livro cuidado paliativo cremesp

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CREMESP Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo 2008 C C CU U UI I ID D DA A AD D DO O O P P PA A AL L LI I IA A ATIV TIV TIV TIV TIVO O O

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C U I DA D O PA L I ATIVO

CREMESPConselho Regional de Medicina do Estado de So Paulo 2008

CUIDADO PALIATIVOPublicao do Conselho Regional de Medicina do Estado de So Paulo (Cremesp) Rua da Consolao, 753 Centro So Paulo SP CEP 01301-910 Telefone (11) 3017-9300 www.cremesp.org.br e www.bioetica.org.br Coordenador Institucional Reinaldo Ayer de Oliveira Realizao Grupo de Trabalho em Cuidados Paliativos do Cremesp Coordenador do Departamento de Comunicao do Cremesp Nacime Salomo Mansur Apoio Editorial Conclia Ortona (jornalista. Mtb 19.259) Dinaura Paulino Franco (bibliotecria) Andra Pioker (secretria) Reviso Leda Aparecida Costa Clia Cristina Silva Augusto Arte e Diagramao Jos Humberto de S. Santos Foto da capa Osmar Bustos

Cuidado Paliativo / Coordenao Institucional de Reinaldo Ayer de Oliveira. So Paulo: Conselho Regional de Medicina do Estado de So Paulo, 2008. 689 p. Vrios colaboradores ISNB 978-85-89656-15-3 1. Cuidado paliativo 2. Biotica I. Oliveira, Reinaldo Ayer (Coord.) II.Ttulo III. Conselho Regional de Medicina do Estado de So Paulo NLM WB310

APRESENTAOHenrique Carlos Gonalves Presidente do Cremesp

Nas ltimas dcadas os mdicos tm se dedicado a desconstruir crenas e hbitos vinculados carreira, que, apesar de embasados nas melhores intenes e no conhecimento da poca especfica, tornaram-se defasados frente realidade dos atendimentos sanitrios. Admite-se, por exemplo, que as tcnicas modernas destinadas a recuperar a sade do paciente so importantes mas no exclusivas no amplo contexto da teraputica disponvel: esta se torna incompleta se no houver olhares compassivos, especialmente, quando as chances de cura so limitadas. Tambm se reconhece que o mdico no um profissional isolado ou o nico a responder pela ateno prestada aos pacientes. um dos participantes de uma equipe multidisciplinar, em que cada qual desempenha uma funo particular e valiosa. Esses dois itens considerar o atendido como um todo, e no como simples objeto de estudo ou um ser segmentado, e reconhecer a importncia de um trabalho harmonioso em grupo, com representantes de outras carreiras em Sade figuram entre os aspectos enfatizados nessa rea to promissora e em franco crescimento no Brasil voltada aos Cuidados Paliativos. O livro ora apresentado, ao qual o Cremesp tem o orgulho de coordenar, esmia particularidades presentes nesta modalidade de cuidado, cuja nfase dirige-se ainda a vrias outras demandas, dentre as quais, preveno do sofrimento do doente e de seus familiares; valorizao e ateno ao seu cuidador; e necessidade de comunicao de qualidade, mesmo em assuntos to difceis de se lidar, como a proximidade da morte.

Na obra Cuidado Paliativo, do Cremesp, autores com vasta experincia na rea dedicam-se a esclarecer mincias do atendimento a pacientes fora de possibilidade de cura, por meio de captulos abordando desde a legislao em torno do tema at medidas prticas de higiene, conforto, sedao, nutrio e hidratao, entre tantas outras. A ns, mdicos, os Cuidados Paliativos reforam que nunca utpica a aplicao do Art. 2 dos Princpios Fundamentais de nosso Cdigo de tica, segundo o qual o alvo de toda a ateno do mdico a sade do ser humano, em benefcio da qual dever agir com o mximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional. Enfim, a filosofia trazida aqui nos ensina, pgina a pgina, que a guerra contra a dor e a morte jamais pode ser considerada como perdida: em todos os estgios da vida humana h, sim, o que ser feito, para garantir que a trajetria dos nossos acompanhados mantenha-se digna e amparada. Do incio ao fim da vida.

Boa leitura!

UM LIVRO, UMA HISTRIAGrupo de Trabalho Sobre Cuidados Paliativos do Cremesp

O incio: no final de 2005 o Conselho Regional de Medicina do Estado de So Paulo (Cremesp) promoveu reunio sobre Terminalidade da Vida, convidando pessoas com interesse no tema. Foi grande o entusiasmo e a vontade dos participantes em dar continuidade ao debate e, sobretudo, em ampliar as discusses ali ocorridas, com a introduo do tema Cuidados Paliativos. De forma preliminar e informal aconteceram novos encontros com representantes de diferentes formaes que, de alguma maneira, atuavam na rea de Cuidados Paliativos. Em geral, estes foram simpticos idia de constiturem-se em um grupo de trabalho, com o objetivo de estudar de que maneira o Cremesp poderia atuar no verdadeiro movimento que estava se concretizando. De fato, existia empenho e boavontade de cidados e grupos em torno das proposies e prticas na rea da sade, direcionadas ao atendimento dos chamados pacientes fora de possibilidades de cura. Inicialmente a idia era elaborar um manual com normas e/ou condutas em Cuidados Paliativos; depois, a inteno chegou mais longe: esboar-se uma Resoluo do Cremesp sobre a necessidade de implantar, de forma sistemtica, servios de Cuidados Paliativos em instituies de sade. Concordando com tal tendncia, em dezembro de 2005 o Cremesp deliberou formalmente pela constituio do Grupo de Trabalho Sobre Cuidados Paliativos. O mtodo: a cada quinze dias era promovida reunio que agregava entre 20 e 30 representantes de diferentes reas do conhecimento em sade, ocasio voltada a traar um slido plano de atividades que inclua a apresentao e discusso de assuntos relacionados aos Cuidados Paliativos.

Cada tema era cuidadosamente defendido por um autor ou autora; em seguida, o texto era disponibilizado por via eletrnica a todos os que faziam parte da empreitada, comprometidos a opinar e a sugerir. Por meio de repetidas apresentaes e discusses os textos foram se aprimorado e o mais, o importante assumidos por todos. A disposio das pessoas, o respeito pela produo coletiva e a qualidade do que estava sendo produzido levou o grupo a decidir: transformar o que seria um manual em um livro. Um livro sobre Cuidados Paliativos. A deciso foi acompanhada pela ampliao do nmero de membros. Os temas tornaram-se captulos com diferentes contedos. Apesar de ser uma obra elaborada em equipe, concordando com o preceito biotico de respeito autonomia (e, em conseqncia, aos pontos de vista alheios), foi dada a possibilidade de que autores e co-autores adotassem seu prprio estilo de escrita e inserissem, ao final dos artigos, a forma que julgassem mais apropriada de referenciar as bibliografias. O resultado: um livro escrito por autores e autoras com larga experincia em Cuidados Paliativos e com o rigor metodolgico e cientfico exigido para uma publicao de impacto na rea da sade, e, ao mesmo tempo, um livro democrtico e abrangente. Esperamos que todos tirem o melhor proveito possvel da obra, e que esta venha a se transformar em um incentivo a mais para que seja melhorada a qualidade de vida desses nossos atendidos, seus amigos e familiares, que enfrentam momentos to difceis mas, sob um outro enfoque, to especiais.

SUMRIO

PARTE 1 INTRODUOPREFCIO I II III DEFINIES E PRINCPIOS Maria Goretti Sales Maciel FALANDO DA COMUNICAO Maria Jlia Paes da Silva MULTIDISCIPLINARIDADE E INTERDISCIPLINARIDADE Relao dos Cuidados Paliativos com as Diferentes Profisses da rea da Sade e Especialidades Toshio Chiba Interface Intrnseca: Equipe Multiprofissional Lais Yassue Taquemori e Celisa Tiemi Nakagawa Sera Fisioterapia Celisa Tiemi Nakagawa Sera e Helena Izzo Enfermagem Maria Jlia Paes da Silva, Mnica Trovo Arajo e Flvia Firmino Fonoaudiologia Lais Yassue Taquemori Terapia Ocupacional Mnica Estuque Garcia de Queiroz Servio Social Letcia Andrade Psicologia Maria Helena Pereira Franco Farmcia Solange A. Petilo de Carvalho Bricola Nutrio Dorotia Aparecida de Melo Odontologia Mrcia Delbon Jorge, Dalton Luiz de Paula Ramos e Waldyr Antonio Jorge Assistncia Espiritual Eleny Vasso de Paula Aitken 7 11 15 33

46 55 58 61 64 67 69 74 77 81 83 87

IV

CUIDANDO DO CUIDADOR PROFISSIONAL Maria Julia Kovcs MODELOS DE ASSISTNCIA EM CUIDADOS PALIATIVOS Hospedaria Dalva Yukie Matsumoto e Mnica Ceclia Bochetti Manna Enfermaria Maria Goretti Sales Maciel Ambulatrio Toshio Chiba Assistncia Domiciliar Cludio Katsushigue Sakurada e Lais Yassue Taquemori PARTICULARIDADES EM CUIDADOS PALIATIVOS Pediatria Slvia Maria de Macedo Barbosa, Pilar Lecussan e Felipe Folco Telles de Oliveira Perodo Neonatal Slvia Maria de Macedo Barbosa, Jussara de Lima e Souza, Mariana Bueno, Neusa Keico Sakita e Edna Aparecida Bussotti Pacientes com HIV/Aids Elisa Miranda Aires, Ronaldo da Cruz e Andra Cristina Matheus da Silveira Souza UTI Ricardo Tavares de Carvalho e Ana Claudia de Lima Quintana Arantes

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V

102 108 115 120

VI

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PARTE 2 AESI II III IV V VI HIGIENE E CONFORTO Ivanyse Pereira, Celisa Tiemi Nakagawa Sera e Ftima Aparecida Caromano NUTRIO E HIDRATAO Ricardo Tavares de Carvalho e Lais Yassue Taquemori HIPODERMCLISE Ivanyse Pereira FARMACOTCNICA MAGISTRAL Solange Aparecida Petilo de Carvalho Bricola TRATAMENTO DE FERIDAS Flvia Firmino e Ivanyse Pereira CIRURGIA PALIATIVA Paulo Srgio Martins de Alcntara 195 221 259 273 283 309 337 355

VII AS LTIMAS 48 HORAS Clia Maria Kira VIII SEDAO PALIATIVA Smio Pimentel Ferreira 8

