livro carneiro henrique comida e sociedade_uma história da alimentação

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COMID A E SOCIEDADE

uma história da alimentação

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COMID A E SOCIEDADE

uma história da alimentação

HENRIQUE CARNEIRO

, •........ , CAMPUS

Page 5: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

©2003, Editora Cam pus LIda. - uma empresa Elsevier

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 5.988 de 14/12/73.

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poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados:

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Copidesque

Jussara Campos Bivar

Editoração Eletrónica

Estúdio CasteHani

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Mariflor BrenHa Rial Rocha

Edna Rocha

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ISBN 85-352-1180-2

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte.

C288c

Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

Carneiro, Henrique

Comida e Sociedade: uma história da alimentação 1 Henrique Carneiro. - Rio de Janeiro: Cam pus, 2003

ISBN 85-352-1180-2

1. Alimentos ,.- História. 2. Hábitos alimentares -

História. I. Titulo.

03-0111. COO - 641.109

COU - 613.2(09)

03 04 05 06 07 5 4 3 2

Page 6: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO

2 ALIMENTAÇÃO, BIOLOGIA E CIÊNCIAS NATURAIS 7

-) ASPECTOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS DA ALIMENTAÇÃO 15

4 A NUTRIÇÃO E A FOME 23

5 ALIMENTAÇÃO NA PRÉ-HISTÓRIA 45

6 COMER VEGETAIS: O SAL E OS TRÊS CEREAIS BÁSICOS (TRIGO, ARROZ, MILHO) 51

7 COMER ANIMAIS: CARNES, OVOS E LEITES 63

8 Às ESPECIARIAS, AS NAVEGAÇÕES E A MUNDIALIZAÇÃO DA ALIMENT�ÇÃO 75

9 ALIMENTAÇÃO MODERNA: AÇÚCAR, ÁLCOOL, CHÁ, CAFÉ E CHOCOLATE 87

II ALIMENTAÇÃO CONTEMPORÂNEA: INDUSTRIALIZAÇÃO E FAST-FOOD 101

II ALIMENTAÇÃO E RELIGIÃO: SACRIFícIOS, NORMAS E TABUS III

12 GASTRONOMIA E ESTÉTICA DO GOSTO 123

li A HISTORIOGRAFIA INTERNACIONAL DA ALIMENTAÇÃO 131

J4 A HISTORIOGRAFIA DA ALIMENTAÇÃO NO BRASIL 155

I) CONCLUSÃO 165

BIBLIOGRAFIA 169

ApÊNDICE BIBLIOGRAFIA DA HISTÓRIA DOS ALIMENTOS ESPEcíFICOS 179

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I

INTRODUÇÃO

A alimentação é, após a respiração e a ingestão de água, a mais

básica das necessidades humanas. Mas como "não só de pão vive

o homem", a alimentação, além de uma necessidade biológica, é

um com2lexo sistema simbólico de significados sociais, sexuais,

políticos, religiosos, éticos, estéticos etc.

A fome biológica distingue-se dos apetites, expressões dos

variáveis desejos humanos e cuja satisfação não obedece apenas

ao curto trajeto que vai do prato à boca, mas se materializa em

hábitos, costumes, rituais, etiquetas. Muitos antropólogos já

sublinharam o fato de que nenhum aspecto do nosso comporta­

mento, à exceção do sexo, é tão sobrecarregado de idéias. E estes

hábitos possuem uma intrínseca relação com o poder. A distin­

ção social pelo gosto, a construção dos papéis sexuais, as restri­

ções e imposições dietéticas religiosas, as identidades étnicas,

nacionais e regionais são todas perpassadas por regulamenta­

ções alimentares.

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A história da alimentação abrange, 'portanto, mais do que a his­

tória dos alimentos, de sua produ�ão. distrib.uição�paro e con­

sumo. O que se come é tão importante quanto quando se come,

onde se come, como se come e com quem se come. As mudanças

dos hábitos alimentares e dos contextos que cercam tais hábitos é

um tema intricado que envolve a correlação de inúmeros fatores.

Dentre todos os aspectos da cultura material, a alimentação

talvez seja um dos que mais se encontra subjacente a toda esfera

da atividade humana. A história das civilizações e da utilização

do mundo vegetal se confundem. Se incluirmos o consumo ele

carne e de outros produtos derivados de animais, considerados

menos importantes na formação das primeiras civilizações, veri­

ficamos que a história da alimentação tem como objeto quase

toda a natureza viva no âmbito universal de todas as épocas, po­

vos e culturas.

Como circunscrever um tema de dimensão universal, onde a

história dos alimentos se imbrica com as formas de sua produ­

ção, desde a história da coleta, da caça e da agricultura até a in­

dústria moderna, com as formas da distribuição, envolvendo

desde os primórdios da troca até o advento do comércio mun­

dial, com as técnicas de conservação e, finalmente, com as for­

mas de consumo dos alimentos?

A alimentação é um fenômeno cujo estudo foi estabelecido

nos últimos dois séculos a partir de quatro diferentes enfoques:

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o biológico, o econômico, o social e o cultural. A história da ali­

mentação, dessa maneira, abrange ao menos quatro grandes as­

pectos: os aspectos fisiológico-nutricionais, a história econômi­

ca, os conBitos na divisão social e a história cultural (para a qual

a Antropologia trouxe grande quantidade de infG-rmações que se

imbricam com a Lingüística, a Religião e a História Geral das

Civilizações) que inclui a história do gosto e da culinária, para a

qual os livros de receitas constituem fontes primárias.

O papel dos historiadores da alimentação, segundo a pers­

pectiva das ciências humanas. deveria ser o de enfocar ao menos

os seguintes problemas: a) a demanda por comida dentro de

uma economia de subsistência e no interior dos mercados, as di­

ferentes maneiras de conhecer, obter, adquirit::, estocat.,-trans ..

portar e preservar alimentos, os diferentes tipos de mercados, os

preços etc.; b) as formas e técnicas de preparação; <J�s formas

de consumo; d) o ambiente sociocultural e as avaliações indivi­

duais e coletivas (diferenças entre pratos ordinários e festivos,

comida como divisão social. e como ação simbólica, religiosa e

comunicativa); e) os conteúdos nutritivos e as conseqüências

para a saúde.!

Ométodo de abordagem da história da alimentaç.ão também

'pode ser múltiplo. enfocando os alimentos como plantas econô-

I T euteberg, European Food History, Londres , Leicester University Press , 1992, p. 9.

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micas ou animais domesticados, como mercadorias ou commodi-

ties, como valores nutricionais ou como elementos simbólicos da

cultura. Pode-se ainda abordar a questão da alimentação do

ponto de vista dos sistemas alimentares, no qual combinam-se

determinados alimentos e suas formas de produção, distribui­

ção e consumo, especialmente na época contemporânea, quando

a interdependência mundial se acentua. E, finalmente, a alimen­

tação pode ser interpretada a partir do estudo dos hábitos ali­

mentares, de como determinados padrões de consumo se esta­

belecem e se alteram.

A primeira constatação, portanto, é quanto � amplitude de

um tema que recebe contribuições de diversas disciplinas e �

qual faltam resumos bibliográficos. Um empreendimento de

pesquisa que visa esclarecer não�nas 0-,!1l.U quanto foi comi­

do quando e onde, mas acima de tudo, por quais razões algo foi

comido dessa maneira específica, possui. obviamente, uma am­

plitude desmesurada. Não obstante essa relativa escassez de

fontes e bibliografia e a amplitude do tema, a alimentação vem

se tornando um aspecto incontornável dos mais diversos estu­

dos, e sua onipresença em todas as sociedades levou alguns dos

maiores especialistas no assunto justamente a atribuir-lhe o pa­

pel de uma chave mestra, de uma prática universal reveladora de

todos os demais aspectos, idéias e conflitos de todos os povos

em todas as épocas. Além das questões políticas ou macroeco-

HENRIQUE CARNEIRO

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nômicas, a alimentação reVela a estrutura da vida cotidiana,Ao

seu núcleo mais íntimo e mais compartilhado (o sexo é ainda

mais íntimo, mas de uma partilha social bem mais restrita). _A_

conyiyialidade manifesta-se sempre na comida compartidaj

A metáfora alimentar invade todas as esferas da vida. Em rela-

ção ao sexo, sobretudo (a doçura do amor, a lua-de-mel etc.), mas

também em relação aos textos, que podem ser saboreados, devo­

rados, digeridos. Saber uabor são palav,ras derivadas de um-mes­

mo radical latino (sapere, "ter gosto"). Neste caso, serão servidos,

como um aperitivo para abrir o apetite, apenas alguns aromas e

acepipes do grande banquete universal e algumas aproximações

aos que vêm tentando interpretá-lo. Este texto não tem a preten­

são de ser mais do que um ensaio introdutório sobre as diversas

vertentes da história da alimentação.2 Inicialmente, serão aborda­

dos, resumidamente, os distintos enfoques que constituíram a ali­

mentação como um objeto do conhecimento científico. As cita­

ções em línguas estrangeiras ou formas arcaicas, à exceção dos tí­

tulos das obras, foram traduzidas e atualizadas.

2 Em "A história da alimenta ção: balizas historiográficas" (Ulpiano Bezerra de Me­neses e Henti q ue Carneiro , Aliais do Museu Paulista: História e cultura material, Nova Série , Vol. 5, jan/ dez I 997), apre sentamos um amplo levantamento da b ibliografia dispo­níve l e um mapeamento de obras e de temas, a lguns dos q uais são aborda dos e de sen­volvidos ne ste livro.

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A LIME NT A ÇÃO, BIOLOGIA

E CIÊNCI A S NA TURAIS

Além dos diversos aspectos que a história da alimentação

abrange, é preciso mencionar algumas das abordagens, provin­

das das mais diferentes disciplinas - Botânica, Zoologia, Medi­

cina, Arqueologia, Economia, Geografia, Agronomia, Antropo­

logia, Sociologia - que serviram para o esforço historiográfico

sintético que se manifestou nas primeiras tentativas de exposi­

ção sistemática da história da alimentação universal.

O estudo da alimentação é um vasto domínio multidiscipli­

nar para o qual a História vem oferecer uma síntese ao reunir os

recursos das diversas disciplinas para buscar desvendar em cada

período do passado as informações alimentares e para poder

efetuar a análise da dinâmica temporal das transformações da

alimentação humana.

A Botânica e a Zoologia, observando, descrevendo e classifi­

cando as plantas e os animais, especialmente os de importância

econômica, marcou a passagem da História Natural para a Bio-

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logia, quando a sistemática classificatória formalizou as rela­

ções entre os seres vivos. Os botânicos, que em sua origem eram

médicos e se chamavam herboristas, foram os primeiros a forne­

cer os dados históricos das plantas. Na época do Renascimento,

os estudos gregos e latinos sobre as plantas, traduzidos e publi­

cados pela primeira vez no Ocidente, como Matéria médica, de Dios­

córides, História natural, de Plínio, e História das plantas, de T eo­

frasto, tratavam da flora de um ponto de vista utilitário medici­

nal. Muitos herbários do século XVI chamavam-se justamente

História das plantas (De Historia Stirpium, Leonhardt Fuchs, 1542)

e História dos frutos (Frugum Historia, Rembert Dodoens, 1552), e

descreviam as plantas tanto alimentícias como medicinais a par­

tir de suas supostas virtudes para o corpo humano, derivadas da

natureza do seu temperamento, quente ou frio e seco ou úmido,

e conseqüentemente relacionado com um órgão, um humor,

uma estação do ano, um momento do dia ou da noite etc. O

temperamento guent�.e�o era viste como o modelü-ide.ale,

portanto, característico do home.m..-A mulher seria fria e úmida.

O quente possuiria a qualidade de excitar e despertar. e o frio.

de adormecer e acalmar. Os alimentos quentes seriam o vinho, a_

saI, o açúcar, o mel, a canela, o cravo. a pimenta, a mostarda, o

alho. Os frios seriam a alface, o vinagre, os pepinos, o ópio, a

cânfora, os cogumelos e as frutas em geral. O vinho era uma be­

bida tão quente para Galeno, o mais importante médico da épo-

HENRIQUE CARNEIRO

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nutricionais, a idéia da digestão como cozimento, as prescrições

dietéticas são pródigos informadores dos hábitos e concepções

de uma época. Boa parte das literaturas grega e latina clássicas

que se referem à alimentação era constituída de tratados médi­

cos, entre os quais Hipócrates, Galeno, Oribase, Dioscórides,

Apuleio e Celso.

As ciências modernas relacionadas à nutrição desenvolve­

ram-se a partir do século XIX, com um caráter interdisciplinar,

reunindo os avanços obtidos em diferentes ramos das Ciências

Naturais juntamente com os da Medicina e mantiveram um en­

foque exclusivamente biológico. A investigação nutricional exa­

minou o processo da digestão no corpo humano e obteve infor­

mações para a otimização das dietas que podem ser modificadas

de acordo com a idade, o gênero e o tipo de trabalho realizado.

De especial importância é a busca de um tratamento dietético

adequado das doenças dos processos metabólicos digestivos e

excretivos a partir de uma investigação clínica. As ciências hu­

manas foram consideradas, entretanto, como meios periféricos

e auxiliares para os cientistas da alimentação. Os aspectos polí­

ticos, jurídicos, econômicos, geográficos e culturais, ou seja, to­

das as dimensões históricas, têm sido, contudo, geralmente ne­

gligenciados pelos cientistas naturais e pelos médicos.

Muitos cientistas da nutrição têm encarado o seu campo de

estudos exclusivamente como um ramo da Bioquímica. Essa

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ca romana, que ele o interditava antes dos 22 anos, pois até essa

idade já haveria suficiente calor natural nos corpos. O chocola­

te, no século XVIII, era considerado tão quente que não deveria

ser dado para crianças!

Os alimentos quentes também eram perigosos pela sua su­

posta propensão afrodisíaca, devendo ser estritamente contro­

lados, especialmente entre os jovens, a quem conviria sempre

uma dieta insípida, pouco condimentada, para não aumentar o

calor já naturalmente elevado. Até mesmo coisas banais como as

cenouras, os pinhões, os nabos ou a hortelã, podiam incitar atos

libidinosos. I Até o século XVIII, os tratados sobre alimentos

encaravam-nos exclusivamente de um ponto de vista médico, te­

rapêutico e nutricional, dando prosseguimento às crenças mile­

nares nas supostas virtudes de certos alimentos, especialmente

em relação ao sexo. Ostras, chocolate e cebolas excitariam os

"ardores de Vênus", devendo ser evitadas, especialmente pelas

mulheres castas.2

A Medicina, por sua vez, desde a Antiguidade vem buscando

desvendar os mistérios do metabolismo humano e, particular­

mente, o fenômeno da digestão. A história da Medicina é uma

fonte de informações para a história da alimentação. As teorias

I Franci sco da Fonseca Henri ques. Âncora medicinal para conservar a vida com saúde. Lis­boa. Miguel Rodrigues. 173 1.

2 Louis Leme ry, Traité des Alimmts. Pari s. Durand. 1755.

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dimensão física da alimentação, como um processo orgânico e

metabólico, não esgota, contudo, a dimensão humana da ali­

mentação, que é também uma questão econômica, social e cul­

tural além de biológica, e as Ciências Naturais não têm conse­

guido verificar plenamente que a substância da alimentação

humana não pode ser derivada exclusivamente da sua dimen­

são física.

Essa dupla natureza da alimentação de necessidade congênita

e ineludível de sobrevivência e de prazer culturalmente organi­

zado é destacada por diversos autores, que têm claro que a comi­

da é a primeira necessidade do homem, mas que também é um

prazer. A comida, assim como a respiração e o sono, faz parte

das necessidades básicas, mas também é expressão dos desejos

humanos. A definição da diferença precisa entre desejo e neces­

sidade é um tema de vasta polêmica na história da Ética e da Fi­

losofia, remetendo às questões da regulamentação do prazer, do

luxo e do ascetismo. As mercadorias raras e de proveniência

exótica sempre foram caras e, portanto, luxuosas e supérfluas. A

defesa ou a crítica destes novos hábitos e produtos tornou-se

um debate moral, que atribuiu ao luxo excessivo o declínio das

civilizações, particularmente a queda do Império Romano. Na

época moderna, tal debate terá conseqüências diretas na avalia­

ção do papel cultural do açúcar, do álcool e das novas drogas co­

loniais (chocolate, café e chá), vistas por alguns como luxos su-

COMIDA E SOCIEDADE

I I

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pérfluos e decadentes e por outros como motores do comércio,

da indústria e do progresso.

As descobertas sobre a fisiologia da digestão superaram as vi­

sões dos antigos hipocráticos que identificavam nela um proces­

so de cocção, onde o calor seria o responsável pela assimilação

orgânica dos alimentos ao se transformarem no quilo alimentar.

Erasístrato (c. 129-200) acreditou que a digestão era um pro­

cesso mecânico, mas apenas no período moderno, a partir do sé­

culo XVIII, evidenciou-se a natureza química da digestão pelo

famoso cientista italiano Lázaro Spallanzani (1729-1799) que

além de realizar experiências que refutavam a geração espontâ­

nea e provar a fecundação do óvulo pelo sêmen, também de­

monstrou a acidez do suco gástrico, cuja composição de ácido

clorídrico foi constatada, em 1824, pelo médico inglês William

Prout (1785-1850).

Somente no século XX, a natureza b ioquímica da fisiologia

da nutrição tanto vegetal como animal ficou claramente estabe­

lecida. Os corpos humanos são compostos em 93% de apenas

três elementos: oxigênio, carbono e .hidrogênio, outros 6, I %

são nitrogênio, cálcio e fósforo. A composição dos alimentos

assemelha-se à do corpo: necessitamos água, sal, carboidratos

(glicídios), substâncias nitrogenadas que contêm aminoácidos

(protídios) e ácidos graxos (lipídios), fibras e, em quantidades

mínimas, sais minerais e vitaminas, para fornecer as fontes ener-

HENRIQUE CARNEIRO

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géticas e plásticas e os catalisadores bioquímicos. Esse forneci­

mento obedece à necessidade de calorias (unidade de calor que é

necessária para fazer variar em um grau a temperatura de um

grama de água destilada), calculada como sendo em torno de

2.500 diárias em média para um adulto que realize apenas tra­

balho leve, e também de proteínas e elementos minerais necessá­

rios para a reposição plástica do organismo e de vitaminas e ou­

tros minerais em quantidade ínfima para o seu funcionamento

adequado.

As descobertas em Medicina sobre a correlação entre alimen­

tação e saúde permitiram a identificação de uma série de carên­

cias específicas, como a de ferro provocando a anemia; a de nia­

cina, a pelagra; a de frutas frescas, o escorbuto; a de tiamina, o

beribéri; e a de iodo, o bócio. Da mesma maneira, também se

desvendaram as enfermidades causadas por excessos alimentares

específicos, como o de gorduras causando colesterol em dema­

sia ou o de sal provocando hipertensão arterial. A descoberta

das vitaminas, no século XX, fundamentou cientificamente a

causa de algumas destas deficiências alimentares e ampliou a

compreensão da fisiologia da nutrição.

Os estudos nutricionais identificaram nos últimos anos, a

partir de estatísticas médicas comparadas, a ocorrência de deter­

minadas doenças em correlação com dietas particulares. O caso

do chamado "paradoxo francês" talvez seja um dos mais notá-

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Page 21: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

veis e mais divulgados, pois evidenciou-se a menor incidência de

problema: cardiovasculares entre os franceses (assim como en­

tre os j aponeses), apesar de uma dieta rica em colesteróis. A ex­

plicação apresentada pelo hematólogo francês Serge Renaud foi

a de que o consumo moderado de vinho tinto preveniria as en­

fermidades cardiovasculares. Nos anos 60, um estudo compara­

do de sete países demonstrou que o quadro francês era extensivo

aos países mediterrâneos, onde além do vinho, se consumia azei­

te de oliva no lugar das gorduras animais.3

3 J e f frey Steingarten, O homem que comeu de flido, São Paulo , Companhia das Letra s, 2000, p. 54.

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A S PECTOS ECONÓMICOS, SOCIAIS

E CUL TURAIS DA A LIMENT AÇÃO

A Economia e a Agronomia estudaram a alimentação a partir

da história da agricultura e do comércio, enfocando, juntamente

com a Geografia, o relacionamento da humanidade com o seu

meio físico e social na produção dos alimentos. A história da

Agricultura é um dos pontos de partida de estudos s istemáticos

das plantas de uso alimentício e das plantas cultivadas.

A história económica, por sua vez, estudou a alimentação do

ponto de vista da produção agrícola e industrial e do processa­

mento e da preparação dos alimentos, assim como da sua distri­

buição através do comércio e, finalmente, das condições do ar­

mazenamento e do consumo, trabalhando com imenso volume

de estatísticas comerciais, fiscais e de preços, que incluem os ali­

mentos no interior da história da agricultura, da indústria, do

comércio, dos transportes e da urbanização.

Como fica evidenciado nos estudos sobre a alimentação na

Inglaterra, é extremamente difícil separar abastecimento de

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consumo. As investigações sobre volumes de produção, vias de

distribuição, po�íticas de preços e outros índices econômicos e

estatísticos carecem de dados precisos no que se refere às épocas

passadas. Mesmo na Inglaterra, berço do industrialismo, os his­

toriadores produziram relativamente poucas monografias sobre

tópicos específicos em relação a períodos ou espaços regionais

do suprimento de alimentos. I

De modo geral, todos os estudos de história da agricultura e

da criação de animais de corte abordam a questão da alimenta­

ção na história. Da mesma forma, o estudo das rotas comerciais,

dos fluxos mercantis e dos sistemas produtivos abrange necessa­

riamente, como parte do seu objeto, a alimentação. Pescadores

de bacalhau nórdicos expandiram zonas de pesca até descobri­

rem as terras boreais; pela avidez por especiarias se abriram as

rotas marítimas do Oriente, e o tráfico do açúcar fez do Atlânti­

co a principal via de trânsito entre povos e mercadorias. Além

de fazer parte da história econômica geral, a alimentação desta­

ca-se, em seus múltiplos aspectos particulares, como um fenô­

meno fundador da Economia, a primeira produção sendo a do

consumo material de alimentos. A capacidade das forças produ­

tivas em gerá-los além da demanda de consumo imediato COllS-

1 Citando alguns estudos específic os de cida des ou regiões, em particular sobre o abastecimento em Manche ster, O ddy & Burnett (in T euteber g, op. cit., p. 19) chegam à conc lusão de q ue faltam estudos m odernos similares para a s demais cidade s da Inglaterra.

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titui o primeiro excedente social; assim, o papel do alimento lo­

caliza-se no fulcro da produção e da reprodução de uma socie­

dade, no' nível definido por Marx como infra-estrutura!. O

grande historiador Fernand Braud.cl, na sua divisão da Econo­

mia em três níveis - o financeiro, o mercantil e o da cultura ma­

terial -, situou a alimentação no último, juntamente com o ves­

tuário e a habitação, ou seja, aqueles que dizem respeito à manu­

tenção do corpo e à reprodução da vida cotidiana. Já se usou da

metáfora da casa para expor os diferentes âmbitos da História: a

História Social trataria da sala; a História Cultural, dos quartos;

e a História Econômica, da despensa. Na sala as pessoas intera­

gem e convivem, nos quartos fazem amor, choram, rezam ou

dormem, mas na despensa reside a fonte da energia vital, os víve­

res, os mantimentos, as vitualhas, as provisões.

A História Econômica da alimentação é a do farnel do via­

j ante, a da semeadura e a da colheita do lavrador, da moagem,

da estocagem, do transporte, da venda e do preparo dos grãos,

das frutas que se comem nos pés e das hortas de quintais onde

a auto-subsistência provê muitas famílias. Dos circuitos finan­

ceiros eletrônicos dos mercados de commodities, passando pelos

armazéns, bares e restaurantes, até os pomares e os hortos par­

ticulares onde se cultivam plantas e temperos. Em todas essas

distintas espessuras da vida a História Econômica do alimento

deve penetrar para desvendar, no mundo inteiro e em cada

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casa, nos países e nas regiões, os preços, as demandas, os índi­

ces de produção, distribuição e consumo. As economias da

casa, do país e do globo precisam ser vistas sempre do ângulo

da despensa.

Os enfoques em História Social relativos à alimentação_ são

múltiplos. Em demografia histórica, por exemplo, a questão da

alimentação permeia muitos dos estudos que buscam explicar

alterações populacionais devido às grandes fomes como fatores

de despovoamento. Um caso clássico foi o da crise na safra de

batatas na Irlanda em 1845-47, que matou ao menos um milhão

de pessoas e provocou intenso fluxo emigratório. Crescimentos

populacionais são relacionados com melhorias nutricionais. A

história das doenças e da saúde também está intimamente ligada

com a história do abastecimento alimentar. Os estudos sobre as

fomes também são um aspecto importante da História Social da

alimentação e se misturam com o tema das rebeliões e desordem

social, daí a importância política da alimentação, cujo controle

faz parte da formação dos Estados.

Os hábitos alimentares e suas transformações também são

objeto de investigação para a sociologia da alimentação. A ali­

mentação da época atual, com a intensificação comercial, a ado­

ção de novas tecnologias de produção, distribuição e consumo

de alimentos, a expansão de novos hábitos homogeneizados pe­

las grandes cadeias de lanchonetes e outros fenômenos recentes,

HENRIQUE CARNEIRO

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Page 26: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

têm sido abordados pela sociologia da alimentação contempo­

rânea sob múltiplos ângulos. As relações entre a culinária e as

classes soc�ais podem ser identificadas nos gostos diferenciados

ou nas maneiras à mesa, as identidades étnicas e regionais reves­

tem-se de diversos rituais gregários e alimentares, particular­

mente entre emigrantes ou expatriados, os restaurantes podem

ser analisados como espaços simbólicos, caracterizados como

"teatros de comer" e estratificados em torno de posições sociais

tanto quanto de cardápios específicos. A rotinização entediante

da vida cotidiana provocada pela cultura do jast-jood, as flutua­

ções dos horários das refeições e do simbolismo nelas investido,

a constituição dos papéis sexuais e das diferenciações de gênero

em torno da organização social da comida, especialmente por

meio da feminização das tarefas da cozinha, são, entre tantos

outros aspectos, rico material indispensável para as análises so­

ciológicas de distintos grupos humanos.

O fim das refeições em família leva à erosão do próprio con­

ceito de "refeição" numa sociedade em que nas casas vigora o

império dos microondas e no trabalho, na rua ou na diversão ex­

pandem-se as práticas da "alimentação rápida", de beliscar pe­

tiscos e lanches em "lanchonetes" , fenômeno que surge na fron­

teira difusa entre os bares e restaurantes e que simboliza esta

nova relação com os horários e os rituais da comida. Tais trans­

formações têm sido enfocadas, entretanto, no âmbito dos estu-

COMIDA E SOCIEDADE

19

Page 27: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

dos sociológicos e antropológicos por tratar-se de processos em

pleno curso nas sociedades atuais.

Outro aspecto dos estudos culturais sobre a alimentação pro­

vém da Antropologia. Preceitos e tabus alimentícios torna­

ram-se assunto de competência de uma ciência social que espe­

cializou-se em estudar hábitos e crenças em todo o mundo. A

Antropologia foi uma disciplina que, desde o século XIX, co­

meçou a desenvolver uma etnografia sistemática dos hábitos ali­

mentares e a buscar interpretá-los culturalmente. A primeira

fase caracterizou-se por um comparativismo das diferentes tra­

dições culturais. A análise dos tabus, onde se destacam os ali­

mentares, foi desde os primórdios da Antropologia um terreno

fértil para especulações criativas sobre o s ignificado simbólico

da alimentação. O estruturalismo na Antropologia, a partir da

obra de Lévi-Strauss, tratou da relação da alimentação com es­

truturas mitológicas em O cru e o cozido (1964), Do mel às cinzas

(I 967) e Origem das maneiras à mesa ( I 9 68). A diferença entre o

cru e o cozido, para este antropólogo, fundaria a própria cultu­

ra, distinguindo-a da natureza. Sua influência extravasou para o

conjunto das ciências humanas, abrindo uma fecunda via de in­

terseção com a historiografia, sensibilizando-a para os aspectos

inconscientes das ações humanas e dos nexos que as regem. A

nutrição humana é uma dessas atividades cujos padrões de con­

duta muitas vezes escapam dos seus próprios agentes, educados

HENRIQUE CARNEIRO

20

Page 28: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

desde a infância para considerá-los algo automaticamente óbvio

e consuetudinário. Boa parte da matéria-prima etnográfica é,

pois, em torno da alimentação, eixo ao redor do qual as diferen­

tes culturas estruturam a sua vida prática assim como muitas de

suas representações.

Além desta presença difusa da questão da alimentação em

obras fundamentais de diferentes tradições antropológicas e de

uma vasta etnografia de hábitos alimentares em todo o mundo,

existem inúmeros debates no meio antropológico sobre a nutri­

ção e sobre os costumes alimentares. Uma questão, em particu­

lar, suscitou instigantes estudos antropológicos: a da natureza

simbólica do consumo de carne, e será abordada num capítulo

mais à frente. O tema dos hábitos alimentares é um dos que, por

excelência, pertencem à Antropologia. A investigação cultural

em nutrição tem como tema central a identificação dos hábitos

alimentares e das motivações das mudanças que eles podem so­

frer. O estudo das religiões também exige a interpretação de

uma série de preceitos e proscrições alimentares, além de todo

um conjunto s imbólico, mitológico e teológico de elaborações

em torno da alimentação, cuja importância nos obriga a tratar

também desse relacionamento entre alimentação e religiosidade

num outro capítulo específico. Mas, para além das análises sim­

bólicas, a Antropologia se destacou pelo mapeamento etnográ­

fico dos diversos hábitos alimentares, cuja extensão e especiali-

COMIDA E SOCIEDADE

2 1

Page 29: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

zação de caráter local e regional (por exemplo, em relação aos

índios brasileiros) impedem que este texto sequer tente relacio­

ná-los, mas que um levantamento mais detalhado poderia per­

mitir contrastar as constâncias, fecundações e difusões variadas.

Além desta ubíqua presença dos alimentos no escopo de qua­

se todas as disciplinas que direta ou tangencialmente devem

abordá-los na constituição de seus métodos e de seus objetos es­

pecíficos, cabe à História a investigação da alimentação e de

suas transformações numa perspectiva diacrônica, ou seja, ao

longo do tempo. Antes de entrarmos diretamente na história da

alimentação nos diversos períodos históricos, entretanto, deve­

mos situar a questão da alimentação à luz do seu constrangi­

mento mais persistente, a sua verdadeira contrapartida, que é a

história da fome.

