luta pela terra, cidadania e novo territÓrio em … · 13 - missa de celebração do aniversário...
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LETÍCIA DE CASTRO GUIMARÃES
LUTA PELA TERRA, CIDADANIA E NOVO
TERRITÓRIO EM CONSTRUÇÃO:
o caso da Fazenda Nova Santo Inácio Ranchinho, Campo Florido-MG (1989 - 2001)
UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA
INSTITUTO DE GEOGRAFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA
UBERLÂNDIA
2002
Foto: Gilson Goulart Carrijo, 1993
LETÍCIA DE CASTRO GUIMARÃES
LUTA PELA TERRA, CIDADANIA E NOVO
TERRITÓRIO EM CONSTRUÇÃO:
o caso da Fazenda Nova Santo Inácio Ranchinho,
Campo Florido-MG (1989 - 2001)
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Geografia - Área de Concentração em Análise e
Planejamento Sócio-Ambiental -, do Instituto de
Geografia da Universidade Federal de Uberlândia para
f ins de obtenção do título de mestre.
Orientador: Professor Doutor Antonio Ricardo Micheloto
UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA
INSTITUTO DE GEOGRAFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA
UBERLÂNDIA
2002
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________
Prof. Dr. Antonio Ricardo Micheloto (Orientador)
_____________________________________________
Prof. Dr. João Marcos Alem
_____________________________________________
Profª. Dra. Vera Lúcia Botta Ferrante
Uberlândia, ____ de _______________ de 2002
Resultado: ______________________________
"A Liberdade da Terra não é assunto de
Lavradores
A Liberdade da Terra é assunto de todos
Quantos se alimentam dos frutos da Terra
Do que vive, sobrevive de salário.
Do que não tem casa. Do que só tem
Viaduto
Do que é impedido de ir à escola
Das meninas e meninos de rua
Das prostitutas, dos ameaçados pelo
Cólera
Dos que amargam o desemprego
Dos que recusam a morte do sonho
A Liberdade da Terra e a paz no campo
Tem nome:
Reforma Agrária” (Pedro Tierra).
Ao meu esposo Edir e ao meu filho Pablo,
companheiros amorosos e solidários, que
compartilharam comigo os caminhos desta
construção.
Aos companheiros da fazenda Nova Santo
Inácio Ranchinho, personagens desta
história, tecida de suas lutas.
AGRADECIMENTOS
A tecitura desta dissertação deu-se graças ao apoio e à ajuda de
pessoas e instituições, às quais gostaria de agradecer.
Ao professor Antonio Ricardo Micheloto, orientador, amigo,
incentivador e, sobretudo, compreensivo com as dificuldades por mim
enfrentadas na condução da pesquisa de campo e da redação desta
dissertação. Suas críticas e sugestões foram fundamentais para meu
amadurecimento científico, especialmente no que se refere às
recomendações quanto ao afastamento crítico no processo de
investigação, como forma de evitar o apego subjetivista à realidade
estudada.
À banca do Exame de Qualif icação, composta pelos professores
João Cleps Júnior e João Marcos Alem, com quem tive oportunidade de
discutir minha pesquisa, apresentando críticas e contribuições para o
aprimoramento deste estudo.
À FAPEMIG, pela bolsa de estudo concedida por um ano.
Aos professores e colegas do Mestrado em Geografia, pelos dois
anos de convivência e amizade, em especial às professoras Beatriz
Ribeiro Soares, Vânia Rúbia Farias Vlach, Denise Labrea Ferreira, Vera
Lúcia Salazar Pessôa, aos professores João Cleps Júnior e Rosselvelt
José dos Santos, e aos colegas Adriany Ávila de Melo, Alberto Pereira
Lopes, Carlos Póvoa, Djalma Ferreira Pelegrini, Kelly Cristine Bessa,
Leila Márcia Costa, Nádia Cristina da Silva, Roberto Eduardo Castilho,
Sérgio Sebastião Negri e Silvana de Campos Sona.
Aos funcionários do INCRA - Superintendência Regional de Minas
Gerais -, meus agradecimentos pela disponibilização de documentos e
dados sobre o Projeto de Assentamento Nova Santo Inácio Ranchinho,
em especial à Rosanne Galuppo Fernandes Félix, amiga do curso de
Ciências Sociais, da FAFICH/UFMG, pela atenção dispensada e a
presteza com que me atendeu, quando da minha ida a essa Instituição.
Ao Jornal Correio que, por intermédio das jornalistas Ana
Guaranys e Roberta Guimarães, cedeu algumas fotos para ilustração
desta dissertação.
Ao fotógrafo Ismael (in memorian), pela solicitude na revelação de
fotografias em preto e branco. À Ione, que de maneira tão cuidadosa,
revisou a redação final deste estudo. Ao Juliano, colaborador na
elaboração do Abstract. E à geógrafa Eleusa, pela minuciosa
digitalização dos mapas.
Ao Elson Felice e ao Frei Rodrigo, agradeço a consideração
prestada no atendimento para a realização de entrevistas.
Às minhas amigas Beatriz, Bernadeth, Lídia, Lourdinha, Rosana e
à minha irmã Vera, pela interlocução de questões sobre a realização
deste trabalho.
À minha mãe e ao meu pai (in memorian), que colheram comigo os
frutos de minha criação, minha eterna gratidão.
Um agradecimento especial ao meu querido f ilho Pablo e ao meu
esposo Edir, carinhosamente apelidado Beril , que estiveram sempre ao
meu lado, mantendo com carinho e paciência, o apoio afetivo durante
todo este rico percurso.
Finalmente, aos trabalhadores e trabalhadoras da Nova Santo
Inácio Ranchinho, com quem contraí uma imensa dívida de gratidão, pela
atenção dispensada na realização das entrevistas, particularmente
Terezinha e Barroso, pela carinhosa acolhida em sua casa, possibilitando
o contato com os sujeitos da luta pela terra.
SUMÁRIO
Banca examinadora. .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . i i
Epígrafe. .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . i i i
Dedicatória. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . iv
Agradecimentos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . v
Lista de figuras. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ix
Lista de tabelas.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . xi
Lista de abreviaturas e siglas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . xii
Resumo.. .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . xiv
Abstract. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . xv
INTRODUÇÃO... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1
1 - MODERNIDADE E MODERNIZAÇÃO DA
AGRICULTURA NO TRIÂNGULO MINEIRO/ALTO
PARANAÍBA.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
21
1.1 - Os desencontros da modernidade na realidade agrária
brasileira. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
22
1.2 - A modernização da agricultura no Triângulo
Mineiro/Alto Paranaíba e seus impactos para os
trabalhadores rurais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
26
2 - O PROCESSO DE LUTA PELA TERRA COMO
CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA.. .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
46
2.1 - Experiência, memória, identidade coletiva e cidadania. . 47
2.2 - Histórias de vida dos sem-terra. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49
2.3 - Os equívocos da reforma agrária e a constituição do
espaço político. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
55
2.4 - A gênese da luta pela terra. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61
2.5 - As práticas que evidenciaram a disposição de luta: a
inserção dos trabalhadores no campo de disputas. . . . . . . . . .
67
2.6 - A vida cotidiana no acampamento .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79
2.7 - A chegada à terra prometida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89
2.8 - A realização de um sonho: a reforma agrária na Nova
Santo Inácio Ranchinho.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
99
3 - NOVO TERRITÓRIO EM CONSTRUÇÃO.... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 104
3.1 - O parcelamento da terra e a configuração de um novo
território. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
105
3.2 - Os novos espaços de sociabilidade. .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123
3.3 - A organização interna no assentamento: mediações e
lutas de poder. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
128
3.4 - A organização produtiva e a inserção no mercado de
produção.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
132
3.5 - Novas perspectivas de vida: entre a cidadania utópica e
a realidade vivida. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
140
CONSIDERAÇÃOES FINAIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 145
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.. .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 151
ANEXOS.. .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 162
ANEXO 1 - Buscando libertação. .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163
ANEXO 2 - A Partilha da Terra, Josué, Capítulo 18, Versículo
1 a 10, Antigo Testamento. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
165
ANEXO 3 - Roteiro de entrevistas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 167
LISTA DE FIGURAS
1 - Localização da área de estudo: região do Triângulo
Mineiro/Alto Paranaíba (MG).. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
4
2 - Trabalhadores juntando suas "tralhas" , após despejo da
Fazenda Colorado, 1990.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
69
3 - Montagem do acampamento em Vila União, 1990.. . . . . . . . . . . . . . . . . 69
4 - Incêndio ocorrido no acampamento nas margens da BR-497,
1991.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
80
5 - Distribuição de alimentos no acampamento, 1992.. . . . . . . . . . . . . . . . . 81
6 - Manifestação dos trabalhadores sem-terra, por ocasião da
visita do Ministro da Agricultura e do Presidente do INCRA
ao assentamento da Fazenda Barreiro, em Iturama, 1992.. . . . . . .
91
7 - Chegada dos trabalhadores à "terra prometida" , Fazenda
Santo Inácio Ranchinho em 19 de maio de 1993... . . . . . . . . . . . . . . . . .
93
8 - Montagem do acampamento na Fazenda Santo Inácio
Ranchinho, 1993.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
94
9 - Assentamento Nova Santo Inácio Ranchinho - Campo Florido
(MG) - 2002.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
107
10 - Conservação de área de veredas na Nova Santo Inácio
Rachinho, 1999.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
109
11 - Escola Municipal Santa Terezinha - assentamento Nova
Santo Inácio Ranchinho, 2000.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
117
12 - Tanque de expansão de leite - assentamento Nova Santo
Inácio Ranchinho, 2001.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
120
13 - Missa de celebração do aniversário de sete anos do
assentamento Nova Santo Inácio Ranchinho, 2000... . . . . . . . . . . . . . .
126
14 - Festa de Folia de Reis, realizada no aniversário do
assentamento Nova Santo Inácio Ranchinho, 2000... . . . . . . . . . . . . . .
128
15 - Vista de um lote com produção de arroz, na Nova Santo
Inácio Rachinho, 1999.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
133
LISTA DE TABELAS
1 - Distribuição dos créditos do POLOCENTRO.... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32
2 - Distribuição fundiária no Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba,
1970 - 1985.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
36
3 - Índice de Gini nos municípios do Triângulo Mineiro, 1985. . . . . 38
4 - Pessoal ocupado, distribuído por categoria no Triângulo
Mineiro/Alto Paranaíba, 1970, 1975, 1980, 1985... . . . . . . . . . . . . . . . .
38
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AIMFR - Associação Internacional dos Movimentos Familiares de
Formação Rural
AMEFA - Associação Mineira das Escolas Família Agrícola
APR - Animação Pastoral no Meio Rural
BASAGRO - Companhia Brasileira de Participação Agroindustrial
BID - Banco Interamericano de Desenvolvimento
CAMPO - Companhia de Produção Agrícola
CEB’s - Comunidades Eclesiais de Base
CNA - Confederação Nacional da Agricultura
CONTAG - Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura
CPT - Comissão Pastoral da Terra
CUT - Central Única dos Trabalhadores
DNTR - Departamento Nacional dos Trabalhadores Rurais
EFA - Escola Família Agrícola
EMATER – Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural
FASE - Federação de Órgãos para a Assis tência Social e Educacional
FETAEMG - Federação dos Trabalhadores da Agricultura do Estado de
Minas Gerais
IBASE - Instituto Brasileiro de Análises Sócio-Econômicas
IBGE - Insti tuto Brasileiro de Geografia e Estatística
INCRA - Inst ituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
JADECO - Japan-Brazil Agricultural Development
MIRAD - Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário
MLT - Movimento de Luta Pela Terra
MLST - Movimento de Libertação dos Sem Terra
MST - Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra
PADAP - Programa de Assentamento Dirigido do Alto Paranaíba
PCI - Programa de Crédito Integrado e Incorporação dos Cerrados
PND - Plano Nacional de Desenvolvimento
PNRA - Plano Nacional de Reforma Agrária
POLOCENTRO - Programa de Desenvolvimento dos Cerrados
PROÁLCOOL - Programa Nacional do Álcool
PROCERA - Programa de Crédito Especial Para a Reforma Agrária
PRODECER - Programa de Cooperação Nipo-Brasileira para o
Desenvolvimento Agrícola dos Cerrados
PT - Partido dos Trabalhadores
SRB - Sociedade Rural Brasileira
UDR - União Democrática Ruralista
UNEFAB - União Nacional das Escolas Família Agrícola do Brasil
RESUMO
Esta dissertação é resultado de uma pesquisa realizada com os trabalhadores rurais assentados na fazenda Santo Inácio Ranchinho, Campo Florido - MG, e tem como objetivo geral analisar as práticas e as formas de participação e organização coletivas, gestadas na luta pela terra, identificando nelas os indicadores da construção da cidadania e de constituição/reconfiguração do território conquistado. O eixo teórico deste trabalho é o conceito de cidadania, definido como um processo pelo qual os direitos são formulados, reivindicados, transformados pelos seres humanos concretos, sendo, sobretudo, resultado de suas experiências. O desenvolvimento deste estudo está dividido em três capítulos. O primeiro consiste em apresentar o cenário no qual os trabalhadores travaram suas lutas. Analisamos como a política de modernização da agricultura implementada no Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba foi marcada por uma forte exclusão social, produzindo efeitos perversos para os trabalhadores rurais. O segundo capítulo recupera a trajetória de luta vivenciada pelos sujeitos que demandavam terra, procurando desvelar como viveram esses anos todos, o que determinou a construção de uma organização coletiva, impondo para o espaço público o reconhecimento de suas experiências como cidadãos; e como gestaram o projeto coletivo de luta pela terra, manifestando sua emergência no cenário político. O capítulo terceiro analisa as mudanças ocorridas com a conquista do direito à terra, indicando como se deram o parcelamento e a reconfiguração do território conquistado pelos trabalhadores, a organização produtiva do assentamento, as novas formas de sociabilidade vividas no espaço conquistado, a organização interna no assentamento, bem como as novas perspectivas de vida desses agricultores, mediada pela cidadania utópica e a realidade vivida.
Palavras-chave: luta pela terra, identidade coletiva, cidadania, reconfiguração do terri tório.
ABSTRACT
This paper results from a research held with agricultural workers who live on Santo
Inácio Ranchinho farm, in Campo Florido, Minas Gerais State, and has as a general
objective to analyze the procedures, ways of participation and collective organization,
centered in the fight for the land, identifying, on them, the pointers of the construction
of the citizenship and constitution/reconfiguration of the conquered territory. The
theoretical axle of this work is the concept of citizenship, defined as a process through
which the rights are created, demanded, transformed by concrete human beings, being,
over all, result of their experiences. The development of this study is divided into three
chapters. The first one consists in presenting the scene in which the workers had their
fights. We have analyzed how the agricultural modernization process developed in the
region of Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba was marked by a strong social exclusion,
causing extremely bad effects to the agricultural workers. The second chapter
recuperates the history of fight deeply lived by those who fought for the land, trying to
reveal how they lived all these years, what determined the construction of a collective
organization, imposing to the public space the recognition of their experiences as
citizens; how they managed the collective project for the land, revealing their
emergence in the politician scene. The third chapter analyzes the changes that took
place with the conquest of the right to the land, indicating how the division and the
reconfiguration of the territory conquered by the workers were developed, the
productive organization of the settlement, the new ways of sociability lived in the
conquered space, the internal organization in the settlement, as well as the new life
projections created by these agriculturists, measured by the utopian citizenship and the
lived reality.
Key-words: fight for the land, collective identity, citizenship, territory reconfiguration.
INTRODUÇÃO
Será que, hoje em dia, tem sentido falar em ações coletivas, já que
vivenciamos a era da informação orientada pela racionalidade
instrumental e por um individualismo radical? Estaríamos vivendo um
processo de crise dos movimentos sociais? As utopias sociais e as
possibilidades de construção de sociedades mais justas e democráticas
esgotaram-se?
Questões como estas conduzem-nos à reflexão sobre os processos
de ações coletivas no cenário da globalização. Algumas análises sobre a
formação de atores coletivos no contexto da nova ordem mundial
indicam a crise dos movimentos sociais, em razão da hegemonia de uma
política neoliberal, que estaria produzindo uma homogeneização da
cultura, bem como a fragmentação da vida societária, indicando o
esgotamento das ideologias e das utopias (GOHN, 1997). Outras nos
apontam que o cenário conturbado da globalização não apagou as ações
coletivas desencadeadas pelos movimentos sociais (CASTELLS, 1999-b
e SCHERER-WARREN, 1999).
Se, por um lado, a globalização impõe um processo de
homogeneização dos espaços locais, políticos, sociais e culturais, por
outro, propicia reações locais oriundas de novas práticas dos movimentos
sociais, podendo vir a ser um embrião de mudanças socioculturais
(CASTELLS,1999-b).
2
Compreender o sentido das mudanças que estão ocorrendo com a
emergência do processo de globalização requer entender as grandes
transformações tecnológicas trazidas por uma base material. Como indica
CASTELLS (1999-b), vivemos hoje uma nova forma de sociedade, a
sociedade em rede,
“(. . . ) caracter izada pe la globalização das at ividades econômicas
decis ivas do ponto de vis ta estratégico; por sua forma de
organização em rede; pe la f lex ibi l idade e instabi l idade do emprego
e a indiv idual ização da mão de obra. Por uma cultura da
v irtual idade real cons truída a par t i r de um sis tema de mídia
onipresente , in te rl igado e al tamente diversi f icado. E pe las
trans formações das bases mater iais da v ida - o tempo e o espaço -
mediante a criação de um espaço de f luxos e de um tempo
intemporal como expressões das at iv idades e el i te s dominantes.“
(CASTELLS, 1999-b:17) .
Desenha-se um panorama aterrador com essa nova forma de
organização da sociedade que vem se configurando no limiar do século
XXI: o empobrecimento dos países em desenvolvimento, o desemprego e
os desequilíbrios sociais crescentes; problemas com meio ambiente
sobrecarregado; privatização das empresas públicas; a perda da força de
coesão dos movimentos trabalhistas; a crise do Estado de bem-estar
social, que fez piorar as condições de vida de grande parte dos cidadãos,
enfim, a utopia da sociedade do trabalho perdeu sua força persuasiva,
não abrindo mais possibilidades futuras de uma vida melhor
(CASTELLS,1999 e HABERMAS, 1987). As análises de HABERMAS
(1987) sobre o final do segundo milênio indicam-nos uma situação de
ininteligibilidade, de esgotamento das energias utópicas, de
perplexidade. No dizer deste autor, “quando secam os oásis utópicos,
estende-se um exército de banalidade e perplexidade” (HABERMAS,
1987:114).
Entretanto, apesar dessa nova forma de organização da sociedade
indicar um mundo sem fronteiras, constituído por mercados, instituições
estratégicas e redes, onde o “espaço é definitivamente ocupado pela
velocidade do tempo” (ORTIZ, 1996:220), não podemos considerar que o
processo de globalização se faz sob o signo do fim. Fim do Estado-nação
3
frente às organizações internacionais, fim das utopias diante das
diretrizes político-econômico-ideológicas para a reorganização do
capitalismo em escala mundial, f im ou dissolução das identidades
compartilhadas frente aos processos homogeneizantes da globalização,
que submetem a vida cotidiana às exigências universais do consumo.
Nesse sentido, é de fundamental importância resgatar uma questão
teórica levantada por CASTELLS (1999-b), que nos permite compreender
que, se a força homogeneizadora dos processos de globalização impõe,
por um lado, padrões comuns difundidos pelas novas tecnologias, por
outro, propicia reações locais oriundas de novas práticas dos movimentos
sociais, podendo vir a ser um embrião de mudanças socioculturais,
desafiando, assim, a nova (des)ordem mundial.
Part indo do pressuposto de que o processo de globalização, ao
invés de diluir as singularidades, pode propiciar um reforço das
identidades coletivas, apresentamos como objeto de estudo as
experiências e práticas vivenciadas por trabalhadores rurais -
assalariados, parceiros, arrendatários - na conquista da desapropriação de
3.958 ha de terra para f ins de reforma agrária. Os cenários dessa luta são
o espaço rural dos municípios de Iturama e Limeira d’Oeste, bem como a
fazenda Nova Santo Inácio Ranchinho, Campo Florido, localizados na
região do Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba, Minas Gerais (ver FIGURA
1). Os eixos deste estudo são o processo de constituição da cidadania nas
práticas de luta por terra, e a compreensão da maneira pela qual se deu a
configuração de um novo território, engendrada nas experiências de
organização e de resistência da terra conquistada pelos trabalhadores
rurais.
4
5
A trajetória de luta desses trabalhadores, marcada por derrotas e
vi tórias, teve seu início em janeiro de 1990, quando cerca de 100
famílias de trabalhadores rurais ocuparam a fazenda Colorado no
município de Iturama, no Pontal do Triângulo Mineiro, com o apoio da
Comissão Pastoral da Terra - CPT -, Central Única dos Trabalhadores -
CUT -, Entidades Sindicais, Federação dos Trabalhadores da Agricultura
de Minas Gerais - FETAEMG - e do Movimento dos Sem-Terra - MST -,
entre outras entidades, anunciando aí a esperança de conquista de um
pedaço de terra, com o objetivo de dividir e fazer produzir o latifúndio.
O despejo mediante a ação do poder judiciário e da polícia local,
aliados à UDR - União Democrática Ruralista -, veio 24 horas depois da
experiência de ocupação da referida fazenda. Após esse despejo, a
resistência dos trabalhadores rurais tomou forma de outra ação
organizada - o acampamento realizado na estrada do distrito de Vila
União, a 30 Km de Iturama e, posteriormente, nas margens da BR 497
(Km 12).
A experiência do acampamento nas margens da estrada durou três
anos e quatro meses. Nesse período, cerca de 150 famílias viveram em
barracos de plástico preto, com péssimas condições de segurança, saúde,
alimentação, entre outras necessidades básicas. Foram registrados casos
de atropelamentos de crianças, incêndios e invasões de caminhões sobre
os barracos; ameaça dos fazendeiros de contaminação da água utilizada
pelos acampados; privação de alimentos; falta de assistência da
Prefeitura local e dos hospitais da cidade, além da violência praticada
pela Polícia Militar na tentativa da ocupação da Fazenda Varginha. No
entanto o processo de resistência vivenciado pelos trabalhadores rurais,
por meio da organização de comissões de trabalho, da realização de
assembléias, da ocupação do Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária - INCRA - e outras instâncias do Estado, exigindo
desapropriação para os sem-terra, constitui-se como experiências de
6
construção de uma identidade coletiva desses trabalhadores na luta pela
terra.
Em 19 de maio de 1993, após aguardar por mais de dois anos a
decisão do INCRA no encaminhamento de desapropriação da Fazenda
Santo Inácio Ranchinho, no município de Campo Florido, os
trabalhadores instalaram-se na “terra prometida”1 e cravaram aí uma
cruz como símbolo de disposição de disputar a apropriação do latifúndio
improdutivo, constituindo, assim, um fato político de grande relevância,
que imprimiu maior visibil idade à luta pela terra no Triângulo
Mineiro/Alto Paranaíba.
Com a entrada dos trabalhadores na fazenda, o processo de luta e
resistência continuou. A instalação dos acampados deu-se de maneira
precária e improvisada, continuando a morar em barracos cobertos de
plástico preto, sem as mínimas condições de conforto, enfrentando
problemas de saúde e alimentação. Por outro lado, a ação de reintegração
de posse impetrada pela ex-proprietária da fazenda exigiu ações
contínuas de enfrentamento organizado.
Em 1994, o desencadeamento de ações coletivas fez com que a
resistência dentro do acampamento possibi litasse a efetivação da
desapropriação da Fazenda Santo Inácio Ranchinho, por parte do INCRA,
assentando 115 famílias em áreas de 25 hectares, aproximadamente. A
terra conquistada adquiriu um novo nome: Fazenda Nova Santo Inácio
Ranchinho, expressando aí o rompimento com a espoliação capitalista de
produção e a construção de um novo território.
Hoje, os trabalhadores da Nova Santo Inácio Ranchinho
reconfiguraram a terra conquistada, transformando o latifúndio
1Util izamos aqui a expressão ut i l izada pe los tr aba lhadores sem-terra. Essa expressão tem uma dimensão s imból ica, pois é vinculada à passagem bíbl ica em que o povo hebreu busca a ter ra prometida por Moisés. Sign i fica, também, a promessa fe i t a pelo Governo Federa l aos sem- terra, no sent ido de desapropriar a fazenda Santo Inácio Ranchinho.
7
improdutivo em unidades de produção familiar, além de estabelecer aí
novas maneiras de produzir, novas relações sociais, novas formas de
luta, novas sociabilidades, enfim, um novo modo de vida.
Esse espaço conquistado não era uma realidade estática, reificada,
que se apresentava apenas como cenário de luta para a conquista da terra.
Ele foi t ransformado em território escolhido pelos trabalhadores para
nele construírem seus modos de vida. Dessa maneira, estabeleceram-se
práticas e ações que se configuram como processo de exercício da
cidadania e construção de um novo território a serem reconhecidas neste
estudo.
Na trajetória desses trabalhadores rurais, marcada por derrotas e
vi tórias, percebemos a formação da identidade coletiva nas lutas de
ocupação do território disputado, manifestando a sua emergência no
cenário político.
Nesse processo de construção da cidadania, os novos sujeitos
questionavam o lugar que lhes era imposto na sociedade, sendo
portadores de reivindicações que visassem resgatar seus direitos mais
elementares (civis, políticos e sociais), suprimindo, assim, sua cidadania
incompleta.
Dessa maneira, o enfoque adotado neste estudo é a análise das
práticas, formas de participação e organização coletivas, gestadas no
processo de luta pela terra, identif icando nelas os indicadores da
construção da cidadania e de constituição / reconfiguração de um novo
território. Neste sentido, as questões que se colocaram para a realização
deste trabalho foram:
- o que determinou a saída do isolamento e do anonimato desses
trabalhadores - isto é, da condição de exclusão social e da
própria cidadania - para a constituição de uma organização
8
coletiva, que impõe, para o espaço público o reconhecimento de
suas experiências como cidadãos?
- em que medida as práticas vivenciadas na luta pela terra são
forjadoras de uma nova cidadania e da configuração de um novo
território?
- quais são as possibi lidades e os limites do movimento de luta
pela terra, diante das relações de forças estabelecidas com a
sociedade civil e com Estado?
- que relações podemos estabelecer entre o movimento de luta pela
terra e o processo de democratização da sociedade brasileira?
