luciano lourenÇo fÁtma velez de castro antrÓpicas · 2019. 11. 11. · 108 foi a mais longa...
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Na continuação do que tem vindo a ser produzido na série “Riscos e Catástrofes”, este volume
assume a continuidade temática, numa lógica mais sistemática e holística. Diz respeito, concre-
tamente, ao tema das “Catástrofes antrópicas. Uma aproximação integral”, pelo que se reveste
de um caráter bastante invulgar. Digamos que o tipo de riscos que trata, a natureza de síntese
que apresenta e a estrutura organizacional escolhida, lhe confere um caráter singular no contex-
to mundial contemporâneo.
Na senda das catástrofes antrópicas, foram considerados dois grandes grupos de riscos, nomea-
damente os tecnológicos e os sociais. Os primeiros relacionam-se com os sistemas estruturais
de apoio à atividade humana, como é o caso dos transportes, da construção civil, dos espaços
urbanos (incêndios, resíduos) e dos recursos hídricos. Os segundos estão associados à atuação
social, sendo que se abordam questões que vão desde os conflitos bélicos ao Urbicídio.
Luciano Lourenço é doutorado em Geografia Física, pela Universidade de Coimbra, onde é
Professor Catedrático.
É Diretor do NICIF - Núcleo de Investigação Científica de Incêndios Florestais, da Faculdade de
Letras da Universidade de Coimbra e Presidente da Direção da RISCOS - Associação Portuguesa
de Riscos, Prevenção e Segurança.
Exerceu funções de Diretor-Geral da Agência para a Prevenção de Incêndios Florestais, Presidente
do Conselho Geral da Escola Nacional de Bombeiros e Presidente da Direção da Escola Nacional
de Bombeiros.
Consultor científico de vários organismos e de diversas revistas científicas, nacionais e estrangeiras,
coordenou diversos projetos de investigação científica, nacionais e internacionais, e publicou mais
de mais de três centenas de títulos, entre livros e capítulos de livro, artigos em revistas e atas de
colóquios, nacionais e internacionais.
Fátma Velez de Castro é licenciada em Geografia (especialização em ensino), mestre em
Estudos sobre a Europa e doutora em Geografia.
É Tesoureira da RISCOS - Associação Portuguesa de Riscos, Prevenção e Segurança.
É Coordenadora do Mestrado em Ensino da Geografia no 3º Ciclo e Ensino Secundário
(FLUC); Coordenadora do Conselho de Formação de Professores da mesma instituição;
membro da Comissão Científica do Departamento de Geografia e Turismo da Faculdade
de Letras da Universidade de Coimbra; membro integrado do CEGOT (Centro de Estudos
de Geografia e Ordenamento do Território).
Foi Sub-Diretora do Curso de 1.° Ciclo (Licenciatura) em Geografia; membro do Conselho
Pedagógico da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra; coordenadora geral da
Mobilidade da mesma instituição.
Tem seis livros publicados (três da sua autoria e três em co-autoria) e cerca de sessenta
outras publicações (capítulos de livros, artigos científicos em revistas nacionais e
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LUCIANO LOURENÇO
FÁTMA VELEZ DE CASTRO
(COORDS.)
CATÁSTROFESANTRÓPICASUMA APROXIMAÇÃO INTEGRAL
IMPRENSA DAUNIVERSIDADE DE COIMBRACOIMBRA UNIVERSITYPRESS
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F. 0000000000
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acidentes e roturas ou colapsos ocorridos em todo o mundo com
barragens, pontes, edifícios, túneis e obras costeiras no período de
1950 a 2017. Neste contexto, são igualmente abordados alguns dos
acidentes com maior impacto económico e social que ocorreram em
Portugal nas últimas duas décadas.
Palavras -chave: Barragem, ponte, edifício, túnel, risco, acidente, catástrofe.