HENRIQUE CARNEIRO

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Page 30: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

A definição desse conceito não é tão simples como possa pa­

recer. Fome não é apenas a sensação universal que todos possuí­

mos antes de comer, melhor chamada apetite, mas o estado crô­

nico de carências nutricionais que podem levar à morte por ina­

nição ou às doenças da desnutrição.

O médico e sociólogo Josué de Castro, talvez o maior estu­

dioso brasileiro do assunto, já havia denunciado uma " conspira­

ção de silêncio" existente sobre a fome. Um dos "tabus da nossa

civilização" , escreveu ele em Geogrcifia da fome (1946), acrescen­

tàndo que " é realmente estranho, chocante, o fato de que, num

mundo como o nosso, caracterizado por tão excessiva capacida­

de de escrever-se e publicar-se, haja até hoje tão pouca coisa es­

crita acerca do fenômeno da fome" .

Essa situação, entretanto, alterou-se após o segundo pós­

guerra, quando ocorreu uma verdadeira "descoberta" da fome

mundial, paralela ao processo de independência dos países colo­

niais. Como explica o geógrafo Y ves Lacoste, "enquanto existiam

os elos estreitos da dominação colonial, e enquanto se procurava

mantê-los por bem ou por mal, admitir que as populações coloni­

zadas estavam na miséria era, em certa medida, reconhecer o fra­

casso desta famosa missão civilizadora, álibi ideológico da colo­

nização".2 Esta " descoberta" da fome pelas ciências econômicas e

2 Yves Lacoste. Geografia do subdesenvolvimento. Sã o Paulo. DifeI. 1982. p. IS.

HENRIQUE CARNEIRO

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Page 31: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

4 ---------,----------------------

A NUTRIÇÃO E A FOME

Na Divina comédia, Dante bem definiu a fome como "a pri­

meira das calamidades que assolam a humanidade. Sua conse­

qüência é a morte mais miserável de todas. A fome provoca um

suplício lento, dores prolongadas, um mal que habita e se es­

conde no interior da gente, uma morte sempre presente e sem­

pre lenta a chegar". I

A alimentação é a luta contra a fome. Nem sempre essa luta

tem sido vitoriosa para a humanidade. O nível do povoamento

e sua localização e a densidade populacional são fatores decor­

rentes da capacidade de se produzir alimentos. A produção

dos alimentos e a sua disponibilidade social têm obedecido a

uma dinâmica milenar de desigualdades distributivas e de cri­

ses alimentares. As fomes assolam o passado e o presente da

humanidade.

1 Apud Jacques ChonchoI, O desafio alimentar. A fome no mundo, São Paulo, Marco Zero, 1989, p. 7.

Page 32: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

humanas levou a tentativas de conceituá-la em seus diversos ní-

veis como fomes agudas, subalimentação crônica ou fome oculta

(carências qualitativas de proteínas ou vitaminas).

O agravamento do problema alimentar foi oficial e institu­

cionalmente reconhecido com a criação da Organização de Ali­

mentação e Agricultura das Nações Unidas (FAO - Food and

Agriculture Organization), originada de uma conferência realizada

em Hot Springs, Estados Unidos, em 1943. Desde então, tal or­

ganização dedicou-se a realizar investigações e levantamentos

sobre a s ituação alimentar planetária. Em 1974, sob o impacto

de uma crise na produção mundial de cereais e dos surtos de

fome na África, na Ásia e na América Latina, realizou-se em

Roma, sede da FAO, uma Conferência Alimentar Internacional,

com a participação de 130 países. As resoluções desse encontro,

entretanto, só serviram para tornar o tema da fome uma preocu­

pação constante da mídia mundial e para subsidiar uma série de

estudos estatísticos e econométricos, não trouxeram efetiva-

mente qualquer conseqüência prática. A situação da fome, de­

nunciada por Josué de Castro, que foi o presidente do conselho

da F AO entre 1952/56, continua na pauta dos grandes proble-

mas contemporâneos.

Os métodos de cálculo da fome no mundo são objeto de con­

trovérsia teórica e utilização política e ideológica. A FAO utili­

za o critério de "consumo energético alimentar não menor de

COMIDA E SOCIEDADE

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Page 33: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

um estimado 'mínimo requerido' de 1,4 x taxa metabólica ba­

sal", para afirmar no Fifth FAO World Food Survey a existência de

cerca de 490 milhões de pessoas desnutridas no mundo entre

1979 e 1981. Muitos especialistas reconhecem que esse critério

"não é suficiente a não ser para uma sobrevivência sedentária

sem trabalho físico e sem a manutenção de uma boa forma car­

diovascular prolongada ( ... ) pelo critério mais apropriado de

um consumo adequado para atividade física produtiva, o núme­

ro chega perto de um bilhão de pessoas".3 Outra definição mais

geral e menos quantitativista é a de fome como uma inadequa­

ção no consumo individual em relação ao tipo e à quantidade de

alimento requerido para o crescimento, para a atividade e para a

manutenção de uma boa saúde.4

Os números oficiais da FAO até 1985 mostravam que houvera

uma diminuição na proporção dos famintos na população mun­

dial, mas também indicavam que, em números absolutos, o nú­

mero de famintos nunca fora tão grande. Nas últimas três déca­

das e meia, a proporção de pessoas faminta no mundo diminuiu

pela metade - de 23 % para 10% usando os dados e métodos de

estimação da FAO. No entanto, existem provavelmente mais pes­

soas famintas hoje no mundo do que em qualquer outra época an-

3 Nevin Scrimshaw, "World nutritional p roblems", in Newman, Hunger in History, 1990, p. 353.

4 Sara Millman e R obert W. Kate s, in Newman, op. cit., p. 3.

HENRIQUE CARNEIRO

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Page 34: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

terior. Tal evidência é ainda mais gritante diante do cálculo da

produção contemporânea de alimentos, que alcançou um volume

recorde na história humana. O suprimento global de alimentos é

atualmente suficiente o bastante para alimentar mais do que a to­

talidade da população mundial com base numa dieta semivegeta­

riana, mas suficiente apenas para alimentar metade da população

mundial se for estendida para todos a mesma dieta atual dos paí­

ses desenvolvidos. As conseqüências do que se caracteriza como

H dieta de países desenvolvidos" no crescentemente interdepen­

dente sistema alimentar global atinge o conjunto do planeta, de­

vido ao impacto ambiental provocado pela destruição das flores­

tas tropicais na América Latina para dar lugar às pastagens e às

plantações de forragem necessárias para aumentar o consumo

ocidental, e especialmente norte-americano, de bifes.

Muitas questões são postas para a história da alimentação e

da sua carência. Como periodizar a fome, quais os ciclos das os­

cilações da sua ocorrência, como avaliar a historicidade das ca­

rências, medi-las entre as camadas da população, desvendá-la

em meio a números brutos de volumes de produção ou de co­

mércio? E como mensurá-la e mapeá-la nas diversas épocas e re­

giões da história da humanidade? Pode-se afirmar que, na época

contemporânea, a humanidade, no seu conjunto, tem se alimen­

tado mais e melhor do que em épocas passadas? Como comparar

as diferentes alimentações dos diversos estratos sociais nas va-

COMIDA E SOCIEDADE

27

Page 35: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

riadas épocas e regiões? Como obter índices de consumo em ca­

lorias, proteínas, carboidratos e vitaminas?

Durante as irrupções de crises alime�tares precipitadas por

guerras, pestes, catástrofes climáticas etc. , ocorrem os níveis

agudos de escassez, que se destacam com horrível visibilidade na

memória dos povos e com evidência numérica nas mensurações

estatísticas. Na longa duração histórica, entretanto, é mais difí­

cil seguir o curso da luta pela alimentação, verificar os índices de

consumo alimentar, os períodos ou ciclos de crises, os quadros

nosológicos associados a nutrições deficitárias e, enfim, a in­

fluência mais geral do tipo de alimentação na constituição b io­

lógica das distintas populações.

Só é possível responder às questões colocadas pelo drama da

fome em sua perspectiva diacrônica através do exame compara­

do dos níveis históricos de escassez ou abundância na produção

agrícola e das formas de produção e distribuição que constituem

o equilíbrio ou o desequilíbrio alimentar em dada sociedade.

Por equilíbrio pressupõe-se o consumo em níveis satisfatórios,

quantitativo e qualitativo, de proteínas, calorias e vitaminas.s

5 Existe uma vasta b ib li ografia médica sobre a nutrição humana. onde tenta-se defi­nir a quantidade de calorias, de pr oteínas e de v itaminas q ue c onstituem urna raçã o al imentar a dequada e q ue pode ser fac ilmente obtida em obras de referência médica geral ou nos relatórios da FAO e da O MS, e ntre os q uais: Besoins en Calcium , Roma, 1961; Besoins ln Protéines, Roma, 1965; Besoins en Vitamines A, Thiamine, Riboflavine et Nia­cine, Roma, 1967; Besoins eM Ácide Ascorbique, Vitamine D, Vitamine B 12, Acide Fo/ique, et Fer, Roma, 1970; e Energy and Protein Requirements, Genebra, 1973.

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Page 36: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

Nesse sentido, a história da alimentação é a história da luta

contra a fome. A história da fome é interligada com a história da

abundância. Tal história começou a colher seus dados e a buscar

sistematizá-los no século XIX. Um dos primeiros estudos foi o

de Cornelius Walford, que, em 1878, apresentou à sociedade

estatística de Londres dois importantes comunicados sobre a

fome no mundo, nos quais analisava as causas de mais de 350

surtos de fome que haviam flagelado os povos ao longo dos sé­

culos.6 Este esforço para se fazer a estatística histórica da fome

se inscreve nos passos precursores da constituição de uma de­

mografia histórica. Desde então, tem havido muitos estudos so­

bre fomes regionais e crises alimentares, relações entre as crises

agrícolas, os preços e as rendas, assim como descrições do de­

senvolvimento das fomes localizadas, apontando para correla­

ções entre preços de cereais, especialmente do milho, e taxas de

nascimentos e mortes, indicando relações diretas entre o tipo de

alimentação e os índices de fertilidade e de mortalidade, de emi­

grações e de epidemias.

O crescimento demográfico é um dos elementos que pode in­

dicar um aumento nos padrões de consumo alimentar em épo­

cas passadas, pois a superação dos índices de mortalidade pelos

de natalidade tenderia a manifestar uma melhoria nas condições

6 Jac ques Chonchol, op. cit., p. 8.

COMIDA E SOCIEDADE

2 9

Page 37: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

de vida, particularmente da nutrição, permitindo às populações

melhor resistência às doenças e prolongamento da expectativa

de vida. Outras características antropo�étricas ligadas à nutri­

ção, como peso, altura, vulnerabilidade a certas doenças, tam­

bém são objeto de estudo para a história da fome.

Doenças causadas por carências alimentares específicas, como

o escorbuto (hemorragias causadas por carência de vitamina C), a

pelagra (avitaminose que causa perturbações digestivas, epidér­

micas e nervosas), o bócio (hipertrofia da glândula tireóide), a

anemia (fraqueza causada por diminuição dos glóbulos verme­

lhos) ou o beribéri (polineurite com dores nevrálgicas), também

podem ser um indicativo do tipo de alimentação de épocas ou re­

giões específicas, como é o caso, por exemplo, das populações es­

cravas no Brasil, cuja típica tristeza, chamada banzo, além da nos­

talgia dos exilados, também seria um sintoma típico da anorexia e

exaustão provocadas pelo beribéri.? Também são características

as enfermidades derivadas de superabundância, como é o caso da

obesidade, do colesterol elevado ou da diabetes contemporânea.

A deficiência específica de ferro e de iodo ainda afeta cerca de

500 milhões de pessoas na atualidade.

Um dos impedimentos maiores para o estudo histórico da

fome é a dificuldade de se obter cálculos precisos do teor da nu-

7 Renato Pinto Venâncio e Maria Cé lia da S. Lanna, "Banz o. Desnutrição e morre do escrav o" , i" Ciência Hoje, vol. 2 1, n2 126, 1997, pp. 42-47.

HENRIQUE CARNEIRO

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Page 38: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

trição dos diversos segmentos sociais das diferentes sociedades.

Alguns autores tentaram estabelecer parâmetros teóricos para se

poder esboçar a comparação de dados de distintas procedências

no tempo e no espaço, efetuando estimativas de composição ca­

lórica para associações de alimentos diferentes. O uso abusivo

de tais cálculos estimativos de valores nutricionais de dietas

passadas foi objeto de crítica por outros historiadores.8

As amostragens numéricas e os dados estatísticos só vieram a

se tornar mais precisos a partir da época moderna e, especialmen­

te, da contemporânea, quando a econometria e as fontes oficiais

de censos e outros levantamentos puderam fornecer estimativas

ex atas de produção, circulação e consumo dos alimentos. A maior

parte dos estudos produzidos sobre a história da alimentação re­

fere-se, portanto, ao período histórico pós-industrial.

No balanço geral das transformações ocorridas desde o iní­

cio da época moderna, há indicações claras de ter havido um

agravamento das condições de penúria de grande parte da popu­

lação européia. Entre os séculos XIV e XVIII, as condições nu­

tricionais pioraram na Europa, o que refletiu-se até mesmo na

8 "Após a fisi ologia da nut tição ter sido institucionalizada na segunda metade do sé­culo XIX, a ca dêmicos te nta ram pela p rimeira vez converter as qua ntidades de comi­da consumidas, como determinado pelas estatísticas, em calorias e nas três mais im­p ortantes unidade s de nutrição - prote ína, gordura e carboi dratos. Apesar de este mé­todo ter sido pouco usado inicialmente, tornou-se comum desde a metade do século XX C ... ) é espantoso o quão ingenuamente e a criticamente alguns historiadore s têm usado estes cálculos fisiológicos em contextos históricos." T euteberg, op. cit., p. 12.

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3 1

Page 39: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

altura média do povo. Durante o período moderno, o capitalis­

mo mercantil se expandiu traficando as especiarias e, mais tarde,

o açúcar, produtos híbridos de alimento�droga, do mundo colo­

nial para a Europa, enquanto no próprio continente europeu as

condições nutricionais das populações sofriam carências cres­

centes. Somente após o final do século XVIII iniciou-se uma re­

cuperação que redundou em melhorias na quantidade e na qua­

lidade da alimentação, além de avanços na higiene alimentar e

nas condições sanitárias que evitaram contaminação bacteriana,

como a invenção dos meios de esterilização dos vidros e das la­

tas. As duras condições de fome do período moderno somente

se atenuaram para os europeus no século XIX e, ainda em

1845-47, cerca de um milhão de irlandeses morreu de fome de­

vido à quebra da safra de batatas, ao aumento dos preços e à au­

sência de socorro.

A partir da época industrial, no século XIX, verificaram-se

diversas alterações na agricultura e na economia que ampliaram

a oferta de alimentos e as possibilidades de sua aquisição na Eu­

ropa, fenômeno que foi chamado "revolução dietética". Ao

mesmo tempo, a incorporação das economias agrárias pré­

capitalistas da África e da Ásia ao mercado mundial, submeten­

do-as a especializações de exportação (monoculturas de algo­

dão, cana-de-açúcar, chá, anil etc.) e ao regime de flutuação dos

preços mundiais, ajudou o decadente Império Britânico a equi-

HENRIQUE CARNEIRO

3 2

Page 40: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

librar a sua balança comercial e aumentou a disponibilidade de

gêneros alimentícios nos países metropolitanos. Para os países

coloniais, entretanto, teve resultados desastrosos provocando

grandes crises de fome que chegaram a aniquilar cerca de um

quarto da população do Marrocos entre 1878-84, a provocar

20 milhões de mortos na China, em 1877, e, na Índia, sete mi­

lhões de mortos em 1878-79 e cerca de 16 milhões em 1897,

entre outras cifras estonteantes referentes aos demais países. No

balanço geral do final do século XIX, o sacrifício total de seres

humanos dessas três ondas de seca, fome e epidemias não deve

ter sido inferior a 30 milhões de vítimas. Cinqüenta milhões de

mortes é considerado como um cálculo mais realista.9

Ao longo do século XX, tais morticínios continuaram a su­

ceder não só em crises localizadas, mas como formas endêmi­

cas de fome, carências específicas e subalimentação generaliza­

da. É um paradoxo contemporâneo que ocorra um crescimen­

to da fome no planeta na época atual, quando a produção agrí­

cola é a maior de toda a história da humanidade - atingiu-se

no final do século XX cerca de dois bilhões de toneladas de ce-

reais - e, devido a diversos recursos tecnológicos (fertilizan­

tes, agro tóxicos e engenharia genética) que possibilitaram uma

verdadeira revolução agrícola, tendo crescido, ao longo do sé-

9 Mike Davis, Holocaustos coloniais, Rio de Janeir o, Recor d, 2002.

COMIDA E SOCIEDADE

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Page 41: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

culo XX, em índices superiores ao crescimento populacional,

refutando na prática as previsões malthusianas que tanto im­

pacto produziram no século XIX.

As teorias sobre a fome relacionam-se com as teorias sobre o

crescimento populacional e sua relação com o crescimento na

produção. Duas perspectivas teóricas a esse respeito surgiram no

século XIX: a de Thomas Malthus e a de Karl Marx. A teoria

malthusiana, como é sabido, considerava que as populações cres­

ceriam em progressão geométrica (exponencialmente), enquanto

os meios de subsistência apenas em progressão aritmética (linear­

mente). Marx, discordando com veemência de Malthus, apresen­

ta uma teoria da população específica para o modo de produção

capitalista, onde a rápida acumulação de capital reduz a necessi­

dade de trabalho, criando um excedente relativo de força de tra­

balho, um "exército industrial de reserva", condenado ao desem­

prego ou subemprego, a baixos salários, condições de vida mise­

ráveis e fome persistente. Marx encontra, portanto, as raízes da

fome e de outras formas de miséria humana nas relações de opres­

são e exploração ligadas à organização da produção.

As conquistas técnicas da Revolução Industrial refutaram os

pressupostos de Malthus. Nem as populações cresceram geome­

tricamente nem a capacidade produtiva aumentou numa progres­

são simplesmente aritmética. A mecanização agrícola e os trans­

portes modernos produziram um salto nos volumes de produção

HENRIQUE CARNEIRO

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Page 42: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

no mundo. Ester Boserup (1965) apresentou uma teoria que, ao

contrário das previsões malthusianas, identificou no crescimento

populacional um mecanismo provocador de inovações tecnológi­

cas e, no longo prazo, de melhorias nas condições de vida. Uma

abordagem, apresentada mais recentemente pelo economista in­

diano Amartya Sen, laureado com o Nobel de Economia em

1998 por seus estudos sobre o cálculo da pobreza, denominou jai­

lure entitlement exchange, ou um fracasso no direito à disposição de

comida, a razão da ocorrência de fomes, interpretando as suas cau­

sas estruturais como resultantes da pobreza e não da inexistência

de comida na região em causa. Outras interpretações, por outro

lado, enfatizam como principal fator causador da fome no T er­

ceiro Mundo o controle do mercado mundial pelas grandes mul­

tinacionais (Cargill, Nestlé etc.) cuja estratégia básica é ampliar

seus lucros, manipulando as cotações internacionais dos preços e

opondo-se ao estabelecimento de estoques internacionais regula­

dores de preços em mãos de organismos estatais para assistência

de populações famintas. l O

A idéia de que se poderia acabar com a fome no mundo com o

aperfeiçoamento dos recursos tecnológicos da Revolução

Industrial, que vão desde a invenção dos refrigeradores ou dos

fertilizantes químicos, há cerca de um século, até a atual mani-

10 Susan Ge orge, O mercado dafome, Rio de Janeiro, Paz e Terr a, 1978.

COMIDA E SOCIEDADE

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Page 43: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

pulação genética com a conseqüente criação de novas e mais re­

sistentes espécies vegetais e animais, animou um otimismo cien­

tificista característico do século XX. E, de fato, pôde-se verifi­

car, no início do século XX, um salto significativo na melhoria

da nutrição média das populações de diversos países, particular­

mente daqueles que desenvolveram a mecanização da produção

e distribuição agrícola.

Após a metade do século XX, ao final da Segunda Guerra

Mundial, o problema da fome emergiu, entretanto, como a

grande realidade mundial irrefutável: o número dos desnutridos

vai de 500 milhões a I bilhão e 130 milhões, dependendo das

diferentes estimativas. No final do século XX, estima-se que -

as avaliações variam segundo a fonte - um pouco mais de 400

milhões até cerca de I bilhão de pessoas sofram de desnutrição

de forma constante. Para a FAO, tratava-se de 450 milhões de

pessoas em 1974. Para o International Food Policy Research Institute

(IFPRI, Washington D.C), o dobro, ou seja, 900 milhões de

pessoas . Para a UNICEF, em 1980 esse número é de 780 mi­

lhões. E para o Banco Mundial, essa população atinge I bilhão e

130 milhões de desnutridos. I I

No segundo pós-guerra conheceu-se um boom econômico na

Europa, que afastou do velho continente as fomes massivas após

II Chonch ol, op. cil. , p. 9.

H ENRIQUE CARNEIRO

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Page 44: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

os momentos de fome aguda da Segunda Guerra Mundial.

Embora não se possa dispor de cálculos seguros para o conjunto

do planeta, pode-se afirmar que houve, na segunda metade do

século XX, uma melhora relativa da alimentação diante da situa­

ção anterior da crise dos anos 30 e da guerra. Tal situação, no

entanto, sofreu uma piora no final do século XX. No balanço

dos dois últimos séculos da época contemporânea, verificamos

que o regime alimentar não se aperfeiçoou de maneira contínua.

Na Europa, obteve-se um relativo bem-estar somente a partir da

segunda metade do século XIX, enquanto nos países pobres, es­

pecialmente da África, as condições de vida declinaram no últi­

mo quarto do século XX.

A fome contemporânea não se limita à fome causada pelos

cataclismas naturais que destroem colheitas. É na distribuição

que se concentra o problema do abastecimento alimentar con­

temporâneo, dado que os índices de produção crescem avolu­

mando uma quantidade nunca antes vista de estoques disponí­

veis nos países ricos.

T ais desequilíbrios têm sua origem na constituição da econo­

mia moderna. Contrariando uma visão do senso comum, que vê

na época medieval um período de extrema carência alimentar e

na época moderna uma relativa melhoria, o período moderno

surge, aos olhos de estudos recentes, como uma época, na Euro­

pa, de queda da qualidade do consumo alimentar, submetido ao

COMIDA E SOCIEDADE

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Page 45: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

monopólio dos cereais, e de grandes fomes, enquanto no perío­

do medieval, exceto quando de catástrofes climáticas muito gra­

ves, vivia-se de uma dieta mais diversificada, abastecida por pro­

dutos de bosques e hortas que o mundo moderno verá desapare­

cer com o cercamento das terras, a expulsão dos camponeses, o

inchamento urbano e a constituição do proletariado moderno.

Ao mesmo tempo em que se expandia o comércio de longo

curso e se iniciava a introdução das plantations de açúcar nas co­

lônias, para o qual se intensificou a um nível nunca antes visto

o tráfico de escravos, numa diáspora africana para a América, a

alimentação camponesa na Europa declinava consideravel­

mente em qualidade e em quantidade. A alimentação cerealífe­

ra, impondo-se à maioria da população européia, limitou a di­

versidade de produtos de subsistência existente no período

medieval, assim como diminuiu o consumo de carne até seu

desaparecimento em amplas camadas sociais. O cercamento

dos campos, a expulsão dos camponeses da terra, de cuja pro­

priedade são cada vez mais excluídos , a alta generalizada de

preços, entre outro fatores, provocam, entre os séculos XVI e

XVIII, algumas das maiores crises de abastecimento e as gran­

des fomes se generalizam.

Nessas épocas de fomes, generalizaram-se também as dietas

dos períodos de crise, baseadas na ingestão de raízes e vegetais

impróprios para o consumo, como o joio e, particularmente, de

HENRIQUE CARNEIRO

38

Page 46: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

cereais contaminados pelo ergot ou esporão, um fungo do cen­

teio que provocava s intomas de perturbações mentais. Seus efei­

tos causaram epidemias de delírios coletivos em diversas aldeias

européias nas épocas medieval e moderna. Nestes transes provo­

cados por contaminação do pão com ergot, a expressão mais co­

nhecida era a dança coletiva e convulsiva, chamada dança de São

Vito. Essa mania dançarina era resultado de uma crença coletiva

que atribuía as perturbações mentais a picadas de tarântulas e

adotava a música convulsiva como terapia, estando na origem

do ritmo italiano conhecido como tarantela. Alguns historiado­

res abordaram estes fenômenos de uma alimentação deletéria e

causadora de distúrbios psíquicos coletivos levantando a hipó­

tese da contaminação ergótica ter causado também diversas ou­

tras manifestações de comportamentos b izarros, ocorridos ex a­

tamente nas áreas de plantio do centeio, tais como práticas iden­

tificadas à bruxaria. 12 No Brasil, Josué de Castro listou dezenas

de plantas tóxicas usadas em dietas de épocas de seca e fome no

Nordeste, os chamados alimentos "brabos" , entre os quais des­

tacam-se os cactos e, especialmente, os troncos espinhosos e ri­

cos em água do xiquexique da caatinga. 1 3

1 2 Piero Campore si, Le Pain Sauvage. L 'Imaginaire de la Faim de la Renaissance au X VIIIe Sii­ele, Paris, Le Chemin Vert, 1 9 8 1; e Mary Kilbour ne Matossian, Poisons of the Paste Molds, Epidemies, and History, Ya le, Yale Uni versity Pre ss, 1989.

13 J osué de Castro, Geografia da fome, Rio de Janeir o, Antares, 1 987, pp. 220-227.

COMIDA E SOC IEDADE

3 9

Page 47: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

A miséria e a fome não foram sempre iguais nem nasceram

com a expulsão do paraíso e a maldição de ganhar o pão com o

suor do rosto. Longe de ser um flagelo imutável das sociedades

humanas, a carência tem uma história. A economia moderna

transformou o antigo status social da pobreza e da fome medie­

vais, ampliando o número dos miseráveis e lançando-os para

fora de suas origens. A acumulação capitalista primitiva baseou­

se na desterritorialização de amplas camadas sociais antes vin­

culadas à agricultura, transformando-as em marginais. A histó­

ria deste processo de pauperização na Europa na época moderna

mostra como a pobreza e a fome desempenharam papéis dife­

renciados na Idade Média e na época moderna.14 Na sociedade

medieval, os pobres cumpriam um papel funcional ao servir

para justificar a instituição da caridade praticada pela Igreja, va­

liosa não apenas do ponto de vista simbólico, na construção da

ideologia cristã, mas também necessária economicamente como

fonte de renda para o clero, que, por meio das esmolas, arreca­

dava quantias não desprezíveis numa sociedade de limitada cir­

culação monetária. Além disso, a fome como jejum era apresen­

tada pelo cristianismo como manifestação de humildade, como

valor, que levava a que ela fosse buscada por um tipo particular

de faminto voluntário que eram os peregrinos, os monges e os

14 Bronislau Gereme k, Os filhos de Caim. Vagabundos e miseráveis na literatura européia / 400- / 700, São Paulo, C ompanhia das Letras, 1995.

HENRIQUE CARNEIRO

4 0

Page 48: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

eremitas, além dos dias de jejum previstos no calendário religio­

so para todos os fiéis.

As situações de desigualdade social medieval, mais ou menos

estáveis, perturbadas apenas por crises pontuais como a do sécu­

lo XIV, foram sucedidas por um abrupto e crescente empobre­

cimento de camadas cada vez mais amplas das populações da

Europa moderna. O período que se segue à grande unificação

do planeta pelas navegações européias com os produtos do co­

mércio de longo curso ampliando sua esfera de consumo e po­

pularizando gêneros como o açúcar, as especiarias, as bebidas

coloniais, além das novas espécies americanas difundidas pelo

mundo, foi também um período de estratificação social acelera­

da na Europa, com imensos setores da população camponesa re­

duzidos à desnutrição crônica, ao mesmo tempo em que nas

Américas o impacto combinado da contaminação por doenças,

derrota militar, desagregação política e social, perda generaliza­

da dos cultivos extensivos e crises alimentares levou à morte de,

ao menos, 90% da população original do continente, que caiu

de cerca de 80 a I OO milhões para menos de l O nos primeiros

50 anos da colonização.

No século XX, a divisão desigual do produto social conti­

nuou sendo, antes de tudo, uma divisão diferenciada dos níveis

de acesso ao consumo alimentar. As grandes fomes contempo­

râneas não decorrem estritamente da falta de alimentos disponí-

COMIDA E SOCIEDADE

4 1

Page 49: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

veis mas no que Amartya Sen chamou incapacidade de obter co­

mida, ou seja, falta de recursos para comprar alimentos, como

demonstram os estudos sobre a Índia: Trata-se não simples­

mente de um problema de falta de pão, mas de insuficiência do

"ganha-pão". I S

Os estudos sobre as grandes fomes do final do século XIX e

início do XX mostram que, apesar dos fatores climáticos cícli­

cos ligados ao aquecimento do oceano Pacífico chamado EI

Nino, havia alimentos, mas eles se tornaram indisponíveis devi­

do ao aumento de preços e à sua exportação (a Índia continuou

exportando alimentos durante as três grandes fomes dessa épo­

ca). A ausência de um socorro do Estado era justificada em base

aos mais estritos liberalismo e utilitarismo económicos, do mes-

mo modo como havia sido feito com a fome irlandesa de 1846,

o Estado britânico não interviu no mercado para baixar preços

nem diminuiu a extorsão fiscal nas três grandes fomes ocorridas

na Índia entre os anos 1876-79, 1889-91 e 1896-1902, quan­

do morreram dezenas de milhões de pessoas.

Os paradoxos do desequilíbrio na distribuição da renda

mundial aguçaram as desigualdades globais. Na Europa, nos

Estados Unidos e no Japão desenvolveram-se, a partir do final

da Segunda Guerra Mundial, sociedades de abundância e segu-

15 A. Sauvy, apud Lacoste, op. cit., p. 42.

HENRIQUE CARNEIRO

4 2

Page 50: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

rança alimentar plena, onde o fantasma da fome praticamente

desapareceu. Tais conquistas decorrem dos novos recursos téc­

nicos, como também das reivindicações sociais organizadas que

impuseram o chamado we/jare state, ou seja, as garantias de segu­

ro-desemprego, assistência médica e outros benefícios. Nos paí­

ses periféricos, contudo, a integração das suas economias ao

mercado mundial resultou em especializações de mono cultivos,

crises de fome, depreciação dos preços dos produtos tropicais

de exportação e dependência estrutural do hemisfério sul aos

mecanismos políticos, comerciais e financeiros que beneficiam

os oligopólios internacionais.