PARTE 3 CONTROLE DE SINTOMASI CONSIDERAES GERAIS Toshio Chiba DOR Avaliao e Tratamento da Dor Ana Claudia de Lima Quintana Arantes e Maria Goretti Sales Maciel Dor em Pediatria Felipe Folco Telles de Oliveira e Slvia Maria de Macedo Barbosa SINTOMAS RESPIRATRIOS Dispnia em Cuidados Paliativos Celisa Tiemi Nakagawa Sera e Mrcio Henrique Chaves Meireles Tosse, Broncorria e Hemoptise em Cuidados Paliativos Celisa Tiemi Nakagawa Sera e Mrcio Henrique Chaves Meireles SINTOMAS DIGESTIVOS Nusea e Vmito Toshio Chiba Constipao e Diarria Veruska Menegatti Anastcio Hatanaka Soluo Toshio Chiba Obstruo Intestinal Maligna Veruska Menegatti Anastcio Hatanaka EMERGNCIAS Hemorragias Dalva Yukie Matsumoto e Mnica Ceclia B. Manna Sndrome da Veia Cava Superior Dalva Yukie Matsumoto e Mnica Ceclia B. Manna Sndrome da Compresso Medular Dalva Yukie Matsumoto e Mnica Ceclia B. Manna FADIGA E ANOREXIA/CAQUEXIA Fadiga em Cuidados Paliativos Ana Cludia de Lima Quintana Arantes Sndrome da Caquexia/Anorexia Elisa Miranda Aires 365

II

370 392

III

410 416

IV

424 427 445 449

V

464 469 473

VI

478 484

VII ANSIEDADE, DEPRESSO E DELIRIUM Maria das Graas Mota Cruz de Assis Figueiredo

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PARTE 4 ESPIRITUALIDADE, MORTE E LUTOI ESPIRITUALIDADE EM CUIDADOS PALIATIVOS Luis Alberto Saporetti 9 521

II

ESPIRITUALIDADE E O PACIENTE TERMINAL Eleny Vasso de Paula Aitken MORTE NO CONTEXTO DOS CUIDADOS PALIATIVOS Maria Julia Kovcs LUTO EM CUIDADOS PALIATIVOS Maria Helena Pereira Franco

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III

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IV

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PARTE 5 ASPECTOS CONTEXTUAISI BIOTICA: REFLETINDO SOBRE OS CUIDADOS Reinaldo Ayer de Oliveira e Ricardo Tavares de Carvalho BIOTICA EM CUIDADOS PALIATIVOS Ricardo Tavares de Carvalho e Reinaldo Ayer de Oliveira EDUCAO EM CUIDADOS PALIATIVOS Clia Maria Kira, Marcos Montagnini e Silvia Maria de Macedo Barbosa LEGISLAO EM CUIDADOS PALIATIVOS Ricardo Tavares de Carvalho GARANTIA DE DIREITOS E ACESSO A BENEFCIOS: UMA PREOCUPAO DO SERVIO SOCIAL EM CUIDADOS PALIATIVOS Letcia Andrade e Ivone Bianchini de Oliveira PLANO DE DIRETRIZES PARA IMPLEMENTAO DE UM PROGRAMA DE CUIDADOS PALIATIVOS EM HOSPITAL GERAL Marcos Montagnini 573

II

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III

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IV

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V

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VI

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VII CUIDADOS PALIATIVOS FORA DOS GRANDES CENTROS Jussara de Lima e Souza, Silvia Maria Monteiro da Costa e Slvia Maria de Macedo Barbosa

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PARTE 6 ANEXOS

Controle de Outros Sintomas No-Dor Clia Maria Kira Fase Final de Vida Revendo Medicaes Clia Maria Kira Escala de Desempenho de Karnosfsky Escala de Desempenho de Zubrod Escala de Atividade de Vida Diria de Katz Mini-Exame do Estado Mental

663 674 676 677 678 680 684

AUTORES 10

PREFCIOProf. Dr. Marco Tullio de Assis Figueiredo

Ser convidado a prefaciar um livro , sem dvida alguma, uma grande honra. Mas no menor a responsabilidade. Cuidados Paliativos um assunto relativamente novo na rea da Sade, e no muito bem aceito tanto pela comunidade cientfica quanto pela leiga. Os profissionais que se dedicam a Cuidados Paliativos sofrem grande rejeio e descrena por parte dos prprios colegas. Em 1992, em Florianpolis, SC, ao participar como palestrante sobre osteosarcoma e tumor de Ewing, em Congresso de Oncopediatria, tive o primeiro contato com Cuidados Paliativos (tratava-se de um pequeno evento latino-americano). O que ali ouvi deixou-me fascinado com a filosofia hospice. Desde ento passei a ter contato freqente com os poucos profissionais brasileiros que militavam na rea. Em comum, todos tnhamos histrias sobre a atitude desdenhosa com que ramos agraciados pelos seus colegas. No fundo, sabamos que tal atitude era preconceituosa. Ora, preconceito sinal de ignorncia... E contra a ignorncia s existe um antdoto: a EDUCAO! Na poca eu ainda era professor de ps-graduao na Unifesp/EPM. Propus-me, ento, a procurar o Centro Acadmico da Unifesp. Ao lado de outros colegas, nos dispusemos a montar um curso multiprofissional em Cuidados Paliativos. Durante 13 anos, as aulas tiveram lugar sempre noite (3 a 4 dias), tendo como pblico os alunos da Unifesp e a comunidade. O objetivo principal era divulgar e inculcar nos futuros profissionais e nos membros da comunidade a cultura da solidariedade e do humanismo, cultura esta gradualmente perdida na proporo em que a Medicina e as demais profisses da Sade iniciavam e mantinham a sua espetaculosa progresso cientfico-tecnolgica, como vemos at os dias de hoje. Desde 1994 at hoje, a Unifesp abrigou os Cursos de Cuidados Paliativos e de Tanatologia do Diretrio Acadmico (transformados em Cursos de Extenso Universitria). Estes foram sendo, entre os anos de 1998 e 2007, gradualmente substitudos pelas Disciplinas Eletivas de Cuidados Paliativos e de Tanatologia, agora abertas aos estudantes da Graduao (anos pr-clnicos).11

Nestes cursos buscvamos seguir o conselho de Derek Doyle: Ns no podemos ser vistos como apenas sintomatologistas. Ns somos mdicos como os outros. Deixemos de lamentar as incompreenses de que somos vtimas. Ns que somos culpados de no saber convenc-los e de ensinar-lhes o significado de Cuidados Paliativos. Bem, passarei minha apreciao sobre este livro. Como eu j coordenara a montagem de uma seo de Cuidados Paliativos em obra de Clnica Mdica, sei muito bem o quanto de trabalho necessrio para levar a cabo a empreitada. Pacincia para facilitar a comunicao tripartite (coordenador x autor x editor), prazos sempre menores do que o desejado, disponibilidade insuficiente de tempo, impacincia do coordenador, brios e egos exaltados (qualidades e defeitos inerentes ao ser humano). E, por fim, aps muito sangue, suor e lgrimas (Churchill), eis a obra terminada! Foram-me enviados dezenas de captulos desta publicao que se tornara um verdadeiro compndio. Ao avali-los, conclu: parece-me que a inteno de informar ao leitor sobre o que so Cuidados Paliativos foi alcanada, embora com reservas. Compreender o leitor a filosofia de Cuidados Paliativos, sem uma bem-documentada descrio da biografia do enfermo e da famlia? Nada supera a fora da vivncia individual de cada doente e cada familiar interagindo com aquele profissional especfico e naquele contexto particular. E esta experincia nica, s a descrio de casos clnicos, em reunio entre as equipes, consegue transmitir... Nenhuma das Cincias da rea da Sade se beneficia tanto da palavra do doente/famlia quanto aos Cuidados Paliativos. Acima mesmo da palavra dos profissionais! Competncia, solidariedade, compassividade, humildade e comunicao individual e coletiva so essenciais equipe de Cuidados Paliativos. vlido destacar um item presente nesta publicao, ou seja, a Educao em Cuidados Paliativos na graduao universitria, extensiva, se possvel, tambm comunidade. Sem ela, em futuro prximo, no existiro profissionais em nmero suficiente para atender demanda de novas equipes e reposio das existentes, e nem prestar o indispensvel apoio para a comunidade. Finalmente, ainda uma lio de Derek Doyle: Quando ns, de pases desenvolvidos, formos convidados para palestras, simpsios etc, em pases em desenvolvimento, no deveremos dissertar sobre como atuamos, pois seremos julgados arrogantes. Deveremos, sim, aprender quais so as suas dificuldades e como eles lidam com elas.

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PARTE 1INTRODUO

CUIDADO PALIATIVO

IDEFINIES E PRINCPIOSMaria Goretti Sales Maciel

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DEFINIES E PRINCPIOS

Cuidado Paliativo a abordagem que promove qualidade de vida de pacientes e seus familiares diante de doenas que ameaam a continuidade da vida, atravs de preveno e alvio do sofrimento. Requer a identificao precoce, avaliao e tratamento impecvel da dor e outros problemas de natureza fsica, psicossocial e espiritual. OMS, 2002.

IntroduoEsta a definio mais recente da Organizao Mundial de Sade, publicada em 2002. S se entendem os Cuidados Paliativos quando realizados por equipe multiprofissional em trabalho harmnico e convergente. O foco da ateno no a doena a ser curada/controlada, mas o doente, entendido como um ser biogrfico, ativo, com direito a informao e a autonomia plena para as decises a respeito de seu tratamento. A prtica adequada dos Cuidados Paliativos preconiza ateno individualizada ao doente e sua famlia, busca da excelncia no controle de todos os sintomas e preveno do sofrimento (Quadro1). A primeira definio, publicada em 1990, descrevia os Cuidados Paliativos como os cuidados totais e ativos dirigidos a pacientes fora de possibilidade de cura. Este conceito foi superado porque torna subjetivo o entendimento do momento de decretar a falncia de um tratamento. O que podemos chamar em medicina de fora de possibilidades de cura? A maioria das doenas absolutamente incurvel: o tratamento visa ao controle de sua evoluo e para tornar essa doenas crnicas. Poucas vezes a cura uma verdade em medicina. Desta forma, aguardar que um paciente se torne fora de possibilidades de cura implicaria em duas situaes: ou todo doente deveria estar em Cuidados Paliativos, ou s se poderia encaminhar para Cuidados Paliativos, por critrio subjetivo do assistente, o doente em suas ltimas horas de vida. Esta segunda situao, a mais comum, implica em outro equvoco: pensar que os cuidados paliativos se resumem apenas aos cuidados dispensados fase final da vida, quando no h mais nada a fazer.16

CUIDADO PALIATIVO

A concomitncia da abordagem paliativa com o tratamento curativo perfeitamente vivel. Da mesma forma, aes paliativas desenvolvidas na fase do diagnstico e do tratamento de uma doena no exigem a presena de uma equipe especializada e podem ser desenvolvidas por qualquer profissional na rea da sade. medida que a doena progride e o tratamento curativo perde o poder de oferecer um controle razovel da mesma, os Cuidados Paliativos crescem em significado, surgindo como uma necessidade absoluta na fase em que a incurabilidade se torna uma realidade. H necessidade da interveno de uma equipe de profissionais adequadamente treinada e experiente no controle de sintomas de natureza no apenas biolgica, excelente comunicao, para que paciente e seu entorno afetivo entendam o processo evolutivo que atravessam, e conhecimento da histria natural da doena em curso, para que se possa atuar de forma a proporcionar no apenas o alvio, mas a preveno de um sintoma ou situao de crise. Na fase final da vida, entendida como aquela em que o processo de morte se desencadeia de forma irreversvel e o prognstico de vida pode ser definido em dias a semanas, os Cuidados Paliativos se tornam imprescindveis e complexos o suficiente para demandar uma ateno especfica e contnua ao doente e sua famlia, prevenindo uma morte catica e com grande sofrimento. A preveno continua sendo uma demanda importante neste perodo. Aes coordenadas e bem desenvolvidas de cuidados paliativos ao longo de todo o processo, do adoecer ao morrer, so capazes de reduzir drasticamente a necessidade de intervenes, como uma sedao terminal ou sedao paliativa. Outro conceito superado o do paciente que est fora de possibilidades teraputicas. Sempre h uma teraputica a ser preconizada para um doente. Na fase avanada de uma doena e com poucas chances de cura, os sintomas fsicos so fatores de desconforto. Para estes existem procedimentos, medicamentos e abordagens capazes de proporcionar um bem-estar fsico at o final da vida. Esta teraputica no pode ser negada ao doente. O caminho da informao adequada, da formao de equipes profissionais competentes, da reafirmao dos princpios dos Cuidados Paliativos e da demonstrao de resultados positivos desta modalidade de tratamento, constitui em a melhor forma de transpor barreiras ainda existentes para a implantao de uma poltica de Cuidados Paliativos efetiva e integrante de todas as polticas pblicas de sade.