Abstract: Accidents in the construction industry are relatively frequent and,
contrary to what might be expected, there have been no significant
changes in their number in recent decades. Although some acci-
dents are caused by adverse natural conditions, the vast majority
are fundamentally due to human action. The natural hazards that
have contributed most to incidents, accidents and catastrophes in
civil engineering works are prolonged heavy rainfall that has caused
flooding, landslides and scour in the foundations of structures, and
earthquakes, tornadoes, hurricanes and strong winds. Among the
human actions that have contributed most to disasters in this area
are design errors, construction failures, inspection errors, manage-
ment errors, poor maintenance, negligence and criminal actions.
After a brief review of some world-class construction works in terms
of size and boldness, which truly challenge today's technical and
construction capabilities, this work looks at some basic concepts
about risk and how it is perceived by society. The following sections
focus on relatively exhaustive surveys of incidents, accidents, failures
and collapses that have struck dams, bridges, buildings, tunnels
and coastal works around the world from 1950 to 2017. Likewise,
accidents with most significant economic and social impacts that
have occurred in Portugal in the last two decades are also addressed.
Keywords: Dam, bridge, building, tunnel, risk, accident, disaster.
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Introdução
É função da construção civil contribuir para o desenvolvimento e bem-estar da
sociedade, preservando o meio ambiente e prevenindo ocorrências indesejáveis. São
parte integrante da construção civil as obras de infraestruturas, edificações e obras
de arte em que intervêm técnicos com formação em engenharia civil e/ou arquitetu-
ra, assumindo um elevado grau de responsabilidade na sua conceção, na elaboração
do projeto, na execução da obra e na avaliação de conformidade em plena atividade.
As exigências de qualificação e experiência dos técnicos envolvidos na constru-
ção civil são variáveis consoante as características e dimensões da obra, em confor-
midade com a legislação aplicável (Lei 31/2009, de 3 de julho, Lei 40/2015, de 1
de junho, e demais Leis e Portarias referidas nestes diplomas).
Uma boa obra de construção civil não é a que melhor resiste a ações que clara-
mente ultrapassam a capacidade resistente para que foi concebida, mas sim a que
apenas resiste às ações extremas para as quais foi projetada. Ou seja, trata-se de ade-
quar o custo de uma obra à função para que é concebida. Por conseguinte, a preo-
cupação de projetar com segurança e a custo adequado e controlado deve constituir
uma regra de ouro presente em todos os empreendimentos de construção civil.
Os avanços em conhecimento científico e nos meios computacionais que se ve-
rificaram na segunda metade do século 20, especialmente a partir da década de 80, a
par com uma perfeita harmonização entre a engenharia civil e a arquitetura, tornou
possível a construção de edificações e obras de arte que eram impensáveis há poucas
décadas atrás. São disso bons exemplos o ‘Burj Khalifa’, a maior estrutura constru-
ída pelo ser humano nos anos de 2004 a 2010, com 160 andares e 828 metros de
altura, e a ‘Cayan Tower’, uma estrutura de 75 andares construída nos anos de 2006
a 2013 com uma impressionante forma helicoidal, girando 90 graus ao longo de sua
altura de 306 metros. São duas torres localizadas no Dubai - EAU verdadeiramente
desafiantes em termos arquitetónicos, como se documenta na fot. 1.
Igualmente dignas de relevo e desafiando as mais avançadas técnicas construti-
vas são as barragens ‘Three Gorges’ e ‘Jinping-I’, localizadas na China. A barragem
‘Three Gorges’ foi construída nos anos de 1994 a 2003 e dada por concluída em
2009, ano em que atingiu a altura de 175 m. Esta barragem tem finalidades de
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produção de energia elétrica, controlo de cheias e navegação. A produção de energia
elétrica teve início em 2003 e foi aumentando gradualmente até 2012, à medida
que os geradores adicionais se foram tornando operacionais, com um total de 32
turbinas em funcionamento (Encyclopædia Britannica, 2018). Esta barragem tem
uma capacidade de 39,3 km3 e é atualmente o maior projeto hidroelétrico e a maior
barragem do mundo, com um comprimento da albufeira de 660 km (fot. 2).
