ao de animais para abate, afir-
mando que as med.foras que comparam os nazistas com as:ou-
gueiros e os judeus com 0 gada devem ser invertidas para nos
darmos conta de que tratamos os animais como prisioneiros de
um campo de concentras:ao e exterminio. 0 incomodo moral
dos habitos civilizados em re1as:ao a morte por fome ja havia
sido tematizado, no inicio do seculo XVIII, por Jonathan
Swift, em seu A Modest Proposal, onde satirizava a forma como a
fome dos pobres era encarada pe10 Estado e propunha que os
bebes fossem transformados em alimento. Em Viagens de Gulliver
(1726) e1eretratou as inquietas:oes referentes a alimentas:ao car-
nivora, onde os seres imaginarios Yahoos e Houyhnhnms repre-
sentavam dois p6los extremos: comer carne crua, brutalidade e
mau-cheiro dos primeiros versus comer capim fresco, delicade-
za e aromas agradaveis dos ultimos. Gulliver, confrontado com
a ops:ao de escolher seu modo de vida preferido, acaba por optar
pelo leite das vacas, abdicando tanto do herbivorismo exc1usivo
como do carnivorismo estrito. Tal ops:ao parece me1hor expres-
HENRIQUE CARNEIRO
72
sar as dilemas humanos diante da necessidade alimentar e dos
prindpios eticos relativos as demais especies vivas do planeta,
como uma atitude intermediaria entre as extremos vegetarianos
dos jainistas da India, que se alimentam apenas de frutas, e as
dietas exclusivamente animais de povos cac;adores como as
inuits (esquim6s).
COMIDA E SOCIEDADE
73
As ESPECIARIAS, AS N A VEGA<;:OES
E A MUNDIALIZA<;:AO DA ALIMENT A<;:AO
A maior revolus:ao na alimentas:ao humana ocorreu no perio-
do moderno com a ruptura no isolamento continental, quando
o intercambio de produtos de diferentes continentes, ocorrido
no bojo da expansao colonial europeia, alterou radicalmente a
dieta de praticamente todos os povos do mundo. As especiarias
asiaticas - pimenta, canela, cravo, noz-moscada -, difundi-
ram-se para a Europa e chegaram aos outros continentes. As
plantas alimenticias das Americas: 0 milho, a batata, 0 tomate, 0
amendoim, os piment5es propagaram-se pelo planeta. Generos
tropicais, como a cana-de-as:ucar, 0 cha, 0 cafe e 0 chocolate,
combinaram-se para fornecer urn novo padrao de consumo de
calorias e de bebidas excitantes, que, ao lado do tabaco, torna-
ram-se habitos internacionais. Produtos tipicos da Europa me-
diterranica como 0 trigo e a uva acompanharam a colonizas:ao
de divers os paises e 0 alcool destilado penetrou em todos os
continentes. As viagens dos alimentos pela hist6ria, seu periplo
transoceanico na epoca das navegas:oes e 0 seu imp acto na cons-
tituis:ao da era moderna, com migras:oes e mestis:agens nunca
antes conhecidas, delinearao 0 percurso' deste capitulo.
Os impactos sobre os padroes alimentares foram sentidos de
forma diferenciada mas com intensidade analoga na Europa e na
America, A chegada, por meio da Europa, de alguns generos de
origem asiatica na America (cana-de-aplcar e algodao) e 0 seu
cultivo em grande escala resultaram no estabeleciment6' da mo-
nocultura de agroexportas:ao que submeteu seus povos aos inte-
resses dos grandes grupos economicos internacionais, destruin-
do estruturas agrarias tradicionais (como a posse comunal da
terra), corroendo a agricultura de subsistencia e condicionan-
do-os aos pres:os e demandas do mercado mundial.
o trafico comercial interoceanico que inaugurou-se no pe-
dodo moderno produziu a acumulas:ao primitiva do capital, al-
terando profundamente a vida social de todo 0 mundo. A cultu-
ra arabe ja vinha transmitindo lentamente, desde a Baixa Idade
Media, divers os produtos asiaticos para a alimentas:ao europeia,
desde as especiarias ate produtos tao basicos como 0 arroz, 0
sorgo, 0 algodao, as frutas citricas, as mangas, a cana-de-as:ucar
e a berinjela. A expansao do Isla levou tais alimentos para a Eu-
ropa, as Cruzadas ajudaram a sua difusao e 0 luxo da nobreza in-
corporou-os como parte de sua opulencia. No momenta em que
essa alimentas:ao deixou de ser urn luxuoso privilegio e comes:ou
HENRIQUE CARNEIRO
76,
a expandir-se para divers as camadas sociais surgiu 0 primeiro
mercado mundial, sob a egide sucessiva das especiarias, do ac;u-
car e das bebidas quentes (chocolate, cM e cafe).
o comercio dos novos generos foi 0 motor do surgimento de
novas formac;oes socioeconomicas, como foi 0 caso do sistema
de plantations na America e, ao mesmo tempo, da expansao, num
grau nunca antes conhecido, do trafico de seres humanos. Os
capitais criados nesse trafico triplo - produtos asiaticos para a
Europa, escravos africanos para a America, produtos america-
nos para a Europa e ·Africa - alavancaram as transformac;oes no
sistema de produc;ao artesanal na Europa. Reuniram-se, entao,
as condic;oes: a demanda, 0 produto ( algodao ) e 0 capital, para 0
surglmento da industria textil que deflagrou a Revoluc;ao
Industrial.
A pimenta moveu as naus dos descobridores e 0 ac;ucar produ-
ziu a escravidao africana, deslocando massas human as entre con-
tinentes, a ponto de urn historiador afirmar que "0 ac;ucar - ou
melhor, 0 grande mercado de commodities que 0 demandou - foi
uma das massivas forc;as demograficas na hist6ria mundial". I
Urn exemplo intrigante da influencia decisiva da alimentac;ao
na hist6ria politica e economica e a avidez pelas especiarias, a
cuja motivac;ao foram atribuidas diferentes origens. As especia-
I Sidney Mintz. Sweetness and Power. The Place oj Sugar in Modern History. Nova York,Penguin Books, 1986, p. 71.
COMIDA E SOCIEDADE
77
rias sao alimentos/ drogas, subsrancias de consumo gustativo,
mas tambem medicinal e afrodisiaco. Foram atribuidas origens
miticas paradisiacas para essas subsranc(as, que viriam do pr6-
prio Jardim do Eden, carregadas pelos quatro rios que nele nas-
cern, e que corporificariam as virtudes solares das regioes quen-
tes e desconhecidas do Oriente.
A epoca moderna deve alguns dos seus elementos fundadores
essenciais a ansia pelas especiarias, que levou ao ciclo das navega-
'roes, aos grandes descobrimentos, ao sistema mundial, ao comer-
cio transoceanico e a forma'rao dos modernos imperios europeus.
o primeiro destes imperios comerciais foi Portugal, chamado
Imperio da Pimenta. Tendo descoberto primeiro as remotas ilhas
Molucas, na Indonesia, unico lugar onde nasciam algumas das es-
peciarias (0 cravo e a noz-moscada), os portugueses mantiveram
urn virtual monop6lio do seu comercio ate serem expulsos pelos
holandeses que, por sua vez, foram derrotados pelos ingleses.
Desde 0 Imperio Romano a avidez pelas especiarias era gran-
de. 0 termo "pimenta" originou-se do latim pigmenta, que tinha
significado de pigmento. Mais tarde passou a referir-se ao vinho
enriquecido na cor e no aroma com especiarias e, por extensao, a
qualquer especiaria. Entre os espanh6is, usou-se 0 termo para as
plantas americanas do genero Capsicum, tanto 0 tipo doce ou pi-
mentao, como 0 tipo picante, as divers as pimentas. A pimen-
ta-do-reino (Piper nigrum), originada da India, tern seu nome na
HENRIQUE CARNEIRO
78
maior parte das linguas europeias, a exces:ao do portugues e do
espanhol, derivado do termo sanscrito pippa/i.
Esta necessidade de especiarias foi explicada como sendo ne-
cessaria para disfars:ar a ma qualidade da carne, mas Fernand
Braudel vai mais fundo, quando refere-se aos "psiquismos olfa-
tivos", a uma ansia por sabores e aromas fortes e misturados, va-
lorizados por orientas:6es medicas que atribufam-Ihes qualida-
des adequadas aos humores, especialmente de serem afrodisia-
cos, estimulantes e infusores de calor. Essa volupia pelos condi-
mentos almiscarados, ambreados, edulcorados e apimentados,
origin aria da epoca classica e intensificada a partir da Baixa Ida-
de Media, esgotou-se na Europa do suI em meados do seculo
XVII, quando houve urn retorno dos perfumes florais e da ali-
mentas:ao menos temperada. Nas regi6es n6rdicas permaneceu
mais tempo 0 uso intenso de certos condimentos, 0 cominho em
particular. Nos mundos americano, asiatico e africano 0 gosto
dos picantes intensos espalhou-se por divers as culinarias.
As tradicionais plantas aromaticas europeias - as:afrao, tomi-
lho, manjerona, louro, segurelha, anis, coentro e alho -, usadas
desde a Grecia e Roma, juntaram-se com as especiarias asiaticas:
pimenta-do-reino, canela, cravo, noz-moscada, cardamomo e
gengibre, e com as pimentas americanas e africanas, especial-
mente as Capsicum, para constitufrem e difundirem urn arsenal
mundial dos estimulantes do gosto.
COMIDA E SOCIEDADE
79
Essa busca de especiarias, levando a descoberta da America,
provocou indiretamente outra revolus:ao nos habitos alimenta-
res mundiais, colocando em contato especies que nunca antes ti-
nham sido transplantadas. Os contatos e as influencias foram
feitos em divers os sentidos: a batata, 0 milho, 0 tomate, 0 amen-
doim, 0 pimentao, 0 feijao e 0 cacau das Americas difundem-se
pelo mundo, junto com 0 chi da China, 0 cafe da Etiopia, a ca-
nela do Ceilao, 0 cravo das Molucas, a pimenta do Malabar e a
noz-moscada de Banda, enquanto produtos da dieta europeia
como 0 trigo, 0 vinho e 0 alcool destilado tambem espalham-se
de sua area original para uma difusao mundial.
Cada urn dos produtos de origem americana teve uma histo-
ria espedfica na sua expansao para fora do continente de ori-
gem. Muitos dos pratos considerados mais tipicamente "regio-
nais" de varias culinarias europeias so surgiram apos a chegada
dos generos americanos - pensemos nas massas italianas, por
exemplo: 0 que seria do espaguete sem 0 tomate? Ou da polenta
sem 0 milho? Alguns, como os piment6es, vieram a influenciar
culinarias tao distantes como a africana, a do sudeste asiatico e a
hungara, onde, moido, tornou-se ~ condimento mais caracteris-
tico do pais: a paprica do gulash. 0 tomate, do termo asteca jito-
mate, foi considerado inicialmente urn veneno, que so podia ser
consumido apos horas de cozimento. Mais tarde, valorizado
por italianos e franceses recebeu 0 nome de pomodoro (mas:a dou-
HENRIQUE CARNEIRO
80
rada) e de pomme d' amour (mac;:a do amor) passando a ser consi-
derado afrodisiaco. A batata, 0 milho, 0 feijao e, entre os animais,
o caso singular do peru (seu nome em ingles, turkey, evidencia a
via otomana pe1a qual esta aye de origem sul-americana chegou
a Europa e depois aos Estados Unidos), foram sendo adotados
lentamente, e so no seculo XIX incorporaram-se definitivamen-
te a alimentac;:ao europeia e de grande parte do mundo.
Revoluc;:ao seme1hante somente ocorrera antes quando, em
meados do ana IOOO, os arabes comec;:aram a fazer uma lenta di-
fusao de uma serie de produtos que a Europa ate entao nao co-
nhecia, como 0 ac;:ucar, a laranja e as proprias especiarias asiati-
cas, ate entao seu monopolio comercial. T ais produtos de luxo,
naque1a epoca, mantiveram-se, entretanto, restritos a nobreza.
Na historia da alimentac;:ao moderna assume grande impor-
rancia a expansao no consumo de diversos produtos de luxo,
dos quais 0 principal, entre as especiarias no seculo XVI, foi a
pimenta. A principal mercadoria do comercio oriental levou
Vasco da Gama a circunavegar 0 cabo da Boa Esperanc;:a, em
I498, obtendo 0 monopolio para os portugueses e, duas deca-
das depois, bus cando urn caminho ocidental para as ilhas das es-
peciarias (as Molucas, na Indonesia) que rompesse a exclusivi-
dade lusitana, Fernando de Magalhaes realizou a primeira volta
ao mundo. Apos I650, a pimenta perde imporrancia, mas con-
tinua presente, especialmente na Europa do norte.
COMIDA E SOCIEDADE
81
Os holandeses, ao a~ambarcarem 0 trafico internacional das
especiarias desbancando OS portugueses, tornaram Amsterda 0
principal entreposto de distribui~ao europeia do trafico das
Indias. Para isso, eles dedicaram-se a uma sistematica atividade
de exterminio das plantas produtoras de especiarias em todos os
lugares, a exce~ao de certas ilhas onde especializaram 0 seu cul-
tivo. As arvores de noz-moscada foram restritas a ilha Amboi-
no, sob pena de morte para quem contrabandeasse sement.es, as
de cravo, a ilha de Banda, e as de canela, ao Ceilao. 0 Frances Pi-
erre Poivre foi urn dos que conseguiu, no seculo XVIII, subtrair
sementes de moscadeiros para a ilha Mauricio, possessao fran-
cesa no Indico, rompendo 0 monop6lio holandes, atacado tam-
bem pelos ingleses, que tomam 0 Ceilao em 1796.
Se a busca das especiarias impulsionou as grandes descobertas
maritimas e a ado~ao do a~ucar levou a escravidao africana, os de-
sequilibrios provocados pelas crises alimentares do seculo XVIII
deflagraram as revoltas que culminaram na Revolu~ao Francesa
em 1789, quando os pobres se indignavam com 0 uso da mais
pura farinha de trigo para empoar as perucas da nobreza ao mes-
mo tempo em que a plebe passava por priva~ao de pao. Da mesma
forma, quase urn seculo e meio mais tarde, a Revolu~ao Russa de
fevereiro de 19 17 sera desencadeada sob a consigna de "pao, paz
e terra". A alimenta~ao ocupa, como urn ator invisivel, 0 cenario
dos gran des processos constitutivos da modernidade.
HENRI QUE CARNEIRO
82
Em outro ambito, mais imperceptivel, dos habitos e costu-
mes, a alimentas:ao tambem participa dessa revolus:ao silenciosa
que constitui 0 que foi chamado "processo civilizat6rio", no
qual as maneiras a mesa ocupam tao destacado pape1.2 0 uso do
garfo, a ados:ao do guardanapo, 0 prato como a base sob a qual
se come substituindo urn pao redondo e chato sao todos aspec-
tos desses novos costumes, assim como 0 uso de cadeiras e da
mesa, que no Oriente e no mundo arabe nao conseguiu substi-
tuir 0 uso de comer ao nivel do solo.
Os produtos e as maneiras ocidentais a mesa se espalham por
meio das comunidades europeias que se estabelecem em diver-
sos pontos da Africa, da Asia e da America. Essa difusao e de
mao dupla, tornando-se uma fusao com os produtos e costumes
locais. A mestipgem e mais completa nas Americas, onde os
tres componentes etnicos - europeu, indigena e africano - fo-
ram amalgamados. 0 bers:o e cadinho primordial dessa fusao
foi 0 Caribe e 0 vetor desse processo e a atividade de flibusteiros
e bucaneiros que, antes de se tornarem os piratas oficiais a servi-
S:O da Inglaterra e Frans:a para desafiarem 0 monop6lio iberico
das Indias ocidentais, eram marginais europeus vivendo a moda
indigena, em cuja escola culinaria aprenderam as tecnicas e ado-
taram os produtos. 0 pr6prio termo boucan significa 0 metodo
COMIDA E SOCIEDADE
83
de defuma~ao da carne com lenha verde (semelhante ao mo-
quem dos indios litoraneos do Brasil), assim como barbecue
(churrasco ) vem das ilhas de Barbacoa.
o papel destacado dos bucaneiros na circula~ao de produtos,
especialmente pelo espas:o caraiba (mas chegando ate 0 Indico e
o Pacifico), levou a difusao de muitos produtos americanos
pelo mundo e, particularmente, na Africa, das pimentas Capsi-
cum, que passaram a ser conhecidas como Guinea pepper. 0 amen-
doim, com origem nas Antilhas, chamado cacau da terra, tlal-ca-
cakuatl, pelos astecas, e de "pistache das ilhas" pelos europeus,
tambem tornou-se urn genero dpico na Africa ocidental, de
onde chegou ao Brasil colonial com os escravos e incorporou-se
a cozinha baiana, por exemplo, no vatapa.
T ais agentes da mestis:agem, piratas ou navegadores, missio-
narios ou escravos, cumpriram 0 papel de difusores de produtos
e de habitos globais, realizando a primeira fusao planetaria de
todos os continentes. Os barcos de Vasco da Gama e de Fernan-
do de Magalhaes abriram uma era de unificas:ao global, de "de-
sencravamento planetario". Pela primeira vez todos os povos da
Terra entravam em contato abrindo urn intercambio generaliza-
do dos generos de todos os continentes.