HistriaPara entender a origem do termo Hospice, por muito tempo usado para designar a prtica dos Cuidados Paliativos, necessrio um pequeno mergulho na histria (Tabela 3).17

DEFINIES E PRINCPIOS

O termo foi primariamente usado para definir espcies de abrigos destinados ao conforto e a cuidados com peregrinos e viajantes. O relato mais antigo do Hospcio do Porto de Roma, sculo V, onde Fabola, discpula de So Jernimo, cuidava de viajantes oriundos da sia, frica e do Leste. (Cortes, 1988). Os Hospices medievais por sua vez abrigavam peregrinos e doentes, ao longo de trajetos conhecidos na Europa, como o caminho de Santiago de Compostela. Muitos deles morriam nestas hospedarias, recebendo cuidado leigo e caridoso. Instituies de caridade surgiram na Europa do sculo XVII e construram abrigos para rfos, pobres e doentes, uma prtica que se propagou por organizaes catlicas e protestantes em vrios pontos do continente, e que, no sculo XIX, comearam a ter caractersticas de hospitais, com alas destinadas aos cuidados de doentes com tuberculose e alguns com cncer. O cuidado a estes doentes era essencialmente leigo e voltado para o cuidado espiritual e tentativa de controle da dor. Foi num local como este, o St. Lukes Home, em Londres, que a enfermeira e assistente social inglesa Cicely Saunders foi trabalhar em meados do sculo XX. Inconformada com o sofrimento humano, estudou medicina, formou-se aos 40 anos de idade e dedicou-se ao estudo do alvio da dor nos doentes terminais. Cicely Saunders publicou artigos fundamentais em que descreve as necessidades destes doentes, difundiu o conceito da dor total e se tornou uma grande defensora dos cuidados a serem dispensados ao final da vida. (Secpal). Em 1967, Cicely fundou em Londres o St Christhofer Hospice e deu incio ao que se chama hoje de Movimento Hospice Moderno. A estrutura do St. Christopher permitiu no apenas a assistncia aos doentes, mas esforos de ensino e pesquisa, recebendo bolsistas de vrios pases (Pessini, 2005). No incio da dcada de 1970, o encontro de Cicely Saunders com a psiquiatra norte-americana Elizabeth Klber-Ross, nos Estados Unidos, fez crescer tambm l o movimento Hospice. O primeiro Hospice americano foi fundado em Connecticut em 1975 e, em 1982, uma lei americana permitiu o estabelecimento do que passa a se chamar Hospice Care e promoveu aes especialmente de cuidado domiciliar atravs de um sistema de reembolso (Foley, 2005, Klber-Ross,1998). Em 1982 o comit de Cncer da Organizao Mundial de Sade OMS criou um grupo de trabalho para definir polticas que visassem ao alvio da dor e aos cuidados do tipo Hospice para doentes com cncer e que fossem recomendveis a todos os pases. O termo Cuidados Paliativos passou a ser adotado pela OMS, em funo das dificuldades de traduo fidedigna do termo Hospice em alguns idiomas. Este termo j havia sido usado no Canad em 1975 (Foley, 2005). A OMS publicou sua primeira definio de Cuidados Paliativos em 1986:18

CUIDADO PALIATIVO

Cuidado ativo e total para pacientes cuja doena no responsiva a tratamento de cura. Controle da dor, de outros sintomas e de problemas psicossociais e espirituais so primordiais. O objetivo do Cuidado Paliativo proporcionar a melhor qualidade de vida possvel para pacientes e familiares. Esta definio, ainda referida por diversos autores, foi revisada em 2002 e substituda pela atual, com o objetivo de ampliar o conceito e torn-lo aplicvel a todas as doenas, o mais precocemente possvel. Ainda em 2002, dois documentos importantes foram publicados pela OMS: The Solid Facts of Palliative Care e Better Care of the Elderly. Ambos recomendaram os Cuidados Paliativos como estratgia de ao em sistemas nacionais de sade. Os Cuidados Paliativos saram da esfera do cncer para outras reas do conhecimento, como pediatria, geriatria, HIV/AIDS, doenas crnicas etc. (Davies, 2004; WHO, 2004). Muitos pases programaram suas aes ou iniciaram suas atividades entre 1999 e 2001. No Brasil, observou-se igualmente o surgimento de vrios servios nesta mesma poca. Atribuiu-se este crescimento publicao do estudo Support, em 1995, nos Estados Unidos. Este estudo multicntrico, realizado em cinco grandes hospitais norte-americanos, entre 1989 e 1994, envolveu cerca de dez mil pacientes portadores de doenas intratveis e prognstico de vida estimado em seis meses. O estudo apontou questes fundamentais no final da vida: a comunicao entre pacientes e familiares com a equipe de sade sobre o final da vida pobre; o custo da ateno no final da vida elevado e metade dos pacientes morre com dor moderada ou severa, sem nenhuma prescrio analgsica (Support, 1995). A sistematizao dos Cuidados Paliativos, a partir da criao do St. Christopher, tem 40 anos. O primeiro pas a reconhecer a medicina paliativa como especialidade da rea mdica (Reino Unido, em 1987) o fez h 20 anos, quase a mesma data da primeira definio publicada mundialmente. A definio moderna e as novas recomendaes completaram em 2007 cinco anos, fatos muito recentes na histria da medicina (Maciel, 2006).

Princpios dos Cuidados PaliativosOs Cuidados Paliativos baseiam-se em conhecimento cientfico inerente a vrias especialidades e possibilidades de interveno clnica e teraputica nas diversas reas de conhecimento da cincia mdica.Porm, o trabalho de uma equipe de Cuidados Paliativos regido por princpios claros, que podem ser evocados em todas as atividades desenvolvidas. Estes princpios tambm foram publicados pela OMS em 1986 e reafirmados em 2002 (WHO, 1990; 2004).19

DEFINIES E PRINCPIOS

Cuidado Paliativo: Promove o alvio da dor e de outros sintomas estressantes: Considere-se aqui os sintomas estressantes para o doente, principal foco da ateno. Reafirma a vida e v a morte como um processo natural: Condio fundamental para quem deseja trabalhar com Cuidados Paliativos ter sempre presente o sentido da terminalidade da vida. O que no significa banalizar a morte e nem deixar de preservar a vida. Porm, a compreenso do processo de morrer permite ao paliativista ajudar o paciente a compreender sua doena, a discutir claramente o processo da sua finitude e a tomar decises importantes para viver melhor o tempo que lhe resta. No pretende antecipar e nem postergar a morte: Porm, sabe que ao propor medidas que melhorem a qualidade de vida, a doena pode ter sua evoluo retardada. As aes so sempre ativas e reabilitadoras, dentro de um limite no qual nenhum tratamento pode significar mais desconforto ao doente do que sua prpria doena. Integra aspectos psicossociais e espirituais ao cuidado: Por este motivo o cuidado paliativo sempre conduzido por uma equipe multiprofissional, cada qual em seu papel especfico, mas agindo de forma integrada, com freqentes discusses de caso, identificao de problemas e decises tomadas em conjunto. Oferece um sistema de suporte que auxilie o paciente a viver to ativamente quanto possvel, at a sua morte: Este princpio determina a importncia das decises e a atitude do paliativista. Segui-lo fielmente significa no poupar esforos em prol do melhor bem-estar e no se precipitar, em especial, na ateno fase final da vida, evitando-se a prescrio de esquemas de sedao pesados, exceto quando diante de situaes dramticas e irreversveis, esgotados todos os recursos possveis para o controle do quadro. A sedao est indicada em situaes de dispnia intratvel, hemorragias incontroladas, delrium e dor refratria a tratamento (Doyle, 2000), o que, com todo o conhecimento atual de analgsicos e procedimentos adequados, situao rara. Oferece um sistema de suporte que auxilie a famlia e entes queridos a sentiremse amparados durante todo o processo da doena: Famlia em Cuidados Paliativos unidade de cuidados tanto quanto o doente. Deve ser adequadamente informada, mantendo um excelente canal de comunicao com a equipe. Quando os familiares compreendem todo o processo de evoluo da doena e participam ativamente do cuidado sentem-se mais seguros e amparados. Algumas complicaes no perodo do luto podem ser prevenidas. preciso ter a mesma delicadeza da comunicao com o doente, aguardar as mesmas reaes diante da perda e manter a atitude de conforto aps a morte. Deve ser iniciado o mais precocemente possvel, junto a outras medidas de prolongamento de vida, como a quimioterapia e a radioterapia, e incluir todas as investigaes necessrias para melhor compreenso e manejo dos sintomas: Estar20

CUIDADO PALIATIVO

em Cuidados Paliativos no significa ser privado dos recursos diagnsticos e teraputicos que a medicina pode oferecer. Deve-se us-los de forma hierarquizada, levando-se em considerao os benefcios que podem trazer e os malefcios que devem ser evitados (Piva, 2002). Comear precocemente a abordagem paliativa permite a antecipao dos sintomas, podendo preveni-los. A integrao do paliativista com a equipe que promove o tratamento curativo possibilita a elaborao de um plano integral de cuidados, que perpasse todo o tratamento, desde o diagnstico at a morte e o perodo aps a morte do doente.

Princpios do Controle dos SintomasA prtica dos Cuidados Paliativos baseia-se no controle impecvel dos sintomas de natureza fsica, psicolgica, social e espiritual. Os princpios do controle destes sintomas (Neto, 2006) se baseiam em:

Avaliar antes de tratar; Explicar as causas dos sintomas; No esperar que um doente se queixe; Adotar uma estratgia teraputica mista; Monitorizar os sintomas; Reavaliar regularmente as medidas teraputicas; Cuidar dos detalhes; Estar disponvel.

