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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Procuradoria da República no Estado da Bahia EXCELENTÍSSIMO SENHOR JUIZ FEDERAL DA VARA DA SEÇÃO JUDICIÁRIA DO ESTADO DA BAHIA O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, por intermédio dos Procuradores da República infrafirmados, no uso de suas atribuições constitucionais e legais, legitimado nos artigos 127, caput, e 129, III, da Constituição da República, na Lei Complementar nº 75/93 e na Lei nº 7.347/85, vem propor AÇÃO CIVIL PÚBLICA com PEDIDO DE MEDIDA LIMINAR em face de EDIR MACEDO BEZERRA, membro da Igreja Universal do Reino de Deus, CPF 066.929.747-04, com endereço na Rua dos Missionários nº 139, 6º andar, Santo Amaro, São Paulo; da EDITORA GRÁFICA UNIVERSAL LTDA., situada na Estrada Adhemar Bebiano, nº 3.610, Inhaúma, Rio de Janeiro/RJ e da IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS, sito na Av. Antônio Carlos Magalhães, nº 4278, Caminho das Árvores, Salvador/BA, CNPJ 29.744.778/00001-97, representada por Cláudio Rodrigues da Silva, CI nº 11.458.922-48, CPF nº 391.279.823-00, em razão dos fatos e fundamentos que a seguir aduz.

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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALProcuradoria da República no Estado da Bahia

EXCELENTÍSSIMO SENHOR JUIZ FEDERAL DA VARA DA SEÇÃO JUDICIÁRIA DO ESTADO DA BAHIA

O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, por intermédio dos Procuradores da República infrafirmados, no uso de suas atribuições constitucionais e legais, legitimado nos artigos 127, caput, e 129, III, da Constituição da República, na Lei Complementar nº 75/93 e na Lei nº 7.347/85, vem propor

AÇÃO CIVIL PÚBLICAcom

PEDIDO DE MEDIDA LIMINAR

em face de EDIR MACEDO BEZERRA, membro da Igreja Universal do Reino de Deus, CPF 066.929.747-04, com endereço na Rua dos Missionários nº 139, 6º andar, Santo Amaro, São Paulo; da EDITORA GRÁFICA UNIVERSAL LTDA., situada na Estrada Adhemar Bebiano, nº 3.610, Inhaúma, Rio de Janeiro/RJ e da IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS, sito na Av. Antônio Carlos Magalhães, nº 4278, Caminho das Árvores, Salvador/BA, CNPJ nº 29.744.778/00001-97, representada por Cláudio Rodrigues da Silva, CI nº 11.458.922-48, CPF nº 391.279.823-00, em razão dos fatos e fundamentos que a seguir aduz.

MPF - PROCURADORIA DA REPÚBLICA NA BAHIA

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

No âmbito da Procuradoria da República no Estado da Bahia foi instaurado o Procedimento Administrativo nº 1.14.000.000189/2004-21, com o escopo de apurar a prática de intolerância religiosa perpetrada por pastores de igrejas evangélicas pentecostais em desfavor de religiões de matriz africana.

Mais precisamente, submeteu-se à apreciação deste Ministério Público o conteúdo da obra intitulada “Orixás, Caboclos e Guias, deuses ou demônios?”, de autoria do primeiro réu, Edir Macedo, publicada pela Editora Gráfica Universal Ltda., de propriedade da Igreja Universal do Reino de Deus, segundo e terceiros réus, respectivamente.

Da leitura acurada de referida obra percebe-se, de plano, o quão encontra-se impregnada de afirmativas preconceituosas e discriminatórias desferidas contra outras formas de manifestações religiosas e credos, em especial aos cultos afro-brasileiros, tão disseminado em nosso país – alcançando, também diretamente, os seus seguidores.

Tal conduta – que, per se, já se caracterizaria como um ilícito penal, à luz das disposições contidas no artigo 20 da Lei 7.716/89, diploma que define os crimes resultantes de preconceitos de raça ou de cor – , faz semear entre os leitores do aludido texto a prática de intolerância, especificamente da intolerância religiosa, em verdadeira afronta à liberdade de credo e religião assegurada a todos os brasileiros. Vejamos:

2. DA OBRA “ORIXÁS CABOCLOS E GUIAS, DEUSES OU DEMÔNIOS?”

Na obra “Orixás Caboclos e Guias, Deuses ou Demônios?”, o réu Edir Macedo dedica quase que a totalidade de suas páginas a promover ofensas às religiões afro-brasileiras, sempre a elas se referindo com menosprezo, discriminação e preconceito.

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Com efeito, são inúmeras as passagens do seu texto, adiante transcritos, que revelam, manifestamente, o tratamento preconceituoso e discriminatório dispensado pelo seu autor às religiões afro-brasileiras, notadamente o Candomblé, a Umbanda e a Quimbanda – culminando por atingir inevitavelmente, como já dito, os seus seguidores.

Ao longo da obra, recorrentemente, as religiões de origem africana são apresentadas como “seitas demoníacas”, “modo pelo qual o demônio age na face da Terra”, “canais de atuação dos demônios”, dentre outras expressões que objetivam retratá-las como uma facção do mal, associando-as sempre ao diabo. Chega-se ao ponto de responsabilizar a Umbanda, o Candomblé e a Quimbanda pela destruição do ser humano, ad litteris:

Houve com o decorrer dos séculos um sincretismo religioso, ou seja, uma mistura curiosa e diabólica de mitologia africana, indígena brasileira, espiritismo e cristianismo, que criou ou favoreceu o desenvolvimento de cultos fetichistas como a Umbanda, a Quimbanda e o Candomblé. (fl. 23).O diabo, organizador de tudo isso, dessa maneira engana a humanidade. Com rituais, danças e oferendas induz o ser humano a abrir sua vida às forças do inferno, de sorte que fica escravo dos espíritos, pagando um preço incrivelmente alto pelos pequenos favores recebidos, os quais o mantém enganado. (fl. 25).

Os orixás, caboclos e guias na realidade nunca fazem bem em favor de seu “cavalo”. Exigem obediência irrestrita e ameaçam de punição aquele que não estiver “andando na linha”. Vivem sempre castigando seus seguidores e não têm benção alguma para dar. (fl. 25).A alma da mãe de santo, por exemplo, é vendida ao orixá. Há uma chantagem diabólica nesse meio que obriga a pessoa que “faz santo” a renunciar, enquanto vive, a todas as coisas, inclusive a própria salvação. Ameaças são feitas de tal maneira que há um temor imenso entre os praticantes dessas seitas em deixá-las. (fl. 25).

Umbanda, Quimbanda, Candomblé, Kardecismo, Bezerra de Menezes, Esoterismo, etc., são apenas nomes de seitas e filosofias usadas pelos demônios para se apoderarem das pessoas que a eles recorrem. (fl. 44).

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Muitas pessoas estão hoje nas mãos dos espíritos demoníacos devido a impaciência. Deixaram de esperar em Deus a solução para seus problemas e acabaram sendo dominados por exus, caboclos, pretos-velhos, etc. [...] É aí que entra a Umbanda, Quimbanda, Candomblé e as religiões e práticas espíritas de um modo geral, que são os principais canais de atuação dos demônios, principalmente em nossa pátria. (fls. 101/102). (grifos nossos).

Afirma-se também textualmente que os deuses cultuados pelas religiões afro-brasileiras representam “anjos decaídos”, “demônios” e a “personificação do mal”:

No Brasil, em seitas como o Vodu, Macumba, Quimbanda, Candomblé ou Umbanda, os demônios são adorados, agradados ou servidos como verdadeiros deuses. No espiritismo mais sofisticado, eles se manifestam mentindo, afirmando serem espíritos de pessoas que já morreram (médicos, poetas, escritores, pintores, sábios, etc.). (fl. 24).

No Candomblé, Oxum, Iemanjá, Ogum e outros demônios são verdadeiros deuses a quem o adepto oferece trabalhos de sangue para agradar, quando alguma coisa não está indo bem ou quando deseja receber algo especial. (fl. 24).