AIem dos metais preciosos, especialmente 0 aura e a prata
das Americas, os alimentos foram as principais mercadorias do
mercado intercontinental. Alimentos indispensaveis e triviais
HENRIQUE CARNEIRO
84
como 0 tngo, no comercio mediterranico e norte-europeu, e
exoticos luxos, como as especiarias do Oriente e, mais tarde, 0
as:ucar da America, inicialmente foram consumos suntuarios e
superfluos das elites aristocraticas e, depois, tornaram-se neces-
sidades alimentares de massas e urn dos motores mais importan-
tes do comercio mundiaL
COMIDA E SOCIEDADE
85
ALIMENT AyAO MODERN A:
Ay6cAR, ALCOOL, CHA, CAFE E CHOCOLATE
Os principais luxos alimentares da epoca moderna possuiam
anteriormente urn estatuto de medicamentos. Era 0 caso do as:u-
car, assim como das bebidas associadas ao seu consumo, como 0
cafe, 0 chi e 0 chocolate, nos periodos iniciais da sua difusao
pela Europa.
o as:ucar, trazido pelos irabes da India, era usado des de a
Idade Media na Europa, mas em quantidades minusculas nos
pratos ou como remedio para divers as afecs:oes. Os xaropes
eram 0 velculo as:ucarado de divers os medicamentos, a ponto de
o termo "triaca", que se referia a uma panadia muito popular na
Europa medieval e renascentista, passar a referir-se, na lingua
inglesa, ao melas:o de cana, que passou a substituir 0 as:ucar
como 0 excipiente preferido para os elixires curativos.
o genero alimenticio cuja amplias:ao do consumo mais influiu
na alteras:ao dos hibitos alimentares foi justamente 0 as:ucar,
nao s6 ados:ando as bebidas coloniais que nunca haviam sido
nos seus paises de origem (os chineses consideravam os euro-
peus barbaros por adoprem 0 chi e os povos irabes condimen-
tavam 0 cafe com cravos, canela ou cardamomo, mas nunca 0
ados:avam), como estendendo sua utilizas:ao para quase todos os
tipos de alimentos, inclusive nas carnes e em outros pratos sal-
gados. Os glaces, coberturas solidificadas a base de as:ucar dis-
solvido em manteiga, claras batidas ou caldas de frutas, cobriam
nao apenas as frutas cristalizadas e os bolos como tambem as
carnes, especialmente de cas:a, servidas inteiras num revestimen-
to edulcorado. As esculturas de as:ucar copiavam monumentos
de arquiteturas complexas e filigranas delicadas numa fusao en-
tre 0 alimento e 0 ornamento.
o advento do as:ucar refinado na dieta ocidental substituin-
do 0 uso milenar do mel como adopnte foi talvez 0 mais imp or-
tante fenomeno alimentar da hist6ria moderna, nao apenas pelo
seu significado nas alteras:oes dieteticas, mas por suas profundas
repercussoes economicas e sociais. A escravidao africana, 0 sis-
tema das grandes plantas:oes americanas e 0 mercado consumi-
dor crescente para 0 as:ucar moldaram as relas:oes internacionais
forjando 0 antigo sistema colonial como urn fluxo comercial
tendo como base a sacarose, urn sistema que ji foi chamado "sa-
carocracia". 0 seu comercio foi 0 principal da epoca colonial e,
ap6s 1660, a importas:ao de as:ucar da Inglaterra sempre exce-
deu todas as importas:oes dos outros produtos coloniais jun-
HENRIQUE CARNEIRO
88
tos. I Milh6es de africanos foram escravizados para trabalhar
nas planta<;:6es de cana e nos engenhos de a<;:ucardo Novo Mun-
do. Entre os escravos das plantations na America, as unicas ativi-
dades exercidas fora do eito eram as de produ<;:ao, trans porte e
preparo da alimenta<;:ao, 0 que of ere cia uma via de re1ativa auto-
nomia escrava nessas tarefas e, por conseguinte, e1es s6 aprende-
ram a saborear a liberdade na cozinha, onde escapavam do tra-
balho mais pesado da planta<;:ao e podiam ate mesmo influir na
culinaria.2
A chegada do a<;:ucar pode ser explicada, entre outros moti-
vos, pe10 barateamento do seu custo devido a amplia<;:ao da pro-
du<;:aonas plantations do Brasil e do Caribe. Mas, se como" e mais
ficil adquirir novos habitos a perder os antigos", a simples am-
plia<;:aodo fornecimento de a<;:ucarnao e suficiente para se inter-
pretar 0 declinio no uso do me1. Urn dos fatores que teriam co-
laborado para esse declinio, no caso espedfico da Inglaterra, foi
o fechamento dos mosteiros na Inglaterra ap6s a reforma angli-
cana de Henrique VIII, 0 que teria levado a diminui<;:ao na de-
manda par cera para as ve1as usadas pe10 clero regular e, portan-
to, a uma queda na produ<;:ao me1ifera. De todos as "alimen-
tos-drogas", a a<;:ucarfoi a unico que escapou de qualquer pros-
COMIDA E SOCIEDADE
89
cris:ao religiosa e 0 seu uso foi admitido por Tomas de Aquino
ate mesmo durante os periodos de jejum.
o fator decisivo, entretanto, para que as pautas da alimentas:ao
mundial sofressem as maiores alteras:oes que trouxeram as migra-
s:oes intercontinentais dos alimentos, a expansao da produs:ao de
as:ucar, a ados:ao internacional de novos generos como a batata e 0
tomate, a disseminas:ao das especiarias e das novas bebidas exci-
tantes foi a descoberta da America e do caminho maritimo para 0
Oriente. A cana, antes plantada apenas na ilha da Madeira e em
algumas ilhas do Mediterraneo, passou a ser cultivada em exten-
sas plantas:oes na America, especialmente no Brasil.
o as:ucar, inicialmente uma raridade, tornou-se urn luxo no
seculo XVIII e, em meados do seculo XIX, transformou-se
numa necessidade basica de quase toda a populas:ao. As bebidas
coloniais (chocolate, cafe e cha) cujo uso associou-se ao do as:u-
car, acrescentaram-se a ele para, a partir do seculo XVII, torna-
rem-se os generos mais importantes do comercio mundial. Ape-
nas 0 cha, por exemplo, constituiu 81% do valor de todos os
carregamentos da East India Company, da Inglaterra.3
Subsrancias como 0 cha ou 0 cafe eram usadas como drogas e
assim denominadas. 0 estudioso do as:ucar Sidney Mintz cha-
mou-as, mais recentemente, "alimentos-drogas". Em alemao,
HENRIQUE CARNEIRO
90
tais alimentos-drogas sao chamados Genussmittel, que pode ser
traduzido como Hestimulantes". 0 seu uso ante cede a acep~ao
pejorativa que a palavra Hdroga" adquiriu apos 0 seculo XX.
o cha, particularmente, levou a Inglaterra a urn tal grau de vi-
cio que, para obte-lo, os ingleses transferiram para a China, em
seu pagamento, a maior parte da prata extraida das minas da
America. Para reverter seu deficit comercial com a China, a
Inglaterra, no seculo XIX, desencadeou divers as medidas co-
merciais e militares, que incluiram as duas guerras do opio
(1839-42 e 1856-58), a imposi~ao do padrao aura com conse-
quente desvaloriza~ao da prata (afetando os chineses, que a pre-
feriam) e a amplia~ao do cultivo de cha e outros produtos de ex-
porta~ao na India.
Importantes aspectos morais foram implicados na ado~ao di-
ferenciada do chocolate, considerado como aristocratico e afro-
disiaco, e do cha, do cafe e do tabaco, reputados como burgue-
ses e sobrios.4 0 chocolate, de origem americana (entre os 01-
mecas, na costa do golfo do Mexico, ao redor de 1500 a.c.), era
consumido no Mexico pre-colombiano como uma bebida mis-
turada com milho e pimentao em po. 0 cacau era uma das mais
importantes riquezas da sociedade asteca onde, alem de consu-
mido pela elite, cumpria 0 papel de moeda.
COMIDA E SOCIEDADE
91
Em 1527, Carlos V recebeu sementes de cacau de Cortez,
mas so no final do seculo XVI tornou-se urn habito arraigado
como bebida ados:ada. 0 imperio espanhol deteve 0 monopo-
lio do comercio do cacau (realizado especialmente pelos jesui-
tas na Amazonia) ate 1728, quando Felipe V 0 transferiu para
uma sociedade comercial. 0 principio catolico Liquidum non
jrangit jejunum (Hquidos nao quebram 0 jejum) permitiu que 0
chocolate fosse consumido pelo clero durante os periodos de
restris:ao alimentar. A corte francesa, desde 0 casamento de
Maria Teresa, da Espanha, com Luis XIV, em 1660, passou a
aprecia-lo. No seculo XVIII, quando Lineu denominou-o
Theobroma cacao, que significa "alimento dos deuses", 0 chocola-
te bebido, sobretudo no desjejum, tornou-se urn habito tipica-
mente aristocratico e seu uso era visto como estimulante do
desejo sexual. 0 chocolate comestivel solido so foi inventado
como produto industrial a partir de meados do seculo XIX.
Durante 0 seculo XVIII, 0 cacau era fornecido a Europa prin-
cipalmente pela Venezuela, mas na America portuguesa 0 seu
comercio monopolizado pelos jesuitas embarcava 1.200 tone-
ladas por ana para Portugal, a mesma quantidade que Monte-
zuma guardava em seu palacio quando foi atacado pelos espa-
nhois.
Reputas:ao oposta a do chocolate, aristocratica e clerical, e a
que adquiriu 0 cafe, como urn estimulante do espirito de empre-
HENRIQUE CARNEIRO
92
endimento burgues.5 Seu papel cultural como promotor da vigi-
lia e da aten<;:ao e sua reputa<;:ao de desembriagador fez do cafe
urn simbolo da cultura racionalista da epoca, da sua aspira<;:aoalucidez, a perspicacia e a liberdade de pensamento a ponto de 0
grande historiador frances do seculo XIX Jules Michelet atri-
buir em parte aos seus efeitos ate mesmo a eclosao da Revolu<;:ao
Francesa! 0 cafe, originario da Eti6pia, chegou a Arabia no in i-
cio do seculo XVI Cja ha men<;:ao de uma proibi<;:ao do seu con-
sumo em Meca, em 151I). Atraves de Istambul chegou a Vene-
za em 1615, e a Paris em 1644. Nesta cidade, abre-se 0 primeiro
"cafe" como espa<;:opublico em 1670 e, ao final do seculo se-
guinte, ja setao mais de 600.
Desde 0 seculo XVIII, 0 cafe era considerado remedio. Para 0
medico do rei de Portugal, D. Joao V, entre outras virtu des,
"conforta a mem6ria, alegra °animo, e remedio nas vertigens, nos
estupores, nas apoplexias, nos sonos profundos, nas hidropsias,
nos catarros, nas flux6es de estilicidio, na gota, nos males dos
olhos, dos ouvidos, nas palpita<;:6es do cora<;:ao,nas hipocondrias
e flatulencias, nas c6licas de causa fria, nas quedas, nas supress6es
de urinas". 6 A partir do seculo XVIII, 0 cafe deixara de ser apenas
urn remedio para tornar-se a bebida oposta ao ilcool, s6bria, res-
6 Francisco da Fonseca Henriques. Ancora medicinal para conservar a vida com saude. Lis-boa, 1731, p. 457.
ponsave1 auxiliar do trabalho, ou seja, tipica do espirito burgues
em ascensao. T ais virtudes, exaltadas por alguns, levava outros,
como Miche1et, por exemplo, a considera-Io anafrodisiaco, que
diminuiria ou ate mesmo aniquilaria todo desejo sensual.
o cha teve papel seme1hante ao do cafe, como subsrancia
s6bria e anti-sensual, mas com uma via de penetras:ao ligada
aos paises protestantes, especialmente a 1nglaterra. Vindo da
China, 0 cha atingiu a Europa no inicio do seculo XVII, com 0
primeiro carregamento desembarcando em Amsterda, em
1609.0 consumo torna-se importante entre 1720-30 e, ao fi-
nal do seculo XVIII, a 1nglaterra supera a Holanda como prin-
cipal importador. A rainha Catarina de Braganc;a, esposa por-
tuguesa do rei Charles II, da 1nglaterra, entre 1649 e 1685, te-
ria sido a responsave! pe1a difusao do cha nas ilhas briranicas.
Seu uso atinge todas as classes, mas torna-se especialmente di-
fundido entre as classes trabalhadoras, nas quais os efeitos do
cha sao apregoados como desintoxicantes, propriedades que
contrastavam com a cerveja e 0 gim. A utilidade desse efeito
excitante para 0 desempenho lab oral contribuiu para que 0 cha
se incorporasse a ras:ao dos operarios nas fabricas. N a Asia, a
partir da China, 0 cha atingiu 0 Japao no ana 729, onde reves-
tiu-se de urn complexo ritual, a cerimonia do cha.7 T ambem na
HENRIQUE CARNEIRO
94
Asia central e na T urquia, essa pIanta adquiriu contornos de
bebida nacional. No Ocidente, 0 chi contribuiu para a cons-
trus:ao social da identidade de genero, identificado as muIhe-
res, em oposis:ao ao cafe, de reputas:ao masculina. 0 espas:o
domestico absorveu 0 ritual do consumo do chi, gerido peIas
mulheres, em contraste com 0 espas:o publico e masculino das
tavernas e cafes. T odo urn c6digo de etiqueta, uma gestualida-
de e uma marcas:ao temporal se originaram do uso do chi, aIem
de urn requintado equipamento, constituido de buIes, xicaras,
pires e jarras de faians:a e, particularmente de porcelana, dado
que 0 estanho era inadequado por dar urn gosto desagradaveI
ao chi, e a prata, excessivamente cara.8
Algumas outras plantas consumidas como bebidas excitantes
na America, como 0 guarani e 0 mate, permaneceram circuns-
critas a ire as de influencia regional sem se tornarem produtos
do trafico interoceanico, embora desempenhassem papeI eco-
nomico e cultural significativo no interior dos seus nichos de
consumo: 0 guarani na Amazonia e a erva-mate na bacia do Pra-
ta e regiao SuI do Brasil. Esta Ultima, ji descrita como "uma flo-
resta inteira concentrada em algumas gotas", foi inicialmente
proibida, em 1596, peIo governador do Paraguai, e mais tarde
8 Tania Andrade Lima, "Chi e simpatia: uma estrategia de genero no Rio de Janeirooitocentista", Anais do Museu Paulista: Histaria e Cultura Material, Nova Serie, Vol. 5,jan/dez de 1997, pp. 93-130.
COMIDA E SOCIEDADE
95
tornou-se produto de monopolio jesuitico, desde 1645 ate
1767, especialmente importante na regiao das Missoes, de onde
difundiu-se na forma do chimarrao (quente) ou terere (fria). 9
o alcool fermentado, na forma das cervejas, das cidras e dos
vinhos, sempre fora urn dos importantes complementos ( e, por
vezes, sucedaneo) alimentar. A cerveja e contemporanea da do-
mestica~ao dos cereais, na epoca neolitica. A antiguidade maior
do vinho ou da cerveja e disputada. Ja havia uso de uvas pdo
menos desde 0 V milenio a.c., e no IV milenio a.c. ja ha indi-
cios arqueologicos de vinho, cuja produ~ao e comercio em anfo-
ras foi urn dos mais importantes da epoca romana. Na epoca
modern a, 0 vinho conservava-se mal, pois 0 uso da rolha so se
tornou corrente a partir do seculo XVII. Em Paris, no ana de
1780 consumia-se 121 litros de vinho por ana por habitante;
8,9 de cervej a, e apenas 2,7 de cidra.1O 0 consumo medieval de
bebidas alcoolicas fermentadas era ainda mais alto, pdo menos
de urn litro diario de vinho ou tres de cerveja para praticamente
toda a popula~ao, completando dietas excessivamente monoto-
nas e pouco caloric as e ate mesmo sendo acrescentado a agua de
beber (no caso do vinho) para "corrigi-la" pois quase sempre
nao era limpa. A grande altera~ao nos padroes de consumo al-
9 Temistocles Linhares, Historia economica do mate, Rio de Janeiro, Jose Olympia,1969.
HENRIQUE CARNEIRO
96
coolico so ocorrera, entretanto, a partir da difusao do alcool
destilado. Produzida em alambiques medievais desde 0 seculo
XII, a aguardente tinha indicat;ao como remedio. Arnaud de
Villeneuve, medico e alquimista medieval, escrevia, em 13 13,
que a aqua vitae Hdissipa humores superfluos, reanima 0 corat;ao,
cura colic a, hidropsia, paralisia, paludismo, acalma dores de
dentes e preserva da peste". I I
o espirito do vinho, ou conhaque, foi desenvolvido a partir
do seculo XVIII e, apos a invent;ao, em 1778, do alambique que
destila numa so vez, surgiu 0 habito de se dar aguardente aos
soldados antes das batalhas e assim 0 soldado tornou-se urn be-
bedor habitual e contumaz, e a fabricat;ao da aguardente passou
a ter a importancia de uma industria de guerra. Desde 1655,
com a tomada da Jamaica pelos ingleses, 0 rum passou a fazer
parte da rat;ao dos marinheiros ingleses.