Os sintomas devem ser avaliados periodicamente e registrados de forma acessvel para todos os integrantes da equipe. Algumas escalas foram criadas com tal objetivo e a avaliao atravs de uma pontuao de zero a dez possvel de ser utilizada para avaliar vrios sintomas, sendo acessvel para toda a equipe. Em casa, o doente pode ter a ajuda de um familiar ou cuidador. O servio de Cuidados Paliativos de Edmonton, no Canad, elaborou um quadro de avaliao de sintomas, traduzido e adaptado por Neto 2006 (Tabela 1). A ateno aos detalhes imperativa. Cada sintoma deve ser valorizado, minuciosamente estudado, e, sempre que possvel, reverter uma causa do evento deve ser considerada como uma alternativa pela equipe. A abordagem de alvio do sintoma sem interveno em sua causa deve seguir o princpio da hierarquizao e da no-maleficncia. Antecipao de sintomas possvel quando se conhece a histria natural de uma doena, tarefa do mdico assistente. Medidas teraputicas jamais podem se limitar aplicao de frmacos. Todos os recursos no-farmacolgicos podem ser utilizados, desde que confortveis e aceitos pelo doente. Uma unidade de Cuidados Paliativos deve contar com recursos como: psicoterapia, acupuntura, massagens e tcnicas de21

DEFINIES E PRINCPIOS

relaxamento corporal, musicoterapia, terapia ocupacional, fisioterapia e acesso a procedimentos anestsicos e cirrgicos para alvio de sintomas. Individualizao do tratamento imperiosa, assim como a ateno a detalhes. O paliativista minimalista na avaliao e reavaliao de um sintoma. Cada detalhe tem como finalidade ltima o conforto e o bem-estar do doente. clssica a afirmao do Dr. Twycross: A primeira atitude aps iniciar o tratamento de um sintoma reavaliar. A segunda reavaliar e a terceira reavaliar (Twycross, 2003). O quadro clnico de um doente em fase final da vida pode se modificar vrias vezes durante o dia. A ateno a esta fase deve ser contnua e toda a equipe deve ser treinada para observar e alertar quanto a estas mudanas. Estar disponvel para apoiar o doente, tomar decises e conversar com familiares so caractersticas imprescindveis a todo o grupo.

Definies ImportantesA prtica dos Cuidados Paliativos deve ser adaptada a cada pas ou regio de acordo com aspectos relevantes como: disponibilidade de recursos materiais e humanos, tipo de planejamento em sade existente, aspectos culturais e sociais da populao atendida. Algumas definies sugeridas a seguir so frutos de discusses em grupos de trabalho, como o formado no Conselho Regional de Medicina do Estado de So Paulo e na Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP, 2007). No devem ter carter normatizador ou impositivo, mas podem servir como sugesto para a formulao de polticas locais de Cuidados Paliativos. Paciente terminal: O grupo do Cremesp sugere que se evite este termo por ser muitas vezes estigmatizante e capaz de gerar confuses. A literatura mundial o define de formas diferentes, como a existncia de doena incurvel, o perodo compreendido entre o final do tratamento curativo e a morte, ou, ainda, como a fase designada como processo de morte, que inclui duas fases distintas: ltimas semanas de vida e ltimas horas de vida. A sugesto que se designe: Paciente elegvel para Cuidados Paliativos: A pessoa portadora de doena crnica, evolutiva e progressiva, com prognstico de vida supostamente encurtado a meses ou ano. Em doenas de progresso lenta como o Mal de Alzheimer, algumas sndromes neurolgicas e determinados tipos de tumor, considera-se o perodo de alta dependncia para as atividades de vida diria, com possibilidade de um prognstico superior a um ano de vida. Corresponde a um perfil funcional igual ou inferior a 40% ou menos na escala de Karnofsky ou PPS (Tabela 2). Paciente em processo de morte: Aquele que apresenta sinais de rpida progresso da doena, com prognstico estimado a semanas de vida a ms.22

CUIDADO PALIATIVO

Fase final da vida: Aquele perodo em que supostamente o prognstico de vida pode ser estimado em horas ou dias. Neste livro est descrito no captulo sobre a ateno dirigida s ltimas 48 horas de vida. Paliao: Toda medida que resulte em alvio de um sofrimento do doente. Ao paliativa: Qualquer medida teraputica, sem inteno curativa, que visa a diminuir, em ambiente hospitalar ou domiciliar, as repercusses negativas da doena sobre o bem-estar do paciente. parte integrante da prtica do profissional de sade, independente da doena ou de seu estgio de evoluo.

Indicao dos Cuidados PaliativosQuando se fala em doena ativa, progressiva e ameaadora continuidade da vida significa que os Cuidados Paliativos podem e devem ser indicados na vigncia de doenas crnicas em diferentes fases de evoluo: trata-se da possibilidade de a morte por evoluo natural de um processo de adoecer, que pode se arrastar por anos. S no possvel aplicar os princpios dos Cuidados Paliativos quando h morte sbita por doena, acidente ou violncia (Lynn, 2005). Porm, a diferena na amplitude dos cuidados e na sua pertinncia depende da fase em que se encontra a doena e da histria natural de cada uma delas. Para pacientes com cncer, sabe-se que o contato com o diagnstico a fase mais difcil, e que sempre se necessita de suporte emocional para enfrentar o perodo de tratamento e as adaptaes ao adoecer. doena eminentemente ameaadora. O tratamento pode trazer desconforto, a dor pode se manifestar como primeiro sintoma ou ser conseqente ao prprio tratamento, e nunca pode ser desconsiderada. O tratamento adequado da dor em qualquer doena imprescindvel e a presena da dor deve ser inaceitvel. Aps determinado perodo, por falncia do tratamento ou recidiva, a doena evolui de forma progressiva e inversamente proporcional condio clnica e capacidade funcional do doente (Maciel, 2007). O declnio perfeitamente visvel, e os Cuidados Paliativos se tornam imperativos. Chega-se a um perodo no qual a morte inevitvel e uma cadeia de sinais e sintomas anunciam sua proximidade. Esse perodo, chamado de fase final da vida, requer ateno especial, vigilncia intensa e uma teraputica especializada e absolutamente voltada para o alvio dos sintomas do paciente (Figura 1). O objetivo da assistncia a essa fase da vida proporcionar o devido conforto sem que a conscincia fique comprometida a ponto de tirar do paciente sua capacidade de se comunicar. Para portadores de outras patologias crnicas como as falncias funcionais e as sndromes demenciais, o comportamento da doena tende a ser mais lento, cheio de intercorrncias, designadas como crises de necessidades. A cada crise, a capacidade funcional do doente declina e a recuperao nunca o remete ao patamar funcional23

DEFINIES E PRINCPIOS

anterior. At que se crie uma situao de alta dependncia (Figura 2). Nesse momento, a paliao se torna imperativa e no se indicam os tratamentos invasivos e dolorosos, sob pena de proporcionar apenas prolongamento intil de sofrimento. O doente deve continuar a receber cuidados essenciais e suporte de vida, incluindo a ateno constante da famlia e de seu entorno afetivo, de modo a jamais se sentir abandonado ou maltratado. Nesta fase, na qual o doente tem muita dificuldade em expressar sofrimento e sintomas, o cuidador desenvolve poder de observao e comunicao silenciosa com o doente. O objetivo perceber diferentes necessidades, proporcionando-lhe o necessrio conforto (Maciel, 2007). O processo final pode advir de uma complicao de difcil controle ou simplesmente falncia funcional mltipla. Estas podem ser determinadas por danos preexistentes e acumuladas nas diferentes crises de necessidades. No caso dos portadores de seqelas neurolgicas (vtima de acidentes vasculares cerebrais graves ou mltiplos), traumatismos ou outras condies que determinaram dano neurolgico grave e irreversvel, a condio semelhante, com a diferena de que a incapacidade funcional se instala de forma aguda (Figura 3) e o perodo de alta dependncia pode durar meses ou anos (Maciel, 2007). Nas situaes em que o doente tem alta dependncia, os Cuidados Paliativos se impem. Torna-se imperioso o trabalho de educao para aes como os cuidados no leito, a preveno de feridas, os cuidados com a alimentao, as adaptaes da oferta de alimentos e a comunicao amorosa. Os medicamentos que retardavam a evoluo da doena devem ser suspensos, assim como se deve ter parcimnia no tratamento de intercorrncias, evitando-se as intervenes agressivas. Deve-se estar atento ao controle da dor que o imobilismo e os procedimentos de conforto podem trazer (curativos, mobilizaes, trocas e aspiraes de vias areas superiores). A presena da famlia deve ser facilitada e a boa comunicao tem por objetivo manter todos os envolvidos conscientes de todo o processo. Famlia bem-informada torna-se excelente parceira no cuidar, detecta situaes de risco precocemente e previne complicaes e novas dependncias. Os Cuidados Paliativos precisam ser rigorosamente administrados no mbito das prticas de sade, com intenso controle e aplicao de fundamento cientfico sua prtica, para jamais serem confundidos com descaso, desateno, ausncia de assistncia ou negligncia. As decises pertinentes a cada fase so baseadas em parmetros como as escalas de desempenho, importantes para definir prognstico em Cuidados Paliativos. Em 2002 Harlos adaptou a escala de Karnofsky aos Cuidados Paliativos, criando a PPS (Palliative Performance Scale), e demonstrou que s 10% dos pacientes com PPS igual a 50% tm sobrevida superior a seis meses. Estes pacientes devem ter24

CUIDADO PALIATIVO

acompanhamento ativo por equipe de Cuidados Paliativos. A fase final da vida coincide com PPS em torno de 20% (Tabela 2). O fato de estar em condio de incurabilidade no significa que no haja mais o que ser feito luz do conhecimento acumulado na rea da assistncia sade. O que muda o enfoque do cuidado, que agora se volta s necessidades do doente e sua famlia, em detrimento do esforo pouco efetivo para curar doena.

Cuidados Paliativos no Mundo e no BrasilDocumento intitulado Mapping levels of Palliative Care Development: a Global View, elaborado pelo International Observatory on End of Life Care IOELC da Universidade de Lancaster, no Reino Unido, e divulgado em novembro de 2006, revela um estudo realizado em 234 pases que compem a Organizao das Naes Unidas. O estudo identificou a presena e complexidade de servios de Cuidados Paliativos nestes pases e os classificou em quatro nveis distintos: Grupo IV = 35 pases = possuem servios de Cuidados Paliativos e uma poltica estruturada de proviso destes servios; Grupo III = 80 pases = presena de servios isolados de Cuidados Paliativos, entre os quais se encontra o Brasil; Grupo II = 41 pases = no possuem servios estruturados, mas tm iniciativas, no sentido de formarem profissionais e equipes; Grupo I = 79 pases = onde no h registro de nenhuma iniciativa de Cuidados Paliativos (Wright, 2006). Em quarenta anos de conhecimento e desenvolvimento dos Cuidados Paliativos, a prtica est bem estruturada em apenas 35 pases. Porm, outras 121 naes j sinalizam esforos para implantar polticas adequadas. O IOELC identificou no Brasil apenas 14 servios e nenhuma iniciativa oficial. Esta realidade aparentemente j est diferente e tende a mudar muito rapidamente. S no Estado de So Paulo, entre servios conhecidos e estruturados, podemos contar pelo menos 13 iniciativas. A julgar pela participao em congressos e divulgao de servios, estima-se a existncia de pelo menos 40 iniciativas no Pas. Muito pouco para nossa extenso continental. Porm, no se podem negar as iniciativas gerais que incluem: 1. A criao de uma Cmara Tcnica em Controle da Dor e Cuidados Paliativos criada por portaria n 3.150 do Ministrio da Sade em 12 de dezembro de 2006, com finalidade de estabelecer diretrizes nacionais para a assistncia em dor e os cuidados paliativos (Ministrio da Sade, 2006). 2. A criao de uma Cmara Tcnica sobre a Terminalidade da Vida no Conselho Federal de Medicina CFM, que em 2006, aprovou a resoluo 1.805/06 que dispe sobre a ortotansia no Brasil (Conselho Federal de Medicina, 2006). Esta resoluo coloca em foco a necessidade de se reconhecer os Cuidados Paliativos e o CFM estabeleceu a Cmara Tcnica sobre a Terminalidade da Vida e Cuidados Paliativos, com a25

DEFINIES E PRINCPIOS

finalidade de definir os Cuidados Paliativos como rea do conhecimento e reconhecer a prtica da Medicina Paliativa no Brasil. 3. A proposta de formao de um Comit de Medicina Paliativa na Associao Mdica Brasileira AMB, com inteno de propor o reconhecimento da medicina paliativa como rea de atuao do mdico numa equipe de Cuidados Paliativos. 4. A existncia da Academia Nacional de Cuidados Paliativos ANCP, associao de profissionais atuantes na rea de Cuidados Paliativos e que participa ativamente de todas estas instncias polticas. Estas iniciativas sinalizam um futuro prximo em que os Cuidados Paliativos sero parte integrante e essencial da assistncia sade em todos os municpios e estados da federao.