Muitas pessoas têm procurado os demônios e abrem a vida para eles, porque pensam que são “anjos de luz”. Com nomes bonitos e cheio de aparatos, os demônios vêm enganando às pessoas com doutrinas diabólicas. Chamam-se: orixás, caboclos, pretos-velhos, guias, espíritos familiares, espíritos de luz, etc. Dizem ser exus, erês, espíritos de crianças, médicos famoso, poetas famosos etc., mas na verdade são anjos decaídos, na diabólica missão de afastar o homem de deus e destruí-lo, sendo que enquanto não fazem isso, se aproveitam dele. (fl. 33).

O homem tem toda a liberdade para escolher entre servir a Deus e servir ao diabo. Ele pode ser templo do Espírito Santo ou cavalo, burrinho, aparelho, porteira de um exu, um caboclo ou demônios semelhantes. (fl. 38).

Na Umbanda há uma preferência muito grande por sangue, no Candomblé as ervas ocupam a preferência dos demônios. (fl. 106). (grifos nossos).

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Dando continuidade às manifestações de cunho preconceituoso, discriminatório e pejorativo, presentes em praticamente toda a obra, o réu Edir Macedo acrescenta que os adeptos das religiões afro-brasileiras, ao cultuar os seus deuses, o fazem com o objetivo de buscar algo ilícito ou imoral:

Na Quimbanda, os deuses são os exus, os quais são adorados e servidos no intuito de se alcançar alguma vantagem sobre um inimigo ou alguma coisa imoral, como conquistar a mulher ou o marido de alguém, obter favores por meios ilícitos, etc. (fl. 24).A pomba-gira causa em muitas mulheres o câncer de útero, ovário, frigidez sexual e outras doenças. À sua atuação atribui-se comportamentos ligados à práticas sexuais ilícitas e outras situações ligadas à sensualidade pecaminosa. (fl. 36, figura). (grifos nossos).

Partindo de uma visão depreciativa, o livro, como descrito adiante, busca passar aos leitores a idéia de que os entes cultuados pelas religiões afro-brasileiras – como os caboclos, pretos-velhos e exus – são espíritos malignos sem corpo:

Na realidade, orixás, caboclos e guias, seja lá quem foram, tenham lá o nome mais bonito, não são deuses. Os exus, os pretos-velhos, os espíritos de criança, os caboclos ou os “santos” são espíritos malignos sem corpo, que anseiam achar um meio para se expressarem nesse mundo, mas não o podem antes de possuírem um corpo. Por isso procuram o corpo humano. (fl. 25). (grifos nossos).

O primeiro réu narra, também, supostos episódios grotescos dos quais supostamente participam “ex-pais ou mães-de-santo”, representantes de seitas como o Candomblé, buscando retratar e induzir o leitor que aqueles só alcançaram a “salvação”, livrando-se dos “demônios”, que nada mais eram que os seus guias espirituais, após tornaram-se adeptos da Igreja Universal.

Com fulcro nestas falsas e deturpadas premissas, criadas pelo próprio Edir Macedo, busca-se incitar os fiéis das religiões de matriz africana a abandonarem suas crenças, sob a alegação de que

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apenas a devoção às pregações por ele transmitidas podem salvar e conduzir a Deus. A propósito, vejamos alguns trechos:

Na nossa igreja temos centenas de ex-pais-de-santo e ex-mães-de-santo, os quais foram enganados pelos espíritos malignos durante anos a fio. (fl. 25). Decepcionaram-se ao constatar que os mais fortes “protetores” com quem contavam não passavam de demônios. Impressionaram-se ao ouvir os próprios orixás e caboclos confessarem diante da multidão que não passavam de demônios, cuja missão é enganar, arrasar e destruir os seus “cavalos”. (fl. 26).

A maioria desses irmãos e irmãs trabalham na igreja como obreiros. Querem que todas as pessoas conheçam a verdade dessa falsidade chamada espiritismo. (fl. 26).

Se você, meu amigo leitor, crê em Deus e em Jesus Cristo e pratica qualquer forma de consulta aos mortos ou adoração a “deuses” com nome de orixás, caboclos, pretos-velhos e guias; se você presta culto ou oferece sangue e sacrifício a entidades, atenda a voz de Deus e nunca mais pratique esses coisas [...] participe de uma reunião de libertação em nossas igrejas e o Senhor Jesus Cristo o libertará dessas práticas condenadas por Deus, as quais nada tem de religião. (fl. 27).

Milhares de pais-de-santo e mães-de-santo que chegaram até nós ficaram surpreendidos ao verificarem que o “encosto” que possuíam era o mesmo guia-de-frente que dava conselhos, consultas e parecia bonzinho. (fl. 64).

Muitas pessoas que têm chegado doentes às nossas reuniões saem curadas após terem expulsado de suas vidas os exus, caboclos, orixás e todo tipo de demônios que habitavam nelas. [...] Os demônios só não levam todos os seus seguidores à loucura porque não haveria quem espalhasse as suas doutrinas infernais. Caso não houvesse essa necessidade, todos os que praticam o espiritismo seriam irremediavelmente débeis mentais. (fl. 90).

Há pessoas que fazem pacto com o diabo. Oferecem manjares às entidades nas encruzilhadas, cemitérios, matas, pedreiras, cachoeiras; acendem velas para as “almas”; vivem se orientando por horóscopos; consultam búzios, se relacionam com os orixás, os exus e os guias mais diversos, entretanto, ao chegarem em nossas igrejas, são completamente libertadas daqueles espíritos opressores. (fl. 122). (grifos nossos).

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Mas não é só. No decorrer de tantas e tantas páginas, o “sermão” pregado pelo primeiro réu exsurge, cada vez mais, impregnado de preconceito e discriminação. Não se contentando com as afirmações proferidas em desrespeito aos cultos africanos, o primeiro réu estimula os leitores a combater (!) estas formas de manifestações religiosas – fazendo referência, desta feita, também ao espiritismo e às religiões orientais –, a fim expulsar os “exus e Cia. ilimitada” das vidas das pessoas. Confira-se:

Você entenderá então porque combatemos o espiritismo e suas ramificações com todas as nossas forças. Essa religião tão popular no Brasil é uma fábrica de loucos e uma agência onde se tira o passaporte para morte e uma viagem para o inferno. (fl. 79).Vivemos em plena era do demonismo. O espiritismo está, sob as suas mais diversas ramificações, dominado a mente das pessoas. As religiões orientais, regadas a demônios, estão, sob capa cristã ou não, invadindo o mundo, entrando nos salões e coabitando nos casebres da favelas. Com vasta distribuição de literatura e pregação disfarçada, se apresentam por toda a parte, disseminado a prática do demonismo. A igreja tem de agir. (fl. 119).Não há exu, caboclo, orixá, preto-velho, omolu, erê, nem qualquer força do inferno que possas resistir à nossa ordem quando dada em nome de Jesus. O diabo sabe disso e treme quando este nome é pronunciado com autoridade.

[...] os demônios caem de joelhos, os exus e Cia. rolam no chão e andam de joelhos se ordenarmos isso a eles. Amigo leitor, comece hoje mesmo a exercer a autoridade que Jesus lhe confere. Não abra mão de seus direitos; não deixe de lado o que o Senhor lhe concedeu; agarre-se com unhas e dentes às benções de Jesus e pise na cabeça dos exus e Cia. ilimitada! (fl. 126).Alguém que deseja exercer autoridade do nome de Jesus precisa primeiramente crer que Jesus é o Senhor e que não há outro nome dado entre os homens pelo qual importa que sejamos salvos. Tendo esta certeza e convicção, pode partir para cima dos exus, caboclos e expulsá-los das vidas das pessoas. (fl. 128).Não esqueça que quase todos os macumbeiros são sinceros e vivem no erro por ignorância espiritual. Fale com eles com muito amor e compaixão; jamais discute ou

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tente impor pela força o conhecimento e a fé que você adquiriu em Jesus Cristo, mas, não os iluda, eles precisam saber que se não abandonarem seus ritos diabólicos serão condenados por Deus. (fl. 144). (grifos nossos).