A destilat;ao dos cereais logo popularizou, especialmente na
Europa setentrional, diversos licores como a vodca, 0 uisque, a
gene bra e 0 gim, causando urn fenomeno de intensa embriaguez
urbana. Outro tipo de aguardente, produto espedfico da cultu-
ra colonial vinculado ao at;ucar que adquiriu grande importin-
cia economica, foram os destilados de alcool de cana, como a
aguardente brasileira e 0 rum do Caribe, que serviram de moeda
COMJDA E SOCIEDADE
97
de escambo para a compra de escravos na Africa. Esse comercio
dire to entre 0 Brasil e 0 continente africano era vetado por Por-
tugal, que tentou proibir 0 fabrico de cacha'ra no Brasil em
1649 e, com 0 fracasso dessa medida, tentou impedir ao menos
a sua exporta'rao para Angola, no que tambem nao teve exito. A
imporrancia da aguardente brasileira foi nao apenas economica,
mas como simbolo de identidade nacional. 12
A imporrancia dos "alimentos-drogas", que seduziram cama-
das cada vez maiores de consumidores na epoca moderna, tern
significado cultural e economico. Os grandes imperios busca-
ram controlar os fluxos comerciais de urn trafico de produtos
originarios de regioes tropicais com demanda crescente na Eu-
ropa. 0 a'rucar, 0 cha, 0 cafe, 0 alcool e 0 tabaco integraram-se
num complexo sistema comercial intercontinental que gerou
uma parte consideravel do capitalliquido da era pre-industrial
e, no seculo XIX, garantiu a Inglaterra, potencia decadente mas
ainda dominante no comercio mundial, superavits comerciais
com a Asia que financiaram seus deficits com os Estados Un i-
dos e a Europa. 0 uso intensificado do alcool e do a'rucar cau-
sou novos problemas de saude publica, agravando a ocorrencia
de diabetes e outras enfermidades. A expansao do chocolate, do
cafe e do cha influenciaram decisivamente 0 cardapio da primei-
12 Vide Camara Cascudo, PrelUdio da cachafa, Belo Horizonte, 1tatiaia, 1986; e SoutoMaior, Cachafa, Rio de Janeiro, 1AA, 1970.
HENRIQUE CARNEIRO
98
ra refei<;:aodo dia na maior parte do Ocidente e tiveram conse-
quencias sociais diversas, tais como 0 surgimento de urn novo
espa<;:opublico, os cafes, a amplia<;:ao do uso do a<;:ucare a difu-
saG associada de urn outro novo habito: 0 de se fumar, cheirar e
mas car tabaco, que se nao pode ser qualificado de "alimento",
tornou-se urn complemento alimentar tradicional, nao s6 no
Ocidente, como em quase to do 0 mundo.
De todos estes traficos de alimentos de luxo ou "alimen-
tos-drogas", 0 a<;:ucarfoi certamente 0 de significado mais pro-
fundo, tanto no senti do de sua importancia economica, como
de suas consequencias sociais (a escravidao africana, por exem-
plo) e culturais (a edulcora<;:ao geral do gosto contempodneo),
representando a conexao mais inextridvel das transforma<;:6es
na alimenta<;:ao com os fenomenos formadores da economia ca-
pitalista contempodnea. Nos dias atuais, a media do consumo
de a<;:ucarpor habitante alcan<;:amais de 130 gram as diarias nos
paises europeus, fornecendo de 15% a 18% do consumo ener-
getico diario. A uniformiza<;:ao e simplifica<;:ao dos sabores tam-
bem fizeram parte das influencias gastronomicas do a<;:ucar,0
que levou urn autor a afirmar que 0 papel menos conspicuo do
a<;:ucarnas cozinhas francesa e chinesa pode ter algo a ver com a
sua excelencia.13
COMIDA E SOCIEDADE
99
ALIMENTAyAO CONTEMPORANEA:
INDUSTRIALIZAyAO E FAST-FOOD
Durante a epoca contempodnea e, particularmente nas ulti-
mas decadas, conheceram-se transformas:6es globais nos pa-
dr6es aliment ares de importantes consequencias sociais.
A guerra tern sido urn dos fatores mais importantes de mu-
danps dieteticas, nao so por provocar carencias e fornes, como
por promover mudanps de habitos e ados:ao de novos tipos de
alimentos, muitos ligados diretamente a ras:ao dos soldados. Em
relas:ao a primeira influencia, urn exemplo classico e a ados:ao do
as:ucar de beterraba como consequencia do isolamento conti-
nental que foi imposto a Frans:a nas guerras napoleonicas e, no
que se refere a influencia mais ampla dos novos habitos e produ-
tos das ras:6es militares, podem ser citadas a propagas:ao do chi-
clete (goma de origem mexicana) apos a Primeira Guerra Mun-
dial e da Coca-Cola apos a Segunda Guerra Mundial.
A industria, alem da guerra e muitas vezes associada a ela, foi
o fator decisivo que influenciou mudans:as na alimentas:ao con-
tempo ran ea. As tecnicas de conservas:ao dos alimentos, as con-
quistas da microbiologia, 0 desenvolvimento dos transp0rtes
sao todos aspectos de urn processo mais geral: 0 da industriali-
zas:ao da produs:ao e da distribuis:ao da alimentas:ao. No final
do seculo XIX, a industria agroalimentar ja era a primeira dos
Estados Unidos.
A invens:ao das conservas em vidros ou latas fervidas e herme-
ticamente fechadas, realizada pe!o Frances Appert em 1804, tor-
nou possive! 0 armazenamento e transporte dos alimentos, an-
tes mesmo da descoberta microbiol6gica da contaminas:ao bac-
teriana por Pasteur (cujo metodo de conservas:ao tomou 0 nome
de "pasteurizas:ao"). Ate essa epoca, as conservas eram feitas
com acrescimo de me! ou as:ucar, sal ou vinagre (caso do chucru-
te alemao, repolho no vinagre), mas a lata ou vidro esterilizado
tornou-se 0 principal meio de se transportar e estocar alimen-
tos, recurso logistico que passou a ser essencial para 0 abasteci-
mento de tropas em conflitos militares. Em 185 I, foi patentea-
do 0 primeiro refrigerador e, em 1876, 0 primeiro navio frigori-
fico trouxe carregamentos de carne da Argentina para a Europa.
T ais inovas:oes atingiram os lares no seculo XX, onde as ge!ade-
iras, fogoes a gas, fornos de microondas e outros utensilios tor-
naram-se acessiveis amaioria da populas:ao dos paises industria-
lizados, assim como surgiu urn imenso ramo de alimentas:ao
fora de casa, 0 dos restaurantes. Por urn lado, a industria e as no-
HENRIQUE CARNEIRO
102
vas tecnologias da alimentas:ao foram urn processo hist6rico de
racionalizas:ao, industrializas:ao e funcionalizas:ao da alimenta-
s:ao mas, por outro, as conseqiiencias negativas da industrializa-
s:ao tambem comes:aram a ser denunciadas: contaminas:ao am-
biental com embalagens e garrafas plasticas, uso de aditivos qui-
micos, padronizas:ao dos gostos alimentares, controle oligQP6-
lico dos mercados, relas:6es comerciais desvantajosas para os pa-
ises perifericos.
o aumento das populas:6es subnutridas, especialmente nos
paises perifericos, acompanhou-se da amplias:ao da alimentas:ao
excessiva nas sociedades ocidentais. A obesidade tornou-se urn
problema de saude publica, a ponto de mais de urn ters:o da po-
pulas:ao norte-americana ser considerada acima do peso sauda-
vel. A anorexia e a bulimia tornaram-se enfermidades paradig-
maticas da infelicidade com relas:ao a alimentas:ao e ambas sao
produtos de sociedades da abundancia. A pratica de dietas e re-
gimes estendeu-se como nunca antes perante populas:6es preo-
cupadas obsessivamente com a imagem do corpo e com precei-
tos de comp0rtamento saudavel. 0 vegetarianismo, praticado
por urn numero crescente de pessoas, reflete preocupas:6es eti-
cas com relas:ao aos animais e com as vicissitudes de uma socie-
dade industrial ecologicamente destruidora, onde se destinam
dois ters:os da produs:ao de graos da agricultura mais produtiva
do planeta para a alimentas:ao do gado, que por sua vez tor-
COMIDA E SOCIEDADE
I03
nou-se vetor de transmissao de novas doenps como a "vaca lou-
ca" na Europa, causadas pelo uso de metodos de crias:ao intensi-
vos de animais em confinamento e de dietas com hormonios,
antibi6ticos e, particularmente no caso da "vaca louca", de ra-
s:6es para gada feitas de carcas:as animais, ou seja, a "canibaliza-
s:ao" de herbivoros!
o modelo alimentar dos Estados Unidos, fundamentado na
substituis:ao de carboidratos complexos como os amidos, por
carboidratos simples como as:ucares e gorduras, e na expansao
da dieta carnivora, e simbolizado pela expansao das redes de
jast1ood, entre as quais 0 McDonald's assume, juntamente com a
Coca-Cola, a imagem paradigmatica dos logotipos mais emble-
maticos da cultura capitalista contempodnea. Dois dos mais
caracteristicos fenomenos aliment ares do seculo xx torna-
ram-se duas poderosas empresas multinacionais com as duas
marcas mais conhecidas do planeta, emblemas ideo16gicos e na-
cionais da cultura norte-americana.
o consumo de refrigerantes tornou-se, a partir de 1986, nos
Estados Unidos, maior do que 0 consumo de agua encanada ou
engarrafada. I Estes fenomenos exemplificam 0 significado das
alteras:6es mais recentes nos padr6es alimentares dos paises de-
senvolvidos, causados pela penetras:ao da grande industria no
HENRIQUE CARNEIRO
104
espas:o das cozinhas, melhor dizendo, substituindo esse espas:o
pelos drive-thrus (onde a McDonald's vende 50% de seu fatura-
menta ), pela alimentas:ao rapida, gordurosa e cheia de as:ucar.
T ais vicissitudes da alimentas:ao contempodnea nas socieda-
des abastadas levaram ao surgimento de uma obsessao com as
preceitos dieteticos, regimes de vida e manias na moda a respeito
de praticas supostamente saudaveis. No inicio do seculo XX, esse
fenomeno desabrochou nos Estados Unidos com a divulgas:ao
crescente dos £locos de cereais (cornflakes) e da pasta de amendoim,
entre as quais a marc a Kellog's vai adquirir notoriedade devido ao
seu "sanatoria" ligado aos Adventistas do Setimo Dia, com ali-
mentas:ao vegetariana balanceada e controlada e praticas terapeu-
ticas bizarras como eletroterapias, dietas exclusivas de uvas (5 a 7
quilos par dial) e enemas para lavagens intestinais que a Dr. Kel-
log organizou como parte de sua conceps:ao dietetica.2 Suas ideias
previam que a controle da dieta deveria acompanhar-se do con-
trole da atividade sexual-, especialmente da masturbas:ao, fazendo
do movimento da reforma alimentar uma expressao do mais vasto
movimento de temperans:a e castidade, inimigo de todos as Vl-
cios, que ganhou in£luencia no final do seculo XIX e inicio do se-
culo XX, e conseguiu proibir durante 13 anos (1919-1933) a
comercio de alcool nos Estados Unidos.
2 T. Coraghessan Boyle. Dr. Kellogg e a guerra dos sucrilhos. 5110 Paulo, Companhia dasLetras, 1995.
COMIDA E SOCIEDADE
105
As formas sociais de comer em casa, em refeitorios, em restau-
rantes, na rua envolvem aspectos relevantes para a analise histo-
rica ao serem abordadas em suas transformas:oes ao longo do
tempo. A historia dos restaurantes, por exemplo, foi estudada
sob divers os angulos. 0fast-food como paradigma da forma con-
temporinea de se alimentar foi objeto de grande reflexao. Os ir-
maos McDonald, ao abrirem, em 1937, urn drive-in em Arcadia,
California, e dois anos mais tarde, outro em San Bernardino,
California, onde os clientes eram servidos nos carros, ajudaram
a propagar urn estilo de alimentas:ao industrializada que carac-
teriza a nossa epoca, 0 sistema chamado "alimentas:ao rapida"
(fast fooel). 1nicialmente, nao vendiam hamburgueres, mas salsi-
chas (hot-dog) e sanduiches de carne, alem de milk-shake. 0 ham-
burguer, originario do bife drtaro de carne crua, que no porto
de Hamburgo, na Alemanha, passou a ser cozido, havia chegado
aos Estados Unidos em 1904, na feira mundial de St. Louis, e
na epoca da abertura do primeiro McDonald's ja existiam varias
outras cadeias com centenas de lanchonetes de hamburguer. A
inovas:ao principal da nova loja de hamburguers foi 0 conceito
de "rapidez", uma refeis:ao completa em "quinze segundos".
Inicialmente 0 cliente pagava pelo pedido e aguardava-o para le-
va-lo no carro ou comer no local. 0fast-food foi, assim, a aplica-
s:ao do taylorismo, ou seja, da divisao e racionalizas:ao do traba-
lho, a preparas:ao de refeis:oes servidas em restaurante, provo-
HENRIQUE CARNEIRO
106
cando urn fenomeno de produs:ao e consumo em serie, homogei-
nizante e padronizante, ja chamado "gastro-anomia".3
A marca e 0 conceito McDonald's tornaram-se, nos anos 80,
urn simbolo do capitaIismo reemergente, abrindo suas filiais de
Moscou a Pequim e chegando atualmente a ter mais de 25 mil
lanchonetes em II 7 paises. Em 1998, chegou a dominar 43%
do mercado norte-americano de fast-food. Mais do que simples
aIimentas:ao, vende-se diversao e entretenimento.
T udo 0 que representaram as novas formas de capitaIismo no
segundo p6s-guerra foi prototipico do McDonald's: cultura do
autom6vel, ascensao das classes medias, consumo em massa de
produtos descardveis como simbolo do modo de vida, expan-
sao do sistem<t de franquias, predominio do setor de servis:os,
mas submetido a uma administras:ao de caracteristicas fabris, ou
seja, a industrializas:ao do entretenimento e do lazer, padroniza-
s:ao da aIimentas:ao, importancia crescente da propaganda (a era
do marketing), 0 nome da marca tornando-se mais significativo
do que 0 pr6prio produto.
Nesse periodo, a imagem passou a ser 0 sustentaculo princi-
pal de urn capitaIismo p6s-moderno com base em uma "econo-
mia simb6Iica", em que a fetichizas:ao geral da cultura anuncia-
da pelos fil6sofos da Escola de Franckfurt tornou-se geral e
3 Claude Fischler, "A McDonaldiza~ao dos costumes", ill Flandrin & Montanari, op.eit., p. 851.
COMIDA E SOCIEDADE
107
completa. 0 peso do patrimonio fisico das grandes empresas da
lugar ao valor da marca que determina 0 valor de mercado da
companhia. Na relas:ao "valor da marca" (me dido por consulto-
ras internacionais, como brand valuation) e "valor de mercado da
companhia", 0 McDonald's, entre as maiores marcas, e a que
possui maior peso do valor da marca, cerca de 64% do valor de
mercado da empresa. Esse fenorneno, analisado pela sociologia,
express a "urn deslocamento no qual a forma-valor produzida
materialmente cede cada vez mais espas:o a uma 'crias:ao virtual
de valor"',4
Na Frans:a, 0 combate a esse tipo de sistema industrial e co-
mercial toma dimens6es sociais, de defesa de uma pequena
burguesia produtora rural e tambem urbana, proprietaria dos
cafes, dos bistros e dos armazens, contra a conceps:ao de abas-
tecimento das "grandes superficies" (gran des surfaces), como os
franceses denominam 0 sistema dos hipermercados. 0 proces-
so contra 0 ativista frances Jose Bove, por ter liderado urn pro-
testa em nome dos produtores rurais contra 0 McDonald's, e
urn exemplo expressivo da resistencia contra a "mcdonaldiza-
s:ao do rnundo",
A uniformizas:ao global da alirnentas:ao promovida pela indus-
tria alimentar realizou tambem urn "sincretisrno culinario", pois
4 Isleide Arruda Fontenelle, 0 nome da marea. MeDonald's,jetiehismo e eultura deseartavel,
Rio de Janeiro, Boitempo, 2002, p. 173.
HENRIQUE CARNEIRO
108
ao mesmo tempo em que sup rime as identidades locais e homogei-
niza 0 gosto mundial, tambem divulga culinarias regionais espa-
lhando-as pelo mundo, mesmo que sob a forma inautentica do
jastjood etnico. Apesar de 0 hamburguer ser 0 produto mais iden-
tificado com 0jastjood, 0 consumo mundial de pizza, prato origi-
nalmente napolitano, e tambem urn resultado da "americaniza-
c;ao" da alimentac;ao, sem receber, contudo, tantas criticas como 0
hamburguer, adverte urn autor preocupado em identificar as ca-
racteristicas hibridas da alimentac;ao contemporanea.5
Alguns antropologos afirmaram polemicamente que nao
existiria uma "cozinha" norte-americana, nao so porque as
identidades culinarias sao sempre regionais, 0 nacional sendo
uma abstrac;ao poHtico-administrativa, como porque 0 American
way if life vem tomando a alimentac;ao cada vez mais destituida
de identidades espedficas no seu preparo caracteristico, 0 que
constituiria exatamente a existencia de uma "cozinha". Isso
ocorre porque 0 supermercado de pratos prontos e a lanchonete
de jastjood substituem as refeic;6es caseiras.6 0 pastiche culina-
rio imp era entao nessa paisagem pos-modema de restaurantes
etnicos padronizados, como os tacos e burritos do "tex-mex"
ou os jastjood chineses, tailandeses ou japoneses. A cultura do
COMIDA E SOCIEDADE
109
hamburguer, da pizza e do frango frito torna-se predominante e
a maior parte dos norte-americanos passa a fazer refeis:oes fora
de casa e sem as rituais de sociabilidade familiares e comunira-
rios, pais "beliscar" substitui as horarios regulares.
Urn dos Ultimos grandes debates ligado a industria, tecnolo-
gia e alimentas:ao refere-se ao desenvolvimento dos alimentos
transgenicos, que algumas grandes multinacionais buscam di-
fundir, sob a seu controle, para todo a mundo sob a risco de
comprometimento da biodiversidade dos patrimonios genet i-
cas. 0 mercado agricola, cada vez mais controlado pelos princi-
pais produtores e formadores de pres:os, e as disputas comer-
ciais que fazem do mercado de alimentos, assim como de ou-
tros, urn foco de obtens:ao de superlucros par meio de superpro-
dus:oes, e a pano de fundo economico da situas:ao global atual
no que se refere a alimentas:ao da humanidade. E a paradoxa da
condis:ao contemporanea: nunca se produziu tantos alimentos e
nunca houve tantos famintos no mundo como hoje em dia.