Quadro 1 Definio e Princpios dos Cuidados Paliativos da OMS 2002Palliative care improves the quality of life of patients and families who face life-threatening illness, by providing pain and symptom relief, spiritual and psychosocial support to from diagnosis to the end of life and bereavement. Palliative care:

provides relief from pain and other distressing symptoms; affirms life and regards dying as a normal process; intends neither to hasten or postpone death; integrates the psychological and spiritual aspects of patient care; offers a support system to help patients live as actively as possible until death; offers a support system to help the family cope during the patients illness and in their own bereavement;

uses a team approach to address the needs of patients and their families, including bereavement counselling, if indicated;

will enhance quality of life, and may also positively influence the course of illness; is applicable early in the course of illness, in conjunction with other therapies that are intended to prolong life, such as chemotherapy or radiation therapy, and includes those investigations needed to better understand and manage distressing clinical complications. 26

CUIDADO PALIATIVO

Tabela 1 Escala de Avaliao de Sintomas de Edmonton - ESASAVALIAO DE SINTOMAS Data: ___________________ Preenchido por: ______________________________________ Por favor circule o n. que melhor descreve a intensidade dos seguintes sintomas neste momento. (Tambm se pode perguntar a mdia durante as ltimas 24 horas). Sem Dor Sem Cansao Sem Nusea Sem Depresso Sem Ansiedade Sem Sonolncia = 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 = Pior dor possvel = 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 = Pior cansao possvel = 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 = Pior nusea possvel = 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 = Pior depresso possvel = 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 = Pior ansiedade possvel = 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 = Pior sonolncia possvel

Muito Bom Apetite = 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 = Pior apetite possvel Sem Falta de Ar Melhor sensao de bem estar = 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 = Pior falta de ar possvel Pior sensao de bem estar possvel

= 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 =

Fonte: Regional Palliative Care Program, Capital Health, Edmonton, Alberta, 2003. Traduzido e adaptado ao portugus por Neto, IG. 2006.

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DEFINIES E PRINCPIOS

Tabela 2 Escala de Performance Paliativa (PPS)% 100 Deambulao Completa Atividade e evidncia da doena Normal; sem evidncia de doena Normal; alguma evidncia de doena Com esforo; alguma evidncia de doena Incapaz para o Trabalho; alguma evidncia de doena Incapaz de realizar hobbies; doena significativa Incapacitado para qualquer trabalho; doena extensa Idem Autocuidado Completo Ingesto Normal Nvel da Conscincia Completa

90

Completa

Completo

Normal

Completa

80

Completa

Completo

Normal

Completa

70

Reduzida

Completo

Normal ou reduzida

Completa

60

Reduzida

Assistncia ocasional

Normal ou reduzida

Perodos de confuso ou completa Perodos de confuso ou completa Perodos de confuso ou completa Perodos de confuso ou completa Perodos de confuso ou completa Confuso ou em coma

50

Sentado ou deitado

Assistncia Considervel

Normal ou reduzida

40

Acamado

Assistncia quase completa Dependncia Completa

Normal ou reduzida

30

Acamado

Idem

Reduzida

20

Acamado

Idem

Idem

Ingesto limitada a colheradas Cuidados com a boca

10

Acamado

Idem

idem

0

Morte

Fonte: HarlosM, Woelk C. Guideline for estimating length of survival in Palliative Patients. Em htpp://www.palliative.info. Traduzido e adaptado por Neto, 2006.

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CUIDADO PALIATIVO

Tabela 3 Alguns Precedentes Histricos do Movimento HospiceSculo Ano V XII XVII 400 Lugar Ostia Europa Tipo de centro Hospcio no Porto de Roma Hospcios e Hospedaria Medievais Lazaretos e hospicios Pessoa Fabola, discpula de So Jernimo Cavalheiros Hospitalrios So Vicente de Paula e as irms de caridade Jean Granier e a Associao de mulheres do Calvrio Pastor flinder Madre Mary Aikenhead e as irms Irlandesas de Caridade

1625 Frana

XIX

1842 Lyon

Hospices ou Calvaries

XIX XIX

Prussia

Fundao Kaiserwerth Our Ladys Hospice

1879 Dublin

XIX

1872 Londres

The hostel of God (Trinity Hospice), Fundaes Protestantes St Lukes Home e outros residenciais protestantes St. Josephs Hospice St. Christhophers Hospice Irms Irlandesas de Caridade Cicely Saunders Balfour Mount

XX XX XX

1909 Londres 1967 Londres

1975 Montreal Unidade de Cuidados Paliativos do Royal Victoria Hospital

Fonte: SECPAL - Historia de los Cuidados Paliativos & el Movimento Hospice, em http://www.secpal.cm, acessado em mar/2007 e traduzido pela autora.

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DEFINIES E PRINCPIOS

Figura 1 Pacientes com Cncer

Lynn and Adamson, 2003. Modificado Maciel, MG

Figura 2 Pacientes com Cncer

Lynn and Adamson, 2003. Modificado Maciel, MG

Figura 3 Seqelados Neurolgicos

Lynn and Adamson, 2003. Modificado Maciel, MG

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CUIDADO PALIATIVO

Referncias Bibliogrficas: 1. Academia Nacional de Cuidados Paliativos. Critrios de qualidade para os cuidados paliativos no Brasil. Rio de Janeiro: Diagraphic editora; 2007. 2. Brasil. Conselho Federal de Medicina. Resoluo n. 1.805, de 9 de novembro de 2006. Dispe sobre na fase terminal de enfermidades graves e incurveis permitido ao mdico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessrios para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistncia integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal. Dirio Oficial da Unio, Poder Executivo, Brasilia (DF). 28 nov. 2006; seo 1:196. 3. Cortes CC. Historia y desarrollo de los cuidados paliativos. In: Marcos GS, ed. Cuidados paliativos e intervencin psicosocial en enfermos de cncer. Las Palmas: ICEPS; 1988. 4. Davies E, Higginson I. The solid facts: palliative Care. Geneva: WHO; 2004. 5. Doyle D, Jeffrey D. Palliative care in the home. Oxford: Oxford University Press; 2000. 6. Foley K M. The past and the future of palliative care. Improving end of life care: why has it been so difficult? Hastening Center Report Special Report 2005; 35 (6):S42-6. 7. Harlos M. Woelk C. Guideline for estimating length of survival in palliative patients [online]. [Acessado em: abril de 2007] Disponvel em http://www.palliative.info 8. Kluber-Ross E. A Roda da vida. 5. ed. Rio de Janeiro: Sextante; 1998. 9. LynN J. Living long in fragile health: the new demographics shape end of Life care. Improving End of Life Care: why has it been so difficult? Hastening Center Report Special Report 2005; 35 (6):S14-8. 10. Lynn J, Adamson DM. Living well at the end of life: adapting health care to serious chronic illness in old age. Arlington: Rand Health; 2003. 11. Maciel MGS. A terminalidade da vida e os cuidados paliativos no Brasil: consideraes e perspectivas. Prtica Hospitalar 2006; (47):46-9. 12. Maciel MGS. tica e cuidados paliativos na abordagem de doenas terminais. A Terceira Idade 2007; 18 (38):37-48. 13. Brasil. Ministrio da Sade. Portaria n. 3.150 de 12 de dezembro de 2006. Institui a Cmara Tcnica em Controle da Dor e Cuidados Paliativos. Dirio Oficial da Unio; Poder Executivo, Braslia (DF) 13 dez. 2006. Seo 1:111. 14. Neto IG. Modelos de controlo de sintomas. Manual de Cuidados Paliativos. Lisboa: Ncleo de Cuidados Paliativos, Centro de Biotica, Faculdade de Medicina de Lisboa; 2006. 15. NETO IG. Princpios e filosofia dos cuidados paliativos: manual de cuidados paliativos. Lisboa: Ncleo de Cuidados Paliativos, Centro de Biotica, Faculdade de Medicina de Lisboa; 2006. 16. Pessini L. Cuidados paliativos: alguns aspectos conceituais, biogrficos e ticos. Prtica hospitalar 2005; (41):107-12. 31

DEFINIES E PRINCPIOS

17. Piva JP, Carvalho PRA. Consideraes ticas nos cuidados mdicos do paciente terminal [on-line]. Porto Alegre. [Assessado em: fevereiro 2007]. Disponvel em http:// www.medicinaintensiva.com.br/eutanasia1.htm 18. Sociedade Espanhola de Cuidados Paliativos. Historia de los cuidados paliativos & el movimiento hospice [on-line]. [Assessado em: Agosto de 2007] Disponvel em: http:// www.secpal.com 19. The SUPPORT principal investigators. A controlled trial to improve care for seriously ill hospitalized patients: The Study to Understand Prognoses and Preferences for Outcomes and Risk of Treatment. JAMA 1995; 274:1591-8. 20. TWYCROSS R. Introducing palliative care. London, Ed Radcliffe Med Press; 2003. 21. World Health Organization. Better palliative care for older people. Geneva: WHO; 2004. 22. World Health Organization. Cancer pain relief and palliative care. Geneva: WHO; 1990. 23. Wright M, Wood J, Lynch T, Clark D. Mapping levels of palliative care development: a global view. Lancaster: Lancaster University; 2006. [International Observatory on End of Life Care]

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CUIDADO PALIATIVO

IIFALANDO DA COMUNICAOMaria Jlia Paes da Silva

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FALANDO DA COMUNICAO

Eu sabia que na minha profisso eu iria viver literalmente com o sofrimento humano, e sempre me preocupou esse lado dramtico que envolve nossa profisso: porque ela vive de vida, do sofrimento do doente e tambm da morte. A morte, sempre imbatvel e triunfante. (...) Precisamos ter humildade, porque a cincia vai ficar sempre com suas dvidas e a natureza com seus mistrios.... Prof. Dr. Carlos da Silva Lacaz (aput Millan et al.7).