Percebe-se, pois, que o primeiro réu age com o claro propósito de menosprezar e afastar os adeptos e os simpatizantes das religiões afro de suas crenças, sustentando que os deuses por eles cultuados não passam de espíritos do mal. Ao mesmo tempo, procura instigar os seguidores da Igreja Universal a discriminarem os cultos afro, utilizando-se de expressões como “a igreja tem que agir”, “parta para cima dos exus, caboclos”, “pise na cabeça dos exus e Cia limitada”.

Não fosse o bastante, o réu Edir Macedo associa as religiões afro-brasileiras à idéia de pecado mortal, isto é, aquilo que, na doutrina cristã, viola as leis de Deus e traz tormento à alma. Para atingir o seu desiderato, chega a afirmar de forma categórica – com base supostamente no texto bíblico, não condizentes com a realidade – que tais religiões são condenadas por Deus e proibidas no aprendizado dos escritos da Bíblia:

A Bíblia condena todas as práticas da Umbanda, do Candomblé e do espiritismo de um modo geral [...] mostrando a desaprovação de Deus a essas práticas enganosas e diabólicas. (fl. 26).Existem pessoas que freqüentam os terreiros de Umbanda, Quimbanda, Candomblé e similares, e acreditam que estão servindo a Deus. É impossível considerar tal coisa, pois a feitiçaria e todas as suas práticas, como consulta aos mortos, mediunismo, intercessão através de guias, outros deuses como os orixás e os caboclos são pecados contra Deus. (fl. 40).[...] participe de uma reunião de libertação em nossas igrejas e o Senhor Jesus Cristo o libertará dessas práticas condenadas por Deus, as quais nada tem de religião. (fl. 27). (grifos nossos).

A intolerância religiosa propalada na obra em referência chega ao ponto de Edir Macedo também dirigir seus comentários a determinados alimentos apreciados pelos adeptos dos cultos afro – hoje, advirta-se,

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pratos tipicamente brasileiros -, os quais, segundo o primeiro réu, podem “causar doenças” e “vômitos”:

Todas as pessoas que se alimentam dos pratos vendidos pelas famosas “baianas” estão sujeitas mais cedo ou mais tarde a sofrer do estômago. Quase todas essas baianas são filhas-de-santo ou mães-de-santo que “trabalham” a comida para terem boa venda. Algumas pessoas chegam a vomitar as coisas que comeram. (fl. 48). (grifos nossos).

Derradeiramente, de forma despropositada, compara os rituais das religiões afro-brasileiras com a iniciação no uso de entorpecentes:

No espiritismo, de modo geral, é assim. A pessoa vai descendo sempre. A tendência é se atolar mais e mais no lamaçal do diabo; tudo sorrateiramente. Começa-se no alto, faz-se limpeza, caridade, vai-se aprofundando. Depois diz-se que a pessoa já está bastante “evoluída” e pode prestar caridade aos espíritos atrasados e aí, sem que perceba, muitas vezes pensando estar fazendo algo bom, começa o envolvimento direto ou indireto com as piores classes de demônios. É semelhante à iniciação no mundo das drogas: experimentação, uso e tráfico. (fl. 85). (grifos nossos).

Note-se, ainda, que o réu Edir Macedo atribui o subdesenvolvimento do Brasil ao culto às religiões afro-brasileiras:

Se o povo brasileiro tivesse os olhos bem abertos contra a feitiçaria, a bruxaria e a magia, oficializadas pela Umbanda, Quimbanda, Candomblé, Kardecismo e outros nomes, que vivem destruindo as vidas e os lares, certamente seríamos um país bem mais desenvolvido. (fl. 67). (grifos nossos).

Enfim, da leitura atenta dos inúmeros fragmentos transcritos, percebe-se, claramente, que o primeiro réu, de forma direta e incisiva, buscar induzir e incitar, por meio de publicação literária, patrocinada pelos segundo e terceiros réus, a discriminação e o preconceito em desfavor do Candomblé, da Quimbanda, e da Umbanda, além de outras formas de manifestações religiosas, em flagrante violação ao princípio da liberdade religiosa, consagrado pela Constituição Federal.

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3 - A RELIGIÃO AFRO-BRASILEIRA COMO MANIFESTAÇÃO CULTURAL

Importante advertir, desde já, que não se pretende aqui fazer apologia a qualquer das religiões hoje professadas em nosso país, mas sim demonstrar que a diversidade religiosa deve ser, além de respeitada, acolhida e prestigiada, levando-se em consideração a sua influência na formação cultural do povo brasileiro. E aceitar uma convivência respeitosa e tolerante não significa passar a professar ou compartilhar a crença em questão, mas garantir o espaço necessário para que aqueles que o quiserem o façam e sintam-se confortáveis, respeitados nesta escolha.

Sem dúvida que as religiões afro-brasileiras estão incorporadas à nossa cultura, valendo inclusive destacar que quando estas começaram a aparecer, o conceito de nação ganhou nova força e significado, em parte como um símbolo de transmissão de tradições religiosas e locais, e em parte como uma marca da identidade étnica.1 Portanto, muito mais que assegurar o direito de determinada minoria – hoje representativa de uma parcela significativa da nossa população -, é indispensável reconhecermos também o seu valor histórico-cultural, buscando impedir que importantes tradições , culturas e hábitos delas oriundos esvaiam-se do cenário brasileiro.

Anteriormente caracterizadas como religiões africanas, hoje recebem a nomenclatura de religiões afro-brasileiras, haja vista o sincretismo com a cultura local e a “absorção” de suas raízes pela sociedade pátria. Ou seja, no Brasil, as misturas se acentuaram, resultando em tradições, crenças e costumes que se incorporaram ao modo de vida nacional, se revelando hoje, inequivocamente, indissociáveis da cultura brasileira como um todo. Qualquer manobra tendente a discriminar essas religiões, além da ofensa ao direito de liberdade de escolha da crença, implica manifesta afronta à cidadania, á dignidade da pessoa humana e, no caso, à própria memória cultural e ao patrimônio histórico do país.1 JENSEN, Tina Gudrun. Discursos sobre as religiões afro-brasileiras: Da desafricanização para a reafricanização. Revista de Estudos da Religião, São Paulo, n. 1; p. 1-21, 2001.

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Não é outro o entendimento da doutrina, capitaneado nas palavras de Manoel Jorge e Silva e Neto, que acentua que o credo afro se traduz em autêntico direito cultural de nossos tempos e, por isso, a sua fruição é tutelada pela Carta Magna, verbis:

Desde os primórdios da colonização brasileira, os negros sempre foram cerceados no tocante ao exercício de sua fé religiosa, tanto que emblemático da situação o fenômeno do sincretismo, pelo qual os antigos escravos africanos vinculavam uma divindade da sua religião aos santos católicos. O tempo passou e a manifestação religiosa do povo africano deixou de configurar mera opção por credo para evidenciar autêntico direito cultural da nossa civilização. E, na condição de direito cultural, assegura-se no Texto Constitucional a sua fruição por todos, consoante enuncia o art. 215, caput.2

O resultado da miscigenação de raças, credos e culturas, responsável por conferir identidade ao povo brasileiro, ocorreu, em grande parte, por força da contribuição prestada pelos negros africanos trazidos para o Brasil durante o período escravagista. No contexto do Brasil escravocrata, a religião foi uma das formas encontradas pelos negros para conservar a sua identidade e costumes.

Sobre o tema, assinalamos as considerações do promotor de Justiça baiano Lindivaldo Raimundo Britto:

A crença dos negros foi um fator decisivo de sobrevivência. A sua força interior foi crucial para o enfrentamento da realidade tão hostil e inóspita, razão pela qual souberam se unir em torno da fé. Malgrado a disposição do sistema estatal escravagista de separar os que aqui chegavam, a fim de impedir a formação de grupos étnicos, ainda assim puderam os negros preservar grande parte dos fundamentos de suas religiões, que tinham uma origem comum na Mãe África. Portanto, com as adaptações e simbioses entre as diversas culturas

2 NETO, Manoel Jorge e Silva. A Proteção Constitucional à Liberdade Religiosa. Brasília: Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 40, p. 120, 2003.