A existencia da fame e da superabundancia, da carencia e do
desperdicio, das dietas de subsistencia e das mais refinadas cria-
s:oes da culinaria, tal e a ponto de observas:ao no presente, a par-
tir de onde tentamos situar a passado da alimentas:ao e de como
vem sendo feita e escrita a sua hist6ria.
HENRIQUE CARNEIRO
110
ALIMENTA<;:AO E RELIGIAO:
SACRIFIcIOS, NORMAS E TABUS
A hist6ria comparada das religioes tambem ocupou-se da
descric;:ao e da interpretac;:ao de representac;:oes e regulamenta-
c;:oessagradas sobre 0 consumo dos alimentos. Em quase todas
as civilizac;:oes 0 alimento e urn dos primeiros de uses ou tern urn
deus tutelar. No Mexico, os cogumelos alucin6genos do genera
PSilocybe sac sagrados e denominados It carne de deus" (teonanact0.
As plantas psicoativas americanas, como a jurema (Mimosa hosti-
lis), elevada pelo escritor Jose de Alencar, em lracema, a condic;:ao
de simbolo secreta da cultura indigena; a ayahuasca, beberagem
sagrada, tambem de origem indigena, cultuada na religiao do
Santo Daime, no Brasil; e diversos cactos andinos e mexicanos,
como 0 San Pedro e 0 peiote, sac exemplos de alimentos e bebi-
das divinizadas.
Em rodo 0 mundo, as bebidas inebriantes e as drogas desempe-
nharam urn papel central nas tecnicas de extase e nos rituais de
transe como urn alimento espiritual muito particular, objeto de
devos:ao mistica. Dioniso/Baco era 0 deus do vinho no mundo
grego e romano. Ceres, versao latina de Demeter, denominou os
mais importantes alimentos, os cereais, cujo ciclo vital da semea-
dura e da colheita e regido pela deusa. A "queda" de Adao e Eva
ou pecado original, foi 0 ato de comer urn froto proibido.
Nas antiguidades grega e romana, aIem do sacrificio regula-
mentador de urn escasso consumo carnivora, havia urn modelo
de alimentas:ao civilizada assentado na trindade do pao, vinho e
6leo de oliva. T res produtos da industria human a que se opu-
nham ao modelo barbaro germanico do consumo de produtos
naturais, especialmente a carne e 0 leite. 0 cristianismo ira in-
corporar essa tradis:ao classica revestindo-a dos atributos de re-
presentas:ao da pr6pria divindade ao adotar, na sua liturgia, 0
pao como 0 corpo de Cristo, 0 vinho como 0 seu sangue e 0 6leo
como a uns:ao sagrada.
A alimentas:ao assume assim a funs:ao de distinguir religiosa-
mente os povos para os quais a dieta torna-se urn assunto muito
mais transcendente do que a mera satisfas:ao do estomago. As
disposis:oes biblicas vetero-testamentirias, coranicas ou da tra-
dis:ao indiana sobre a alimentas:ao saG urn motivo de intenso de-
bate hist6rico e antropol6gico, que este capitulo abordara nos
seus tras:os basicos.
A hist6ria dos alimentos, partanto, tambem se imbrica com a
hist6ria das religioes. As origens dos alimentos remetem-se as
HENRIQUE CARNEIRO
Il2
origens reais e simb6licas de todas as civiliza~6es humanas. 0
nectar e a ambrosia, alimentos dos deuses, foram roubados para
os homens, segundo uma das tradi~6es mitol6gicas gregas, por
Tantalo, que os tirou das maos de Ganimedes, adolescente be-
lissimo, que por sua vez tambem fora raptado da Terra por Zeus
para tornar-se 0 0 servidor do nectar e da ambrosia no Olimpo.
Assim, Tantalo, por difundir os alimentos divinos entre os ho-
mens, sofreu 0 famoso suplicio de estar na agua e nao poder be-
be-la e de ver penderem em sua frente os frutos e nao poder ja-
mais come-los. Para obter 0 nectar e a ambrosia, assim como
para ter 0 fogo, 0 homem assaltou os deuses. Tantalo e Prome-
teu, her6is da humanidade, cumprem 0 papel analogo de forne-
cer os alimentos sagrados e os meios tecnicos do cozimento,
fundamentos de toda civiliza~ao.
T odos esses mitos expressam 0 desejo da participa~ao na co-
mensalidade com os deuses. Prometeu, alem de fornecer 0 fogo,
enganou os deuses instaurando a partilha desigual na institui~ao
do sacrificio, em que os homens ficam com a carne enquanto
que imam para os deuses os ossos, a banha e a pele. Tantalo ten-
tou reinstaurar uma comensalidade perdida, trazendo para a hu-
manidade os alimentos exclusivamente divinos, cuja simples in-
gestao tornava urn mortal semelhante aos deuses.
A rela~ao dos mitos com a alimenta~ao mostra a fome e a sede
insaciaveis como urn "estatuto da animalidade", superado pe1as
COMIDA E SOCIEDADE
113
regras sociais do mundo classico instauradoras de uma conviviali-
dade que assume 0 carater de urn consumo moderado no symposi-
um grego. As regras de Demeter e Dioniso (Ceres e Baco entre os
latinos ), que permitem 0 dominio dos cereais e do vinho, nao po-
dem ser desafiadas. Quando urn bosque consagrado a Demeter
foi invadido pelo principe Erisicton, ele foi castigado pela deusa
com uma fome terrivel e insaciavel e quanto mais ele cornia para
aplaca-la, mais ela aumentava e 0 atormentava. A sua pena foi 0
retorno ao estado da insaciabilidade, tema tambem presente em
Tantalo e outros mitos. A alimentas:ao partilhada, por outro
lado, impoe a comensalidade, com todas as suas consequencias.
Persefone, por ter comido urn grao da roma que the of ere cera
Plutao, passou a dever permanecer no Hades metade do ano. I
o sacrificio necessario para 0 consumo de carne na cultura
grega e, decrescentemente, na latina, estabelecia uma ordem po-
litica e religiosa sobre os habitos alimentares. T ais aspectos sim-
b6licos e rituais da alimentas:ao nos obrigam a estudar 0 seu sig-
nificado nas religioes.
A mitologia judaico-crista tambem se estrutura em torno de
urn mundo de comensalidade nao s6 entre os homens e os deu-
ses, como entre os homens e os animais. Mas e justamente a vio-
las:ao de uma interdis:ao de tipo alimentar, a proibis:ao de dois
I Pauline Schmitt Pantel,HAs tefei~5es gtegas, urn ritual civico" in Flandrin & Mon-tanari, pp. 155-169.
HENRIQUE CARNEIRO
114
frutos especificos dentre todos que abundavam no Jardim do
Eden, que romped. 0 elo entre 0 criador e a sua crias:ao, que se
vera condenada a alimentar-se do seu trabalho.
o tipo de alimento que 0 povo judeu foi instruido a comer
era, entre tanto, bastante seletivo, excluindo todos os animais do
mar que nao possuissem escamas e guelras, todos os da terra que
nao ruminassem e nao tivessem a pata fendida e divers os do ar,
entre os quais os de rapina. As regras alimentares judaicas ja fo-
ram interpretadas como urn recurso de distins:ao cultural, desti-
nado a manter 0 povo judeu separado dos demais atraves da exi-
gencia de que os animais a serem comidos fossem apenas aque-
les que "respeitassem 0 lugar que lhes foi fixado no plano da
Crias:ao", recusando assim todos os animais "hibridos", como
moluscos, anfibios, peixes com pele, animais carnivoros ete. A
alimentas:ao judaica nao decorreria de consideras:6es nutritivas,
medicas ou gastronomicas, mas seria essencialmente urn con-
junto de regras de isolamento cultural.
o Novo Testamento, em ruptura com 0 particularismo judai-
co, preferiu universalizar-se aceitando todas as formas de ali-
mentas:ao, com a exces:ao da proibis:ao de se alimentar de sangue
que, vinda do Lev{tico, permaneceu nos Atos dos Ap6stolos. Mas sa-
cralizou alguns alimentos particulares: a trindade mediterranica
do pao, vinho e 6leo. Tal prediles:ao por alguns alimentos euro-
peus nao impediu a autorizas:ao pela Igreja, em lugares distantes
COMIDA E SOCIEDADE
IIS
como na America, da fabricas:ao de h6stias de farinha de man-
dioca e de 6leo crismatico de cabreuva onde havia ausencia de
trigo, uvas e azeite.
Uma interpretas:ao materialista dos tabus alimentares consi-
dera que a adaptas:ao economica e ecol6gica e 0 que explica a
funcionalidade das proibis:6es islamica e judaica para 0 consu-
mo do porco ou a hinduista para 0 consumo da vaca. A alta den-
sidade populacional da peninsula indica e a baixa fertilidade do
solo desertico do Oriente Medio seriam as razoes que exigiriam
a utilizas:ao do solo exclusivamente para a agricultura e motiva-
riam 0 surgimento de tabus re1igiosos para impedir pragmatica-
mente 0 desvio dos campos agricultaveis para pastos de gada ou
das areas limitadas dos oasis para crias:ao de porcos. Da mesma
forma, necessidades de consumo de proteinas em sociedades
muito povoadas e com poucos recursos de gada comestive1 te-
riam levado, como no caso asteca, a urn consumo carnivoro ca-
nibalistico religiosamente ritualizado.2 Os tabus alimentares
tambem foram vistos, por outros antrop610gos, como urn siste-
ma de ordenamento cultural no interior do qual as inadequa-
s:oes sao consideradas impureza e fontes de contaminas:ao.
Sobre 0 tema dos tabus, proscris:6es e prescris:oes alimentares
tambem podemos citar urn grande autor brasileiro, Josue de
HENRIQUE CARNEIRO
116
Castro, que apresenta uma interpreta~ao de tipo reflexologista
pavloviana para a ado~ao de certos interditos alimentares pelas
popula~6es escravas no Brasil colonial, condicionadas pelos se-
nhores a nao consumirem certas frutas junto com leite pelo te-
mor infundado, mas conscientemente disseminado, de que 0 seu
consumo Faria mal a saude.
Sigmund Freud relacionou as tres maiores interdi~6es culturais
- do incesto, do canibalismo e do assassinato - apresentando a
hip6tese de que 0 totemismo seria uma estrutura religiosa prirni-
tiva comum a todos os povos, pois representaria 0 assassinato e 0
devoramento coletivo do pai realizado pelos filhos rebelados,
gesto ancestral que se repetira em todas as hordas arcaicas. 0 tabu
de comer 0 totem seria ritualisticamente suspenso durante urn
banquete sagrado que repetiria 0 assassinato parricida e canibal
que seria a Fonte da culpa, 0 verdadeiro pecado original. Para Freud,
o mito do nascimento do her6i como urn filho rejeitado e que de-
po is derrota 0 pai (Edipo, Romulo, Ciro entre tantos outros) re-
pete-se em Moises, que tambem foi morto e devorado pelos seus
seguidores. A fanrastica elabora~ao dessa hip6tese remete a ori-
gem dos tabus alimentares ao tabu original do canibalismo.3
De qualquer forma, 0 judaismo e 0 cristianismo, no nueleo
fundamental de sua mitologia, estao cheios de simbolismos ali-
COMIDA E SOCIEDADE
II?
mentares. Os milagres de Cristo, entre outros, referem-se amul-
tiplicac;:ao dos alimentos, seu pr6prio corpo e sangue consubs-
tanciados no pao e vinho da eucaristia repete 0 rito do sacrificio
de uma forma sublimada. A santa ceia assume urn papel central
na representac;:ao de uma alianc;:a da humanidade com a divinda-
de fundada na comensalidade. As refeic;:oes de Cristo na casa de
Simao, nas bodas de Cana e na mesa dos peregrinos de Emaus
sao epis6dios em que a alimentac;:ao serve de parabola para a
mensagem crista.
A imp orran cia do modelo religioso alimentar do cristianis-
mo pode ser verificada no processo da conversao dos povos es-
lavos. A cronica russa da epoca conta que, em 986, quando 0
principe de Kiev, Vladimir, decidiu converter 0 seu povo, con-
vocou ao seu palacio representantes das quatro grandes religioes
(cat6licos romanos, cristaos ortodoxos, judaismo e islamismo ).
Urn dos elementos determinantes de sua opc;:ao pela ortodoxia
teria sido de ordem alimentar, pois os eslavos nao poderiam acei-
tar a proibic;:ao do alcool e do porco pelos muc;:ulmanos, igual-
mente interditado pelos judeus (que tambem exigiam varios ou-
tros ritos e criterios alimentares). 0 catolicismo, por sua vez,
impunha uma enorme quantidade de dias de sucessivos jejuns.
Restou, portanto, a ortodoxia bizantina, bem menos rigida nas
exigencias disciplinares em relac;:ao a comida. Dentre os inume-
ros outros fatores que determinaram a conversao eslava ao culto
HENRIQUE CARNEIRO
118
bizantino, portanto, as regras alimentares religiosas nao foram
de menor imporrancia.4
As regras alimentares servem como rituais instauradores de
disciplinas, de tecnicas de autocontrole que vigiam a mais insi-
diosa, diuturna e permanente tenta'rao. Doma-la e do mar a si
mesmo, dai a importancia da tecnica religiosa dos jejuns, cujo
resultado tambem permite a obten'rao de estados de consciencia
alterada propicios ao extase. As regras disciplinares sobre ali-
mentos podem ser anti-hedonistas, evitando 0 prazer produzi-
do pelo alimento tornando-o 0 mais insipido possive!, ou po-
dem ser pragmaticas, ao evitar alimentos que sejam "demasiado
quentes" ou "passionais". Os herbarios medievais identifica-
yam em diversos alimentos, tais como as cenouras ou alcacho-
fras, fontes de excita'rao sexual. As regras budistas eliminam ate
mesmo a cebola, a cebolinha e 0 alho, por considerarem que es-
sas plantas inflamam as paixoes.
A constitui'rao de urn sistema de mosteiros e conventos pela
Europa medieval baseou-se na organiza'rao de regras disciplina-
res que moldaram a personalidade do clero regular e da Igreja no
seu conjunto. A principal tenta'rao, muito mais persistente e in-
sidiosa do que a luxuria, era a gula. A rela'rao com a alimenta'rao
marca muitas das regras monasticas. A Regra de Sao Pacomio,
COMIDA E SOCIEDADE
119
do ana 320, possui IS itens, dos quais seis referem-se a comida.
A primeira de clara: "permite a cada urn comer e beber [de acor-
do com suas fon;:asJ da-lhes trabalho proporcional a seu alimen-
to"; as outras regras alimentares estipulam que" nao se proibe 0
jejum nem a refeis:ao", mas se proibe comer junto a algum foras-
teiro e a conversa as refeis:6es, onde os monges deverao estar co-
bertos com capuzes que permitam apenas a visao do prato
Cninguem olhe seus irmaos enquanto comem"). Mais de do is
seculos a frente e Sao Bento estabelece em sua regra que" amar 0
jejum" e urn dos instrumentos das boas obras. A regra da
Ordem do Monte Carmelo, em 1209, ainda reafirma a absti-
nencia do consumo de carne" de quadrupedes" e determina dias
santificados de jejum, mas entre 0 inicio do sistema monacal no
seculo IV e a epoca das gran des abadias como Cluny, de Sao
Bernardo, 0 clero regular havia se tornado a fors:a mais poderosa
da Europa medieval. Os monges dominaram vastas areas de cuja
produs:ao agricola dispuseram, desenvolveram tecnicas de ori-
gem arabe de destilas:ao alc06lica e produziram licores. Criou-
se toda uma culinaria conventual, em Portugal as doprias de
freiras celebrizaram-se com nomes como "papo-de-anjo" ou
"toicinho do ceu". A transformas:ao dos mosteiros e abadias em
nucleos de riqueza converteu-os em centros produtivos de ali-
mentos e permitiu uma abundancia relativa que acabou por tor-
nar a vida monastica sinonimo de boa comida, luxo e fartura.
HENRIQUE CARNEIRO
120
Entre as regras monacais e a cozinha dos mosteiros persistiu
uma tensao secular cuja natureza e economica e cultural, a sua
hist6ria e parte da hist6ria da alimentac;:ao bem como da hist6ria
das religioes ou da hist6ria das regras e dos c6digos morais.
o estabelecimento de determinadas regras alimentares funda
o limite entre 0 estado selvagem e 0 estado civilizado. A proibi-
c;:aoda antropofagia e uma dessas regras. A pratica do canibalis-
mo entre populac;:oes indigenas da America, cuja descric;:ao do
viajante alemao do seculo XVI, Hans Staden, caido prisioneiro
dos tupinambas, e a mais famosa, foi interpretada como poden-
do obedecer a diferentes motivac;:oes: a antropofagia por fome,
por vinganc;:a, como culto aos antepassados buscando a trans fe-
rencia das qualidades do morto para os membros da tribo, e
como rito guerreiro. No seculo XIX, 0 canibalismo foi explica-
do pelo positivismo neomalthusiano como a consequencia ne-
cessaria do conflito entre uma populac;:ao ilimitadamente cres-
cente e uma disponibilidade limitada de recursos. Out~os auto-
res questionaram a realidade da pratica canibal na maior parte
das cronicas e descric;:oes que seriam eivadas de preconceitos e
de intenc;:oes difamat6rias.5 Outra forma de canibalismo foi
praticada pelas populac;:oes europeias, especialmente nas elites,
5 Vide Abguar Bastos, A pantojagia ou as estranhas pniticas alimentares na selva; Frank Les-tringant, Ie Cannibale. Grandeur et Decadence; e "Eva T upinamba", de Ronald Raminelli,in Del Priore, 1997, pp. II-H.