- considerando que as lutas sociais no campo se diversificam em
termos geográficos, quais são as especificidades do movimento
dos sem-terra no Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba?
- como se dá a reconfiguração do terri tório conquistado?
- como os agricultores da Nova Santo Inácio Ranchinho vêm
viabilizando sua permanência no campo e garantindo sua
reprodução social, num contexto de economia globalizada?
O presente estudo busca o entendimento da dimensão polít ica do
processo de luta pela terra, compreendendo-o como uma possibilidade de
democratização do espaço público instaurada pelas experiências de luta
pela terra, procurando apontar que não se pode pensar na construção de
um projeto democrático da sociedade brasileira sem a partic ipação dos
trabalhadores sem-terra, especialmente, sem pensar em suas propostas de
realização da reforma agrária.
Ao analisar os caminhos trilhados pelo movimento dos
trabalhadores sem-terra, hoje assentados da fazenda Nova Santo Inácio
Ranchinho, compreendemos que, mediante o processo de luta por terra,
os trabalhadores elaboram identidades coletivas, ampliam sua presença
9
no espaço político, impõem para a sociedade o reconhecimento de sua
cidadania (GRZYBOWSKI, 1991), além de estabelecerem novas
territorialidades, que engendram novas alternativas de produção, novas
formas de organização e mobilização em rede, novas sociabilidades,
enfim, um novo modo de vida (CARNEIRO, 1999; GRZYBOWSKI, 1991
e MEDEIROS, 1989).
A questão da identidade coletiva, da cidadania e da
nova territorialidade nos movimentos de luta pela
terra
Compreendendo os movimentos de luta pela terra como “formas de
ações coletivas reativas aos contextos históricos-sociais nos quais estão
inseridos” , (SCHERER - WARREN, 1999:14), percebemos que tais
movimentos têm como ponto comum a busca de caminhos alternativos
para superar a situação de subordinação e exclusão a que foram
submetidos, em razão tanto da dinâmica da modernização conservadora
brasileira, como, em determinadas situações, das dif iculdades de
integração econômica aos processos globais.
A literatura sobre os conflitos de terra no Brasil indica a marca de
resistência a diferentes formas de expropriação dos trabalhadores rurais.
Como mostra GRZYBOWSKI (1994), a quase totalidade dos movimentos
sociais no campo resulta da resistência dos trabalhadores e dos
camponeses ao processo econômico e político provocado pela rápida
modernização da agricultura. As transformações promovidas pelo modelo
modernizador, que implicaram o aumento da produtividade, mecanização
agrícola e agroindustrialização, terminaram por aprofundar as
desigualdades e a exclusão social no campo.
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Ao desencadearem múltiplos processos de lutas e de resistência,
os t rabalhadores rurais elaboram suas identidades sociais, determinadas
pela consciência da situação de carência e exclusão social a que foram
submetidos. Os atores coletivos dessas lutas sociais exprimem suas
identidades por meio da afirmação como sem-terra, o que lhes dá
sustentação para reivindicar junto ao Estado o direito à terra,
manifestando, assim, sua oposição à estrutura agrária concentradora e ao
processo de desenvolvimento, que os excluem (MEDEIROS, 1999). Por
sua vez, esses atores revelam sua alteridade em relação a outros
movimentos, forjando-se como sujeitos diferentes, que buscam sua
autonomia polí tica, com linguagens e símbolos próprios2 .
As identidades elaboradas pelos trabalhadores não são dadas, mas
construídas. É no contexto de constituição de formas mais incisivas de
luta, como ocupações e acampamentos, que os trabalhadores vão
construindo suas identidades, organizando práticas sociais, expressando
suas vontades, const ituindo, enfim, um projeto de reforma agrária, que
vai, paulatinamente, ganhando visibilidade na agenda política
(MEDEIROS: 1999).
Assim, pela afirmação de suas identidades, construídas no fazer de
suas lutas, numa trajetória descontínua, marcada por derrotas e vitórias,
avanços e recuos, os movimentos de trabalhadores no campo
constituíram-se como sujeitos sociais, ampliaram sua presença no espaço
político, impondo para a sociedade o reconhecimento de sua cidadania
(GRZYBOWSKI, 1991 e MEDEIROS, 1989).
2O própr io MST, por exemplo, que surgiu da ar t iculação da Igre ja Catól ica como mediadora de diferentes exper iênc ias de luta pela te r ra , adquire sua autonomia pol í t ica ao inst i tuir -se como movimento soc ia l , expr imindo uma l inguagem própr ia, mediante suas bandeiras de lu ta como “Terra não se ganha, se conquista” e “Ocupar, resis t i r, produzir” . A produção de s ímbolos como a c ruz e a ana logia da lu ta pe la te r ra com o êxodo do povo hebreu em busca da ter ra promet ida são entendidas pelo movimento como referência para que os tr abalhadores compreendam melhor sua his tór ia , além de serem referencial pedagógico que enr iquece novas formas de organização (MOVIMENTO DOS SEM-TERRA, 1999) . Sobre as imagens de uma missão e do reino promet ido nos movimentos de lu ta por te rra , ver também MICHELOTO (1991) .
11
Nessa perspectiva, as identidades coletivas são compreendidas
como construções político-estratégicas (SANTOS, 1998), estando
associadas à idéia de constituição da cidadania.
Para compreender as práticas sociais impressas pelos movimentos
de luta pela terra na constituição da cidadania, as análises de DAGNINO
(1994) constituem-se como referencial teórico fundamental. Em seu
estudo sobre os movimentos sociais e a emergência de uma nova noção
de cidadania, essa autora procura caracterizar o que denomina de nova
cidadania, como estratégia polít ica estabelecida a partir da emergência
dos movimentos sociais no cenário polí tico. Para ela, a construção da
cidadania está entrelaçada à organização dos movimentos sociais, que, na
luta por direitos - tanto o direito à igualdade como o direito à diferença -
contribuem para o aprofundamento da democracia. Ao conceber a
cidadania como nexo constitutivo entre as dimensões da cultura e da
política, a autora expõe que a nova cidadania constitui uma proposta de
novas formas de sociabilidade, que rompe com o autoritarismo social
enraizado na cultura brasileira, estabelecendo, assim, um desenho mais
igualitário nas relações sociais.
Assim, numa sociedade na qual a desigualdade econômica e a
miséria resultam de um ordenamento hierárquico e desigual de relações
sociais (DAGNINO, 1994), os movimentos sociais (inclusive os
movimentos de luta pela terra), ao contestarem o poder exercido pelas
velhas forças oligárquicas (especialmente as agrárias), minam os pilares
do autoritarismo enraizado na sociedade brasileira, contribuindo,
portanto, para a efetiva democratização social (DAGNINO, 1994 e
GRZYBOWSKI, 1991), à medida que incorporam sujeitos sociais e novos
direitos.
Focalizando direitos de cidadania sob a ótica do direito a ter
direitos (LEFORT,1991), partimos da concepção de que a cidadania não
se limita a conquistas legais ou ao acesso a direitos já estabelecidos, mas
institui, fundamentalmente, direitos inventados pelas práticas sociais,
12
emergentes de lutas específicas. Nesse sentido, os movimentos de luta
pela terra agregam, em suas experiências, a criação de novos direitos,
imprimindo assim, “uma legalidade emergente construída nas formas
negociadas de arbitragem de conflitos, nas quais se processa (. . . ) uma
jurisprudência informal que opera critérios de justiça substantiva”
(TELLES, 1994:99).
Portanto , as ocupações de terra realizadas pelos movimentos,
entendidas como práticas legí timas de pressão para a efetiva
desapropriação de terras improdutivas, enunciam a criação de novos
direitos, indicando que as experiências de luta conduzem a novas
relações com a esfera pública, nas quais os novos sujeitos questionam a
ordem polít ica centrada no Estado, buscando uma nova ordem baseada
na democracia direta e participativa, além de deslocarem práticas
tradicionais de mandonismo e clientelismo.
No terreno de lutas populares e de demandas para a realização de
uma reforma agrária justa e democrática, os trabalhadores procuram
trilhar caminhos para superar a situação de exclusão e subordinação a
que foram submetidos, sendo portadores de reivindicações que visem
resgatar seus direitos mais elementares de cidadãos, além de
estabelecerem a criação de novos direitos.
Esse processo de construção da cidadania possui uma forte âncora
territorial, considerando que “a possibilidade de ser mais ou menos
cidadão depende, em larga proporção, do território onde está”
(SANTOS, 1993:81). De acordo com SANTOS (1993), as desigualdades
sociais são antes de tudo desigualdades terr itoriais, já que advêm do
lugar onde o cidadão se encontra. Dessa maneira, a constituição da
cidadania não deve estar alheia às realidades territoriais, pois “(. . .) o
cidadão é o indivíduo no lugar. A República somente será democrática
quando considerar os cidadãos iguais independente do lugar onde
estejam” (SANTOS, 1993:123).
13
Desse modo, se os rumos tomados pela modernização brasi leira,
resultantes da reorganização econômica, das mudanças no padrão
tecnológico e das transformações ocorridas no mercado, vêm produzindo
um novo tipo de exclusão social, as práticas de invenção de novos
direitos e de novos pactos de convivência social, estabelecidas pelos
movimentos sociais no campo, indicam a possibilidade de construção de
“parâmetros capazes de reverter a lógica de uma modernização
selvagem que nos projeta nos caminhos do século XXI sem ainda ter
resolvido as questões clássicas de uma modernidade incompleta”
(TELLES, 1994:98).
Assim, à medida que as lutas desencadeadas por tais movimentos
avançam, o espaço rural brasileiro, marcado pela concentração fundiária
e pela espoliação capitalista excludente, vai sendo, paulatinamente,
reterritorializado, abrindo perspectivas para novas territorialidades.
Apesar da existência de lutas sociais mais localizadas, o processo
de conquista da terra tem um significado especial para os movimentos:
ele expressa um movimento de territorialização que abre perspectivas
para a conquista de novos terri tórios. No dizer do Movimento dos Sem-
Terra:
“(. . . ) cada assentamento que o MST conquis ta, ele se terri torial i za.
E é exatamente i s to que di fe rencia o MST de outros movimentos
soc iais . Quando a luta acaba na conqui sta da terra, não exis te
te rr i tor ial ização ( . . . ) Já disse o poeta ‘Quando chegar na terra,
lembre de quem quer chegar . Quando chegar na terra que tem
outros passos para dar’ . Os Sem-Terra ao chegarem na terra,
v i slumbram sempre uma nova conquis ta e por essa razão o MST é
um movimento sociote rr i torial .” (MST, 1999).
A literatura sobre a formação dos assentamentos no Brasil indica-
nos as novas possibilidades de util ização de áreas decadentes, que
adquirem novas funções, em termos econômicos, em razão da presença
da luta por terra. Além disso as atividades agrícolas desenvolvidas pelos
assentados proporcionam meios de vida mais dignos, e a reapropriação
de espaços pouco explorados assume funções políticas de del imitação do
território (MEDEIROS, 1999).
14
No que se refere às novas formas de produção, estudos têm
apontado a presença de formas associativas nos assentamentos como
tentativa de superar obstáculos relacionados à produção e
comercialização, e a predominância da agricultura familiar, ancorada na
formação de pequenos grupos, ligados entre si por relações de
contigüidade, marcada por uma identidade local.
As identidades terr itoriais, apoiadas no pertencimento a uma
localidade, contradizem as tendências que preconizam a globalização
como um processo inexorável de homogeneização, que dilui as
singularidades das culturas locais. Nos territórios conquistados pelos
movimentos de luta por terra, tal sentimento de pertencimento dá-se a
partir de um processo de mobilização definido por interesses comuns,
constituindo, assim, uma identidade entrelaçada à memória coletiva3.
Nesse sentido, os atores coletivos dos assentamentos de reforma agrária
procuram sempre resgatar as lembranças de conquista da terra, como
forma de manter o grupo coeso, pois o esquecimento significa o seu
desmembramento e o estilhaçamento da identidade construída.
Entretanto, o que as experiências de ações coletivas de luta pela
terra apresentam de mais inovador é um formato de organização em
redes, buscando a articulação com outros movimentos sociais e
organizações não-governamentais para discussão e realização de projetos
comuns, mediante a formação de múltiplas redes sócio-políticas4 que se
constroem nesta era da informação.
3Para a noção de memór ia cole t iva , r emetemo-nos a HALBAWCHS (1990) , cuja contr ibuição é fundamenta l para compreende r a memór ia não como a tr ibuto individual , passando a ser considerada como par te de um processo soc ia l , em que os aspectos da consc iênc ia pessoal encontram-se l igados a de terminantes soc ia is . 4Tais redes sóc io-pol í t icas a tuam como mediadoras entre a soc iedade c ivi l e o Estado, agindo s imult aneamente em iniciat ivas loca is , nac ionais e internacionais , es tabe lecendo fóruns de debates sobre a questão agrár ia . Dent re as inst i t uições e organizações não-gove rnamentais que cons t i tuem es tes fóruns, des tacam-se: Univers idades, MST, MLST, CPT, Cár i tas Bras i le i ra , CONTAG, CUT, FASE, IBASE, entre out ras .
15
Dessa maneira, podemos afirmar que o processo de globalização
não apagou as práticas e experiências de luta dos movimentos sociais no
campo, mas possibilitou a eles uma nova roupagem.
As ações coletivas gestadas pelos movimentos de luta pela terra
apresentam avanços e recuos. Entretanto, nesse cenário turbulento de
mudanças, eles continuam marcando presença no espaço político,
interpelando a realização de uma reforma agrária que promova mudanças
estruturais no campo, além de buscar novos ideais que contribuam para a
construção de uma sociedade mais democrática, dando-nos uma lição de
cidadania.
É nessa abordagem que este estudo se insere. Ao analisar as
práticas sociais de luta pela terra, desenvolvemos algumas reflexões que
nos permitiram compreender tais práticas como o processo de
constituição da identidade e da cidadania está entrelaçado ao movimento
de territorialização desencadeado pelos movimentos sociais no campo,
processo entendido como construção político-espacial. Para tanto, o
território, lugar onde os trabalhadores vivem, produzem e constituem
novas sociabil idades, é redesenhado por tais movimentos, contribuindo
para o reordenamento territorial brasileiro. Afinal, não podemos refletir
sobre a realidade agrária brasileira neste início de milênio, sem levar em
consideração o papel desempenhado pelos movimentos dos trabalhadores
sem-terra no reequilíbrio territorial.
Para compreender as práticas sociais impressas pelos movimentos
de luta pela terra, as contribuições de DOIMO (1986), DURHAM (1984),
EVERS (1984), GOHN (1997), MELUCCI (1989), PAOLI (1984) e
SADER (1988) constituem referenciais teóricos fundamentais. Tais
estudos apontam para uma nova alternativa metodológica, que rompe
com a representação homogeneizante dos movimentos sociais,
especialmente, uma certa versão do marxismo, que reconhece esses
movimentos como personificação da estrutura econômica.
16
Os esquemas teóricos, inspirados na concepção marxista-leninista,
que interpretam os movimentos sociais como movimentos de massa5 ,
supostamente pouco estruturados e subordinados às organizações
sindicais ou mesmo à liderança polít ico-partidária - única instituição
supstamente apta a fazer política (EVERS, 1984) -, são considerados
insuficientes para compreender a dinâmica por eles imprimidas na
sociedade contemporânea.
Uma gama de estudos referentes à emergência de novos
movimentos sociais (DOIMO, 1986; EVERS, 1984; GOHN, 1997;
MELUCCI, 1989; PAOLI, 1984; SADER, 1988) contribuíram para a
compreensão de uma nova forma de fazer política marcada pelos
movimentos, constituída com base na sociedade civil e não apenas na
esfera estatal. Tais matrizes teóricas destacam os fatos conjunturais,
micro, do cotidiano, ao negarem as concepções que valorizam o poder
das determinações macro-estruturais. Nesse sentido, a nova abordagem
teórico-metodológica sobre os movimentos sociais ressalta a emergência
de um novo sujeito histórico, não mais configurado pelas contradições do
capitalismo ou formado pela “consciência autêntica” da vanguarda
partidária. Ao contrário, esse novo sujeito que desponta é considerado
“(. . . ) um cole t ivo di fuso, não-hierarquizado, em luta contra as
discr iminações de acesso aos bens da modernidade e, ao mesmo
tempo, crí t ico dos seus e fe i tos nocivos, a part i r da fundamentação
de suas ações em valores t radicionais , sol idários, comuni tários .
Portanto, a abordagem elimina a centralidade de um suje i to
espec í f ico, predeterminado, e vê os part icipantes das ações
cole t ivas como atores sociai s” (GOHN, 1997:123) .
Tais estudos apontam para a emergência dos movimentos sociais
no cenário político, demonstrando que o desenvolvimento de suas
práticas reivindicativas, de luta e resistência, colocaram “em xeque a
separação de uma esfera pública - estatal e portanto polít ica, e a esfera
5Na concepção dos movimentos de luta pe la ter ra, a luta por reforma agrár ia tem um cará ter corpora t ivis ta , necessi t ando obter um caráter massivo e cl ass is ta . Para esse s movimentos, a luta por te rra está vinculada a uma est ra tégia revoluc ionár ia, tendo um cará ter necessar iamente soc ial i s ta .
17
privada - individual e portanto não-política” (PAOLI, 1984:56),
indicando os novos espaços políticos criados por esses movimentos, uma
vez que suas experiências de luta conduzem a novas relações com a
esfera pública, emergindo daí um sujeito novo, questionador da ordem
política centrada no Estado, buscando uma nova ordem baseada na
democracia direta e participativa.
Assim, na nova abordagem sobre os movimentos sociais, as
categorias teóricas como participação, experiência, direitos, cidadania e
identidade coletiva projetam-se para além das tradicionais temáticas das
classes.
Dessa maneira, as contribuições teóricas do novo paradigma sobre
os movimentos sociais são fundamentais, ao apontarem para uma
alternativa metodológica que realça a possibi lidade da constituição de
práticas democráticas na sociedade contemporânea.
Com essas referências, procuramos pensar o processo de luta pela
terra com base nas experiências cotidianas vividas pelos novos sujeitos
da fazenda Nova Santo Inácio Ranchinho. Para isto, utilizamos a
memória como fio metodológico deste trabalho, remetendo-nos aos
estudos de BOSI (1987) e HALBAWACHS (1990).
Para BOSI (1987:17), a memória não é sonho, mas trabalho. Por
isso mesmo,
“(. . . ) lembrar não é reviver , mas refazer, recons truir, repensar com
imagens e materiais e idé ias de hoje, as exper iênc ias do passado
( . . . ) A lembrança é uma imagem cons truída pelos materiai s que
estão agora à nossa disposição, no conjunto de representação que
povoam nossa consci ência atual . Por mais n í t ida que nos pareça a
lembrança de um fato antigo, e la não é a mesma imagem que
experimentamos na infância, porque não somos os mesmos de então
e porque nossa percepção al terou-se e com ela nossas idé ias ,
nossos juí zos de real idade e de valor.
Pela sua plasticidade, a lembrança é um material complexo para
ser organizado como fonte de pesquisa, já que ela não se constitui como
história pronta e porque é recortada pelo gosto do recordador.
18
Entretanto, nem por isso a memória deve ser desprezada pelo
pesquisador, já que ela não faz parte apenas das lembranças de um
sujeito, mas de toda uma comunidade. No dizer de BOSI (1987), a
memória individual está amarrada à memória do grupo e esta à coletiva.
Por sua vez, a noção de memória coletiva está entrelaçada à idéia
de identidade e vice-versa. O sentido de continuidade presente em um
indivíduo ou grupo social depende, portanto, do que é lembrado ao longo
do tempo, assim como o que é lembrado depende da identidade de quem
lembra. Nesse sentido, a contribuição de HALBAWACHS (1990) é
fundamental para compreender a memória não como um atributo
estritamente individual, passando a ser considerada como parte de um
processo social em que aspectos da consciência pessoal encontram-se
ligados a determinantes sociais (HALBAWACHS; 1990:55).
Na busca da reconstituição da trajetória de lutas vividas pelos novos
sujeitos da Nova Santo Inácio Ranchinho, trilhamos tanto as experiências
individuais, como os acontecimentos vivenciados por todos. Dessa
maneira, o entrelaçamento da memória individual com a memória
coletiva assume um significado especial, que nos permite compreender
que o resgate da lembrança só é possível porque o grupo se mantém
coeso, pois o esquecimento significa o seu desmembramento e o
estilhaçamento da identidade construída.
Recuperar a his tória da luta dos trabalhadores pelo direito do acesso
à terra constitui-se um desafio. Trata-se de um percurso, cujos registros
foram resgatados por meio de entrevistas não-diretivas, de forma a
intervir o menos possível na fala dos entrevistados. Uma das
características desse tipo de entrevis ta é a sua habilidade em “explorar o
universo cultural próprio de certos indivíduos em referência às
capacidades de verbalização específica do grupo a qual pertencem”
(THIOLLENT, 1982:81), possibilitando, assim, o resgate da memória dos
entrevistados e o aprofundamento mais sistematizado do tema da
pesquisa. Por conseqüência, a condução das entrevistas deu-se a partir
19
da indicação de um roteiro, previamente elaborado, que orientou o
desenvolvimento dos relatos dos indivíduos, permitindo a exploração de
seu universo sociocultural, sem um questionamento forçado. Uma outra
técnica utilizada foi a apresentação de fotografias e reportagens de
jornais aos entrevistados, como forma de iniciar o diálogo, além de nos
permitir reconstituir momentos significativos das experiências por eles
vivenciadas.
Para a orientação dos relatos orais produzidos pelos trabalhadores,
recorremos às consultas de fontes documentais, por meio do
levantamento e análise de documentos, entre os quais, os jornais da
imprensa nacional e regional, relatórios produzidos por órgãos
governamentais, além de panfletos e documentos elaborados pelos
próprios trabalhadores.
Desse modo, procuramos desenvolver nossa pesquisa, tentando não
só resgatar a história das lutas vividas pelos trabalhadores rurais, hoje
agricultores familiares da fazenda Nova Santo Inácio Ranchinho, mas,
sobretudo, articular suas experiências com a realidade objetiva, que se
apresenta como cenário de luta.
O capítulo primeiro desta dissertação consiste em apresentar o
cenário de fundo estrutural no qual os t rabalhadores travaram suas lutas.
Nele analisamos como a política de modernização da agricultura
implementada na região do Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba, por meio
de planos de desenvolvimento e ocupação no cerrado, foi marcada por
uma forte exclusão social, produzindo efeitos perversos para os
trabalhadores rurais. Demonstramos que os impactos resultantes do
processo de modernização nessa região favoreceram o movimento de luta
pela terra em Iturama.
O segundo capítulo recupera, através da memória, a trajetória de luta
vivenciada pelos sujeitos que demandavam terra, procurando desvelar
como viveram esses anos todos; como rememoram suas histórias de vida,
20
o que determinou a construção de uma organização coletiva, impondo
para o espaço público o reconhecimento de suas experiências como
cidadãos; como gestaram um projeto coletivo de luta por terra, tecendo
regras de convivência e estratégias utilizadas para a disputa de um
território, manifestando sua emergência no cenário político.
Por fim, o capítulo terceiro analisa as mudanças ocorridas com a
conquista do direito ao acesso à terra, indicando como se deu o
parcelamento e a reconfiguração do terr itório conquistado pelos
trabalhadores, a organização produtiva do assentamento e a inserção dos
agricultores no mercado de produção, as novas formas de sociabilidade
vividas no espaço conquistado, a forma interna de organização no
assentamento, bem como as novas perspectivas de vida desses
agricultores, mediada pela cidadania utópica e a realidade vivida.
1 - MODERNIDADE E MODERNIZAÇÃO DA
AGRICULTURA NO TRIÂNGULO
MINEIRO/ALTO PARANAÍBA
Para inserir as experiências e práticas vivenciadas pelos
trabalhadores rurais - hoje agricultores familiares da Fazenda Nova
Santo Inácio Ranchinho - no processo de conquista da terra, faz-se
necessário compreender o cenário regional no qual esses trabalhadores
travaram suas lutas. Afinal de contas, o contexto maior, que gestou os
movimentos de luta por terra, está relacionado com a resistência da
população rural ao processo econômico e polít ico provocado pela rápida
modernização da agricultura. Como indica GRZYBOWSKI (1994), os
problemas enfrentados pelos trabalhadores do campo, que por trás de
diversas formas de integração, exploração e marginalização acabaram por
aprofundar as desigualdades e a exclusão social, não se deram em razão
da falta do desenvolvimento, mas, ao contrário, deveram-se ao “sucesso”
do modelo modernizador. No entendimento desse autor, “a desigualdade
e a exclusão no campo existiam desde antes do processo modernizador,
mas através deste processo reproduziram-se em escala ampliada”
(GRZYBOWSKI, 1994:290).
22
1.1 - Os desencontros da modernidade na realidade
agrária brasileira
“Produz ir cada vez mai s a l imentos para sua população e para exportação deve ser a meta de qualquer governo, espec ialmente no caso do Bras i l onde já somos 140 milhões de habi tantes e cuja principal fonte de recursos é a agricul tura.
A região dos Cerrados, que ocupa cerca de 207 mi lhões de hec tares do te rr i tório brasi leiro, sendo considerada uma das maiores áreas de expansão agr ícola do Bras i l e do mundo, tem contribuído para o aumento da produção de al imentos. Hoje com a exploração de apenas 10% de sua área agricul táve l , part ic ipa com 30% da produção nacional de grãos e com 40% de carne .
( . . . ) O Centro de Pesquisa Agropecuária dos Cerrados - CPAC foi cr iado com o obje t ivo de gerar conhecimentos que permit i ssem o estabelec imento de uma agricul tura moderna, auto-sustentada, que conservasse os recursos naturais de forma a permi t i r uma ocupação rac ional da região dos Cerrados” (BRASIL. Minis tér io Da Agricul tura, do Abastec imento e da Reforma Agrária : 1991) .
O trecho acima transcrito refere-se à apresentação do Relatório
Técnico Anual do Centro de Pesquisa Agropecuária dos Cerrados (1985 -
1987), redigido por José Roberto Rodrigues Peres, exibindo um discurso
representativo do imaginário governamental sobre a moderna agricultura
brasileira, implementada pelos programas de desenvolvimento agrário.