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africanas e a própria cultura nacional, formaram-se as religiões afro-brasileiras.3

Revela-se, pois, que a nacionalidade brasileira é fruto de uma miscigenação de raças, línguas e também religiões. Tal diversidade, por conseguinte, deve ser por todos respeitada, o que não se observa diante do conjunto de pregações discriminatórias, preconceituosas e injuriosas contidas no livro em referência, as quais são desferidas contra o legítimo direito à liberdade de religião, e, também, não se duvide, em desfavor do patrimônio histórico brasileiro.

4. A LIBERDADE RELIGIOSA NO TEXTO CONSTITUCIONAL E A LIBERDADE DE COMUNICAÇÃO DAS IDÉIAS RELIGIOSAS.

A liberdade religiosa é expressamente consagrada na Constituição Federal de 1988, nos termos do artigo 5º, inciso VI:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]

VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.

A proibição de qualquer forma de discriminação também encontra amparo constitucional. Dispõe a Lei Maior, dentre seus objetivos, a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV), para, mais adiante, estabelecer que a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais (art. 5º, XLI).

3 BRITTO, Lindivaldo Raimundo. Os tombamentos dos templos católicos e dos terreiros de Candomblé na Bahia – uma comparação quantitativa. Curso de Especialização em Direitos Humanos, Bahia, p. 18, 2001.

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De igual sorte, a proteção das manifestações da cultura afro-brasileira é assegurada constitucionalmente:

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.

§1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

I – as formas de expressão;

II – os modos de criar, fazer e viver;[...]

§1º - O poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação. (grifos nossos).

A Constituição Federal, portanto, reconhece que os negros africanos integram um dos grupos participantes do processo civilizatório nacional, cabendo ao Estado proteger todas as suas formas de manifestação cultural.

Nunca é demais reiterar que a manifestação religiosa afro-brasileira constitui-se numa das formas mais importantes de expressão da cultura afro, que, como tal, merece toda a proteção do Poder Público. Assim, a defesa das religiões e cultos de matrizes africana tem o condão de assegurar o direito à liberdade de religião e a garantir a preservação da própria história do povo brasileiro.

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José Afonso da Silva, ao discorrer sobre a liberdade de crença, assim explicita:

Na liberdade de crença entra a liberdade de escolha da religião, a liberdade de aderir a qualquer seita religiosa, a liberdade (ou o direito) de mudar de religião, mas também compreende a liberdade de não aderir a religião alguma, assim como a liberdade de descrença, a liberdade de ser ateu e de exprimir o agnosticismo. Mas não compreende a liberdade de embaraçar o livre exercício de qualquer religião, de qualquer crença, pois aqui também a liberdade de alguém vai até onde não prejudique a liberdade dos outros.4

(grifos nossos).

Dentro do gênero liberdades religiosas, convém destacar ainda o que a doutrina denomina de liberdade de comunicação das idéias religiosas. Corolário do disposto no artigo 5º da Constituição Federal, pode ser definida como a transmissão de catequeses a terceiros, geralmente com o propósito de convertê-los à religião daquele que faz a pregação. Trata-se, pois, do proselitismo religioso.

Enfim, a liberdade de crença não é absoluta pois não abarca, obviamente, a liberdade de embaraçar o exercício de qualquer religião. Também não é plena a liberdade de comunicação das idéias religiosas.

Com efeito, o artigo 208 do Código Penal sanciona aquele que “escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa” ou “vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”. Por sua vez, o artigo 20 da Lei 7.716/89, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, pune a conduta de “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de religião”.

Ora, se a ordem legal define como fato típico e antijurídico a discriminação religiosa, não poderíamos subtrair tais condutas da pertinente apreciação na esfera cível – sobretudo quando identificamos que o que está em jogo são direitos humanos 4 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo. Malheiros, 2004, p. 248.

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fundamentais, bens jurídicos vitais para o funcionamento do sistema social, os quais devem merecer a devida tutela do Estado.

A liberdade de religião, como forma de manifestação do pensamento - princípio em que devem se apoiar os réus para justificar as suas condutas desmedidas e ofensivas -, deve ser interpretada em seu exato sentido, não podendo servir de instrumento para “acobertar” condutas ilegais.

O direito à livre manifestação do pensamento pode, assim, ser exercido plenamente desde que não sejam feridos os bens jurídicos igualmente tutelados pela ordem jurídica.

4.1 - A LIBERDADE DE RELIGIÃO VERSUS A LIBERDADE DE EXPRESSÃO, ANTE O PRECONCEITO E A DISCRIMINAÇÃO

Embora de população predominantemente religiosa, o Brasil é um Estado laico, em que inexiste vinculação entre o Poder Público e as Igrejas, sendo a todos assegurada a liberdade de consciência e crença religiosa, nos termos do inciso VI, do artigo 5º, da Carta Republicana, cujo enunciado mais uma vez transcrevemos:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

A liberdade de religião, entendendo-se como tal o direito de manifestar as próprias crenças, seja de forma individual ou coletiva, pública ou privada, também é garantida no artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos Humanos e nos artigos 2º, 3º e 4º da Declaração Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação Fundadas na Religião ou nas Convicções, in verbis:

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Declaração Universal dos Direitos Humanos:Art. 18. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência, religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou particular.

Declaração sobre a eliminação de todas as formas de intolerância e discriminação fundadas na religião ou nas convicções:Art. 2º1. Ninguém será objeto de discriminação por motivos de religião ou convicções por parte de nenhum estado, instituição, grupo de pessoas ou particulares. 2. Aos efeitos da presente declaração, entende-se por " intolerância e discriminação baseadas na religião ou nas convicções" toda a distinção, exclusão, restrição ou preferência fundada na religião ou nas convicções e cujo fim ou efeito seja a abolição ou o fim do reconhecimento, o gozo e o exercício em igualdade dos direitos humanos e das liberdades fundamentais.

Art. 3º

A discriminação entre os seres humanos por motivos de religião ou de convicções constitui uma ofensa à dignidade humana e uma negação dos princípios da Carta das Nações Unidas, e deve ser condenada como uma violação dos direitos humanos e das liberdades fundamentais proclamados na Declaração Universal de Direitos Humanos e enunciados detalhadamente nos Pactos internacionais de direitos humanos, e como um obstáculo para as relações amistosas e pacíficas entre as nações.

Art. 4º

1. Todos os Estados adotarão medidas eficazes para prevenir e eliminar toda discriminação por motivos de religião ou convicções no reconhecimento, o exercício e o gozo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais em todas as esferas da vida civil, econômica, política, social e cultural.

2. Todos os Estados farão todos os esforços necessários para promulgar ou derrogar leis, segundo seja o caso, a fim de proibir toda discriminação deste tipo e por tomar as medidas adequadas para combater a intolerância por motivos ou convicções na matéria. (grifos nossos).

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Impõe-se destacar ainda os termos da Convenção Americana de Direitos Humanos - Pacto de São José da Costa Rica sobre o Direito Constitucional Internacional -, que preceitua no artigo 12:

Art. 12

1. Toda pessoa tem direito à liberdade de consciência e de religião. Esse direito implica a liberdade de conservar sua religião ou suas crenças , bem como a liberdade de professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto em público como em privado.

2. A liberdade de manifestar a própria religião e as próprias crenças está sujeita unicamente às limitações prescritas pela lei e que sejam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral pública ou os direitos ou liberdade das demais pessoas.” (grifos nossos).

Percebe-se, pois, que o direito à livre manifestação de pensamento, no qual está incluída a liberdade de credo, como direito fundamental da pessoa humana, tem respaldo tanto no ordenamento jurídico interno, como ainda nos principais diplomas normativos internacionais.

