lussault, michel (org). verbete imagem.pdf
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1LUSSAULT, Michel. Image. In: LVY, Jacques; LUSSAULT, Michel (Org.). Dictionnaire de la Gographie et de lespace des socites. Paris: Belin, 2003. p. 485-489. Traduo de trabalho de Fernanda Padovesi Fonseca e Jaime Tadeu Oliva
Imagem
No sentido etimolgico original, reproduo inversa que uma superfcie polida d
de um objeto que ali se refletiu. Por extenso, sistema de signos no-verbais que
representa alguma coisa. De maneira mais abrangente, sistema de signos
mediatizando a relao indivduo-ator com o mundo.
A. Da imagem ao visual: a imagem, no primeiro sentido, um sistema de signos no-
verbais e no seqencial que forma uma cpia, um duplo analgico do objeto. A
imagem considerada nessa concepo mais restrita como um enunciado icnico. O
cone para Charles Sanders Pierce um signo em relao de similaridade (analogia)
com seu objeto (ao lado do smbolo em relao arbitrria com o objeto e o ndice em
relao fsica com o objeto). Reencontra-se igualmente l a significao inicial da
palavra figura, a saber: representao de um objeto. A palavra cone doravante
correntemente empregada nas cincias sociais (e no somente nas cincias
artsticas) para designar, bem alm da imagem religiosa bizantina, um enunciado
visual em relao direta com um objeto representado.
Por extenso, imagem toda representao visual, quer ela seja material ou
mental e quer ela se refira a uma realidade objetal concreta do mundo fsico ou a uma
idealidade abstrata. Uma tal abertura impeliu os pesquisadores a ultrapassar a postura
clssica da imagerie e da iconografia fixa ou mvel ao abordar todos os dispositivos
visuais que incluem, por exemplo, a paisagem, a cenografia, as instalaes diversas,
enfim toda coisa estruturada olhvel. Trata-se da expresso de uma vontade de
romper com o que muitos desses especialistas nomeiam como uma epistemologia anti-
visualista dominada pelo paradigma do texto que teria reinado incontestvel desde
Plato na cultura letrada ocidental (e, mais particularmente na cultura e nas cincias
sociais continentais). Barbara Stafford, partindo da constatao da inflao de
imagens no mundo contemporneo, sintetizava essa desvalorizao por uma eficaz
frmula: Its raining images outside, but we are locked indoors (Stafford, 1996, p. 87)
{Chovem imagens l fora, mas ns estvamos fechados aqui dentro}
No se pode compartilhar essa idia sem reservas, pois sempre houve, na
Frana, notadamente, uma tradio de abordagens visualistas nas cincias artsticas,
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2em semitica, em filosofia, em histria. Entretanto, a formalizao do campo do visual
interessante. Ela permite ultrapassar a iconologia erudita para abordar o vasto
domnio de todos os enunciados visuais (croquis, desenhos, planos de urbanismo,
materiais publicitrios, logos etc), de formas visveis e o campo no menos amplo de
usos do olhar nas sociedades, do papel da viso na construo da realidade social e
na prtica dos indivduos. Essa extenso da reflexo das coisas para ver as maneiras
de ver as coisas (que influem sobre a constituio das imagens e dos discursos) sem
dvida uma das aquisies da abordagem do visual.
Tendo em conta o papel eminente do material espacial na exposio (na
construo da visibilidade) das substncias societais, compreende-se que os gegrafos
sejam fortemente ligados a essa questo. Podia-se assim mostrar, por exemplo, todo o
interesse de considerar a paisagem como um objeto visual, onde se tenta compreender
a genealogia e os efeitos de sentidos, algo que d a possibilidade de romper com as
abordagens clssicas (Mondada, Sdestrm & Panese, 1992; Cosgrove & Daniel,
1989)
Numerosos trabalhos tambm investiram no domnio da iconografia espacial
trivial (aos olhos de gegrafos tradicionais) que proliferaram na publicidade, e
tambm no conjunto de imagens dos profissionais do projeto urbano e planejamento,
que vem se transformando num terreno de investigao particularmente estimulante
(Sderstrm, 2000, Lussault, 1996; 1998). No contexto anglofno, a abordagem do
visual permitiu tambm alimentar uma crtica contra a cultura dominante moderna,
imperialista, masculina e branca. Gillian Rose, sublinhou que se podiam estabelecer as
ligaes entre o olhar reificador dos gegrafos sobre a natureza e a coisificao das
mulheres pelo olhar do homem sobre o corpo feminino (Rose, 1992).