COMJDA E SOCIEDADE
121
por meio do consumo de mumias como remedio. 0 trafico de
mumias e produtos cadavericos como musgo nascido num cra-
nio, assim como de sangues e de divers as partes do corpo huma-
no com uso farmaceutico, fez parte da medicina ocidental ate
pelo menos 0 seculo XVIII, e apesar de violarem as interdi'r0es
biblicas explicitas a ingestao de sangue6 foram aceitas e usadas
pelo clero e pelas cortes.
As regras alimentares mais divers as organizam a nutri'rao das
diferentes popula'roes. Os povos semitas, por exemplo, excluem
da sua alimenta'rao diversos animais. Os chineses nao conso-
mem 0 leite e seus derivados, enquanto os japoneses reduzem 0
seu consumo carnivoro quase exclusivamente aos peixes. T ais
regimes alimentares sao algo mais do que habitos, a ado'rao
consciente de regras religiosas ou mesmo de preceitos dieteticos
ou morais. Eles estao inscritos ate mesmo na Biologia, como e 0
caso da dificuldade de os chineses metabolizar certas enzimas
necessarias a digestao dos produtos lacteos ou da adapta'rao em
geral da alimenta'rao ao clima. Os habitos e tradi'roes alimenta-
res constituem uma heran'ra cultural que e recebida junto com 0
leite materno e que permanecera tanto no nivel consciente das
prerrogativas religiosas ou dieteticas como no nivel inconscien-
te das mentalidades e dos gostos coletivos.
HENRIQUE CARNEIRO
122
GASTRONOMIA E
ESTETICA DO GOSTO
A mais tradicional das vertentes modernas de estudos culturais
da alimenta<;ao e ados livros sabre hist6ria da culinaria, que tern
como base compila<;oes de receitas e deriva<;oes num terreno este-
tico, de hist6ria do gas to, que se imbrica com a hist6ria dos habi-
tos, dos costumes e das modas. A no<;ao hist6rica do gosto e urn
objeto de intensas especula<;oes literarias que abrangem afirma-
<;oesde identidades culinarias. Nao e apenas como urn campo es-
pedfico de investiga<;ao da disciplina hist6rica au antropo16gica
que a alimenta<;ao interessa a ciencia e constitui-se urn objeto
cientifico. Esse saber e tambem empirico e, antes de tudo, uma
atividade pratica: "a prova do pudim e come-lo". Uma ciencia de
urn gozo constitui uma arte, p0rtanto e tambem como aspecto da
hist6ria da arte que a hist6ria da alimenta<;ao deve abordar a gas-
tronomia, tanto no seu aspecto tecnico como literario. 0 aspecto
estetico da alimenta<;ao foi abordado em diferentes obras, dentre
as quais e preciso ressaltar as resultados de urn co16quio realizado
em Lausanne dedicado especificamente a estetica visual da apre-
senta~ao dos alimentos e denominado apropriadamente: "Comer
com os olhos."
A estetica alimentar refere-se nao apenas ao gosto ou a apre-
senta~ao dos alimentos como aos recursos tecnicos ligados ao
gesto e ao rito da alimenta~ao. A evolu~ao do prato raso e dos
talheres, por exemplo, e recente. 0 garfo so difundiu-se apos 0
seculo XVI a partir de Veneza, mas 0 seu uso generalizado so
ocorreu por volta de 1750, quando os chineses ja usavam ha
quase urn milenio os estojos com pauzinhos e tigelas enverniza-
das. 0 espa~o arquitetonico e 0 mobiliario alimentar tambem
saG parte da historia estetica e moral da alimenta~ao.
Ate 0 seculo XIX, a historia da alimenta~ao confundia-se
com a suposta historia de certos alimentos, uma "historia gas-
tronomica legendaria", e que ainda e a ideia mais imediata que
ocorre numa leitura apressada do que seja 0 objeto da historia
da alimenta~ao. A his tori a da alimenta~ao nao e somente ados
alimentos e tampouco se restringe a urn discurso gastronomico.
Os sabores saG algo mais do que 0 desfrute de urn sentido que
indica a comestibilidade das coisas. 0 gosto diferenciado e 0
que caracteriza os diferentes povos e as diferentes epocas de
uma mesma cultura. A maturidade de uma cultura foi identifica-
da nao apenas com as suas conquistas espirituais ou realiza~6es
materiais, mas com 0 grau de elabora~ao de suas tecnicas e cria-
HENRIQUE CARNEIRO
124
'roes alimentares, que sao, ao mesmo tempo, expressao tecnica
material e inventividade artistica, constituindo assim "uma (0-
zinha rebuscada, como conhece toda a civiliza'rao na idade adul-
ta, a chinesa a partir do seculo V, a mU'rulmana por alturas dos
seculos XI e XII, a ocidental com 0 exito italiano, depois 0 da
Fran'ra C...) a partir do seculo XVI".!
A palavra gastronomia foi usada pela primeira vez na tradu'rao
francesa do Banquete dos s<jistas, de Ateneu, em 1623, para refe-
rir-se ao titulo de uma obra perdida de Arquestrato, 0 neto de Pe-
ricles. Esse termo foi popularizado, em 1801, num longo poema
de Joseph Berchoux, passando a designar a "boa mesa". Outros
termos, como gastrolatria, presente em Rabelais, grande escritor
frances do seculo XVI, ou gastros<jia, proposto por Fourier, 0 so-
cialista ut6pico oitocentista, nao encontraram a mesma recep'rao
e calram em desuso. Mais do que 0 comer com voracidade Cpara 0
qual existem 104 palavras ou expressoes, na lingua francesa),
identificado no termo gastrolatria, 0 novo termo, possuidor de co-
nota'r0es ordenadoras ("legisla'rao do estomago"), passou a des-
crever urn usa requintado e delicado dos alimentos.2
Na virada para 0 seculo XIX, a interpreta'rao da alimenta'rao
liberta-se das imposi'roes dietetic as e medicinais, assim como
2 Jean-Robert Pitte, Gastronornia jrancesa. Historia egeografia de urna paixiio, Porto Alegre.LP&M, 1993, p. 17.
COMIDA E SOCIEDADE
125
das restri<;:6es morais, para expressar-se numa literatura que nao
mais se envergonha de proclamar as benesses do pecado capital
da gula. Ap6s a Revolu<;:ao Francesa, urn curio so esteta do gos-
to, Grimod de La Reyniere, passou a cultivar 0 habito de escre-
ver sobre comida e a organizar banquetes extravagantes, ajudan-
do a popularizar na Fran<;:aos novos termos de gourmets e gastro-
nomes para designar os amantes declarados dos prazeres da mesa.
Outro marco da gastronomia filos6fica do seculo XIX e Bril-
lat-Savarin que, em 1825, no Fisiologia dogosto, dedicou-se a reali-
zar uma sumula aforismatica do conhecimento hist6rico e nu-
tricional de sua epoca, com exalta<;:6es ao queijo, ao chocolate e
as trufas, uma "teoria da fritura" e maximas famosas como: "A
descoberta de urn novo prato faz mais pela felicidade do genera
humano que a descoberta de uma estrela."
A hist6ria do gosto e uma das facetas de uma hist6ria que e a
do cotidiano, mas tambem de profundas estruturas sociais e ideo-
l6gicas. 0 sentido gustativo que serve de generaliza<;:ao para 0 jui-
zo de valor (0 "born gosto") foi estendido a todos os outros do-
minios do deleite sensorial e, ate mesmo, para a esfera da raciona-
lidade, pois, como ja vimos, 0 termo "saber" deriva do latim sape-
re, "ter gosto". A hist6ria do gosto estetico ou literario relacio-
na-se com a do gosto culinario, no interior do qual tambem en-
contraremos vertentes neoclassicas assim como voca<;:6esbarro-
cas. A manuten<;:ao do gosto pelos pratos fortemente condimen-
HENRIQUE CARNEIRO
126
tados, tao tipica da epoca renascentista, tornar-se-a urn tras:o bar-
roco numa Frans:a em que 0 classicismo voltava a louvar 0 culto
do natural, levando Voltaire a escrever em seu Dicionario jilosijico,
no verbete "Gosto": "como 0 mau gosto em nivel fisiologico con-
siste em so se deleitar com temperos muito picantes e elaborados,
assim 0 mau gosto nas artes consiste em so se comprazer com or-
natos rebuscados e nao apreciar a beleza natural".3
o saber gastronomico ante cede a historia da alimentas:ao e
constitui-se junto com toda a arte e ciencia da feitura dos alimen-
tos, desde 0 dominio do fogo, dando 0 saIto do cru para 0 cozido,
ate 0 intercambio acelerado dos produtos do comercio de longo
curso, chegando amigras:ao de especies do periodo moderno, que
popularizou produtos e tecnicas de remotas regioes para 0 con-
junto do planeta, constituindo as diferentes tradis:oes de comb i-
nas:oes de produtos, molhos e formas de preparo.
Esse saber gastronomico, presente nas culturas orais ou nos
livros de receitas, torna-se, no seculo XIX, urn objeto de especu-
las:ao filosofica. A utopia de Charles Fourier, urn filosofo uto-
pico contempodneo da Revolus:ao Francesa e cuja obra, em
grande parte, permaneceu inedita em sua epoca, dava continui-
dade ao tema da utopia alimentar e previa 0 advento da gastro-
sofia, quando a questao culinaria se tornaria, ao lado do sexo, a
3 Flandrin & Montanari, op. (it., p. 548; e Jean-Fran~ois Revel, Urn banquete de palavras,Sao Paulo, Companhia das Letras, 1996.
COMIDA E SOCIEDADE
127
mats tmportante preocupas:ao e atividade dos cidadaos e do
Estado, e haveria oceanos de limonada e batalhas gastros6ficas
para se disputar em torno da excel en cia de pasteizinhos ou de
delicadas espumas nutritivas. Em todas as utopias medievais de-
rivadas do imaginario do pais da Cocanha, encontra-se a abun-
dancia fantastica dos alimentos, a cornuc6pia inesgotivel, os lei-
toes que ja vem assados e os rios de leite, mel e vinho.
Nao e coincidencia que Fourier seja 0 mais exuberante em re-
lacionar os prazeres da cama com os da mesa, nem que 0 verbo
"comer" signifique, em inumeras linguas, aIem do ato de ingerir
alimentos, tambem 0 ato sexual. Como sabemos, existe uma ten-
dencia universal em fazer associas:ao ritual e verbal entre comer
e manter relas:ao sexual. Eurn truismo dizer que 0 sexo e a comi-
da saD dois p610s do sentido da vida humana. E que, como tais,
eles extravasam suas funs:oes meramente materiais de assegurar a
sobrevivencia dos individuos e a da especie para torna-los ma-
trizes simb6licas essenciais de toda cultura. 0 poeta alemao
Schiller ja dizia que "0 amor e a fome movem 0 mundo". Talvez
por sua imporrancia estrategica para a vida, essas duas ativida-
des constituem-se as Fontes mais intensas do prazer carnal.
A filosofia, no entanto, com exces:oes como as de Fourier,
em geral teve uma relas:ao conflituosa com a alimentas:ao. Pla-
tao via no ventre a metifora da camada mais baixa do povo, in-
teressada unicamente na satisfas:ao fisica, enquanto os bras:os
HENRIQUE CARNEIRO
128
representariam os guerreiros, e a cabe<;:apensante, os fi16sofos.
Kant, muito tempo de po is, ainda continuaria a distinguir os
sentidos entre os superiores (tato, visao e audi<;:ao), por serem
objetivos, e os inferiores (olfato e paladar), que seriam subjeti-
vos e, p0rtanto, "exercem mais a representa<;:ao do deleite que
do conhecimento dos objetos exteriores". A sensorialidade e a
sensualidade foram muito desprezadas na filosofia ocidental.
Uma "positividade sensualista", herdeira do materialismo
Frances e do sensualismo ingles enfrentando 0 ideal ascetico,
s6 surgiu no seculo XVIII. Ate entao, a frugalidade e a recusa
aos ape10s da carne seriam exaltadas como principio dietetico
e moral. 0 cinismo alimentar de Di6genes, comedor de carne
crua e inimigo de todo refinamento, encontrara seguidores em
Rousseau, critico da gastronomia, vista por e1e como" ciencia
do superfluo, do inutil e do luxo, argumento da decadencia e
da perversao do paladar". 4
4 Michel Onfray. A raziio gulosa. Filosojia do gosto. Rio de Janeiro. Rocco. 1999; e 0 VlII-
tre dosjil6sojos. Crftica da razao dietitica, Rio de Janeiro, Rocco. 1990, p. 44.
A HISTORIOGRAFIA INTERNACIONAL
DA ALIMENTAc;XO
Urn "campo" de estudo hist6rico ou historiografico e urn es-
pas:o conceitual elastico e de fronteiras difusas. Como circuns-
crever a hist6ria da alimentas:ao como urn campo de pesquisas?
As investigas:oes particulares, a partir de fontes divers as -litera-
rias, folcl6ricas, iconograficas, economicas e arqueol6gicas -,
puderam informar a historiografia de muitos dados: relas:oes de
produtos e formas de preparo, flutuas:oes de pres:os de alimen-
tos, dietas supostas de determinados grupos, descris:oes de habi-
tos a mesa ete., mas nao chegaram a constituir a historia geral da
alimentas:ao como urn campo especifico de estudo. Urn obsta-
culo que persiste e a limitas:ao da bibliografia disponivel. I Os
estudos asiaticos e africanos, por exemplo, sao raros entre nos e
I Urn levantamento bibliografico amplo encontra-se em "A historia da alimenta~ao:balizas historiograficas", Ulpiano Bezerra de Meneses e Henrique Carneiro, Anais doMuseu Paulista: Historia e Cultura Material, Nova Serie, Vol. 5, jan/ dez de 1997, em quese baseiam este capitulo e 0 proximo.
pouco acessiveis.2 Sem pretender enfocar a imensa e diferencia-
da bibliografia sobre a alimenta'rao asiatica, pode-se mencionar,
apenas como exemplo sobre 0 pape! da alimenta'rao na constitui-
'rao de uma identidade cultural, 0 caso do Japao, onde 0 arroz e
estudado em suas repercussoes sobre a cultura japonesa.3 T am-
bem 0 cha foi estudado como urn genero alimenticio de extrema
importancia economica, politica e cultural em diversos paises
orientais.4 Estes exemplos, no entanto, sao minoritarios numa
bibliografia de autores majoritariamente europeus e america-
nos. Isto decorre de uma evidente impossibilidade de se abran-
ger exaustivamente urn tema como a alimenta'rao e da maior dis-
ponibilidade de uma bibliografia originada no universo latino e
anglo-saxao.
A alimenta'rao passou a ser abordada em estudos com uma
ambi'rao hist6rica universalizante somente no seculo XX, quan-
do 0 professor de boranica na Escola Tecnica Superior de Lvov,
Adam Maurizio, se perguntou 0 porque de nao haver uma hist6-
2 Sobre a riquissima e milenar culinaria chinesa existem institui~6es e publica~6es eforam realizados coloquios, como 0 The First International Symposium on Chinese Dietetic
Culture, realizado em Beijing (julho de 1991), seguido do The Second Symposium 011 Chi-
nese Dietary Culture, em Taipei, Taiwan (setembra de 1991). Este Ultimo foi promovi-do pe/a Foudatioll oj Chinese Dietary Culture, que se soma a divers as outras institui~6es naAsia, sobretudo na China e no Japao, algumas criadas por empresas de alimenta~aocomo, por exemplo, desde 1989, a Ajinomoto Foudatioll for Dietary Culture.
HENRIQUE CARNEIRO
132
ria da alimentas:ao, que ele considerava uma hist6ria da agricul-
tura, ou seja, "uma hist6ria das plantas importantes do ponto de
vista da agricultura", propondo-se, como resultado, a tratar de
tal tema. Embora cite e reconhes:a algumas outras iniciativas se-
melhantes,5 considera-as validas apenas pela intens:ao. E de
fato, a obra de Maurizio foi uma das primeiras a constituir 0 es-
tudo da alimentas:ao como 0 centro norteador de uma pesquisa
sobre os sistemas alimentares da especie human a desde a
Pre- Hist6ria. 6
Alem das obras com vocas:ao universal e dos estudos nacio-
nais em hist6ria da alimentas:ao, outro tipo de enfoque mono-
gdfico constituiu os fundamentos desse campo da historiogra-
fia: os estudos sobre a hist6ria de determinados alimentos.
Entre estes estudos, encontramos as hist6rias dos seguintes ge-
neros: do pao, do milho, da batata, da soja, do queijo, do sa!, do
as:ucar, do me!, da cerveja, do vinho, da cachas:a, da vodca, do
chi, do cafe, do mate, do chocolate, da Coca-Cola, da margari-
na, dos biscoitos, do hamburguer entre outros.7
5 L. Bourdeau. Histoire de l'Alimentation, 1894; e G.D. LichtenfeIt, Geschichte der Erniih-rlmg. 1913.
6 Publicada em polones em 1926, foi traduzida para a frances, em 1932, como Histo-ire de l'Alimentation Vegetale Depuis la Prihistoire Jusqu'a nos Jours.