As pesquisas tm mostrado que o mdico aprende a lidar com a doena, mas no a lidar com o doente. Em Cuidados Paliativos esse um grande problema porque a doena segue seu fluxo e o grande desafio como lidar com o doente. A maneira como dado o diagnstico dentro do discurso mdico nos leva a pensar em um ser humano vulnervel em seus sentimentos, sem se dar conta dos efeitos emocionais que pode causar aos pacientes ao longo da doena e do tratamento oferecido, bem como aos familiares e at mesmo a si prprio. Mais do que um bilogo, mais do que um naturalista, o mdico e todos os profissionais da rea de sade deveriam ser fundamentalmente humanistas. Um sbio que, na formulao de seu diagnstico e no contato com o paciente, leve em conta no apenas os dados biolgicos, mas tambm os ambientais, culturais, sociolgicos, familiares, psicolgicos e espirituais. Na viso de LeShan5, muitos mdicos definem um bom paciente como aquele que aceita as suas declaraes e aes sem crticas ou questionamentos. Um mau paciente aquele que faz perguntas para as quais no h respostas e levantam problemas que os fazem sentir constrangidos. O mdico dificilmente recebeu uma formao que o ajude a dizer Ajudei a sra. Maria a morrer bem. muito difcil, com a formao atual, o mdico e os demais profissionais da rea de sade aceitarem que um dos seus papis o de ajudar as pessoas a morrerem bem. O foco de toda formao a cura ou a estabilizao das funes vitais13.34

CUIDADO PALIATIVO

Costa2 apresenta a fala de uma paciente em que se percebe que, apesar de saberem dos procedimentos que so tomados, os mdicos no internalizam a gravidade ou no de seus diagnsticos, de suas falas, do impacto que causam em seus pacientes, deixando o mesmo como pano de fundo de uma realidade incompreensvel: ... quase ca do banco, no queria ouvir aquilo... Em setembro seu pulmo estava limpinho e agora est cheio de ndulos (um ms depois). O mdico disse olhando para a radiografia, para uma parte de mim... me revoltei, recusei a fazer quimioterapia, meu direito. Vocs so timos mdicos, excelente hospital, mas o cncer d um baile em vocs...agora sei que estou morrendo, quero morrer com dignidade, em minha casa... O contedo, a forma, o momento de apresentao das palavras tm tal poder de penetrao que so capazes de remeter a situaes tidas como irreversveis, como demonstra tambm a fala seguinte2: ... a mdica me acordou s cinco horas da manh, balanando o meu p, e me disse: voc no vai mais andar. Eu comecei a morrer ali, nem acordada direito eu estava... Com essas falas pode-se perceber o quanto a tristeza de um diagnstico ruim insuportvel para ambos, mdico e paciente, sendo que o mdico reage a essa tristeza usando os mecanismos de defesa que aprendeu ao longo de sua formao, em especial, o distanciamento. E o paciente muitas vezes reage atravs da depresso e da melancolia, pela falta de acolhimento no momento de to grande dor. A formao mdica visa abordagem, diagnstico, tratamento de algo chamado doena, da mesma forma que o economista lida com algo chamado nmero, dinheiro, por exemplo. Infelizmente, muitas vezes, entra-se em uma rotina pesada, estressante e exaustiva, que faz com que se esquea ou negligencie-se que se trata de uma pessoa e no de uma doena apenas. freqente a falta de formao humana e pessoal adequada para lidar com essas questes. Como, por exemplo, se o economista tivesse feito um mau negcio e perdido dinheiro. Essa coisificao leva inadequao da compreenso da essncia dos cuidados paliativos. importante compreender que quando se pensa em comunicao nos cuidados paliativos, a qualidade dos relacionamentos se torna mais importante do que a prpria doena, j que ela no ser curada; so os relacionamentos os aspectos mais importantes para qualificar a vida nessa fase. Talvez em todas: a situao da aproximao da morte apenas torna isso gritante.35

FALANDO DA COMUNICAO

Informar a Quem?O processo de informao ao paciente com qualquer enfermidade severa ou incapacitante extremamente complexo e se compe de uma multiplicidade de fatores, destacando-se: a informao oferecida pelo mdico, a informao retida pelo paciente, o conhecimento que ele tenha da enfermidade, o desejo que ele tenha de ter a informao e a satisfao com a informao recebida15. Quanto ao desejo de ter a informao, alguns autores salientam que estudos em vrios pases do mundo j verificaram que, de uma forma geral, a maioria das pessoas manifestou o desejo de saber corretamente o diagnstico caso viessem a desenvolver uma doena grave10,12. Stuart et al.15 tambm afirmam que privar uma pessoa do conhecimento sobre os processos de sua doena viol-la de seus direitos; se engana o paciente para evitar que ele se deprima, mas rapidamente a esperana inicial ser suplantada pela desesperana produzida pelo engano (traio), que conduz a um estado de perda de confiana em seu mdico. No Brasil, um estudo no servio de Clnica Mdica do Hospital das Clnicas da Faculdade de Medicina da USP, com 363 pessoas atendidas, constatou que 96,1% das mulheres e 92,6% dos homens mostraram desejo de serem informados do diagnstico de cncer e 87,7% das mulheres e 84,2% dos homens desejaram que sua famlia tambm fosse informada. 94,2% das mulheres e 91% dos homens afirmaram querer saber do diagnstico de AIDS. O desejo de participar das decises teraputicas foi menor nos homens e nas pessoas com mais de 60 anos3. Na China, Lui, Mok e Wong6 verificaram que so os pacientes mais jovens e instrudos que querem saber mais informaes sobre diagnstico e opes de tratamento. Que esperam que lhes seja dado suporte emocional (atravs da comunicao) pela equipe e famlia, apesar de, com alguma freqncia, referirem no falar das prprias emoes com a famlia para no preocup-la ainda mais. Esperam que o profissional seja paciente, discorra claramente sobre a doena, tratamento e efeitos colaterais, esteja sensvel s reaes emocionais que possam apresentar e escute respeitosamente suas sugestes. Isso implica tambm em se calar para ouvir e perceber quais so as respostas e demandas do paciente e de sua famlia. comum o profissional falar demais na hora das notcias ruins, justificar demais, florear demais. O fato um s, concreto... e, freqentemente, doloroso. Precisa ser vivido e o papel do profissional da sade dar amparo, sustentao, ao paciente e sua famlia. Os pacientes referem no recorrer enfermeira quando a percebem muito ocupada, com pouco tempo para estar ao lado deles, so muitos jovens (principalmente referido por homens mais idosos), e quando entendem que suas emoes e dilemas devem ser partilhados somente em famlia (so problemas particulares)6.36

CUIDADO PALIATIVO

Em Cuidados Paliativos fundamental os profissionais se lembrarem que os pacientes tm direito de que sejamos honestos com eles e de saber o que querem saber (inclusive de declinar informaes, se assim o desejarem). Sem as informaes sobre a sua doena e prognstico, no podem participar de seu prprio plano teraputico, no podem dar seu consentimento informado para o tratamento e no podem replanejar a prpria vida e de sua famlia. A comunicao honesta e completa s no deve ocorrer se o paciente no competente para discutir o seu prprio tratamento, se delegar a responsabilidade para outro membro da famlia ou se a religio ou costume cultural requerer que o homem seja o cabea da famlia. Se as pessoas diferem quanto idade, sexo, religio, condio cultural, familiar, socioeconmica, caractersticas da personalidade, no pode haver uma nica frmula para conversar com elas. Existem, sim, estratgias que facilitam o encontro teraputico, que sempre nico.

Facilitando o que Difcil fundamental lembrar que, quando a comunicao envolve algum assunto sensvel, delicado ou difcil, precisa tambm ser feita de maneira sensvel, de forma que possa ser entendida, sem pressa, num ambiente adequado (com poucos rudos e interferncias). Uma boa comunicao afeta positivamente o estado de nimo do paciente, sua adequao psicolgica situao e sua qualidade de vida15. Num interessante estudo desenvolvido em New York, por Sulmasy e Rahn16 com 58 pessoas gravemente enfermas internadas, verificou-se, atravs de filmagens, que os pacientes passam a maior parte do tempo sozinhos (18 horas e 50 minutos) e que as visitas da equipe de sade (especialmente das enfermeiras) so freqentes, mas extremamente curtas. Questionam qual a qualidade da interao que pode ocorrer em to curto tempo de contato. Talvez se os profissionais estiverem atentos qualidade de relao que pode ser conseguida com a conscincia dos sinais no-verbais, isso seja possvel: um olhar carinhoso, o uso do toque afetivo aliado ao toque instrumental, um sorriso de compreenso... Em outro estudo que determina os fatores que influenciam a comunicao das enfermeiras com os pacientes com cncer, observou-se que a chefia da clnica, a crena religiosa, a atitude diante da morte e o treinamento sobre comunicao anteriormente recebido so os fatores que mais se destacam na facilidade ou dificuldade que elas expressaram nesses contatos17. As enfermeiras que possuem treinamento em comunicao so capazes de facilitar a expresso dos pensamentos e sentimentos dos pacientes, coletando dados em maior profundidade; as demais ignoram essa37

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expresso e se restringem a transmitir e colher informaes objetivas, apenas referentes s caractersticas fsicas apresentadas pelos pacientes. Outros estudos relacionam domnios que o profissional deve ter para comunicarse adequadamente com o paciente: estilo gramatical correto, saber utilizar as tcnicas de comunicao verbal (perguntas diretivas e no-diretivas), ter clareza do assunto/tema a ser discutido, saber identificar os sentimentos expressos na interao e estar atento e consciente das dicas no-verbais expressas pelo paciente1. Vrios autores propuseram um protocolo denominado CLASS, que inclui os seguintes passos para a relao mdico-paciente9: C = contexto fsico (Context) L = habilidade de escutar e perceber (Listening) A = conhecimento das emoes e como explor-las (Acknowledge) S = estratgia (Strategy) S = sntese (Summary) No item contexto fsico (C) lembrada a importncia da privacidade e da disposio das pessoas envolvidas (de tal forma que o contato visual seja possvel e ocorra) e da ausncia de barreiras fsicas (mesa, maca, por exemplo). Sugerem o uso do toque afetivo nos membros superiores do paciente como forma de demonstrao de apoio, proximidade e envolvimento, mas observando-se sempre se o paciente receptivo ao toque e no o rejeita. O telefone e as interrupes devem ser programados para que o mximo de ateno seja oferecido nessa interao. Na habilidade de escutar (L) colocada a importncia do desenvolvimento de um clima no relacionamento que possibilite ao paciente informar o que pensa e o que est sentindo. Em geral, falamos com mais tranqilidade quando sentimos que aquilo que falamos importante. No se deve supor que o que o paciente vai falar j sabido (mais um caso igual...); fazer perguntas um timo recurso9. Ouvir a resposta do paciente sem interromp-lo fundamental. Olh-lo enquanto falar, usar meneios positivos com a cabea como reforo de que se est ouvindo, repetir palavras-chave utilizadas por ele, tornar claros os tpicos ambguos ou obscuros fazem parte das estratgias a serem desenvolvidas neste item12. No item conhecimento das emoes e como explor-las (A), Petrilli et al.9 lembram a importncia de nivelar as informaes usando uma linguagem inteligvel para o paciente a partir de informaes que ele j conhece, de fornecer informaes em pequenas doses verificando a receptividade do paciente (oferecendo pausas, repetindo conceitos com palavras diferentes), respondendo e acolhendo as emoes do paciente na medida em que elas forem surgindo (por exemplo: voc tem razo de ficar bravo!) e explorando a negao (caso ocorra), atravs de respostas empticas (vale lembrar que38