Nesse relatório, a região dos cerrados, tida como “grande celeiro de
alimentos do mundo”, aparece como espaço do progresso, da produção de
uma tecnologia avançada, já que incentiva a exploração da agricultura de
forma racional. A moderna agricultura f igura como elemento-chave do
progresso, do avanço, privilegiando agricultores com “espírito
empresarial” , em contraposição ao modelo “arcaico”, da tradicional
agricultura praticada nessa região.
A meta de “produzir cada vez mais alimentos para a população e
para exportação” expressa a euforia do poder público com as super-
safras, fazendo crer que a modernização da produção agrícola do cerrado
produziria impactos sociais inevitavelmente benéficos para a população.
23
De fato, mais se fala da modernidade no espaço agrícola do que,
efetivamente, ela é. A miséria, o subemprego, o desemprego, a exclusão
social, os pobres, migrados do campo, produzidos pelo desenvolvimento
da agricultura, não aparecem no discurso governamental, pois fazem
parte de um passado que, supostamente, não é o tempo da modernidade.
Desse modo, recuperamos a teoria interpretativa desenvolvida por
MARTINS (2000), indicando que o processo de modernização da
agricultura é acompanhado pela reprodução do atraso: a manutenção dos
privilégios, o clientelismo polí tico, a privatização da esfera pública -
t ípicos de nossas raízes coloniais.
De acordo com MARTINS (2000), a modernidade no Brasil é
constituída pelos desencontros de tempos históricos, pelos ritmos
desiguais de desenvolvimento econômico, pelo acelerado avanço
tecnológico, pela acumulação de capital desproporcional, enfim, pela
crescente miséria globalizada. A persistência do passado, que se esconde
por t rás das aparências do moderno, faz com que a sociedade brasileira
seja marcada pela história inacabada, pela modernidade inconclusa,
reveladoras das nossas determinações estruturais. Tal reflexão permite-
nos compreender o dilema enfrentado pela sociedade brasileira, que, ao
optar pela modernização, aceita a exclusão de amplos setores da
população. Como mostra LECHNER (1990), o processo contraditório de
modernização, implementado pela expansão do capitalismo, introduz um
novo tipo de dualismo na sociedade brasileira. Não se trata de um setor
tradicional justaposto ao setor moderno, como interpretava a teoria dos
“Dois Brasis”6, podendo ser simplesmente considerado como “obstáculo
ao desenvolvimento” deste último, mas sim de uma exclusão produzida
6Refer imo-nos aqui à vi são dual i s ta produz ida por Jacques Lambert , que produz a imagem de dois Brasis : um, onde a soc iedade era tradiciona l , regionali s ta , dis tr ibuída por cr i té r ios r ígidos de hierarquia e out ro, onde a sociedade já t inha entrado na modernidade e nos padrões mais univer sais de or ientação LAMBERT, apud SADER e PAOLI (1986) .
24
pela própria modernização. Esse novo dualismo instala-se em um mesmo
e único marco espacial e temporal.
Os indicadores mais notáveis desse caráter excludente da
modernização da agricultura são a elevada sazonalidade do emprego
agrícola no campo e a concentração fundiária.
A literatura sobre a introdução de um novo padrão tecnológico da
agricultura brasileira - denominada “Revolução Verde”7 - aponta-nos que
as mudanças estruturais ocorridas no campo propiciaram a dispensa, por
parte dos empresários rurais, da mão-de-obra permanente, substituindo-a
pelo trabalho temporário. O progresso técnico na agricultura não
conseguiu atingir todas as fases do ciclo produtivo, especialmente no
período da colheita, que é dos mais exigentes em termos de mão-de-obra,
reforçando as oscilações sazonais próprias do calendário agrícola,
engendrando, assim, um grande contigente de assalariados rurais,
conhecidos como volantes ou bóias-frias. Tais trabalhadores encontram
trabalho somente no pico da safra agrícola, sendo utilizados em culturas
modernas, como força de trabalho em tarefas que não foram ainda
mecanizadas.
Como bem afirmam D’INCAO (1983) e MICHELOTO (1980), tais
tarefas são remuneradas por produção, o que permite maior intensidade
do trabalho, valendo-se da exploração do trabalhador volante pela
extração da mais-valia absoluta. De acordo MICHELOTO, “tal
exploração apresenta-se como vantajosa para o capitalista, sempre que
comparada com técnicas mais avançadas e produtivas, porém
dispendiosas” (MICHELOTO, 1980:38). Por sua vez, D’INCAO (1983)
demonstra que a mecanização da lavoura não se apresenta como
7O pacote tecnológico da chamada “Revolução Verde” - composto de sementes melhoradas , mecanização, insumos químicos e b iológicos - foi introduzido no Brasi l na tenta t iva de viabi l izar a modernização, ace lerando a produção agr ícola por meio de sua padronização em bases industr iai s . Sobre esse tema, ver MARTINE (1987) .
25
vantagem para os empresários rurais, em razão da facilidade de
arregimentação e do baixo custo do trabalho bóia-fria.
As tarefas remuneradas por produção obrigam os trabalhadores
bóias-f rias a incorporarem o trabalho infantil não-remunerado, como
forma de garantir o nível de renda familiar e, conseqüentemente, a
reprodução social desses trabalhadores. Tais incorporações configuram-
se como relações de trabalho não-capitalistas, que coexistem com
modernas relações capitalistas. Afirma MARTINS (1997:96) que essas
relações de trabalho socialmente irracionais enquadram-se,
perfeitamente, no processo de reprodução ampliada do capital, sendo
mais lucrativas do que as relações puramente assalariadas, definidas por
um padrão t ípico racional e legal existente entre empresários e
trabalhadores. No dizer desse autor, “a chamada acumulação primitiva
do capital, na peri feria do mundo capitalista, não é um momento
precedente do capitalismo, mas é contemporânea da acumulação
capitalista propriamente dita” (MARTINS, 2000:37).
A literatura sobre as transformações ocorridas nas relações agrárias
do agro brasileiro (GRAZIANO DA SILVA, 1999; KAGEYAMA et
al. ,1990; LEITE, 1995; MARTINE, 1991) evidencia que o modelo de
modernização da agricultura brasileira engendrou efeitos sociais,
econômicos e ambientais perversos, demonstrando o seu caráter
excludente e conservador.
Na verdade, modernização agrícola é a denominação dada ao
processo de expansão do capitalismo no campo, sendo objeto de crítica
por um conjunto de especialistas sobre a questão agrária no Brasil , que
utiliza a expressão modernização conservadora para caracterizar o padrão
de transformação tecnológica da agricultura. Modernização, porque
possibilitou mudanças na base técnica da produção agrícola, adotando o
uso de máquinas, equipamentos e insumos químicos para aumentar a
produção e a produtividade. Conservadora, porque não alterou a
tradicional estrutura fundiária do País, pelo contrário, produziu um
26
efeito concentrador, além de propiciar uma exclusão crescente da massa
de trabalhadores rurais (GUANZIROLI e FIGUEIRA, 1986).
Dessa maneira, concordamos com MARTINS (1999), ao concluir
que nosso processo de modernização deu-se no marco da tradição, em
que formas sociais capitalistas e não-capitalistas são contemporâneas e
coexistem no mesmo espaço, configurando-se como uma modernidade
inacabada e um progresso incompleto. Assim, a expansão do capitalismo
no campo não só não eliminou relações sociais arcaicas e excludentes,
mas reproduziu-as sob uma nova roupagem.
A part ir dessas observações, interessa-nos recuperar a história do
processo de modernização, particularmente dos planos de
desenvolvimento implementados pelo Estado no Triângulo Mineiro/Alto
Paranaíba, que priorizaram grandes investimentos no setor agrícola,
dotando-o de bases empresariais sólidas, excluindo, assim, a produção
familiar do processo de desenvolvimento. Para tanto, procuramos
resgatar impactos que a modernização agrícola trouxe para os
trabalhadores rurais, além de buscar os significados da modernização
para os sujeitos da luta pela terra.
1.2 - A modernização da agricultura no Triângulo
Mineiro/Alto Paranaíba e seus impactos para os
trabalhadores rurais
O grande dinamismo evidenciado pelos planos de desenvolvimento
rural implementados no Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba8 trouxe, sem
8Definimos aqui o Tri ângulo Minei ro/Al to Paranaíba , de acordo com o IBGE, como uma mesorregião que engloba a s micror regiões de Uberlândia, Uberaba , Pa troc ínio, Patos de Minas, Frutal , Araxá e Itu iutaba.
27
dúvida, aspectos positivos na forma de inovações mecânicas
(intensificação do uso de tratores e implementos), f ísico-químicas (uso
intensivo de corretivos, fertilizantes e agrotóxicos) e biológicas (uso de
sementes selecionadas), contribuindo para o aumento da produção e da
produtividade no setor agropecuário, além de proporcionar elevadas
taxas de crescimento regional. Contudo tal política de modernização,
marcada por uma forte exclusão social, produziu efeitos perversos sobre
os trabalhadores rurais da região, agravando, assim, as condições de vida
e de trabalho no campo.
Compreender as implicações sociais produzidas pelos planos de
desenvolvimento e de ocupação do cerrado exige que se analisem as
mudanças ocorridas na base técnica da produção agrícola, resultantes do
processo de modernização.
Como assinalam vários autores (GRAZIANO DA SILVA, 1999;
KAGEYAMA et al. , 1990; LEITE, 1995; MARTINE,1991), o processo de
modernização da agricultura no Brasil tem suas origens na implantação
de um parque industrial extensivo, a partir da década de 1950, pelo qual
se pretendia acelerar o processo de substituição de importações. A
efetivação desse modelo deu-se fundamentada em uma nova política de
desenvolvimento implementada pelo Estado a part ir de 1964, por meio da
adoção de um pacote tecnológico popularmente chamado de “Revolução
Verde”. Tal pacote preconizava, mediante uma mudança na base técnica
da produção, o aumento da produtividade agrícola para amenizar o
problema da fome, escondendo suas verdadeiras intenções: garantir a
expansão capitalista no campo. Por sua vez, a consolidação desse
processo de expansão do capitalismo seria viabil izada por ações
implementadas pelo Estado para a t ransformação da agricultura,
conjugadas aos interesses do capital estrangeiro, que era atraído para a
implantação da modernização no Brasil.
Como mostra LEITE (1995), o processo de modernização da
agricultura brasileira pode ser consubstanciado nos seguintes aspectos:
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- adoção de um novo padrão tecnológico, fundamentado no
binômio química-mineral / mecanização, que condiciona a
produção ao uso integrado de máquinas e de insumos químicos;
- aumento da produção e da produtividade, sem alterar a estrutura
fundiária;
- consolidação de uma novo padrão técnico da agricultura, com a
formação de complexos agroindustr iais , o que implicou uma
integração à montante, com a indústria químico-farmacêutica e
de bens de capital, e à jusante, com a indústria processadora;
- crescimento da participação da agricultura brasileira no mercado
externo, fundamentado tanto numa polí tica de desvalorização
cambial, como na substituição de culturas tradicionais (feijão,
mandioca, arroz) por culturas agroindustrializáveis (soja, café,
milho, cana, entre outras), voltadas para a exportação;
- constituição do crédito agrícola subsidiado, por meio da
implantação do Sis tema Nacional de Crédito Agrícola, como
instrumento fundamental de intervenção do Estado, no sentido
de promover a industrialização da agricultura. Tal política de
crédito privilegiou grandes produtores da região Centro-Sul e
produtos exportáveis.
No bojo desse processo de modernização da agricultura, desenha-
se um novo espaço agrário, resultante de um padrão de desenvolvimento
rural implementado pelo Estado. Ao adotar mecanismos de ação da
política agrícola por meio dos programas especiais de ocupação da
fronteira agrícola, visando incorporar terras agricultáveis ao sistema
produtivo, o Estado preconiza,
“(. . . )a urgência de se promover a expansão da f ronte ira - a través da ut i l i zação crescente de técnicas modernas no uso e mane jo do solo - como condição necessária tanto para maximização dos benef ícios como para uma integração mais e fet iva des tas
29
áreas[agr ícolas] ao processo de desenvolv imento do País como um todo” (SALIM, 1986:298) .
O processo de difusão de um novo padrão de desenvolvimento
rural alcançou a região do cerrado brasileiro, num movimento de
ocupação das áreas agrícolas iniciado no Triângulo Mineiro/Alto
Paranaíba.
É a partir da implementação dos programas governamentais de
expansão agrícola na região, desde meados da década de 1970, que se
buscou incentivar a prática de uma agricultura “moderna e racional” no
que se refere ao emprego de novas técnicas e de processos capazes de
proporcionar mudanças na base técnica de produção, enfim, de uma nova
forma de produzir, em detrimento da tradicional agricultura praticada na
região até aquele momento. Sinônimo da expansão capitalista no campo,
o modelo de desenvolvimento agrícola adotado por esses programas
privilegia os indivíduos dotados do chamado “espírito empresarial”,
beneficiando as empresas rurais pela oferta de subsídios, incentivos e
créditos a juros baixíssimos, além da adoção de assistência técnica, de
uma grande atividade de pesquisa e extensão agrária, bem como de
investimentos de infra-estrutura (eletr ificação rural, armazenamento,
construção de estradas, dentre outros).
Nesse contexto, a agropecuária passa a ser vinculada aos interesses
da indústria do início ao f inal do processo produtivo. Como observa
SALIM (1986:300),
“(. . . ) durante a década de 60, observou-se uma redefin ição das re lações entre agricul tura e indústr ia, uma vez que os arranjos ante riores já evidenciavam sinai s de esgotamento em razão dos problemas com abastec imento do mercado interno de al imentos, com as exportações, baixa produt ividade , e tc . Em função das redef in ições adotadas, o se tor agrícola, que já se encontrava em posição desfavoráve l em re lação à indús tr ia, sofre mudanças no seu processo de produção para, cada vez mais , poder atender os in teresses indus tria is emergentes.”
A agropecuária organizada nas bases indicadas é estimulada por
diversas medidas de política agrícola e por programas governamentais,
30
tendo como suporte a implementação dos Planos Nacionais de
Desenvolvimento - PND’s - , sobretudo o I PND (1972 / 1974) e o II
PND (1974 / 1979). Tais planos objetivavam, como apontam PESSÔA
(1988) e SALIM (1986), tanto a alteração do desempenho do setor
agropecuário, mediante a modificação dos métodos de produção, quanto
modernizar e dotar as atividades agropecuárias de bases empresariais.
Evidenciavam, assim, a necessidade de ocupação dos “espaços vazios”,
especialmente das áreas de cerrado, que deveriam ser incorporadas à
economia nacional, por meio de programas especiais de ocupação
agrícola, como o Programa de Crédito Integrado e Incorporação dos
Cerrados - PCI -, o Programa de Desenvolvimento dos Cerrados -
POLOCENTRO -, o Plano de Assentamento Dirigido do Alto Paranaíba -
PADAP - e o Programa de Cooperação Nipo-Brasileira para o
Desenvolvimento Agrícola dos Cerrados - PRODECER.
O primeiro plano de desenvolvimento do cerrado mineiro foi o
Programa de Crédito Integrado e Incorporação do Cerrado - PCI -,
implementado pelo Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais -
BDMG-, em 1972. Tal programa tinha o objetivo de promover a
transformação tecnológica na agricultura em uma área de 292.798
hectares nos cerrados de Minas Gerais, abrangendo as áreas do Triângulo
Mineiro, Alto Paranaíba, Paracatu, Alto e Médio São Francisco e
Metalúrgica. Como observam SALIM (1986), GUANZIROLI e
FIGUEIRA (1986), o PCI atingiu, no período de 1972 a 1974, uma área
de 111.025 hectares, número inferior em 50% da área prevista,
financiando 230 projetos, procurando atender aos grandes e médios
proprietários rurais, com área média de 483 hectares, o que demonstra o
caráter seletivo do programa, criando condições propícias para
modernizar a agricultura, concentrando recursos nas mãos de poucos
privilegiados, que se beneficiaram com juros baixos (0,6 % ao mês), com
prazo de carência variando entre 2 a 3 anos, além de um prazo bastante
elástico para amortização da dívida.
31
Paralelamente ao PCI, o Governo de Minas implementou, no
mesmo período, o Programa de Assentamento Dirigido do Alto Paranaíba
- PADAP -, desapropriando uma área de 60.000 hectares, local izada entre
os municípios de São Gotardo, Ibiá, Rio Paranaíba e Campos Altos.
Como atestam GUANZIROLI e FIGUEIRA (1986:6).
“Um dos fa tores que pesou na e scolha da área foi a exis tênc ia de um complexo la t i fúndio-minifúndio, que permi t ia a aplicação do Estatuto da Terra, mediante desapropr iação por in te resse soc ial . F icou ev idenciado, assim, que os ‘setores modernos’ das c lasses dominante s, quando possuem um proje to que as beni f ic ia, são capazes de enfrentar os la t i fundiár ios .”
Para criação do PADAP, o governo mineiro por intermédio do
então Secretário de Agricultura, Alyson Paulinelli , assinou um convênio
com a Cooperativa Agrícola de Cotia, que se responsabilizou tanto pela
formação dos núcleos de colonização, como pela seleção dos colonos,
cooperados vindos do sul do país, todos niseis.
De acordo com PESSÔA (1988), a população local não foi
privilegiada pelo novo processo produtivo. A maioria foi vendendo suas
terras e instalando-se nas periferias das cidades, incorporando-se ao
processo produtivo como mão-de-obra temporária.
Por sua vez, o emprego da tecnologia na produção de grãos (milho,
soja e trigo) para a exportação produziu, na região, uma enorme mudança
no que se refere às relações da agricultura com o setor industrial, que
passou a ser fornecedor de insumos e comprador de matérias-primas.
O Programa de Desenvolvimento dos Cerrados - POLOCENTRO -
foi criado em 1975, com o objetivo de incentivar e apoiar a ocupação de
áreas dos cerrados na região do Centro-Oeste brasileiro, abrangendo os
estados de Minas Gerais (regiões do Triângulo Mineiro, Alto Paranaíba,
Paracatu e Alto Médio São Francisco), Goiás, Mato Grosso e Mato
Grosso do Sul.
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Tendo sua sustentação no II PND, que considerava a região dos
cerrados como a mais promissora para a lcançar a expansão agrícola, o
POLOCENTRO tinha como propósito incorporar 3,7 milhões de hectares
do cerrado ao processo produtivo, sendo 1,8 milhão com lavouras, 1,2
milhão com pecuária e 700 mil hectares com reflorestamento,
mobilizando, assim, tanto recursos reversíveis em linhas de crédito rural
“subsidiado a taxas de juros inferiores às vigentes e enriquecido por
condições atraentes de prazo, de amortização e carência” (FERREIRA,
1985:13)9, como não-reversíveis (a fundo perdido) no setor de
transportes, pesquisa agropecuária, armazenamento, energia e assistência
técnica.
Em que pesem os êxitos obtidos pelo POLOCENTRO em termos de
incremento da produção e da produtividade, os grandes proprietários
foram os maiores beneficiários do programa. Conforme indica
FERREIRA (1985), os financiamentos do POLOCENTRO foram
distr ibuídos em valores crescentes, de acordo com o tamanho da
propriedade.
A TABELA 1 a seguir mostra a distribuição dos créditos entre os
diferentes estratos de área.
TABELA 1 - Distr ibuição dos créditos do POLOCENTRO Estratos de área Recursos de crédito l iberados - de 100 hec tares 0,38% 100 - 200 hec tares 1,78% + de 500 hectares 76,45% Fonte: Fundação João P inhei ro apud FERREIRA (1985) .
Os dados expostos na TABELA 1 evidenciam que os grandes
proprietários absorveram a quase totalidade dos recursos f inanciados,
beneficiando-se, portanto, dos créditos governamentais altamente
subsidiados. Em contrapartida, os pequenos foram praticamente
9De acordo com GUANZIROLI e FIGUEIRA (1986) , a s condições de pagamento do crédi to rura l do POLOCENTRO são as seguintes: prazos de amor tização de 12 anos, taxas de juros infer ior es à s vigente s no mercado e sem inc idência de correção monetár ia .
33
excluídos dos créditos liberados pelo POLOCENTRO, no seu período de
vigência.
Como afirmam GUANZIROLI e FIGUEIRA (1986) e PESSÔA
(1988), a atuação desse programa, que visava à modernização da
agricultura, produziu uma nova configuração no espaço agrário,
introduzindo novas culturas (soja, café) no cerrado, além de proporcionar
a valorização do preço da terra, em razão da infra-estrutura implantada
na região.
Segundo esses autores, os recursos do POLOCENTRO começaram
a ser reduzidos, a partir de 1979, objetivando diminuir a especulação
com terras, de forma a facilitar a aquisição destas pela Companhia de
Promoção Agrícola - CAMPO -, empresa responsável pela coordenação
do PRODECER.
Ainda de acordo com GUANZIROLI e FIGUEIRA (1986:117), “o
Estado realizou com o POLOCENTRO, toda a infra-estrutura necessária
à produção agrícola, sendo quase que integralmente aproveitada para a
implantação do PRODECER.”
O Programa de Cooperação Nipo-Brasileiro para o
Desenvolvimento dos Cerrados - PRODECER - é resultado de um acordo
estabelecido entre os governos brasileiro e japonês, objetivando a
incorporação da área dos cerrados ao cultivo de grãos, assim como o
incentivo a uma estrutura agrícola moderna, fundamentada na criação de
grandes unidades de produção em bases empresariais, na ut ilização de
insumos modernos e na produção voltada para exportação.
Com o PRODECER, algumas áreas de cerrado foram incorporadas
ao processo de exploração agrícola, mediante projetos de colonização
implementados pela CAMPO - Companhia de Produção Agrícola -,
empresa de capital binacional, constituída dos 51% do capital
pertencentes à Companhia Brasileira de Participação Agroindustrial
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(BASAGRO) e dos 49% pertencentes à holding japonesa Japan-Brazil
Agricultural Development (JADECO). A CAMPO selecionou produtores
ligados a grandes cooperativas agrícolas, advindos geralmente do sul do
Brasil , realizando assentamentos dirigidos em três municípios de Minas
Gerais, a saber, Iraí de Minas, Coromandel e Paracatu10.
Vale ressaltar que o modelo agrícola proposto pelo PRODECER
beneficiou os colonos de fora em detrimento dos proprietários
tradicionais residentes na região. Na redistr ibuição de terras para os
projetos de colonização, os antigos proprietários desfizeram-se das áreas
de chapadas, adquirindo "terras de cultura" nas vertentes, com relevo
impróprio para a mecanização, encontrando-se hoje em situação bastante
dif ícil .
Observa-se ainda, que, no processo de seleção dos colonos, a
CAMPO optou por escolher agricultores que tivessem bom potencial
empresarial e habil idades de gestão tecnológica das glebas nos moldes
por ela estabelecidos.
Contando com grande aporte de recursos f inanceiros, sobretudo
destinados à aquisição de terras e infra-estrutura básica, o PRODECER
beneficiou as grandes propriedades, como forma de garantir a obtenção
de altos recursos creditícios para incorporar maquinário e o volume de
insumos recomendados pela moderna agricultura implementada na
região.
Os programas de ocupação dos cerrados aceleraram o processo de
transformação do espaço agrário no Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba,
marcado, antes, pela criação extensiva de gado de corte e por uma
agricultura de subsistência, incrementando a produção de grãos voltada
para o mercado externo (PÉRET, 1997). Tais programas adotaram um
10O PRODECER foi d ividido em três e tapas: o PRODECER I, abrangendo os municípios de Ira í de Minas, Coromandel e Paraca tu - M.G; o PRODECER II, que incorpora agr icultores de Minas, Mato Grosso, Goiás, Bahia e Ma to Grosso do Sul; o PRODECER III incorpor a 80 mi l hecta res de te rra no Maranhão e Tocant ins.
35
conjunto de medidas que possibi litou a alteração do perfil de produção
regional, com aumentos significativos em termos de produção e
produtividade, sem alterar, contudo, sua estrutura fundiária.
Por outro lado, o Estado, como agente impulsionador do processo
de modernização, buscou atrair o empresariado, oferecendo incentivos e
créditos a juros altamente subsidiados. Ficava claro que, para capitalizar
a produção agrícola e desenvolver um novo sistema produtivo, definiu-se
que os atores dos programas de desenvolvimento rural não podiam ser
nem os latifundiários tradicionais, nem os minifundistas, que não se
integraram ao mercado, mas sim os empresários rurais. Dessa maneira, o
Estado valeu-se do próprio Estatuto da Terra (1964), criado,
paradoxalmente, para realizar a reforma agrária, efetuar a desapropriação
de terras necessárias aos projetos de assentamento dirigido, como é o
caso do PADAP (GUANZIROLI e FIGUEIRA, 1986).
Na verdade, por trás do discurso dos defensores dos planos de
modernização, que preconizava o estabelecimento de polí ticas
alternativas à reforma agrária, mediante a distribuição de terras e
eliminação do latifúndio, estava o fato de que tais políticas não visavam
solucionar o problema dos trabalhadores sem-terra, mas sim viabil izar a
exploração capitalista da terra. Assim, o Estado estaria subvencionando a
agricultura moderna, que demandava o uso de insumos e equipamentos e
colaborando com o setor industrial que fabricava tais produtos.
Priorizava-se, dessa forma, a produção voltada para o mercado
internacional, em detrimento aos produtos de consumo básico para
alimentação, além de promover a territorialização do grande capital e da
burguesia rural (GRAZIANO DA SILVA, 1999).
Fazendo uma crí tica aos programas de desenvolvimento e ocupação
do cerrado, que preconizavam políticas de concessão de incentivos
fiscais e financiamento, MARTINS (1999:79-80) mostra que
“Em princ ípio, a aquisi ção de terras pelos grandes capita l i s tas do Sudeste animou o mercado imobil iár io, convertendo, por is so
36
mesmo, os proprietários de terras em propr ietários de dinheiro e forçando-os , por sua vez , a agirem como capi tal i stas. Ao contrário do que ocorria com o modelo clássico da re lação com a te rra e o capita l , em que a te rra (e a renda te rr i torial , is to é, o preço da te rra) é reconhecida como entrave à c irculação e reprodução do capita l , no modelo brasi le iro o empeci lho à reprodução capi tal i sta do capita l na agr icultura não fo i removido por uma re forma agrária, mas pe los incentivos f i scais . O empresário pagava pela te rra, mesmo quando a terra sem documentação l íci ta e, por tanto, produto de gr i lagem, i s to é, de formas i l íc i tas . Em compensação, recebia gratuitamente, sob a forma de incent ivo f i scal , o capi tal de que necessi tava para tornar a terra produt iva. O modelo brasi le iro inverteu o modelo c láss ico. Nesse sent ido, reforçou poli t icamente a ir rac ional idade da propriedade fundiár ia no desenvolv imento capita l i s ta, re forçando, consequentemente, o si s tema ol igárquico ne la apoiado.”