Podia-se, logo, ver nascer trabalhos se apoiando sobre disciplinas que a
geografia no tinha o costume de mobilizar (semitica, sociologia das cincias,
filosofia, histria dos saberes etc). Pode-se mesmo pensar que a presso dos
visualistas incitou os gegrafos a empreender a necessria reflexo crtica sobre sua
ferramenta fetiche, a carta, a respeito da qual eles foram e permanecem os defensores
maiores (iconodoules defensores da venerao das imagens no cristianismo, contra
os iconoclastas que acham que o sagrado no pode ser representado ou imitado).
Essa reflexo, muito lenta ao se desenhar, se difunde doravante: ela no consiste em
colocar na praa uma semiologia grfica mais fivel e eficaz para representar uma
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3realidade exterior representao (com a inspirao dos trabalhos de um Jacques
Bertin), algo assim ser permanecer no interior de uma concepo positivista. Trata-se,
sobretudo de compreender a cartografia numa perspectiva de reconhecimento do
princpio da construo da realidade social. A realidade dos objetos da sociedade no
dada, porm construda e reconstruda e a imagem espacial em geral (e a cartografia
em particular) instituinte dessa realidade que ela contribui para definir e para
configurar.
Hoje, as pesquisas visam a apreender como o visual se desdobra numa
sociedade, sem se limitar a um exame semitico de um nico gnero de imagens
considerado nele mesmo e por ele mesmo. Nesse quadro, um problema aquele da
produo do conjunto de imagens e dos dispositivos visuais. Estudar como esses
podem se materializar e se difundir nos contextos societais particulares, sondar suas
condies de possibilidade (ideolgicas, cognitivas, tecnolgicas, tcnicas) e seus
efeitos de realidade, o caminho das pesquisas de maior importncia, como mostra o
trabalho de Denis Cosgrove sobre as novas representaes da Terra (Cosgrove, 1994).
Os gegrafos permanecem sem dvida muito pouco presentes nesta matria num
perodo onde as novas imagens de espacializao de dados e informaes proliferam,
notadamente via os SIG. Falta hoje uma vigorosa apreenso desconstrutiva dessa
imagerie onipresente, e isso malgrado a existncia de trabalhos marcantes, no
entanto ainda muito isolados. Mas no seria preciso que, saindo pouco a pouco da
fascinao pela carta, os gegrafos sucumbissem numa outra pasmaceira: aquela da
imagerie numrica dos SIG.
O poder da imagem: uma outra vasta problemtica se oferece anlise no campo do
visual: aquela da eficcia pragmtica da imagem, em relao ao que ela instaura,
enquanto enunciado produtivo, ativado pelos atores e circulando entre eles como
instrumento de seus atos, uma viso do mundo dos fenmenos que sempre um
mundo de ao. Nessa matria, os trabalhos sobre o visual em planejamento, em
urbanismo, em arquitetura, domnios onde se manifestam claramente as ligaes entre
imagens, realidades construdas, atos, so, desde o incio dos anos 1990, os mais
propcios para as reflexes sobre os poderes da imagem espacial (Pousin, 2001).
Se se apia sobre as concluses dessas pesquisas generalizveis ao conjunto
do campo da imagem espacial, inclusive para a imagerie especializada dos
gegrafos, j que a hiptese elaborada por todos esses pesquisadores que no h
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4diferena de natureza entre a iconografia cientfica, aquela dos planejadores, a dos
publicitrios, aquela das mdias etc., mas uma diferena de registros o sucesso e a
eficcia dos documentos visuais, seu valor pragmtico, parece ter trs poderes
essenciais:
Eles constituem instrumentos de dominao do espao por sua atitude de reduzir
radicalmente sua complexidade {Monmonier fala disso sobre a Guerra do Golfo em
relao s cartas};
Elas se beneficiam do efeito de verdade consubstancial ao cone;
No caso particular das imagens planejadoras (do planejamento), a figurao
permite uma representao perfeita da virtualidade espacial projetada.