Nesse aspecto, Alexandre de Moraes destaca o que representa o desrespeito à fé e às idéias de índole espiritual:

A conquista constitucional da liberdade religiosa é verdadeira consagração de maturidade de um povo, pois como salientado por Themístocles Cavalcanti, é ela verdadeiro desdobramento da liberdade de pensamento e manifestação. A abrangência do preceito constitucional é ampla, pois sendo a religião o complexo de princípios que dirigem os pensamentos, ações e adoração do homem para com Deus, acaba por compreender a crença, o dogma, a moral, a liturgia e o culto. O constrangimento à pessoa humana, de forma a constrangê-lo a renunciar sua fé, representa o desrespeito à diversidade democrática de idéias, filosóficas e a própria diversidade espiritual.5

5

MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. São Paulo: Atlas, 2004, p. 75.

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Reitere-se, pois pertinente, que a prática, o induzimento ou a incitação a discriminação ou preconceito de religião caracteriza-se como ilícito penal, nos termos do artigo 20 da Lei 7.716/89:

Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

[...]

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Pena: reclusão de um a três anos e multa.

Conclui-se, destarte, que os direitos e garantias fundamentais não são absolutos, ilimitados, uma vez que encontram seus limites nos demais direitos igualmente consagrados pela Carta Constitucional. Ou seja, a todos os indivíduos é constitucionalmente garantida a livre manifestação de suas convicções religiosas, desde que esta não interfira no direito à liberdade de religião de outrem.

É o que assinala José Afonso da Silva:

Na liberdade de crença entra a liberdade de escolha da religião, a liberdade de aderir a qualquer seita religiosa, a liberdade (ou o direito) de mudar de religião, mas também compreende a liberdade de não aderir à religião alguma, assim como a liberdade de descrença, a liberdade de ser ateu e de exprimir o agnosticismo. Mas não compreende a liberdade de embaraçar o livre exercício de qualquer religião, de qualquer crença, pois aqui também a liberdade de alguém vai até onde não prejudique a liberdade dos outros.6

(grifos nossos).

Tal raciocínio vem ainda corroborado na doutrina de Alexandre de Moraes:

6 SILVA, José Afonso da, op. cit., p. 248.

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Os direitos e garantias fundamentais consagrados na Constituição Federal, portanto, não são ilimitados, uma vez que encontram seus limites nos demais direitos consagrados pela Carta Magna (Princípio da relatividade ou convivência das liberdades públicas). [...] Apontando a relatividade dos direitos fundamentais, Quiroga Lavié afirma que os direitos fundamentais nascem para reduzir a ação do Estado aos limites impostos pela Constituição, sem contudo desconhecerem a subordinação do indivíduo ao Estado, como garantia de que eles operem dentro dos limites impostos pelo direito.7

O Supremo Tribunal Federal, enfrentando a matéria, num dos julgamentos mais emblemáticos de sua história, proclamou em data recente:

EMENTA: HABEAS-CORPUS. PUBLICAÇÃO DE LIVROS: ANTI-SEMITISMO. RACISMO. CRIME IMPRESCRITÍVEL. CONCEITUAÇÃO. ABRANGÊNCIA CONSTITUCIONAL. LIBERDADE DE EXPRESSÃO. LIMITES. ORDEM DENEGADA.

[...] Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como absoluta. Limites morais e jurídicos. O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal. 14. As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º, § 2º, primeira parte). O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o "direito à incitação ao racismo", dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra [...].(grifos nossos).8

Sob o manto de que estaria a exercer a sua crença religiosa, tendo direito, pois, à liberdade de expressão, o réu Edir Macedo promove flagrante discriminação de outras formas de manifestação religiosa, agravado pelo propósito de captar novos adeptos, afastando-os de sua fé tradicional.

7

MORAES, 2004, op. cit., p. 63.8 Supremo Tribunal Federal. Penal. Habeas Corpus n° 82.424-2. Rio Grande do Sul. Paciente: Siegfried Ellanger. Impetrante: Wener Cantalício João Becker e outra. Impetrado: Superior Tribunal de Justiça. Relator: Ministro Moreira Alves. Material disponibilizado pela Coordenadoria de Análise de Jurisprudência do STF. Brasília, 2003.

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Obviamente que o direito à liberdade de expressão não pode albergar posturas preconceituosas e discriminatórias, sobretudo quando caracterizadas como infração penal. O Estado e a sociedade devem orientar-se por uma convivência harmoniosa entre as religiões, evitando o fomento da discriminação e do preconceito. É, portanto, dever do Estado garantir o direito à liberdade de crenças, inclusive – se necessário for, como ora demonstrado –, mediante a retirada de circulação de obras literárias ofensivas a este direito fundamental.

Ao veicular, em sua obra, atos atentatórios à cidadania, à dignidade da pessoa humana, bem como à liberdade de crença religiosa, o primeiro demandado – com a aquiescência deliberada dos segundo e terceiros réus – utiliza de maneira manifestamente deturpada uma prerrogativa constitucional, pois, sob a égide da consagrada "liberdade de expressão", incita todos os seus leitores a assumirem uma postura preconceituosa e discriminatória em relação à religião afro-brasileira.

Preconceituar é anteceder algum juízo de valoração a respeito de algo que ainda não se conhece. É conceber, é julgar, de forma antecipada. Ao mesmo tempo, o preconceito tem índole subjetiva, psicológica, expressando opinião de foro íntimo daquele que o cultiva.9

O preconceito tende a desconsiderar a individualidade, atribuindo, a priori, características, em geral grosseiras, aos membros de determinado grupo já estigmatizado. Assim, o sentido da expressão preconceito religioso pode ser definido como um juízo antecipado de índole negativa dirigido a grupamentos religiosos ou que cultuam certos credos.

Na discriminação elege-se determinado grupo, que não se entremeia com outro, em função exclusiva de suas características

9 SILVA, Sidney Pessoa Madruga da. Discriminação Positiva: ações afirmativas na realidade brasileira. Brasília: Brasília Jurídica. 2005, p. 137/138.

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étnicas, culturais, religiosas, etc. Quando se discrimina, distingue-se, separa-se, segrega-se, estrema-se uma coisa de outra.10 A discriminação religiosa ocorre quando o discrime praticado utiliza-se de critérios religiosos ou de crença de forma negativa. Distingue-se, por exemplo, o judeu do cristão, o católico do protestante, o umbandista do pastor evangélico.

Embora o ato discriminatório tenha origem, muitas vezes, no preconceito, verifica-se que são termos com significados distintos. Enquanto a discriminação denota um ato segregacionista, um desigualar entre dois fatores, traduz-se o preconceito numa postura interna preconcebida, de ordem psicológica, em relação ao próximo.11

Por fim, vale compilar os ensinamentos deixados pelo Papa João Paulo II, no dia mundial da paz em 1999, em mensagem dirigida aos chefes de Estado, na qual define a liberdade religiosa como direito inalienável:

A liberdade religiosa constitui o coração dos direitos humanos. Essa é de tal maneira inviolável que exige que se reconheça às pessoas a liberdade de mudar de religião se assim sua consciência demandar. Cada qual, de fato, é obrigado a seguir sua consciência em todas as circunstâncias e não pode ser constrangido a agir em contraste com ela. Devido a esse direito inalienável, ninguém pode ser obrigado a aceitar pela força uma determinada religião, quaisquer que sejam as circunstâncias ou as motivações.12

5 - DA INTOLERÂNCIA RELIGIOSA

A prática de intolerância religiosa – um dos principais motivos dos conflitos ao redor do mundo - também no Brasil é lamentavelmente uma realidade presente, boa parte capitaneada por integrantes da Igreja Universal. O próprio réu Edir Macedo comumente utiliza-se dos meios televisivos – de propriedade da

10 Ibidem.11 SILVA, Sidney Pessoa Madruga da, op. cit., p. 138.12 ALMEIDA, Dayse Coelho de. DEMONIZAÇÃO DAS RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp>. Acesso em: 09 mar. 2005.