A barragem de Jinping-I (fot. 3) foi construída nos anos de 2005 a 2014 e é atu-
almente a barragem de arco mais alta do mundo, com 305 m (Wu et al., 2016).
Também digna de registo é a ponte de São Francisco, nos Estados Unidos, a
qual foi construída nos anos de 1933 a 1937, com um comprimento total de 2737 m
e um vão principal de 1280 m entre as duas torres de 227 m de altura (fot. 4).
Fot. 1 - Edificações localizados no Dubai: à esquerda o ‘Burj Khalifa’ com 160 andares e 828 m de altura; à direita a ‘Cayan Tower’ com uma forma helicoidal e 306 m de altura
(Fotografias: cortesia de Ana Raquel Carmo, março de 2018)Photo 1 - Dubai buildings: on the left the ‘Burj Khalifa’ with 160 floors and 828 m tall; on the
right the ‘Cayan Tower’ with a helical shape and 306 m tall (Photos courtesy of Ana Raquel Carmo, March 2018).
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Fot. 2 - Maior barragem do Mundo na atualidade, com 39,3 km3 de capacidade: ‘The Three Gorges Dam’, China (Encyclopædia Britannica, 2018).
Photo 2 - Currently the world’s largest dam, capacity 39,3 km3: “The Three Gorges Dam”, China (Encyclopædia Britannica, 2018).
Fot. 3 - Barragem de arco mais alta do mundo na atualidade, com 305 m: Jinping-I, China (http://en.powerchina.cn/2016-12/28/content_27870606.htm).
Photo 3 - Currently the world’s tallest arch dam, at 305 m: Jinping-I, China (http://en.powerchina.cn/2016-12/28/content_27870606.htm).
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http://en.powerchina.cn/2016-12/28/content_27870606.htm
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Foi a mais longa ponte suspensa até 1981 e a mais alta até 1993. Situa-se ain-
da atualmente entre as 10 pontes suspensas com maior vão do mundo. Em 1994
foi considerada uma das sete maravilhas da engenharia civil dos Estados Unidos
pela Sociedade Americana de Engenheiros Civis (https://www.history.com/topics/
golden-gate-bridge).
Fot. 4 - Ponte suspensa mais longa do mundo até 1981 e a ponte suspensa mais alta até 1993, situando-se ainda atualmente entre as 10 pontes suspensas com maior vão do
mundo: São Francisco, EUA (https://unsplash.com/photos/tN7fJdTaU40).Photo 4 - The world’s longest suspension bridge until 1981, and the highest suspension bridge until 1993. It is still currently one of the 10 largest suspension bridges in the world: San Francisco, USA
(https://unsplash.com/photos/tN7fJdTaU40).
A maior ponte suspensa da atualidade situa-se entre a cidade de Kobe e a ilha de
Awaji, no Japão. Foi construída entre 1988 e 1998, tem 3911 m de comprimento
total e um vão central de 1991 m (https://gigantesdomundo.blogspot.pt/2011/10/
as-10-maiores-pontes-suspensas-do-mundo.html).
Contudo, nem sempre os grandes desafios constituíram grandes sucessos. Com
efeito, o sucesso das edificações e das obras de arte mostradas nas figs. 1 a 4 não deve
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https://www.history.com/topics/golden-gate-bridgehttps://www.history.com/topics/golden-gate-bridgehttps://gigantesdomundo.blogspot.pt/2011/10/as-10-maiores-pontes-suspensas-do-mundo.htmlhttps://gigantesdomundo.blogspot.pt/2011/10/as-10-maiores-pontes-suspensas-do-mundo.html
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(nem pode) fazer-nos esquecer os muitos insucessos que ano após ano vão consu-
mindo muitos recursos materiais e, frequentemente, vidas humanas.
Com efeito, os riscos inerentes à construção civil são elevados e de diversas or-
dens. Uma obra de construção civil nunca é inteiramente segura; por mais pequeno
que seja, existe sempre algum risco associado.