A amplitude da funo cognitiva e social da figura resulta primeiramente da
aparente confiabilidade que ela traz na apreenso do espao. Bruno Latour explica
claramente essa potncia do meio figurativo: No h nada que o homem seja capaz
de verdadeiramente dominar: tudo tudo de sada muito grande ou muito pequeno
para ele, muito misturado ou composto de camadas sucessivas que dissimulam o olhar
que quer observar. Se! Entretanto, uma coisa, uma nica apenas, se domina pelo
olhar: uma folha de papel estendida (exposta) sobre uma mesa ou pregada numa
parede. A histria das cincias e das tcnicas em larga medida aquela dos
estratagemas que permitem de trazer o mundo para sobre essa superfcie de papel.
Ento, sim, o esprito lhe domina e v. Nada pode se esconder, se obscurecer, se
dissimular. (Latour, 1985, p. 21)
clara a facilidade de transpor esse raciocnio aos documentos visuais
espaciais, notadamente aqueles utilizados em urbanismo ou planejamento, por
exemplo. No momento que a atividade de pr-compreenso do mundo da ao que
todo projeto comporta, as cartas e as figuras so destinadas, alm do fornecimento de
dados informativos, a realizar eufemismos da abundncia de fenmenos do espao
real, a aplain-los, apur-los (purific-los), purg-los de sua complexidade social,
transformando-os em fatos incontestveis, unvocos, como algo que procede a ordem
natural das coisas; graas a essa prtica catrtica, o espao sai organizado,
raciocinado fiscalizado o que resulta dessa ao de examinador, de projetista etc.
Paralelamente, pelas figuras espaciais e notadamente pelas cartas que colocam
em cena uma metrologia, quer dizer um pensamento da medida e da posio
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5respectiva dos objetos espaciais sobre uma extenso (concepo cartesiana do
espao que permanece dominante em numerosas ideologias espaciais), quer se
chegar a estabilizar o espao, a tornar crvel a idia da perenizao de sua posio.
Assim, o meio grfico, por um golpe de fora representacional, um operador eficaz do
apagamento da caracterstica insubstituvel de cada espao de atos (de aes). O
espao fixado pela iconografia torna-se ento, mas de maneira ficcional, duplamente
substituvel: substituvel por ele mesmo, se se pode dizer, pois doravante a figurao
deixa crer que sua situao quase-estvel no tempo. Substituvel por outros espaos,
j que, por analogia grfica, o espao figurado torna-se estritamente comparvel a um
espao postulado parecido numa outra regio e representado segundo a mesma
semiologia que exprime uma metrologia unvoca. {da a importncia de varias as
mtricas} A figurao visual se afirma portanto como um instrumento superlativo de
escamoteamento da variedade e da incessante variao (em andamento) dos mundos
espaciais.
Sem contestao, a imagerie constitui para aqueles que a empregam a arma
do fazer-parecer-verdade e para aqueles que a aceitam antes de a usar em outras
ocasies - um enunciado dificilmente recusvel que no mistura as coisas e desdobra
(desfralda) o espao, presente ou futuro, em toda a evidncia de sua ordenao.
Enquanto que, como sublinhou Algirdas Julien Greimas, a linguagem [na Europa e na
Frana] comumente considerada como um filtro mentiroso, destinado a ocultar uma
realidade e uma verdade que lhe subjacente (Greimas, 1983, 108), a iconografia
ser o meio de revelao da verdade nua das coisas cristalizadas em suas essncias,
que a linguagem articulada travestiria.
A imagerie no seria ponto faccioso como a linguagem porque ela no encobre
nada, ela exporia a integralidade do objeto representado, sem os travestimentos da
frase, do estilo, dos subentendidos e os sentidos mltiplos das palavras; pura forma
denotativa, ele proscreveria os elementos turvos da conotao. Eis, exposta
brevemente, uma doxa (opinio) poderosa. Enquanto o discurso atingido pelo selo da
subjetividade do enunciador e do fato de no se constituir como mais que uma opinio
(um vis), mais ou menos autorizada, certamente, mas sempre percebida como
contingente da pessoa e de seus interesses, o cone, por sua vez, possui um
enunciador annimo e mesmo transparente at parecer ausente exporia a verdade
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6do ponto de vista incontestvel (as linhas tortas de Deus) [aquele do Deus Voyeur
analisado por Michel de Certeau] que transcende todas as opinies.
No esse o fundo da crena que pode explicar o papel de verdade que os
gegrafos atribuem s imagens no discurso cientfico? E isso at fazendo da grfica
algo anlogo linguagem formal dos matemticos, apta exprimir claramente as leis
universais do espao {como por exemplo} no quadro da geografia coremtica
desenvolvida na Frana entorno de Roger Brunet.