CUIDADO PALIATIVO

resposta emptica uma tcnica ou habilidade e no um sentimento). Uma resposta emptica envolve: identificar a emoo, identificar a causa ou a origem da emoo e responder de uma forma que mostre a compreenso da conexo entre uma e outra12. Vale lembrar que uma pessoa que fornece com sucesso suporte emocional outra, provavelmente aquela com habilidade para acessar suas prprias emoes e dores. No item estratgia (S), Petrilli et al9 sugerem que o profissional pense o que melhor em termos mdicos, considere as expectativas do paciente quanto s condies emocionais, sociais e econmicas, proponha uma estratgia, dando nfase qualidade de vida e mobilizando a famlia, considere a resposta do paciente (estando atento ao estgio adaptativo que ele est: raiva, negao, barganha, por exemplo) e esboce um plano, assim que possvel, descrevendo com clareza a proposta teraputica, a seqncia dos exames, retornos etc. A sntese (S) envolve o trmino da entrevista com o paciente e comporta trs componentes principais: um resumo dos principais tpicos discutidos, o questionamento ao paciente se existe algum tpico ainda que gostaria de discutir (mesmo que fique agendado para um prximo encontro em funo do tempo, por exemplo) e um roteiro claro para o prximo encontro. Esse protocolo, resumidamente, reafirma regras teis aos profissionais da rea de sade, quando se esta lidando com a apresentao de notcias ruins: antes de dizer, pergunte; tome conhecimento das emoes do paciente e lide com elas atravs de respostas empticas; apie o paciente ouvindo suas preocupaes; no subestime o valor de apenas ouvir e, s vezes, no faa nada: mas fique por perto. E como difcil esse NADA carregado de ao amorosa e benfica...

Emergindo o EspiritualSo vrios os autores afirmando que as questes Qual o sentido da nossa vida? Para que vivemos? Para onde estamos indo? surgem na maior parte dos pacientes fora de possibilidades teraputicas de cura. O ser humano tem necessidade de pertencer, de ter significado alguma coisa para algum na vida, de ter sido capaz de dar e receber amor, de perdoar e ser perdoado 4,8. Cecily Saunders afirmou que todas as pessoas deveriam ter direito de, antes de morrer, ter tempo para dizer Desculpe, Obrigado, Te amo e Adeus; e que, para os profissionais de sade, falar sobre as necessidades espirituais com os pacientes uma forma de se comunicar adequadamente em uma hora em que muitos estudos mostram essas necessidades emergindo na maior parte das pessoas8,11. Puchalski e Romer11 afirmam que j tem se usado na maior parte das universidades norte americanas um histrico espiritual onde o mdico aborda junto s pessoas39

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que esto em cuidados paliativos qual a sua f, que coisas do sentido a sua vida, a importncia que a f ou a crena representam na vida da pessoa, que influncia essa f ou essa crena exerce na maneira como ela cuida de si, como essas crenas influenciam o seu comportamento durante a doena, se a pessoa membro de alguma comunidade religiosa e como que gostaria que se tratasse esses temas de atendimento espiritual-religioso durante o seu tratamento. Colocam que esse histrico espiritual necessrio para que a comunicao flua com mais naturalidade nesses momentos de cuidados paliativos. Cada paciente atendido adequadamente at o final de sua vida talvez deixe a lio para o profissional de sade sobre qual o sentido da nossa prpria vida, o sentido das nossas aes e se estamos tambm usando adequadamente as palavras Desculpe, Obrigada, Eu te amo e Adeus13.

Logicamente SimblicoUma linguagem que surge, muitas vezes, nos meses ou dias finais que antecedem morte do paciente a linguagem simblica. Linguagem que ele se utiliza, pois passa por momentos de alterao do seu nvel de conscincia e tambm por passar a apresentar sonhos significativos, confuso entre fatos presentes e passados, vises. Independente da causa dessa aparente confuso, necessrio que o profissional esteja preparado para ouvir com respeito e responder honestamente s questes feitas pelo paciente e pela famlia a respeito desses sonhos e fatos. Ele pode experimentar os sonhos e essas vises como algo extremamente real; pode reconhecer claramente as pessoas e objetos do ambiente e imaginar outras, concomitantemente presentes. A linguagem simblica a linguagem utilizada pelas pessoas para expressarem suas experincias interiores, sentimentos e pensamentos, como se fossem experincias sensoriais. uma linguagem diferente da linguagem lgica utilizada no dia-a-dia, onde no o tempo e o espao que categorizam as falas, mas a intensidade e as associaes13. Quanto mais a equipe aceitar essas expresses do paciente, suspendendo o julgamento lgico, permitindo que ele fale sobre elas, menos ele se sentir sozinho emocional e espiritualmente. Para ele, esses acontecimentos tm significado. Os profissionais podem-se perguntar o que essas experincias esto dizendo sobre o paciente, orientar a famlia sobre o valor dessas comunicaes, tentando diminuir uma eventual ansiedade que elas possam provocar. importante lembrar que entender a fabulao do doente apenas como delrio e medic-la imediatamente como tal pode privar a todos os envolvidos, incluindo o profissional, de ritualizaes de passagem importantes, das quais a nossa sociedade extrovertida to carente!40

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Entre Uns e OutrosOutro aspecto da comunicao que reflete na interao com o paciente e que lembrado por vrios autores a prpria qualidade da comunicao interdisciplinar que, segundo Street e Blackford14, o problema que maior impacto traz aos servios de sade de Cuidados Paliativos. Os problemas existem porque: raramente o grupo todo se encontra para discutir as necessidades de cada um dos clientes (que cliente de cada um e de todos); para um bom cuidado necessria uma comunicao adequada entre todos os diferentes setores da instituio (ambulatrio, enfermarias, servio de homecare) e entre as diferentes instituies; existe territoriedade entre os profissionais, falta uma filosofia comum, o uso da linguagem e da terminologia utilizada, por vezes, diferente; e existe pouco contato entre as instituies para verdadeiras trocas das experincias. Street e Blackford14 sugerem como estratgias para melhorar a comunicao interdisciplinar: uma documentao escrita entre os setores e servios com qualidade; encontros peridicos entre eles; utilizar o paciente como ponte entre os servios, com um pronturio que pertena e fique com ele.

Comunicando-se com a Criana e Famlia em Cuidados PaliativosPinto10 discute a relao pediatra-famlia e paciente, destacando tambm a importncia da verdade na conduo da comunicao para com eles e coloca a importncia do entendimento, pelo pediatra, da dialtica da sua prpria morte, pois s assim, segundo o autor, estar preparado para manejar com competncia e maturidade o desafio da morte de seus pacientes fora de possibilidades teraputicas. Mesmo em se tratando de criana, o autor10 menciona duas regras que regem a maneira de se comunicar com a criana e sua famlia. A primeira que a verdade no deve ser apresentada de forma macabra, porque o espao da terminalidade no deve ser transformado em uma cmara de horrores. A segunda regra que a mentira deve ser banida desse cenrio porque no h, definitivamente, espao para ela, independente da faixa etria da criana. A mentira, ele afirma, ainda que caridosa e humanitria, diminui a autoridade do pediatra e enfraquece a confiana nele depositada. Lembra que muitos pais, no entanto, no admitem que seus filhos saibam de toda a verdade; que preferem continuar a esconder sua tristeza atravs de uma fisionomia falsamente alegre, justificando que assumem essa postura em benefcio da prpria criana. O que ele lembra, porm, que a criana percebe a realidade camuflada e entra nesse jogo de mentiras e fingimentos, passando a fingir tambm, por causa da famlia que nega a sua condio terminal. Refere, por outro lado, que no raro o pediatra41

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pode ser trado pela compulso revelao precoce das suas suspeitas diagnsticas e previses prognsticas, com medo de ser atingido por denncias junto aos Conselhos Regionais de Medicina e Tribunais de Justia, sendo acusado de negligncia por ter retardado, eventualmente, a confirmao do diagnstico10. Os detalhes abundantes, desnecessrios, ansiognicos, iatrognicos que acompanham esse tipo de revelao, nesse contexto, ocorrem muito pela atitude defensiva do pediatra, que o autor chama de Sndrome da Explicao Ansiosa, sobre o fantasma do erro mdico. Trata-se de uma ameaa sombria e assustadora usada como objeto de explorao pela imprensa injusta e por advogados gananciosos que farejam esse tipo de situao para transformla numa rendosa indstria de erro mdico.

A Ttulo de FinalizaoComunicao, como podemos ver, permeia todas as aes de Cuidados Paliativos e todas as dimenses do ser humano; portanto, inquestionvel esse atributo do conceito em estudo nesse livro. Informar (leia-se: informaes boas e ms13) cada paciente sobre sua doena e tratamento faz parte da atividade mdica e da equipe de sade e obedece princpios bsicos da relao mdico-paciente. A confiana nos profissionais que cuidam o alicerce fundamental na estruturao de cuidados paliativos e deve ser buscada de forma consciente e ativa. Essa confiana se desenvolve nas aes comunicativas do dia-a-dia das relaes. O lugar onde cuidamos de algum que est morrendo pode ser um hospital, pode ser a casa do paciente, pode ser um Hospice, pode variar de acordo com a condio social do paciente e com a estrutura social que esteja vivendo. fundamental o mdico (e toda a equipe de sade) aceitar a responsabilidade de que sua forma de se comunicar com o paciente ficar na lembrana das pessoas para sempre; so os profissionais que criam as memrias das pessoas, que vivero pelo resto da vida com a lembrana de como foi o momento em que perderam algum que amam. Refletir sobre comunicao em Cuidados Paliativos significa resgatar a importncia do afetivo em um ambiente (rea de sade) em que tudo baseado no efetivo.