É nesse contexto de uma contra-reforma agrária capitalista
(GUANZIROLI e FIGUEIRA, 1986), estabelecida pelos programas de
ocupação do cerrado no Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba, que
evidenciamos o agravamento dos problemas sociais, dentre os quais,
destacam-se a manutenção da concentração fundiária, a expropriação dos
agricultores familiares, a redução substancial de ocupações permanentes,
o empobrecimento crescente de parcela significativa da população, além
do aumento da sazonalidade do trabalho na agricultura e deterioração das
condições de reprodução da força de trabalho no campo.
Considerando a forte concentração fundiária resultante dos planos
e programas de desenvolvimento rural, procuramos identificar, na
TABELA 2 que se segue, as alterações ocorridas na distr ibuição
fundiária no Triângulo Mineiro.
TABELA 2 - Distribuição fundiária no Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba, 1970 - 1985
1970 1975 1980 1985 Grupos de estabelec imentos
- Hectares - Estab.
% Área
% Estab.
% Área
% Estab.
% Área
% Estab.
% Área
% 0 a 10 8 ,7 0,3 11,3 0,3 13,4 0,6 16,6 0,5 10 a 50 30,5 4,3 32,6 4,9 31,7 5,2 32,9 5,8 50 a 100 19,0 7,2 17,9 7,3 17,6 7,6 17,7 8,2 100 a 500 33,0 37,8 30,4 37,8 30,3 39,6 28,5 40,2 500 a 1000 5 ,4 19,4 4,7 18,4 4,5 18,5 1,9 17,9 Acima de 1000 3 ,4 31,0 3,1 31,3 2,5 28,5 2,4 27,4 Fonte: FIBGE. CENSOS AGROPECUÁRIOS - MG, 1970/1975/1980/1985.
37
Os dados censitários, de modo geral, evidenciam que, no período
de 1970 a 1985, os estabelecimentos com menos de 10 hectares
aumentaram em 7,9%, sendo que sua área cresceu em apenas 0,2%. Ao
mesmo tempo, o número de estabelecimentos acima de 1000 hectares
diminuiu em apenas 1,0% e sua área teve um decréscimo de 3,6%. No
entanto, o grupo de estabelecimentos de 10.000 a 100.000 hectares
aumentou, em termos absolutos, de 4 para 8 estabelecimentos , sendo que
a área ocupada cresceu de 60.470 para 176.545 hectares respectivamente,
o que confirma que a estrutura fundiária permaneceu concentrada. Os
estabelecimentos entre 10 a 50 hectares, em 1970, correspondiam a
30,5% do total de estabelecimentos e 4,3% de área. Em 1985, tais
números passaram de 32,9% a 5,8%, respectivamente. Atribui-se que o
pequeno crescimento da participação destes estabelecimentos, em termos
de área ocupada, deve-se à partilha de herança de propriedades maiores.
A TABELA 3 indica a forte concentração fundiária nos municípios
da região do Triângulo Mineiro, expressa pelo índice de Gini11,
corroborando as análises sobre a permanência de uma estrutura fundiária
concentrada, sendo que a média da concentração fundiária nesta região é
de 0,778 em 1985.
Tais dados parecem demonstrar que, apesar da partilha de heranças
e mesmo com a inegável expansão do capitalismo na região, o
latifundismo mantém-se, reforçando seus bastiões fundiários.
As relações sociais de produção no Triângulo Mineiro/Alto
Paranaíba modificaram-se substancialmente nas décadas de 1970 e 1980,
em conseqüência do seu processo de modernização. A TABELA 4 indica
estas transformações.
11O índice de Gini é uma medida de grau de concentração qualquer . Ele assume va lor zero, quando a dis tr ibuição é iguali tá r ia , tendendo a va lor um quando a dis tr ibuição es tá concentrada nas mãos de uma só pessoa.
38
TABELA 3 - Índice de Gini nos munic ípios do Tr iângulo Mine iro, 1985 Munic íp io Índice de Gini Cachoeira Dourada 0,817 Canápol is 0,864 Centra l ina 0,802 Fronteira 0,852 I turama 0,821 Monte Alegre de Minas 0,832 P lanura 0,858 Uber lândia 0,810 Água Compr ida 0,756 Campina Verde 0,761 Capinópol is 0,764 Conquis ta 0,777 Frutal 0,769 Gurinhatã 0,752 Indianópol is 0,782 Ipiaçu 0,793 I tuiutaba 0,758 Prata 0,764 Santa Vitór ia 0,772 Tupacigua ra 0,796 Uberaba 0,795 Ver íssimo 0,751 Araguar i 0,743 Campo Flor ido 0,744 Casca lho Rico 0,709 Comendador Gomes 0,716 Conceição das Alagoas 0,732 I tapagipe 0,734 São Francisco Sa les 0,734 P ira juba 0,680 Média do Triângulo 0,778 Fonte: FIBGE. CENSO AGROPECUÁRIO - MG, 1985. Fundação João P inhei ro. TABELA 4 - Pessoal ocupado, di str ibuído por categoria no Tr iângulo
Mineiro/Alto Paranaíba, 1970, 1975, 1980, 1985 Tipo de ocupação 1970 1975 1980 1985 Responsável e membros não-remunerados 105.369 111.575 116.167 125.575 Empregado permanente 18.351 34.605 53.696 62.097 Empregado temporár io 37.763 36.537 43.867 74.411 Parce iro 25.506 15.913 9.471 7.329 Ocupação total 147.660 198.864 224.545 264.161 Fonte: FIBGE. CENSOS AGROPECUÁRIOS - MG, 1970/1975/1980/1985.
Durante o processo de modernização, as formas tradicionais de
produção (parceiros, agregados) foram sendo destruídas. Os parceiros
tomaram outros destinos, tornando-se assalariados permanentes ou
temporários. Os dados evidenciam que o número de parceiros na região
sofreu uma queda brusca nas décadas de 1970 e 1980. Os 25.506
parceiros existentes em 1970 reduziram-se a 7.329 em 1985. Esta
39
situação, em condições de concentração fundiária, representa a redução
das possibilidades de acesso à terra, refletindo a total expropriação dos
parceiros dos meios de produção, engendrando, assim, a proletarização e
as tensões sociais pela posse da terra.
Em detrimento da pequena presença de parceiros na região,
destaca-se o crescimento das formas de trabalho assalariadas, ficando
evidenciada uma crescente proletarização da força de trabalho, sendo que
aumentaram tanto os números de empregados permanentes como os de
temporários, nas décadas de 1970 e 1980.
O crescimento do emprego temporário na região pode ser explicado
pela expansão de algumas culturas que vinham se desenvolvendo na
região, que, por não terem o seu ciclo produtivo todo mecanizado, como
é o caso do plantio de cana-de-açúcar, café e laranja, ocupavam um
grande contingente de força de trabalho temporária12, particularmente,
nos períodos de colheita.
As formas de contratação temporária tornaram-se uma opção
racional, do ponto de vista empresarial , posto que o trabalho diarista
possibilitava uma redução de custos, em termos de encargos e obrigações
trabalhistas, especialmente nas lavouras como o café e cana, em processo
de expansão na região.
Nestas lavouras, a demanda pela contratação temporária tornou-se
dominante, ocasionando graves problemas sociais, pela intermitência da
renda e de trabalho que introduziram.
12No entanto, devemos ressa l ta r que, após 1985, esse compor tamento inver teu-se, começando a regis trar taxas nega tivas de cre sc imento do emprego temporár io, devido às i novações tecnológicas in t roduz idas nos processo produt ivo. É o caso do uso da mecanização em todas e tapas do processo produ tivo, especia lmente de cul turas como cana e café, t r azendo um impacto negativo para o emprego temporár io. Infe l izmente, não di spusemos de dados que confi rmassem esta tendência em 1990, pos to que o IBGE não rea l izou o Censo Agropecuár io nesse per íodo. Entre tanto, os dados fornecidos pe lo Censo de 1995/1996 evidenc iam um decréscimo signi f icat ivo do emprego temporár io na região. Sobre o impacto da mecanização no emprego rura l ver GARLIPP, 1999.
40
O contingente de trabalhadores sem-terra na região crescia,
intensif icando o êxodo rural e a formação de um amplo segmento de
trabalhadores sem alternativa de emprego e renda, formando, assim, um
excedente de força de trabalho não absorvível no mercado de trabalho.
Vale ressaltar que uma parcela de trabalhadores rurais bóias-frias
constituía-se de pequenos proprietários que trabalhavam
temporariamente nas grandes propriedades, em geral, nos períodos de
safra, para complementar a renda familiar. Os agricultores familiares
constituíam o maior contingente de mão-de-obra ocupada, voltada,
principalmente para produção de subsistência. Organizada de forma
tradicional, tornou-se cada vez maior a fragilidade das unidades de
produção familiares, frente aos processos de intensificação das relações
capitalistas no campo, visto que perdiam sua condição de produtores
independentes.
O processo de expropriação dos trabalhadores rurais da posse da
terra e a expansão do trabalho assalariado, produzidos pela modernização
da agricultura, além das péssimas condições de trabalho, têm sido o
núcleo do problema social no campo. Nessas condições, ganharam
evidência na região as disputas de caráter trabalhista, ao lado dos
conflitos pela posse da terra.
Mas, como essa realidade agrária reflete-se no município de
Iturama, palco da gênese de luta pela terra dos parceleiros da Nova Santo
Inácio Ranchinho?
Localizada no Pontal do Triângulo Mineiro, Iturama destaca-se por
sua economia agropecuária, predominando a pecuária de corte (vide
FIGURA 1). Em 1992, o Jornal “Correio do Triângulo” (CAMILO,
1992) publicou uma reportagem sobre o município, indicando ser este o
dono do maior rebanho bovino de Minas Gerais, com nada menos que
743 mil cabeças cadastradas. Somadas as reses não cadastradas,
calculava-se que esse número poderia ul trapassar 1 milhão de cabeças,
41
representando uma média de 22 bois por habitante. De acordo com os
dados apresentados pelo Censo Agropecuário do IBGE, as áreas de
pastagens plantadas em Iturama correspondiam, em 1985, a 73% da área
utilizada. A predominância da atividade pecuária, na década de 1980, foi
confirmada pela instalação de um frigorífico pertencente ao Consórcio
Brasil Central de Carnes (ligado ao Grupo ABC, hoje Grupo Algar,
sediado em Uberlândia), com capacidade de abate de 1.500 bois/dia,
produzindo uma média de 30 mil toneladas de carne por ano.
Outra atividade predominante no município é a produção de cana-
de-açúcar, que, estimulada pelo PROÁLCOOL13, começou a expandir-se
a partir do início da década de 1980, período em que aí se instalou a
Destilaria Alexandre Balbo, ocupando os espaços até então destinados,
principalmente, à pecuária extensiva e às plantações de milho, algodão e
arroz, produzidas pelas unidades familiares de produção.
A face agrária de Iturama, em 1985, era marcada pela grande
concentração de terra. Segundo dados do Censo Agropecuário do IBGE,
das 3.204 propriedades rurais do município, que ocupavam uma área
total de 532.357 ha, as pequenas propriedades representavam 67,73% do
total de estabelecimentos, ocupando somente 13,63% da área total. Por
sua vez, os latifúndios com mais de 1.000 ha (2,37% dos
estabelecimentos) detinham 32,93% da área total.
Demarcadas pelos cercamentos de terra que se estendiam nos
latifúndios, as formas tradicionais de produção, como a parceria e o
arrendamento, encontravam-se entrincheiradas. O depoimento do seu
Calu , um dos líderes do movimento de luta pela terra, hoje parceleiro da
Nova Santo Inácio Ranchinho, expressa bem o processo de expropriação
a que foram submetidos os arrendatários em Iturama.
13Vale ressa l tar que o município de I turama não foi contemplado pelos Programas de Ocupação do Cerrado, como o POLOCENTRO, PCI, PRODECER. O est ímulo do PROÁLCOOL no munic ípio deu-se em razão do cresc imento da produção de cana-de-açúcar na região que faz f ronte ira com o e stado de São Paulo, pr incipa l produtor e consumidor do álcool combust íve l e do açúcar .
42
"Eu era arrendatário ( . . . ) Quando eu t rabaiava de empregado, nas fazenda, o patrão mi dava uma carta di anuência e cum meu próprio suor, eu trabaiava e pagava tudo no f im do ano e a inda sobrava um poquim. A gente prantava mi lho, arroiz e algodão, um ano aqui , outro al i , purque o patrão num dexava prantá num lugar só! Num ano a gente prantava a lavoura, quando chegava outro e le v inha e faz ia pasto. Até que nois f iquemo sem lugar prá prantá e fumo morar na cidade!" (seu Calu).
Não ter lugar para plantar significa perder direito ao uso da terra e
residir em cinturões de pobreza da cidade, trabalhando como assalariado
temporário. Trata-se de um processo de exclusão dos trabalhadores, que
não encontrando mais oportunidade de trabalho como arrendatários e
parceiros, começam a formar uma massa de trabalhadores rurais sem-
terra excluídos do processo de produção.
Nos depoimentos dos trabalhadores14, surge a denúncia da
precariedade de condições de vida e de trabalho dos bóias-frias.
"A vida do bóia-f r ia é mui to di f íci l . . . Não tem nenhuma segurança, né?! Levanta mui to de madrugada, muito cedo e pega aquele caminhão, vai pro t rabalho! Se você trabalhar o dia todo, cê recebe, se não t rabalhar, cê não recebe! ( . . . ) Então, cê tem que trabalhar o dia todo prá receber o seu dinheiro. . . Então não é fác i l a v ida do bóia- f r ia! É mui to tumul tuado. . . o caminhão, ora com fe rramenta, junto . . .Todo mundo corre r i sco de v ida! E depois, leva todo mundo junto, homem, mulher, cr iança, tudo mi sturado. . . Não tem nenhuma separação, prá fa lar, assim, i sso aqui vai machucar criança. . . E les querem saber se o caminhão tá lotado e tem pessoas prá t rabalhar prá eles!" (Branca) .
"A vida de berolo - denominação do t rabalhador volante na região do Pontal do Tr iângulo, - não dava não! Naquele tempo, eu ia pegá caminhão prá t rabaiá. . . 30, 25 km.. . suj ei to a morrer uma hora numa es trada aí , es trada ruim, che ia de buraco. . . sofrendo, chegando em casa se te, oi to hora da noi te , saindo no outro dia quatro, cinco hora! A vida de berolo não dá não!" (seu Calu) .
O sentido dado às experiências como assalariado temporário
denuncia uma outra face da modernização da agricultura: as precárias
condições de vida e trabalho (emprego sazonal, salários baixos, extensas
jornadas de trabalho, condições inseguras de transporte, entre outras).
Em 1989, os t rabalhadores rurais “bóias-frias” da Dest ilaria
Alexandre Balbo, em Iturama, traziam a público, mediante a mobilização
14Os depoimentos tr anscr i tos a segui r referem-se àqueles cole tados durante as entrevi s tas r ea l izadas na pesquisa de campo.
43
e a greve, a situação de exclusão a que eram submetidos. A forma de
denúncia encontrada pelos trabalhadores da referida destilaria , em greve,
foi uma carta de esclarecimento à população da cidade:
ESCLARECIMENTO PÚBLICO
Devido às ex tremas dif iculdades enfrentadas pe los t rabalhadores da Dest i lar ia A lexandre Balbo, os mesmos reunidos em assembléia , t iveram uma pauta de Reiv indicações e uma Comissão para negociar com a Empresa.
A Pauta foi ent regue à Balbo no dia 13, tendo esta pedido um prazo de 10 dias para respondê- la. O prazo foi acei to, tendo se rali zado nova reunião com o patrão no dia 23. Como não houve uma contra-proposta no mínimo re spei tosa por parte da Empresa, uma nova Assemblé ia, com mais de 300 t rabalhadores decre tou GREVE para o dia 27/02/89.
Hoje a parali sação é de 100%, es tando os 2 .000 funcionár ios todos parados, e o Movimento é pací f ico.
Princ ipais Reiv indicações dos Trabalhadores: Salário Mínimo de NCz$191,00, pagamento de horas-extras, horas de transporte, adic ionais noturno, insalubridade e periculosidade (CLT) . Proposta da Balbo: Salário Mínimo Nacional (NCz$72,00) , quanto às outras re iv indicações pediram prazo de 150 dias para cumprir as le is trabalhis tas .
A Dest i l aria Alexandre Balbo vem espalhando pe la c idade , que alguns agitadores estão obrigando os t rabalhadores a faze rem greve e di famando as l ideranças e representante s legais dos trabalhadores. Agora cabe à soc iedade julgar nosso mov imento. A maioria dos t rabalhadores não e stá recebendo nem o salário mínimo legal , e seus f i lhos estão passando fome e enfrentando uma miséria sem precedentes ! Vis i te as 400 e Conf i rme!
Ajude os trabalhadores a vencerem a fome e a exploração, entregando sua contribuição em dinheiro ou al imentos para o fundo de greve na sede do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de I turama.
Os trabalhadores foram vitoriosos no movimento grevista,
alcançando algumas conquistas, tais como piso salarial, fornecimento
gratuito pela empresa de ferramentas e equipamentos de proteção,
controle da pesagem da cana por um trabalhador, transporte gratuito,
com ferramentas em local adequado, entre outras. No entanto, a resposta
da Destilaria Alexandre Balbo ao movimento dos trabalhadores foi a
demissão de diversos funcionários.
Por sua vez, no mesmo ano, o fr igoríf ico ligado ao Consórcio
Brasil Central de Carnes foi fechado, havendo demissão em massa dos
44
trabalhadores. Aquele foi um ano em que a miséria e as condições de
vida e de trabalho - resultantes do processo de modernização da
agricultura - agravaram-se, contribuindo, assim, para as tensões sociais
no campo. Barroso, uma das l ideranças do movimento de luta pela terra
gestado em Iturama, relembra as precárias condições de vida dos
trabalhadores.
“(. . . ) Foi um ano que o fr igorí f ico de I turama fechou as suas por tas e f icou com mais de 500 trabalhadores desempregados! Foi um ano também que a entressafra da colhe ita de cana foi mui to forte, desempregou muita gente. Porque a cana é assim, só dá t rabalho no tempo da safra. O período da entressafra é um desemprego to tal , uma miséria total , a fome se alas tra!” (Barroso) .
Este é o contexto de fundo estrutural e conjuntural em que os
trabalhadores travaram suas lutas. Os impactos sociais, resultantes do
processo de modernização da agricultura no Triângulo Mineiro/Alto
Paranaíba, favoreceram o movimento de luta pela terra gestado pelos
trabalhadores rurais em Iturama.
Foi nesse cenário que os trabalhadores rurais buscaram trilhar
caminhos para superar a situação de exclusão e subordinação a que foram
submetidos, colocando em cena novos cidadãos, “como membros
integrais da sociedade, dotados de direitos civis, políticos e sociais,
capazes de se fazerem reconhecer pelos demais como sujeitos de sua
própria história e de se auto-reconhecerem como tal” (MEDEIROS,
1989:211), procurando romper com a irracionalidade do desenvolvimento
excludente e da própria “modernidade” imposta pelo projeto de
modernização da agricultura na região.
Neste trabalho, vamos buscar, pela narrativa dos trabalhadores
rurais, os momentos vivenciados pelas práticas de luta e conquista da
terra, revelando tais momentos como um processo de construção da
cidadania e, simultaneamente, de reorganização de um novo território.
45
A narrativa de cada trabalhador, recuperada pela memória, leva à
reconstituição de uma história construída coletivamente, sendo, portanto,
expressão individual e coletiva de acontecimentos vividos por todos.
2 - O PROCESSO DE LUTA PELA TERRA
COMO CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA
Como vimos, a política de modernização da agricultura
implementada na região do Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba, por meio
dos planos de desenvolvimento e ocupação do cerrado, foi marcada por
uma forte exclusão social, produzindo efeitos perversos para os
trabalhadores rurais e constituindo, assim, um cenário em que os
trabalhadores travaram suas lutas para a conquista da terra.
É nesse contexto de fundo estrutural, no qual a técnica e a
racionalidade são as tidas como molas propulsoras do progresso, que
esses trabalhadores, homens e mulheres, desvelam a face ilusória da
modernidade. Estes se impuseram ao processo de exclusão e
subordinação a que foram submetidos, “reivindicando o estatuto de
serem sujeitos - com capacidade de pensar, agir, sentir e,
principalmente, de construir uma cidadania plena, para além da
cidadania ‘regulada’.” (NEVES, 1995:58).
Com base na realidade instituída pelo processo de modernização da
agricultura na região do Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba, vemos os
trabalhadores rurais, mulheres e homens, aí se inscrevendo com suas
práticas instituintes de organização coletiva para a conquista de um
pedaço de terra. Nas trajetórias de luta por eles vivenciadas, percebemos
a existência de uma relação dialética entre as realidades objetiva e
subjetiva (BOURDIEU: 1990). Se, por um lado, esses trabalhadores
47
foram objeto de um processo excludente provocado pela rápida
modernização da agricultura, por outro, eles afirmaram-se como sujeitos,
à medida que desencadearam ações coletivas na conquista e
desapropriação de um latifúndio, buscando novas maneiras de reivindicar
e exigir direitos de cidadania, criando novos espaços políticos,
estabelecendo, assim, novas relações com a esfera pública.
Neste capítulo, recuperamos, por meio da memória e das
experiências de um grupo de trabalhadores rurais, hoje moradores da
fazenda Nova Santo Inácio Ranchinho, a conquista e a desapropriação
de, 3.958 hectares de terra para fins de reforma agrária. Ao rememorar
suas experiências, homens e mulheres falam de si mesmos, reconstroem
suas trajetórias pessoais e sociais, assim como suas práticas de luta
coletiva de afirmação da cidadania, na conquista dos direitos de acesso à
terra. A recordação de fatos, lugares e ações narrados pelo grupo de
trabalhadores possibilita perceber a articulação entre objetividade e
subjetividade, mostrando a resposta que esses t rabalhadores deram aos
desafios vividos no processo de luta e conquista da terra.
2.1 - Experiência, memória, identidade coletiva e
cidadania
Os estudos sobre memória popular mostram que determinadas
experiências e trajetórias de lutas podem colaborar para o resgate da
formação de processos de identidade coletiva. Como indicam PAOLI e
ALMEIDA (1996), o trabalho de resgate da memória de experiências
populares, no início, provoca um certo estranhamento aos narradores. No
entanto, ao relatar suas experiências pessoais, começam a colorir as
narrativas, pela reflexão das trajetórias que os levaram da vida privada à
48
vida pública. Dessa maneira, as lembranças de experiências vividas são
realizadas de forma individual e também coletiva. Nesse sentido,
ARRUDA (2000:29) observa que:
“Toda cons ideração da memória pressupõe a restauração de uma his tória indiv idual e cole t iva, de t rajetórias de vida que só se s ingularizam ao se cris tal i zarem em experiências par t iculares , mas cujo s igni f icado úl t imo remanesce nos percursos socialmente compart i lhados: no caráte r simból ico da l inguagem, na necessária dimensão soc ial da experi ência .”
No decurso da narrativa de cada entrevistado, desenrola-se uma
multiplicidade de experiências que relembram fatos, lugares e ações,
construindo um arquivo histórico, em que se organiza a memória do
processo de luta pela terra conquistada, unindo-se a experiência
individual com a história coletiva. Nesse processo de reconstrução das
trajetórias de luta, o narrador individualiza-se, à medida que imprime
uma singularidade a fatos e situações, trabalhando de modo peculiar sua
história de vida (ARRUDA, 2000). Tais t rajetórias trazem a marca social
da constituição de uma identidade coletiva experimentada nas práticas de
uma luta coletiva, que reivindicava o direito do acesso à terra. Dessa
maneira, a memória deixa de ser individual, como indica SANTOS
(1998), passando a constituir-se como elemento do processo de
construção da identidade coletiva.
A reconstrução da memória a partir das experiências vividas no
passado sob os influxos do presente está amarrada à construção da
cidadania, entendida como processo pelo qual os “direitos são
formulados, reivindicados, transformados e, sobretudo, vivenciados
como parte da experiência dos seres humanos concretos” (ARANTES,
1996:9). De fato, ao prestarem depoimentos orais sobre o processo de
luta pelo território conquistado, os moradores da fazenda Nova Santo
Inácio Ranchinho reinterpretam as tra jetórias por eles vivenciadas,
apontando para emergência de uma esfera pública diferenciada,
fundamentada na conquista do direito de acesso à terra.
49
Com base nas narrativas realizadas por um grupo de homens e
mulheres, ex-sem-terra, procuramos analisar a trajetória de luta
vivenciada por esses sujeitos que demandavam terra, procurando desvelar
como viveram esses anos todos, como rememoram suas histórias de vida,
o que determinou a construção de uma organização coletiva, que impõe,
para o espaço público, o reconhecimento de suas experiências como
cidadãos, como gestaram um projeto coletivo de luta por terra, tecendo
regras de convivência e estratégias utilizadas para a disputa de um
território, manifestando sua emergência no cenário político. As narrações
sobre o processo de luta pela terra correspondem ao que a memória
coletiva desses homens e mulheres selecionou, constituindo-se como uma
história comum, tecida por vários sujeitos, que procuraram afirmar a sua
cidadania durante todo esse percurso.
2.2 - Histórias de vida dos sem-terra
Analisando as histórias de vida dos moradores da Nova Santo Inácio
Ranchinho, encontramos famílias originárias, em sua maioria, do Pontal
do Triângulo Mineiro - Capinópolis, São Francisco Sales, Ituiutaba,
Iturama, além dos municípios de Carneirinho, Limeira d’Oeste e União
de Minas, então distritos de Iturama.
Entrecortada por interrupções e frases curtas, a história de vida dos
trabalhadores sem-terra é relembrada como retalhos vividos por famílias
migrantes com raízes no campo, em diferentes locais.
Para Zé Pretinho, não ter terra significa não ter raízes, não criar
vínculos, além de ter a vida permeada por mudanças do local de
residência e de trabalho. O processo de idas e vindas, de um lugar para
outro, entre um patrão e outro, faz parte do seu cotidiano.