COMIDA E SOCIEDADE

43

Page 51: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação
Page 52: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

r

5

A LIME NTAÇÃO NA PRÉ - HI S T ÓRIA

o tema da alimentação na Pré-História possui um impor­

tante volume de trabalhos especializados que discutem, do

ponto de vista da Antropologia e da Arqueologia pré-histó­

rica, as origens da agricultura, apresentando diferentes inter­

pretações da importância relativa da atividade da caça, da cole­

ta e dos primórdios do cultivo. A Arqueologia, a partir de sua

vocação de tratar dos vestígios materiais, foi uma disciplina

histórica que forneceu informações à história da alimentação

não apenas da Pré-História, como também das épocas antiga,

medieval e até mesmo contemporânea. A bibliografia sobre

Arqueologia pré-histórica, ao tratar de vestígios materiais e

buscar identificar sistemas de subsistência, trata em sua quase

totalidade do tema da alimentação. Não irei examinar aqui

esta bibliografia especializada, mas tão-somente apresentar al­

gumas referências que discutem aspectos da alimentação nas

sociedades ágrafas.

Page 53: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

Na década de 1920, antes mesmo do estabelecimento da da­

tação precisa pelo carbono 14 (descoberta por Willard F.

Libby, em 1945), o grande arqueólogo 'australiano V. Gordon

Childe ajudou a popularizar o termo "revolução neolítica" dei­

xando marcada a noção de uma transformação na forma de ob­

tenção dos alimentos como o grande desafio vencido pela hu­

manidade na sua primeira grande ruptura cultural, aquela que há

cerca de 8 ou 9 mil anos teria levado a que a espécie humana, em

diversas regiões, domesticasse certas plantas adquirindo o apren­

dizado do seu cultivo. Entre estas, destacaram-se certas gramí­

neas selvagens produtoras de grãos que se tornaram "sativas" ,

ou seja, cultivadas. Antes da agricultura, por milhares e milhares

de anos, a humanidade vivera de uma vocação onívora de coleto­

res. As técnicas do fogo, como assar e defumar já haviam se de­

senvolvido, assim como a secagem, a salga e a estocagem, mas a

dependência de recursos escassos e incontroláveis não permitira

a ampliação do povoamento. A técnica do cozimento relacio­

nou-se com a domesticação dos cereais e, possivelmente, com a

fabricação da cerâmica (embora haja outras formas de cozimen­

to, como pedras ferventes em recipientes de couro ou madeira).

Trabalhos recentes apresentam um resumo da problemática

da alimentação pré-histórica em que destaca a importância cres­

cente de técnicas científicas especializadas como a análise quí­

mica da constituição de ossos humanos para a determinação da

HENRIQUE CARNEI R O

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Page 54: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

dieta pré-histórica. Mas tais recursos são ainda limitados, como

são limitadas as amostras de fósseis, restando, portanto, os ves­

tígios arqueológicos tradicionais da cultura material, para se in­

vestigar a alimentação e a organização socioeconômica dos gru­

pos pré-históricos. Entre estes vestígios encontram-se os pró­

prios restos alimentares, os instrumentos de preparo, além de

dentes, cujo estudo da usura específica pode identificar padrões

de consumo alimentar, e de coprólitos ou fezes fossilizadas, que

as análises químicas podem analisar de forma a identificar a

composição da alimentação. I

Até recentemente, a teoria mais aceita era aquela que conside­

rava que a caça organizada, particularmente de animais de gran­

de porte, estaria na origem da "organização social e familiar

considerada como tipicamente humana".2 Essa idéia, entretan­

to, foi questionada no início dos anos 80, denunciada como

uma visão ideológica que buscaria atribuir o prevalecimento na

primeira humanidade de instintos caçadores quando, na verda­

de, os primeiros hominídeos, longe de serem orgulhosos caça­

dores, não passariam de tímidos ladrões de carniça. Sem grandes

novas evidências mas com diferente interpretação dos indícios,

I Catherine P edes in Flandrin & M ontanari , História da alimentafão, São Paulo, Estação Liberdade, 1998, pp. 36- 53.

2 P edes menciona G. M endel, La Chasse Structurale ( 1977), como referência para essa hipótese teórica.

COMIDA E SOCIEDADE

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Page 55: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

foi proposta uma certa reabilitação dos primeiros hominídeos

como hábeis caçadores, mas cuja alimentação essencial, indica­

da pelo tipo de usura dos dentes, seria ·vegetal. O Homo habilis,

nosso antepassado de mais de um milhão e meio de anos, é des­

crito como um "onívoro oportunista" . A partir de um milhão

de anos atrás, quando o Homo erectus lhe sucede, uma alimentação

mais carnívora começaria a se impor. O domínio do fogo, há

cerca de meio milhão de anos, generalizou um hábito nutricio­

nal diferenciado. Mas a caça em massa, de rebanhos inteiros de

renas, de bisões, de cavalos e de mamutes, só teria se tornado

factível ao fim do paleolítico, chamado "período da expansão

do homem sobre todo o planeta (em torno de 40 a 10 mil

anos)". O recuo das geleiras do período mesolítico teria trazido

a diversificação alimentar, preparando o que se chamou "revo­

lução alimentar" do neolítico, com a domesticação das plantas e

dos animais.

As causas dessa transformação tão importante para a história

da humanidade - pois todas as grandes civilizações ocidentais

foram fundadas a partir dos alimentos domesticados no neolíti­

co - são polêmicas, já que alguns autores se opõem à interpreta­

ção da motivação econômica, identificando o surgimento do

domínio das plantas e dos animais num momento de auge da

economia de caça e coleta, mais como a expressão de uma muta­

ção de ordem social e ideológica.

HENRIQUE CARNEIRO

48

Page 56: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

Dentre as muitas perspectivas controversas de interpretação

do papel da caça na Pré-História, podemos citar outra crítica

questionadora do que foi chamado "ícone comum do carnivo­

rismo humano primitivo" , ou seja, de uma passagem da coleta

para a caça como o salto essencial na evolução cultural da huma­

nidade. Segundo esta teoria, a evidência arqueológica foi inter­

pretada para sugerir que os grupos pré-Homo sapiens passaram da

coleta primária de alimentos para a caça entre cerca de dois a

quatro milhões de anos e que muitos dos maiores desenvolvi­

mentos sociais, biológicos e técnicos pelos quais caracterizamos

as raças modernas, tais como a habilidade de fabricar instru­

mentos e a divisão sexual do trabalho, também começaram a

surgir nesse mesmo período. 3 Tal interpretação é refutada por

certos antropólogos, segundo os quais, outras complexas desco­

bertas culinárias e dietéticas - tais como a armazenagem, a moa­

gem, o umedecimento e o cozimento das sementes - podem ter

sido, no mínimo, tão significativas na liberação humana das co­

erções ambientais, capacitando a espécie para colonizar novos

hábitats e abrindo o caminho para a agricultura. Também seria

discutível que a divisão nas sociedades pré-históricas entre as

funções da caça e da coleta correspondesse à divisão de gênero

num padrão similar ao da atualidade. A atribuição da atividade

3 Nick Fiddes, Meat. A Natural 5ymbol, Londres, Routledge, 1996, pp. 55-56.

COMIDA E SOCIEDADE

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Page 57: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

da caça aos homens e a da cole ta às mulheres foi criticada como

uma " interpretação especulativa pró-masculina (male-biased)".4

Embora a história da alimentação na Pré-História seja a que

abrange a maior parte do tempo de existência da espécie huma­

na, foi somente após a superação do longo período da cole ta e

da caça que surgiu a alimentação baseada na domesticação dos

animais e no cultivo agrícola, cujo domínio justamente funda

cada uma das civilizações, que se caracterizam por um aprovei­

tamento específico dos recursos vegetais e animais do seu meio

ambiente, como, por exemplo, vales férteis irrigados por gran­

des rios (Tigre, Eufrates, Nilo, Indo), que permitem um desen­

volvimento agrícola.

4 I dem, pp. 60-6 1.

HENRIQUE CARNEIRO

50

Page 58: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

COMER VEGET AIS: 0 SAL E OS TRES CEREAlS

BASICOS (TRIGO, ARROZ, MILHO)

o alimento basico da humanidade tern sido, des de 0 advento da

agricultura na revolw;:ao neoHtica, alguns graos que, domesticados,

passaram a ser cultivados. 0 grande historiador Frances Fernand

Braudel referiu-se as civiliza'roes que podem resumir-se ao domi-

nio de uma u.nica planta, como se poderia falar das civiliza'roes do

milho, do arroz ou do trigo. Sao tambem "plantas-civiliza'rao" as

que, como a vinha para os gregos, 0 cacau para os astecas, a coca

para os indios andinos e 0 cha para os chineses, constituem urn tipo

especial de alimenta'rao: as bebidas alc06licas, as drogas e as especia-

rias. 0 sal, por sua vez, e universal pois indispensavel para 0 consu-

mo humano (urn minimo de 6/8 gramas em media por dia por

pessoa, mais quando faz calor) e acompanha os cereais e as carnes

como necessidade organica, condimento e conservante.

Neste capitulo tratar-se-a das origens mais remotas da rela-

'rao da humanidade com os vegetais, cujo uso e domestica'rao

superaram uma fase meramente coletora para fundar a agricul-

Page 59: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

tura com a chamada revolus:ao neolitica. Os principais graos, er-

vas e frutos serao identificados em sua hist6ria economica e cul-

tural na formas:ao de algumas grandes civilizas:oes. Inicialmente,

entretanto, e preciso referir-se ao sal.

o sal foi objeto de uma produs:ao localizada em algumas re-

gioes: por evaporas:ao natural nas costas dos litorais quentes (na

Europa, no maximo ate a Bretanha), por evaporas:ao da agua do

mar pelo calor do fogo, por extras:ao de jazidas subterraneas em

minas (na Austria e na Polonia, por exemplo) e por extras:ao de

superficies de salinas (em desertos especialrnente, no Saara, no

mar Morto, nos Estados Unidos, nos planaltos andinos etc.). 0

seu comercio e urn dos mais antigos, pois como genero de primei-

ra necessidade foi levado das regioes produtoras para todas as de-

mais (0 norte da Europa, particularmente, representou uma gran-

de demanda), a ponto de 0 sal ter cumprido 0 papel de moeda em

muitas regioes, com os atributos dos materiais de valor monetario

(homogeneidade, divisibilidade, conversibilidade, relativa escas-

sez, alto valor intrinseco ), tais como outros alimentos, por exem-

plo, 0 cacau. Do sal dado aos soldados no Imperio Romano, deri-

va 0 atual termo "salario", 0 controle estatal do comercio do sal

I Entre os historiadores que estudaram 0 sa!, podem ser citados Hocquet (1985),Bergier (1982) e MoUat (1968). 0 ultimo organizou, em Paris, em 1961. urn con-gresso internacional sobre 0 tcafico maritimo do sal desde 0 periodo medieval.

HENRI QUE CARNEIRO

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Page 60: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

de 0 tempo de Felipe, 0 Belo (1286), estabeleceu-se urn monop6-

lio espedfico sobre 0 sa!, chamado "gabela", que foi urn dos mais

odiados mecanismos fiscais de extorsao do povo. Na Frans:a, che-

gou a haver 25 mil cobradores da gabela no seculo XVII, e toda

produs:ao e comercio autonomo era punida severamente como

contrabando, havendo milhares de condenados por esse crime, a

ponto de ja ter sido afirmado que a gabela foi "uma das principais

causas da Revolus:ao Francesa".2 A dominas:ao briranica sobre a

India tambem impos urn monop6lio do sal, que foi alvo de uma

massiva campanha de Gandhi, em 1930, que desafiou a lei inglesa

liderando uma marcha ate 0 litoral para produzir sal. N as regioes

de floresta ou ausentes de comercio de sal utilizam-se cinzas de

certos vegetais como Fonte alternativa.

Mas se 0 sal e, juntamente com a agua, urn dos dois minerais

basicos de nossa alimentas:ao, a maior parte da comida da huma-

nidade foi tirada do reino vegetal. Dezoito plantas foram iden-

tificadas como a base de 75% a 80% da alimentas:ao total da

humanidade em todos os tempos e continentes.3 Entre elas,

nove saD cereais (trigo, arroz, milho, cevada, centeio, aveia, tri-

go-sarraceno, milha e sorgo); quatro saD tuberculos (batata,

2 Maguelonne Toussaint-Samar, Historia Natural y Moral de los Alimentos, Madrl, Alian-za, 1987, v. 6, p. 45.

3 Atlas des Cultures Vivriires, Benin, Hemardinquer, Keul e Randles, Paris/Haia, Mou-ton, 1971.

Page 61: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

mandioca, batata-doce e inhame); tres sao arbustos (tamareira,

oliveira e vinha); e ha uma arvore (bananeira) e uma graminea

(cana-de-a'rucar). De todas estas plantas, oito foram domestica-

das na bacia mediterranica, quatro sao asiatic as (cana, bananei-

ra, arroz e trigo-sarraceno), quatro americanas (milho, batata,

batata-doce e mandioca) e duas africanas (sorgo e inhame). 0

Medite.rraneo foi, entretanto, 0 grande vetor da difusao de qua-

se todas elas.

Estudos economicos seriais mostraram exaustivamente a im-

porrancia dos fluxos comerciais que se desenvolveram no maior

dos mares interiores, embora, por vezes, com urn "rnediterraneo-

centrismo" demasiado voltado para a margem europeia. 0 que

nao resta duvida e que essa regiao serviu de pivo para uma integra-

'rao planetaria dramaticarnente conflituosa a partir do final do se-

culo XV. Sem discutir aqui certas afirma'roes parciais relativas a"superioridade" mediterranica, ate mesrno transcendental ("toda

a voca'rao universal supoe nascimento, ou entao transmissao me-

diterranica") ou a de que a China nao passou de urn centro secun-

dario, e preciso reconhecer a imporrancia da obra do historiador

frances Pierre Chaunu para a hist6ria da alimenta'rao.4

A expansao da humanidade deveu-se a capacidade de se obter

o maximo de alimentos no men or territ6rio possivel, 0 que foi

HENRIQUE CARNEIRO

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Page 62: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

designado como a "lei da dependencia do nivel de povoamento

para com 0 aparelho da prodw;:ao agricola", po is e a "aptidao

para produzir alimentos que proporciona 0 mapa das densida-

des" e "a desigualdade das rentabilidades e 0 mediador princi-

pal das desigualdades dos habitantes". A ocupac;:ao espacial dos

territ6rios estaria condicionada, portanto, a capacidade de se

produzir alimentos.

De todas as plantas cultivadas, a mais antiga foi 0 trigo (Triti-

cum vu~are), que, juntamente com a cevada, surgiu na Asia Me-

nor entre 6000 e 7000 a.c. Sua expansao pelo delta do Nilo, a

Mesopotamia e os planaltos iranianos, alem da India e da China

do norte (onde teria origem autonoma em torno de 3000 a.c.)

tornou-o 0 mais importante dos cereais. 0 comercio do trigo

foi 0 mais importante, em grande escala, de todos os comercios

anteriores a era industrial, mas mesmo assim 0 volume do seu

comercio nesse periodo nunca ultrapassou 1% da sua produc;:ao

total. Como ele se conserva por pouco tempo, as safras, se nao

fossem vendidas, deveriam ser consumidas rapidamente. Embo-

ra 0 pao branco tenha se tornado 0 alimento mais tipico da cul-

tura mediterranica, 0 trigo, tambem chamado frumento, nao era

produzido na sua margem europeia, dependente do Egito e da

Siria na epoca grega e romana e, mais tarde, da grande zona ce-

realifera da Europa central e do norte, especialmente a Ucrania

e a Polonia, cuja produc;:ao transportada a partir do Baltico fez a

COMIDA E SOCIEDADE

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Page 63: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

fortuna da Liga Hanseatica e abasteceu a Europa do suI durante

a epoca modema. N a Europa, H0 trigo representa, em geral, me-

tade da vida cotidiana dos homens".5 As oscilas:oes do nivel de

vida podem ser mensuradas paralelamente as flutuas:oes do pre-

s:o do trigo, cujo movimento comercial fazia-se do norte para 0

suI da Europa, caminho inverso ao tdfico do sal.

Algumas ervas daninhas que nasciam em meio aos trigais tor-

naram-se tambem plantas uteis e seu plantio associou-se ao do

trigo. E 0 caso da cevada, do centeio e da aveia. Os dois ultimos

surgiram nas regioes germanicas da Europa, mas s6 a partir do

seculo V, e por serem os cereais mais resistentes ao frio delinea-

ram a fronteira setentrional da expansao cereaHfera, sustentan-

do a expansao russa para 0 norte. A aveia e a cevada acompanha-

ram a crias:ao de cavalos, e 0 centeio, unico cereal panifidvel

alem do trigo, foi usado para produzir 0 pao preto, identificado

com os povos birbaros, n6rdicos e pobres. Por ser tambem a

base do uisque e da vodca, 0 centeio tornou-se 0 cereal mais im-

portante da identidade cultural alimentar da Europa do norte,

em oposis:ao ao complexo mediterranico do pao branco de trigo

candial, vinho e azeite de oliva. 0 consumo do pao branco, con-

tudo, caracterizou mais 0 modelo dietetico das elites, pois s6

entre 1750 e 1850 ele atingiu a mesa do povo, constrangido a

HENRI QUE CARNEIRO

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Page 64: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

consumir papas e paes de pobres, nao so com cereais menos no-

bres como 0 centeio, mas ate mesmo com ervas daninhas ou com

centeio contaminado de fungos toxicos.

o dominio dos cereais acompanhou-se de novos recursos

tecnicos para 0 seu preparo, dos quais os mais importantes fo-

ram os fornos e os moinhos de moagem. As gran des conquistas

tecnicas ligadas ao plantio do trigo foram 0 usa do arado e, a

partir de cerca de V a.c., 0 usa da atrelagem de animais. A maior

transformas:ao na produtividade do trigo foi a ados:ao da rota-

s:ao das culturas, com 0 arroteamento seguido de pousio bienal

ou trienal da terra, que ocorreu simultaneamente tanto na Euro-

pa como na China entre os seculos XI e XIII. Ainda assim, a

rentabilidade do trigo que era de ate quatro sementes obtidas

para cada uma plantada chegou, no maximo, a relas:ao de uma

para oito. As transformaS:6es tecnicas conquistadas com 0 usa

do arado e, mais tarde, com a charrua pes ada, dependeram das

realizas:6es tecnicas da siderurgia. T ais inovas:6es foram caracte-

rlsticas da civilizas:ao dos "barbaros", superiores ao Imperio

Romano tanto no usa do arado como na siderurgia e metalurgia

do ferro. A epoca medieval foi 0 momenta de incorporas:ao e

generalizas:ao destas melhorias tecnicas ao conjunto da cultura

ocidental.

o arroz (Oryza sativa), cuj a origem e mais recente (em torno

de 2000 a.c. na Indochina, com outro bers:o africano no vale do

COMIDA E SOCIEDADE

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Page 65: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

Niger ao redor de 1000 a.c.), era uma graminea de solo seco e

foi a ac;:aohuman a que adaptou-a artificialmente, apos 2.000

anos de cultivo, como uma planta se~i-aquatica. 0 arrozal

inundado foi uma imensa conquista, desenvolvida na China en-

tre 0 quinto e 0 primeiro seculos anteriores a era crista, e que per-

mitiu a ampliac;:ao da produc;:ao a ponto de transforma-lo na cul-

tura de mais alta rentabilidade por hectare ate a epoca moderna.

A partir do seculo XI, a selec;:ao da variedade do arroz precoce

permitiu a obtenc;:ao de duas colheitas anuais. 0 sistema de irri-

gac;:aoda rizicultura levou ao surgimento de urn complexo siste-

ma hidraulico, que por meio da adubac;:ao com excrementos hu-

manos e 0 usa de agua corrente e lodosa (que, ao contrario das

aguas claras, nao permite a proliferac;:ao dos mosquitos anofeles

transmissores de malaria e outras doenc;:as) conseguiu alcanc;:ar

indices de densidade demografica de ate 300 habitantes por

quilometro quadrado. Esse sistema hidraulico, "0 fato capital

da historia do homem no Extremo Oriente", 6 condicionou a na-

tureza centralizada do Estado na China, abriu urn canal fluvial

como principal via de comunicac;:ao entre 0 norte e 0 suI do pais

e fez do arroz 0 alimento mais importante da Asia, embora sua

difusao pelo resto do mundo tenha sido relativamente limitada

(ainda hoje em dia, 95% da produc;:ao mundial de arroz e do

HENRIQUE CARNEIRO

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Extremo Oriente). No Japao, 0 arroz s6 chegou no primeiro se-

culo da era crista.

o terceiro cereal mais importante do mundo, a "planta de

civiliza'}:ao" por excelencia da America, e 0 milho (Zea mays)'

Plantado desde cerca de 3000 a 3500 a.c. nos planaltos mexi-

canos, alcan'}:ou 0 Peru 2.000 anos mais tarde, produzindo a

mais alta rentabilidade por semente (de uma semente plantada

obtinha-se 80 ou ate mesmo, em casos excepcionais, 800).

Apenas com 0 usa da enxada e com poucos dias de trabalho ao

ana (cere a de 50), 0 milho garantiu altas densidades popula-

cionais e dispensou urn imenso contingente de mao-de-obra

dos afazeres agricolas que foi empregado para as monumen-

tais obras arquitetonicas das civiliza'}:oes pre-colombianas

das Americas. Sua difusao mundial ap6s a conquista espa-

nhola tornou-o parte essencial da dieta europeia, atingindo a

ltilia em torno de 1600, onde incorporou-se na forma da po-

lenta a antiga tradi'}:ao das papas e mingaus de outros cereais

que haviam sido secundarizados pela panifica'}:ao do trigo e do

centeio.

Os outros antigos cereais, como 0 sorgo (de origem africana

alcan'}:ou a Asia), 0 trigo-sarraceno e 0 milha (ou milhete), per-

deram a impordncia na epoca moderna e tornaram-se alimentos

para galinhas, assim como a cevada e a aveia serviram aos cava-

los. A cevada germinada (0 malte) transformou-se na mate-

COMIDA E SOCIEDADE

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Page 67: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

ria-prima predileta para a fermentas:ao da cerveja, feita sempre

de dois graos que podem ser trigo, centeio, aveia ou cevada. 0

malte era fervido e misturado com levedura, deixava-se fermen-

tar e acrescentava-se urn caldo que podia conter papoulas, espe-

ciarias, cogumelos, madeiras aromaticas, mel, aplcar, manteiga,

migalhas de pao ete.

AIem do milho, outra planta americana que tornou-se impor-

tante na Europa foi a batata (Solanum tuberosum). De origem an-

dina (cerca de 2000 a.c.), antes da colonizas:ao restringia-se aAmerica do SuI nao sendo conhecida sequer no Mexico. Na se-

gunda metade do seculo XVIII a batata espalha-se pela Europa,

e, ajudada pelo fato de produzir uma safra contradclica a do tri-

go, chegou a tornar-se 0 alimento basico de paises como a Irlan-

da. Entre as centenas de variedades de batatas que a cultura ai-

mad do altiplano boliviano conhecia, algumas se aclimataram

no Velho Mundo difundindo uma parcela desse saber agrono-

mico. Charles l'Ecluse, importante boranico frances, descreveu

pela primeira vez esse tuberculo no seculo XVI, mas s6 muito

mais tarde, ja no inicio do seculo XIX, 0 frances Parmentier

conseguiu populariza-Io na Europa. Os indios aimaras sao os

agronomos e boranicos que mais desenvolveram a cultura e a ta-

xonomia desse genero de Solanum, ao qual pertencem todas as

batatas e as variedades cujo vocabuIario indigena distingue "ul-

trapassam 250, e certamente no passado foram mais numero-

HENRIQUE CARNEIRO

60

Page 68: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

sas".7 Atualmente, existem classificadas na Bolivia mais de 700

variedades de batata. Diversas monografias especificas de cada

urn destes alimentos perseguiram 0 percurso da migra~ao vege-

tal provocada pelo descobrimento da America e de suas conse-

quencias na altera~ao da dieta europeia.

A mandioca (Manihot utilissima), com a mais alta rentabilidade

por hora de trabalho agrkola, foi a planta mais importante das

popula~6es litaraneas da America do SuI. Nas ilhas do Caribe

havia a cultura agrkola de mais alta rentabilidade em calorias

par hectare do mundo. A pratica do conuco, plantio em outeiros

de plantas rizomaticas como a mandioca e a batata-doce, permi-

tiu a ilha de Sao Domingos alimentar, antes da vinda dos euro-

peus, uma popula~ao de oito milh6es de habitantes, numa den-

sidade de 100 habitantes par quilometro quadrado.

A popula~ao americana alcan~ava urn total de cerca de 100

milh6es de habitantes na epoca da chegada de Colombo, manti-

das alimentadas basicamente pelo cultivo do milho, da batata,

da batata-doce e da mandioca. Ap6s meio seculo, a popula~ao

diminuira em cerca de 90%. A agricultura pre-colombiana in-

tensiva foi desarticulada e restaram cultivos dispersos e ataca-

dos pelo gada dos colonizadores.

Os colonizadores, que importavam grande parte de seu ali-

mento da Europa, tambem trouxeram outros generos que se

COMIDA E SOCIEDADE

61

Page 69: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

adaptaram muito bem nas Americas, alguns orientais ou africa-

nos como a bananeira, a cana, 0 inhame, e outros europeus,

como algumas folhas e alguns legumes (couve, ab6bora, alface,

salsa, chic6ria, alho), alem da vinha, que foi plantada em diver-

sas regioes do Novo Mundo.

HENRIQUE CARNEIRO

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Page 70: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

COMER ANIMAlS:

CARNES, OVOS E LEITES

A agricultura produz de lOa 20 vezes mais alimentos do que

a cria~ao de gada numa superficie da mesma extensao. 0 pro-

gresso demografico resulta, portanto, de urn recurso acentuado

a alimenta~ao vegetal. Por essa razao, a exce~ao da Europa, pra-

ticamente todas as grandes civiliza~6es foram essencialmente

alimentadas por vegetais, com 0 consumo carnivora restringin-

do-se as elites.

As civiliza~6es orientais sao pouquissimo carnivoras. Os ja-

poneses sao icti6fagos ( comedores de peixe), mas nao tern por

hahito comer ovos nem latidnios, e consomem pouca carne,

praticamente nao haven do cria~ao de gada de corte. Os india-

nos sao totalmente vegetarianos, 0 gada s6 serve como tra~ao e

fornecedor de leite, cujos derivados sao muito importantes

como alimentos. Os chineses comem todas as carnes, mesmo as

que poucos povos aceitam, como a de des, por exemplo, mas

quase nao praticam a cria~ao extensiva, a nao ser a do porco e a

Page 71: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

do bufalo para tras:ao, e repelem 0 consumo alimentar do leite e

dos laticinios. Como afirmou Arist6teles, "ha divers as especies

de alimentos, 'e esta diversidade introduziu varios generos de

vida, tanto entre os homens como entre os animais C... ) ha tantos

generos de vida quantas as operas:oes naturais para procurar ali-

mento". I

Os insetos, que compoem 0 cardapio de muitas sociedades

coletoras indigenas, onde representam iguarias, foram abando-

nados na maior parte das culturas agricolas. No Brasil, os cro-

nistas viajantes registraram muitos destes usos: Saint-Hilaire, 0

famoso naturalista Frances que viajou pelo Brasil na epoca do I

Imperio, achou 0 bicho da taquara de urn "sabor delicadissimo

que me lembrou 0 do creme"; a formiga, segundo Johan Nieu-

hof, ex-governador holandes do Ceilao que esteve em Pernam-

buco no seculo XVII, "constitui petisco muito apreciado pelos

negros" e, conforme Francis Castelnau, Frances que, em 1843,

viajou do Rio de Janeiro ate Lima, no Peru, "os habitantes de

Sao Paulo sao muito amigos deste petisco", e Oscar Canstatt,

historiador e ge6grafo alemao, constatou, em 1893, que "ate

mesmo os europeus comem-nas as vezes". Larvas de mosca e be-

souro, piolhos, termitas, entre outros insetos, fizeram parte dos

manjares indigenas, destacando 0 de comer 0 abdomen frito da

HENRI QUE CARNEIRO

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Page 72: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

feme a da formiga sauva, a tanajura ou is:a, quando alada e em es-

tado de procrias:ao, petisco apreciado nao so no Brasil como em

muitos outros paises. Entre as "iguarias de bugre", a is:a torrada

tornou-se a mais aceita e popular, ate mesmo nas cidades, onde

as revoadas destes insetos sao esperadas para serem capturados e

comidos fritos ou em espetos.2

A Europa valorizou extremamente a alimentas:ao carnivora e

promoveu a crias:ao de rebanhos caprinos, ovinos e bovinos.

Come-se carne para fazer a guerra. Aristoteles, no Tratado da polf-

tica, escreveu que" a guerra e tambem por si propria urn meio na-

tural de aquisis:ao; a cas:a faz parte dela; usa-se este meio nao so

contra os animais, mas contra os horn ens que tendo nascido

para obedecer recusam-se a faze-lo". A cap e, portanto, para

Aristoteles, uma guerra justa contra os animais. 0 atributo

guerreiro ligado ao consumo carnivoro remete as praticas vena-

torias, da cas:a, cuja tradis:ao e organizada com pompa pelas eli-

tes e com clandestinidade pelos pobres na busca dos recursos

florestais. Essa mentalidade e bem expressa por Rousseau, ao

afirmar no Emilio: "e certo que os grandes comedo res de carne

sao em geral mais crueis e ferozes do que os outros homens", e

ao apoiar-se numa citas:ao de Plutarco (de inspiras:ao pitagori-

2 Abguar Bastos, A pantofagia ou as estranhas praticas alimentares na selva, Sao Paulo/Brasi-lia, Ed. Nacional/1NL. 1987; e Sergio Buarque de Holanda, Caminhos efronteiras, SaoPaulo, Companhia das Letras, 1994, p. 56.