A este propósito recorda-se uma citação de Sir Michael Anthony Latham, em
1994: “Nenhum projeto de construção civil é livre de risco. O risco pode ser gerido, mi-
nimizado, compartilhado, transferido ou aceite. Não pode ser ignorado”.
O risco e a sua assunção diferem consoante a função que a obra desempenha, o
seu valor económico e os bens naturais e eventualmente humanos potencialmente
afetados em caso de acidente.
De notar que o risco R (€/PR) (PR = Período de retorno, normalmente 50 anos)
é uma função de três variáveis ou componentes: cenário de perigo/ameaça, ou evento
com risco H (0–1/PR), grau de exposição E, ou valor dos elementos expostos (€), e
vulnerabilidade V (0–1), dada por:
Cada uma destas componentes comporta (ou pode comportar) diferentes pers-
petivas e graus de admissibilidade, consoante a sensibilidade do julgador. Para um
evento i, o risco é então expresso pela equação (1):
(1)
a qual poderá ser representada como mostra a fig. 1. Esta representação pretende con-
jugar fraquezas e forças, expondo as correspondentes ações de mitigação a observar.
Fig. 1 - Triangulação do risco,conjugando potenciais fraquezas e
ações de mitigação.Fig. 1 - Risk triangulation, combining
potential weaknesses and mitigation actions.
(€)(€)
=V , ão reconstruçdecustoou Valor,
danosdosvalorou Perdas, idade Vulnerabil
iiii V×E×H=R
iii C×P=R )(A
(€)(€)
=V , ão reconstruçdecustoou Valor,
danosdosvalorou Perdas, idade Vulnerabil
iiii V×E×H=R
iii C×P=R )(A
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O risco também poderá ser expresso pela probabilidade de ocorrência de um
acidente P(A), ou seja a concretização de um acontecimento indesejável (materiali-
zação do perigo), o qual terá consequências (C) adversas (perdas), isto é, potenciais
danos para a saúde, a economia e o bem-estar das pessoas. Por conseguinte, para o
mesmo acontecimento i, o risco poderá ser igualmente expresso por:
(2)
Importa notar que a ocorrência de um evento perigoso não se limita a danos di-
retos. Com efeito, os danos causados nos elementos materiais têm efeitos indiretos
devidos, por exemplo, à interrupção de atividades socioeconómicas. Por conseguin-
te, é necessário obter estimativas para os efeitos indiretas, os quais se traduzem em
danos para as infraestruturas e podem afetar uma grande área, mesmo a distâncias
consideráveis da área de estudo. O risco total (Rt) é assim a soma dos riscos diretos
com os efeitos indiretos sobre as atividades socioeconómicas.
Embora o fator de segurança (e portanto a redução do risco) seja cada vez mais
uma preocupação presente em qualquer obra de construção civil, é importante re-
conhecer que estando cada vez mais em causa aspetos de natureza económica os
riscos tenderão a aumentar no futuro.
Com preocupações de sistematizar o que se segue, propõe-se uma classificação
dos riscos agrupando-os consoante a sua causa, em naturais ou provocados (falha
humana), a sua origem, nas fundações ou na estrutura, e o período ou fase de ocor-
rência, durante a construção ou alguns anos após, em operação ou funcionamento.
A fig. 2 mostra uma representação esquemática desta distribuição.
Fig. 2 - Classificação do risco em obras de construção civil, por agrupamento consoante a causa, a origem e a fase de
potencial acidente.Fig. 2 - Risk classification in the con-
struction industry, by grouping according to cause, origin and stage.
(€)(€)
=V , ão reconstruçdecustoou Valor,
danosdosvalorou Perdas, idade Vulnerabil
iiii V×E×H=R
iii C×P=R )(A
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As secções seguintes documentam diversos acidentes ocorridos em diferentes
partes do globo, alguns por negligência, outros por ignorância ou facilitismo, e ou-
tros ainda por malvadez. Por questões de sistematização, os principais acidentes
registados desde meados do século passado (anos 50) são agrupados por grandes
áreas afins: barragens, pontes, edifícios e outros não incluídos naquelas áreas, como
túneis e obras costeiras.