50
Eu fui nasc ido numa região, numa c idade , inclusive nem não conheço, que é Candeias, Minas Gerais , que f ica pro lado de Belo Hor izonte ( . . . ) Então, de Candeias, saindo de lá, nói s mudemo prá Bambuí. Bambuí nóis mudemo prá Campos Al tos. Campos A lto é uma c idade que f ica. . . é uma terra ass im. . . como é que fala?. . . c identada! É um lugar mui to cidentado, che io de serra. . .Então, de lá , então nóis t inha um t io meu que mudou prá região de São Franc isco Sales , no Tr iângulo Mineiro ( . . . )Então nóis peguemo o trem de ferro em.. . Uber lândia. . . em Campos Alto ( . . . ) v ia jemo a noi te in te ir inha prá chegar em Uberaba no outro dia cedo! Cheguemo em Uberaba, nóis pegou o ônibu cedo ( . . . ) Nóis foi chegar em São Francisco Sale, que não é tão longe ass im, cê mesmo conhece , já tava escureceno. . . Apiamo em São Francisco e depois a gente pegou um caminhão e fomo até . . . uns v inte Km prá frente de São Franci sco, a í nóis já fomo lá, de modo de. . . apiou, aí nóis teve que andar de a pé. . . 10 km de a pé, carregando mala na cacunda! Chegar na fazenda. . . na fazenda de um tal Manoel Jacinto. . . fazenda. . . Saltadô, na beira do Rio Grande , que fa iz div isa lá cum estado de São Paulo. Então, lá nóis f icou uns tre is ano nessa fazenda, tocano roça. (Zé Pre tinho) .
Nos campos, nas roças, vivendo como parceiros, arrendatários ou
agregados, homens, mulheres, jovens e crianças faziam um pouco de
tudo. Plantavam, desmatavam regiões, criavam animais, arrendavam
terras, eram capatazes ou empregados permanentes. A vida de
perambulação afetava os antigos parceiros, ora vivendo numa fazenda,
ora mudando-se para outra. A produção para subsistência era ameaçada
pela permanente exigência de retirada da terra lavrada concedida, ou
mesmo, arrendada pelos fazendeiros. Os relatos de Zé Messias, Zé
Pretinho e seu Calu fazem uma descrição dessa trajetória:
Naquela época, meu pai num t inha terra, nóis morava em terra dos outro. . . E os fazendeiro não fazia mui ta conta! Cê pudia cr iá gado, cê pudia c riá porco, cê pudia criá de tudo! Eu me lembro que foi numa época em que começaro a proibí as c riação at ravés da égua! Oh, fulano, cê vende a égua que cê tem.. . Começaro a entrá na cabeça dos fazendeiro que a égua destruía o pasto ( . . . ) Então, a í , já começaro a se dispor das égua, né? Então, essa fo i a primeira proibição de . . . de arrendatários , né? E daí , fo i . . . já foi evi tando o número de criação que ocê pudia tê . . . e a coisa fo i fechando. . . (Zé Messias) .
A gente t rabaiava de empregado. Trabaiva na fazenda, era empregado, meeiro, prantava roça, panhava café . Não t inha o serv iço certo também não! E não era regis trado também não! No mesmo instante que tava t rabaiando por dia, ele tava pegando impreita! No mesmo instante que tava pegando impreito, ele tava mexendo cum a roça, que era a meia . Prantava milho, arroiz . . . (Zé Pre tinho) .
51
( . . . ) Às veis cê f icava dois anos numa fazenda ou t reis . . . Quando o patrão via que cê cuía bem, que cê fazia a vida melhor. . . Então já mandava imbora, né? ( seu Calu).
Ao serem expropriados da terra, por não encontrarem mais a
oportunidade de trabalhar como parceiros ou arrendatários, os
trabalhadores migraram para as cidades, vivendo nos cinturões de
pobreza, formando uma massa de sem-terra, mais conhecidos como
bóias-f rias.
A experiência de Maria como trabalhadora rural começou aos 16
anos, quando deixou de viver em acampamentos ciganos e passou a
morar na periferia de Limeira d’Oeste com seu esposo Zé Pretinho. Ao
relembrar seu trabalho, o faz com tristeza e com a consciência de que
aceitava, com um certo conformismo, as péssimas condições de vida a
que ela e sua família eram submetidas.
A v ida da gente e ra muito sofr ida. . . A gente e ra mui to pobre ( . . . ) A í , nóis fo i t rabaiá. O Zé fo i t rabaiá, t inha panha de algodão, a gente começô a apanhá algodão! Uma vida mui to sofr ida. . . pagava água, a luguel , luz ( . . . ) E aí , quando comece i a trabaiá na roça, t ive que pagá uma mulhé pra oiá as menina. . . A í nóis panhava muito algodão, eu e o Zé. A gente trabaiava na roça, raleava, catava milho por quilo ( . . . ) O Zé panhava 24 arroba de algodão, eu panhava 14 arroba de algodão. . . Eu gorda do Ronaldo, de sete meis, eu panhava 14 arroba de algodão! Naquela era, nem roupa pra trabaiá na roça a gente não t i nha! Chegava à noi te , eu lavava minha brusa, porque a gente suava, né? A suje ira na roça é muita, né? Eu lavava minha brusa e f icava com e la moiada! As minhas companheira me via f icá com a brusa moiada, eu gorda de se te meis. . . - Maria , cê tá f icano louca menina! Cê vim pra roça com a brusa moiada! E eu falava: - Uai, eu não tenho outra, tenho que v im! Vim com ela suja, a gente num güenta! E aí , a gente sempre fo i muito sofr ida! A gente mudava pras carvoe ira, a gente tentava as carvoeira, a gente sofr ia muito em carvoeira! O Zé queimava. . . Mui tas veiz os fazendeiro chamava o Zé pra queimar porque ele era mui to bão pra queimar, né?! Queimar lenha! A té toda semana saía com um caminhão de carvão. . . Então e le era mui to procurado pra tá queimano! E a gente sofr ia demais na carvoeira! Minhas menina que imou os pé uma veiz , minhas duas menina, a Si lvana, o André que imou o pé na carvoeira. . . Então era uma vida muito sofr ida mesmo, sem ter n inguém pra ajudá eu lavá uma fralda deles! ( . . . ) Mui tas ve iz água t i nha que buscá, numa dis tância, não era tão longe , mais também pra mim com aquelas criança era longe. Água t i rada no poço. . . A v ida da gente tava muito sofr ida! E a gente enfrentava aquela carvoeira. . . Perdi . . . tava grávida de c inco meis e perdi , a judano o Zé a carregá cesta de carvão! Aquela cestona comprida. . . Ele ia t i rá e eu pegava dum lado, ele pegava do outro! Ensacar carvão! Não, cê precisa de vê! A Div ina, meus menino, cê
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chegava, só v ia o olho e os dente! De tanto é que e les sujava dos carvão. E muitas ve iz , i gual eu tava te fa lano, a gente não rac ioc inava porque a gente não t inha a cabeça que hoje a gente tem! Naquela hora a gente ainda achava que tava bom, né?! Hoje não, hoje a gente tem his tór ia, né?! (Maria) .
Este relato revela a representação que Maria faz da sua experiência
como trabalhadora bóia-fr ia na cultura do algodão e nas carvoeiras,
expressa em uma única palavra: sofrimento. A interpretação crítica,
realizada por Maria sobre as relações de trabalho ocorridas no campo,
está marcada pelas péssimas condições de vida: pobreza, sujeira e
esgotamento físico configuram-se como a maneira que ela concebe as
condições materiais que colocam em risco a sobrevivência dos
trabalhadores rurais. O sofrimento experimentado por essa trabalhadora
está também relacionado à desvalorização das tarefas realizadas pelos
bóias-f rias. Dessa maneira, o trabalho no campo é apresentado como um
peso, um sofrimento que jamais termina, um esgotamento constante que
fazem parte do cotidiano desses trabalhadores e t rabalhadoras (NEVES,
1995).
Em outro momento, ao fazer referência à sua condição de mulher,
Maria expressa as péssimas condições a que as trabalhadoras volantes
são submetidas na esfera doméstica: o t rabalho doméstico redobrado com
o cuidado dispensado às crianças e o fato de enfrentar longas distâncias
para buscar água, demonstrando a condição difícil vivenciada por elas.
Para Branca, a trabalhadora bóia-fria
"Não tem nenhuma segurança, né? Levanta mui to cedo e pega aque le caminhão, vai pro t rabalho! Se você t rabalhá o dia todo, cê recebe. Se não t rabalhá, cê não recebe! Além do que você não pode tá parando, porque se fosse uma coisa sua, você . . .não, vou parar agora, t ô cansada! Vou descansar! Lá não pode! Então. . . cê tem que t rabalhar o dia todo pra receber o seu dinheiro ( . . . ) Chega dentro de casa, quase não dá conta de cuidá das suas tare fas . . . As mulheres , principalmente, sofre mui to mais porque a casa de las f ica sem arrumá! Quando e la chega em casa, e la vai te que arrumá toda a casa, ela vai ter que lavá roupa de noite! E o marido vai descansá! Então, e la t rabalha muito mais que o homem. . . E acorda mui to cedo, porque e la é que vai prepará a comida, enquanto ele pode f icar um pouco mais na cama, né? A mulher é bem mais di f íc i l pra ela. A necessidade de tá ajudando o marido no orçamento, né? Porque a mulher é o esteio. . . a mulher é o e ste io de casa e . . . os
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homem não valorizam isso! A própria sociedade não valoriza." (Branca) .
Assim, o que se percebe é que, ao lado da dupla jornada de
trabalho da mulher bóia-fria - que tem como função primordial a
responsabilidade do trabalho doméstico -, as condições impostas pelas
tarefas executadas no campo coíbem os trabalhadores e trabalhadoras de
qualquer ato de autonomia e l iberdade, posto que exercem um controle
intenso sobre a força de trabalho, sujeitando-os a um tempo disciplinar
determinado pela produção15.
Sob os influxos do presente, essas mulheres identificam os
momentos de conformismo frente às diferentes situações que
vivenciaram no passado, seja em razão da “necessidade de tá ajudando o
marido no orçamento” ou porque recordam que, naquela época, “a gente
não raciocinava porque a gente não tinha a cabeça que a gente hoje
tem”. Suas experiências e lembranças são repensadas, consti tuindo uma
consciência crítica que têm do trabalho volante.
Desse modo, o que os depoimentos dessas mulheres revelam é que
suas experiências como trabalhadoras volantes foram marcadas pela
desvalorização, pelo sofrimento, pelo conformismo. Essas marcas
levantadas pelas mulheres entrevistadas talvez sejam as mais claras para
identif icar o momento de frustração que foi o processo de proletarização
dos trabalhadores do campo, já que f icavam sujeitos a inúmeras situações
de exploração e de extremos controles da vida, da liberdade, enfim, dos
seus sonhos.
Entretanto, ao realizarem uma leitura de suas experiências de vida,
os trabalhadores dramatizam tanto as condições de exploração a que
foram submetidos, como demonstram os momentos de ruptura e de
15 Como indica DAWSEY (1992) , os t raba lhadores rura is são movidos por um ideal de autonomia com for te ressonância entre pessoas com or igem socia l no campo, o que os levam a re sis t ir às condições discipl inare s a que f icam suje i tados na vida operár ia .
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negação à vida sofrida que levavam, recusando a situação de bóia-fr ia ou
mesmo de empregados permanentes.
Em seus depoimentos, os ex-sem-terra afirmam a disposição de
lutar por seus direitos, recusando a condição de bóia-fria, participando
de movimentos grevistas e de ocupação de terras.
Em 1988, quando era delegado de base do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Iturama, no então distrito de Limeira d’Oeste,
Zé Pretinho organizou a primeira greve dos bóias-frias da cultura de
algodão. O que motivou a realização da greve, segundo esse
entrevistado, foi o preço pago pelos fazendeiros pela arroba colhida do
algodão, bem abaixo das expectativas dos trabalhadores. Como os
patrões não entraram em acordo com a Delegacia Sindical, iniciou-se um
processo de mobilização para a greve. Se a estratégia dos empregadores
consistia em não conceder centavo algum a mais do que já pagavam, os
trabalhadores exigiam seus direitos, caso contrário iriam impedir a saída
de caminhões que transportavam os bóias-frias. Zé Pretinho dramatiza as
estratégias de luta dos assalariados para garantir o cumprimento de suas
reivindicações:
"A greve é o seguinte: nóis ia pará todo mundo, pará todo mundo, ninguém ia saí pra apanhá algodão. A condução que fosse saí , ante s de saí nóis tava cercano, não ia passá. Os caminhonei ro que tentasse passá, a gente ia quebrá o caminhão no pau! E as pessoa. . . nóis ia t irá as pessoa pra podê ajudá nóis! Ah! Se chegasse algum caminhão antes da gente v im pros piquete, na hora de voltá, ele não entrava. Então a gente ia paral isá a c idade ! ( . . . ) Só ia vol tá a panhá algodão, depois que eles dessem 100% de aumento na panha de algodão! ( . . . ) Quando foi noutro dia, bem de madrugada, eu acordei e saí com mais tre is companhe iro . Saímo pra fazê piquete! Então nóis saímo e começamo a chamá mais gente ( . . . ) A í nóis topamo com a polícia ( . . . ) A í , perguntô - re fere-se ao policial - pra mim aonde eu lá ia! Aí eu fa le i : - Nóis vamo pra saída pra cercá os caminhão que vai levá pras panha de algodão! E hoje não é pra saí ninguém! ( . . . ) Aí os guarda fa laro assim: - Uai , nóis pode até te prendê que cê tá mui to atrev ido, v iu? - Uai,cês quisé me prendê, cês prende, mais cês vai prendê uma pessoa que tá lutando pe los meus dire i to! É um dire i to que eu tenho! ( . . . ) Então, resul tado: a greve durô quatro dia! Perdeu le i te adoidado, pruque o caminhão não ia buscá, pruque não entrava. Quatro dia de greve! A prime ira greve que eu part icipe i , a prime ira greve que ex is t iu dent ro de Limeira d’Oes te, que fo i vi tor iosa essa greve!" (Zé Pre tinho) .
55
Nesse depoimento, percebemos que Zé Pretinho não está
considerando um movimento grevista apenas como um instrumento de
reivindicação. Ele dramatiza uma greve na qual os trabalhadores
constroem sua identidade social, iniciando a demarcação do espaço da
cidadania, fortalecendo a legitimidade das suas regras, em contraposição
às impostas pela polícia e pelos patrões.
Ao relatar sua história de vida, Zé Maria indica a origem de sua
disposição em plantar a vida em sua própria terra, recusando submeter-
se à condição de bóia-fria, ao participar de um movimento de ocupação
de uma propriedade que pertencera ao seu tataravô em Capinópolis.
"Bom, antes d’eu entrar no movimento dos sem-terra, eu sempre fu i . . . trabalhadô rural , ou seja, bóia- f r ia , né? Quando eu ent re i pro movimento, eu entre i a té. . . jovem, com 18 ano. . . Lá em Capinópol is mesmo que iniciou, através da minha famí l ia, que lá tem demanda de terra. . . ou se ja t inha, não tem mais! Da famí l ia Teodoro com os fazendeiro lá de Itu iutaba que gri laro a fazenda do meu ta taravô. Então, eu sempre ouv ia meus t io, os meu pai dizê que t inha ta l te rra . . . E a part i r dessa ocupação que nóis reali zamo lá em Capinópolis em 84, é que abriu. . . assim. . . horizonte pra mim entrá nesse movimento!" (Zé Maria) .
Dessa maneira, o sentido da experiência ligada às práticas de
perambulação como parceiros, arrendatários ou mesmo assalariados
temporários, mudando de fazenda em fazenda, marcando sua presença no
terreno da exclusão, certamente estimulou a luta pela terra desencadeada
em Iturama.
2.3 - Os equívocos da reforma agrária e a constituição
do espaço político
A análise do processo de luta pela terra desencadeado pelos
trabalhadores sem-terra em Iturama, conduz-nos à compreensão de
algumas condições objetivas relacionadas ao contexto de refluxo do
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movimento de ocupações de terra, diante da derrota da proposta
apresentada pelos trabalhadores para a reforma agrária, na Constituição
de 1988. Nesse sentido, é fundamental compreender as implicações que
as diversas propostas de reforma agrária, assumidas por diferentes
agentes sociais, em momentos diversos, impuseram aos personagens da
luta pela terra.
O tema da reforma agrária sempre esteve presente no debate
político nacional, de maneira mais ou menos intensa, como crítica e
denúncia do poder dos grandes proprietários sobre seus subordinados.
(MARTINS,1999 e MEDEIROS, 1993). Vinculada à discussão dos males
do latifúndio, os tenentistas já falavam, na década de 1920, da
necessidade de realizar t ransformações fundiárias como condição para
eliminar os vícios que caracterizavam o atraso polí tico no Brasil . Nos
anos de 1950, a questão da reforma agrária foi incorporada pelo
movimento camponês, que a tomou como principal bandeira de luta,
passando a ser vista como solução para a pobreza e a desorganização das
áreas rurais. Desse modo, a demanda por reforma agrária passou a ser
pensada com base nas concepções e atuações da Igreja Católica e dos
partidos de esquerda, importantes interlocutores nas lutas dos
trabalhadores rurais (MICHELOTO, 1991).
Foi no início dos anos de 1960, no entanto, que a reforma agrária
tornou-se uma demanda ampla disputada por diferentes forças sociais e
projetos diferenciados, que se convergiam para uma postura crítica em
relação à concentração da propriedade fundiária, tendo como eixo o
modelo nacional-desenvolvimentista. Como mostram MEDEIROS (1993)
e ABRAMOVAY (1994-a), a questão agrária nesse período, era vista
como um obstáculo ao desenvolvimento econômico, posto que, na
estrutura fundiária dominada pelo latifúndio, a agricultura seria incapaz
de se desenvolver tecnicamente e de contribuir para a e levação da
produção. Sob essa ótica, entendia-se que a maior parte dos
trabalhadores rurais, não tendo acesso à terra, não poderia participar do
57
processo técnico, f icando à margem do mercado econômico. De acordo
com MEDEIROS (1993:6),
“Foi nesse contex to de crí t ica generali zada ao la t i fúndio que se consti tu iu soc ialmente e ganhou legi t imidade no te rreno pol í t ico a concepção de que a al teração na estrutura de propriedade se ria condição para vencer o atraso, tanto econômico (entendido principalmente como aumento da produção) como pol í t ico, com a al teração das re lações de poder. Ao mesmo tempo, no in terior das principais forças que disputavam a direção das lu tas camponesas, a re forma era entendida como condição necessár ia para o desenvolvimento e, portanto , como parte da questão nacional .”
No período nacional-desenvolvimentista, as ligas camponesas
começavam a demandar uma reforma agrária radical como contraposição
à proposta conservadora de manutenção da estrutura agrária
concentradora.
Preocupados com as tensões ocorridas no campo e temerosos com o
possível fortalecimento dos grupos de esquerda que poderiam produzir
uma desestabilização política no país, os militares tomaram a dianteira
das reformas sociais propostas pelo modelo nacional-desenvolvimentista,
abafando as disputas emergentes dos trabalhadores rurais. Após a ruptura
institucional de 1964, os militares redigiram e aprovaram o Estatuto da
Terra no Congresso Nacional, como alternativa à “uma reforma agrária
radical que levasse à expropriação dos grandes proprietários de terra
com sua conseqüente substituição por uma classe de pequenos
proprietários e pela agricultura famil iar, com sucedera em outras
sociedades” (MARTINS, 1999:80).
Mediante o Estatuto da Terra, os governos militares atuaram no
sentido de manter intacta a propriedade da terra, patrocinando a
modernização conservadora, alargando as desigualdades na agricultura,
destruindo a agricultura familiar e consolidando o latifúndio. Por t rás do
espaço legal estabelecido pela nova le i que se propunha a realizar
transformações na estrutura fundiária, o Estado autoritário reprimiu os
movimentos sociais, perseguiu lideranças, além de controlar o
movimento sindical . Para MEDEIROS (1993), o Estatuto pouco
58
significou em termos de medidas concretas em relação às demandas de
acesso à terra reivindicadas pelos trabalhadores rurais.
O processo de modernização que se verificou na agricultura
brasileira, a partir da década de 1970, demonstrou que a reforma agrária
não era condição s ine qua non para o desenvolvimento econômico, como
propunha o modelo nacional-desenvolvimentista. Apesar das
transformações produzidas pela modernização tecnológica, a contenda
por acesso à terra permaneceu como reivindicação do movimento
sindical. Assim, no bojo da luta contra o regime mili tar e pela
redemocratização do país, os trabalhadores do campo voltaram a ocupar
os espaços públicos para demonstrar a outra face da modernização: a
situação de exclusão a que foram submetidos, tendo a reforma agrária
como bandeira de luta (MEDEIROS, 1993).
Diante da pressão exercida pelos movimentos sociais no campo por
um programa redistr ibutivo de terras, a Nova República surgiu com um
projeto de reforma agrária, fundamentado no Estatuto da Terra: o PNRA
- Plano Nacional de Reforma Agrária.
Anunciada por ocasião do IV Congresso Nacional dos
Trabalhadores Rurais, a primeira proposta do PNRA elegia a reforma
agrária como prioridade de governo (BRASIL, 1985), estabelecendo
como pressupostos básicos: a desapropriação por interesse social
naquelas propriedades que não cumprissem sua função social16,
considerada o principal instrumento de reforma agrária; a penalização
dos proprietários fundiários pelo não cumprimento da função social da
terra, mediante a indenização de terras desapropriadas com base no valor
declarado pelo imposto territorial rural; a garantia da participação das
16 De acordo com o que dispõe o Esta tuto da Terra, a propr iedade rura l cumpre sua função soc ia l quando, s imul taneamente, “favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que ne la labutam, assim como a de suas famí l ias; mantém níve is sat i sfatór ios de produt ividade; assegura a conservação dos recursos naturais; observa as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que a possuem e a cult ivam” (BRASIL, 1985:13) .
59
organizações dos trabalhadores em todas as fases do projeto; a
concretização da reforma agrária por meio do assentamento dos
trabalhadores rurais, sendo que a colonização, a regularização fundiária
e os mecanismos tributários apareciam como programas complementares.
Embora o PNRA tenha proposto levar às últimas conseqüências as
possibilidades de desapropriação estabelecidas no Estatuto da Terra,
indicando como meta o assentamento de 1,4 milhão de famílias em
quatro anos, o governo da Nova República realizou, no período de 1985 a
1989, o assentamento de apenas 82.896 famílias17, demonstrando um
recuo expressivo com relação à efetivação da reforma agrária.
Na verdade, o PNRA estava longe de corresponder às expectativas
dos trabalhadores do campo, encontrando resistências nas entidades
representativas, especialmente do Movimento dos Trabalhadores Sem-
Terra - MST -, da Central Única dos Trabalhadores - CUT - e da
Comissão Pastoral da Terra - CPT -, que intensif icam suas ações de
mobilização e de ocupações de terra em diversos pontos do Brasil .
Por sua vez, a reação dos proprietários rurais com relação ao
PNRA foi imediata, sobretudo da Confederação Nacional da Agricultura
- CNA -, da Sociedade Rural Brasileira - SRB - e da União Democrática
Ruralista - UDR18 -, que entraram no cenário público para combater a
proposta de realização da reforma agrária apresentada pelos
trabalhadores. Como enfatizam BERGAMASCO e NORDER (1985),
MARTINS (1999), MEDEIROS (1993), PALMEIRA (1994) e VEIGA
(1994), o movimento dos proprietários rurais - especialmente a UDR -,
realizou uma campanha anti-reformista, articulando-se com os
empresários agroindustriais e os parlamentares no encaminhamento de
lobbies no Congresso Nacional em defesa de seus interesses, além da
realização de congressos, acampamentos em Brasília, leilões de gado
17 Fonte de dados obt ida no Rela tór io de Atividades do INCRA. 18 Entidade de representação dos grandes propr ie tár ios de ter ra, c ri ada em 1985, como reação ao PNRA.
60
para engrossar as f ileiras de aliados políticos e arrecadar fundos para
suas campanhas publicitárias, bem como a promoção de ações violentas
contra expressivas lideranças de trabalhadores. Ficava visível a intrusão
de ações políticas no interior do Estado, fazendo sentir um nítido
arrefecimento das desapropriações de terra. O resultado dessas ações foi
o recuo do PNRA. As bases legais para desapropriações foram
estreitadas, mantendo-se intacto o latifúndio, seja o latifúndio por
exploração ou por dimensão, desde que cumprisse formalmente sua
função social.
Com a derrota do PNRA, a efetivação de ações que inviabilizariam
a reforma agrária deram-se na elaboração da Constituição de 1988.
Concordamos com MARTINS (1999:91), quando este afirma que:
“Os precár ios avanços na legis lação da di tadura mil i tar foram prat icamente anulados pelos const i tu int es . A ut i l i zação de concei tos de ‘propr iedade produt iva’ e de propr iedade improdut iva’ introduziu uma ampla ambigüidade na de fin ição das propriedades suje i tas à desapropriação para re forma agrária, prat icamente anulando as concepções re lat ivamente mais avançadas do Estatuto da Terra."
Com as restrições impostas pela Constituição, tornou-se possível a
efetivação de um conjunto de mecanismos de bloqueio à reforma agrária,
dentre eles, a realização de desapropriações mediante prévia e justa
indenização, mantendo o latifúndio insuscetível de desapropriação,
eliminando, assim, o caráter punitivo pelo não-uso adequado da terra
(MEDEIROS,1993).
Em que pesem as derrotas dos trabalhadores com as sucessivas
alterações do PNRA e de suas reivindicações na Constituição implicarem
num refluxo das ocupações de terra, os movimentos sociais no campo
revigoraram suas forças, lançando novos desafios para a realização da
reforma agrária.
Foi nesse cenário de recuo da reforma agrária que, em Iturama, os
trabalhadores rurais saíram do espaço privado e entraram no espaço
público, construindo uma história outra, uma outra história.
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2.4 - A gênese da luta pela terra
A desapropriação de 3.958 ha da Fazenda Nova Santo Inácio
Ranchinho surgiu como resultado de uma história de mais de quatro anos
de luta dos trabalhadores rurais.
No cenário do processo de modernização da agricultura e do
refluxo da reforma agrária, uma série de acontecimentos marcantes
pontuaram a vida dos trabalhadores rurais sem-terra, que
experimentavam novas práticas sociais, buscando superar as condições
de exploração e subordinação a que foram submetidos, saindo do espaço
privado para ocupar o espaço público (NEVES, 1995).