COMIDA E SOCIEDADE

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Page 73: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

ca) para comparar os comedores de carne com os esquartejado-

res de cadaveres.

A forma de apresenta~ao dos animals para serem comidos,

ate 0 seculo XVI, era inteirip, mas disfar~ou-se, entretanto, na

epoca moderna, quando 0 aspecto corporeo da comida passou a

ser escondido, picado em meio a molhos espessos. Da omofagia

(comer carne crua) ate a prepara~ao cuidadosa no fogo defi-

niu-se urn trajeto que foi 0 mesmo da funda~ao da cultura. A

subsistencia nos rituais de sacrificio da, omofagia expressaria a

recorrencia de urn modo arcaico de consumo da carne.

A rela~ao com os animais domesticados marcou a constitui~ao

das primeiras civiliza~6es. Nao so como alimento, trans porte,

tra~ao, decora~ao, ca~a e companhia, mas como encarna~6es do

sagrado, simbolos totemicos, personifica~6es dos deuses, os ani-

mais incitam gulas, tabus e complex as regulamenta~6es rituais.

Os principais animais usados como alimento, tra~ao e mon-

taria, 0 papel da domestica~ao dos diferentes tipos de rebanhos

em distintas epocas e continentes condicionaram muitas das ca-

racteristicas das culturas planetirias.

o cao foi 0 primeiro animal domesticado, contempodneo da

revolu~ao neolitica, e serviu de auxiliar da ca~a e.do pastoreio. 0

boi foi domesticado na Mesopotamia: (cerca de 4500 a.C.), no

Egito e em cidades lacustres da Sui~a (cerca de 4000 a.c.). 0

carneiro apareceu na Mesopotamia e nos planaltos iranianos

HENRIQUE CARNEIRO

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Page 74: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

(cerca de 3000 a.c.), e a cabra, urn milenio mais tarde. 0 dro-

medario no Egito (3000 a.c.) e 0 cavalo no Oriente Medio e

Europa (cerca de 3000 a.c.), tornaram-se os principais meios

de trans porte terrestre da humanidade (Chaunu, 1976:232).

Nas Americas havia urn numero muito inferior de animais do-

mesticados, apenas os camelidos americanos (lhama, alpaca, vi-

cunha), mais us ados para tr~nsporte e la do que como carne e,

entre os passaros comesrlveis de medio porte, 0 peru. Nenhum.grande animal de tras:ao nem gada de corte.

A grande revolus:ao na conservas:ao das carnes ocorreu no fi-

nal do seculo XV, quando ampliaram-se os metodos de salga

para abastecer as tripulas:6es em alto-mar e para transportar

grandes quantidades de peixe. A pesca em grande escala, desde

essa epoca, atingiu os bancos de bacalhau na Terra Nova, on de

uma corrida maritima europeia lans:ou bascos, portugueses, ho-

landeses, ingleses e franceses na cas:a aos grandes cardumes, dos

quais uma parte era salgada a bordo e embarricada, 0 "bacalhau

verde", e a outra, secada na costa da Terra Nova para 0 trans-

porte. No seculo XVIII, 60% da tone1agem da frota francesa e

constituida de bacalhau. As baleias tedo imporrancia maior

para a industria de 6leo e sabao, mas divers os outros tipos de

peixes, como sardinhas ou atuns, sedo obtidos na expansao da

pesca simulranea a expansao da navegas:ao moderna. Na Europa

cat6lica praticavam-se 166 dias de jejum religioso de abstens:ao

COMIDA E SOCIEDADE

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Page 75: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

de carne e ovos, entre os quais 40 dias extremamente rigorosos

durante a Quaresma, por isso 0 comercio do peixe fresco, seco e

salgado, tanto de mares como de rios, er~ fundamental. As car-

pas e os salm6es do Volga, 0 caviar russo do esturjao, 0 atum do

B6sforo, as lulas e os polvos secos da Grecia e 0 arenque do Bal-

tico, embarricado por holandeses, foram levados a suprir as ne-

cessidades de proteina e a condimentas:ao da alimentas:ao dema-

siado insipida.

A ras:ao de carne na Europa diminuiu entre 1550 e 1850.

Estudiosos alemaes concordam que 0 consumo de carne teria

decrescido significativamente da epoca medieval para 0 periodo

moderno, somente voltando a crescer ap6s 0 seculo XIX, a pon-

to de proporem 0 termo de "depecoration" (pecore, em frances, sig-

nifica animal) para a epoca moderna. Mesmo os criticos de cer-

tos aspectos dessa hip6tese admitem ser sem contestas:ao a exis-

ten cia de urn fraco consumo de carne nos tempos modernos,

embora considerem menos segura a afirmas:ao da existencia de

urn forte consumo medievaL3

o cerro e que a grande revolus:ao no abastecimento de carne

ocorreu no final do seculo XIX com a invens:ao dos navios fri-

3 As polemicas na historiografia do consumo de carne sac inumeras. Entre muitasobras e debates, podem ser citados do is congress os imernacionais dedicados a Histo-ria e aos animais: Histoire et AI/imal, co16quio de Toulouse, 14- I 6 de maio de 1987, eL'Animal dans l'Antiquiti Romaine, co16quio de Names, maio-junho de 199 I, aJem do ar-tigo "Theorie ou hypothese de travail?", de Robert Mandrou, Annales ESe., n2 16,196I, pp. 965-971.

HENRIQUE CARNEIRO

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gorificos e da conservac;:ao da carne em lata. 0 charque sul-ame-

ricano ja representava importante fluxo comercial, abastecendo

o sertao e 0 Nordeste do Brasil. Alguns paises, como a Argenti-

na, ou regioes como 0 SuI do Brasil especializaram-se na produ-

c;:aoindustrial de carne para a Europa e para os Estados Unidos,

onde a produc;:ao local tornou os matadouros de Chicago 0

maior centro de abatimento e corte de carne do mundo.

Mas se houve urn predominio carnivoro na alimentac;:ao das

elites, tipico do Ocidente e exacerbado nos paises e nas regioes

acima mencionadas, a maior contribuic;:ao alimenticia dos ani-

mais foi pelo fornecimento de leite de alguns mamiferos, cujos

derivados (manteiga, queijos, iogurte) tornaram-se a maior fon-

te de proteinas para muitas populac;:oes, alem de ovos de aves,

repteis e peixes. As formas de se conservar e se transportar 0 lei-

te de diversos animais (cabra, ovelha, vaca, egua ete.) evoluiram

nas tecnicas dos queijos. Somente em 1867, com a invenc;:ao do

processo de transformac;:ao do leite em po, pelo suic;:o Henri

Nestle, tornou-se possivel a estocagem e reconstituic;:ao do leite,

aIem do enriquecimento da formula do chocolate. Ovos de pei-

xe, como 0 caviar, ou mais comumente de aves galinaceas foram

menos significativos na dieta moderna e so apos a era industrial

seu consumo cresceu bastante.

Nem todos os animais foram us ados para fins alimenticios,

no entanto, e nao apenas por predilec;:ao gustativa. As restric;:oes

COMIDA E SOCIEDADE

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Page 77: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

ao consumo de determinados animais au produtos animais de-

senvolveram-se conforme complex as regras e ritualizac;:6es em

distintas culturas. As proibic;:6es mais co~hecidas sao as judai-

cas, islamicas e indianas.

o nascimento de uma sensibilidade em relac;:ao aos animais,

assim como a atitude de condenar-se a seu consumo par moti-

vas marais au de simpatia au solidariedade interespecies, e mui-

to recente e data apenas a partir do seculo XIX em certos paises

europeus. As raizes indianas e pitag6ricas do vegetarianismo sao

ligadas a noc;:6es de pureza e contaminac;:ao, e nao tern corres-

pondencia com a visao romantica oitocentista de uma Ii amiza-

de" com as animais. 0 vegetarianismo, recusa a toda alimenta-

c;:aocarnivora (incluindo em sua versao radical todos as deriva-

dos de anima is como leite e avos), tern sua origem na tradic;:ao

filos6fica indiana, que chega ao Ocidente na doutrina pitag6ri-

ca. Tal tradic;:ao iri igualar todo consumo carnivora a urn ato ca-

nibal e recusari a ingestao de cadaveres. 0 vegetarianismo ideo-

l6gico, vinculado as crenc;:as reencarnacionistas da metempsico-

se oriental, au seja, da ideia de que as almas human as transitam

entre diferentes corp as, incluindo as de animais, nao se impori,

contudo, ao Ocidente cristao, sendo apenas no periodo contem-

podneo que a seu proselitismo conquistari adeptos. A ultima

grande corrente religiosa ocidental a propugnar pelo vegetaria-

nismo foi a heresia catara, que a Inquisic;:ao destruiu ap6s uma

HENRIQUE CARNEIRO

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Page 78: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

grande campanha no inicio do secuIo XIII contra os adeptos

desta seita crista que refugiaram-se no suI da Franc;:a, especial-

mente na regiao montanhesa dos Pirineus ao redor da cidade

murada de Carcassone. 0 consumo de carne constituiu no Oci-

dente urn modelo de virilidade, associado nao so a cac;:acomo

atributo tipicamente masculino, mas tambem a uma noc;:ao de

que 0 homem necessita alimentos adequados a sua func;:aoguer-

reira e belicosa.

Nos Estados Unidos, urn movimento de reforma alimentar

de inspirac;:ao religiosa, especialmente dos Adventistas do Seti-

mo Dia, propugnou por uma recusa a toda forma de tentac;:ao

alimentar, tanto de carne como de alcoo!, tabaco e ate mesmo

especiarias. As correntes asceticas encontravam uma identidade

entre 0 vegetarianismo e a castidade, ambos opondo-se a sedu-

c;:aoda carne. 0 reverendo W.S. Graham, a partir de I 830, foi 0

grande apostolo vegetariano dessas seitas protestantes.

o vegetarianismo aparentemente tern crescido nas socieda-

des ocidentais apos a onda contracultural dos anos 60. Algumas

pesquisas indicam urn percentual de 6,7% dos norte-america-

nos que se declaram vegetarianos. Mas os que de fato praticam

uma dieta isenta de carne, ovos ou leite de qualquer tipo, os cha-

mados vegans, sao ~ma parte muito pequena; a tendencia maior e

a urn abandono das carnes vermelhas ou de urn ovolacteovegeta-

COMIDA E SOCIEDADE

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Page 79: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

A literatura moderna e contemporanea captou de forma mui-

to sensive1 as questoes eticas e os dilemas morais ligados ao uso

dos animais como alimento. 0 escritor sul-africano J.M. Coet-

zee, no livro A vida dos animais (2002), apresenta um interessante

debate sobre as justificativas mora is do tratamento dado aos

animais pe10s homens. Sua personagem principal compara as

atrocidades nazistas com a crias:ao de animais para abate, afir-

mando que as med.foras que comparam os nazistas com as:ou-

gueiros e os judeus com 0 gada devem ser invertidas para nos

darmos conta de que tratamos os animais como prisioneiros de

um campo de concentras:ao e exterminio. 0 incomodo moral

dos habitos civilizados em re1as:ao a morte por fome ja havia

sido tematizado, no inicio do seculo XVIII, por Jonathan

Swift, em seu A Modest Proposal, onde satirizava a forma como a

fome dos pobres era encarada pe10 Estado e propunha que os

bebes fossem transformados em alimento. Em Viagens de Gulliver

(1726) e1eretratou as inquietas:oes referentes a alimentas:ao car-

nivora, onde os seres imaginarios Yahoos e Houyhnhnms repre-

sentavam dois p6los extremos: comer carne crua, brutalidade e

mau-cheiro dos primeiros versus comer capim fresco, delicade-

za e aromas agradaveis dos ultimos. Gulliver, confrontado com

a ops:ao de escolher seu modo de vida preferido, acaba por optar

pelo leite das vacas, abdicando tanto do herbivorismo exc1usivo

como do carnivorismo estrito. Tal ops:ao parece me1hor expres-

HENRIQUE CARNEIRO

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Page 80: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

sar as dilemas humanos diante da necessidade alimentar e dos

prindpios eticos relativos as demais especies vivas do planeta,

como uma atitude intermediaria entre as extremos vegetarianos

dos jainistas da India, que se alimentam apenas de frutas, e as

dietas exclusivamente animais de povos cac;adores como as

inuits (esquim6s).

COMIDA E SOCIEDADE

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Page 81: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação
Page 82: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

As ESPECIARIAS, AS N A VEGA<;:OES

E A MUNDIALIZA<;:AO DA ALIMENT A<;:AO

A maior revolus:ao na alimentas:ao humana ocorreu no perio-

do moderno com a ruptura no isolamento continental, quando

o intercambio de produtos de diferentes continentes, ocorrido

no bojo da expansao colonial europeia, alterou radicalmente a

dieta de praticamente todos os povos do mundo. As especiarias

asiaticas - pimenta, canela, cravo, noz-moscada -, difundi-

ram-se para a Europa e chegaram aos outros continentes. As

plantas alimenticias das Americas: 0 milho, a batata, 0 tomate, 0

amendoim, os piment5es propagaram-se pelo planeta. Generos

tropicais, como a cana-de-as:ucar, 0 cha, 0 cafe e 0 chocolate,

combinaram-se para fornecer urn novo padrao de consumo de

calorias e de bebidas excitantes, que, ao lado do tabaco, torna-

ram-se habitos internacionais. Produtos tipicos da Europa me-

diterranica como 0 trigo e a uva acompanharam a colonizas:ao

de divers os paises e 0 alcool destilado penetrou em todos os

continentes. As viagens dos alimentos pela hist6ria, seu periplo

Page 83: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

transoceanico na epoca das navegas:oes e 0 seu imp acto na cons-

tituis:ao da era moderna, com migras:oes e mestis:agens nunca

antes conhecidas, delinearao 0 percurso' deste capitulo.

Os impactos sobre os padroes alimentares foram sentidos de

forma diferenciada mas com intensidade analoga na Europa e na

America, A chegada, por meio da Europa, de alguns generos de

origem asiatica na America (cana-de-aplcar e algodao) e 0 seu

cultivo em grande escala resultaram no estabeleciment6' da mo-

nocultura de agroexportas:ao que submeteu seus povos aos inte-

resses dos grandes grupos economicos internacionais, destruin-

do estruturas agrarias tradicionais (como a posse comunal da

terra), corroendo a agricultura de subsistencia e condicionan-

do-os aos pres:os e demandas do mercado mundial.

o trafico comercial interoceanico que inaugurou-se no pe-

dodo moderno produziu a acumulas:ao primitiva do capital, al-

terando profundamente a vida social de todo 0 mundo. A cultu-

ra arabe ja vinha transmitindo lentamente, desde a Baixa Idade

Media, divers os produtos asiaticos para a alimentas:ao europeia,

desde as especiarias ate produtos tao basicos como 0 arroz, 0

sorgo, 0 algodao, as frutas citricas, as mangas, a cana-de-as:ucar

e a berinjela. A expansao do Isla levou tais alimentos para a Eu-

ropa, as Cruzadas ajudaram a sua difusao e 0 luxo da nobreza in-

corporou-os como parte de sua opulencia. No momenta em que

essa alimentas:ao deixou de ser urn luxuoso privilegio e comes:ou

HENRIQUE CARNEIRO

76,

Page 84: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

a expandir-se para divers as camadas sociais surgiu 0 primeiro

mercado mundial, sob a egide sucessiva das especiarias, do ac;u-

car e das bebidas quentes (chocolate, cM e cafe).

o comercio dos novos generos foi 0 motor do surgimento de

novas formac;oes socioeconomicas, como foi 0 caso do sistema

de plantations na America e, ao mesmo tempo, da expansao, num

grau nunca antes conhecido, do trafico de seres humanos. Os

capitais criados nesse trafico triplo - produtos asiaticos para a

Europa, escravos africanos para a America, produtos america-

nos para a Europa e ·Africa - alavancaram as transformac;oes no

sistema de produc;ao artesanal na Europa. Reuniram-se, entao,

as condic;oes: a demanda, 0 produto ( algodao ) e 0 capital, para 0

surglmento da industria textil que deflagrou a Revoluc;ao

Industrial.

A pimenta moveu as naus dos descobridores e 0 ac;ucar produ-

ziu a escravidao africana, deslocando massas human as entre con-

tinentes, a ponto de urn historiador afirmar que "0 ac;ucar - ou

melhor, 0 grande mercado de commodities que 0 demandou - foi

uma das massivas forc;as demograficas na hist6ria mundial". I

Urn exemplo intrigante da influencia decisiva da alimentac;ao

na hist6ria politica e economica e a avidez pelas especiarias, a

cuja motivac;ao foram atribuidas diferentes origens. As especia-

I Sidney Mintz. Sweetness and Power. The Place oj Sugar in Modern History. Nova York,Penguin Books, 1986, p. 71.

COMIDA E SOCIEDADE

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Page 85: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

rias sao alimentos/ drogas, subsrancias de consumo gustativo,

mas tambem medicinal e afrodisiaco. Foram atribuidas origens

miticas paradisiacas para essas subsranc(as, que viriam do pr6-

prio Jardim do Eden, carregadas pelos quatro rios que nele nas-

cern, e que corporificariam as virtudes solares das regioes quen-

tes e desconhecidas do Oriente.

A epoca moderna deve alguns dos seus elementos fundadores

essenciais a ansia pelas especiarias, que levou ao ciclo das navega-

'roes, aos grandes descobrimentos, ao sistema mundial, ao comer-

cio transoceanico e a forma'rao dos modernos imperios europeus.

o primeiro destes imperios comerciais foi Portugal, chamado

Imperio da Pimenta. Tendo descoberto primeiro as remotas ilhas

Molucas, na Indonesia, unico lugar onde nasciam algumas das es-

peciarias (0 cravo e a noz-moscada), os portugueses mantiveram

urn virtual monop6lio do seu comercio ate serem expulsos pelos

holandeses que, por sua vez, foram derrotados pelos ingleses.

Desde 0 Imperio Romano a avidez pelas especiarias era gran-

de. 0 termo "pimenta" originou-se do latim pigmenta, que tinha

significado de pigmento. Mais tarde passou a referir-se ao vinho

enriquecido na cor e no aroma com especiarias e, por extensao, a

qualquer especiaria. Entre os espanh6is, usou-se 0 termo para as

plantas americanas do genero Capsicum, tanto 0 tipo doce ou pi-

mentao, como 0 tipo picante, as divers as pimentas. A pimen-

ta-do-reino (Piper nigrum), originada da India, tern seu nome na

HENRIQUE CARNEIRO

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maior parte das linguas europeias, a exces:ao do portugues e do

espanhol, derivado do termo sanscrito pippa/i.

Esta necessidade de especiarias foi explicada como sendo ne-

cessaria para disfars:ar a ma qualidade da carne, mas Fernand

Braudel vai mais fundo, quando refere-se aos "psiquismos olfa-

tivos", a uma ansia por sabores e aromas fortes e misturados, va-

lorizados por orientas:6es medicas que atribufam-Ihes qualida-

des adequadas aos humores, especialmente de serem afrodisia-

cos, estimulantes e infusores de calor. Essa volupia pelos condi-

mentos almiscarados, ambreados, edulcorados e apimentados,

origin aria da epoca classica e intensificada a partir da Baixa Ida-

de Media, esgotou-se na Europa do suI em meados do seculo

XVII, quando houve urn retorno dos perfumes florais e da ali-

mentas:ao menos temperada. Nas regi6es n6rdicas permaneceu

mais tempo 0 uso intenso de certos condimentos, 0 cominho em

particular. Nos mundos americano, asiatico e africano 0 gosto

dos picantes intensos espalhou-se por divers as culinarias.

As tradicionais plantas aromaticas europeias - as:afrao, tomi-

lho, manjerona, louro, segurelha, anis, coentro e alho -, usadas

desde a Grecia e Roma, juntaram-se com as especiarias asiaticas:

pimenta-do-reino, canela, cravo, noz-moscada, cardamomo e

gengibre, e com as pimentas americanas e africanas, especial-

mente as Capsicum, para constitufrem e difundirem urn arsenal

mundial dos estimulantes do gosto.

COMIDA E SOCIEDADE

79

Page 87: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

Essa busca de especiarias, levando a descoberta da America,

provocou indiretamente outra revolus:ao nos habitos alimenta-

res mundiais, colocando em contato especies que nunca antes ti-

nham sido transplantadas. Os contatos e as influencias foram

feitos em divers os sentidos: a batata, 0 milho, 0 tomate, 0 amen-

doim, 0 pimentao, 0 feijao e 0 cacau das Americas difundem-se

pelo mundo, junto com 0 chi da China, 0 cafe da Etiopia, a ca-

nela do Ceilao, 0 cravo das Molucas, a pimenta do Malabar e a

noz-moscada de Banda, enquanto produtos da dieta europeia

como 0 trigo, 0 vinho e 0 alcool destilado tambem espalham-se

de sua area original para uma difusao mundial.

Cada urn dos produtos de origem americana teve uma histo-

ria espedfica na sua expansao para fora do continente de ori-

gem. Muitos dos pratos considerados mais tipicamente "regio-

nais" de varias culinarias europeias so surgiram apos a chegada

dos generos americanos - pensemos nas massas italianas, por

exemplo: 0 que seria do espaguete sem 0 tomate? Ou da polenta

sem 0 milho? Alguns, como os piment6es, vieram a influenciar

culinarias tao distantes como a africana, a do sudeste asiatico e a

hungara, onde, moido, tornou-se ~ condimento mais caracteris-

tico do pais: a paprica do gulash. 0 tomate, do termo asteca jito-

mate, foi considerado inicialmente urn veneno, que so podia ser

consumido apos horas de cozimento. Mais tarde, valorizado

por italianos e franceses recebeu 0 nome de pomodoro (mas:a dou-

HENRIQUE CARNEIRO

80

Page 88: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

rada) e de pomme d' amour (mac;:a do amor) passando a ser consi-

derado afrodisiaco. A batata, 0 milho, 0 feijao e, entre os animais,

o caso singular do peru (seu nome em ingles, turkey, evidencia a

via otomana pe1a qual esta aye de origem sul-americana chegou

a Europa e depois aos Estados Unidos), foram sendo adotados

lentamente, e so no seculo XIX incorporaram-se definitivamen-

te a alimentac;:ao europeia e de grande parte do mundo.

Revoluc;:ao seme1hante somente ocorrera antes quando, em

meados do ana IOOO, os arabes comec;:aram a fazer uma lenta di-

fusao de uma serie de produtos que a Europa ate entao nao co-

nhecia, como 0 ac;:ucar, a laranja e as proprias especiarias asiati-

cas, ate entao seu monopolio comercial. T ais produtos de luxo,

naque1a epoca, mantiveram-se, entretanto, restritos a nobreza.

Na historia da alimentac;:ao moderna assume grande impor-

rancia a expansao no consumo de diversos produtos de luxo,

dos quais 0 principal, entre as especiarias no seculo XVI, foi a

pimenta. A principal mercadoria do comercio oriental levou

Vasco da Gama a circunavegar 0 cabo da Boa Esperanc;:a, em

I498, obtendo 0 monopolio para os portugueses e, duas deca-

das depois, bus cando urn caminho ocidental para as ilhas das es-

peciarias (as Molucas, na Indonesia) que rompesse a exclusivi-

dade lusitana, Fernando de Magalhaes realizou a primeira volta

ao mundo. Apos I650, a pimenta perde imporrancia, mas con-

tinua presente, especialmente na Europa do norte.

COMIDA E SOCIEDADE

81

Page 89: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

Os holandeses, ao a~ambarcarem 0 trafico internacional das

especiarias desbancando OS portugueses, tornaram Amsterda 0

principal entreposto de distribui~ao europeia do trafico das

Indias. Para isso, eles dedicaram-se a uma sistematica atividade

de exterminio das plantas produtoras de especiarias em todos os

lugares, a exce~ao de certas ilhas onde especializaram 0 seu cul-

tivo. As arvores de noz-moscada foram restritas a ilha Amboi-

no, sob pena de morte para quem contrabandeasse sement.es, as

de cravo, a ilha de Banda, e as de canela, ao Ceilao. 0 Frances Pi-

erre Poivre foi urn dos que conseguiu, no seculo XVIII, subtrair

sementes de moscadeiros para a ilha Mauricio, possessao fran-

cesa no Indico, rompendo 0 monop6lio holandes, atacado tam-

bem pelos ingleses, que tomam 0 Ceilao em 1796.

Se a busca das especiarias impulsionou as grandes descobertas

maritimas e a ado~ao do a~ucar levou a escravidao africana, os de-

sequilibrios provocados pelas crises alimentares do seculo XVIII

deflagraram as revoltas que culminaram na Revolu~ao Francesa

em 1789, quando os pobres se indignavam com 0 uso da mais

pura farinha de trigo para empoar as perucas da nobreza ao mes-

mo tempo em que a plebe passava por priva~ao de pao. Da mesma

forma, quase urn seculo e meio mais tarde, a Revolu~ao Russa de

fevereiro de 19 17 sera desencadeada sob a consigna de "pao, paz

e terra". A alimenta~ao ocupa, como urn ator invisivel, 0 cenario

dos gran des processos constitutivos da modernidade.

HENRI QUE CARNEIRO

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Page 90: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

Em outro ambito, mais imperceptivel, dos habitos e costu-

mes, a alimentas:ao tambem participa dessa revolus:ao silenciosa

que constitui 0 que foi chamado "processo civilizat6rio", no

qual as maneiras a mesa ocupam tao destacado pape1.2 0 uso do

garfo, a ados:ao do guardanapo, 0 prato como a base sob a qual

se come substituindo urn pao redondo e chato sao todos aspec-

tos desses novos costumes, assim como 0 uso de cadeiras e da

mesa, que no Oriente e no mundo arabe nao conseguiu substi-

tuir 0 uso de comer ao nivel do solo.

Os produtos e as maneiras ocidentais a mesa se espalham por

meio das comunidades europeias que se estabelecem em diver-

sos pontos da Africa, da Asia e da America. Essa difusao e de

mao dupla, tornando-se uma fusao com os produtos e costumes

locais. A mestipgem e mais completa nas Americas, onde os

tres componentes etnicos - europeu, indigena e africano - fo-

ram amalgamados. 0 bers:o e cadinho primordial dessa fusao

foi 0 Caribe e 0 vetor desse processo e a atividade de flibusteiros

e bucaneiros que, antes de se tornarem os piratas oficiais a servi-

S:O da Inglaterra e Frans:a para desafiarem 0 monop6lio iberico

das Indias ocidentais, eram marginais europeus vivendo a moda

indigena, em cuja escola culinaria aprenderam as tecnicas e ado-

taram os produtos. 0 pr6prio termo boucan significa 0 metodo

COMIDA E SOCIEDADE

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Page 91: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

de defuma~ao da carne com lenha verde (semelhante ao mo-

quem dos indios litoraneos do Brasil), assim como barbecue

(churrasco ) vem das ilhas de Barbacoa.

o papel destacado dos bucaneiros na circula~ao de produtos,

especialmente pelo espas:o caraiba (mas chegando ate 0 Indico e

o Pacifico), levou a difusao de muitos produtos americanos

pelo mundo e, particularmente, na Africa, das pimentas Capsi-

cum, que passaram a ser conhecidas como Guinea pepper. 0 amen-

doim, com origem nas Antilhas, chamado cacau da terra, tlal-ca-

cakuatl, pelos astecas, e de "pistache das ilhas" pelos europeus,

tambem tornou-se urn genero dpico na Africa ocidental, de

onde chegou ao Brasil colonial com os escravos e incorporou-se

a cozinha baiana, por exemplo, no vatapa.

T ais agentes da mestis:agem, piratas ou navegadores, missio-

narios ou escravos, cumpriram 0 papel de difusores de produtos

e de habitos globais, realizando a primeira fusao planetaria de

todos os continentes. Os barcos de Vasco da Gama e de Fernan-

do de Magalhaes abriram uma era de unificas:ao global, de "de-

sencravamento planetario". Pela primeira vez todos os povos da

Terra entravam em contato abrindo urn intercambio generaliza-

do dos generos de todos os continentes.