Barragens
Por barragem entende-se qualquer estrutura implantada num curso de
água permanente ou temporário para fins de contenção ou acumulação de
substâncias líquidas, ou de misturas de líquidos e sólidos. Compreende a es-
trutura propriamente dita, a sua fundação, os órgãos de segurança e explora-
ção e a albufeira.
De acordo com o Regulamento de Segurança de Barragens (RSB, 2007, 2018),
publicado no Decreto-Lei nº 344/2007, de 15 de setembro, e alterado pelo De-
creto-Lei nº 21/2018, de 28 de março, existem em Portugal cerca de 250 grandes
barragens, isto é, barragens que se enquadram na seguinte definição:
• Altura igual ou superior a 15 metros, medida a partir do ponto mais baixo
da fundação.
• Altura igual ou superior a 10 metros, cuja albufeira tenha uma capacidade
de armazenamento superior a 1 hm3 (1 milhão de m3).
São pequenas barragens todas as restantes que não encaixam nesta definição.
Ainda em conformidade com o Regulamento de Segurança de Barragens, im-
porta esclarecer o significado de alguns conceitos comuns no contexto do risco, e
que doravante se usarão:
• Incidente – anomalia suscetível de afetar, a curto ou a longo prazo, a fun-
cionalidade da obra e que implica a tomada de medidas corretivas.
• Acidente – ocorrência excecional cuja evolução não controlada é suscetível
de originar uma onda de inundação.
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Acidentes em obras costeiras
Construção e recente prolongamento dos molhes de proteção dos portos
de Aveiro e Figueira da Foz
Entre os muitos incidentes e alguns acidentes ocorridos em obras costeiras,
frequentemente conduzindo a perdas de território e colocando em perigo áreas
habitacionais mais expostas, destacam-se a construção de molhes para proteção de
portos e a instalação de esporões e quebra-mares como medidas de recurso, sem
fundadas análises de impactos e consequências.
A construção e recente prolongamento dos molhes dos portos de Aveiro
e Figueira da Foz são exemplos de profundas alterações provocadas a sul
destes portos.
Fot. 24 - Resultado de um colapso na abóbada de um túnel durante a escavação (Fonte: Gomes, 2012).Photo 24 - Result of collapse in a tunnel vault during excavation (Source: Gomes, 2012).
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Com efeito, como mostra a fot. 25, os molhes impedem a progressão natural
das areias para sul, deixando de alimentar estas zonas e assim compensar as areias
perdidas por diversos fatores naturais, de que se destacam a dinâmica litoral e o
vento. Em consequência, ocorrem erosões e perdas de território, colocando em
perigo zonas residenciais, como são os casos da Vagueira, Praia de Mira e Tocha, a
sul de Aveiro, e da Gala, Lavos e Leirosa, a sul da Figueira da Foz.
Uma situação ainda mais grave ocorreu em outubro de 2015 à entrada dos
molhes do porto da Figueira da Foz, com a atual configuração. Por dificuldades de
manobra de um arrastão (Olivia Ribau) na passagem de uma barra de sedimentos
que se forma junto à cabeça do molhe norte resultou num acidente que vitimou
5 pescadores.
Fot. 25 - Molhes de proteção do porto e atuais configurações das praias da Figueira da Foz e da Gala. A linha azul identifica a posição aproximada da linha de costa (limites das praias)
nos anos 60 do século passado, antes da construção dos molhes (Fonte: adaptada de Antunes do Carmo, 2018).
Photo 25 - Protective breakwaters of the port and present layout of Figueira da Foz and Gala beaches. The blue line shows the approximate position of the coastline (boundaries of the beaches) in the 1960s, before the breakwaters were built
(Source: adapted from Antunes do Carmo, 2018).