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Igreja Universal – para desferir ataques pessoais de forma a hostilizar e ofender outras religiões, especialmente as de origem africana. Sempre oportuno lembrar, entre outros,13 o deplorável episódio envolvendo o bispo da Igreja Universal, Sério Von Helde, que, no dia 12 de outubro de 1995, ao vivo e a cores para todo o Brasil, “golpeou” por 22 vezes consecutivas, utilizando-se dos pés e das mãos, a imagem da Santa de Nossa Senhora Aparecida, o que lhe rendeu, posteriormente, uma pena de dois anos de reclusão por incitar o preconceito religioso.

Tamanhos os ataques da Igreja Universal em relação aos adeptos das variações do Candomblé, que tal prática de intolerância já foi objeto de sessão solene realizada na Câmara dos Deputados, em Brasília-DF, oportunidade em que diversas autoridades religiosas puderam explanar perante Deputados e Senadores acerca da nefasta utilização de veículos de comunicação em ações sistemáticas dirigidas as religiões e cultos afro.14

Essa constante violação do direito à liberdade religiosa foi documentada pela Iyalorisá Mãe Wanda D’Osun, do Ile Ilè Ìyá Mí Òsún Mùíywá, em nota encaminhada à Ministra de Estado da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Matilde Ribeiro, destacando que, apesar da Constituição Cidadã garantir livre manifestação religiosa, na prática, os seguidores das religiões de origem africana não conseguem exercer esse direito de forma livre e democrática:

A despeito dos dispositivos constitucionais e da legislação ordinária, a intolerância de natureza religiosa/racial configura uma das faces mais abjetas do racismo brasileiro, mantendo-se intacta ao longo de toda a história, e resistindo, inclusive, ao processo de democratização, cujo marco fundamental foi a promulgação da Constituição de 88. Dados da realidade nos autorizam a afirmar a existência de um verdadeiro hiato entre os direitos constitucionalmente deferidos e o cotidiano de violações de direitos que vitimizam os

13 No mesmo sentido, confira outras notícias veiculadas no site: <http://www.mundonegro.com.br/noticias>. Acesso em: 12 abr. 2005.14 Sessão Solene: Religiões Afro-brasileiras – Tradição e Resistência, realizada no Plenário Ulysses Guimarães, na Câmara Federal, em 20 de março de 2003.

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templos e os ministros das religiões de matriz africana.15

Os réus, ao publicarem uma obra literária “demonizando” os cultos de matriz africana, favorecem a discriminação e segregação social daqueles que os cultuam, ferindo, inclusive, o princípio da dignidade da pessoa humana, em razão da “opção religiosa estar tão incorporada ao substrato de ser humano – até para não se optar por religião alguma – que o seu desrespeito provoca idêntico desacato à dignidade da pessoa.”.16

Ao propalar-se indevidamente que as religiões afro-brasileiras constituem-se em “cultos diabólicos”, tem-se caracterizada evidente ofensa ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

Dayse Coelho Almeida, sobre o tema, acrescenta:

A transformação das religiões afro-brasileiras em "religião do diabo", "seita diabólica", "gente do mal", "lugar de encostos", é favorecer um preconceito sobre os que as praticam e até mesmo torná-los alvo de discriminação e segregação social, além de constituir ofensa ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Permitir que isto continue significaria abrir as portas para os ataques mútuos, o que poderia culminar em uma guerra religiosa, ou então favorecer o engrandecimento de uma religião em detrimento das outras, criando a ditadura da mesma.17

As práticas discriminatórias já estão tão disseminadas nos meios de comunicação que, no documento acima referido, a Iyalorisá Mãe Wanda D’Osun propõe, dentre as medidas a serem tomadas pelo Poder Público, a proibição de distribuição de jornais, revistas e panfletos que ridicularizam, difamam e satanizam as religiões afro-brasileiras, in verbis:

15 Disponível em: <http:www.ileosunmuiywa.com.br/crenca.html>. Acesso em: 18. mar. 2005.16 NETO, Manoel Jorge e Silva, 2003, op. cit., p. 118.17 ALMEIDA, Dayse Coelho de, op. cit.

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De outro lado, não se pode olvidar que parte substantiva dos problemas enfrentados pelas religiões de matriz africana deve ser resolvida no plano Judiciário, por meio de ações judiciais e políticas que protejam os direitos e interesses e afirmem a dignidade da nossa religião.Assim, sublinhamos a seguir algumas idéias propositivas que, a nosso ver, poderiam ser implementadas para a superação dos problemas apresentados:1.8 - Coibir a veiculação de programas de rádio e TV, assim como a distribuição de jornais, revistas e panfletos que ridicularizam, difamam e satanizam as religiões de matriz africana, induzindo e incitando os telespectadores e leitores a discriminarem tais religiões e seus fiéis. (grifos nossos).18

É preciso por um fim a tal prática de intolerância religiosa, principalmente a veiculada por meios de comunicação e impressos, em razão do seu maior poder de alcance e persuasão, revelando-se, para tanto, lamentavelmente, indispensável a adoção da medida extrema ora perseguida, consistente na retirada de circulação da obra em questão.

6. DA ADEQUAÇÃO DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA E DA LEGITIMIDADE ATIVA

Incumbe ao Ministério Público, nos termos do artigo 127 da Constituição Federal, “ [...] a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. No mesmo sentido, dispõem os artigos 1º e 2º da Lei Complementar 75/93.

No rol dos direitos individuais indisponíveis têm especial relevância os direitos fundamentais, precipuamente quando se trata, como no caso em análise, de questões envolvendo condutas discriminatórias contra minorias em ofensa aos princípios, direitos e garantias previstos no artigo 5º, caput, da Constituição, e a proibição de discriminação, inscrita no artigo 3º, IV.

Não há duvida de que, no caso, trata-se de interesses e direitos difusos, pois, além do direito daqueles que professam as 18 Disponível em: <http:www.ileosunmuiywa.com.br/crenca.html>. Acesso em: 18. mar. 2005.

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religiões afro, é objetiva-se defender também o direito constitucional de toda uma coletividade de viver em um país em que se respeite a ética, a liberdade de crença e valorize a cultura nacional.

Deste modo, o que esta ação pretende é conferir oportunidade às pessoas e à coletividade de exercer os seus direitos fundamentais, entre eles a honra, a intimidade, a dignidade, a liberdade de crença e de expressão.

E o Ministério Público é o órgão ao qual a Constituição Federal atribuiu a guarda dos interesses sociais e individuais indisponíveis, valendo-se, para o efetivo exercício do seu mister, da ação civil pública, disciplinada pela Lei n. 7.347/85 e expressamente prevista na Lei Maior (artigo 129, inciso III).

7. DA COMPETÊNCIA

De acordo com Constituição Federal, nos termos do artigo 109, I, compete aos juízes federais processar e julgar as causas em que houver interesse da União. Já o inciso III do mesmo artigo, confere à Justiça Federal competência para as demandas “fundadas em tratado ou contrato da União com Estado com Estado estrangeiro ou organismo internacional”.

Na espécie, é manifesto o interesse da União na causa, uma vez que o Governo Federal, ao estabelecer as metas do Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH II), priorizou o combate à intolerância religiosa, estabelecendo que se deve: “Prevenir e combater a intolerância religiosa, inclusive no que diz respeito a religiões minoritárias e a cultos afro-brasileiros”(item 110).19

Outrossim, são diversos os instrumentos jurídicos internacionais, subscritos por nossa República, em que assentada a obrigação de velar pelo combate a toda e qualquer forma de discriminação religiosa.

19 Decreto 4.229/02. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 21 out. 2005.

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A propósito, temos a Declaração sobre a Eliminação de Todas as formas de Intolerância e Discriminação Baseadas em Religião ou Crença, adotado pela ONU e já incorporada à nossa ordem jurídica, que em seu artigo 4º dispõe:

Art. 4°1. Todos os Estados adotarão medidas eficazes para prevenir e eliminar toda discriminação por motivos de religião ou convicções no reconhecimento, o exercício e o gozo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais em todas as esferas da vida civil, econômica, política, social e cultural. 2. Todos os Estados farão todos os esforços necessários para promulgar ou derrogar leis, segundo seja o caso, a fim de proibir toda discriminação deste tipo e por tomar as medidas adequadas para combater a intolerância por motivos ou convicções na matéria.20

De igual sorte, temos a Convenção Americana de Direitos Humanos - Pacto de São José da Costa Rica sobre o Direito Constitucional Internacional -, também ratificada pelo Governo Brasileiro, por intermédio do Decreto n.º 678 de 06.11.1992, cujo artigo 12 preceitua:

Art. 121. Toda pessoa tem direito à liberdade de consciência e de religião. Esse direito implica a liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, bem como a liberdade de professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto em público como em privado.