AIem dos metais preciosos, especialmente 0 aura e a prata

das Americas, os alimentos foram as principais mercadorias do

mercado intercontinental. Alimentos indispensaveis e triviais

HENRIQUE CARNEIRO

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Page 92: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

como 0 tngo, no comercio mediterranico e norte-europeu, e

exoticos luxos, como as especiarias do Oriente e, mais tarde, 0

as:ucar da America, inicialmente foram consumos suntuarios e

superfluos das elites aristocraticas e, depois, tornaram-se neces-

sidades alimentares de massas e urn dos motores mais importan-

tes do comercio mundiaL

COMIDA E SOCIEDADE

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Page 93: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação
Page 94: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

ALIMENT AyAO MODERN A:

Ay6cAR, ALCOOL, CHA, CAFE E CHOCOLATE

Os principais luxos alimentares da epoca moderna possuiam

anteriormente urn estatuto de medicamentos. Era 0 caso do as:u-

car, assim como das bebidas associadas ao seu consumo, como 0

cafe, 0 chi e 0 chocolate, nos periodos iniciais da sua difusao

pela Europa.

o as:ucar, trazido pelos irabes da India, era usado des de a

Idade Media na Europa, mas em quantidades minusculas nos

pratos ou como remedio para divers as afecs:oes. Os xaropes

eram 0 velculo as:ucarado de divers os medicamentos, a ponto de

o termo "triaca", que se referia a uma panadia muito popular na

Europa medieval e renascentista, passar a referir-se, na lingua

inglesa, ao melas:o de cana, que passou a substituir 0 as:ucar

como 0 excipiente preferido para os elixires curativos.

o genero alimenticio cuja amplias:ao do consumo mais influiu

na alteras:ao dos hibitos alimentares foi justamente 0 as:ucar,

nao s6 ados:ando as bebidas coloniais que nunca haviam sido

Page 95: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

nos seus paises de origem (os chineses consideravam os euro-

peus barbaros por adoprem 0 chi e os povos irabes condimen-

tavam 0 cafe com cravos, canela ou cardamomo, mas nunca 0

ados:avam), como estendendo sua utilizas:ao para quase todos os

tipos de alimentos, inclusive nas carnes e em outros pratos sal-

gados. Os glaces, coberturas solidificadas a base de as:ucar dis-

solvido em manteiga, claras batidas ou caldas de frutas, cobriam

nao apenas as frutas cristalizadas e os bolos como tambem as

carnes, especialmente de cas:a, servidas inteiras num revestimen-

to edulcorado. As esculturas de as:ucar copiavam monumentos

de arquiteturas complexas e filigranas delicadas numa fusao en-

tre 0 alimento e 0 ornamento.

o advento do as:ucar refinado na dieta ocidental substituin-

do 0 uso milenar do mel como adopnte foi talvez 0 mais imp or-

tante fenomeno alimentar da hist6ria moderna, nao apenas pelo

seu significado nas alteras:oes dieteticas, mas por suas profundas

repercussoes economicas e sociais. A escravidao africana, 0 sis-

tema das grandes plantas:oes americanas e 0 mercado consumi-

dor crescente para 0 as:ucar moldaram as relas:oes internacionais

forjando 0 antigo sistema colonial como urn fluxo comercial

tendo como base a sacarose, urn sistema que ji foi chamado "sa-

carocracia". 0 seu comercio foi 0 principal da epoca colonial e,

ap6s 1660, a importas:ao de as:ucar da Inglaterra sempre exce-

deu todas as importas:oes dos outros produtos coloniais jun-

HENRIQUE CARNEIRO

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Page 96: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

tos. I Milh6es de africanos foram escravizados para trabalhar

nas planta<;:6es de cana e nos engenhos de a<;:ucardo Novo Mun-

do. Entre os escravos das plantations na America, as unicas ativi-

dades exercidas fora do eito eram as de produ<;:ao, trans porte e

preparo da alimenta<;:ao, 0 que of ere cia uma via de re1ativa auto-

nomia escrava nessas tarefas e, por conseguinte, e1es s6 aprende-

ram a saborear a liberdade na cozinha, onde escapavam do tra-

balho mais pesado da planta<;:ao e podiam ate mesmo influir na

culinaria.2

A chegada do a<;:ucar pode ser explicada, entre outros moti-

vos, pe10 barateamento do seu custo devido a amplia<;:ao da pro-

du<;:aonas plantations do Brasil e do Caribe. Mas, se como" e mais

ficil adquirir novos habitos a perder os antigos", a simples am-

plia<;:aodo fornecimento de a<;:ucarnao e suficiente para se inter-

pretar 0 declinio no uso do me1. Urn dos fatores que teriam co-

laborado para esse declinio, no caso espedfico da Inglaterra, foi

o fechamento dos mosteiros na Inglaterra ap6s a reforma angli-

cana de Henrique VIII, 0 que teria levado a diminui<;:ao na de-

manda par cera para as ve1as usadas pe10 clero regular e, portan-

to, a uma queda na produ<;:ao me1ifera. De todos as "alimen-

tos-drogas", a a<;:ucarfoi a unico que escapou de qualquer pros-

COMIDA E SOCIEDADE

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Page 97: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

cris:ao religiosa e 0 seu uso foi admitido por Tomas de Aquino

ate mesmo durante os periodos de jejum.

o fator decisivo, entretanto, para que as pautas da alimentas:ao

mundial sofressem as maiores alteras:oes que trouxeram as migra-

s:oes intercontinentais dos alimentos, a expansao da produs:ao de

as:ucar, a ados:ao internacional de novos generos como a batata e 0

tomate, a disseminas:ao das especiarias e das novas bebidas exci-

tantes foi a descoberta da America e do caminho maritimo para 0

Oriente. A cana, antes plantada apenas na ilha da Madeira e em

algumas ilhas do Mediterraneo, passou a ser cultivada em exten-

sas plantas:oes na America, especialmente no Brasil.

o as:ucar, inicialmente uma raridade, tornou-se urn luxo no

seculo XVIII e, em meados do seculo XIX, transformou-se

numa necessidade basica de quase toda a populas:ao. As bebidas

coloniais (chocolate, cafe e cha) cujo uso associou-se ao do as:u-

car, acrescentaram-se a ele para, a partir do seculo XVII, torna-

rem-se os generos mais importantes do comercio mundial. Ape-

nas 0 cha, por exemplo, constituiu 81% do valor de todos os

carregamentos da East India Company, da Inglaterra.3

Subsrancias como 0 cha ou 0 cafe eram usadas como drogas e

assim denominadas. 0 estudioso do as:ucar Sidney Mintz cha-

mou-as, mais recentemente, "alimentos-drogas". Em alemao,

HENRIQUE CARNEIRO

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Page 98: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

tais alimentos-drogas sao chamados Genussmittel, que pode ser

traduzido como Hestimulantes". 0 seu uso ante cede a acep~ao

pejorativa que a palavra Hdroga" adquiriu apos 0 seculo XX.

o cha, particularmente, levou a Inglaterra a urn tal grau de vi-

cio que, para obte-lo, os ingleses transferiram para a China, em

seu pagamento, a maior parte da prata extraida das minas da

America. Para reverter seu deficit comercial com a China, a

Inglaterra, no seculo XIX, desencadeou divers as medidas co-

merciais e militares, que incluiram as duas guerras do opio

(1839-42 e 1856-58), a imposi~ao do padrao aura com conse-

quente desvaloriza~ao da prata (afetando os chineses, que a pre-

feriam) e a amplia~ao do cultivo de cha e outros produtos de ex-

porta~ao na India.

Importantes aspectos morais foram implicados na ado~ao di-

ferenciada do chocolate, considerado como aristocratico e afro-

disiaco, e do cha, do cafe e do tabaco, reputados como burgue-

ses e sobrios.4 0 chocolate, de origem americana (entre os 01-

mecas, na costa do golfo do Mexico, ao redor de 1500 a.c.), era

consumido no Mexico pre-colombiano como uma bebida mis-

turada com milho e pimentao em po. 0 cacau era uma das mais

importantes riquezas da sociedade asteca onde, alem de consu-

mido pela elite, cumpria 0 papel de moeda.

COMIDA E SOCIEDADE

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Page 99: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

Em 1527, Carlos V recebeu sementes de cacau de Cortez,

mas so no final do seculo XVI tornou-se urn habito arraigado

como bebida ados:ada. 0 imperio espanhol deteve 0 monopo-

lio do comercio do cacau (realizado especialmente pelos jesui-

tas na Amazonia) ate 1728, quando Felipe V 0 transferiu para

uma sociedade comercial. 0 principio catolico Liquidum non

jrangit jejunum (Hquidos nao quebram 0 jejum) permitiu que 0

chocolate fosse consumido pelo clero durante os periodos de

restris:ao alimentar. A corte francesa, desde 0 casamento de

Maria Teresa, da Espanha, com Luis XIV, em 1660, passou a

aprecia-lo. No seculo XVIII, quando Lineu denominou-o

Theobroma cacao, que significa "alimento dos deuses", 0 chocola-

te bebido, sobretudo no desjejum, tornou-se urn habito tipica-

mente aristocratico e seu uso era visto como estimulante do

desejo sexual. 0 chocolate comestivel solido so foi inventado

como produto industrial a partir de meados do seculo XIX.

Durante 0 seculo XVIII, 0 cacau era fornecido a Europa prin-

cipalmente pela Venezuela, mas na America portuguesa 0 seu

comercio monopolizado pelos jesuitas embarcava 1.200 tone-

ladas por ana para Portugal, a mesma quantidade que Monte-

zuma guardava em seu palacio quando foi atacado pelos espa-

nhois.

Reputas:ao oposta a do chocolate, aristocratica e clerical, e a

que adquiriu 0 cafe, como urn estimulante do espirito de empre-

HENRIQUE CARNEIRO

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Page 100: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

endimento burgues.5 Seu papel cultural como promotor da vigi-

lia e da aten<;:ao e sua reputa<;:ao de desembriagador fez do cafe

urn simbolo da cultura racionalista da epoca, da sua aspira<;:aoalucidez, a perspicacia e a liberdade de pensamento a ponto de 0

grande historiador frances do seculo XIX Jules Michelet atri-

buir em parte aos seus efeitos ate mesmo a eclosao da Revolu<;:ao

Francesa! 0 cafe, originario da Eti6pia, chegou a Arabia no in i-

cio do seculo XVI Cja ha men<;:ao de uma proibi<;:ao do seu con-

sumo em Meca, em 151I). Atraves de Istambul chegou a Vene-

za em 1615, e a Paris em 1644. Nesta cidade, abre-se 0 primeiro

"cafe" como espa<;:opublico em 1670 e, ao final do seculo se-

guinte, ja setao mais de 600.

Desde 0 seculo XVIII, 0 cafe era considerado remedio. Para 0

medico do rei de Portugal, D. Joao V, entre outras virtu des,

"conforta a mem6ria, alegra °animo, e remedio nas vertigens, nos

estupores, nas apoplexias, nos sonos profundos, nas hidropsias,

nos catarros, nas flux6es de estilicidio, na gota, nos males dos

olhos, dos ouvidos, nas palpita<;:6es do cora<;:ao,nas hipocondrias

e flatulencias, nas c6licas de causa fria, nas quedas, nas supress6es

de urinas". 6 A partir do seculo XVIII, 0 cafe deixara de ser apenas

urn remedio para tornar-se a bebida oposta ao ilcool, s6bria, res-

6 Francisco da Fonseca Henriques. Ancora medicinal para conservar a vida com saude. Lis-boa, 1731, p. 457.

Page 101: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

ponsave1 auxiliar do trabalho, ou seja, tipica do espirito burgues

em ascensao. T ais virtudes, exaltadas por alguns, levava outros,

como Miche1et, por exemplo, a considera-Io anafrodisiaco, que

diminuiria ou ate mesmo aniquilaria todo desejo sensual.

o cha teve papel seme1hante ao do cafe, como subsrancia

s6bria e anti-sensual, mas com uma via de penetras:ao ligada

aos paises protestantes, especialmente a 1nglaterra. Vindo da

China, 0 cha atingiu a Europa no inicio do seculo XVII, com 0

primeiro carregamento desembarcando em Amsterda, em

1609.0 consumo torna-se importante entre 1720-30 e, ao fi-

nal do seculo XVIII, a 1nglaterra supera a Holanda como prin-

cipal importador. A rainha Catarina de Braganc;a, esposa por-

tuguesa do rei Charles II, da 1nglaterra, entre 1649 e 1685, te-

ria sido a responsave! pe1a difusao do cha nas ilhas briranicas.

Seu uso atinge todas as classes, mas torna-se especialmente di-

fundido entre as classes trabalhadoras, nas quais os efeitos do

cha sao apregoados como desintoxicantes, propriedades que

contrastavam com a cerveja e 0 gim. A utilidade desse efeito

excitante para 0 desempenho lab oral contribuiu para que 0 cha

se incorporasse a ras:ao dos operarios nas fabricas. N a Asia, a

partir da China, 0 cha atingiu 0 Japao no ana 729, onde reves-

tiu-se de urn complexo ritual, a cerimonia do cha.7 T ambem na

HENRIQUE CARNEIRO

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Page 102: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

Asia central e na T urquia, essa pIanta adquiriu contornos de

bebida nacional. No Ocidente, 0 chi contribuiu para a cons-

trus:ao social da identidade de genero, identificado as muIhe-

res, em oposis:ao ao cafe, de reputas:ao masculina. 0 espas:o

domestico absorveu 0 ritual do consumo do chi, gerido peIas

mulheres, em contraste com 0 espas:o publico e masculino das

tavernas e cafes. T odo urn c6digo de etiqueta, uma gestualida-

de e uma marcas:ao temporal se originaram do uso do chi, aIem

de urn requintado equipamento, constituido de buIes, xicaras,

pires e jarras de faians:a e, particularmente de porcelana, dado

que 0 estanho era inadequado por dar urn gosto desagradaveI

ao chi, e a prata, excessivamente cara.8

Algumas outras plantas consumidas como bebidas excitantes

na America, como 0 guarani e 0 mate, permaneceram circuns-

critas a ire as de influencia regional sem se tornarem produtos

do trafico interoceanico, embora desempenhassem papeI eco-

nomico e cultural significativo no interior dos seus nichos de

consumo: 0 guarani na Amazonia e a erva-mate na bacia do Pra-

ta e regiao SuI do Brasil. Esta Ultima, ji descrita como "uma flo-

resta inteira concentrada em algumas gotas", foi inicialmente

proibida, em 1596, peIo governador do Paraguai, e mais tarde

8 Tania Andrade Lima, "Chi e simpatia: uma estrategia de genero no Rio de Janeirooitocentista", Anais do Museu Paulista: Histaria e Cultura Material, Nova Serie, Vol. 5,jan/dez de 1997, pp. 93-130.

COMIDA E SOCIEDADE

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Page 103: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

tornou-se produto de monopolio jesuitico, desde 1645 ate

1767, especialmente importante na regiao das Missoes, de onde

difundiu-se na forma do chimarrao (quente) ou terere (fria). 9

o alcool fermentado, na forma das cervejas, das cidras e dos

vinhos, sempre fora urn dos importantes complementos ( e, por

vezes, sucedaneo) alimentar. A cerveja e contemporanea da do-

mestica~ao dos cereais, na epoca neolitica. A antiguidade maior

do vinho ou da cerveja e disputada. Ja havia uso de uvas pdo

menos desde 0 V milenio a.c., e no IV milenio a.c. ja ha indi-

cios arqueologicos de vinho, cuja produ~ao e comercio em anfo-

ras foi urn dos mais importantes da epoca romana. Na epoca

modern a, 0 vinho conservava-se mal, pois 0 uso da rolha so se

tornou corrente a partir do seculo XVII. Em Paris, no ana de

1780 consumia-se 121 litros de vinho por ana por habitante;

8,9 de cervej a, e apenas 2,7 de cidra.1O 0 consumo medieval de

bebidas alcoolicas fermentadas era ainda mais alto, pdo menos

de urn litro diario de vinho ou tres de cerveja para praticamente

toda a popula~ao, completando dietas excessivamente monoto-

nas e pouco caloric as e ate mesmo sendo acrescentado a agua de

beber (no caso do vinho) para "corrigi-la" pois quase sempre

nao era limpa. A grande altera~ao nos padroes de consumo al-

9 Temistocles Linhares, Historia economica do mate, Rio de Janeiro, Jose Olympia,1969.

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coolico so ocorrera, entretanto, a partir da difusao do alcool

destilado. Produzida em alambiques medievais desde 0 seculo

XII, a aguardente tinha indicat;ao como remedio. Arnaud de

Villeneuve, medico e alquimista medieval, escrevia, em 13 13,

que a aqua vitae Hdissipa humores superfluos, reanima 0 corat;ao,

cura colic a, hidropsia, paralisia, paludismo, acalma dores de

dentes e preserva da peste". I I

o espirito do vinho, ou conhaque, foi desenvolvido a partir

do seculo XVIII e, apos a invent;ao, em 1778, do alambique que

destila numa so vez, surgiu 0 habito de se dar aguardente aos

soldados antes das batalhas e assim 0 soldado tornou-se urn be-

bedor habitual e contumaz, e a fabricat;ao da aguardente passou

a ter a importancia de uma industria de guerra. Desde 1655,

com a tomada da Jamaica pelos ingleses, 0 rum passou a fazer

parte da rat;ao dos marinheiros ingleses.

A destilat;ao dos cereais logo popularizou, especialmente na

Europa setentrional, diversos licores como a vodca, 0 uisque, a

gene bra e 0 gim, causando urn fenomeno de intensa embriaguez

urbana. Outro tipo de aguardente, produto espedfico da cultu-

ra colonial vinculado ao at;ucar que adquiriu grande importin-

cia economica, foram os destilados de alcool de cana, como a

aguardente brasileira e 0 rum do Caribe, que serviram de moeda

COMJDA E SOCIEDADE

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Page 105: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

de escambo para a compra de escravos na Africa. Esse comercio

dire to entre 0 Brasil e 0 continente africano era vetado por Por-

tugal, que tentou proibir 0 fabrico de cacha'ra no Brasil em

1649 e, com 0 fracasso dessa medida, tentou impedir ao menos

a sua exporta'rao para Angola, no que tambem nao teve exito. A

imporrancia da aguardente brasileira foi nao apenas economica,

mas como simbolo de identidade nacional. 12

A imporrancia dos "alimentos-drogas", que seduziram cama-

das cada vez maiores de consumidores na epoca moderna, tern

significado cultural e economico. Os grandes imperios busca-

ram controlar os fluxos comerciais de urn trafico de produtos

originarios de regioes tropicais com demanda crescente na Eu-

ropa. 0 a'rucar, 0 cha, 0 cafe, 0 alcool e 0 tabaco integraram-se

num complexo sistema comercial intercontinental que gerou

uma parte consideravel do capitalliquido da era pre-industrial

e, no seculo XIX, garantiu a Inglaterra, potencia decadente mas

ainda dominante no comercio mundial, superavits comerciais

com a Asia que financiaram seus deficits com os Estados Un i-

dos e a Europa. 0 uso intensificado do alcool e do a'rucar cau-

sou novos problemas de saude publica, agravando a ocorrencia

de diabetes e outras enfermidades. A expansao do chocolate, do

cafe e do cha influenciaram decisivamente 0 cardapio da primei-

12 Vide Camara Cascudo, PrelUdio da cachafa, Belo Horizonte, 1tatiaia, 1986; e SoutoMaior, Cachafa, Rio de Janeiro, 1AA, 1970.

HENRIQUE CARNEIRO

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Page 106: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

ra refei<;:aodo dia na maior parte do Ocidente e tiveram conse-

quencias sociais diversas, tais como 0 surgimento de urn novo

espa<;:opublico, os cafes, a amplia<;:ao do uso do a<;:ucare a difu-

saG associada de urn outro novo habito: 0 de se fumar, cheirar e

mas car tabaco, que se nao pode ser qualificado de "alimento",

tornou-se urn complemento alimentar tradicional, nao s6 no

Ocidente, como em quase to do 0 mundo.

De todos estes traficos de alimentos de luxo ou "alimen-

tos-drogas", 0 a<;:ucarfoi certamente 0 de significado mais pro-

fundo, tanto no senti do de sua importancia economica, como

de suas consequencias sociais (a escravidao africana, por exem-

plo) e culturais (a edulcora<;:ao geral do gosto contempodneo),

representando a conexao mais inextridvel das transforma<;:6es

na alimenta<;:ao com os fenomenos formadores da economia ca-

pitalista contempodnea. Nos dias atuais, a media do consumo

de a<;:ucarpor habitante alcan<;:amais de 130 gram as diarias nos

paises europeus, fornecendo de 15% a 18% do consumo ener-

getico diario. A uniformiza<;:ao e simplifica<;:ao dos sabores tam-

bem fizeram parte das influencias gastronomicas do a<;:ucar,0

que levou urn autor a afirmar que 0 papel menos conspicuo do

a<;:ucarnas cozinhas francesa e chinesa pode ter algo a ver com a

sua excelencia.13

COMIDA E SOCIEDADE

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Page 107: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação
Page 108: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

ALIMENTAyAO CONTEMPORANEA:

INDUSTRIALIZAyAO E FAST-FOOD

Durante a epoca contempodnea e, particularmente nas ulti-

mas decadas, conheceram-se transformas:6es globais nos pa-

dr6es aliment ares de importantes consequencias sociais.

A guerra tern sido urn dos fatores mais importantes de mu-

danps dieteticas, nao so por provocar carencias e fornes, como

por promover mudanps de habitos e ados:ao de novos tipos de

alimentos, muitos ligados diretamente a ras:ao dos soldados. Em

relas:ao a primeira influencia, urn exemplo classico e a ados:ao do

as:ucar de beterraba como consequencia do isolamento conti-

nental que foi imposto a Frans:a nas guerras napoleonicas e, no

que se refere a influencia mais ampla dos novos habitos e produ-

tos das ras:6es militares, podem ser citadas a propagas:ao do chi-

clete (goma de origem mexicana) apos a Primeira Guerra Mun-

dial e da Coca-Cola apos a Segunda Guerra Mundial.

A industria, alem da guerra e muitas vezes associada a ela, foi

o fator decisivo que influenciou mudans:as na alimentas:ao con-

Page 109: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

tempo ran ea. As tecnicas de conservas:ao dos alimentos, as con-

quistas da microbiologia, 0 desenvolvimento dos transp0rtes

sao todos aspectos de urn processo mais geral: 0 da industriali-

zas:ao da produs:ao e da distribuis:ao da alimentas:ao. No final

do seculo XIX, a industria agroalimentar ja era a primeira dos

Estados Unidos.

A invens:ao das conservas em vidros ou latas fervidas e herme-

ticamente fechadas, realizada pe!o Frances Appert em 1804, tor-

nou possive! 0 armazenamento e transporte dos alimentos, an-

tes mesmo da descoberta microbiol6gica da contaminas:ao bac-

teriana por Pasteur (cujo metodo de conservas:ao tomou 0 nome

de "pasteurizas:ao"). Ate essa epoca, as conservas eram feitas

com acrescimo de me! ou as:ucar, sal ou vinagre (caso do chucru-

te alemao, repolho no vinagre), mas a lata ou vidro esterilizado

tornou-se 0 principal meio de se transportar e estocar alimen-

tos, recurso logistico que passou a ser essencial para 0 abasteci-

mento de tropas em conflitos militares. Em 185 I, foi patentea-

do 0 primeiro refrigerador e, em 1876, 0 primeiro navio frigori-

fico trouxe carregamentos de carne da Argentina para a Europa.

T ais inovas:oes atingiram os lares no seculo XX, onde as ge!ade-

iras, fogoes a gas, fornos de microondas e outros utensilios tor-

naram-se acessiveis amaioria da populas:ao dos paises industria-

lizados, assim como surgiu urn imenso ramo de alimentas:ao

fora de casa, 0 dos restaurantes. Por urn lado, a industria e as no-

HENRIQUE CARNEIRO

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Page 110: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

vas tecnologias da alimentas:ao foram urn processo hist6rico de

racionalizas:ao, industrializas:ao e funcionalizas:ao da alimenta-

s:ao mas, por outro, as conseqiiencias negativas da industrializa-

s:ao tambem comes:aram a ser denunciadas: contaminas:ao am-

biental com embalagens e garrafas plasticas, uso de aditivos qui-

micos, padronizas:ao dos gostos alimentares, controle oligQP6-

lico dos mercados, relas:6es comerciais desvantajosas para os pa-

ises perifericos.

o aumento das populas:6es subnutridas, especialmente nos

paises perifericos, acompanhou-se da amplias:ao da alimentas:ao

excessiva nas sociedades ocidentais. A obesidade tornou-se urn

problema de saude publica, a ponto de mais de urn ters:o da po-

pulas:ao norte-americana ser considerada acima do peso sauda-

vel. A anorexia e a bulimia tornaram-se enfermidades paradig-

maticas da infelicidade com relas:ao a alimentas:ao e ambas sao

produtos de sociedades da abundancia. A pratica de dietas e re-

gimes estendeu-se como nunca antes perante populas:6es preo-

cupadas obsessivamente com a imagem do corpo e com precei-

tos de comp0rtamento saudavel. 0 vegetarianismo, praticado

por urn numero crescente de pessoas, reflete preocupas:6es eti-

cas com relas:ao aos animais e com as vicissitudes de uma socie-

dade industrial ecologicamente destruidora, onde se destinam

dois ters:os da produs:ao de graos da agricultura mais produtiva

do planeta para a alimentas:ao do gado, que por sua vez tor-

COMIDA E SOCIEDADE

I03

Page 111: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

nou-se vetor de transmissao de novas doenps como a "vaca lou-

ca" na Europa, causadas pelo uso de metodos de crias:ao intensi-

vos de animais em confinamento e de dietas com hormonios,

antibi6ticos e, particularmente no caso da "vaca louca", de ra-

s:6es para gada feitas de carcas:as animais, ou seja, a "canibaliza-

s:ao" de herbivoros!

o modelo alimentar dos Estados Unidos, fundamentado na

substituis:ao de carboidratos complexos como os amidos, por

carboidratos simples como as:ucares e gorduras, e na expansao

da dieta carnivora, e simbolizado pela expansao das redes de

jast1ood, entre as quais 0 McDonald's assume, juntamente com a

Coca-Cola, a imagem paradigmatica dos logotipos mais emble-

maticos da cultura capitalista contempodnea. Dois dos mais

caracteristicos fenomenos aliment ares do seculo xx torna-

ram-se duas poderosas empresas multinacionais com as duas

marcas mais conhecidas do planeta, emblemas ideo16gicos e na-

cionais da cultura norte-americana.

o consumo de refrigerantes tornou-se, a partir de 1986, nos

Estados Unidos, maior do que 0 consumo de agua encanada ou

engarrafada. I Estes fenomenos exemplificam 0 significado das

alteras:6es mais recentes nos padr6es alimentares dos paises de-

senvolvidos, causados pela penetras:ao da grande industria no

HENRIQUE CARNEIRO

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Page 112: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

espas:o das cozinhas, melhor dizendo, substituindo esse espas:o

pelos drive-thrus (onde a McDonald's vende 50% de seu fatura-

menta ), pela alimentas:ao rapida, gordurosa e cheia de as:ucar.

T ais vicissitudes da alimentas:ao contempodnea nas socieda-

des abastadas levaram ao surgimento de uma obsessao com as

preceitos dieteticos, regimes de vida e manias na moda a respeito

de praticas supostamente saudaveis. No inicio do seculo XX, esse

fenomeno desabrochou nos Estados Unidos com a divulgas:ao

crescente dos £locos de cereais (cornflakes) e da pasta de amendoim,

entre as quais a marc a Kellog's vai adquirir notoriedade devido ao

seu "sanatoria" ligado aos Adventistas do Setimo Dia, com ali-

mentas:ao vegetariana balanceada e controlada e praticas terapeu-

ticas bizarras como eletroterapias, dietas exclusivas de uvas (5 a 7

quilos par dial) e enemas para lavagens intestinais que a Dr. Kel-

log organizou como parte de sua conceps:ao dietetica.2 Suas ideias

previam que a controle da dieta deveria acompanhar-se do con-

trole da atividade sexual-, especialmente da masturbas:ao, fazendo

do movimento da reforma alimentar uma expressao do mais vasto

movimento de temperans:a e castidade, inimigo de todos as Vl-

cios, que ganhou in£luencia no final do seculo XIX e inicio do se-

culo XX, e conseguiu proibir durante 13 anos (1919-1933) a

comercio de alcool nos Estados Unidos.

2 T. Coraghessan Boyle. Dr. Kellogg e a guerra dos sucrilhos. 5110 Paulo, Companhia dasLetras, 1995.

COMIDA E SOCIEDADE

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Page 113: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

As formas sociais de comer em casa, em refeitorios, em restau-

rantes, na rua envolvem aspectos relevantes para a analise histo-

rica ao serem abordadas em suas transformas:oes ao longo do

tempo. A historia dos restaurantes, por exemplo, foi estudada

sob divers os angulos. 0fast-food como paradigma da forma con-

temporinea de se alimentar foi objeto de grande reflexao. Os ir-

maos McDonald, ao abrirem, em 1937, urn drive-in em Arcadia,

California, e dois anos mais tarde, outro em San Bernardino,

California, onde os clientes eram servidos nos carros, ajudaram

a propagar urn estilo de alimentas:ao industrializada que carac-

teriza a nossa epoca, 0 sistema chamado "alimentas:ao rapida"

(fast fooel). 1nicialmente, nao vendiam hamburgueres, mas salsi-

chas (hot-dog) e sanduiches de carne, alem de milk-shake. 0 ham-

burguer, originario do bife drtaro de carne crua, que no porto

de Hamburgo, na Alemanha, passou a ser cozido, havia chegado

aos Estados Unidos em 1904, na feira mundial de St. Louis, e

na epoca da abertura do primeiro McDonald's ja existiam varias

outras cadeias com centenas de lanchonetes de hamburguer. A

inovas:ao principal da nova loja de hamburguers foi 0 conceito

de "rapidez", uma refeis:ao completa em "quinze segundos".

Inicialmente 0 cliente pagava pelo pedido e aguardava-o para le-

va-lo no carro ou comer no local. 0fast-food foi, assim, a aplica-

s:ao do taylorismo, ou seja, da divisao e racionalizas:ao do traba-

lho, a preparas:ao de refeis:oes servidas em restaurante, provo-

HENRIQUE CARNEIRO

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Page 114: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

cando urn fenomeno de produs:ao e consumo em serie, homogei-

nizante e padronizante, ja chamado "gastro-anomia".3

A marca e 0 conceito McDonald's tornaram-se, nos anos 80,

urn simbolo do capitaIismo reemergente, abrindo suas filiais de

Moscou a Pequim e chegando atualmente a ter mais de 25 mil

lanchonetes em II 7 paises. Em 1998, chegou a dominar 43%

do mercado norte-americano de fast-food. Mais do que simples

aIimentas:ao, vende-se diversao e entretenimento.

T udo 0 que representaram as novas formas de capitaIismo no

segundo p6s-guerra foi prototipico do McDonald's: cultura do

autom6vel, ascensao das classes medias, consumo em massa de

produtos descardveis como simbolo do modo de vida, expan-

sao do sistem<t de franquias, predominio do setor de servis:os,

mas submetido a uma administras:ao de caracteristicas fabris, ou

seja, a industrializas:ao do entretenimento e do lazer, padroniza-

s:ao da aIimentas:ao, importancia crescente da propaganda (a era

do marketing), 0 nome da marca tornando-se mais significativo

do que 0 pr6prio produto.

Nesse periodo, a imagem passou a ser 0 sustentaculo princi-

pal de urn capitaIismo p6s-moderno com base em uma "econo-

mia simb6Iica", em que a fetichizas:ao geral da cultura anuncia-

da pelos fil6sofos da Escola de Franckfurt tornou-se geral e

3 Claude Fischler, "A McDonaldiza~ao dos costumes", ill Flandrin & Montanari, op.eit., p. 851.

COMIDA E SOCIEDADE

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Page 115: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

completa. 0 peso do patrimonio fisico das grandes empresas da

lugar ao valor da marca que determina 0 valor de mercado da

companhia. Na relas:ao "valor da marca" (me dido por consulto-

ras internacionais, como brand valuation) e "valor de mercado da

companhia", 0 McDonald's, entre as maiores marcas, e a que

possui maior peso do valor da marca, cerca de 64% do valor de

mercado da empresa. Esse fenorneno, analisado pela sociologia,

express a "urn deslocamento no qual a forma-valor produzida

materialmente cede cada vez mais espas:o a uma 'crias:ao virtual

de valor"',4

Na Frans:a, 0 combate a esse tipo de sistema industrial e co-

mercial toma dimens6es sociais, de defesa de uma pequena

burguesia produtora rural e tambem urbana, proprietaria dos

cafes, dos bistros e dos armazens, contra a conceps:ao de abas-

tecimento das "grandes superficies" (gran des surfaces), como os

franceses denominam 0 sistema dos hipermercados. 0 proces-

so contra 0 ativista frances Jose Bove, por ter liderado urn pro-

testa em nome dos produtores rurais contra 0 McDonald's, e

urn exemplo expressivo da resistencia contra a "mcdonaldiza-

s:ao do rnundo",

A uniformizas:ao global da alirnentas:ao promovida pela indus-

tria alimentar realizou tambem urn "sincretisrno culinario", pois

4 Isleide Arruda Fontenelle, 0 nome da marea. MeDonald's,jetiehismo e eultura deseartavel,

Rio de Janeiro, Boitempo, 2002, p. 173.