O depoimento de Zé Pretinho expõe que a emergência do
movimento em Limeira d’Oeste estava relacionada à precariedade das
condições de trabalho no campo.
"A gente chegava na roça, a gente tava cansado! A gente t rabaiava o dia in teir inho e de tarde a gente t inha que andá tre is hora em pé (re fere- se à carroceria do caminhão) . Foi a í , que no dia t r inta de abri l eu fa lei pra minha mulhé: - Eu quir ia tá agora no meio daque le r io, com uma corda amarrada no pescoço e uma pedra amarrada ne la , pra mergulhá, pra nunca mai s aboiá. Aí , a Maria tava atrás de mim e fa lô: - Mais pra que cê tá falano i sso? Eu fa le i: - Dis isperado com a v ida e de sabê que eu vou f icá ve lhinho subino no caminhão de bóia- f r ia pra de fendê o pão de cada dia! Então, pra levá essa v ida, antes morrê. Foi justamente na hora que me deu um t ino! Lutá pe la re forma agrária! ( . . . ) Aí , eu convide i os companheiro . . . Dia 14 de maio de 89 ia ter uma reunião lá em casa. Eles perguntaro pra que? -Uai, pra nóis começá a discuti r sobre a questão da re forma agrária, fazê ocupação de terra!"
Pelo relato de Zé Pretinho, entende-se que a proposta de ocupação
de terra surgiu, então, da ruptura com a subordinação. O grupo de
trabalhadores, visto antes como agregados, obedientes e submissos,
iniciava um processo de reação à exploração a que eram submetidos,
partindo, assim, para a luta por um pedaço de terra.
62
Se, a princípio, o espaço social que esses trabalhadores ocupavam
era o de sujeitos anônimos e dispersos, ao longo do tempo eles foram
construindo uma história em comum, uma identidade coletiva na qual
inscreveram suas práticas de luta.
Além do mais, o sucesso da reforma agrária implementada na
fazenda Barreiro, em Iturama19, também motivou aqueles trabalhadores a
participarem de uma organização coletiva de luta pela terra. Barroso
explicita a motivação que determinou a saída do isolamento e do
anonimato do grupo de trabalhadores para a constituição da organização
coletiva, quando relata que:
" ( . . . ) a realidade do desemprego e das precárias condições de v ida, levou aquela gama de trabalhadores desempregados a faze r uma analogia da v ida deles de pobre esfominhado com a vida dos assentados da fazenda Barre iro! E se perguntava, se aquele grupo da Barre iro, que lu tou, sofreu, mas hoje tá na terrinha de les , tá produzino, tá desenvolvendo sua v ida, porque também nós não podemos fazer o mesmo processo?"
Os relatos desses trabalhadores revelam que a emergência do
movimento de luta pela terra em Iturama estava relacionada tanto com o
fato dos assalariados resisti rem à sua si tuação comum de excluídos dos
benefícios da modernização, quanto ao sucesso da fazenda Barreiro como
espelho da luta. Com isso, o conjunto dos trabalhadores rurais ocupou o
espaço público com a demanda por reforma agrária.
Zé Pretinho, representando a Delegacia do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Iturama, iniciou, no então distrito de Limeira
d’Oeste, o processo de mobilização dos sem-terra interessados em obter
um pedaço de terra . Para isso, colocou sua residência como espaço
público de discussão e mobilização dos trabalhadores na luta por acesso
à terra. As entrevistas realizadas com esses trabalhadores revelam que, a
19 A reforma agrár ia na fazenda Barre iro foi resultado de um processo de luta desencadeado por um movimento de posse iros e t raba lhadores sem- terra em I turama, ocor r ido no per íodo de 1982 a 1988. Foi a pr imeira fazenda desapropr iada para f ins de re forma agrár ia na região. Sobre o processo de lu ta pe la te r ra na fazenda Barreiro, ver RAMOS, 1993 e MICHELOTO, 1990.
63
princípio, o movimento foi espontâneo: Zé Pretinho, por iniciativa
própria, realizou a primeira reunião que contou com 27 trabalhadores.
Naquele momento, os t rabalhadores tomaram a iniciativa de consti tuir
um projeto que orientaria a luta coletiva. Eis o que recorda Zé Pretinho:
"Aí, o pessoal nesse dia foi . Foi 27 pessoa. Aí , ele s perguntaro pra mim: - O que nóis vamo discutí? Aí , eu me lembro como se fosse hoje , como se fosse hoje. . . Eu pedi pro meu menino, que eu não dava conta de escrevê , fazê um cabeçalho. Eu me lembro que coloquei assim: “Nóis , t rabalhadô rural de L imeira d’Oeste , f i zemo uma reunião na casa de José Bernardo dos Santos, conhecido como Zé Pret inho, pra discutí a re forma agrária, procurá uma ajuda melhor pra cada um, pra v ivê uma v ida digna!” Isso eu me alembro de mandá o meu menino escrevê e colocá al i ." (Zé Pret inho) .
Fica evidente que essa lembrança de Zé Pretinho configura-se
como a gestação da identidade coletiva: o que uniu os trabalhadores foi a
busca de “uma vida digna”, como forma alternativa para superar a
situação de exclusão e subordinação a que foram submetidos como
assalariados. Dessa maneira, os trabalhadores reconheceram-se como
membros de um mesmo grupo, passando a incluir sua pertença ao projeto
coletivo de acesso à terra.
Se, por um lado, a demanda de acesso à terra foi o que aglut inou
os trabalhadores, por outro, estes não conseguiram organizar, de forma
autônoma, as estratégias de luta essenciais para a constituição de seu
projeto. O próprio fato de tornarem públicas suas demandas, antes
mesmo de se articularem a uma rede de instituições que prestasse
assessoria à luta dos trabalhadores, deixou-os expostos perante seus
opositores - os latifundiários organizados pela UDR -, que mobilizavam
a polícia para reprimir qualquer ação coletiva desencadeada por aqueles
trabalhadores.
Reconhecendo o espontaneísmo inicial do movimento e a fal ta de
experiência na definição de estratégias de luta, o grupo buscou, então, a
assessoria da CPT - Regional do Triângulo -, para orientá-los na
discussão do projeto que estavam construindo. Sobre o espontaneísmo,
Edivaldo explica:
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" ( . . . ) Quer dizer, fo i um movimento, ass im, mui to. . . espontâneo! De pessoas que não t inham nada, assim, . de conhecimento, mas que t i nha as necessidades, né? De fazer essa luta , de puxar essa discussão." (Edivaldo) .
A CPT, que já prestava assessoria no assentamento da Fazenda
Barreiro, iniciou o processo de acompanhamento da organização dos
trabalhadores, recomendando-lhes que mantivessem do sigilo absoluto na
definição de suas estratégias de luta, pela atenção que as reuniões
públicas despertavam nos fazendeiros da região, podendo vir a constituir
focos de tensão e de repressão ao movimento que estava se organizando.
A partir de então, os trabalhadores deram início à fase preparatória
do movimento. Nesse período, levantaram os nomes dos interessados em
ter uma parcela de terra, realizaram reuniões constantes para definir suas
práticas e estratégias de luta, além de refletirem sobre o significado de
ocupar terra em Iturama, território político da UDR. Foi o momento de
definição das lideranças internas e de reunião das forças aglutinadoras
do movimento, articulando-o a uma rede de instituições que apoiava a
luta dos trabalhadores pela reforma agrária. Frei Rodrigo, integrante da
CPT20, e Barroso registram a preparação dos trabalhadores:
"A nossa equipe da CPT foi comunicada, então, pe lo pessoal que tava organizando (re fere- se ao processo de organização cole t iva dos trabalhadores na ocupação para f ins de re forma agrária) . . . Eu me lembro que nós fomos numa primeira reunião. . . que nós part ic ipamos ( . . . ) Eu me lembro que t inha uma l is ta de 300 pessoas ( . . . ) E foi nesse momento que nós in ic iamos. . . vamos dizer assim. . . e fe t ivamente, com esse grupo, o t rabalho. Que que nós f i zemos ? Nós entramos em contato com a CPT estadual , né? Entramos em contato com a CUT. Entramos em contato com o Movimento dos Sem-Terra ( . . . ) Eu acredito que. . . esse t rabalho que se inic iou lá na região foi um dos primeiros que teve maior art iculação! Fizemos um contato com o part ido e se procurou criar um fórum de discussão pra tá vendo como se ria essa art iculação." (Fre i Rodrigo) .
Naquele momento, o grupo tava se for talecendo, tava discut indo, ainda, a possibi l idade de fazer uma ocupação de terra. O que s ignif icava ocupar terra no Triângulo Mineiro, em I turama, nas barba da UDR.. . Então, o que a gente chamava de trabalho de
20 Até 1990 a CPT contava com uma Regional no Tr iângulo Mineiro, ano em que os in tegrantes do escr i tór io regional romperam com a direção e stadual , c r iando então, a Animação Pastoral no Meio Rura l - APR -, da qual faz par te Frei Rodr igo de Cast ro Amédée Peré t , uma expressiva l iderança na assessor ia aos movimentos dos sem-terra na região.
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in ic iação, hoje nós falamos em trabalho de base. O trabalho de base é reunir as famíl ias, tá explicano como funciona a lu ta, tá levando as pessoas a tomar consc iênc ia do que que e la vai faze r, como é que e la vai ingressar naquele grupo." (Barroso) .
Se as lideranças, junto com as entidades mediadoras que apoiavam
o movimento, realizavam a discussão política da organização do grupo,
os trabalhadores tinham pressa e disposição para lutar por seus direitos,
o que exigia a definição de ações práticas para efetivar o processo de
ocupação de um latifúndio improdutivo. Dessa maneira, realizaram
vistorias nas fazendas do município, com o objetivo de identif icar uma
área passível de desapropriação, planejando, assim, ações complexas
para a ocupação do latifúndio.
Por sua vez, o fórum de entidades, constituído inicialmente pelo
Part ido dos Trabalhadores de Iturama, Sindicato e Oposição Sindical dos
Trabalhadores Rurais, Movimento dos Sem-Terra, Central Única dos
Trabalhadores - Regional do Triângulo - e Comissão Pastoral da Terra,
iniciou, em 1989, um trabalho de articulação junto a outros sindicatos,
Igrejas, outros partidos políticos, dentre outras entidades urbanas da
região, objetivando o apoio financeiro e político ao movimento.
Comprometido politicamente com a luta dos trabalhadores sem-terra da
região, esse fórum arrecadou recursos f inanceiros para cobrir despesas
referentes à operacionalização da ocupação, tais como: alimentação,
transporte dos trabalhadores para a fazenda a ser ocupada, entre outras.
Uma deliberação t irada por esse fórum foi a liberação de dois
sindicalistas ligados ao Departamento Nacional de Trabalhadores Rurais
- DNTR/CUT -, para realizar um trabalho de articulação e socialização
das ações coletivas desencadeadas pelos trabalhadores sem-terra.
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra - MST -, que
vinha estruturando-se, ainda que de forma incipiente, em Minas Gerais,
também deslocou algumas de suas lideranças no Estado para agregar
forças políticas ao movimento iniciado no município de Iturama,
atendendo ao convite da CPT - Regional do Triângulo. Na avaliação de
66
Frei Rodrigo, a aproximação com o MST foi construt iva para o
movimento, tendo em vista que:
" . . .a gente entendia, naquele momento, da necessidade de uma organização de c lasse . . . tanto que nós éramos. . . somos uma organização de Igre ja, né? Que pudesse também assumir esse processo (refere- se à lu ta pe la terra) . E como uma forma, também, de tá ajudando no crescimento do Movimento Sem-Terra no e stado de Minas Gerais ." (Fre i Rodr igo) .
Na verdade, a articulação local estabelecida entre o MST e o
DNTR/CUT, duas instituições que se originaram no interior do
movimento dos trabalhadores rurais, mas com identidades próprias,
refletia a deliberação por elas apresentadas, em nível nacional, no
sentido de articularem-se no encaminhamento das lutas por terra, em
oposição à Confederação dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG.
Tais instituições tinham a reforma agrária como bandeira de luta,
diferenciando-se, no entanto, em suas propostas sobre a concepção e
condução da reforma agrária no país. Enquanto a CONTAG enfatizava
que era necessário abrir um diálogo com o Estado na condução de
demandas por desapropriações de terras, priorizando os caminhos
institucionais, como diretrizes de luta, o MST e o DNTR/CUT entendiam
que o encaminhamento da luta pela terra se daria pela pressão direta
realizada pelos trabalhadores, tendo como principal forma de luta os
acampamentos e as ocupações massivas de terra (MEDEIROS, 1993).
O processo de mobilização e articulação estabelecido entre os
trabalhadores sem-terra e as instituições que apoiavam o movimento
resultou, então, na ocupação da fazenda Colorado no dia 23 de janeiro de
1990.
Esses trabalhadores, que eram anônimos e dispersos, sujeitos cuja
sociabilidade era marcada pela prática do mando e da obediência, a partir
67
daquele momento, passaram a constituir-se como sujeito coletivo21 em
processo de luta pelo acesso à terra.
2.5 - As práticas que evidenciaram a disposição de
luta: a inserção dos trabalhadores no campo de
disputas
A ocupação da fazenda Colorado, um latifúndio de mais de 5000
ha, localizado a 60 km de Iturama, foi anunciada pelos meios de
comunicação, especialmente pela mídia impressa. As edições dos jornais
“Estado de Minas” (SEM-TERRA, 1990) e “Hoje em Dia” (CAMILO,
1990), no dia 24 de janeiro de 1990 anunciavam: “Sem-terra invadem a
Fazenda Colorado em Iturama”. A disposição dos trabalhadores sem-
terra em disputar a apropriação desse latifúndio improdutivo constituiu-
se como fato político de grande relevância, imprimindo maior
visibilidade à questão da luta pela terra na região.
Após a mobil ização de 200 trabalhadores e a realização da vistoria
na fazenda Colorado, ação indispensável ao plano de ocupação,
identif icando, sigilosamente, os aguadouros, as áreas de mata, de
pastagem, além do melhor local para ocupação, o grupo organizado, com
apoio da CPT, CUT, FETAEMG, MST, PT, sindicatos urbanos e de
trabalhadores rurais, igrejas, dentre outras entidades, tomou a decisão de
ocupar, na madrugada do dia 23 de janeiro de 1990, a fazenda Colorado.
Os representantes das instituições que apoiavam o movimento se
deslocaram para a fazenda para prestar o apoio logístico aos
21 Ut i l izamos aqui o concei to de suje i to colet ivo elaborado por SADER (1988:55), compreendido como “no sent ido de uma cole t iv idade onde se elabora uma ident idade e se organizam práticas através das quais seus membros pretendem defender seus int eresses e expressar suas vontades, const i tuindo-se nessas lu tas .”
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trabalhadores, especialmente para mediar os possíveis conflitos com
policiais militares e membros da UDR. No entanto, a ocupação realizada
pelos trabalhadores não ocorreu como haviam planejado, em razão da
ação desencadeada pela Polícia Militar em Limeira d’Oeste, que acabou
impedindo o deslocamento de cerca de 150 famílias. Edivaldo assim
reconstitui o processo de ocupação da referida fazenda:
"A pr imeira ocupação que nós f i zemos, e la não. . . não se deu da forma que a gente planejô , em função da e f ic iência da políc ia lá em Limeira d’Oeste , que foi grande , fo i maior que a nossa ( . . . ) E conseguiu f re iá grande par te dos t rabalhadores que tava saindo pra i r pra ocupação. Então, a ocupação na fazenda Colorado, não fo i uma ocupação com um grande número de famíl ias . . . Na realidade , es tavam lá dentro quarenta e poucas famí l ias ( . . . ) Mais aí nós t ivemos o apoio do Virgí l io Guimarães, como deputado, e de outras entidades várias aqui da região. . . I s so não de ixou acontecer um despe jo v iolento!" (Edivaldo) .
Após o despejo realizado pela polícia no dia seguinte, com o
respaldo da UDR, os trabalhadores dirigiram-se, pacif icamente, para o
então distrito de Vila União. Ali montaram acampamento, evidenciando
que estavam dispostos a entrar no campo de disputas para conquistarem o
direito do acesso à terra, saindo do espaço privado para constituir o
espaço público (ver FIGURAS 2 e 3). Esses novos sujeitos impuseram
sua presença na esfera pública, revelando-se por meio de seus discursos
e suas ações (ARENDT, 1991)22.
Na primeira semana no acampamento, os sem-terra,
experimentando a reação dos fazendeiros, descreveram, em carta aberta à
população de Iturama e região, suas condições de vida, a motivação que
os conduziu a partic ipar do processo de luta por uma parcela de terra,
além da disposição que tiveram para a construção da cidadania plena,
fundamentada na busca de caminhos que visavam superar a situação de
exclusão e subordinação a que foram submetidos:
22 Reme temo-nos aqui à ref lexão de Hanna Arendt sobre a plural idade humana, indicando que “na ação e no discurso os homens mostram quem são, revelam at ivamente suas ident idades pessoais e s ingulares , e assim apresentam-se ao mundo humano, enquanto suas ident idades f í s icas são reveladas, sem qualquer at iv idade própria na conformação s ingular do corpo e no som singular da voz .”(ARENDT, 1981:190) .
69
FIGURA 2 - Trabalhadores juntando suas " tralhas" , após despejo da Fazenda
Colorado, 1990. Foto: Manoel Seraf im.
FIGURA 3 - Montagem do acampamento em Vi la União, 1990.
Foto: Manoel Seraf im.
70
A real idade dos sem- terra de I turama é a mesma de todo o Brasi l , poucas pessoas com tanta terra sem nela nada produzir, e tantas pessoas prec isando de terra para sobrev iver e produzi r o al imento para milhões de brasi leiros , que não têm sequer para suprir a própria mesa.
O lat i fúndio c resceu nestes anos todos, às custas da miséria, da exploração e da expulsão do homem do campo. Chega! Em I turama esta s i tuação f i cou insustentável , pois a miséria cre sce a cada dia, e nós t rabalhadores não temos opor tunidade de t rabalhar. Assim começamos a nos organizar rumo à conquista da terra por dire i to e por jus t iça.
Depois de mui tas reuniões e assembléias para discuti r nossos problemas, em um número de mais de cem famí l ias , dec idimos colocar em prática um sonho de conquistar a terra e produzir . Ocupamos um imenso lat i fúndio improdutivo (Fazenda Colorado) . Este número só não fo i maior porque dezenas de famí l ias foram impedidas de se d ir igirem até o local pe lo cerco polic ial em vár ias local idades, pr incipalmente no dis t r i to de Limeira. Nós que estávamos em paz, unidos com o obje t ivo de produzir a terra, fomos despejados pe la ação da pol ícia e dos fazendeiros l iderados pela UDR, acompanhados de jagunços muito bem armados.
Apesar de toda a repressão o nosso sonho de Reforma Agrár ia, nossa disposição de lu ta e de união foi muito maior que a ganância dos la t i fundiários. Erguemos com coragem um acampamento em Vila União, que vem crescendo constantemente com a chegada de novos companheiros que t razem consigo, a confiança, a f orça, e o sonho de juntos e organizados conquistarmos a terra.
Uma caravana de t rabalhadores da região, junto com a Central Única dos Trabalhadores (CUT) , Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) , Comissão Pastoral da Terra (CPT) , Sindicatos da Região, e o Part ido dos Trabalhadores (PT) , e stão em Belo Horizonte em processo de negociação com o INCRA, e os Governos Es tadual e Federal , ex igindo solução imediata dos problemas que estamos enf rentando.
A sol idar iedade e o apoio de toda a população enviando al imentos e a ajuda na própr ia sustentação do acampamento, como já vem ocorrendo, re força a nossa lu ta que é de todos que buscam a jus t iça .
As ocupações e acampamentos são resul tado da misér ia e exploração a que estão submetidos milhões de Trabalhadores Rurais , e só terão f im no dia em que todo o t rabalhador do campo t iver acesso à terra para plantar e vive r." (TRABALHADORES RURAIS SEM-TERRA ACAMPADOS EM VILA UNIÃO, s/d) .
Nessa carta aberta, os trabalhadores revelaram sua identidade
coletiva, que vinha sendo constituída desde o momento em que
realizavam as primeiras reuniões em Limeira d’Oeste, autodefinindo-se
como “trabalhadores rurais sem-terra acampados em Vila União”. Ao
se proclamarem como sem-terra, explicitavam em nome de quem se
pronunciavam, porque se encontravam acampados, quem eram seus
71
aliados e seus adversários e, sobretudo, revelavam seu projeto sócio-
político, ou seja, o sonho de conquistar o acesso à terra para plantarem a
vida.
Esses trabalhadores, ao indicarem o cenário es trutural em que
travavam suas lutas, apresentavam-se para a população como sujeitos de
sua própria história, dizendo “chega” ao processo de exclusão e
subordinação a que foram submetidos, colocando-se em cena como novos
cidadãos, que reivindicavam o acesso à terra “por direito e por justiça”.
O acampamento e a ocupação realizada no INCRA constituíram um
fato político de grande relevância, dando maior visibilidade ao
movimento na região, o que exigia um alto grau de mobilização e
organização dos trabalhadores e da rede de insti tuições que os apoiava,
desencadeando iniciativas que funcionariam como pressão junto ao
INCRA. A participação das instituições mediadoras, a exemplo da CUT,
MST, CPT e Sindicatos da região, teve importância fundamental, uma
vez que desempenhou a função de construir redes de comunicação dos
trabalhadores entre s i, como também com as instituições governamentais.
Os mediadores prestaram o apoio político necessário para o
encaminhamento das reivindicações dos sem-terra, sendo facilitadores
nas definições de estratégias de luta do movimento.
Paralelo ao auto-reconhecimento dos sem-terra como sujeitos
políticos, emergia o movimento dos proprietários de terra, organizado
pela UDR, demonstrando sua articulação política com empresários e
parlamentares, tanto em nível local como nacional.
Sentindo-se ameaçados pelas ações desencadeadas pelos sem-terra
acampados em Iturama, os grandes proprietários procuravam
desqualificar o movimento, acusando os trabalhadores de “falsos sem-
terra” . Utilizando-se da imprensa regional e nacional, a UDR acusava
haver “infil trações de comunistas e anarquistas” no acampamento dos
trabalhadores sem-terra. Articulando-se a empresários agroindustriais e
72
parlamentares locais, os grandes proprietários encaminharam documentos
ao então Ministro da Agricultura23, Antônio Cabrera - que por sinal
possuía uma vasta propriedade rural no município de Iturama24 -,
acusando a CUT e o PT de “comandarem uma indústria de invasões”
[sic] . Nas palavras do Diretor Presidente da Cooperativa Agropecuária
dos Produtores Rurais de Iturama Ltda. , em ofício dirigido ao Ministro
da Agricultura, publicado no jornal “Estado de Minas” (CABRERA,
1990:4) em 01/08/1990:
“(. . . ) Somos tes temunhas que o PT e CUT es tão incent ivando invasões de terra em nossa região e o que é p ior, colocando à frente das invasões , pessoas inocentes que servem de instrumentos de ação dos l íderes pol í t icos ."
"No ense jo de evi tar maiores problemas em Iturama e região, sol ic i tamos vossa in terferência , no sent ido de nos ajudar a preservar a ordem, o re spei to e a paz em nossa c idade e munic ípio, af im de evi tar graves problemas que poderão ocorrer ( . . . )”
É interessante observar que o documento acima transcrito
constitui-se um discurso representativo do imaginário do empresariado
rural sobre os movimentos de luta pela terra. Ao solicitar a interferência
de uma autoridade governamental na ocupação realizada pelos
trabalhadores sem-terra, como forma de preservar a ordem, tal discurso
implementa a imagem de baderna ao movimento, expressando, assim, o
tradicionalismo conservador desse segmento.
O ministro Antônio Cabrera respondeu prontamente às
reivindicações dos empresários rurais e parlamentares de Iturama,
solicitando ao Ministério da Justiça a instauração de inquérito pela
Polícia Federal para apuração e investigação dos supostos envolvidos na
ocupação dos sem-terra. Em reportagem publicada no “Jornal do Brasi l”
(CABRERA, 1990), em 27/07/1990, Cabrera, encampando a linguagem
dos grandes proprietários rurais, acusava a CUT e o PT de comandar uma
23 No in íc io do seu governo, Col lor de Mel lo extinguiu , mediante a re forma adminis tra t iva , o Minis tér io da Reforma e do Desenvolvimento Agrár io, subordinando a questão agrár ia ao Ministé r io da Agricul tura. 24 Essa af irmação foi baseada nos depoimentos dos entrevis tados , indicando-nos que o minis tro , seu pai e seu f i lho t inham três propr iedades em Iturama.
73
“indústria de invasões” [sic], apresentando uma lista com nomes de
representantes de instituições que apoiavam o movimento, qualif icando-
os como “falsos sem-terra” [sic], o que resultou na instauração de um
processo criminal instaurado na Justiça Federal de Uberaba - MG, como
forma de desestabilizar o processo de luta pela terra desencadeado pelos
trabalhadores em Iturama. A respeito desse processo, Edivaldo comenta:
"Eu lembro, por exemplo, que uma vez que . . . eu e mais sete companheiros fomos depor na Pol íc ia Federal . Eles tavam tachando a gente como l iderança de anarquia, de não sei o que , e ta l . ( . . . ) A Pol ícia Federal acusou a gente de formar . . . de formação de quadri lha, essas coisas, né? E aí nóis fomo colocar. . . o que era. . . qual a nossa função, cada um, né? Eu, na época, era pres idente do Sindicato ( . . . ) Então, como pres idente do Sindicato, eu , na época. . . eu colocava pro pessoal da Federal . . . que a função do Sindicato era acompanhá. . . de tá intemediando, de tá do lado dos t rabalhador . E os outro também.. . cada um t inha seu argumento, né? Porque, na realidade , a gente nunca. . . nós nunca t ivemo nenhum crime. Pode até ser que , pra eles , i s so possa se r um crime, mas a gente tá . . . Como se diz , o tempo tá mostrando que i sso não é um cr ime, é uma necessidade! Não sei , parece que pra e les i sso possa ser um crime, né? Falar que ocupar, invadir . . . É, mais acho que é uma forma de mostrar. . . que o governo, a le i . . . ta lvez , a le i que protege os la t i fundiár io é que tá errada, não é quem ocupa terra!" (Edivaldo) .