COMIDA E SOCIEDADE
133
Com Maurizio, fundou-se urn enfoque historiografico sobre
a alimenta~ao que superou 0 discurso e 0 saber gastronomicos,
com a sua hist6ria legendaria dos alimentos, assim como as his-
t6rias ou etnografias de alimenta~oes regionais e/ou nacionais,
as hist6rias de alimentos espedficos ou todo 0 saber renascen-
tista inspirado na cultura classica greco-romana que tratava os
alimentos como objeto de Medicina devendo ser submetido aos
preceitos da dieta e do equilibrio dos humores.
Ao mesmo tempo em que desabrochavam obras sinteticas,
como a de Maurizio, tambem se produziam em divers os paises,
des de 0 seculo XIX, estudos hist6ricos sobre suas alimenta~oes
nacionais. Especialmente pr6digos nestes estudos sao a Ingla-
terra, os Estados Unidos e a Franp, onde divers os trabalhos
vem tratando da hist6ria nacional da alimenta~ao. E em muitos
outros paises, especialmente na America Latina, podemos citar
ao menos uma obra que, em geral na primeira metade do seculo
XX, procurou estudar a alimenta~ao nacional: na Espanha, Ce-
receda (1934); no Mexico, Espinosa (1939); na Colombia, Be-
jarano (1941); no Chile, Madones e Cox (1942); e na Vene-
zuela, Guevara (1946). A constitui~ao dos Estados nacionais
acompanhou-se da uniformiza~ao de uma lingua nacional, as-
sim como da constru~ao ideol6gica de uma "identidade nacio-
nal", no interior da qual assume imensa relevancia a ideia de
uma "cozinha nacional", que deveria superar, por vezes inte-
HENRIQUE CARNEIRO
134
gran do e por vezes isolando, os particularismos regionais. Nao e
coincidencia que os estudos sobre "alimentas:6es nacionais"
surjam na Europa do seculo XIX, momenta de consolidas:ao
das nas:6es europeias, e no segundo pos-guerra na America Lati-
na, tambem urn momenta de afirmas:ao nacional no continente.
A Frans:a e urn pais de renomada tradis:ao culinaria. Nos ter-
renos teorico e academico nao poderia ser diferente. A nova his-
toriografia francesa dos anos 30 foi uma das raizes dos estudos
em historia da alimentas:ao. Sob a influencia da historia econo-
mica, em ruptura aberta com 0 positivismo da historia "aconte-
cimental" (tvenementielle), surgiu na Frans:a, nos anos 30, a cha-
mada escola dos Annales, cuja revista divulgou uma inquietas:ao
que, sob 0 programa da historia "global" ou "total", de Lucien
Febvre, pretendia abarcar todas as esferas da vida social. Duran-
te muito tempo a historia fora narrada a partir dos gran des
acontecimentos, da historia politica e nacional de cada pais,
como historia diplomatica e oficial. Desde 0 inicio do seculo
XX, a influencia da teoria economica pressupos a busca de uma
outra din arnica temporal, na qual as tendencias e as conjunturas
tomaram precedencia em relas:ao aos fatos e eventos.
o nivel do economico foi conceituado, por Fernand Braude!,
o sucessor de Fevbre na dires:ao dos Annales, como aquele da tro-
ca, do mercado. Abaixo dele estaria urn outro nivel, infra-eco-
nomico, que seria 0 da vida material e biologica. 0 conceito de
COMIDA E SOCIEDADE
135
cultura material abrangeria os aspectos mais imediatos da so-
brevivencia human a: a comida, a moradia, a roupa. A longa du-
ra~ao, concebida como a escala na qual se davam os fenomenos
superiores aos eventos e as conjunturas, tornou-se a dimensao
no interior da qual novos objetos tomariam consistencia his to-
riografica. A vida cotidiana, a cultura material, as mentalidades,
o corpo, a familia e a morte sao alguns dos temas que emergem a
tona das profundezas aparentemente congeladas dos tempos
para se revelarem na dialetica da sua transforma~ao e da sua per-
manencia como no~i3es plasticas, sujeitas a mudan~as, mesmo
que elas apare~am como imperceptiveis para os proprios prota-
gonistas.
No ambito da cultura material, a alimenta~ao destaca-se
como 0 aspecto mais importante das estruturas da vida cotidia-
na. Urn dos primeiros historiadores franceses dos Annales a estu-
da-Ia foi Lucien Febvre, que se interessou sobre diversos aspec-
tos inexplorados da geografia historica francesa, como a defini-
~ao de urn mapa dos oleos de cozinha us ados na Fran~a.8 Como
diretor da Encyclopedie Franfaise, Lucien Febvre fundou uma co-
missao de investiga~i3es coletivas para buscar uma convergencia
entre a Etnografia e a Historia e, entre 1935 e 1937, empreen-
8 Terna ao qual de consagrou urna interven~ao no Prirneiro Congresso Nacional deFoldore. em 1938, e foi retornado no inicio dos anos 60 na revista Annales E.S. C. porJ.-J. Hernardinquer.
HENRI QUE CARNEIRO
136
deu quatro investiga~oes, uma delas sobre a alimenta~ao campo-
nesa tradicional (as outras eram: meios de transporte e locomo-
~ao; evolu~ao da forja de aldeia nos ultimos 50 anos; e colheitas
e fogos de Sao Joao e Quaresma). 0 tema da alimenta~ao nao
foi desenvolvido, no entanto, a nao ser muitos anos mais tarde
quando, em 196 I, a revista Annales E.S. C. abriu as paginas da sua
edi~ao de maio-junho com a proposta, num texto assinado por
Fernand Braudel, de urn "retorno as enquetes". Embora retorno,
de fazia quesrao de declarar que nao se tratava das mesmas que
anteriormente haviam sido empreendidas por Marc Bloch e Lu-
cien Febvre, sobre "nobrezas" e "tecnicas". A investiga~ao en-
tao em pauta se debru~aria sobre dois temas: "A historia, ciencia
social atual", e "A historia da vida material e dos comportamen-
tos biologicos". Apenas 0 segundo tema, contudo, passou a ser
desenvolvido nos numeros seguintes.
Braudd, encarando a Historia como uma "ciencia das ciencias
do homem", propoe-lhe a tare fa de investigar nas distintas dura-
~oes do tempo, a vida material, "infra e extra-economica". Para
definir 0 dominio abarcado por essa defini~ao de "vida material",
diversos pontos de vista se of erecern: os da propria Hist6ria, mas
tambem os da Geografia, da Antropologia, da Sociologia, da
Economia, da Demografia, do Folclore, da Pre-Historia, da Lin-
guistica, da Medicina, da Estatistica. Diante de tal complexidade,
de propoe que cada disciplina coloque 0 problema nos seus pr6-
COMIDA E SOCIEDADE
137
prios termos e que a Historia integre-os e compreenda-os na es-
pessura do tempo. A vida material pode ser dividida em "cinco
setores muito proximos: a alimentas:ao; a habitas:ao e 0 vestuirio;
os niveis de vida; as tecnicas; os dados biologicos". "A vida mate-
rial vai, assim, das coisas aos corpos." Diferentemente da vida
economica ou social, a vida material se situa em outro patamar,
onde quase nao hi consciencia da parte dos atores. E como uma
"infra-historia", portanto, ou uma "infra-infra-estrutura", que se
apresentava essa historia dos "alimentos, das vestimentas e das
habitas:oes". Enquanto "a vida economica, as instituis:oes, a socie-
dade, as crens:as, as ideias, a polltica" relacionam-se com as "aten-
s:oes e vigilancias", a vida material relaciona-se com "habitos, he-
rans:as e escolhas longinquas".
o metodo para 0 estudo da vida material deveria ser "regressi-
vo", partindo do conhecimento preciso das cifras que a docu-
mentas:ao contemporinea of erecia para se poder medir e compa-
rar. Esse aspecto quantitativista, serial, de buscar todos os dados
numericos de populas:oes, pres:os, volumes de produs:ao, fluxos
de comercio, estimativas nutricionais, expressava uma das verten-
tes que caracterizou a segunda fase dos Annales, sob influencia de
Labrousse e do proprio Braude!. A perspectiva que se descortina
nestes estudos seriais e estatisticos extravasa 0 tempo curtotdos
eventos. Na historia da alimentas:ao - que "se decompoe regular-
mente como uma historia qualquer em fatias cronologicas de
HENRIQUE CARNEIRO
138
maior ou menor espessura" - os eventos perdem-se no tempo das
conjunturas curtas e longas e Braudel aponta "a verdadeira longa
dura<;:ao" como uma camada mais prop kia, que "quase nos lib era
do peso preciso do tempo", para situar as transforma<;:oes nos ha-
bitos alimentares. Ele usou a metafora da pesca para a Historia: se
quisermos agarrar os grandes peixes e preciso usar redes apropria-
das. A amplia<;:ao das malhas da rede podera aumentar tambem a
dimensao da pescaria, chegando a perseguir as influencias ainda
presentes da "revolu<;:ao neolitica". Adam Maurizio, por exem-
plo, a referencia ainda "valida, uti! e indispensavel" para os histo-
riadores, completa 0 estudo das plantas coletadas na Pre-Historia
com uma investiga<;:ao do seu uso moderno nas grandes fornes,
como sobrevivencias de praticas milenares.
Alguns criterios metodologicos deveriam guiar os estudos
sobre alimenta<;:ao: apoiar-se sobre os dados da atualidade e nao
incorrer num "determinismo alimentar", de querer explicar a
historia inteira dos homens a partir dos alimentos. 0 foco nos
regimes alimentares deveria ser a identifica<;:ao de como se com-
binam os elementos nutritivos e se sao estabelecidos ou nao
"equilibrios biologicos" em cada grupo ou sociedade. No nivel
da carencia so haveria desequilibrio, ou seja, fome, compreendi-
da como desnutri<;:ao. Uma distin<;:ao alimentar separa social-
mente as dietas em todas as epocas. Dois regimes sempre se
opoem como modelos antipodas: os monotonos e os variados.
COMIDA E SOCIEDADE
139
Outro aspecto, entre tanto, tambem assumiu relevo nas inves-
tigar;:6es dos anos 60, 0 da comida como representar;:ao ou sim-
bolo. Como escreveu Maurice Aymard, ap6s os Annales, em
1961, terem recolocado em questao 0 tema da alimentar;:ao na
Hist6ria, tres gran des vias se abriram para a hist6ria da alimen-
tar;:ao: a de uma psicossociologia da alimentar;:ao, ou seja, "dos
valores, regras e simbolos" da alimentar;:ao; a macroeconomica,
que buscaria enquadrar estatisticamente a alimentar;:ao, por
meio de estudos de consumo, popular;:ao, prer;:os e comercio ex-
terior; e, finalmente, a do estudo do valor nutritivo e das caren-
cias, quantitativas e qualitativas, da alimentar;:ao dos tempos
passados, considerada como a linha de pesquisas "mais eviden-
te, mas nao a mais fkil". Em relar;:ao a esta ultima linha invest i-
gativa, seria preciso, com a finalidade de mensurar dietas de di-
ferentes periodos hist6ricos, esbor;:ar "urn metodo uniforme de
dlculo que permita as comparar;:6es entre regimes alimentares,
no tempo e no espar;:o".9 Foram realizadas comparar;:6es de re-
gistros de despensa para estimativas do real valor nutricional de
dietas de setores sociais espedficos.1O Em outro estudo, a partir
10 Abastecimento de seis frotas espanholas entre 1542 e 1642; corte da Suecia e seusservidores em 1573; expedi~6es portuguesa e espanhola para a Africa do Norte em1578; hospital dos incuraveis em Genova em 1608-1609; uma familia nobre na mes-ma cidade entre 1614 e 1615; coIegio Borromeo de Pavia, entre 1609 e 1618; tresdespensas civis na Inglaterra em distintas epocas; comboio de 2.000 soldados e 608cavaIeiros de Napoles para a Espanha.
HENRIQUE CARNEIRO
140
de urn d.lculo realizado por Lavoisier sobre 0 total de viveres
consumidos em Paris e os seus pres:os globais, Robert Philippe
concluiu ter havido uma deterioras:ao na alimentas:ao parisiense
na primeira metade do seculo XIX. Outros artigos surgidos nes-
se periodo trataram da alimentas:ao de regioes e epocas bem cir-
cunscritas de alguns paises europeus, sobretudo a Frans:a.
Os alimentos especificos e seus fluxos comerciais foram urn
aspecto central das preocupas:oes dos Annales. Dentre estes, urn
acima de todos, 0 sal, produto escasso no norte da Europa, es-
sencial sobre todos os pontos de vista (nutricional, gastronomi-
co, tecnica de conservas:ao ), foi objeto de urn comercio que mer-
gulha suas origens na Pre-Hist6ria. Urn seminario na Sorbonne
eo encontro internacional "0 sal no trafico maritimo intern a-
cional da Idade Media aos nossos dias", em 1961, abordaram 0
pape! do sal na hist6ria. Braudel escreveu 0 artigo "Compras e
vendas de sal em Veneza (1587 -1593)", sublinhando ter sido 0
sal "a razao do primeiro impulso" de V eneza.
o impulso inicial da revista Annales nos anos 60 influenciou
outros debates sobre alimentas:ao. Robert Mandrou discutiu os
movimentos de longa duras:ao na hist6ria da alimentas:ao a par-
tir de dois artigos sobre 0 consumo de carne na Alemanha, des-
de a Idade Media ate 0 seculo XIX, Jean-Paul Aron enfocou a
formas:ao das conceps:oes sobre a biologia alimentar, especial-
mente a analise da fisiologia da digestao, da nos:ao de regime e
COMIDA E SOCIEDADE
141
do conceito de ras:ao alimentar, e Roland Barthes analisou as-
pectos da significas:ao das diferens:as culturais em relas:ao a ali-
mentas:ao, por exemplo 0 porque de os americanos consumirem
quase duas vezes mais aplcar do que os franceses, introduzindo
elementos de uma semiologia da alimentas:ao na qual os alimen-
tos saG vistos como signos de urn sistema de comunicas:ao. Jean-
Jacques Hemardinquer organizou a antologia "Por uma hist6-
ria da alimentas:ao" (1970) e 0 Atlas das culturas alimentares (Ber-
tin, Hemardinquer, Keul e Randles, 1971) que, como definiu
Pierre Chaunu, abrange "10.000 anos, a Terra inteira e as 18
plantas fundamentais que asseguram 90% do alimento vegetal
humano".
A Inglaterra foi outro pais no qual a alimentas:ao constituiu-
se urn tema definido da historiografia, partilhando aspectos da
hist6ria social, cultural e, principalmente, economica. A indus-
trializas:ao prototipica desse pais suscitou grande debate sobre
as relas:6es da Revolus:ao Industrial com a alimentas:ao, facilita-
dos pela existencia de amplas informas:6es estatisticas.
Os focos de interesse da hist6ria da alimentas:ao briranica saG
relativos ao periodo mais estudado, 0 que sucede a industriali-
zas:ao, e a principal produs:ao historiografica sobre a alimenta-
s:ao na Inglaterra foi parte dos estudos economicos sobre as
consequencias da industrializas:ao. 0 angulo preferencial tern
sido 0 economico e social: estudo do abastecimento, das commo-
HENRIQUE CARNEIRO
142
dities, do consumo, do status nutricional, da distribui<;:ao, dos
or<;:amentos e dos gastos alimentares e, num segundo plano, da
cozinha, dos pratos e dos horarios de refei<;:ao.
Grande numero de trabalhos sobre a hist6ria de determina-
das commodities na 1nglaterra trata de bebidas alc06licas e
nao-alc06licas, 0 que leva os his tori adores a enfocarem tambem
a questao social do alcoolismo e da temperan<;:a, num pais em
que as condi<;:6es de urbaniza<;:ao e de vida operaria provocaram
grandes altera<;:6es dieteticas nas camadas amplas do campesina-
to que engrossaram os precarios bairros das cidades industriais.
Friedrich Engels, em A situafiio da classe trabalhadora na Inglaterra
(1845), destacou, alem das doen<;:as e carencias nutricionais, 0
uso generalizado de aguardente ou 6pio para aplacar a fome ate
mesmo de crian<;:as.