HENRIQUE CARNEIRO

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Page 116: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

ao mesmo tempo em que sup rime as identidades locais e homogei-

niza 0 gosto mundial, tambem divulga culinarias regionais espa-

lhando-as pelo mundo, mesmo que sob a forma inautentica do

jastjood etnico. Apesar de 0 hamburguer ser 0 produto mais iden-

tificado com 0jastjood, 0 consumo mundial de pizza, prato origi-

nalmente napolitano, e tambem urn resultado da "americaniza-

c;ao" da alimentac;ao, sem receber, contudo, tantas criticas como 0

hamburguer, adverte urn autor preocupado em identificar as ca-

racteristicas hibridas da alimentac;ao contemporanea.5

Alguns antropologos afirmaram polemicamente que nao

existiria uma "cozinha" norte-americana, nao so porque as

identidades culinarias sao sempre regionais, 0 nacional sendo

uma abstrac;ao poHtico-administrativa, como porque 0 American

way if life vem tomando a alimentac;ao cada vez mais destituida

de identidades espedficas no seu preparo caracteristico, 0 que

constituiria exatamente a existencia de uma "cozinha". Isso

ocorre porque 0 supermercado de pratos prontos e a lanchonete

de jastjood substituem as refeic;6es caseiras.6 0 pastiche culina-

rio imp era entao nessa paisagem pos-modema de restaurantes

etnicos padronizados, como os tacos e burritos do "tex-mex"

ou os jastjood chineses, tailandeses ou japoneses. A cultura do

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Page 117: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

hamburguer, da pizza e do frango frito torna-se predominante e

a maior parte dos norte-americanos passa a fazer refeis:oes fora

de casa e sem as rituais de sociabilidade familiares e comunira-

rios, pais "beliscar" substitui as horarios regulares.

Urn dos Ultimos grandes debates ligado a industria, tecnolo-

gia e alimentas:ao refere-se ao desenvolvimento dos alimentos

transgenicos, que algumas grandes multinacionais buscam di-

fundir, sob a seu controle, para todo a mundo sob a risco de

comprometimento da biodiversidade dos patrimonios genet i-

cas. 0 mercado agricola, cada vez mais controlado pelos princi-

pais produtores e formadores de pres:os, e as disputas comer-

ciais que fazem do mercado de alimentos, assim como de ou-

tros, urn foco de obtens:ao de superlucros par meio de superpro-

dus:oes, e a pano de fundo economico da situas:ao global atual

no que se refere a alimentas:ao da humanidade. E a paradoxa da

condis:ao contemporanea: nunca se produziu tantos alimentos e

nunca houve tantos famintos no mundo como hoje em dia.

A existencia da fame e da superabundancia, da carencia e do

desperdicio, das dietas de subsistencia e das mais refinadas cria-

s:oes da culinaria, tal e a ponto de observas:ao no presente, a par-

tir de onde tentamos situar a passado da alimentas:ao e de como

vem sendo feita e escrita a sua hist6ria.

HENRIQUE CARNEIRO

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Page 118: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

ALIMENTA<;:AO E RELIGIAO:

SACRIFIcIOS, NORMAS E TABUS

A hist6ria comparada das religioes tambem ocupou-se da

descric;:ao e da interpretac;:ao de representac;:oes e regulamenta-

c;:oessagradas sobre 0 consumo dos alimentos. Em quase todas

as civilizac;:oes 0 alimento e urn dos primeiros de uses ou tern urn

deus tutelar. No Mexico, os cogumelos alucin6genos do genera

PSilocybe sac sagrados e denominados It carne de deus" (teonanact0.

As plantas psicoativas americanas, como a jurema (Mimosa hosti-

lis), elevada pelo escritor Jose de Alencar, em lracema, a condic;:ao

de simbolo secreta da cultura indigena; a ayahuasca, beberagem

sagrada, tambem de origem indigena, cultuada na religiao do

Santo Daime, no Brasil; e diversos cactos andinos e mexicanos,

como 0 San Pedro e 0 peiote, sac exemplos de alimentos e bebi-

das divinizadas.

Em rodo 0 mundo, as bebidas inebriantes e as drogas desempe-

nharam urn papel central nas tecnicas de extase e nos rituais de

transe como urn alimento espiritual muito particular, objeto de

Page 119: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

devos:ao mistica. Dioniso/Baco era 0 deus do vinho no mundo

grego e romano. Ceres, versao latina de Demeter, denominou os

mais importantes alimentos, os cereais, cujo ciclo vital da semea-

dura e da colheita e regido pela deusa. A "queda" de Adao e Eva

ou pecado original, foi 0 ato de comer urn froto proibido.

Nas antiguidades grega e romana, aIem do sacrificio regula-

mentador de urn escasso consumo carnivora, havia urn modelo

de alimentas:ao civilizada assentado na trindade do pao, vinho e

6leo de oliva. T res produtos da industria human a que se opu-

nham ao modelo barbaro germanico do consumo de produtos

naturais, especialmente a carne e 0 leite. 0 cristianismo ira in-

corporar essa tradis:ao classica revestindo-a dos atributos de re-

presentas:ao da pr6pria divindade ao adotar, na sua liturgia, 0

pao como 0 corpo de Cristo, 0 vinho como 0 seu sangue e 0 6leo

como a uns:ao sagrada.

A alimentas:ao assume assim a funs:ao de distinguir religiosa-

mente os povos para os quais a dieta torna-se urn assunto muito

mais transcendente do que a mera satisfas:ao do estomago. As

disposis:oes biblicas vetero-testamentirias, coranicas ou da tra-

dis:ao indiana sobre a alimentas:ao saG urn motivo de intenso de-

bate hist6rico e antropol6gico, que este capitulo abordara nos

seus tras:os basicos.

A hist6ria dos alimentos, partanto, tambem se imbrica com a

hist6ria das religioes. As origens dos alimentos remetem-se as

HENRIQUE CARNEIRO

Il2

Page 120: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

origens reais e simb6licas de todas as civiliza~6es humanas. 0

nectar e a ambrosia, alimentos dos deuses, foram roubados para

os homens, segundo uma das tradi~6es mitol6gicas gregas, por

Tantalo, que os tirou das maos de Ganimedes, adolescente be-

lissimo, que por sua vez tambem fora raptado da Terra por Zeus

para tornar-se 0 0 servidor do nectar e da ambrosia no Olimpo.

Assim, Tantalo, por difundir os alimentos divinos entre os ho-

mens, sofreu 0 famoso suplicio de estar na agua e nao poder be-

be-la e de ver penderem em sua frente os frutos e nao poder ja-

mais come-los. Para obter 0 nectar e a ambrosia, assim como

para ter 0 fogo, 0 homem assaltou os deuses. Tantalo e Prome-

teu, her6is da humanidade, cumprem 0 papel analogo de forne-

cer os alimentos sagrados e os meios tecnicos do cozimento,

fundamentos de toda civiliza~ao.

T odos esses mitos expressam 0 desejo da participa~ao na co-

mensalidade com os deuses. Prometeu, alem de fornecer 0 fogo,

enganou os deuses instaurando a partilha desigual na institui~ao

do sacrificio, em que os homens ficam com a carne enquanto

que imam para os deuses os ossos, a banha e a pele. Tantalo ten-

tou reinstaurar uma comensalidade perdida, trazendo para a hu-

manidade os alimentos exclusivamente divinos, cuja simples in-

gestao tornava urn mortal semelhante aos deuses.

A rela~ao dos mitos com a alimenta~ao mostra a fome e a sede

insaciaveis como urn "estatuto da animalidade", superado pe1as

COMIDA E SOCIEDADE

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Page 121: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

regras sociais do mundo classico instauradoras de uma conviviali-

dade que assume 0 carater de urn consumo moderado no symposi-

um grego. As regras de Demeter e Dioniso (Ceres e Baco entre os

latinos ), que permitem 0 dominio dos cereais e do vinho, nao po-

dem ser desafiadas. Quando urn bosque consagrado a Demeter

foi invadido pelo principe Erisicton, ele foi castigado pela deusa

com uma fome terrivel e insaciavel e quanto mais ele cornia para

aplaca-la, mais ela aumentava e 0 atormentava. A sua pena foi 0

retorno ao estado da insaciabilidade, tema tambem presente em

Tantalo e outros mitos. A alimentas:ao partilhada, por outro

lado, impoe a comensalidade, com todas as suas consequencias.

Persefone, por ter comido urn grao da roma que the of ere cera

Plutao, passou a dever permanecer no Hades metade do ano. I

o sacrificio necessario para 0 consumo de carne na cultura

grega e, decrescentemente, na latina, estabelecia uma ordem po-

litica e religiosa sobre os habitos alimentares. T ais aspectos sim-

b6licos e rituais da alimentas:ao nos obrigam a estudar 0 seu sig-

nificado nas religioes.

A mitologia judaico-crista tambem se estrutura em torno de

urn mundo de comensalidade nao s6 entre os homens e os deu-

ses, como entre os homens e os animais. Mas e justamente a vio-

las:ao de uma interdis:ao de tipo alimentar, a proibis:ao de dois

I Pauline Schmitt Pantel,HAs tefei~5es gtegas, urn ritual civico" in Flandrin & Mon-tanari, pp. 155-169.

HENRIQUE CARNEIRO

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Page 122: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

frutos especificos dentre todos que abundavam no Jardim do

Eden, que romped. 0 elo entre 0 criador e a sua crias:ao, que se

vera condenada a alimentar-se do seu trabalho.

o tipo de alimento que 0 povo judeu foi instruido a comer

era, entre tanto, bastante seletivo, excluindo todos os animais do

mar que nao possuissem escamas e guelras, todos os da terra que

nao ruminassem e nao tivessem a pata fendida e divers os do ar,

entre os quais os de rapina. As regras alimentares judaicas ja fo-

ram interpretadas como urn recurso de distins:ao cultural, desti-

nado a manter 0 povo judeu separado dos demais atraves da exi-

gencia de que os animais a serem comidos fossem apenas aque-

les que "respeitassem 0 lugar que lhes foi fixado no plano da

Crias:ao", recusando assim todos os animais "hibridos", como

moluscos, anfibios, peixes com pele, animais carnivoros ete. A

alimentas:ao judaica nao decorreria de consideras:6es nutritivas,

medicas ou gastronomicas, mas seria essencialmente urn con-

junto de regras de isolamento cultural.

o Novo Testamento, em ruptura com 0 particularismo judai-

co, preferiu universalizar-se aceitando todas as formas de ali-

mentas:ao, com a exces:ao da proibis:ao de se alimentar de sangue

que, vinda do Lev{tico, permaneceu nos Atos dos Ap6stolos. Mas sa-

cralizou alguns alimentos particulares: a trindade mediterranica

do pao, vinho e 6leo. Tal prediles:ao por alguns alimentos euro-

peus nao impediu a autorizas:ao pela Igreja, em lugares distantes

COMIDA E SOCIEDADE

IIS

Page 123: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

como na America, da fabricas:ao de h6stias de farinha de man-

dioca e de 6leo crismatico de cabreuva onde havia ausencia de

trigo, uvas e azeite.

Uma interpretas:ao materialista dos tabus alimentares consi-

dera que a adaptas:ao economica e ecol6gica e 0 que explica a

funcionalidade das proibis:6es islamica e judaica para 0 consu-

mo do porco ou a hinduista para 0 consumo da vaca. A alta den-

sidade populacional da peninsula indica e a baixa fertilidade do

solo desertico do Oriente Medio seriam as razoes que exigiriam

a utilizas:ao do solo exclusivamente para a agricultura e motiva-

riam 0 surgimento de tabus re1igiosos para impedir pragmatica-

mente 0 desvio dos campos agricultaveis para pastos de gada ou

das areas limitadas dos oasis para crias:ao de porcos. Da mesma

forma, necessidades de consumo de proteinas em sociedades

muito povoadas e com poucos recursos de gada comestive1 te-

riam levado, como no caso asteca, a urn consumo carnivoro ca-

nibalistico religiosamente ritualizado.2 Os tabus alimentares

tambem foram vistos, por outros antrop610gos, como urn siste-

ma de ordenamento cultural no interior do qual as inadequa-

s:oes sao consideradas impureza e fontes de contaminas:ao.

Sobre 0 tema dos tabus, proscris:6es e prescris:oes alimentares

tambem podemos citar urn grande autor brasileiro, Josue de

HENRIQUE CARNEIRO

116

Page 124: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

Castro, que apresenta uma interpreta~ao de tipo reflexologista

pavloviana para a ado~ao de certos interditos alimentares pelas

popula~6es escravas no Brasil colonial, condicionadas pelos se-

nhores a nao consumirem certas frutas junto com leite pelo te-

mor infundado, mas conscientemente disseminado, de que 0 seu

consumo Faria mal a saude.

Sigmund Freud relacionou as tres maiores interdi~6es culturais

- do incesto, do canibalismo e do assassinato - apresentando a

hip6tese de que 0 totemismo seria uma estrutura religiosa prirni-

tiva comum a todos os povos, pois representaria 0 assassinato e 0

devoramento coletivo do pai realizado pelos filhos rebelados,

gesto ancestral que se repetira em todas as hordas arcaicas. 0 tabu

de comer 0 totem seria ritualisticamente suspenso durante urn

banquete sagrado que repetiria 0 assassinato parricida e canibal

que seria a Fonte da culpa, 0 verdadeiro pecado original. Para Freud,

o mito do nascimento do her6i como urn filho rejeitado e que de-

po is derrota 0 pai (Edipo, Romulo, Ciro entre tantos outros) re-

pete-se em Moises, que tambem foi morto e devorado pelos seus

seguidores. A fanrastica elabora~ao dessa hip6tese remete a ori-

gem dos tabus alimentares ao tabu original do canibalismo.3

De qualquer forma, 0 judaismo e 0 cristianismo, no nueleo

fundamental de sua mitologia, estao cheios de simbolismos ali-

COMIDA E SOCIEDADE

II?

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mentares. Os milagres de Cristo, entre outros, referem-se amul-

tiplicac;:ao dos alimentos, seu pr6prio corpo e sangue consubs-

tanciados no pao e vinho da eucaristia repete 0 rito do sacrificio

de uma forma sublimada. A santa ceia assume urn papel central

na representac;:ao de uma alianc;:a da humanidade com a divinda-

de fundada na comensalidade. As refeic;:oes de Cristo na casa de

Simao, nas bodas de Cana e na mesa dos peregrinos de Emaus

sao epis6dios em que a alimentac;:ao serve de parabola para a

mensagem crista.

A imp orran cia do modelo religioso alimentar do cristianis-

mo pode ser verificada no processo da conversao dos povos es-

lavos. A cronica russa da epoca conta que, em 986, quando 0

principe de Kiev, Vladimir, decidiu converter 0 seu povo, con-

vocou ao seu palacio representantes das quatro grandes religioes

(cat6licos romanos, cristaos ortodoxos, judaismo e islamismo ).

Urn dos elementos determinantes de sua opc;:ao pela ortodoxia

teria sido de ordem alimentar, pois os eslavos nao poderiam acei-

tar a proibic;:ao do alcool e do porco pelos muc;:ulmanos, igual-

mente interditado pelos judeus (que tambem exigiam varios ou-

tros ritos e criterios alimentares). 0 catolicismo, por sua vez,

impunha uma enorme quantidade de dias de sucessivos jejuns.

Restou, portanto, a ortodoxia bizantina, bem menos rigida nas

exigencias disciplinares em relac;:ao a comida. Dentre os inume-

ros outros fatores que determinaram a conversao eslava ao culto

HENRIQUE CARNEIRO

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bizantino, portanto, as regras alimentares religiosas nao foram

de menor imporrancia.4

As regras alimentares servem como rituais instauradores de

disciplinas, de tecnicas de autocontrole que vigiam a mais insi-

diosa, diuturna e permanente tenta'rao. Doma-la e do mar a si

mesmo, dai a importancia da tecnica religiosa dos jejuns, cujo

resultado tambem permite a obten'rao de estados de consciencia

alterada propicios ao extase. As regras disciplinares sobre ali-

mentos podem ser anti-hedonistas, evitando 0 prazer produzi-

do pelo alimento tornando-o 0 mais insipido possive!, ou po-

dem ser pragmaticas, ao evitar alimentos que sejam "demasiado

quentes" ou "passionais". Os herbarios medievais identifica-

yam em diversos alimentos, tais como as cenouras ou alcacho-

fras, fontes de excita'rao sexual. As regras budistas eliminam ate

mesmo a cebola, a cebolinha e 0 alho, por considerarem que es-

sas plantas inflamam as paixoes.

A constitui'rao de urn sistema de mosteiros e conventos pela

Europa medieval baseou-se na organiza'rao de regras disciplina-

res que moldaram a personalidade do clero regular e da Igreja no

seu conjunto. A principal tenta'rao, muito mais persistente e in-

sidiosa do que a luxuria, era a gula. A rela'rao com a alimenta'rao

marca muitas das regras monasticas. A Regra de Sao Pacomio,

COMIDA E SOCIEDADE

119

Page 127: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

do ana 320, possui IS itens, dos quais seis referem-se a comida.

A primeira de clara: "permite a cada urn comer e beber [de acor-

do com suas fon;:asJ da-lhes trabalho proporcional a seu alimen-

to"; as outras regras alimentares estipulam que" nao se proibe 0

jejum nem a refeis:ao", mas se proibe comer junto a algum foras-

teiro e a conversa as refeis:6es, onde os monges deverao estar co-

bertos com capuzes que permitam apenas a visao do prato

Cninguem olhe seus irmaos enquanto comem"). Mais de do is

seculos a frente e Sao Bento estabelece em sua regra que" amar 0

jejum" e urn dos instrumentos das boas obras. A regra da

Ordem do Monte Carmelo, em 1209, ainda reafirma a absti-

nencia do consumo de carne" de quadrupedes" e determina dias

santificados de jejum, mas entre 0 inicio do sistema monacal no

seculo IV e a epoca das gran des abadias como Cluny, de Sao

Bernardo, 0 clero regular havia se tornado a fors:a mais poderosa

da Europa medieval. Os monges dominaram vastas areas de cuja

produs:ao agricola dispuseram, desenvolveram tecnicas de ori-

gem arabe de destilas:ao alc06lica e produziram licores. Criou-

se toda uma culinaria conventual, em Portugal as doprias de

freiras celebrizaram-se com nomes como "papo-de-anjo" ou

"toicinho do ceu". A transformas:ao dos mosteiros e abadias em

nucleos de riqueza converteu-os em centros produtivos de ali-

mentos e permitiu uma abundancia relativa que acabou por tor-

nar a vida monastica sinonimo de boa comida, luxo e fartura.

HENRIQUE CARNEIRO

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Entre as regras monacais e a cozinha dos mosteiros persistiu

uma tensao secular cuja natureza e economica e cultural, a sua

hist6ria e parte da hist6ria da alimentac;:ao bem como da hist6ria

das religioes ou da hist6ria das regras e dos c6digos morais.

o estabelecimento de determinadas regras alimentares funda

o limite entre 0 estado selvagem e 0 estado civilizado. A proibi-

c;:aoda antropofagia e uma dessas regras. A pratica do canibalis-

mo entre populac;:oes indigenas da America, cuja descric;:ao do

viajante alemao do seculo XVI, Hans Staden, caido prisioneiro

dos tupinambas, e a mais famosa, foi interpretada como poden-

do obedecer a diferentes motivac;:oes: a antropofagia por fome,

por vinganc;:a, como culto aos antepassados buscando a trans fe-

rencia das qualidades do morto para os membros da tribo, e

como rito guerreiro. No seculo XIX, 0 canibalismo foi explica-

do pelo positivismo neomalthusiano como a consequencia ne-

cessaria do conflito entre uma populac;:ao ilimitadamente cres-

cente e uma disponibilidade limitada de recursos. Out~os auto-

res questionaram a realidade da pratica canibal na maior parte

das cronicas e descric;:oes que seriam eivadas de preconceitos e

de intenc;:oes difamat6rias.5 Outra forma de canibalismo foi

praticada pelas populac;:oes europeias, especialmente nas elites,

5 Vide Abguar Bastos, A pantojagia ou as estranhas pniticas alimentares na selva; Frank Les-tringant, Ie Cannibale. Grandeur et Decadence; e "Eva T upinamba", de Ronald Raminelli,in Del Priore, 1997, pp. II-H.

COMJDA E SOCIEDADE

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por meio do consumo de mumias como remedio. 0 trafico de

mumias e produtos cadavericos como musgo nascido num cra-

nio, assim como de sangues e de divers as partes do corpo huma-

no com uso farmaceutico, fez parte da medicina ocidental ate

pelo menos 0 seculo XVIII, e apesar de violarem as interdi'r0es

biblicas explicitas a ingestao de sangue6 foram aceitas e usadas

pelo clero e pelas cortes.

As regras alimentares mais divers as organizam a nutri'rao das

diferentes popula'roes. Os povos semitas, por exemplo, excluem

da sua alimenta'rao diversos animais. Os chineses nao conso-

mem 0 leite e seus derivados, enquanto os japoneses reduzem 0

seu consumo carnivoro quase exclusivamente aos peixes. T ais

regimes alimentares sao algo mais do que habitos, a ado'rao

consciente de regras religiosas ou mesmo de preceitos dieteticos

ou morais. Eles estao inscritos ate mesmo na Biologia, como e 0

caso da dificuldade de os chineses metabolizar certas enzimas

necessarias a digestao dos produtos lacteos ou da adapta'rao em

geral da alimenta'rao ao clima. Os habitos e tradi'roes alimenta-

res constituem uma heran'ra cultural que e recebida junto com 0

leite materno e que permanecera tanto no nivel consciente das

prerrogativas religiosas ou dieteticas como no nivel inconscien-

te das mentalidades e dos gostos coletivos.

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GASTRONOMIA E

ESTETICA DO GOSTO

A mais tradicional das vertentes modernas de estudos culturais

da alimenta<;ao e ados livros sabre hist6ria da culinaria, que tern

como base compila<;oes de receitas e deriva<;oes num terreno este-

tico, de hist6ria do gas to, que se imbrica com a hist6ria dos habi-

tos, dos costumes e das modas. A no<;ao hist6rica do gosto e urn

objeto de intensas especula<;oes literarias que abrangem afirma-

<;oesde identidades culinarias. Nao e apenas como urn campo es-

pedfico de investiga<;ao da disciplina hist6rica au antropo16gica

que a alimenta<;ao interessa a ciencia e constitui-se urn objeto

cientifico. Esse saber e tambem empirico e, antes de tudo, uma

atividade pratica: "a prova do pudim e come-lo". Uma ciencia de

urn gozo constitui uma arte, p0rtanto e tambem como aspecto da

hist6ria da arte que a hist6ria da alimenta<;ao deve abordar a gas-

tronomia, tanto no seu aspecto tecnico como literario. 0 aspecto

estetico da alimenta<;ao foi abordado em diferentes obras, dentre

as quais e preciso ressaltar as resultados de urn co16quio realizado

Page 131: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

em Lausanne dedicado especificamente a estetica visual da apre-

senta~ao dos alimentos e denominado apropriadamente: "Comer

com os olhos."

A estetica alimentar refere-se nao apenas ao gosto ou a apre-

senta~ao dos alimentos como aos recursos tecnicos ligados ao

gesto e ao rito da alimenta~ao. A evolu~ao do prato raso e dos

talheres, por exemplo, e recente. 0 garfo so difundiu-se apos 0

seculo XVI a partir de Veneza, mas 0 seu uso generalizado so

ocorreu por volta de 1750, quando os chineses ja usavam ha

quase urn milenio os estojos com pauzinhos e tigelas enverniza-

das. 0 espa~o arquitetonico e 0 mobiliario alimentar tambem

saG parte da historia estetica e moral da alimenta~ao.

Ate 0 seculo XIX, a historia da alimenta~ao confundia-se

com a suposta historia de certos alimentos, uma "historia gas-

tronomica legendaria", e que ainda e a ideia mais imediata que

ocorre numa leitura apressada do que seja 0 objeto da historia

da alimenta~ao. A his tori a da alimenta~ao nao e somente ados

alimentos e tampouco se restringe a urn discurso gastronomico.

Os sabores saG algo mais do que 0 desfrute de urn sentido que

indica a comestibilidade das coisas. 0 gosto diferenciado e 0

que caracteriza os diferentes povos e as diferentes epocas de

uma mesma cultura. A maturidade de uma cultura foi identifica-

da nao apenas com as suas conquistas espirituais ou realiza~6es

materiais, mas com 0 grau de elabora~ao de suas tecnicas e cria-

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'roes alimentares, que sao, ao mesmo tempo, expressao tecnica

material e inventividade artistica, constituindo assim "uma (0-

zinha rebuscada, como conhece toda a civiliza'rao na idade adul-

ta, a chinesa a partir do seculo V, a mU'rulmana por alturas dos

seculos XI e XII, a ocidental com 0 exito italiano, depois 0 da

Fran'ra C...) a partir do seculo XVI".!

A palavra gastronomia foi usada pela primeira vez na tradu'rao

francesa do Banquete dos s<jistas, de Ateneu, em 1623, para refe-

rir-se ao titulo de uma obra perdida de Arquestrato, 0 neto de Pe-

ricles. Esse termo foi popularizado, em 1801, num longo poema

de Joseph Berchoux, passando a designar a "boa mesa". Outros

termos, como gastrolatria, presente em Rabelais, grande escritor

frances do seculo XVI, ou gastros<jia, proposto por Fourier, 0 so-

cialista ut6pico oitocentista, nao encontraram a mesma recep'rao

e calram em desuso. Mais do que 0 comer com voracidade Cpara 0

qual existem 104 palavras ou expressoes, na lingua francesa),

identificado no termo gastrolatria, 0 novo termo, possuidor de co-

nota'r0es ordenadoras ("legisla'rao do estomago"), passou a des-

crever urn usa requintado e delicado dos alimentos.2

Na virada para 0 seculo XIX, a interpreta'rao da alimenta'rao

liberta-se das imposi'roes dietetic as e medicinais, assim como

2 Jean-Robert Pitte, Gastronornia jrancesa. Historia egeografia de urna paixiio, Porto Alegre.LP&M, 1993, p. 17.

COMIDA E SOCIEDADE

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das restri<;:6es morais, para expressar-se numa literatura que nao

mais se envergonha de proclamar as benesses do pecado capital

da gula. Ap6s a Revolu<;:ao Francesa, urn curio so esteta do gos-

to, Grimod de La Reyniere, passou a cultivar 0 habito de escre-

ver sobre comida e a organizar banquetes extravagantes, ajudan-

do a popularizar na Fran<;:aos novos termos de gourmets e gastro-

nomes para designar os amantes declarados dos prazeres da mesa.

Outro marco da gastronomia filos6fica do seculo XIX e Bril-

lat-Savarin que, em 1825, no Fisiologia dogosto, dedicou-se a reali-

zar uma sumula aforismatica do conhecimento hist6rico e nu-

tricional de sua epoca, com exalta<;:6es ao queijo, ao chocolate e

as trufas, uma "teoria da fritura" e maximas famosas como: "A

descoberta de urn novo prato faz mais pela felicidade do genera

humano que a descoberta de uma estrela."

A hist6ria do gosto e uma das facetas de uma hist6ria que e a

do cotidiano, mas tambem de profundas estruturas sociais e ideo-

l6gicas. 0 sentido gustativo que serve de generaliza<;:ao para 0 jui-

zo de valor (0 "born gosto") foi estendido a todos os outros do-

minios do deleite sensorial e, ate mesmo, para a esfera da raciona-

lidade, pois, como ja vimos, 0 termo "saber" deriva do latim sape-

re, "ter gosto". A hist6ria do gosto estetico ou literario relacio-

na-se com a do gosto culinario, no interior do qual tambem en-

contraremos vertentes neoclassicas assim como voca<;:6esbarro-

cas. A manuten<;:ao do gosto pelos pratos fortemente condimen-

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tados, tao tipica da epoca renascentista, tornar-se-a urn tras:o bar-

roco numa Frans:a em que 0 classicismo voltava a louvar 0 culto

do natural, levando Voltaire a escrever em seu Dicionario jilosijico,

no verbete "Gosto": "como 0 mau gosto em nivel fisiologico con-

siste em so se deleitar com temperos muito picantes e elaborados,

assim 0 mau gosto nas artes consiste em so se comprazer com or-

natos rebuscados e nao apreciar a beleza natural".3

o saber gastronomico ante cede a historia da alimentas:ao e

constitui-se junto com toda a arte e ciencia da feitura dos alimen-

tos, desde 0 dominio do fogo, dando 0 saIto do cru para 0 cozido,

ate 0 intercambio acelerado dos produtos do comercio de longo

curso, chegando amigras:ao de especies do periodo moderno, que

popularizou produtos e tecnicas de remotas regioes para 0 con-

junto do planeta, constituindo as diferentes tradis:oes de comb i-

nas:oes de produtos, molhos e formas de preparo.

Esse saber gastronomico, presente nas culturas orais ou nos

livros de receitas, torna-se, no seculo XIX, urn objeto de especu-

las:ao filosofica. A utopia de Charles Fourier, urn filosofo uto-

pico contempodneo da Revolus:ao Francesa e cuja obra, em

grande parte, permaneceu inedita em sua epoca, dava continui-

dade ao tema da utopia alimentar e previa 0 advento da gastro-

sofia, quando a questao culinaria se tornaria, ao lado do sexo, a

3 Flandrin & Montanari, op. (it., p. 548; e Jean-Fran~ois Revel, Urn banquete de palavras,Sao Paulo, Companhia das Letras, 1996.