As representaes grficas so dadas por fiveis; a maior parte dos atores lhe
reconhece esse status, tem confiana nelas. Se bem que elas possam ser contestadas,
elas so, entretanto, sempre aplainadas nas provas, sempre mostradas como mdias
da verdade, por isso que a crtica se liga ao contedo representado (e no ao status
epistemolgico e funo poltica e social da representao) objeto sempre legtimo
em seu princpio.
Tudo que colocado em imagem visvel, olhvel (observvel) como srio,
quer dizer, a ser considerado em toda sua realidade inclusive naquela de proposio
fantasiosa, irrealizvel o irrealismo e a fantasia sendo sempre aqueles da coisa
figurada e jamais aquele da figura e da figurao. A colocao em causa concerne
apenas ao contingente visualizado, o referente, e no ao princpio de verdade do cone.
O exame das figuras visuais permite, entretanto, escolher abordagens de todo
tipo epistemolgicas, cognitivas, sociais, polticas que procedem de usos de
representaes grficas. Bem longe da objetividade pacfica e assegurada que os
gegrafos lhe emprestaram por longo tempo, a imagerie espacial se transformou num
dos mais eficazes instrumentos de reduo da complexidade do mundo por
escamoteamento, notadamente, de quase tudo que o remete ao vivido e s prticas
construtivas de espacialidades sempre mutantes e proteiformes (que muda de forma
constantemente) e, ao mesmo tempo, um espetacular veculo de ideologias e de
imaginrios espaciais.
B. Relao com o mundo: pode-se dar a palavra imagem um sentido mais largo, sem
lhe reduzir ao domnio do visual, o que no uma posio necessariamente aceita por
todos os pesquisadores. A imagem torna-se ento sinnimo da representao, que
pode tomar formas muito diversas: texto escrito, falas, cones, imagerie animada,
dispositivos visveis... A definio da representao que convm a essa expanso do
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7domnio da imagem se encontra em Louis Marin, para quem ela a enunciao
poderosa de uma ausncia (Marin, 1993, 10); ela apresenta uma coisa que no est l
e na origem ela atenua a ausncia daquilo que a corrupo do tempo teria feito
desaparecer, para vir, por extenso, manifestar a presena de tudo isso que se furta ao
aqui e agora, sejam quais forem os motivos para isso. Ao mesmo tempo, ela exibe seu
prprio status de enunciado representativo, o que permite ao espectador e/ou ao leitor
de se constituir em sujeito-observador (no sentido de olhar) e ou/leitor.
O campo da representao excede o domnio da subjetividade irredutvel da
pessoa e permite aceder ao modo especfico de ser-no-mundo dos indivduos e,
portanto, de sua socializao relao com o mundo que no puramente intelectual,
mas se manifesta bem como engajamento de um ator nas artes do fazer mltiplos e
variados. Pode-se, com efeito, considerar que a imagem um sistema de signos que
mediatiza a relao do indivduo com o mundo. A imagem convertida em interioridade
ou exterioridade, ao mesmo tempo em que ela permite a uma pessoa incorporar os
elementos herdados de sua experincia social portanto convertendo a exterioridade
em interioridade.
Por conseqncia, a imagem que concerne ao gegrafo (espacial) mediadora
das relaes dos indivduos (tanto quanto o conjunto semntico estruturado), dos
grupos, das instituies do espao, etc objeto da prtica, objeto ativo levando em
conta as suas caractersticas prprias (formas, valores etc.) assim socializados por
essa mediao.
Uma tal abordagem faz da imagem um sistema linguageiro (no exclusivamente
discursivo, nem textual) investido nas menores aes dos indivduos e que tornam
sensvel a relao prtica do indviduo e seu entorno exterior. Pode-se figurar sob a
forma de um tringulo que se evoca aqui; num de seus vrtices, encontra-se a imagem,
noutro o grupo social, produtor e utilizador da imagem, no terceiro, o indviduo, tambm
produtor e utilizador daquela do grupo no seio do qual ele se inscreve. As relaes
entre essas trs entidades formam o campo da imagem em ato (Legendre, 1994).
No seio dessa imagem instrumento e expresso do agir humano, se marcar
facilmente a importncia conquistada pelo visual, que se beneficia de todo o seu
potencial representativo e pragmtico. Uma tal apreenso alargada da imagem,
oferece, por outro lado, a possibilidade de bem analisar as relaes complexas entre
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8os enunciados visuais e os discursos verbais, freqentemente associados s
linguagens da ao.