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Piscicultura construída nas dunas de Mira, Portugal
Uma referência final para o acidente ocorrido na costa Portuguesa com uma
piscicultura implantada nas dunas de Mira. Esta piscicultura era gerida pela
ACUINOVA, uma empresa do grupo Pescanova. Um acidente ocorrido em 2011
teve um impacto económico muito elevado. A piscicultura era constituída por dois
setores alimentados de água do mar por emissários que faziam chegar a água por
gravidade a um poço localizado em terra, sendo em seguida bombeada deste poço
para os tanques de engorda do pescado.
Em 26 de outubro de 2011 ocorreu uma rotura parcial da caixa de um dos
emissários que estabelecia a transição entre dois tubos PEAD em paralelo, com
1300 m de comprimento e 2 m de diâmetro, e uma conduta em betão com 3 m de
diâmetro e cerca de 1500 m de comprimento. Foram igualmente detetadas roturas
das condutas junto à caixa de transição. Este acidente inviabilizou a operacionalidade
da instalação, tendo a análise das causas de rotura e a atribuição de responsabilidades
transitado para tribunal, estando ainda em fase de julgamento.
Os estudos técnicos entretanto desenvolvidos permitiram identificar possíveis
erros de projeto e deficiências construtivas. Aparentemente, a nível de projeto, não
terão sido levados em devida conta os esforços resultantes das possíveis condições
do temporal que se fazia sentir naquele dia, nomeadamente ondas com cerca de
7 m de altura no local do acidente.
Conclusões
As ocorrências periódicas de eventos catastróficos envolvendo perdas de vidas
humanas lembram as pessoas que a noção de risco zero (segurança totalmente
garantida) não existe.
Contudo, na generalidade dos casos, as catástrofes técnicas ocorridas em
estruturas de construção civil não são aceites pela Sociedade. A reação da Sociedade,
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que é amplamente apoiada e amplificada pela comunicação social por razões
económicas óbvias, é tentar encontrar e punir as pessoas consideradas responsáveis,
geralmente engenheiros (Delage, 2003).
Esta posição é obviamente aceitável quando a catástrofe é devida a erro humano,
negligência, falta de manutenção ou gestão inadequada. No entanto, uma catástrofe
pode ocorrer, ou ser agravada, por fenómenos desconhecidos, imprevisíveis e não
controláveis, por causas naturais ou de natureza técnica. Em geral, uma ocorrência
deste tipo também não é admitida.
Os consideráveis progressos científicos e técnicos realizados desde a revolução
industrial proporcionam um sentimento artificial de segurança nas sociedades
ocidentais. Isso é um pouco contraditório no sentido em que qualquer novo
progresso científico e técnico envolve o confronto com novos desafios e, portanto,
novos riscos (Delage , 2003).
A falsa sensação de segurança resulta da forma como se exploram os benefícios
de um empreendimento e se mitigam os cuidados ou aspetos menos favoráveis. É
assim que os residentes e potenciais investidores assumem que a construção de uma
barragem permite a ocupação do vale a jusante. Assumem igualmente que com
a construção da barragem terminam as grandes enchentes que no passado tudo
arrastavam, passando a existir uma albufeira com água em quantidade e qualidade
suficientes para satisfazer todas as necessidades. Ou seja, assume-se que o controlo é
absoluto; mas será mesmo assim?
Uma ponte muito longa e esbelta é, em geral, bem aceite e motivo de orgulho.
Naturalmente que essa “grandeza” não constitui, em geral, motivo suficiente para
deixar de a utilizar. Bem pelo contrário, a sociedade confia plenamente no projeto e
nos processos construtivos. Entender-se-á que não há risco; mas será mesmo assim?
O edifício mostrado na fot. 1b) foi construído para permitir uma visão mais
ampla sobre a marina do Dubai. É um hotel de luxo, com preços pouco convidativos,
mas muito procurado.