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mats tmportante preocupas:ao e atividade dos cidadaos e do

Estado, e haveria oceanos de limonada e batalhas gastros6ficas

para se disputar em torno da excel en cia de pasteizinhos ou de

delicadas espumas nutritivas. Em todas as utopias medievais de-

rivadas do imaginario do pais da Cocanha, encontra-se a abun-

dancia fantastica dos alimentos, a cornuc6pia inesgotivel, os lei-

toes que ja vem assados e os rios de leite, mel e vinho.

Nao e coincidencia que Fourier seja 0 mais exuberante em re-

lacionar os prazeres da cama com os da mesa, nem que 0 verbo

"comer" signifique, em inumeras linguas, aIem do ato de ingerir

alimentos, tambem 0 ato sexual. Como sabemos, existe uma ten-

dencia universal em fazer associas:ao ritual e verbal entre comer

e manter relas:ao sexual. Eurn truismo dizer que 0 sexo e a comi-

da saD dois p610s do sentido da vida humana. E que, como tais,

eles extravasam suas funs:oes meramente materiais de assegurar a

sobrevivencia dos individuos e a da especie para torna-los ma-

trizes simb6licas essenciais de toda cultura. 0 poeta alemao

Schiller ja dizia que "0 amor e a fome movem 0 mundo". Talvez

por sua imporrancia estrategica para a vida, essas duas ativida-

des constituem-se as Fontes mais intensas do prazer carnal.

A filosofia, no entanto, com exces:oes como as de Fourier,

em geral teve uma relas:ao conflituosa com a alimentas:ao. Pla-

tao via no ventre a metifora da camada mais baixa do povo, in-

teressada unicamente na satisfas:ao fisica, enquanto os bras:os

HENRIQUE CARNEIRO

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representariam os guerreiros, e a cabe<;:apensante, os fi16sofos.

Kant, muito tempo de po is, ainda continuaria a distinguir os

sentidos entre os superiores (tato, visao e audi<;:ao), por serem

objetivos, e os inferiores (olfato e paladar), que seriam subjeti-

vos e, p0rtanto, "exercem mais a representa<;:ao do deleite que

do conhecimento dos objetos exteriores". A sensorialidade e a

sensualidade foram muito desprezadas na filosofia ocidental.

Uma "positividade sensualista", herdeira do materialismo

Frances e do sensualismo ingles enfrentando 0 ideal ascetico,

s6 surgiu no seculo XVIII. Ate entao, a frugalidade e a recusa

aos ape10s da carne seriam exaltadas como principio dietetico

e moral. 0 cinismo alimentar de Di6genes, comedor de carne

crua e inimigo de todo refinamento, encontrara seguidores em

Rousseau, critico da gastronomia, vista por e1e como" ciencia

do superfluo, do inutil e do luxo, argumento da decadencia e

da perversao do paladar". 4

4 Michel Onfray. A raziio gulosa. Filosojia do gosto. Rio de Janeiro. Rocco. 1999; e 0 VlII-

tre dosjil6sojos. Crftica da razao dietitica, Rio de Janeiro, Rocco. 1990, p. 44.

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A HISTORIOGRAFIA INTERNACIONAL

DA ALIMENTAc;XO

Urn "campo" de estudo hist6rico ou historiografico e urn es-

pas:o conceitual elastico e de fronteiras difusas. Como circuns-

crever a hist6ria da alimentas:ao como urn campo de pesquisas?

As investigas:oes particulares, a partir de fontes divers as -litera-

rias, folcl6ricas, iconograficas, economicas e arqueol6gicas -,

puderam informar a historiografia de muitos dados: relas:oes de

produtos e formas de preparo, flutuas:oes de pres:os de alimen-

tos, dietas supostas de determinados grupos, descris:oes de habi-

tos a mesa ete., mas nao chegaram a constituir a historia geral da

alimentas:ao como urn campo especifico de estudo. Urn obsta-

culo que persiste e a limitas:ao da bibliografia disponivel. I Os

estudos asiaticos e africanos, por exemplo, sao raros entre nos e

I Urn levantamento bibliografico amplo encontra-se em "A historia da alimenta~ao:balizas historiograficas", Ulpiano Bezerra de Meneses e Henrique Carneiro, Anais doMuseu Paulista: Historia e Cultura Material, Nova Serie, Vol. 5, jan/ dez de 1997, em quese baseiam este capitulo e 0 proximo.

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pouco acessiveis.2 Sem pretender enfocar a imensa e diferencia-

da bibliografia sobre a alimenta'rao asiatica, pode-se mencionar,

apenas como exemplo sobre 0 pape! da alimenta'rao na constitui-

'rao de uma identidade cultural, 0 caso do Japao, onde 0 arroz e

estudado em suas repercussoes sobre a cultura japonesa.3 T am-

bem 0 cha foi estudado como urn genero alimenticio de extrema

importancia economica, politica e cultural em diversos paises

orientais.4 Estes exemplos, no entanto, sao minoritarios numa

bibliografia de autores majoritariamente europeus e america-

nos. Isto decorre de uma evidente impossibilidade de se abran-

ger exaustivamente urn tema como a alimenta'rao e da maior dis-

ponibilidade de uma bibliografia originada no universo latino e

anglo-saxao.

A alimenta'rao passou a ser abordada em estudos com uma

ambi'rao hist6rica universalizante somente no seculo XX, quan-

do 0 professor de boranica na Escola Tecnica Superior de Lvov,

Adam Maurizio, se perguntou 0 porque de nao haver uma hist6-

2 Sobre a riquissima e milenar culinaria chinesa existem institui~6es e publica~6es eforam realizados coloquios, como 0 The First International Symposium on Chinese Dietetic

Culture, realizado em Beijing (julho de 1991), seguido do The Second Symposium 011 Chi-

nese Dietary Culture, em Taipei, Taiwan (setembra de 1991). Este Ultimo foi promovi-do pe/a Foudatioll oj Chinese Dietary Culture, que se soma a divers as outras institui~6es naAsia, sobretudo na China e no Japao, algumas criadas por empresas de alimenta~aocomo, por exemplo, desde 1989, a Ajinomoto Foudatioll for Dietary Culture.

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ria da alimentas:ao, que ele considerava uma hist6ria da agricul-

tura, ou seja, "uma hist6ria das plantas importantes do ponto de

vista da agricultura", propondo-se, como resultado, a tratar de

tal tema. Embora cite e reconhes:a algumas outras iniciativas se-

melhantes,5 considera-as validas apenas pela intens:ao. E de

fato, a obra de Maurizio foi uma das primeiras a constituir 0 es-

tudo da alimentas:ao como 0 centro norteador de uma pesquisa

sobre os sistemas alimentares da especie human a desde a

Pre- Hist6ria. 6

Alem das obras com vocas:ao universal e dos estudos nacio-

nais em hist6ria da alimentas:ao, outro tipo de enfoque mono-

gdfico constituiu os fundamentos desse campo da historiogra-

fia: os estudos sobre a hist6ria de determinados alimentos.

Entre estes estudos, encontramos as hist6rias dos seguintes ge-

neros: do pao, do milho, da batata, da soja, do queijo, do sa!, do

as:ucar, do me!, da cerveja, do vinho, da cachas:a, da vodca, do

chi, do cafe, do mate, do chocolate, da Coca-Cola, da margari-

na, dos biscoitos, do hamburguer entre outros.7

5 L. Bourdeau. Histoire de l'Alimentation, 1894; e G.D. LichtenfeIt, Geschichte der Erniih-rlmg. 1913.

6 Publicada em polones em 1926, foi traduzida para a frances, em 1932, como Histo-ire de l'Alimentation Vegetale Depuis la Prihistoire Jusqu'a nos Jours.

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Com Maurizio, fundou-se urn enfoque historiografico sobre

a alimenta~ao que superou 0 discurso e 0 saber gastronomicos,

com a sua hist6ria legendaria dos alimentos, assim como as his-

t6rias ou etnografias de alimenta~oes regionais e/ou nacionais,

as hist6rias de alimentos espedficos ou todo 0 saber renascen-

tista inspirado na cultura classica greco-romana que tratava os

alimentos como objeto de Medicina devendo ser submetido aos

preceitos da dieta e do equilibrio dos humores.

Ao mesmo tempo em que desabrochavam obras sinteticas,

como a de Maurizio, tambem se produziam em divers os paises,

des de 0 seculo XIX, estudos hist6ricos sobre suas alimenta~oes

nacionais. Especialmente pr6digos nestes estudos sao a Ingla-

terra, os Estados Unidos e a Franp, onde divers os trabalhos

vem tratando da hist6ria nacional da alimenta~ao. E em muitos

outros paises, especialmente na America Latina, podemos citar

ao menos uma obra que, em geral na primeira metade do seculo

XX, procurou estudar a alimenta~ao nacional: na Espanha, Ce-

receda (1934); no Mexico, Espinosa (1939); na Colombia, Be-

jarano (1941); no Chile, Madones e Cox (1942); e na Vene-

zuela, Guevara (1946). A constitui~ao dos Estados nacionais

acompanhou-se da uniformiza~ao de uma lingua nacional, as-

sim como da constru~ao ideol6gica de uma "identidade nacio-

nal", no interior da qual assume imensa relevancia a ideia de

uma "cozinha nacional", que deveria superar, por vezes inte-

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gran do e por vezes isolando, os particularismos regionais. Nao e

coincidencia que os estudos sobre "alimentas:6es nacionais"

surjam na Europa do seculo XIX, momenta de consolidas:ao

das nas:6es europeias, e no segundo pos-guerra na America Lati-

na, tambem urn momenta de afirmas:ao nacional no continente.

A Frans:a e urn pais de renomada tradis:ao culinaria. Nos ter-

renos teorico e academico nao poderia ser diferente. A nova his-

toriografia francesa dos anos 30 foi uma das raizes dos estudos

em historia da alimentas:ao. Sob a influencia da historia econo-

mica, em ruptura aberta com 0 positivismo da historia "aconte-

cimental" (tvenementielle), surgiu na Frans:a, nos anos 30, a cha-

mada escola dos Annales, cuja revista divulgou uma inquietas:ao

que, sob 0 programa da historia "global" ou "total", de Lucien

Febvre, pretendia abarcar todas as esferas da vida social. Duran-

te muito tempo a historia fora narrada a partir dos gran des

acontecimentos, da historia politica e nacional de cada pais,

como historia diplomatica e oficial. Desde 0 inicio do seculo

XX, a influencia da teoria economica pressupos a busca de uma

outra din arnica temporal, na qual as tendencias e as conjunturas

tomaram precedencia em relas:ao aos fatos e eventos.

o nivel do economico foi conceituado, por Fernand Braude!,

o sucessor de Fevbre na dires:ao dos Annales, como aquele da tro-

ca, do mercado. Abaixo dele estaria urn outro nivel, infra-eco-

nomico, que seria 0 da vida material e biologica. 0 conceito de

COMIDA E SOCIEDADE

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cultura material abrangeria os aspectos mais imediatos da so-

brevivencia human a: a comida, a moradia, a roupa. A longa du-

ra~ao, concebida como a escala na qual se davam os fenomenos

superiores aos eventos e as conjunturas, tornou-se a dimensao

no interior da qual novos objetos tomariam consistencia his to-

riografica. A vida cotidiana, a cultura material, as mentalidades,

o corpo, a familia e a morte sao alguns dos temas que emergem a

tona das profundezas aparentemente congeladas dos tempos

para se revelarem na dialetica da sua transforma~ao e da sua per-

manencia como no~i3es plasticas, sujeitas a mudan~as, mesmo

que elas apare~am como imperceptiveis para os proprios prota-

gonistas.

No ambito da cultura material, a alimenta~ao destaca-se

como 0 aspecto mais importante das estruturas da vida cotidia-

na. Urn dos primeiros historiadores franceses dos Annales a estu-

da-Ia foi Lucien Febvre, que se interessou sobre diversos aspec-

tos inexplorados da geografia historica francesa, como a defini-

~ao de urn mapa dos oleos de cozinha us ados na Fran~a.8 Como

diretor da Encyclopedie Franfaise, Lucien Febvre fundou uma co-

missao de investiga~i3es coletivas para buscar uma convergencia

entre a Etnografia e a Historia e, entre 1935 e 1937, empreen-

8 Terna ao qual de consagrou urna interven~ao no Prirneiro Congresso Nacional deFoldore. em 1938, e foi retornado no inicio dos anos 60 na revista Annales E.S. C. porJ.-J. Hernardinquer.

HENRI QUE CARNEIRO

136

Page 144: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

deu quatro investiga~oes, uma delas sobre a alimenta~ao campo-

nesa tradicional (as outras eram: meios de transporte e locomo-

~ao; evolu~ao da forja de aldeia nos ultimos 50 anos; e colheitas

e fogos de Sao Joao e Quaresma). 0 tema da alimenta~ao nao

foi desenvolvido, no entanto, a nao ser muitos anos mais tarde

quando, em 196 I, a revista Annales E.S. C. abriu as paginas da sua

edi~ao de maio-junho com a proposta, num texto assinado por

Fernand Braudel, de urn "retorno as enquetes". Embora retorno,

de fazia quesrao de declarar que nao se tratava das mesmas que

anteriormente haviam sido empreendidas por Marc Bloch e Lu-

cien Febvre, sobre "nobrezas" e "tecnicas". A investiga~ao en-

tao em pauta se debru~aria sobre dois temas: "A historia, ciencia

social atual", e "A historia da vida material e dos comportamen-

tos biologicos". Apenas 0 segundo tema, contudo, passou a ser

desenvolvido nos numeros seguintes.

Braudd, encarando a Historia como uma "ciencia das ciencias

do homem", propoe-lhe a tare fa de investigar nas distintas dura-

~oes do tempo, a vida material, "infra e extra-economica". Para

definir 0 dominio abarcado por essa defini~ao de "vida material",

diversos pontos de vista se of erecern: os da propria Hist6ria, mas

tambem os da Geografia, da Antropologia, da Sociologia, da

Economia, da Demografia, do Folclore, da Pre-Historia, da Lin-

guistica, da Medicina, da Estatistica. Diante de tal complexidade,

de propoe que cada disciplina coloque 0 problema nos seus pr6-

COMIDA E SOCIEDADE

137

Page 145: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

prios termos e que a Historia integre-os e compreenda-os na es-

pessura do tempo. A vida material pode ser dividida em "cinco

setores muito proximos: a alimentas:ao; a habitas:ao e 0 vestuirio;

os niveis de vida; as tecnicas; os dados biologicos". "A vida mate-

rial vai, assim, das coisas aos corpos." Diferentemente da vida

economica ou social, a vida material se situa em outro patamar,

onde quase nao hi consciencia da parte dos atores. E como uma

"infra-historia", portanto, ou uma "infra-infra-estrutura", que se

apresentava essa historia dos "alimentos, das vestimentas e das

habitas:oes". Enquanto "a vida economica, as instituis:oes, a socie-

dade, as crens:as, as ideias, a polltica" relacionam-se com as "aten-

s:oes e vigilancias", a vida material relaciona-se com "habitos, he-

rans:as e escolhas longinquas".

o metodo para 0 estudo da vida material deveria ser "regressi-

vo", partindo do conhecimento preciso das cifras que a docu-

mentas:ao contemporinea of erecia para se poder medir e compa-

rar. Esse aspecto quantitativista, serial, de buscar todos os dados

numericos de populas:oes, pres:os, volumes de produs:ao, fluxos

de comercio, estimativas nutricionais, expressava uma das verten-

tes que caracterizou a segunda fase dos Annales, sob influencia de

Labrousse e do proprio Braude!. A perspectiva que se descortina

nestes estudos seriais e estatisticos extravasa 0 tempo curtotdos

eventos. Na historia da alimentas:ao - que "se decompoe regular-

mente como uma historia qualquer em fatias cronologicas de

HENRIQUE CARNEIRO

138

Page 146: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

maior ou menor espessura" - os eventos perdem-se no tempo das

conjunturas curtas e longas e Braudel aponta "a verdadeira longa

dura<;:ao" como uma camada mais prop kia, que "quase nos lib era

do peso preciso do tempo", para situar as transforma<;:oes nos ha-

bitos alimentares. Ele usou a metafora da pesca para a Historia: se

quisermos agarrar os grandes peixes e preciso usar redes apropria-

das. A amplia<;:ao das malhas da rede podera aumentar tambem a

dimensao da pescaria, chegando a perseguir as influencias ainda

presentes da "revolu<;:ao neolitica". Adam Maurizio, por exem-

plo, a referencia ainda "valida, uti! e indispensavel" para os histo-

riadores, completa 0 estudo das plantas coletadas na Pre-Historia

com uma investiga<;:ao do seu uso moderno nas grandes fornes,

como sobrevivencias de praticas milenares.

Alguns criterios metodologicos deveriam guiar os estudos

sobre alimenta<;:ao: apoiar-se sobre os dados da atualidade e nao

incorrer num "determinismo alimentar", de querer explicar a

historia inteira dos homens a partir dos alimentos. 0 foco nos

regimes alimentares deveria ser a identifica<;:ao de como se com-

binam os elementos nutritivos e se sao estabelecidos ou nao

"equilibrios biologicos" em cada grupo ou sociedade. No nivel

da carencia so haveria desequilibrio, ou seja, fome, compreendi-

da como desnutri<;:ao. Uma distin<;:ao alimentar separa social-

mente as dietas em todas as epocas. Dois regimes sempre se

opoem como modelos antipodas: os monotonos e os variados.

COMIDA E SOCIEDADE

139

Page 147: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

Outro aspecto, entre tanto, tambem assumiu relevo nas inves-

tigar;:6es dos anos 60, 0 da comida como representar;:ao ou sim-

bolo. Como escreveu Maurice Aymard, ap6s os Annales, em

1961, terem recolocado em questao 0 tema da alimentar;:ao na

Hist6ria, tres gran des vias se abriram para a hist6ria da alimen-

tar;:ao: a de uma psicossociologia da alimentar;:ao, ou seja, "dos

valores, regras e simbolos" da alimentar;:ao; a macroeconomica,

que buscaria enquadrar estatisticamente a alimentar;:ao, por

meio de estudos de consumo, popular;:ao, prer;:os e comercio ex-

terior; e, finalmente, a do estudo do valor nutritivo e das caren-

cias, quantitativas e qualitativas, da alimentar;:ao dos tempos

passados, considerada como a linha de pesquisas "mais eviden-

te, mas nao a mais fkil". Em relar;:ao a esta ultima linha invest i-

gativa, seria preciso, com a finalidade de mensurar dietas de di-

ferentes periodos hist6ricos, esbor;:ar "urn metodo uniforme de

dlculo que permita as comparar;:6es entre regimes alimentares,

no tempo e no espar;:o".9 Foram realizadas comparar;:6es de re-

gistros de despensa para estimativas do real valor nutricional de

dietas de setores sociais espedficos.1O Em outro estudo, a partir

10 Abastecimento de seis frotas espanholas entre 1542 e 1642; corte da Suecia e seusservidores em 1573; expedi~6es portuguesa e espanhola para a Africa do Norte em1578; hospital dos incuraveis em Genova em 1608-1609; uma familia nobre na mes-ma cidade entre 1614 e 1615; coIegio Borromeo de Pavia, entre 1609 e 1618; tresdespensas civis na Inglaterra em distintas epocas; comboio de 2.000 soldados e 608cavaIeiros de Napoles para a Espanha.

HENRIQUE CARNEIRO

140

Page 148: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

de urn d.lculo realizado por Lavoisier sobre 0 total de viveres

consumidos em Paris e os seus pres:os globais, Robert Philippe

concluiu ter havido uma deterioras:ao na alimentas:ao parisiense

na primeira metade do seculo XIX. Outros artigos surgidos nes-

se periodo trataram da alimentas:ao de regioes e epocas bem cir-

cunscritas de alguns paises europeus, sobretudo a Frans:a.

Os alimentos especificos e seus fluxos comerciais foram urn

aspecto central das preocupas:oes dos Annales. Dentre estes, urn

acima de todos, 0 sal, produto escasso no norte da Europa, es-

sencial sobre todos os pontos de vista (nutricional, gastronomi-

co, tecnica de conservas:ao ), foi objeto de urn comercio que mer-

gulha suas origens na Pre-Hist6ria. Urn seminario na Sorbonne

eo encontro internacional "0 sal no trafico maritimo intern a-

cional da Idade Media aos nossos dias", em 1961, abordaram 0

pape! do sal na hist6ria. Braudel escreveu 0 artigo "Compras e

vendas de sal em Veneza (1587 -1593)", sublinhando ter sido 0

sal "a razao do primeiro impulso" de V eneza.

o impulso inicial da revista Annales nos anos 60 influenciou

outros debates sobre alimentas:ao. Robert Mandrou discutiu os

movimentos de longa duras:ao na hist6ria da alimentas:ao a par-

tir de dois artigos sobre 0 consumo de carne na Alemanha, des-

de a Idade Media ate 0 seculo XIX, Jean-Paul Aron enfocou a

formas:ao das conceps:oes sobre a biologia alimentar, especial-

mente a analise da fisiologia da digestao, da nos:ao de regime e

COMIDA E SOCIEDADE

141

Page 149: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

do conceito de ras:ao alimentar, e Roland Barthes analisou as-

pectos da significas:ao das diferens:as culturais em relas:ao a ali-

mentas:ao, por exemplo 0 porque de os americanos consumirem

quase duas vezes mais aplcar do que os franceses, introduzindo

elementos de uma semiologia da alimentas:ao na qual os alimen-

tos saG vistos como signos de urn sistema de comunicas:ao. Jean-

Jacques Hemardinquer organizou a antologia "Por uma hist6-

ria da alimentas:ao" (1970) e 0 Atlas das culturas alimentares (Ber-

tin, Hemardinquer, Keul e Randles, 1971) que, como definiu

Pierre Chaunu, abrange "10.000 anos, a Terra inteira e as 18

plantas fundamentais que asseguram 90% do alimento vegetal

humano".

A Inglaterra foi outro pais no qual a alimentas:ao constituiu-

se urn tema definido da historiografia, partilhando aspectos da

hist6ria social, cultural e, principalmente, economica. A indus-

trializas:ao prototipica desse pais suscitou grande debate sobre

as relas:6es da Revolus:ao Industrial com a alimentas:ao, facilita-

dos pela existencia de amplas informas:6es estatisticas.

Os focos de interesse da hist6ria da alimentas:ao briranica saG

relativos ao periodo mais estudado, 0 que sucede a industriali-

zas:ao, e a principal produs:ao historiografica sobre a alimenta-

s:ao na Inglaterra foi parte dos estudos economicos sobre as

consequencias da industrializas:ao. 0 angulo preferencial tern

sido 0 economico e social: estudo do abastecimento, das commo-

HENRIQUE CARNEIRO

142

Page 150: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

dities, do consumo, do status nutricional, da distribui<;:ao, dos

or<;:amentos e dos gastos alimentares e, num segundo plano, da

cozinha, dos pratos e dos horarios de refei<;:ao.

Grande numero de trabalhos sobre a hist6ria de determina-

das commodities na 1nglaterra trata de bebidas alc06licas e

nao-alc06licas, 0 que leva os his tori adores a enfocarem tambem

a questao social do alcoolismo e da temperan<;:a, num pais em

que as condi<;:6es de urbaniza<;:ao e de vida operaria provocaram

grandes altera<;:6es dieteticas nas camadas amplas do campesina-

to que engrossaram os precarios bairros das cidades industriais.

Friedrich Engels, em A situafiio da classe trabalhadora na Inglaterra

(1845), destacou, alem das doen<;:as e carencias nutricionais, 0

uso generalizado de aguardente ou 6pio para aplacar a fome ate

mesmo de crian<;:as.

Desde 1856, autores como George Dodd (The Food if London),

investigaram as peculiaridades da alimenta<;:ao inglesa e londri-

na em particular. Em 1963, a University of London promoveu

o Seminario de Historiadores e Nutricionistas do Queen Elizabeth College

(que mais tarde passou a fazer parte do King's College, Lon-

dres) que foi na opiniao de Derek Oddy H a mais duradoura e

produtiva Fonte de trabalhos em hist6ria dietetica e da alimen-

ta<;:ao".As primeiras conferencias produziram Changing Food Ha-

bits and Our Changing Fare; os seminarios mais recentes e regulares

forneceram as bases para as seguintes publica<;:6es: The Dietary

COMIDA E SOCIEDADE

143

Page 151: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

Surveys oj Dr. Edward Smith (1970), Fish in Britain (197 I), The Ma-

king oj theModern British Diet (1976), e Diet and Health in Modern Bri-

tain (1985). Os encontros mais recentes do Seminario produzi-

ram trabalhos sabre 0 tema "Passado do Primeiro Mundo: Pre-

sente do T erceiro Mundo". II

Os historiadores e nutricionistas do grupo do King's Colle-

ge, constituiram-se, talvez, como 0 centro mais importante da

pesquisa em hist6ria da alimentas:ao na 1nglaterra. Alem deste

grupo, Oddy aponta a existencia de outros, como os seminarios

desenvolvidos na Universidade de Oxford pelo Dr. Zeldin, que

forneceram estimulos, entre outras, para a obra de Harvey Le-

venstein, Revolution at the Table (1988), que trabalhou com as

transformas:oes da dieta inglesa na America do Norte.

o historiador ingles John Burnett publicou, em 1966, urn es-

tudo da hist6ria economica e social da alimentas:ao inglesa,

Plenty and Want. A Social History oj Food in England from Z8 Z5 to the

Present Days. No prefacio da terceira edis:ao desta obra, Burnett

(1989) reconhecia que "a hist6ria da alimentas:ao e atualmente

uma area aceita de erudis:ao academica e nenhum balans:o serio

das transformas:oes economicas e sociais da 1nglaterra durante

os dois ultimos seculos omite agora referencias as mudanps nas

maneiras pelas quais a alimentas:ao foi produzida, manufatura-

HENRIQUE CARNEIRO

144

Page 152: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

da, distribuida e consumida". Apesar de uma rica produs:ao his-

toriografica sobre alimentas:ao na Inglaterra,12 em comparas:ao

com outros paises, Oddy & Burnett ainda consideram que "a

crias:ao de uma bibliografia de estudos hist6ricos do abasteci-

mento e consumo alimentar e do estado nutricional do povo

britanico e relativamente esparsa". 13

Sobre a Alemanha, T euteberg escreveu The Diet as an Object 0/

Historical Analysis in Germany (I992) repleto de referencias sobre

os estudos que, desde 0 seculo XVIII, tratam da alimentas:ao na

Alemanha. Numa perspectiva continental mais limitada 0 La

Fame e l'Abondanza. Storia dell'alimentazione in Europa (1993), de

Montanari - especialista em hist6ria da alimentas:ao do periodo

medieval- e urn importante ensaio de interpretas:ao da alimen-

tas:ao europeia, especialmente da Italia. As compilas:oes biblio-

graficas sac ainda raras, sendo indispensavel citar Bibliotheca Gas-

tronomica, de Andre Simon (I953); 0 artigo "Food and Drink in

British history. A Bibliographical Guide" de William Henry Chaloner

(1960); e The History 0/ Food: A Preliminary Bibliography 0/ Printed

Sources, de David Sutton (I982). Como sintese bibliografica,

entretanto, 0 livro mais valioso e 0 European Food History. A Rese-

arch Review (1992), organizado por Hans J. Teuteberg a partir

COMIDA E SOCIEDADE

145

Page 153: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

das contribui~6es apresentadas nas conferencias do First Simposi-

um on European FoodHistory, Munster, 1989. Esta antologia suma-

riza pesquisas relativas a alimenta~ao em periodos espedficos

em 14 paises ou regi6es da Europa (Inglaterra, 1rlanda, Holan-

da, Belgica, Fran~a, Alemanha, antiga Alemanha Oriental, Aus-

tria, Sui~a, Hungria, Polonia, Russia, Boemia e Suecia).

Diversas obras mais gerais dedicaram-se, nas ultimas deca-

das, a tratar, de uma perspectiva universal, da hist6ria da ali-

menta~ao.I4 Mais recentemente, 0 Frances Jean-Louis Flandrin

organizou, juntamente com 0 italiano Massimo Montanari,

uma enciclopedia antol6gica de quase 1.000 paginas intitulada

Histoire de fAlimentation (1996; traduzida ao portugues em 1998),

reunindo cerca de 50 pesquisadores, que abordam tematica e

cronologicamente os habitos alimentares da humanidade em to-

das as epocas, constituindo uma obra de referencia indispensa-

vel que sintetiza enorme esfor~o de pesquisa desenvolvido ao

longo das ultimas decadas, do qual buscamos aqui delinear par-

te do percurso hist6rico. Outra das mais recentes obras enciclo-

pedicas que podem ser mencionadas e a The Cambridge World His-

tory oj Food, de Keneth F. Kiple (2000).

1mpossibilitado de abranger 0 conjunto de uma bibliografia

dessa amplitude, este texto optou por debru~ar-se mais sobre al-

14 Entre as quais padem ser citadas a inglesa Reay Tannahill (1973) e a francesa Ma-guellanne T aussaint-Samat (1987).

HENRI QUE CARNEIRO

146

Page 154: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

gumas gran des vertentes: uma delas, francesa sobretudo, ini-

ciou-se com a tradu~ao da obra do polones A. Maurizio, que in-

fluenciou a historiografia francesa dos anos 30, seguiu com os

trabalhos de Lucien Febvre e, mais tarde, de Fernand Braudel,

alcan~ou nas paginas dos Annales 0 contorno de urn projeto de

estudos coletivos da revista e prosseguiu, nos ultimos anos, com

as pesquisas estruturadas ao redor de Jean-Louis Flandrin na

Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales. Outra importante vertente

e a britinica, que produziu, desde 0 come~o do seculo, estudos

sobre a sua hist6ria nacional da alimenta~ao e uma serie de tra-

balhos monograficos sobre alimentos espedficos, especialmen-

te a batata, 0 milho e 0 pao.