Desde 1856, autores como George Dodd (The Food if London),
investigaram as peculiaridades da alimenta<;:ao inglesa e londri-
na em particular. Em 1963, a University of London promoveu
o Seminario de Historiadores e Nutricionistas do Queen Elizabeth College
(que mais tarde passou a fazer parte do King's College, Lon-
dres) que foi na opiniao de Derek Oddy H a mais duradoura e
produtiva Fonte de trabalhos em hist6ria dietetica e da alimen-
ta<;:ao".As primeiras conferencias produziram Changing Food Ha-
bits and Our Changing Fare; os seminarios mais recentes e regulares
forneceram as bases para as seguintes publica<;:6es: The Dietary
COMIDA E SOCIEDADE
143
Surveys oj Dr. Edward Smith (1970), Fish in Britain (197 I), The Ma-
king oj theModern British Diet (1976), e Diet and Health in Modern Bri-
tain (1985). Os encontros mais recentes do Seminario produzi-
ram trabalhos sabre 0 tema "Passado do Primeiro Mundo: Pre-
sente do T erceiro Mundo". II
Os historiadores e nutricionistas do grupo do King's Colle-
ge, constituiram-se, talvez, como 0 centro mais importante da
pesquisa em hist6ria da alimentas:ao na 1nglaterra. Alem deste
grupo, Oddy aponta a existencia de outros, como os seminarios
desenvolvidos na Universidade de Oxford pelo Dr. Zeldin, que
forneceram estimulos, entre outras, para a obra de Harvey Le-
venstein, Revolution at the Table (1988), que trabalhou com as
transformas:oes da dieta inglesa na America do Norte.
o historiador ingles John Burnett publicou, em 1966, urn es-
tudo da hist6ria economica e social da alimentas:ao inglesa,
Plenty and Want. A Social History oj Food in England from Z8 Z5 to the
Present Days. No prefacio da terceira edis:ao desta obra, Burnett
(1989) reconhecia que "a hist6ria da alimentas:ao e atualmente
uma area aceita de erudis:ao academica e nenhum balans:o serio
das transformas:oes economicas e sociais da 1nglaterra durante
os dois ultimos seculos omite agora referencias as mudanps nas
maneiras pelas quais a alimentas:ao foi produzida, manufatura-
HENRIQUE CARNEIRO
144
da, distribuida e consumida". Apesar de uma rica produs:ao his-
toriografica sobre alimentas:ao na Inglaterra,12 em comparas:ao
com outros paises, Oddy & Burnett ainda consideram que "a
crias:ao de uma bibliografia de estudos hist6ricos do abasteci-
mento e consumo alimentar e do estado nutricional do povo
britanico e relativamente esparsa". 13
Sobre a Alemanha, T euteberg escreveu The Diet as an Object 0/
Historical Analysis in Germany (I992) repleto de referencias sobre
os estudos que, desde 0 seculo XVIII, tratam da alimentas:ao na
Alemanha. Numa perspectiva continental mais limitada 0 La
Fame e l'Abondanza. Storia dell'alimentazione in Europa (1993), de
Montanari - especialista em hist6ria da alimentas:ao do periodo
medieval- e urn importante ensaio de interpretas:ao da alimen-
tas:ao europeia, especialmente da Italia. As compilas:oes biblio-
graficas sac ainda raras, sendo indispensavel citar Bibliotheca Gas-
tronomica, de Andre Simon (I953); 0 artigo "Food and Drink in
British history. A Bibliographical Guide" de William Henry Chaloner
(1960); e The History 0/ Food: A Preliminary Bibliography 0/ Printed
Sources, de David Sutton (I982). Como sintese bibliografica,
entretanto, 0 livro mais valioso e 0 European Food History. A Rese-
arch Review (1992), organizado por Hans J. Teuteberg a partir
COMIDA E SOCIEDADE
145
das contribui~6es apresentadas nas conferencias do First Simposi-
um on European FoodHistory, Munster, 1989. Esta antologia suma-
riza pesquisas relativas a alimenta~ao em periodos espedficos
em 14 paises ou regi6es da Europa (Inglaterra, 1rlanda, Holan-
da, Belgica, Fran~a, Alemanha, antiga Alemanha Oriental, Aus-
tria, Sui~a, Hungria, Polonia, Russia, Boemia e Suecia).
Diversas obras mais gerais dedicaram-se, nas ultimas deca-
das, a tratar, de uma perspectiva universal, da hist6ria da ali-
menta~ao.I4 Mais recentemente, 0 Frances Jean-Louis Flandrin
organizou, juntamente com 0 italiano Massimo Montanari,
uma enciclopedia antol6gica de quase 1.000 paginas intitulada
Histoire de fAlimentation (1996; traduzida ao portugues em 1998),
reunindo cerca de 50 pesquisadores, que abordam tematica e
cronologicamente os habitos alimentares da humanidade em to-
das as epocas, constituindo uma obra de referencia indispensa-
vel que sintetiza enorme esfor~o de pesquisa desenvolvido ao
longo das ultimas decadas, do qual buscamos aqui delinear par-
te do percurso hist6rico. Outra das mais recentes obras enciclo-
pedicas que podem ser mencionadas e a The Cambridge World His-
tory oj Food, de Keneth F. Kiple (2000).
1mpossibilitado de abranger 0 conjunto de uma bibliografia
dessa amplitude, este texto optou por debru~ar-se mais sobre al-
14 Entre as quais padem ser citadas a inglesa Reay Tannahill (1973) e a francesa Ma-guellanne T aussaint-Samat (1987).
HENRI QUE CARNEIRO
146
gumas gran des vertentes: uma delas, francesa sobretudo, ini-
ciou-se com a tradu~ao da obra do polones A. Maurizio, que in-
fluenciou a historiografia francesa dos anos 30, seguiu com os
trabalhos de Lucien Febvre e, mais tarde, de Fernand Braudel,
alcan~ou nas paginas dos Annales 0 contorno de urn projeto de
estudos coletivos da revista e prosseguiu, nos ultimos anos, com
as pesquisas estruturadas ao redor de Jean-Louis Flandrin na
Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales. Outra importante vertente
e a britinica, que produziu, desde 0 come~o do seculo, estudos
sobre a sua hist6ria nacional da alimenta~ao e uma serie de tra-
balhos monograficos sobre alimentos espedficos, especialmen-
te a batata, 0 milho e 0 pao.
A revista Food & Foodways, criada em 1985 e dirigida, entre
outros, por Jean-Louis Flandrin, da Ecole des Hautes Etudes en Scien-
ces Sociales, de Paris, e por Steven L. Kaplan, da Cornell Univer-
sity, e uma publica~ao cientifica especializada em hist6ria da
alimenta~ao que possibilitou urn encontro entre os pesquisado-
res de divers as vertentes, sobretudo entre os franceses e an-
glo-saxoes, e vem difundindo internacionalmente os trabalhos
hist6ricos e antropo16gicos ligados especificamente a questao
da "hist6ria e cultura da nutri~ao humana" assim como os mais
diferentes simp6sios, encontros e conferencias que tern se dedi-
cado ao tema da alimenta~ao em epocas e regioes as mais diver-
sas. Ao longo dos ultimos anos, esta revista vem debatendo te-
COMlDA E SOCIEDADE
147
mas diversos como por exemplo "Mudanc;:as de habitos alimen-
tares atraves do estudo de casos da Africa, America do SuI e Eu-
ropa" (199 I), "Modos de alimentac;:ao norte-americanos e a Se-
gunda Guerra Mundial" (1996) e "A disposic;:ao do tempo para
a alimentac;:ao e os ritmos sociais" (1996-97). Este ultimo tema
e uma questao c1assica de estudos para a Sociologia e a Antropo-
logia: 0 como e em que horarios se come e tao importante como
o que se come (ja em 1952, Arnold Palmer estudava a questao
da imporrancia dos horarios para se comer em Movable Feasts. A
Reconnaissance 0/ the Origins and the Consequences if Fluctuations in
Meal-Times). Alem destes temas, Food & Foodways tern publicado
colaborac;:oes variadas, destacando-se as incursoes para fora do
dominio europeu, com a presenc;:a de estudos e colaboradores
orientais, africanos e do mundo arabe.
Os veios principais da historiografia da alimentac;:ao que viemos
perseguindo se preocuparam, inicialmente, no periodo anterior aSegunda Guerra Mundial, com a "fome que grassou no passado e
suas relac;:oes com a conjuntura economica, 0 movimento dclico
dos prec;:os,a produc;:ao agricola e a demografia", enfocando a ali-
mentac;:ao a partir de sua analise a luz da hist6ria economica.I5
Nas decadas de 1960-1970 buscou-se, a partir de urn vies
nutricionista, conhecer "as carencias e os desequilibrios alimen-
HENRIQUE CARNEIRO
148
tares fora dos periodos de crise". A determinas:ao 0 mais exata
possivel das ras:6es cal6ricas, das propors:6es dos gliddios, pro-
tidios e lipidios, da presens:a de vitaminas e de elementos mine-
rais constituiu urn desafio que nao pode ser efetivamente reali-
zado dada a imprecisao dos metodos e das Fontes. De qualquer
forma, esse periodo conheceu tambem urn volumoso numero de
estudos monograficos locais e regionais que permitiu uma acu-
mulas:ao de dados, particularmente sobre os paises europeus nas
epocas moderna e contempod.nea. T ais pesquisas permitiram
"que se elaborasse urn atlas hist6rico das plantas cultivadas, 0
estudo da quantidade de as:ougues em certas areas rurais ou 0
dlculo do consumo de carne por habitante em varias cidades
medievais e modernas C ... ) ou, ainda, 0 estudo da estatura dos
soldados" . I 6
Outra orientas:ao, mais Hculturalista", desenvolveu-se a par-
tir das investigaS:6es antropol6gicas, preocupadas com" as pre-
ferencias alimentares, a significas:ao simb6lica dos alimentos, as
proibis:6es dieteticas e religiosas, os habitos culinarios, 0 com-
portamento a mesa e, de uma maneira geral, as relas:6es que a ali-
mentas:ao man tern, em cada sociedade, com os mitos, a cultura e
as estruturas sociais". I7 Entre os historiadores da alimentas:ao
COMIDA E SOCIEDADE
149
tal enfoque, de uma historia cultural da alimentas:ao, so tomou
corpo a partir do final dos anos 70.
a balans:o de Flandrin & Montanari considera que amadure-
ceu uma nova his tori a da alimentas:ao, produzida a partir de
multiplos pontos de vista, superando a "pequena historia do pi-
toresco e do tragico" contra a qual as pioneiros dos Annales se
manifestaram. A historia da alimentas:ao inscreve-se como urn
objeto de pesquisa que nao e mais "diferente" au "alternativo",
mas que agrega e integra diferentes vertentes para produzir urn
conhecimento dos comportamentos alimentares.
Das tres perspectivas de estudo que Maurice Aymard havia
apontado em 1975 para a historia da alimentas:ao - a psicossocio-
logica, a macroeconomica e ados estudos dos valores nutricionais
- evidencia-se, segundo a balans:o de Flandrin & Montanari, que a
primeira e a que mais vicejou. Tal balans:o talvez reflita a emergen-
cia, desde a inkio dos anos 80, de estudos sabre as mentalidades e
a imaginario, simulranea a uma certa crise da historia economica.
Tal separas:ao, no entanto, nao pode ser vista como absoluta, ha-
venda auto res, Sidney Mintz par exemplo, que dedicaram suas
obras a busca de uma compreensao dos processos economicos (0
comercio do as:ucar, par exemplo) a partir do seus significados cul-
turais, como representas:6es coletivas de gostos e identidades.
Da mesma forma, a tema da fame, emergente des de a se-
gundo pos-guerra, a partir das iniciativas pioneiras do cien-
HENRIQUE CARNEIRO
ISO
tista social brasileiro Josue de Castro, tern motivado pesqui-
sas academic as multiplas. Nos anos 70, a realiza'tao da confe-
rencia de Roma, da FAO, suscitou inumeros trabalhos sobre
o tema, entre os quais e destacavel 0 de Susan George. 18 Entre
1986-87 realizou-se na Brown University, nos Estados Uni-
dos, 0 Seminario sobre Historia da Fome (Hunger History Seminar),
propondo-se a estudar a fome nas divers as epocas da humani-
dade.I9 Conforme reconhecem, com certa ironica amargura,
Sara Millman e Robert W. Kates, participantes desta antolo-
gia, "a historia da fome na sua maior parte ainda nao foi es-
crita. Os famintos raramente escrevem historia, e os historia-
dores raramente SaGfamintos". Outra antologia sobre 0 mes-
mo tema, e ate com 0 mesmo nome, Hunger in History, foi or-
ganizada por Rotberg e Rabb (1985). Mais recentemente,
Mike Davis, professor de teoria urbana no 1nstituto de
Arquitetura do SuI da California publicou Holocaustos coloniais
(2002) sobre a rela'tao entre as grandes fornes, as mudan'tas
climaticas globais em escala milenar e a expansao dos imperia-
lismos europeus no final do seculo X1X.2o A historiografia
20 No Brasil, a revista Ciincia HOje. de maio-junho de 1994, abordou quest6es ligadasa nutri~ao e alimenta~ao, dedicando uma edi~ao especial ao tema da fome, intitulada"Fome ate quando?".
COMIDA E SOCIEDADE
151
da alimenta<;:ao tambem abordou, como parte intrinseca do
seu objeto, a hist6ria da fome.
Duas advertencias de Robert Philippe, no primeiro numero
da revista Annales E.S. C. que tratou sistematicamente desse
tema, em 196 I, permanecem vigentes para a hist6ria geral da
alimenta<;:ao. E preciso partir da analise das cifras atuais, da
compreensao de como nos alimentamos hoje, inclusive como
meio de superar as carencias que se agravam na atualidade,
para dai partir para os estudos de epoca com urn marco de refe-
rencia comparativa. E e preciso demarcar as vastas e facilmente
ultrapassaveis fronteiras desse territ6rio ainda inexplorado em
muitas areas.
tos sociais e economicos de realidades nutricionais, mesmo por-
que as realidades do consumo alimentar de epocas passadas sao
sempre estimativas e, muitas vezes, aproxima<;:oes relativas por
inferencias de Fontes hist6ricas de diferentes naturezas. Razao
pela qual Robert Philippe critic ava, no artigo supracitado, uma
tese (White, 196 I) que se propunha a explicar 0 impulso eco-
nomico, a expansao demogdfica urbana e rural e as transforma-
<;:oesarquiteturais e intelectuais do seculo X, como sendo 0 re-
sultado dire to de urn brusco enriquecimento na alimenta<;:ao no
Ocidente devido a ado<;:aode uma inedita rota<;:ao anual das cul-
turas e de urn desenvolvimento da cultura das leguminosas.
HENRIQUE CARNEIRO
152
Como balans:o do percurso e do esragio atual da historiogra-
fia da alimentas:ao podemos verificar que, apos as iniciativas de
alguns cla.ssicosprecursores, tanto no enfoque universalista de
A. Maurizio (1932) au D. Bois (1927) como nos enfoques mo-
nograficos de alimentos especificos, como par exemplo Sala-
man (1949) com a batata, conheceram-se algumas iniciativas
historiograficas academicas impulsionadas pdas revistas Annales
E.S. C. e Food & Foodways, e par universidades espalhadas par
todo a mundo, mas principalmente na Europa e nos Estados
Unidos. Com a produs:ao de urn imenso volume de monografias
historicas regionais, nacionais, au de alimentos especificos,
acrescido aos estudos produzidos pda Antropologia e pda So-
ciologia da Alimentas:ao, vem se consolidando urn dominio teo-
rico de estudos interdisciplinares: a da alimentas:ao. Sua maturi-
dade pode ser medida pdo surgimento de periodicos cientificos
especializados; pda realizas:ao de encontros, coloquios e semi-
narios; pda publicas:ao de uma volumosa produs:ao de analise
historic a, antropologica e sociologica da alimentas:ao e, particu-
larmente, pda organizas:ao de antologias (Mars, 1993), dicio-
narios (Craplet, 1979, e Appfelbaum et alli, 1981), compendios
(Bennet, 1954) e cronologias (Trager, 1995) de historia da ali-
mentas:ao.
o eixo dessa onda de estudos academic as sabre as diversos
angulos do fenomeno da alimentas:ao passa certamente pda
COMIDA E SOCIEDADE
153
Fran<;:a, pelos Estados Unidos e pela Inglaterra, paises onde,
desde a final do seculo XIX, vem se publicando obras de histo-
ria da alimenta<;:ao. Na America Latina, temos ao menos urn
grande estudo classico para cada pais, em geral dos anos 40. A
constitui<;:ao das identidades nacionais parece sempre incorpo-
rar como urn de seus signos decisivos a identidade alimentar e,
sobretudo, culinaria de urn pais.
HENRIQUE CARNEIRO
154
A HISTORIOGRAFIA DA
ALIMENTA<;:AO NO BRASIL
No Brasil, nao temos ainda uma historiografia exaustiva da
alimenta~ao nacional e das divers as regioes do pais. Durante
cerro periodo, dois dos maiores estudiosos brasileiros neste as-
sunto - Josue de Castro e Luis da Camara Cascudo - concebe-
ram a ideia de escreverem juntos uma obra com a ambi~ao de ser
a historia da alimenta~ao no Brasil. Mas, como relata Cascudo
no prefacio de Historia da Alimentafao no Brasil que ele proprio es-
creveu nos anos 60, a empreitada comum com Josue de Castro
frustrou-se, talvez porque 0 grande medico, sociologo e geogra-
fo pernambucano tratasse da fome, e 0 folclorista potiguar esti-
vesse mais interessado em comida.
Os maiores historiadores da alimenta~ao no Brasil foram 0
antropologo Gilberto Freyre e 0 sociologo e folclorista Luis da
Camara Cascudo. 0 primeiro, em paginas nodveis ao longo de
toda a sua obra mas destacadamente no livro Nordeste (I 95 I),
onde des creve como 0 dominio da "sacarocracia" brasileira pro-
duziu uma alimentas:ao edulcorada, com variada gama de doces
feitos da fusao do aplcar com as mais divers as frutas. 0 segun-
do, alem de escrever a obra mais completa sobre a alimentas:ao
no Brasil, exatamente a sua Historia da Alimentaft'io no Brasil (1967)
permeou 0 conjunto extenso de sua obra de referencias etnogri-
ficas, hist6ricas e gastronomicas sobre a alimentas:ao. Diversas
obras de Cascudo sobre a alimentas:ao merecem citas:ao: Sociolo-
gia do aptcar (197 I); PrelMio da cachafa (1968); e Cozinha cifricana no
Brasil (1964). Ele tambem organizou uma Antologia da alimentafi'io
no Brasil (1977), compilas:ao de textos de epoca, e de autores di-
versos, sobre variados aspectos do tema.
A obra de Cascudo abordou as contribuis:6es dos tres com-
ponentes - indigena, portugues e africano - para a genese da die-
ta brasileira tipica na epoca colonial. As especificidades regio-
nais da alimentas:ao brasileira foram objeto de divers as tentati-
vas de definis:ao de areas mais ou menos tipicas e homogeneas.