Evidentemente que neste contexto, pernoitar no ‘Burj Khalifa’ (fot. 1a) é um
privilégio reservado a muito poucos. Mas será o risco que preocupa ou impede
os potenciais privilegiados de usufruírem da paisagem que este monumento
proporciona? É óbvio que não, mas o risco existe. Poder-se-á argumentar que é
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pequeno, mas será menor que o risco de colapso das torres gémeas em Nova Iorque?
Estas torres foram construídas recorrendo às mais avançadas tecnologias e usando os
melhores materiais, para além de seguranças construtivas reforçadas, como descrito
na secção "Torres gémeas, Nova Iorque, EUA".
A noção de risco e a sua assunção mudaram muito nas últimas três décadas. A
barragem da Aguieira, situada a 40 quilómetros de Coimbra, é um claro exemplo
dessa mudança. Na altura da sua construção, anos 70 do século passado, a questão
do risco nem se colocava. Naquela altura não se realizavam estudos de impacto
ambiental, não se desenvolviam planos de risco e não se elaboravam mapas de
inundação para as possíveis ocorrências (cenários), em particular de possível rutura
da barragem. Naquela altura eram só benefícios, a regularização de caudais estava
assegurada, as terríveis cheias no Baixo-Mondego tinham terminado, poder-se-ia
ocupar e explorar com segurança as potencialidades do vale a jusante, a produção de
energia elétrica era um enorme potencial e a reserva de água para consumo humano
e rega representava uma mais-valia adicional. No entanto, como se descreve na
secção da “Barragem da Aguieira”, as cheias ocorridas em 2001 e 2016 fizeram
perceber que o risco não é suficientemente baixo ao ponto de ser possível pactuar
com desvios das condições de projeto, descurar a manutenção, facilitar as regras
de operação e desvalorizar uma gestão rigorosa. Provavelmente hoje a barragem da
Aguieira não seria construída.
Neste processo, os técnicos envolvidos (arquitetos, engenheiros, geólogos
e outros) fazem o melhor que podem para garantir o mais baixo risco possível.
Contudo, as dificuldades do exercício são muitas e elevadas. Evidentemente que os
técnicos não são infalíveis e podem errar nas análises que fazem. Isso pode afetar o
projeto inicial e também as medidas corretivas relevantes que devem ser tomadas
durante a construção, quando um problema aparece. As descrições dos eventos
acidentais ocorridos com barragens, pontes, edificações e túneis no período de 1950
a 2017 mostram que:
• Uma estrutura deverá resistir aos valores máximos das solicitações para
que foi dimensionada. Porém, não só os valores máximos das solicitações
consideradas poderão ser ultrapassados como muitos imponderáveis
poderão ocorrer durante o período de vida da estrutura.
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• No dimensionamento de uma estrutura são tidas em conta as propriedades
resistentes dos materiais (aço, alvenaria, betão, solo, rocha). No entanto, mesmo
fazendo ensaios, não pode ser garantida a homogeneidade dessas propriedades.
• A questão das fundações é particularmente delicada. Com efeito, o solo e as
rochas têm resistência máxima admissível, mas esta é muito variável e pode
falhar se forem aplicadas forças superiores, podendo ocorrer, por exemplo,
assentamentos diferenciais.
• Em fase de operação, as disposições de manutenção poderão ser alteradas
pela ocorrência de novos fenómenos mecânicos, físicos ou químicos
agressivos que podem ameaçar, deteriorar ou mesmo condenar a estrutura.
Uma nota final sobre o risco. Tenho ainda presente a altura em que participei
na elaboração dos primeiros mapas de inundação resultantes de um possível cenário
de rotura da barragem da Aguieira. Nessa altura, início dos anos 90, há pouco mais
de 25 anos, tudo teria que permanecer em segredo. Naquela altura, os resultados
de tais estudos não podiam ser revelados, nem mesmo podia ser revelado que tais
estudos estavam a ser realizados. Como tudo mudou, e bem, em 25 anos…
Referências bibliográficas
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Versão integral disponível em digitalis.uc.pt
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