Com base na lei tura dos depoimentos dos latifundiários,
representados pela UDR, parlamentares, empresários rurais e dos
trabalhadores sem-terra, f ica evidente que esses atores sociais
disputavam espaço na cena pública, por meio de argumentações
persuasivas vinculadas à noção de direitos. Se, por um lado, os
latifundiários reivindicavam o direito i rrestri to à propriedade privada,
exercendo pressões políticas sobre o Estado para o restabelecimento da
“ordem” no campo, fundamentando-se na defesa da inviolabilidade do
direito de propriedade, por outro, os sem-terra, ao realizarem ocupações
dos espaços públicos e de propriedades improdutivas, instituíam práticas
sociais que reinterpretavam os princípios da lei, produzindo uma
jurisprudência informal fundamentada em critérios de justiça substantiva
(TELLES, 1994), estabelecendo, assim, o direito a ter direitos dos
trabalhadores sem-terra (LEFORT, 1991). Afirmando as ocupações e
acampamentos como direitos legítimos, que dão maior visibilidade à luta
pela terra, os trabalhadores contrapunham-se à denominação de invasão
74
dada pelos fazendeiros. Indagados sobre a distinção que faziam entre
invasão e ocupação, os trabalhadores respondem:
" Invadir , i sso aí é uma forma que e les fala pra podê t i rá provei to! Pra diminuí bem o cara, né? Ocupô! Quer dizer que i sso é uma coisa mais. . . normal, né? Mais . . . invadiu . . . é uma coisa mui to chata, né?( . . . ) Então, e le s coloca i s so em c ima dos sem-terra pra diminui r ( . . . ) Porque , na realidade a gente ocupa porque preci sa!" (Seu Calu) .
"Bom, no meu ponto de vis ta, a di ferença entre invadir e ocupar, e la é s implesmente no sentido de . . . A conotação dessa palavra é que . . . quando fa la em invadir. . . já dá impressão como uma coisa errada! E no nosso entendimento, e ssa invasão, que é d i ta pela direi ta . . . não é uma coisa errada! Por i sso que a gente fa la em ocupá! Ocupá o e spaço! A gente vai ocupá um espaço que é nosso, por direi to! ( . . . ) a gente sabe que num passado não mui to longe, os pequeno produtores perderam suas terras na bala! ( . . . ) E aí , a gente acha que não é justo. . . que grandes gri lei ro de t erra, f ique apossando dessa te rra, às ve zes , sem produz ir nada, enquanto que o trabalhadô que quer produzí a lguma coisa. . . f ique na favela, na peri fe ria, t rabalhando de bóia- fr ia." (Edivaldo) .
Nesses dois depoimentos, podemos perceber claramente como os
sem-terra reinterpretam as concepções de invasão e ocupação,
imprimindo-lhes novas significações que conduzem ao debate sobre o
legít imo e o ilegí timo. A concepção que esses trabalhadores têm de
ocupação não se limita a conquistas legais ou ao acesso de direitos já
instituídos, mas refere-se à invenção de novos direitos, que emergem de
suas lutas específicas (DAGNINO, 1994). Nesse sentido, consideram ser
ilegí tima a situação de exclusão a que foram condenados frente ao
processo de expropriação capitalista, afirmando a legit imidade da
ocupação do espaço de latifúndios improdutivos, como um direito.
Na verdade, pode-se sugerir que a noção de legitimidade das
práticas de ocupação estabelecidas pelos sem-terra desvenda a presença
de uma nova ética dos excluídos, sancionando uma ação coletiva direta,
que é categoricamente reprovada pelos valores de ordem sustentada pelo
modelo tradicionalista dos grandes proprietários de terra25.
25 Remetemo-nos aqui à pesquisa real izada por THOMPSON, sobre os mot ins de subsis tência na Ingla ter ra do século XVIII, que desvenda a presença de um consenso popular , fundamentado numa economia moral , a respe ito de cr i tér ios de legi t imidade e i legi t imidade nas prá t icas soc ia is compar t i lhadas por membros de uma comunidade (THOMPSON, 1998) .
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Preocupado em dar visibilidade às suas lutas, o movimento
transferiu o acampamento da Vila União para as margens da BR 497, a
12 km de Iturama, numa rodovia que liga este município a Porto
Alencastro. O que as entrevistas revelam é que, se o acampamento
permanecesse em Vila União, o movimento se esvaziaria, em razão das
condições adversas que ali vivenciavam e da impossibilidade de
demonstrarem publicamente suas reivindicações num local de estrada de
terra secundária. Dessa forma, o acampamento nas margens de uma
rodovia federal tornou as lutas dos trabalhadores visíveis para a
sociedade local, constituindo-se como locus das práticas de resistência e
organização.
No campo de disputas em que se inseriram, os trabalhadores não
permaneceram passivos frente à inércia do Estado na desapropriação de
terras para o assentamento dos trabalhadores acampados, bem como ao
conflito estabelecido com os fazendeiros e seus representantes.
No dia 19 de setembro de 1990, após nove meses de espera pela
desapropriação de um latifúndio improdutivo e diante da inoperância do
governo federal, frente aos mecanismos de pressão estabelecidos pelos
sem-terra - acampamentos e ocupações de instituições como o Ministério
da Agricultura, Congresso Nacional e o próprio INCRA -, os
trabalhadores invest iram na ocupação da Fazenda Varginha, localizada
em Vila União.
No momento anterior à ocupação da Fazenda Varginha, o
acampamento, localizado na margem da BR 497 vivia um grande refluxo,
face à desistência de várias famílias de persist irem no processo de luta
pela terra. Das cento e cinqüenta famílias que viviam nesse
acampamento, restaram apenas quarenta e quatro. O desgaste, advindo
tanto do tempo de existência do acampamento como dos enfrentamentos
com os fazendeiros e com o próprio Estado, fez com que os trabalhadores
buscassem um reforço na organização interna. Para tanto, as lideranças,
76
articuladas com a rede de entidades que apoiava o movimento, realizaram
um novo processo de mobilização junto aos trabalhadores rurais:
"Na minha v inda pro acampamento ( . . . ) eu já cheguei com 17 famíl ia ( . . . ) De posse das informações lá, eu já f i z um t rabalho de base, orientado pelo Zé Pret inho e o João, da Mari lda, eu trouxe 17 famil ia! ( . . . ) Quando nóis chegamo em 17 famí l ia, de uma vez, é . . . os outro que t inha saído do acampamento por. . . esmorec imento, por descrença. . . - Opa, o negócio ta bão! Vol tô tudo de novo. E de repente, o acampamento encheu!" (Zé Messias) .
De acordo com depoimento dos trabalhadores, a relação do
movimento com o Estado começava a desgastar-se, já que as propostas
apresentadas pelo INCRA e outras instâncias governamentais, no sentido
de atender às demandas dos trabalhadores, não passavam de promessas.
Por sua vez, as ações desencadeadas pelos grandes proprietários,
representados pela UDR e pelo próprio Estado, com vistas a
desqualificar as práticas de luta dos trabalhadores como baderna, exigiu
deles a ação de enfrentamento organizado. A arregimentação de forças
advindas tanto da art iculação interna do movimento, quanto das alianças
estabelecidas pela rede de entidades/instituições que apoiava os
trabalhadores, favoreceu a ocupação de mais um latifúndio improdutivo.
A reação dos grandes proprietários de terra e do Estado foi
imediata. Autorizada pelo então juiz de Direito de Iturama, Edson Magno
de Macedo, a Polícia Militar expulsou mais de 200 pessoas, dentre
mulheres, homens e crianças, à base de muita violência f ísica e
psicológica. Barroso rememora a repressão exercida pelos policiais:
"O despejo da Fazenda Varginha foi um grande sofrimento, um despejo violento.. . As pessoas foram humilhadas, amarradas, jogadas dentro d’água. Alguns sofreram afogamentos. As mulheres humilhadas, as crianças humilhadas.. . No caso das mulheres, algumas sofreram violência sexual! Não chegou a ser estrupo, mas. . . Foi uma humilhação, passavam as mãos nas mulheres para identi f icar se era homem ou mulher.. . Foi tudo muito traumático! ( . . . ) A polícia queria afrontar mesmo o movimento, afrontar a organização dos trabalhadores, no sentido de não. . . de minar mesmo o campo.. . de acabar o mal pela raiz e. . . Foi muito forte a experiência que a gente viveu! (. . .) Então, esse povo ameaçou ao extremo! (. . .) E os
77
companheiros deram um testemunho de bravura, de heroísmo mesmo, de compromisso com a luta!" (Barroso).
A violência exercida pela polícia contra os t rabalhadores marcou a
presença dos fazendeiros, declarando a luta aberta contra os ocupantes da
terra. Nesse sentido, a ação do Estado sobre os conflitos no campo foi
permeada por práticas repressivas sobre os movimentos, ora abertas
como as intervenções policiais nos confl itos, ora veladas, pela omissão
quanto às ações das milícias privadas dos grandes proprietários. No caso
das práticas violentas desencadeadas pelo aparato policial em Iturama,
ficou visível a tentativa de semear o medo entre os trabalhadores, como
forma de impedir a continuidade de suas lutas. De fato, a violência
praticada pela polícia, com a conivência do poder judiciário, deixou
marcas indeléveis na memória dos trabalhadores.
No entanto as derrotas sofridas pelos trabalhadores, diante das
ações violentas desencadeadas pelos policiais, serviram como elemento
revitalizador das energias do movimento, criando, assim, condições para
seu fortalecimento.
Após o despejo violento da Fazenda Varginha e das torturas que
sofreram no pátio da Delegacia de Iturama, os trabalhadores retornaram
ao acampamento nas margens da BR 497 para revigorar suas forças,
iniciando, assim, um processo de mobilização intenso. Além de
denunciarem a violência praticada pela polícia, realizaram ocupações em
órgãos públicos e audiências com o presidente do INCRA e o ministro da
Agricultura, Antônio Cabrera, como forma de expressar suas lutas e
demonstrar a resistência e organização dos acampados, por meio de ações
reivindicatórias de desapropriação de terras para fins de reforma agrária.
Zé Maria rememora as ações reivindicatórias desencadeadas pelos
trabalhadores, junto ao INCRA e Ministério da Agricultura , a f im de
propor uma solução para o conflito entre os sem-terra e os proprietários
de terra:
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" ( . . . ) Nós procurava sempre conversá, d ialogá com o INCRA, argumentano, né? O INCRA falava que tava di f íci l , n isso e naquilo. . . A gente propunha uma solução ( . . . ) E sempre o INCRA diz ia pra nóis que a região do Tr iângulo Mineiro aqui, não e ra passível . . . não t inha te rra pra re forma agrár ia mais ( . . . ) Então nós colocou um l imite , que o nosso l imite era o Tr iângulo Mineiro . ( . . . ) Por aqui , qualquer lugar nóis quer ia terra! ( . . . ) Então, nós sempre. . . a gente cedia um pouco, mais a gente t inha uma estratégia, um l imite da nossa negociação. E al i , f o i quando a Fazenda Santo Inácio Ranchinho fo i proposta pra nós porque nós ameaçamo a entrá na própria fazenda do minis t ro Cabrera! ( . . . ) Aí , cara a cara, conversamo com e le, nós insinuamo que ia entrá na fazenda de le!" (Zé Mar ia) .
A indicação da Fazenda Santo Inácio Ranchinho, em Campo
Florido, como área passível de desapropriação para fins de reforma
agrária, foi a primeira conquista dos trabalhadores sem-terra. As
entrevistas realizadas com trabalhadores e trabalhadoras revelam que a
pressão foi o mecanismo mais eficaz nos processos de negociação com o
Estado, e, como afirma Zé Maria, foi diante da ameaça de ocupar a
fazenda do ministro da Agricultura que o Estado atendeu à reivindicação
dos sem-terra acampados em Iturama. Como a relação com o Estado era
de desconfiança, os t rabalhadores não confiavam nas promessas
realizadas, verbalmente, pelos representantes das instituições
governamentais, exigindo que os compromissos estabelecidos pelo
INCRA fossem documentados por escri to. O trecho de um documento
assinado pelo diretor do INCRA e pelas lideranças dos sem-terra,
transcrito a seguir, realça bem o resultado do poder de pressão exercido
pelos trabalhadores:
“Pontos acertados durante a reunião real izada em Brasí l i a em 12 de dezembro de 1990, com a presença do Diretor do INCRA e as l i deranças dos “ACAMPADOS DE ITURAMA”.
- Acompanhamento pr iori tário pe la DP/DF do INCRA do andamento do processo de Campo Florido, informando à CONTAG as movimentações ocorridas.
( . . . )
- Finalmente, COMO PRIORIDADE PRIMEIRA, até março de 1991 - ocorrerá a def inição do problema dos ACAMPADOS DE ITURAMA, sendo que a pr ioridade será de encaminhamento do processo de desapropriação da área de Campo F lorido (MG)”
Em 16 de abri l de 1991, foi publicada no Diário Oficial a
desapropriação, para fins de reforma agrária, da Fazenda Santo Inácio
79
Ranchinho. Entretanto o processo de desapropriação não significou que a
luta dos trabalhadores estava encerrada. A fazenda em questão era um
espólio e seus herdeiros, não se sentindo derrotados, contestaram
mediante medida cautelar, o ato desapropriatório na Justiça Federal,
inviabilizando, assim, a efetivação imediata do assentamento dos
trabalhadores sem-terra.
A contestação do processo desapropriatório impôs novos desafios
aos trabalhadores sem-terra, exigindo a reelaboração permanente de suas
práticas de luta e demonstração de resistência no acampamento nas
margens da BR 497. Tratava-se de resistir na angústia da espera da
desapropriação da terra prometida, mantendo a mobilização e buscando
alternativas de sobrevivência no acampamento.
2.6 - A vida cotidiana no acampamento
A experiência do acampamento nas margens da rodovia durou três
anos e quatro meses, ou seja, de janeiro de 1990 a maio de 1993. Nesse
período, a vida em barracos de plástico, aglomerando famílias que
ficavam submetidas às condições precárias de subsistência, retratava bem
uma das faces da violência enfrentada por aqueles que já vivenciavam
uma história de exclusão social (RAMOS, 1993). As péssimas condições
de segurança, saúde e alimentação desvelavam a dimensão violenta da
nossa modernidade.
Como a permanência no acampamento era a condição necessária
para se ter acesso à terra26, os acampados viviam situações adversas. Nas
26 Regis tramos , nas ent revis tas rea l izadas, que , apesar da permanência no acampamento ser condição para o acesso à te r ra , não eram todos os membros das famí lias que permaneciam a li . Alguns entrevis tados reve lam que res idiam na zona urbana, onde t rabalhavam para dar sus tentação à renda fami lia r.
80
margens da BR 497, foram registrados casos de incêndios dos barracos
(ver FIGURA 4), atropelamento de crianças, ameaças dos fazendeiros de
contaminação da água utilizada pelos acampados, disseminação de boatos
sobre o insucesso das lutas dos trabalhadores, além da perseguição e
ameaça de morte de algumas lideranças do acampamento27.
FIGURA 4 - Incêndio ocorr ido no acampamento nas margens da
BR-497, 1991. Foto: Manoel Seraf im.
As condições de alimentação, normalmente, eram bem precárias e
dependiam das arrecadações que os trabalhadores faziam junto aos
sindicatos, Igrejas e outras instituições que apoiavam o movimento, ou
mesmo de uma parte da remuneração recebida por aqueles que
trabalhavam, temporariamente, na lavoura. A busca por soluções para
superar, ainda que minimamente, as dificuldades deu-se com a
organização da cozinha comunitária. Essa prática exigiu a atuação de um
grupo para arrecadação de alimentos e de outro para preparo e
distr ibuição dos alimentos. A experiência da cozinha comunitária não
durou muito tempo, pois começou a tornar-se insatisfatória para os
27 Algumas das l ideranças do acampamento foram permanentemente per seguidas e ameaçadas de mor te por fazendeiros l igados à UDR. A estratégia u t i l izada pe los acampados para sa lvaguardar esse s trabalhadores foi o s igi lo absoluto em torno do parade iro das l ideranças, ou mesmo de qualquer dec isão t i rada em assembléias de l ibera t ivas dos sem-te rra .
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acampados, que consideravam haver muito desperdício no preparo da
comida. As famílias acampadas retornaram, então, à cozinha familiar,
sendo que os alimentos arrecadados foram repartidos por cotas, de
acordo com o tamanho da família. Muitas vezes, os alimentos tiveram
que ser racionados, chegando a faltar ocasionalmente (ver FIGURA 5).
FIGURA 5 - Di str ibuição de al imentos no acampamento, 1992.
Foto: Túlio Souza Muniz.
Sobre as condições de alimentação, seu Calu relata:
"Nóis sofremo. . . nóis v imo um f io nosso chorá, pedino um pedaço de pão e nóis num t inha pra dá! Passava um dia , dois d ia, t re is dia . . . Mais sempre t inha um f io de Deus lá fora que apoiava nossa lu ta. E quando a gente pensava que tava na pior, chegava um caminhão de mercador ia pra nóis! Tinha pacot inho que v inha com ½ qui lo de arroiz , um pacot inho de sal , né? Mais aquilo era bem-vindo, porque qualqué coisa que chegasse al i , nóis repartia!" ( seu Calu).
82
Se a rede de entidades que apoiava o movimento contribuía de
forma solidária na sustentação do acampamento, o mesmo não se pode
dizer das instituições públicas e da própria sociedade local. O que as
entrevistas indicam é que a comunidade de Iturama demonstrava aversão
aos sem-terra, qualif icando-os de preguiçosos. Não contribuía com
nenhuma campanha de alimentação, acreditando ser esta uma forma de
incentivar a resistência no acampamento. Os relatos dos trabalhadores
apontam que os proprietários de terra chegaram a negar trabalho aos
sem-terra acampados, como uma estratégia para impedir qualquer fonte
de renda para aquelas famílias. A Prefeitura de Iturama, com o intuito de
boicotar a sustentação dos acampados nas margens da rodovia , chegou a
distr ibuir as cestas básicas encaminhadas pelo INCRA para os sem-terra
nas periferias da cidade. Foi necessária a ocupação dos trabalhadores nas
instalações da Prefeitura para que fossem devolvidas as cestas que lhes
pertenciam por direito.
Um outro fator que dava sustentação ao acampamento era a fé e a
esperança de conquistar um pedaço de terra. A esperança era a razão
subjetiva que motivou aqueles trabalhadores a resist irem durante mais de
três anos acampados nas margens de uma rodovia. A memória da fé e da
esperança existentes no acampamento supera a memória das dif iculdades
enfrentadas. Assim, Maria relata essa experiência:
"As famí l ia que tava al i t inha a esperança da terra saí . A mot ivação deles manter t re is anos e quatro meses al i . . . era essa! Eu acho que se f icasse se is ano, e les t i nha esperado. Por quê? A esperança de les de saí a te rra era muito grande! Aquela vontade de prantá, de chegá na te rra, de produzí era muito grande! ( . . . ) As pessoa t inha um sonho! ( . . . ) E outra coisa que al imentava a esperança, de fazê com que esse povo permaneceu esse tanto de tempo lá, fo i a fé em Deus! Nóis t inha um grupo de re f lexão, que a gente tava sempre re f le t ino e pedino à Deus. Se i lá, parece que Deus dava força pra gente tá esperano, tá passano as coisa di f íci l que passava. Fome. . . e tudo mais ." (Maria).
Germinar a fé e a esperança nos acampamentos foi a estratégia
encontrada pelos agentes pastorais da Igreja Católica, para motivar e
mobilizar os trabalhadores sem-terra a resisti rem no processo de luta por
83
terra. Encontrando na Teologia da Libertação o espaço privi legiado de
atuação, os agentes da CPT/APR organizaram, no interior do
acampamento, os grupos de reflexão. Tais grupos t inham a f inalidade de
discutir problemas concretos vivenciados pelos sem-terra, tendo o texto
bíblico como referencial para reflexão (MICHELOTO, 1991). Pelo
exercício do imaginário-religioso, os grupos refletiam sobre as duras
condições que vivenciavam no cotidiano, bem como sobre a forma como
desejavam que a realidade fosse. Mediante as comparações que faziam
entre o sonho e a realidade, desenhavam o caminho a percorrer no
processo de luta. No acampamento, os trabalhadores relacionavam a
realidade vivenciada por eles com passagens da bíblia:
"E a gente l ia a B íbl ia. . . Quando aquela passagem do Moisés pra te rra prome tida. . . Sempre a gente t inha i sso na cabeça. Que um dia nóis ia pra essa t erra! Que Deus não de ixou essa terra pra uns. Deus de ixou essa terra pra todos podê sobrev ivê ( . . . ) A gente fazia aque le momento de oração. . . punha o Zé na f rente como Moisés, e o Moisés levava o povo pra terra prometida ( . . . ) do jei to que tava na Bíbl ia, a gente fazia aquela organização." (Mar ia) .
Esta passagem bíblica do êxodo para a terra prometida
representada pelos trabalhadores demonstra a crença em uma certa
estratégia divina por eles encontrada, vislumbrando, assim, a sua
disposição de lutar contra a situação a que estavam submetidos no
acampamento e organizar a caminhada para a “terra prometida” pelo
governo federal. Como afirma MICHELOTO (1991:106), os
trabalhadores encontram no discurso profético “um eficiente estímulo de
ordem psico-social” , que tem o sentido de legitimar suas ações de
resistência. É nesse discurso, pois, que os trabalhadores manifestam o
modo de expressar e organizar suas lutas.
Outra forma que os trabalhadores encontravam para fortalecer a
identidade coletiva no interior do acampamento era a realização de festas
e celebrações. Tais eventos alimentavam a animação e a res istência no
acampamento, conforme demonstra a fala de Barroso:
"Então para as pessoas preservarem no acampamento, tem que te r outros valores , outros elementos, como a f es ta , comemorar os
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aniversár ios, fazer as re zas , as celebrações, as cant igas , o Reizado, a Fol ia de Reis . . . Tinha o fu tebol , o baralho o jogo de maia! E as nossas celebrações, sempre foram celebração pol i t i zada! Celebração que ce lebrava a v ida, ce lebrava o sofr imento, ce lebrava a esperança. ( . . . ) Então, i s so ajudou a sustentar aquela comunidade!" (Barroso) .
Portanto, o acampamento era o lugar onde os trabalhadores
expressavam suas lutas. Era ali que arregimentavam forças internas para
organizar, por meio da aliança com os Sindicatos, a Igreja Católica, a
CUT, a CPT/APR e o MST, as estratégias de luta pela conquista da terra.
Para tanto, realizavam todo um trabalho de convencimento para que os
trabalhadores mantivessem a resistência no acampamento.
A experiência vivenciada no acampamento exigiu dos
trabalhadores um processo intenso de organização interna. Inspirados no
modelo comunitário da Igreja Católica - as Comunidades Eclesiais de
Base -, consti tuíram o espaço organizativo do acampamento estruturado
em comissões e grupos de vizinhança ou afinidade. Esses grupos
nucleavam os acampados em função da participação ativa de todos no
processo de tomada de decisões. As comissões de trabalho, como as de
segurança, de alimentação, de ética, de negociação, entre outras,
proporcionavam as divisões de tarefas e de responsabilidades dentro do
acampamento. Por f im, a comissão central, constituída por lideranças
dos grupos de vizinhança e por representantes das comissões de trabalho,
encarregava-se da organização interna, propondo atividades e executando
ações encaminhadas pelo coletivo dos trabalhadores.
A forma de organização que os trabalhadores construíram no
interior do acampamento possibilitava a repartição do poder, das tarefas
e da co-responsabilidade, fundamentada numa estrutura horizontalizada,
bem diversa daquelas instâncias organizativas formais que se estruturam
mediante o poder vertical, representado pelo presidente, secretário,
tesoureiro e demais membros da direção. Essa nova forma de organização
e de participação dos acampados na tomada de decisões trazia consigo
um pressuposto fundamental: um desenho mais igualitário de relações
85
sociais, constituído por uma nova proposta de sociabilidade, que rompe
com o autoritarismo social enraizado na cultura política brasileira,
marcado por um ordenamento hierárquico e desigual nas relações sociais
(DAGNINO, 1994).
O estilo comunitário de organização formado em torno da luta pela
terra contava com o apoio de agentes da Pastoral da Terra, da CUT e do
MST, presenças constantes na direção do acampamento.
A princípio, a formação de uma aliança entre o MST e a CUT,
buscando uma maneira de construir uma unidade de ações em momentos
decisivamente políticos no processo de luta por terra, foi fundamental
para o fortalecimento da identidade coletiva no interior do acampamento.
Entretanto, a forma de condução do processo organizativo interno dos
trabalhadores, apresentada por essas duas insti tuições mediadoras, t inha
suas facetas diferenciadoras, o que indicava formas específicas de luta.
O movimento de luta pela terra no Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba
tinha suas especificidades e, nesse sentido, leituras diferenciadas, em
torno da natureza e dos objetivos do processo de luta que aqui se
desenvolvia, surgiam. No acampamento nas margens da BR 497, surgia
uma disputa política acirrada entre a CUT e MST, que apresentavam
projetos políticos distintos na definição de estratégias de luta,
culminando com o rompimento do movimento dos trabalhadores sem-
terra de Iturama com o MST. As falas dos trabalhadores esclarecem o
espaço de tensão entre o MST e a CUT, no interior de um movimento
instituinte.
"O MST foi o seguinte . . . A discussão polí t ica num tava bateno. Porque aí e le s é muito autori tário, në? Vamo fazê, vamo fazê! No começo, as pessoa ace i tou porque não t inha prát ica. Mais depois , e les queria mandá e as pessoa que f icava ali , queria ter d irei tos , tava lu tano por direi tos iguais e , muitas ve iz , e les quer ia por ordem, queria fazer de conta que era um fazendeiro. Então, nóis fo i sentindo i sso e, poli t icamente não deu bem!" (Maria) .
"Foi mui to interessante a part ic ipação do MST. Porque ele s também chegaro no início da caminhada. Mas chegô um momento em que ( . . . ) a época do acampamento precisava de ter . . . mui to ânimo da parte das pessoas, muita esperança. . . essa coisa prec i sava ser mui to bem alimentada! Cê precisava preparar que a
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te rra não ia resolvê com ocupação de terra! A ocupação de terra é importante, mais não é tudo no processo. Então, chegô um momento que a posição do MST, a forma como eles pensavam o acampamento, a ocupação de te rra. . . Chegô num momento. . . o acampamento achô que . . . num tava sendo viáve l . A í o pessoal resolveu a tomar a dec isão de . . . o acampamento caminhá soz inho. Foi quando houve um racha, onde o MST t eve que saí do acampamento ( . . . ) E o apoio mais forte que t inha e ra o da CUT, mais o apoio que t inha mesmo e ra das pessoa que viv ia no acampamento." (Zé Mar ia) .