Josue de Castro referia-se a cinco grandes areas: a Amazonia, a
Zona da Mata, 0 Sertao, 0 Centro e 0 SuI. Joaquim Ribeiro
(1977) diferenciou cinco zonas, em funs:ao da base da alimenta-
s:ao: a do pirarucu e da tartaruga (Amazonia), a do peixe (lito-
ral), a da carne de cabrito (zona sertaneja), a da carne de porco
(zona agricola) e a do churrasco (zona do Pampa). Gilberto
Freyre, por sua vez, distinguiu as seguintes tradis:6es regionais: a
colonial mineira (sopas de legumes, lombos de porco, doces de
HENRI QUE CARNEIRO
156
leite, requeijoes), a colonial baiana (azeite-de-dende, carurus,
vatapas, mingaus e moquecas), a as:oriano-brasileira do Rio
Grande do SuI e de Santa Catarina ( carne fresca e influencias es-
panholas), a colonial paulista (influencias indigenas assimiladas
por bandeirantes), a do Para e Amazonas (fortes influencias
amerindias) e a colonial nordestina (zona as:ucareira, comidas
de coco e quitutes de mandioca, doces de frutas, compotas, pitu,
sururu, lagosta e peixe).
Podemos resumir estas classificas:oes a dois grandes comple-
xos alimentares coloniais: 0 litoraneo da mandioca e do peixe, e
o sertanejo, interiorano, do milho e do porco. Duas farinhas
como protagonistas principais: a da mandioca e a do milho, e
suas variadas formas de preparo e acompanhamento. No litoral:
pido, tapioca, mingau, moqueca, cauim. No sertao: angu, fuba,
canjica, cuscuz, pipoca, jacuba, alua, catimpuera. 0 charque, 0
feijao-de-tropeiro e 0 arroz-de-carreteiro enriqueceram espe-
cialmente 0 complexo interiorano, na penetras:ao dos sertoes.
Durante toda a colonia, a expansao da civilizas:ao do as:ucar,
da sacarocracia, marcou nao s6 a economia, como os habitos ali-
mentares brasileiros. Rapadura e garapa. Aluas e capites (bebida
fermentada de milho). Doces de frutas cujas receitas Gilberto
Freyre recolheu em seu livro Af1'lcar(I939) e compotas que Luc-
cock, viajante ingles no Brasil em 18 I 7, chegou a lis tar, feitas de
29 diferentes frutas. 0 naturalista Frances Auguste de Saint-
COMIDA E SOCIEDADE
157
Hilaire escreveu em 1817: "em parte alguma talvez se consuma
tanto doce como na provincia de Minas; fazem-se doces de
uma multidao de coisas diferentes, mas, na maioria das vezes,
Minas Gerais foi 0 foco do entrecruzar-se de tropeiros, ban-
deirantes, garimpeiros, adaptando ao seu nomadismo e pouco
apego a agricultura uma culinaria baseada no feijao e no milho,
plantas de cultivo mais ficil, como mostrou Eduardo Frieiro em
Feijao, angu e couve (1967). Bamba de couve, galinha ao molho
pardo, vaca atolada, frango com quiabo sao alguns dos pratos
atuais que agregam os produtos e os preparos desta tradis:ao.2
Na Amazonia toda uma especificidade feita de tucupi, jambu,
api, castanhas e muitos peixes e animais de cas:a. No Parana, os
pinhoes, 0 mate, e outras herans:as guaranis. Em Goias e no imen-
so cerrado, 0 reino do pequi.3 No suI, a especializas:ao da ativida-
2 Vide sobre Minas: Maria Stella Libanio Christo, Foglio de lenha. 300 anos da cozinha
mineira (1986), "0 Gosto e a Necessidade. Em tomo da cozinha mineira do seculoXVIII" (1998), de Jose Newton Coelho Meneses, e a tese de mestrado inedita deMonica Chaves Abdala, A cozinha e a constTUflio da imagem do mineiro (Dept. de Sociologia,USP, 1994).
3 Vide sobre a Amazonia, Jose Proenza Brochado, Alimentaflio na floresta tropical
(1977); sobre Goias, Bariani Ortencio, Cozinhagoiana. Estudo e rectitutirio (1981); sobreo Parana, Carlos Roberto Antunes dos Santos, Historia da alimentaflio no Paranti (1995);e sobre 0 pequi do cerrado, Ricardo Ferreira Ribeiro (2000).
HENRIQUE CARNEIRO
158
de economica na pecuaria trara ao prato, ou melhor, as maos, 0
boi assado, 0 churrasco. 0 Nordeste foi onde melhor se fundiram
os tres componentes etnicos da cozinha brasileira, com os escra-
vos negros deixando na Bahia a comida de santo, feita de generos
de origem africana como 0 quiabo, generos americanos translada-
dos para a Africa como as pimentas, e denominada em ioruba (0
acaraje, por exemplo, vem do termo akkra usado para designar urn
tipo de bolinho frito na Nigeria e no Benin)'
Muitos estudos de alimentas:ao no Brasil se mscrevem na
perspectiva do esrudo hist6rico da sociedade rural e das estrutu-
ras agricolas no Brasil, numa linhagem cujos pioneiros sao Ma-
ria Yedda Linhares e Francisco Teixeira da Silva, com Hist6ria da
agricultura brasileira (combates e controversias) (1981). Outros traba-
lhos de Maria Yedda Linhares, como Hist6ria do abastecimento
(1979), fornecem fundamento indispensavel para uma sintese
da hist6ria da alimentas:ao brasileira, a partir do angulo da in-
vestigas:ao sobre os modos de produs:ao, comercio e distribui-
s:aodos generos alimenticios em diferentes regioes e periodos.4
Sergio Buarque de Holanda envereda por distintos aspectos
da alimentas:ao na formas:ao brasileira, enfocando 0 usa do me!,
as iguarias indigenas, os trigais em Sao Paulo colonial e, especial-
mente, "a civilizas:ao do milho" para discutir a importincia do
4 Assim como 0 abastecimento da capitania das Minas Gerais no siwlo X VIII, tese de douto-rado de Mafalda P. Zemella. de 1951. mas s6 publicada em 1990.
COMIDA E SOCIEDADE
159
seu "complexo", que inclui divers as tecnicas, como a do monjo-
10, na penetra~ao interiorana do Brasil.s 0 historiador pernam-
bucano Evaldo Cabral de Mello tambem trata do papel da ali-
menta~ao durante a guerra contra a ocupa~ao holandesa, no ca-
pitulo "Muni~ao de Boca", do seu livro classico Olinda restaurada
(1975). Certamente existem muitos outros estudos de carater
local e regional de que nao temos noticia e cuja divulga~ao seria
util para a acumula~ao de uma historiografia extensiva, unica
maneira de se chegar a urn conhecimento geral da historia da ali-
menta~ao brasileira. Da me sma forma, num ambito mais amplo,
contribuem para uma historia da alimenta~ao os estudos de his-
toria da agricultura e do abastecimento, entre os quais se incluem
aqueles que tratam dos generos particulares da agroexporta~ao
brasileira, como 0 cafe6 e 0 a~ucar, por exemplo.
Entre outros autores que buscaram urn estudo geral dos pro-
blemas da alimenta~ao brasileira, de urn angulo mais sociologi-
co e dietetico, encontra-se 0 medico Antonio da Silva Mello, es-
pecialmente em A alimentafiio no Brasil (I946), defensor, desde os
anos 40, da ado~ao de uma alimenta~ao a base de soja, leite em
po e arroz integral. No ambito do registro folclorico, quase
6 Entre os Iivros sobre 0 cafe no Brasil e indispensavel citar Historia do (ifi (1939), deAlfredo de Taunay, Roteiro do (ifi (1938), de Sergio Milliet. e 0 (ifi na Historia, nofol-clore e "as be/as-artes (1980). de Basilio de Magalhaes.
HENRIQUE CARNEIRO
160
toda pesquisa revela elementos ligados a alimentas:ao, e 0 folc1o-
rista Mario Souto Maior, em Alimentafao efolclore (1988), reuniu
urn numero consideravel de proverbios, ditos, crenps e referen-
cias populares relativos a comida. Mais recentemente, Maria
Jose de Queiroz escreveu dois interessantes ensaios hist6ricos e
literarios sobre a alimentas:ao.7
No interior de importantes estudos sobre a vida cotidiana
publicados no Brasil, tambem encontram-se capitulos que tra-
tam da alimentas:ao, como os livros de Maria Beatriz Nizza da
Silva: Cultura e sociedade no Rio de Janeiro (1808-1821) (1978),
cujo primeiro capitulo trata de "Habitos alimentares"; e Vida
privada e quotidiano no Brasil na epoca de D. Maria e D. Joao VI (I 993),
que tambem tern urn capitulo sobre "T radis:5es alimentares e
culinirias". Outro livro de hist6ria da vida cotidiana que aborda
e destaca em tres capitulos a questao da alimentas:ao e Cotidiano e
solidariedade. Vida diaria da gente de cor nas Minas Gerais. Siculo X VIII
(1994), de Julita Scarano. Alem destes livros, contudo, e das
obras c1assicas de Gilberto Freyre, Camara Cascudo e Josue de
Castro, encontram-se poucos estudos hist6ricos mais gerais so-
bre a alimentas:ao no Brasil. Numa compilas:ao recente sobre a
historiografia brasileira, embora Maria Odila Leite da Silva
Dias ressalte que "a historiografia contemporanea tern produzi-
7 A comida e a cozinha ou iniciafiio if arte de comer, Rio de Janeiro, Forense-Universitaria,1988; e A literatura e ogozo impuro da comida, Rio de Janeiro, Topbooks, 1994.
do trabalhos interessantes sobre hist6ria social da comida e da
distribuis:ao local dos generos alimenticios em varios paises da
America Latina, que sugerem pontos interessantes de confronto
e temas por e1aborar",8 nao se refere a nenhum estudo brasilei-
ro, citando apenas os estudos latino-americanos mais gerais de
John C. Super e alguns outros espedficos sobre 0 Mexico.
Urn importante levantamento de Fontes primarias ute is para
a hist6ria da alimentas:ao brasileira, publicado recentemente
pe10 Museu da Casa Brasileira, sob coordenas:ao geral de Marle-
ne Milan Acayaba, e 0 Equipamentos, usos e costumes da casa brasileira
(2000) (Fichario Ernani Silva Bruno), reorganizado em cinco
volumes, sendo 0 primeiro, organizado por Carlos Alberto Ze-
ron, a respeito da alimentas:ao, em que se compilam referencias
em multiplas Fontes documentais (viajantes, cartas, literatura
ficcional, invenrarios ete.) sobre divers os aspectos da cultura
material e, particularmente, sobre alimentos e tipos de refeiS:6es
do passado brasileiro.
A analise destas referencias a alimentas:ao no passado brasilei-
ro permite distinguir momentos diferenciados na aprecias:ao es-
trangeira das nossas caracteristicas mais marcantes. Se, no pri-
meiro e ate no segundo seculo da colonizas:ao havia urn fasdnio
desmedido pela abundancia de generos, pe1a fecundidade da
HENRIQUE CARNEIRO
162
terra (" em se plantando tudo da") e pe1a amenidade do c1ima,
no seculo XIX os cronistas destacam sempre a inferioridade dos
produtos locais diante dos seus congeneres europeus. Como es-
creve Carlos Alberto Zeron (2000:33), "ao alinhar diferentes
percep~oes sobre urn mesmo alimento ( ...) 0 maravilhamento e
o afa descritivo dos primeiros cronistas do seculo XVI so en-
contra urn parale1o, longinquo, na curiosidade cientifica do se-
culo XIX". Outro aspecto notive1 e que os viajantes "tend~m a
ver pouca diferen~a nos modos e habitos alimentares de ricas e
pobres ( ...) feijao, toicinho e farinha estao presentes em todas as
refei~oes" (idem, 40-38). Nao obstante, em divers as regioes 0
tipo de alimenta~ao servia para afirmar diferen~as sociais. Em
Ouro Preto, Minas Gerais, por exemplo, os habitantes eram
chamados respectivamente de "jacubas" (bebida feita com agua
e farinha de milho) ou "mocotos" conforme residissem na parte
mais pobre ou mais nobre da cidade.
A amplitude dos ingredientes usados nas varias regioes bras i-
leiras caracterizou diversos pratos de tradi~ao generalizada, mas
de componentes distintos em cada lugar: os caldos podiam con-
ter animais (galinhas, tartarugas, macacos, papagaios, peixes),
mas a carne mais consumida era a de porco, alem da carne-seca e
dos peixes. Os mingaus (palavra tupi) eram feitos de a~ai, araru-
ta, arroz, banana, farinha, milho, pupunha; os oleos, manteigas e
azeites podiam obter-se de abatiputi, a~ai, amendoim, camuru-
COMIDA E SOCIEDADE
163
pi, coco, gergelim, jau, jabuti, macauba, pataua, peixe-boi, pin-
doba, tartaruga; os ovos, de uma infinidade de aves e rt'pteis; as-
sim como os vinhos e as aguardentes de urn imenso leque de fru-
tas, raizes e graos.
As importantes mudans:as ocorridas nas ultimas decadas,
com a acentuada internacionalizas:ao do comercio e da cultura
mundiais, incluem alteras:oes nos habitos alimentares tanto no
aspecto da diversificas:ao dos produtos consumidos como no
das formas sociais desse consumo. 0 advento dos restaurantes
por quilo, que possibilitaram uma difusao mais ampla de pro-
dutos como sushis ou salmao, das polpas congeladas de frutas
amazonicas, como api, cupuas:u ou graviola, de novas frutas
ex6ticas, como kiwi, lichia, mangostin etc., assim como os im-
pactos dos sistemas de jast:food, ainda nao foram examinados em
todas as suas consequencias economicas, sociais e culturais no
Brasil, havendo maior atens:ao apenas para os aspectos nutricio-
nais abordados pelo angulo biomedico.
HENRIQUE CARNEIRO
164
Escrever a hist6ria da alimentas:ao exige situar as diferentes
formas de alimentas:ao nas variadas camadas sociais de todas
as epocas. 0 esfors:o desencadeado por diversos historiadores,
entre os quais, destacadamente, os da revista Annales, tomou a
hist6ria da alimentas:ao como uma hist6ria cujo objeto tern
"posis:ao estrategica no sistema de vida e de valores das diver-
sas sociedades", I com a possibilidade, portanto de, a partir
deste lugar central, poder abras:ar todas as variaveis possiveis
da existencia humana. T alvez essa ambis:ao seja desmedida,
mas e certo que, de todas as esferas da cultura material, a ali-
mentas:ao e uma das que mais se infiltra em todos os niveis da
vida social.
Na historiografia, como podemos verificar na bibliografia
apresentada ao final, vem se acumulando urn conjunto ja vasto
de estudos sobre alimentos espedficos, sobre regioes, paises e
epocas determinadas, assim como esfors:os de sinteses mais ge-
rais. Da Pre-Historia a epoca contemporanea, nao hi periodo
ou regiao a que nao tenha sido dedicado algum estudo relativo aalimentas:ao.
Como viemos examinando neste texto, e impossivel fala! ~e
uma historia da alimentas:ao sem referir-se permanentement~ a
todos os aspectos da historia social, economica e cultura.1. .o~objetos historicos saD recortes da realidade, saD recurs os analiti-
cos que servem para decompor 0 processo social em diferelltes
dimensoes que nos of ere cern uma riqueza multipla de informa-
s:oes sobre aspectos da realidade, mas que devem ser compreen-
didos integrados no conjunto da vida, que e simultaneamente
social, economica e cultural. Somente restituindo. os objetos
historicos - como a alimentas:ao, por exemplo - a essa integrali-
dade, e que uma his tori a "total" podera bus car compreende.-IQs.
A alimentas:ao e assim urn fato da cultura material, da jn-
fra-estrutura da sociedade; urn fato da troca e do comercio, da
historia economica e social, ou seja, parte da estrutura produtiva
da sociedade. Mas tambem e urn fato ideologico, das represen-
tas:oes da sociedade "- religiosas, artisticas e morais - ou seja, urn
objeto historico complexo, para 0 qual a abordagem cientifica
deve ser multifacetada. Somente assim podemos compreender a
nos:ao de urn "campo" ou de urn "dominio" historiografico, q~
HENRIQUE CARNEIRO
166
se constituiu na esteira de estudos de diferentes disciplinas e
proveniencias.
A hist6ria da alimenta~ao vem sendo escrita com uma ati-
vidade minuciosa de busca de fontes, da sua critic a e da sua
compara~ao, e com slnteses anal1ticas mais gerais que bus earn
compreender habitos e consumos arraigados, assim como a
l6gica social distributiva que controla a dialetica da fome e
da propriedade dos alimentos, alem de todas as manifesta-
~oes culturais que perpassam 0 mero consumo dos vlveres
para torna-los algo mais do que simples alimentos flsicos:
produtos alimentares transubstanciados em slmbolos que
vao desde as h6stias sagradas do pao que representa a divin-
dade crista ate os frutos proibidos que cada cultura sempre
fez questao de determinar.
Seja como a hist6ria poHtica e social da luta contra a fome,
como uma parte da hist6ria economica, agricola e comercial; ou
como parte da hist6ria das religioes em seu ordenamento mlti-
co, proscritivo e prescritivo dos alimentos; como parte, tam-
bern, da hist6ria da ciencia, de suas teorias medicas nutricionais
e seus prindpios dieteticos; ou como parte da hist6ria da arte e
das sensibilidades, onde a evolu~ao do gosto e da literatura gas-
tronomica encontra referencia nas concep~oes esteticas mais ge-
rais; ou ainda, finalmente, como parte da hist6ria das tecnicas
ou da dimensao material da cultura, no qual os habitos alimenti-
COMIDA E SOCIEDADE
167
cios sao decifrados como chaves reveladoras de toda a trama so-
cial de sociedades literalmente enterradas sob grossas camadas
de detritos, 0 campo historiografico da hist6ria da alimentas:ao
tern se constituido nas ultimas decadas como uma sintese multi-
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