[...]

3. A liberdade de manifestar a própria religião e as próprias crenças está sujeita unicamente às limitações prescritas pela lei e que sejam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral pública ou os direitos ou liberdade das demais pessoas.21

Não fosse o bastante, a presença do Ministério Público Federal como parte autora, por si só, firma a competência da Justiça

20 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 21 out. 2005.21 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 21 out. 2005.

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Federal. Com efeito, se a Procuradoria da República está a cumprir uma atribuição prevista na Carta Política e em sua Lei Orgânica, a ação judicial daí originada só pode ser proposta na Justiça Federal.

É o que reconhece a própria jurisprudência:

PROCESSUAL – MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL – PARTE – COMPETÊNCIA – JUSTIÇA FEDERALSe o Ministério Público Federal é parte, a Justiça Federal é competente para conhecer do processo.” (CC Nº 4.927-0-DF, DJU DE 4/10/93, Rel. Min. Humberto Gomes Barros) “EMENTA: CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. MINISTÉRIO PÚBLICO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. 1. O Ministério Público é instituição nacional, subordinada aos princípios de unidade, indivisibilidade e independência funcional (CF, art. 127), e compreende o Ministério Público da União e dos Estados (CF, art. 128). 2. A atuação dos agentes do Ministério Público se dá em forma estruturalmente organizada e mediante repartição de atribuições. 3. É incompatível com os princípios de regência da instituição e do sistema de repartição de atribuições a atuação do Ministério Público Estadual, fora do seu Estado ou fora da jurisdição estadual. 4. Compete ao Ministério Público da União, e não ao do Estado, exercer as funções institucionais do órgão relativas a promoção de ações civis públicas de competência da Justiça Federal.22

8. DA LEGALIDADE DE SE CONFERIR ALCANCE NACIONAL À DECISÃO JUDICIAL NA PRESENTE AÇÃO CIVIL PÚBLICA

A nova redação do art. 16 da Lei 7.347/85, que procurou restringir os efeitos da sentença aos “limites da competência territorial do órgão prolator” é ineficaz e inconstitucional.

Restringir a amplitude dos efeitos da coisa julgada nas ações coletivas a uma pequena parcela (ocorridas dentro de determinado território) das relações entre Autor (sociedade) e Réu contraria frontalmente a política constitucional de defesa dos interesses e direitos difusos, além de ofender o princípio constitucional da universalidade da jurisdição e do acesso à justiça.22 Brasil. Tribunal Regional Federal (4. Região). Apelação Cível. Processo nº 91.04.13275-0. Relator Juiz Teori Albino Zavascki DJU 06/11/91, p. 27825.

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Sobre o tema, muito bem aduziu o membro do Ministério Publico Federal e eminente professor André de Carvalho Ramos:

Esta é a sistemática da tutela coletiva em nosso país, que traduziu-se pela adoção da teoria da coisa julgada secundum eventum litis.A eficácia ‘ultra partes’ e ‘erga omnes’ da coisa julgada relacionam-se com os limites subjetivos desta, já que os interesses tratados pela ação coletiva são em geral indivisíveis pela sua natureza ou pela política legislativa favorável a uma efetiva tutela de direitos.Tal teoria da coisa julgada, adotada pelo legislador infraconstitucional (CDC e LACP), dá substância ao princípio constitucional da universalidade da jurisdição e do acesso à justiça.E a decorrência do tratamento coletivo das demandas é o sistema de substituição processual (ou legitimação adequada, concorrente e disjuntiva), que possibilita a tutela destes interesses transindividuais por entes como Ministério Público.Se o autor é substituto processual de todos os interessados, não se pode limitar os efeitos de sua decisão judicial àqueles que estejam domiciliados no estrito âmbito da competência territorial do Juiz.Como salienta o douto Emane Fidélis dos Santos, ‘nas hipóteses de substituição processual sujeito da lide é o substituído, sofrendo as conseqüências da coisa julgada’.Isso pois o caso de limitação seria não de competência, mas de jurisdição. Se o Juiz de 1º Grau pode conhecer da ação de um substituto processual como o Ministério Público, deve sua decisão valer para todos os substituídos.[...]Assim, o efeito ‘erga omnes’ da coisa julgada é conseqüência da aceitação da forma coletiva de se tratar litígios macrossociais. Não pode ser restringido tal efeito por lei ou por decisão judicial sob pena de ferirmos a própria Constituição do Brasil.[...]Com isso, fica demonstrado que se a Constituição Brasileira, dentro do modelo do Estado Democrático de Direito abraçado, busca, antes de tudo, o acesso à justiça, sendo decorrência disso o tratamento coletivo das demandas. Nada mais certo que a ampliação dos efeitos benéficos de decisão judicial para todos os interessados.Ainda são atendidos outros princípios constitucionais, em virtude da identidade de prestação jurisdicional a indivíduos que se encontram em condições iguais, respeitando-se, então, o princípio da isonomia.

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Assim sendo, a Lei 9.494/97, que converteu em lei a Medida Proviosória 1.570 é inócua. A competência territorial serve apenas para fixar a competência do juízo. Os efeitos da decisão do Juiz são limitados, somente, como frisei, pelo objeto do pedido, que quando for relativo aos interesses transindividuais, atingem a todos os que se encontram na situação objetiva em litígio, não importando onde o local de seu domicílio.Competente o juízo, então, devem os efeitos da decisão espalharem-se para todos os substituídos, tendo em vista todos os argumentos acima expostos.[...]urge, então, a desconsideração do art. 2º da Lei 9.494/97, para a preservação da tutela coletiva de direitos no Brasil.20

Apoiando tal entendimento, trazemos à colação dois importantes precedentes jurisprudenciais.

No primeiro, o STF, nos termos do voto subscrito pelo Ministro Ilmar Galvão, alusivo à Reclamação nº 602-6/SP – em que se sustentava a impossibilidade de o Tribunal de Alçada paulista decidir sobre jurisdicionados domiciliados em todo o território nacional sem ofender a competência do Excelso Pretório -, reafirmou a jurisprudência da própria Excelsa Corte no sentido de que a decisão da justiça local pode beneficiar consumidores de todo o país (julgamento em 03.09.1997, já na vigência da Medida Provisória nº 1.570/97, depois convertida na Lei nº 9.494/97):

Afastadas que sejam as mencionadas exceções processuais – matéria cujo exame não tem aqui cabimento – inevitável é reconhecer que a eficácia da sentença, no caso, haverá de atingir pessoas domiciliadas fora da jurisdição do órgão julgador, o que não poderá causar espécie, se o Poder Judiciário, entre nós, é nacional e não local. Essa propriedade, obviamente, não seria exclusiva da ação civil pública, revestindo, ao revés, outros remédios processuais, como o mandado de segurança coletivo, que pode reunir interessados domiciliados em unidades diversas da federação e também fundar-se em alegação de inconstitucionalidade de ato normativo, sem que essa última circunstância possa inibir o seu processamento e julgamento em Juízo de primeiro grau que, entre nós, também exerce o controle constitucional das leis.

20 RAMOS, André de Carvalho. A Abrangência Nacional de Decisão Judicial em Ações Coletivas: o caso da lei 9.494/97. Revista dos Tribunais, p.115, 1998.