A revista Food & Foodways, criada em 1985 e dirigida, entre

outros, por Jean-Louis Flandrin, da Ecole des Hautes Etudes en Scien-

ces Sociales, de Paris, e por Steven L. Kaplan, da Cornell Univer-

sity, e uma publica~ao cientifica especializada em hist6ria da

alimenta~ao que possibilitou urn encontro entre os pesquisado-

res de divers as vertentes, sobretudo entre os franceses e an-

glo-saxoes, e vem difundindo internacionalmente os trabalhos

hist6ricos e antropo16gicos ligados especificamente a questao

da "hist6ria e cultura da nutri~ao humana" assim como os mais

diferentes simp6sios, encontros e conferencias que tern se dedi-

cado ao tema da alimenta~ao em epocas e regioes as mais diver-

sas. Ao longo dos ultimos anos, esta revista vem debatendo te-

COMlDA E SOCIEDADE

147

Page 155: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

mas diversos como por exemplo "Mudanc;:as de habitos alimen-

tares atraves do estudo de casos da Africa, America do SuI e Eu-

ropa" (199 I), "Modos de alimentac;:ao norte-americanos e a Se-

gunda Guerra Mundial" (1996) e "A disposic;:ao do tempo para

a alimentac;:ao e os ritmos sociais" (1996-97). Este ultimo tema

e uma questao c1assica de estudos para a Sociologia e a Antropo-

logia: 0 como e em que horarios se come e tao importante como

o que se come (ja em 1952, Arnold Palmer estudava a questao

da imporrancia dos horarios para se comer em Movable Feasts. A

Reconnaissance 0/ the Origins and the Consequences if Fluctuations in

Meal-Times). Alem destes temas, Food & Foodways tern publicado

colaborac;:oes variadas, destacando-se as incursoes para fora do

dominio europeu, com a presenc;:a de estudos e colaboradores

orientais, africanos e do mundo arabe.

Os veios principais da historiografia da alimentac;:ao que viemos

perseguindo se preocuparam, inicialmente, no periodo anterior aSegunda Guerra Mundial, com a "fome que grassou no passado e

suas relac;:oes com a conjuntura economica, 0 movimento dclico

dos prec;:os,a produc;:ao agricola e a demografia", enfocando a ali-

mentac;:ao a partir de sua analise a luz da hist6ria economica.I5

Nas decadas de 1960-1970 buscou-se, a partir de urn vies

nutricionista, conhecer "as carencias e os desequilibrios alimen-

HENRIQUE CARNEIRO

148

Page 156: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

tares fora dos periodos de crise". A determinas:ao 0 mais exata

possivel das ras:6es cal6ricas, das propors:6es dos gliddios, pro-

tidios e lipidios, da presens:a de vitaminas e de elementos mine-

rais constituiu urn desafio que nao pode ser efetivamente reali-

zado dada a imprecisao dos metodos e das Fontes. De qualquer

forma, esse periodo conheceu tambem urn volumoso numero de

estudos monograficos locais e regionais que permitiu uma acu-

mulas:ao de dados, particularmente sobre os paises europeus nas

epocas moderna e contempod.nea. T ais pesquisas permitiram

"que se elaborasse urn atlas hist6rico das plantas cultivadas, 0

estudo da quantidade de as:ougues em certas areas rurais ou 0

dlculo do consumo de carne por habitante em varias cidades

medievais e modernas C ... ) ou, ainda, 0 estudo da estatura dos

soldados" . I 6

Outra orientas:ao, mais Hculturalista", desenvolveu-se a par-

tir das investigaS:6es antropol6gicas, preocupadas com" as pre-

ferencias alimentares, a significas:ao simb6lica dos alimentos, as

proibis:6es dieteticas e religiosas, os habitos culinarios, 0 com-

portamento a mesa e, de uma maneira geral, as relas:6es que a ali-

mentas:ao man tern, em cada sociedade, com os mitos, a cultura e

as estruturas sociais". I7 Entre os historiadores da alimentas:ao

COMIDA E SOCIEDADE

149

Page 157: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

tal enfoque, de uma historia cultural da alimentas:ao, so tomou

corpo a partir do final dos anos 70.

a balans:o de Flandrin & Montanari considera que amadure-

ceu uma nova his tori a da alimentas:ao, produzida a partir de

multiplos pontos de vista, superando a "pequena historia do pi-

toresco e do tragico" contra a qual as pioneiros dos Annales se

manifestaram. A historia da alimentas:ao inscreve-se como urn

objeto de pesquisa que nao e mais "diferente" au "alternativo",

mas que agrega e integra diferentes vertentes para produzir urn

conhecimento dos comportamentos alimentares.

Das tres perspectivas de estudo que Maurice Aymard havia

apontado em 1975 para a historia da alimentas:ao - a psicossocio-

logica, a macroeconomica e ados estudos dos valores nutricionais

- evidencia-se, segundo a balans:o de Flandrin & Montanari, que a

primeira e a que mais vicejou. Tal balans:o talvez reflita a emergen-

cia, desde a inkio dos anos 80, de estudos sabre as mentalidades e

a imaginario, simulranea a uma certa crise da historia economica.

Tal separas:ao, no entanto, nao pode ser vista como absoluta, ha-

venda auto res, Sidney Mintz par exemplo, que dedicaram suas

obras a busca de uma compreensao dos processos economicos (0

comercio do as:ucar, par exemplo) a partir do seus significados cul-

turais, como representas:6es coletivas de gostos e identidades.

Da mesma forma, a tema da fame, emergente des de a se-

gundo pos-guerra, a partir das iniciativas pioneiras do cien-

HENRIQUE CARNEIRO

ISO

Page 158: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

tista social brasileiro Josue de Castro, tern motivado pesqui-

sas academic as multiplas. Nos anos 70, a realiza'tao da confe-

rencia de Roma, da FAO, suscitou inumeros trabalhos sobre

o tema, entre os quais e destacavel 0 de Susan George. 18 Entre

1986-87 realizou-se na Brown University, nos Estados Uni-

dos, 0 Seminario sobre Historia da Fome (Hunger History Seminar),

propondo-se a estudar a fome nas divers as epocas da humani-

dade.I9 Conforme reconhecem, com certa ironica amargura,

Sara Millman e Robert W. Kates, participantes desta antolo-

gia, "a historia da fome na sua maior parte ainda nao foi es-

crita. Os famintos raramente escrevem historia, e os historia-

dores raramente SaGfamintos". Outra antologia sobre 0 mes-

mo tema, e ate com 0 mesmo nome, Hunger in History, foi or-

ganizada por Rotberg e Rabb (1985). Mais recentemente,

Mike Davis, professor de teoria urbana no 1nstituto de

Arquitetura do SuI da California publicou Holocaustos coloniais

(2002) sobre a rela'tao entre as grandes fornes, as mudan'tas

climaticas globais em escala milenar e a expansao dos imperia-

lismos europeus no final do seculo X1X.2o A historiografia

20 No Brasil, a revista Ciincia HOje. de maio-junho de 1994, abordou quest6es ligadasa nutri~ao e alimenta~ao, dedicando uma edi~ao especial ao tema da fome, intitulada"Fome ate quando?".

COMIDA E SOCIEDADE

151

Page 159: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

da alimenta<;:ao tambem abordou, como parte intrinseca do

seu objeto, a hist6ria da fome.

Duas advertencias de Robert Philippe, no primeiro numero

da revista Annales E.S. C. que tratou sistematicamente desse

tema, em 196 I, permanecem vigentes para a hist6ria geral da

alimenta<;:ao. E preciso partir da analise das cifras atuais, da

compreensao de como nos alimentamos hoje, inclusive como

meio de superar as carencias que se agravam na atualidade,

para dai partir para os estudos de epoca com urn marco de refe-

rencia comparativa. E e preciso demarcar as vastas e facilmente

ultrapassaveis fronteiras desse territ6rio ainda inexplorado em

muitas areas.

tos sociais e economicos de realidades nutricionais, mesmo por-

que as realidades do consumo alimentar de epocas passadas sao

sempre estimativas e, muitas vezes, aproxima<;:oes relativas por

inferencias de Fontes hist6ricas de diferentes naturezas. Razao

pela qual Robert Philippe critic ava, no artigo supracitado, uma

tese (White, 196 I) que se propunha a explicar 0 impulso eco-

nomico, a expansao demogdfica urbana e rural e as transforma-

<;:oesarquiteturais e intelectuais do seculo X, como sendo 0 re-

sultado dire to de urn brusco enriquecimento na alimenta<;:ao no

Ocidente devido a ado<;:aode uma inedita rota<;:ao anual das cul-

turas e de urn desenvolvimento da cultura das leguminosas.

HENRIQUE CARNEIRO

152

Page 160: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

Como balans:o do percurso e do esragio atual da historiogra-

fia da alimentas:ao podemos verificar que, apos as iniciativas de

alguns cla.ssicosprecursores, tanto no enfoque universalista de

A. Maurizio (1932) au D. Bois (1927) como nos enfoques mo-

nograficos de alimentos especificos, como par exemplo Sala-

man (1949) com a batata, conheceram-se algumas iniciativas

historiograficas academicas impulsionadas pdas revistas Annales

E.S. C. e Food & Foodways, e par universidades espalhadas par

todo a mundo, mas principalmente na Europa e nos Estados

Unidos. Com a produs:ao de urn imenso volume de monografias

historicas regionais, nacionais, au de alimentos especificos,

acrescido aos estudos produzidos pda Antropologia e pda So-

ciologia da Alimentas:ao, vem se consolidando urn dominio teo-

rico de estudos interdisciplinares: a da alimentas:ao. Sua maturi-

dade pode ser medida pdo surgimento de periodicos cientificos

especializados; pda realizas:ao de encontros, coloquios e semi-

narios; pda publicas:ao de uma volumosa produs:ao de analise

historic a, antropologica e sociologica da alimentas:ao e, particu-

larmente, pda organizas:ao de antologias (Mars, 1993), dicio-

narios (Craplet, 1979, e Appfelbaum et alli, 1981), compendios

(Bennet, 1954) e cronologias (Trager, 1995) de historia da ali-

mentas:ao.

o eixo dessa onda de estudos academic as sabre as diversos

angulos do fenomeno da alimentas:ao passa certamente pda

COMIDA E SOCIEDADE

153

Page 161: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

Fran<;:a, pelos Estados Unidos e pela Inglaterra, paises onde,

desde a final do seculo XIX, vem se publicando obras de histo-

ria da alimenta<;:ao. Na America Latina, temos ao menos urn

grande estudo classico para cada pais, em geral dos anos 40. A

constitui<;:ao das identidades nacionais parece sempre incorpo-

rar como urn de seus signos decisivos a identidade alimentar e,

sobretudo, culinaria de urn pais.

HENRIQUE CARNEIRO

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Page 162: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

A HISTORIOGRAFIA DA

ALIMENTA<;:AO NO BRASIL

No Brasil, nao temos ainda uma historiografia exaustiva da

alimenta~ao nacional e das divers as regioes do pais. Durante

cerro periodo, dois dos maiores estudiosos brasileiros neste as-

sunto - Josue de Castro e Luis da Camara Cascudo - concebe-

ram a ideia de escreverem juntos uma obra com a ambi~ao de ser

a historia da alimenta~ao no Brasil. Mas, como relata Cascudo

no prefacio de Historia da Alimentafao no Brasil que ele proprio es-

creveu nos anos 60, a empreitada comum com Josue de Castro

frustrou-se, talvez porque 0 grande medico, sociologo e geogra-

fo pernambucano tratasse da fome, e 0 folclorista potiguar esti-

vesse mais interessado em comida.

Os maiores historiadores da alimenta~ao no Brasil foram 0

antropologo Gilberto Freyre e 0 sociologo e folclorista Luis da

Camara Cascudo. 0 primeiro, em paginas nodveis ao longo de

toda a sua obra mas destacadamente no livro Nordeste (I 95 I),

onde des creve como 0 dominio da "sacarocracia" brasileira pro-

Page 163: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

duziu uma alimentas:ao edulcorada, com variada gama de doces

feitos da fusao do aplcar com as mais divers as frutas. 0 segun-

do, alem de escrever a obra mais completa sobre a alimentas:ao

no Brasil, exatamente a sua Historia da Alimentaft'io no Brasil (1967)

permeou 0 conjunto extenso de sua obra de referencias etnogri-

ficas, hist6ricas e gastronomicas sobre a alimentas:ao. Diversas

obras de Cascudo sobre a alimentas:ao merecem citas:ao: Sociolo-

gia do aptcar (197 I); PrelMio da cachafa (1968); e Cozinha cifricana no

Brasil (1964). Ele tambem organizou uma Antologia da alimentafi'io

no Brasil (1977), compilas:ao de textos de epoca, e de autores di-

versos, sobre variados aspectos do tema.

A obra de Cascudo abordou as contribuis:6es dos tres com-

ponentes - indigena, portugues e africano - para a genese da die-

ta brasileira tipica na epoca colonial. As especificidades regio-

nais da alimentas:ao brasileira foram objeto de divers as tentati-

vas de definis:ao de areas mais ou menos tipicas e homogeneas.

Josue de Castro referia-se a cinco grandes areas: a Amazonia, a

Zona da Mata, 0 Sertao, 0 Centro e 0 SuI. Joaquim Ribeiro

(1977) diferenciou cinco zonas, em funs:ao da base da alimenta-

s:ao: a do pirarucu e da tartaruga (Amazonia), a do peixe (lito-

ral), a da carne de cabrito (zona sertaneja), a da carne de porco

(zona agricola) e a do churrasco (zona do Pampa). Gilberto

Freyre, por sua vez, distinguiu as seguintes tradis:6es regionais: a

colonial mineira (sopas de legumes, lombos de porco, doces de

HENRI QUE CARNEIRO

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leite, requeijoes), a colonial baiana (azeite-de-dende, carurus,

vatapas, mingaus e moquecas), a as:oriano-brasileira do Rio

Grande do SuI e de Santa Catarina ( carne fresca e influencias es-

panholas), a colonial paulista (influencias indigenas assimiladas

por bandeirantes), a do Para e Amazonas (fortes influencias

amerindias) e a colonial nordestina (zona as:ucareira, comidas

de coco e quitutes de mandioca, doces de frutas, compotas, pitu,

sururu, lagosta e peixe).

Podemos resumir estas classificas:oes a dois grandes comple-

xos alimentares coloniais: 0 litoraneo da mandioca e do peixe, e

o sertanejo, interiorano, do milho e do porco. Duas farinhas

como protagonistas principais: a da mandioca e a do milho, e

suas variadas formas de preparo e acompanhamento. No litoral:

pido, tapioca, mingau, moqueca, cauim. No sertao: angu, fuba,

canjica, cuscuz, pipoca, jacuba, alua, catimpuera. 0 charque, 0

feijao-de-tropeiro e 0 arroz-de-carreteiro enriqueceram espe-

cialmente 0 complexo interiorano, na penetras:ao dos sertoes.

Durante toda a colonia, a expansao da civilizas:ao do as:ucar,

da sacarocracia, marcou nao s6 a economia, como os habitos ali-

mentares brasileiros. Rapadura e garapa. Aluas e capites (bebida

fermentada de milho). Doces de frutas cujas receitas Gilberto

Freyre recolheu em seu livro Af1'lcar(I939) e compotas que Luc-

cock, viajante ingles no Brasil em 18 I 7, chegou a lis tar, feitas de

29 diferentes frutas. 0 naturalista Frances Auguste de Saint-

COMIDA E SOCIEDADE

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Page 165: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

Hilaire escreveu em 1817: "em parte alguma talvez se consuma

tanto doce como na provincia de Minas; fazem-se doces de

uma multidao de coisas diferentes, mas, na maioria das vezes,

Minas Gerais foi 0 foco do entrecruzar-se de tropeiros, ban-

deirantes, garimpeiros, adaptando ao seu nomadismo e pouco

apego a agricultura uma culinaria baseada no feijao e no milho,

plantas de cultivo mais ficil, como mostrou Eduardo Frieiro em

Feijao, angu e couve (1967). Bamba de couve, galinha ao molho

pardo, vaca atolada, frango com quiabo sao alguns dos pratos

atuais que agregam os produtos e os preparos desta tradis:ao.2

Na Amazonia toda uma especificidade feita de tucupi, jambu,

api, castanhas e muitos peixes e animais de cas:a. No Parana, os

pinhoes, 0 mate, e outras herans:as guaranis. Em Goias e no imen-

so cerrado, 0 reino do pequi.3 No suI, a especializas:ao da ativida-

2 Vide sobre Minas: Maria Stella Libanio Christo, Foglio de lenha. 300 anos da cozinha

mineira (1986), "0 Gosto e a Necessidade. Em tomo da cozinha mineira do seculoXVIII" (1998), de Jose Newton Coelho Meneses, e a tese de mestrado inedita deMonica Chaves Abdala, A cozinha e a constTUflio da imagem do mineiro (Dept. de Sociologia,USP, 1994).

3 Vide sobre a Amazonia, Jose Proenza Brochado, Alimentaflio na floresta tropical

(1977); sobre Goias, Bariani Ortencio, Cozinhagoiana. Estudo e rectitutirio (1981); sobreo Parana, Carlos Roberto Antunes dos Santos, Historia da alimentaflio no Paranti (1995);e sobre 0 pequi do cerrado, Ricardo Ferreira Ribeiro (2000).

HENRIQUE CARNEIRO

158

Page 166: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

de economica na pecuaria trara ao prato, ou melhor, as maos, 0

boi assado, 0 churrasco. 0 Nordeste foi onde melhor se fundiram

os tres componentes etnicos da cozinha brasileira, com os escra-

vos negros deixando na Bahia a comida de santo, feita de generos

de origem africana como 0 quiabo, generos americanos translada-

dos para a Africa como as pimentas, e denominada em ioruba (0

acaraje, por exemplo, vem do termo akkra usado para designar urn

tipo de bolinho frito na Nigeria e no Benin)'

Muitos estudos de alimentas:ao no Brasil se mscrevem na

perspectiva do esrudo hist6rico da sociedade rural e das estrutu-

ras agricolas no Brasil, numa linhagem cujos pioneiros sao Ma-

ria Yedda Linhares e Francisco Teixeira da Silva, com Hist6ria da

agricultura brasileira (combates e controversias) (1981). Outros traba-

lhos de Maria Yedda Linhares, como Hist6ria do abastecimento

(1979), fornecem fundamento indispensavel para uma sintese

da hist6ria da alimentas:ao brasileira, a partir do angulo da in-

vestigas:ao sobre os modos de produs:ao, comercio e distribui-

s:aodos generos alimenticios em diferentes regioes e periodos.4

Sergio Buarque de Holanda envereda por distintos aspectos

da alimentas:ao na formas:ao brasileira, enfocando 0 usa do me!,

as iguarias indigenas, os trigais em Sao Paulo colonial e, especial-

mente, "a civilizas:ao do milho" para discutir a importincia do

4 Assim como 0 abastecimento da capitania das Minas Gerais no siwlo X VIII, tese de douto-rado de Mafalda P. Zemella. de 1951. mas s6 publicada em 1990.

COMIDA E SOCIEDADE

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Page 167: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

seu "complexo", que inclui divers as tecnicas, como a do monjo-

10, na penetra~ao interiorana do Brasil.s 0 historiador pernam-

bucano Evaldo Cabral de Mello tambem trata do papel da ali-

menta~ao durante a guerra contra a ocupa~ao holandesa, no ca-

pitulo "Muni~ao de Boca", do seu livro classico Olinda restaurada

(1975). Certamente existem muitos outros estudos de carater

local e regional de que nao temos noticia e cuja divulga~ao seria

util para a acumula~ao de uma historiografia extensiva, unica

maneira de se chegar a urn conhecimento geral da historia da ali-

menta~ao brasileira. Da me sma forma, num ambito mais amplo,

contribuem para uma historia da alimenta~ao os estudos de his-

toria da agricultura e do abastecimento, entre os quais se incluem

aqueles que tratam dos generos particulares da agroexporta~ao

brasileira, como 0 cafe6 e 0 a~ucar, por exemplo.

Entre outros autores que buscaram urn estudo geral dos pro-

blemas da alimenta~ao brasileira, de urn angulo mais sociologi-

co e dietetico, encontra-se 0 medico Antonio da Silva Mello, es-

pecialmente em A alimentafiio no Brasil (I946), defensor, desde os

anos 40, da ado~ao de uma alimenta~ao a base de soja, leite em

po e arroz integral. No ambito do registro folclorico, quase

6 Entre os Iivros sobre 0 cafe no Brasil e indispensavel citar Historia do (ifi (1939), deAlfredo de Taunay, Roteiro do (ifi (1938), de Sergio Milliet. e 0 (ifi na Historia, nofol-clore e "as be/as-artes (1980). de Basilio de Magalhaes.

HENRIQUE CARNEIRO

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Page 168: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

toda pesquisa revela elementos ligados a alimentas:ao, e 0 folc1o-

rista Mario Souto Maior, em Alimentafao efolclore (1988), reuniu

urn numero consideravel de proverbios, ditos, crenps e referen-

cias populares relativos a comida. Mais recentemente, Maria

Jose de Queiroz escreveu dois interessantes ensaios hist6ricos e

literarios sobre a alimentas:ao.7

No interior de importantes estudos sobre a vida cotidiana

publicados no Brasil, tambem encontram-se capitulos que tra-

tam da alimentas:ao, como os livros de Maria Beatriz Nizza da

Silva: Cultura e sociedade no Rio de Janeiro (1808-1821) (1978),

cujo primeiro capitulo trata de "Habitos alimentares"; e Vida

privada e quotidiano no Brasil na epoca de D. Maria e D. Joao VI (I 993),

que tambem tern urn capitulo sobre "T radis:5es alimentares e

culinirias". Outro livro de hist6ria da vida cotidiana que aborda

e destaca em tres capitulos a questao da alimentas:ao e Cotidiano e

solidariedade. Vida diaria da gente de cor nas Minas Gerais. Siculo X VIII

(1994), de Julita Scarano. Alem destes livros, contudo, e das

obras c1assicas de Gilberto Freyre, Camara Cascudo e Josue de

Castro, encontram-se poucos estudos hist6ricos mais gerais so-

bre a alimentas:ao no Brasil. Numa compilas:ao recente sobre a

historiografia brasileira, embora Maria Odila Leite da Silva

Dias ressalte que "a historiografia contemporanea tern produzi-

7 A comida e a cozinha ou iniciafiio if arte de comer, Rio de Janeiro, Forense-Universitaria,1988; e A literatura e ogozo impuro da comida, Rio de Janeiro, Topbooks, 1994.

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do trabalhos interessantes sobre hist6ria social da comida e da

distribuis:ao local dos generos alimenticios em varios paises da

America Latina, que sugerem pontos interessantes de confronto

e temas por e1aborar",8 nao se refere a nenhum estudo brasilei-

ro, citando apenas os estudos latino-americanos mais gerais de

John C. Super e alguns outros espedficos sobre 0 Mexico.

Urn importante levantamento de Fontes primarias ute is para

a hist6ria da alimentas:ao brasileira, publicado recentemente

pe10 Museu da Casa Brasileira, sob coordenas:ao geral de Marle-

ne Milan Acayaba, e 0 Equipamentos, usos e costumes da casa brasileira

(2000) (Fichario Ernani Silva Bruno), reorganizado em cinco

volumes, sendo 0 primeiro, organizado por Carlos Alberto Ze-

ron, a respeito da alimentas:ao, em que se compilam referencias

em multiplas Fontes documentais (viajantes, cartas, literatura

ficcional, invenrarios ete.) sobre divers os aspectos da cultura

material e, particularmente, sobre alimentos e tipos de refeiS:6es

do passado brasileiro.

A analise destas referencias a alimentas:ao no passado brasilei-

ro permite distinguir momentos diferenciados na aprecias:ao es-

trangeira das nossas caracteristicas mais marcantes. Se, no pri-

meiro e ate no segundo seculo da colonizas:ao havia urn fasdnio

desmedido pela abundancia de generos, pe1a fecundidade da

HENRIQUE CARNEIRO

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terra (" em se plantando tudo da") e pe1a amenidade do c1ima,

no seculo XIX os cronistas destacam sempre a inferioridade dos

produtos locais diante dos seus congeneres europeus. Como es-

creve Carlos Alberto Zeron (2000:33), "ao alinhar diferentes

percep~oes sobre urn mesmo alimento ( ...) 0 maravilhamento e

o afa descritivo dos primeiros cronistas do seculo XVI so en-

contra urn parale1o, longinquo, na curiosidade cientifica do se-

culo XIX". Outro aspecto notive1 e que os viajantes "tend~m a

ver pouca diferen~a nos modos e habitos alimentares de ricas e

pobres ( ...) feijao, toicinho e farinha estao presentes em todas as

refei~oes" (idem, 40-38). Nao obstante, em divers as regioes 0

tipo de alimenta~ao servia para afirmar diferen~as sociais. Em

Ouro Preto, Minas Gerais, por exemplo, os habitantes eram

chamados respectivamente de "jacubas" (bebida feita com agua

e farinha de milho) ou "mocotos" conforme residissem na parte

mais pobre ou mais nobre da cidade.

A amplitude dos ingredientes usados nas varias regioes bras i-

leiras caracterizou diversos pratos de tradi~ao generalizada, mas

de componentes distintos em cada lugar: os caldos podiam con-

ter animais (galinhas, tartarugas, macacos, papagaios, peixes),

mas a carne mais consumida era a de porco, alem da carne-seca e

dos peixes. Os mingaus (palavra tupi) eram feitos de a~ai, araru-

ta, arroz, banana, farinha, milho, pupunha; os oleos, manteigas e

azeites podiam obter-se de abatiputi, a~ai, amendoim, camuru-

COMIDA E SOCIEDADE

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Page 171: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

pi, coco, gergelim, jau, jabuti, macauba, pataua, peixe-boi, pin-

doba, tartaruga; os ovos, de uma infinidade de aves e rt'pteis; as-

sim como os vinhos e as aguardentes de urn imenso leque de fru-

tas, raizes e graos.

As importantes mudans:as ocorridas nas ultimas decadas,

com a acentuada internacionalizas:ao do comercio e da cultura

mundiais, incluem alteras:oes nos habitos alimentares tanto no

aspecto da diversificas:ao dos produtos consumidos como no

das formas sociais desse consumo. 0 advento dos restaurantes

por quilo, que possibilitaram uma difusao mais ampla de pro-

dutos como sushis ou salmao, das polpas congeladas de frutas

amazonicas, como api, cupuas:u ou graviola, de novas frutas

ex6ticas, como kiwi, lichia, mangostin etc., assim como os im-

pactos dos sistemas de jast:food, ainda nao foram examinados em

todas as suas consequencias economicas, sociais e culturais no

Brasil, havendo maior atens:ao apenas para os aspectos nutricio-

nais abordados pelo angulo biomedico.

HENRIQUE CARNEIRO

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Page 172: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

Escrever a hist6ria da alimentas:ao exige situar as diferentes

formas de alimentas:ao nas variadas camadas sociais de todas

as epocas. 0 esfors:o desencadeado por diversos historiadores,

entre os quais, destacadamente, os da revista Annales, tomou a

hist6ria da alimentas:ao como uma hist6ria cujo objeto tern

"posis:ao estrategica no sistema de vida e de valores das diver-

sas sociedades", I com a possibilidade, portanto de, a partir

deste lugar central, poder abras:ar todas as variaveis possiveis

da existencia humana. T alvez essa ambis:ao seja desmedida,

mas e certo que, de todas as esferas da cultura material, a ali-

mentas:ao e uma das que mais se infiltra em todos os niveis da

vida social.

Na historiografia, como podemos verificar na bibliografia

apresentada ao final, vem se acumulando urn conjunto ja vasto

Page 173: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

de estudos sobre alimentos espedficos, sobre regioes, paises e

epocas determinadas, assim como esfors:os de sinteses mais ge-

rais. Da Pre-Historia a epoca contemporanea, nao hi periodo

ou regiao a que nao tenha sido dedicado algum estudo relativo aalimentas:ao.

Como viemos examinando neste texto, e impossivel fala! ~e

uma historia da alimentas:ao sem referir-se permanentement~ a

todos os aspectos da historia social, economica e cultura.1. .o~objetos historicos saD recortes da realidade, saD recurs os analiti-

cos que servem para decompor 0 processo social em diferelltes

dimensoes que nos of ere cern uma riqueza multipla de informa-

s:oes sobre aspectos da realidade, mas que devem ser compreen-

didos integrados no conjunto da vida, que e simultaneamente

social, economica e cultural. Somente restituindo. os objetos

historicos - como a alimentas:ao, por exemplo - a essa integrali-

dade, e que uma his tori a "total" podera bus car compreende.-IQs.

A alimentas:ao e assim urn fato da cultura material, da jn-

fra-estrutura da sociedade; urn fato da troca e do comercio, da

historia economica e social, ou seja, parte da estrutura produtiva

da sociedade. Mas tambem e urn fato ideologico, das represen-

tas:oes da sociedade "- religiosas, artisticas e morais - ou seja, urn

objeto historico complexo, para 0 qual a abordagem cientifica

deve ser multifacetada. Somente assim podemos compreender a

nos:ao de urn "campo" ou de urn "dominio" historiografico, q~

HENRIQUE CARNEIRO

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Page 174: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

se constituiu na esteira de estudos de diferentes disciplinas e

proveniencias.

A hist6ria da alimenta~ao vem sendo escrita com uma ati-

vidade minuciosa de busca de fontes, da sua critic a e da sua

compara~ao, e com slnteses anal1ticas mais gerais que bus earn

compreender habitos e consumos arraigados, assim como a

l6gica social distributiva que controla a dialetica da fome e

da propriedade dos alimentos, alem de todas as manifesta-

~oes culturais que perpassam 0 mero consumo dos vlveres

para torna-los algo mais do que simples alimentos flsicos:

produtos alimentares transubstanciados em slmbolos que

vao desde as h6stias sagradas do pao que representa a divin-

dade crista ate os frutos proibidos que cada cultura sempre

fez questao de determinar.

Seja como a hist6ria poHtica e social da luta contra a fome,

como uma parte da hist6ria economica, agricola e comercial; ou

como parte da hist6ria das religioes em seu ordenamento mlti-

co, proscritivo e prescritivo dos alimentos; como parte, tam-

bern, da hist6ria da ciencia, de suas teorias medicas nutricionais

e seus prindpios dieteticos; ou como parte da hist6ria da arte e

das sensibilidades, onde a evolu~ao do gosto e da literatura gas-

tronomica encontra referencia nas concep~oes esteticas mais ge-

rais; ou ainda, finalmente, como parte da hist6ria das tecnicas

ou da dimensao material da cultura, no qual os habitos alimenti-

COMIDA E SOCIEDADE

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Page 175: LIVRO CARNEIRO Henrique Comida e Sociedade_uma História Da Alimentação

cios sao decifrados como chaves reveladoras de toda a trama so-

cial de sociedades literalmente enterradas sob grossas camadas

de detritos, 0 campo historiografico da hist6ria da alimentas:ao

tern se constituido nas ultimas decadas como uma sintese multi-

HENRIQUE CARNEIRO

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