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Relao dos Cuidados Paliativos com as Diferentes Profisses da rea da Sade e EspecialidadesToshio Chiba

IntroduoNos ltimos sculos, o conceito de vida e morte no contexto da medicina e da biotica tem passado por uma fase literalmente agitada. Esta polmica, por um lado, deve ser vista com bons olhos, por ser uma conseqncia direta da evoluo da cincia biomdica, que conseguiu diminuir a mortalidade, inclusive, a de crianas, por meio da melhoria de saneamento bsico e da introduo de esquemas de vacinao, e pela melhoria da acurcia diagnstica e tratamento adequado. A introduo de conceitos de medicina intensiva, quimioterapias, imunoterapias, radioterapias, tratamento de suporte na rea de controle de sintomas e de nutrologia, no sculo passado, vem possibilitando que a sobrevida seja incrementada, principalmente na rea de oncologia. O melhor entendimento dos mecanismos de vrias doenas cardiovasculares (e de suas intervenes preventivas no-farmacolgicas e farmacolgicas) fez aumentar a expectativa de vida, invertendo a ordem das causas mortis que no incio do sculo XX eram encabeadas pelas afeces infectocontagiosas e parasitrias. O que era pressgio ou sinal da morte no incio do sculo passado a ausncia da respirao (Bernat, 1990) , especificamente denominada no nosso meio como parada respiratria ou quadro de insuficincia respiratria em franca progresso, simplesmente passou a ser uma manifestao clnica, passvel de tratamento atravs de suporte ventilatrio invasivo. A ausncia do pulso (Bernat, 1990) que nos dias de hoje, chamaramos de taquiarritmia de vrias formas potencialmente letais, ou o que traduziramos como choques de vrias etiologias, como choque hipovolmico, sptico ou cardiognico, entre outros tipos de choques tambm culminava num evento morte, na esmagadora maioria dos episdios. Atualmente, estes acontecimentos passaram a figurar como um captulo relativamente longo que precede o prprio fim, graas ao advento de drogas vasoativas, inotrpicas, antimicrobianas de extensssimos espectros e a toda alta tecnologia, que46

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possibilitou um monitoramento contnuo destes indivduos que se encontram em unidades de cuidados intensivos. Desde o final da dcada de 60 a ausncia da funo cerebrocortical (Bernat, 1990) adotada como finitude da vida, possibilitando que outras vidas continuem seguindo, por meio de transplantes de rgos (ou de determinados tecidos), substituindo aqueles que comprometem a qualidade ou coloquem em risco a vida dos pacientes com as insuficincias orgnicas. (Randell, 2004). Assim, a humanidade caminhou o ltimo sculo, adaptando-se dentro de vrios conceitos e preceitos da sociedade, de cada cultura, religiosidade e espiritualidade, arcando com a realidade acerca dos conceitos de vida e morte, que se modificavam a cada momento da evoluo do homem como ser inteligente. O fato que o processo de viver se prolongou de uma forma exponencial nas ltimas dcadas, e isto, na verdade, dentro de consideraes epidemiolgicas no muito complicadas, nos faz perceber que a morte, na maioria das vezes, j no um episdio e sim um processo, s vezes, at prolongado, demorando anos e at mesmo uma dcada dependendo da enfermidade (Lynn & Adamson, 2003). No ano de 2000, nos Estados Unidos, faleceram mais de 2.400.000 pessoas. Mais de 70% destes eventos aconteceram com idosos acima de 65 anos. A maioria dos pacientes faleceu de doena cardiovascular, cncer, acidente vascular cerebral, e doena pulmonar obstrutiva crnica. As causas de morte devidas a doenas infectoparasitrias e contagiosas diminuram de forma significativa, como j se disse, invertendo a ordem do sculo passado. Entre os pases desenvolvidos, este tipo de perfil epidemiolgico bastante comum. Mesmo pases em desenvolvimento, como o Brasil, rumam para tal quadro em que a populao acometida por doenas com caractersticas eminentemente crnicas, e, muitas vezes, de lenta evoluo. Desta forma, o evento morte que, alguns sculos atrs, era considerado como um episdio passou a ser um processo. Entretanto, junto com esse prolongamento de vida e com surgimento do processo de morrer, os profissionais da rea de sade comearam a perceber que, mesmo no havendo cura (o que acontece na maioria dos casos, como diz a estatstica), h uma forma de atendimento com nfase qualidade de vida e cuidados ao paciente, por meio de assistncia interdisciplinar, e da abordagem aos familiares que compartilham deste processo e do momento final de vida os Cuidados Paliativos. Sua atuao definida como sendo interdisciplinar, para atingir sua principal meta: a qualidade de vida. Atentamos, nesta definio, para a quebra de um mito comum entre os leigos e mesmo, entre muitos profissionais de sade segundo o qual a pessoa que necessita de Cuidados Paliativos sempre um paciente com neoplasia.47

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sabido que outros pacientes que apresentam vrios tipos de doenas crnicodegenerativas e progressivas necessitam de Cuidados Paliativos, tais como: portadores de insuficincia cardaca avanada, quadro demencial de vrias etiologias, pacientes pneumopatas crnicos com quadro de hipoxemia grave, seqelados de vrios episdios de isquemia cerebral, pacientes com esclerose lateral amiotrfica e com outras doenas neurolgicas degenerativas progressivas etc. A lista de enfermidades quase infindvel, e envolve situaes que requerem ateno direcionada qualidade de vida, individualizao e respeito pelo paciente e pelos seus familiares. Estatstica nos EUA exemplifica a evoluo desde 1992. Mostra que entre os pacientes que deixaram os Hospices por falecimento (ou que tiveram alta para morrer em casa), cerca de 20% tinham diagnsticos no-neoplsicos (Haupt, 2003). Ao longo de 8 anos do ltimo sculo, esta proporo chegou cerca de 45% (Figura 1). Neste perodo, pacientes inseridos em fase final da vida que procuraram um programa de cuidado paliativo tinham diagnsticos de doenas cardacas, eram pacientes com alteraes cognitivas (demncias), seqelados de doena cerebrovascular, e portadores de doena pulmonar obstrutiva crnica (Figura 2). A Organizao Nacional de Hospice dos Estados Unidos traz alguns critrios objetivos de gravidade para indicar o incio de Cuidado Paliativo (Tabela 1) (Leland, 2000). Como todo tipo de classificao de qualquer fenmeno, esta tambm passvel de crticas, mas funciona como parmetro para definir a necessidade de Cuidados Paliativos. No Brasil parmetros adequados so necessrios para que, dentro de um sistema de sade que ainda carrega necessidades especficas, haja uma justa alocao de recursos destinados tanto ao tratamento daqueles que precisam de suportes avanados de vida (em UTIs) quanto queles que necessitam de Cuidados Paliativos, possibilitando o atendimento interdisciplinar ao controle adequado de sintomas, e, eventualmente, ao atendimento aos familiares. Mais uma vez, o bom senso de um profissional de sade o melhor aliado dentro da rea de Cuidados Paliativos, visto que cada doena apresentada pelo paciente tem sua caracterstica de evoluo (Figura 3) e sua sobrevida individualizada (Lynn & Adamson, 2003). A interface de cada especialidade mdica d-se conforme a necessidade e evoluo de cada fase da doena. importante ressaltar que a chave de um bom atendimento consiste na capacidade de cada profissional reconhecer o limite de sua atuao em Cuidados Paliativos. Este item especialmente destacado em relao a controle de dor e de outros sintomas e corresponde ao que chamamos de interface extrnseca de cada especialidade.48

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A interao com outros profissionais deve ocorrer sempre que nos depararmos com dificuldades. Vale usar os recursos possveis, com criatividade e persistncia. Mesmo em locais com menores recursos no devemos hesitar em incluir na teraputica, por exemplo, colegas anestesistas, preparados para nos auxiliar na realizao de um eventual bloqueio anestsico, ou na analgesia controlada por paciente com bomba de infuso. Cirurgies gerais podem nos ajudar, realizando, se necessria, uma interveno cirrgica paliativa, como traqueostomia, gastrostomia, colostomia, toracocentese, peritoneocentese, debridamento de tecidos desvitalizadas de um tumor exoftico e outros procedimentos destinados a aliviar o sofrimento dos nossos pacientes. Temos uma interface que denominamos de intrnseca por designar os profissionais que fazem parte da equipe de Cuidados Paliativos, tais como assistente social, farmacutico(a), fisioterapeuta, fonoaudilogo(a), terapeuta ocupacional, enfermeiro(a), psiclogo(a), nutricionista, dentista e outros, unidos na ateno no s ao paciente, mas tambm aos familiares, em suas necessidades vinculadas a um bom atendimento, conforme a definio da Organizao Mundial de Sade.

PerspectivasO ato de cuidar dos nossos pacientes em fase final das suas vidas, como mostra a estatstica, cada vez mais freqente. No possvel explanar de forma sinttica as particularidades apresentadas por estas pessoas. Mas vale a lio de que cada indivduo tem a sua histria de vida: no um ser simplesmente biolgico, e sim, algum que tem a sua vida cronolgica a ser considerada, incluindo seus terrenos cultural, religioso e social. Os profissionais da sade devem adentrar neste espao sem medo, para que estes pacientes possam ser atendidos da forma mais ntegra possvel, quer isto seja no centro ou posto de sade, num ambulatrio de hospital pblico, numa enfermaria, num programa de assistncia domiciliar, dentro de um hospital-dia, at mesmo, no mbito do Programa de Sade da Famlia. Assim, o atendimento a estes doentes estende-se at o mbito psicolgico, social e religioso, atingindo o ntimo de cada um. Temos necessidade de criar a nossa maneira brasileira de atender estes indivduos, da melhor forma possvel. No depender somente de literatura estrangeira que, certamente, no cobrir o aspecto sociocultural da nossa realidade. Nossas culturas heterogneas, somadas falta de recursos, tornaro, sim, o atendimento uma tarefa rdua, mas, ao mesmo tempo, algo criativo e interessante. Os interesses da comunidade tm aumentado gradativamente em relao ao Cuidado Paliativo, com a influncia da mdia e com o crescimento importante de49

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servios de internao domiciliar na dcada de 90, na rea privada, e demanda crescente de criao de assistncia domiciliria, em forma de visitas domiciliares, nos servios pblicos. Os pacientes encaminhados para esse tipo de servio, pela histria natural da doena, j se encontram, com freqncia, fora das possibilidades de cura e numa condio bastante fragilizada, necessitando de cuidados paliativos. Um levantamento feito no Hospital das Clnicas, da Faculdade de Medicina da USP, em 2000, apontou que 42% dos pacientes que se encontravam em assistncia domiciliar nesta instituio apresentavam necessidade de Cuidados Paliativos (Chiba, 2006). Entretanto, o que devemos buscar nosso pas neste incio de sculo a mudana de conscincia, ou seja, atentar para o fato de que a nossa morte faz parte da nossa vida. Enfim, que o processo de viver engloba e contempla a morte, e que, portanto, no h por que ficar improvisando o processo de morrer. H sempre tempo para aprimorar as nossas vidas, enquanto vivermos.

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Tabela 1 Indicadores de Prognsticos da Organizao Nacional de Hospice - 1996Doena Cardaca

NYHA Classe IV, Frao de Ejeo < 20%, Refratariedade a tratamento otimizado, incluindo vasodilatadores Outros fatores indicando mau prognstico arritmia sintomtica resistente histria de parada cardaca sncope a esclarecer embolia cardiognica Dispnia incapacitante, VEF1 < 30%, Emergncias freqentes, Cor pulmonale, Hipoxemia em oxigenoterapia c/ reteno de CO2, Perda de peso no-intencional Restrito a leito ou cadeira Dependncia para atividade de vida diria Incontinncias Impossibilidade de comunicao Comorbidade importante Comprometimento nutricional na recusa de alimentao via sonda ou nutrio via sonda prejudicada Fase aguda