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Citamos ainda o teor do voto proferido pelo Juiz Newton de Lucca, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, na qualidade de Relator de Agravo de Instrumento,21 que negou pedido de efeito suspensivo ao agravo interposto contra decisão do Juízo da 18ª Vara Federal de São Paulo que, desconsiderando a novel redação do artigo 16 da Lei nº 7.347/85, conferiu alcance nacional à decisão liminar proferida em ACP proposta pelo Ministério Público Federal contra a TELEBRÁS e em defesa dos consumidores do serviço público de telefonia:

Entretanto, há que ser analisadas quais seriam as conseqüências da alteração legislativa engendrada pelo Poder Executivo por intermédio da Lei n. 9.494/97, que alterou o art. 16 da Lei n. 7.347/85, para limitar seu poder de ação aos limites de competência territorial do órgão prolator. [...]

Não há dúvida que, em certos casos, tal restrição aos limites objetivos da coisa julgada em ação civil pública traduz-se me flagrante retrocesso, especialmente quando se tem em mente que esse tipo de processo é essencial à manutenção da Democracia e do Estado-de-direito. Por outro lado, ele tem o condão de evitar que decisões conflitantes surjam ao redor desse país continental, inviabilizando políticas públicas relevantes, tomadas no centro do poder.

[...]

No caso em exame, entretanto, não me parece que esteja havendo abuso na concessão da liminar ora atacada. É preciso ter em mente que o interesse em jogo é indivisível, difuso, não sendo possível limitar os efeitos da coisa julgada a determinado território.

Perceba-se que a portaria impugnada foi editada por autoridade com competência nacional e sua área de ação também pretende ser nacional. Por sua vez, o autor da demanda é o Ministério Público Federal, que é uma entidade una, cuja área de atuação, por sua vez, também abrange todo o território nacional.Assim, não me parece atender aos encômios da boa jurisdição exigir-se a propositura de tantas ações civis públicas quantas forem as subsidiárias da TELEBRÁS.

21 BRASIL. Tribunal Regional Federal (3. Região). Agravo de Instrumento. Processo nº 98.03.017990-0. Disponível em: <http://www.trf3.gov.br>. Acesso em 20 out. 2005.

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Isto posto, recebo o presente recurso em seu efeito meramente devolutivo. (grifos nossos).

A lei não pode impor vedações ou restrições à ação civil pública, cujos limites, como os do mandado de segurança,22 decorrem exclusivamente do texto constitucional.

Assim, se o dano ou a ameaça de dano a interesses ou direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos tiver abrangência nacional, a decisão do juízo competente para conhecer a causa em primeiro grau de jurisdição terá que ter a mesma amplitude, sob pena de tornar ineficaz a prestação jurisdicional desses interesses e direitos nos termos pretendidos pela Constituição.

Conseqüência inevitável da restrição dos efeitos da coisa julgada nas ações coletivas ao limite da competência territorial do juiz é a multiplicação das demandas judiciais por tantas vezes quantas for o número de comarcas ou seções e subseções judiciárias do país, ensejando soluções judiciais distintas – e não raro contraditórias – acerca de causas idênticas, situação que gera grave instabilidade nas relações jurídicas e descrédito no Judiciário.

Por fim, importante e recente decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região sufraga este entendimento:

ADMINISTRATIVO. SERVIÇOS DO SUS. TABELAS DE REMUNERAÇÃO. ACRÉSCIMO DE 9,56%. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LIMINAR. AGRAVO DE INSTRUMENTO. EFEITO SUSPENSIVO DENEGADO. AGRAVO REGIMENTAL. A modificação da redação do art. 16 da Lei nº 7.347/85 pela Lei nº 9.494/97, desacompanhada da alteração do art. 103 da Lei nº 8.078/90, por parcial restou ineficaz, inexistindo por isso limitação territorial para eficácia erga omnes da decisão prolatada em ação civil pública, baseada quer na própria Lei nº 8.078/90. Decisão recorrida que se mantém por ausência de razões que determinem sua reforma.23

22 Cf. Nelson Nery Junior e Rosa Maria Andrade Nery, CPC Comentado, 3ª ed., nota (4) ao art. 12 da Lei nº 7.347/85, “Proibição legal de concessão de liminares pelo juiz”, p. 1149.23 BRASIL. Tribunal Regional Federal (4. Região). Agravo Regimental em Agravo de Instrumento. Processo 1999.04.01.091925-5/RS, Relator Juiz Valdemar Capeletti. Disponível em: <http://www.trf4.gov.br>. Acesso em 19 out. 2005.

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Diante de todo o exposto, impõe-se o afastamento, em relação à presente ação, do limite territorial introduzido pela inconstitucional e ineficaz Lei nº 9.494/97 aos efeitos da coisa julgada.

6. DO PEDIDO DE MEDIDA LIMINAR

Na espécie, os próprios argumentos expendidos ao longo da vestibular evidenciam a presença do fumus boni iuris, diante da manifesta violação de direito difuso, a saber, o direito à liberdade de religião, além da violação de bem integrante do patrimônio histórico cultural do país.

O perigo da consolidação irremediável de danos também é patente, devido ao alcance das pregações constantes na obra em questão, que no ano de 2000 já contava com mais de 2 milhões de exemplares vendidos, ou seja, mais de 2 milhões de pessoas passíveis de serem influenciadas pelos sermões discriminatórios dos representantes da Igreja Universal em relação às religiões afro-brasileiras.

Acrescente-se, ainda, a facilidade de aquisição de referida obra, hoje comercializada em todas as livrarias evangélicas espalhadas pelo Brasil, ao preço quase simbólico de R$5,00, ou por meio do serviço de telemarketing 03007895051, com a facilidade do serviço de entrega em domicílio.

Assim, restando demonstrada a presença dos pressupostos autorizadores - quais sejam, a plausibilidade do direito e o perigo da demora -, requer o Ministério Público Federal a concessão de medida liminar para: determinar, em todo o território nacional, a imediata retirada de circulação, suspensão de tiragem, venda (nas livrarias, entrepostos, igrejas, templos de qualquer natureza, ou por intermédio de serviços telefônicos, a exemplo dos serviços 0300, 0800, etc.), revenda e entrega gratuita da obra “Orixás, Caboclos e Guias, deuses ou demônio?”, de autoria do primeiro Réu e publicado pela Editora Gráfica Universal Ltda., com o recolhimento de todos os exemplares disponíveis em estoque, no

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prazo máximo de 30 dias, sob pena de multa diária da ordem de R$ 100.000,00 (cem mil reais), em caso de descumprimento, aplicada solidariamente aos responsáveis pela publicação, distribuição e venda da obra, sem prejuízo das sanções cíveis e criminais cabíveis.

VI. DOS PEDIDOS PRINCIPAIS

Definitivamente, confirmando-se a providência antecipatória, pede o Ministério Público Federal:

a) a condenação dos Réus na obrigação de fazer consistente na suspensão definitiva, em todo o território nacional, de tiragem, venda (nas livrarias, entrepostos, igrejas, templos de qualquer natureza, ou por intermédio de serviços telefônicos, a exemplo dos serviços 0300, 0800, etc.), revenda, entrega gratuita ou qualquer outro tipo de circulação da obra “Orixás, Caboclos e Guias, deuses ou demônio?”, com a estipulação de preceito cominatório, no caso de descumprimento, no valor de R$ 100.000,00 (cem mil reais) por dia, aplicado solidariamente aos responsáveis pela publicação, distribuição e venda da obra;

b) a condenação dos Réus em custas e honorários advocatícios, valor a ser revertido para a Conta Única do Tesouro Nacional;

Enfim, requer-se:

a) a citação dos Réus para integrarem a relação jurídica processual e contestar, querendo, os fatos e fundamentos jurídicos, sob pena de revelia;

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b) a intimação da União, por intermédio de seu representante legal, para manifestar eventual interesse em integrar a lide na qualidade de litisconsorte (artigo 17, § 3º, da Lei nº 8.429/92);

c) além dos documentos que já instruem a inicial, em sendo necessário, a produção de prova pericial e testemunhal.

Atribui-se à causa o valor de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais).

Salvador, 01 de novembro de 2005.

SIDNEY PESSOA MADRUGAProcurador da República

Procurador Regional dos Direitos do Cidadão

CLÁUDIO GUSMÃOProcurador da República

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