"O MST foi pra região de I turama a convite nosso, mas foi uma re lação um tanto confl i tuosa. Porque mesmo a gente entendendo a força do MST, da re forma agrária , da impor tância do MST pra lu ta no Brasi l , nós t ínhamos alguns pontos de divergência, que e ra com re lação à concepção, ao método, à dinâmica. . . Então nós t ivemos algumas di f iculdades na condução do processo, porque , além do MST, t inham outras ent idades que part icipavam do processo ( . . . ) E o MST se sent ia dono da lu ta, a d ireção, inclusive! E todas e ssas entidade deveria ser , s implesmente, apoio , apoiadores da parte de sustentação logís t ica mater ial do processo. Essas entidades seriam.. . f icariam ali jadas do direi to à opinião, à part icipação, à re f lexão pol í t ica, né?" (Barroso) .
Tais relatos revelam que a fragilidade da aliança estabelecida entre
o movimento dos trabalhadores sem-terra de Iturama e o MST foi
resultante de um certo autoritarismo que norteava as ações desse
Movimento. Nesse sentido, há uma convergência com a avaliação de
LOPES et al. (1999:182), sobre as ações do MST no processo de luta por
terra em Sergipe, ao revelar que:
“Tem sido práti ca costumeira do MST descons iderar propos tas de encaminhamento t i radas em conjunto com outras entidades, mesmo tendo concordado com e las , e depois agir sozinho. Ou ainda, atuar de forma ut i l i taris ta, procurando e serv indo-se dos seus al iados apenas quando seus int eresses estão em jogo.”
Ao analisar a trajetória do MST nos últimos anos, NAVARRO
(1996) expõe que, a partir de 1987/1988, o movimento mudou sua forma
de organização, deixando de realizar consultas às suas bases, com uma
prática assídua de reuniões e decisões sistemáticas, passando a
centralizar suas decisões, tornado-se menos democrático e mais fechado
à participação de outras entidades mediadoras, isolando-se dos outros
movimentos sociais.
Há que se observar, ainda, que a trajetória de luta dos
trabalhadores sem-terra no Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba teve as
87
suas especificidades. A emergência dos movimentos de luta pela terra
nesta região se deu com a iniciativa e apoio dos sindicatos filiados à
CUT. Essa entidade reconhecia o MST como vanguarda da luta pela
terra, avaliando, no entanto, que era necessário evitar o isolamento
político nos movimentos de luta por terra, como forma de suprimir o
caráter de uma luta particular dos sem-terra (MEDEIROS, 1993). Daí a
sua defesa na construção de alianças mais amplas, particularmente, com
os trabalhadores urbanos, como forma de fortalecer o movimento de
pressão / negociação junto ao Estado, por maior agilidade no processo de
viabilização da reforma agrária. Assim, na disputa travada entre CUT e
MST no interior do acampamento, a primeira ganhou maior legit imidade
para tornar-se porta-voz dos sem-terra em Iturama, especialmente porque
a CUT já realizava um trabalho de assessoria junto aos movimentos de
trabalhadores na região.
A criação e a sustentação de ações coletivas internas eram
ampliadas pelas ações externas em defesa da desapropriação da terra.
Ocupações em insti tuições públicas como o Ministério da Justiça, o
Congresso Nacional e as sedes do INCRA em Brasília e Belo Horizonte,
foram as ações desencadeadas pelos trabalhadores, quando encontravam
obstáculos no processo de desapropriação da terra, reivindicando maior
agilidade na execução da reforma agrária28.
Muitas vezes, na luta pela desapropriação da terra , os
acampamentos eram montados em frente a prédios públicos como forma
de demonstrar publicamente o processo de luta. Um fato sempre
rememorado pelos trabalhadores foi o acampamento realizado em frente
ao Congresso Nacional.
"Nói s fo i em Brasí l ia e f izemo uns barraquinho lá! ( . . . ) Mais o acampamento fo i tão organizado, tão organizado. . . que nóis cheguemo lá e. . . Oia, parô o ônibus, só se via gente f incando pau
28 Ta is ações faziam-se necessár ia s, não apenas pe la morosidade do processo de desapropr iação, mas, fundamenta lmente , em razão do recuo em que se encontrava o processo de reforma agrár ia naquele per íodo, exigindo dos trabalhadores a t ividades contínuas de enf rentamento organizado.
88
( . . . ) Parece que com tr in ta minuto, nóis t i nha 28 barraquinho lá!" (Seu Calu).
Enquanto as famílias levantavam barracas em frente aos prédios
públicos, uma comissão formada por lideranças do movimento e
entidades mediadoras estabelecia negociações com o Estado sobre os
rumos tomados para a execução da política de acesso à terra.
Entretanto a forma de pressão mais eficiente daqueles
trabalhadores, diante da inércia do Estado na condução do processo de
desapropriação prometida aos sem-terra foi a ocupação direta de
instituições públicas, pela qual as famílias ocupavam um espaço de um
órgão definido como estratégico para atingir um objetivo de luta. Nesse
caso, as famílias faziam do lugar ocupado um espaço para negociação,
alimentação, dormitório e lazer para as crianças. Por sua vez, a direção e
os funcionários da instituição ocupada tinham que conviver com a
presença incômoda dos sem-terra, até que uma solução razoável fosse
encontrada no processo de negociação.
As ocupações de inst ituições públicas também ficaram marcadas na
memória dos trabalhadores:
"As ocupações se dá quando as promessa não é cumprida. O INCRA faz ia vár ias promessa e não cumpria . . . A gente ia lá e ocupava o INCRA ex igindo o cumprimento da promessa. A gente ocupava porque a gente t inha estratégia, né? Uma ve iz, eu me alembro, nóis conseguimo ocupá o INCRA nacional . A gente conseguiu ocupá todos e levador na mesma hora, e quando a turma viu, a gente já tava lá! O que a gente quir ia é forçá uma negociação e ta l ." (Lourival) .
A mobilização dos meios de comunicação, especialmente a
imprensa, foi outra estratégia utilizada pelos trabalhadores sem-terra.
Por meio da divulgação nos jornais e nas redes de televisão, os
trabalhadores levavam ao conhecimento de toda a sociedade os objetivos
de suas lutas, das ações desencadeadas pelo movimento, mobilizando a
opinião pública, que também exercia pressão junto ao Estado.
89
Tais fatores f izeram com que as demandas dos sem-terra
alcançassem ressonância na esfera pública, permitindo que as lideranças
tivessem maior acesso às autoridades governamentais, conferindo, assim,
maior visibil idade ao movimento, além de colocar a luta pela terra como
centro dos acontecimentos na região.
Ao criar mecanismos próprios de luta, procurando por intermédio
deles interferir na dinâmica do processo de reforma agrária, os
trabalhadores e trabalhadoras acampados tornaram-se sujeitos de sua
própria história. É certo que as ações dos sindicatos, dos movimentos
sociais, da Igreja, dos partidos, entre outras entidades, foram
fundamentais para projetar a luta dos trabalhadores para fora, para
articular alianças, ou mesmo para fazer a costura dessa luta específica
com lutas mais gerais. No entanto, foi a partir de tensões e relações
conflituosas vivenciadas pelos sem-terra , que se desencadearam ações e
reações que iam desde a formação de uma rede solidária para sustentação
do acampamento à organização de práticas informais de negociação com
o Estado, em defesa do que consideravam legítimo, tornando-se,
portanto, sujeitos do seu próprio destino.
2.7 - A chegada à terra prometida
O movimento dos trabalhadores sem-terra em Iturama desencadeou
ações coletivas que permitiram a resistência no acampamento à beira da
BR 497 por mais de três anos, aguardando a posse definitiva da área
desapropriada pelo INCRA em Campo Florido. No entanto as ocupações
de órgãos estatais, e a realização de assembléias nos espaços públicos,
como poder de pressão organizado pelos trabalhadores sem-terra,
estavam se tornando inócuas. Cientes da inércia do INCRA e da própria
90
Justiça frente ao acampamento29, os acampados realizaram, no dia 05 de
abril de 1993, nas margens da BR 497, uma assembléia com o então
ministro da Agricultura e Reforma Agrária, Lázaro Barbosa, e o
presidente do INCRA, Oswaldo Russo, reivindicando a agilidade do
Estado no processo de desapropriação. Nesse evento, os trabalhadores
registraram sua disposição de luta para a conquista da terra, carregando
uma faixa com os dizeres: “Fome: é guerra. Queremos terra” (ver
FIGURA 6). A promessa dos representantes do Estado era de que, até o
final daquele ano, os trabalhadores estariam assentados na Santo Inácio
Ranchinho. Entretanto o movimento não confiava mais nas propostas
apresentadas pelo governo federal.
Na verdade, a trajetória dos trabalhadores sem-terra em Iturama
insere-se num quadro de equívocos que foi a polít ica agrária
implementada pelo Estado, especialmente após o expressivo recuo que a
Constituição de 1988 trouxe à reforma agrária, tornando o latifúndio
insuscetível de desapropriação, pelo menos até que fosse regulamentado
o tema por meio da Lei Agrária. A Justiça, por seu lado, assinala sua
ambigüidade no tratamento da questão agrária, concedendo a imissão da
posse da área desapropriada ao INCRA e, paralelamente, dando liminar
favorável aos proprietários expropriados.
Os enfrentamentos com o Estado, o desgaste do movimento
advindo do tempo de existência do acampamento, que já somava três
anos e quatro meses de luta sem alcançar os objetivos propostos, e as
péssimas condições de saúde e alimentação foram alavancas para a
reelaboração de práticas de resistência, que definiram a ocupação da
fazenda Santo Inácio Ranchinho. Tratava-se, novamente, de romper com
a legalidade colocada pelo direito formal, instaurando-se práticas de
29 Em 17 de novembro de 1992, a Jus t iça Federa l assinou o auto de imissão de posse def ini t iva da fazenda Santo Inác io Ranchinho ao INCRA. Contudo, os propr iet ár ios expropr iados t iveram assegurados seus dire i tos de defe sa , mediante uma ação impet rada na 12ª Vara da Seção Judiciár ia de Minas Gera is , impedindo que as famí lias fossem assentadas no local .
91
transgressão de normas legais e “produção de uma legalidade informal
com uma jurisdição própria e localizada” (TELLES, 1994:95).
FIGURA 6 - Manifestação dos traba lhadores sem-terra , por
ocas ião da vis i ta do Ministro da Agr icul tura e do Pres idente do INCRA ao assentamento da Fazenda Barreiro, em Iturama, 1993.
Foto: Eithe l Lobianco.
Após a decisão de ocupar a terra prometida pelo INCRA, tomada
em assembléia, os trabalhadores formaram três comissões: uma que se
encarregou de vistoriar a fazenda Santo Inácio Ranchinho, identificando
o local ideal para acamparem, como também as possibilidades e riscos de
enfrentamento com os ex-proprietários; outra responsável por definir e
executar as ações de deslocamento de Iturama para Campo Florido; e a
terceira, que buscava a articulação da rede de entidades mediadoras para
prestar apoio político na ocupação. As ações que desencadearam na
92
ocupação da fazenda exigiam um sigilo absoluto dos trabalhadores para
que não se despertasse reação alguma por parte dos grandes proprietários
da região, ou mesmo do próprio Estado, no sentido de impedir o projeto
de apropriação do espaço a ser conquistado pelos sem-terra.
O que os trabalhadores e trabalhadoras revelam-nos nas entrevistas
é que, como estavam sendo permanentemente vigiados pela polícia que
rondava no entorno do acampamento, resolveram simular, após a
realização da vistoria da fazenda Santo Inácio Ranchinho, uma festa no
local com forma de despistar os policiais, enquanto preparavam a
formação de um comboio que os conduziria até a fazenda Santo Inácio
Ranchinho.
Na viagem de Iturama até a fazenda, caminhões e ônibus
percorreram mais de 250 Km, carregando as tralhas, conduzindo homens,
mulheres, jovens e crianças, que se acotovelavam em silêncio,
carregando consigo um sentimento misto de medo e esperança em chegar
à terra a ser conquis tada. O comboio percorreu estradas secundárias para
evitar as barreiras da Polícia Rodoviária Federal durante toda a noite,
chegando ao local onde montaram um novo acampamento no alvorecer do
dia 19 de maio de 1993 (ver FIGURAS 7 e 8).
O relato de Barroso revive a memória da ocupação da fazenda
Santo Inácio Ranchinho:
"Foi operação mil i tar! ( . . . ) Mas foi mui to signi f icat iva a entrada nossa em Campo F lorido! Pareceu a comi tiva no Mar Vermelho! Aquele nascer do sol , aque le dia 19 de maio fo i . . . um nascer de sol di ferente! Ali , todos nós t i vemos a convicção de que a gente tava f i ncano o pé na nossa terra! E daí , a gente não ia sair! Todos os trabalhadores pensavam is to! Todos! Al i era de fa to uma nova era!" (Barroso) .
Em sua fala, Barroso expressa o caráter messiânico do processo de
luta pela terra, resgatando a passagem do êxodo do povo hebreu à terra
prometida. A expressão “terra prometida”, muito valorizada por agentes
da Pastoral da Terra, como afirma MICHELOTO (1991), foi assimilada
pelos trabalhadores para fundamentar que o direito à terra teve uma
93
dimensão simbólica, vinculando, assim, a passagem bíblica com a
promessa do governo federal em efetivar a desapropriação da fazenda
Santo Inácio Ranchinho. A convicção de fincar o pé na terra , para dela
não sair, simboliza a disposição que aqueles trabalhadores tiveram em
disputar a apropriação do latifúndio improdutivo.
O processo de ocupação da terra em Campo Florido constituiu-se,
portanto, como fato político de grande relevância, tornando-se um marco
divisor no imaginário da luta pela terra no Triângulo Mineiro/Alto
Paranaíba. A entrada na fazenda deu-se de forma pacífica, não havendo
confrontos com os herdeiros do espólio, já desapropriado pelo INCRA,
nem mesmo com a Polícia Militar. A ocupação ganhou visibilidade nos
meios de comunicação, principalmente na mídia impressa, que passou a
fazer cobertura das ações desencadeadas pelos trabalhadores, na tentativa
de efetivar a desapropriação da fazenda30.
FIGURA 7 - Chegada dos t raba lhadores à " terra promet ida" , Fazenda Santo Inácio Ranchinho em 19 de maio de 1993.
Foto: Gilson Goular t Carr i jo.
FIGURA 8 - Montagem do acampamento na Fazenda Santo Inác io
Ranchinho, 1993.
30Os jorna is da região cobr i ram o processo de ocupação na Santo Inác io Ranchinho por um per íodo de doi s meses , acompanhando quase que diar iamente as ações de disputa do la t ifúndio improdut ivo.
94
Foto: Túlio Souza Muniz.
Os jornais “Correio do Triângulo” e “O Triângulo” declaravam:
“Os sem-terra ocupam fazenda em Campo Florido” (OS SEM-TERRA,
1993), “Sem-terras invadem fazenda desapropriada em Campo Florido”
(SEM-TERRAS, 1993), “Sem-terra e proprietários da fazenda se reúnem
em BH” (MARTINS, 1993), evidenciando que os trabalhadores estavam
dispostos a entrar no campo de disputas para conquistar o latifúndio
improdutivo, impondo para o espaço público, o reconhecimento de suas
reivindicações de direito ao acesso à terra, além de dar visibilidade
social às suas demandas.
Uma das herdeiras da fazenda entrou com um mandato de despejo
na Justiça de Uberaba. Entretanto o processo foi julgado de modo
favorável aos trabalhadores, que permaneceram acampados no local.
Uma outra estratégia política realizada pelos trabalhadores foi a
ida da Comissão de Negociação ao INCRA, simultaneamente ao processo
de ocupação, para apresentar as reivindicações e negociar, junto com as
entidades mediadoras, as propostas apresentadas por esse órgão ao
movimento.
Os trabalhadores t inham a clareza de que somente pelos
mecanismos de pressão levariam o Estado a efetivar o processo de
desapropriação da área ocupada . Nesse sentido, um intenso processo de
mobilização foi realizado: l ideranças do acampamento, apoiadas por
deputados estaduais e representantes da CUT e FETAEMG, participavam
de reuniões de negociação com um dos herdeiros, com a intermediação
do INCRA, objetivando a efetivação da posse de parte da área
desapropriada; trabalhadores apresentaram à Justiça Federal um dossiê,
relatando toda a tra jetória por eles vivenciada, visando sensibilizá-la
para a desapropriação da fazenda ocupada; as outras entidades que
apoiavam o movimento, reforçavam as reivindicações dos sem-terra junto
95
à Justiça e ao próprio INCRA para dar uma solução favorável às famílias
acampadas na fazenda Santo Inácio Ranchinho.
A instalação dos sem-terra na fazenda ocorreu de maneira precária
e improvisada, e eles continuaram a morar em barracos cobertos de
plástico, sem as mínimas condições de conforto, enfrentando problemas
de saúde e alimentação. As famílias acampadas aglomeraram-se próximo
à represa do Córrego das Candinhas, considerada como uma área própria
para abastecer os barracos de água, além de ser aproveitável para o
plantio de uma horta comunitária. A aglomeração das famílias num
mesmo local foi necessária para manter a segurança dentro do
acampamento, já que consideravam estarem sendo permanentemente
vigiados pelos ex-proprietários, que não se viam derrotados, enquanto
prosseguiam acionando a Justiça com processos de contestação da
desapropriação.
Buscando efetivar a ocupação do território disputado, a luta e a
resistência dos trabalhadores continuavam. Ao se deslocarem de Iturama,
para conquistar a terra prometida em Campo Florido, os trabalhadores
sofreram um processo de desterri torialização, defrontando-se com o
espaço da espoliação capitalista, além de terem deixado atrás toda uma
referência cultural para se encontrarem com outra. A ocupação desse
novo espaço, const ituído como território, exigia o entendimento da nova
realidade do lugar, que, num primeiro momento, era estranha para eles.
Para se relacionarem com a nova realidade por eles experimentada, os
trabalhadores recuperaram as experiências vividas no acampamento à
beira da estrada para a organização do efetivo projeto de conquista da
terra. O modelo de organização vivenciado nas margens da BR 497 foi
instituído no acampamento da fazenda Santo Inácio Ranchinho, com a
formação da Associação local, cuja direção colegiada estruturou-se
mediante uma comissão central, comissões de trabalho e grupos
formados por afinidade, que se constituíram como grupos de produção
coletiva.
96
Os trabalhadores adquiriram, por meio de doações, dois t ratores
para uso coletivo, iniciando a preparação para o plantio de arroz e feijão
de forma coletiva em áreas contínuas, onde o INCRA já havia negociado
a desapropriação definitiva31. A produção de arroz e feijão foi destinada
à sustentação das famílias acampadas, sendo que a safra agrícola 93/94
do acampamento foi de 2.419 sacas de arroz. A safra de feijão só não
teve resultados mais eficazes, em razão das geadas ocorridas naquela
ocasião. Outra experiência de produção coletiva foi a horta comunitária,
em que produziam alface, tomate, quiabo, ji ló, beringela, abóbora, entre
outras hortaliças. A formação da horta coletiva, de acordo com os
entrevistados, foi essencial para a alimentação das famílias acampadas.
A operacionalização da produção deu-se mediante o repasse de recursos
financeiros advindos de organizações não-governamentais e subvenções
de deputados estaduais. O Estado só se fez presente no repasse de cestas
básicas pelo INCRA e na viabilização do plantio de feijão, por meio de
recursos f inanceiros repassados pela Secretaria de Estado do Trabalho e
Ação Social, para aquisição de sementes, adubos e implementos
agrícolas.
A experiência de produção coletiva em pequenos grupos, ligados
entre si por identidades ancoradas em afinidades e re lações de
parentesco, local de origem ou mesmo por vinculação polí tica, foi uma
tentativa gestada pelas lideranças do acampamento como meio de
estimular a adoção de formas coletivas de exploração da terra, além de
constituir-se como uma experiência de gestão econômica do território
que seria conquistado.
A viabilização da produção, ainda na fase de acampamento,
significava, para aqueles t rabalhadores, não só a condição para a
sobrevivência das famílias acampadas, mas, fundamentalmente,
31 Como a fazenda Santo Inác io Ranchinho cons ti tu ía-se como um espólio de três herdeiras , o INCRA fechou acordo com duas, que venderam suas par te s da fazenda , cor respondente a 510 ha . A terce ira herde ira, que detinha a ma ior área do imóvel ,
97
afirmação política e social, meio de legitimação frente à população e
autoridades públicas de Campo Florido.
A relação estabelecida entre os t rabalhadores e o Estado foi
marcada por pressões e reivindicações, sempre maiores que as propostas
definidas pelas instâncias governamentais ali presentes. Era uma
correlação de forças, muitas vezes, desigual. Contudo, em vários
momentos, a pressão dos trabalhadores vencia os limites colocados pelo
poder público. Exemplo disso foi a instalação de uma Escola Municipal
no local, ainda na fase de acampamento. Os trabalhadores, reivindicando
o direito à educação das crianças acampadas, ocuparam o gabinete do
Prefeito de Campo Florido, determinados a permanecer ali , até que
ficasse garantida a implementação de uma escola na fazenda Santo Inácio
Ranchinho. A reivindicação foi atendida com a designação de
professoras da rede municipal para ministrarem aulas no interior do
acampamento, bem como a imediata construção da escola, em regime de
mutirão.
Entretanto, o que revelou a determinação dos trabalhadores em
efetivar o controle do território apropriado foi a expulsão dos carvoeiros
que estavam instalados na área ocupada, bem como a retirada do gado
das pastagens de braquiária, área que a herdeira da fazenda mantinha
arrendada para fazendeiros da região, como forma de mascarar a
produtividade do latifúndio. Eis o que revelam os trabalhadores sobre os
conflitos desencadeados para a disputa do território:
"Nós começamos comprando a briga com os carvoeiros que tavam aqui, pra dizer que não dev ia mais explorar a fazenda, não dev ia que imar carvão, não t i rar madeira. . . O que t inha aqui dev ia de ser nosso! Uma vez, nós carregamo uma carre ta de madeira na marra! O dono da carvoe ira fo i e buscou a políc ia de Uberaba. . . que veio armada e ameaçou dar t i ro em nós . . . Foi um pega danado! Nós resis t imos com muita força! Foi naqueles d ias que t inha o massacre de Corumbiara! E nós. . . sustentamos toda aquela pressão!" (Barroso) .
permaneceu ir r edut ível na venda de sua par te , mantendo a ação contesta tór ia de desapropr iação na Jus t iça Federa l .
98
"Passou um tempo, nóis metemo o pe i to, sem esperar a legalidade . . . Nóis botamo o gado do fazendeiro pra fora! Daqui pra frente o gado é nosso! Tinha gente que alugava o pasto. O fazende iro mesmo, não t inha gado. Eles alugavam o pas to! Nóis botamo pra fora e dissemo: - Daqui pra f rente quem aluga pas to somos nóis! Os mesmo dono de gado, que pagava pro fazende iro, se quisesse pasto, t inha que pagá pra nóis! ( . . . ) Foi um gesto de determinação! Determinação pol í t ica: quem faz o que. . . quem sabe o valor que tem, o dire i to que tem.. . quem vai usufruir das r iqueza do assentamento somos nóis! " (Zé Mar ia) .
O que esses relatos nos revelam é que os trabalhadores sem-terra
afirmaram-se como sujeitos, na persistência de conquistar o latifúndio
improdutivo para nele plantarem os seus sonhos de uma vida mais digna.
Foi nesse conjunto de práticas e ações que os trabalhadores fortaleceram
a identidade coletiva, construída no acampamento às margens da rodovia
em Iturama. Em decorrência de tais ações, reinventaram o espaço da
política, ligado ao processo de mobil ização e resistência na luta pela
terra. Nesse sentido, concordamos com SADER (1988:312), ao afirmar
que:
“Apoiando-se em valores da just iça contra as di f iculdades imperante s da soc iedade; da sol idar iedade entre os dominados, os trabalhadores, os pobres; da dignidade cons ti tu ída na própria lu ta em que fazem reconhecer seu valor; f izeram da af irmação da própria ident idade um valor que antecede cálculos rac ionai s para obtenção de objet ivos concre tos .”
Consideramos, também, que, na fase do acampamento, por força do
convívio cotidiano e dos enfrentamentos realizados coletivamente contra
seus opositores, os trabalhadores estabeleceram novas formas de
sociabilidade, possibilitadas pelo alargamento de horizontes de vida e de
novas convivências, por meio das quais “a sociedade é l iteralmente
reinventada” (MARTINS, 2000:47), rompendo, assim, com o
enraizamento do autoritarismo social.
2.8 - A realização de um sonho: a reforma agrária na
Nova Santo Inácio Ranchinho
99
Como vimos, a ocupação da fazenda Santo Inácio Ranchinho pelos
trabalhadores sem-terra não era uma luta encerrada. Os acampados
apropriaram-se do espaço disputado com os antigos proprietários do
latifúndio, mas somente com a decisão da Justiça Federal a respeito da
desapropriação do imóvel para fins de reforma agrária é que seriam
portadores da vitória que os faria legítimos beneficiários da terra.
Naquele momento, fazia-se necessário que os trabalhadores se
submetessem ao mecanismo jurídico-legal, a única forma existente para
efetivação do processo de desapropriação e, conseqüentemente, do
projeto de assentamento para f ins de reforma agrária.
As ações contestatórias de desapropriação do imóvel improdutivo,
impetradas pelos proprietários expropriados, foram bem sucedidas, já
que, dentro dos marcos constitucionais que vigoravam na época, foi
possível uma interminável t ramitação burocrática dos processos
desapropriatórios nos tr ibunais. Foi somente com a instituição da Lei
Agrária, de 25 de fevereiro de 1993, que dispunha sobre a
regulamentação dos dispositivos const itucionais relativos à reforma
agrária, que se criaram mecanismos para efetivar as ações
desapropriatórias, perante o juízo federal competente, como indica
ABRAMOVAY (1992-b). Portanto, sem o estabelecimento de critérios
explícitos que definissem os índices de produtividade para cumprir a
função social da propriedade, as desapropriações para fins de reforma
agrária não ofereceriam condições jurídicas para que fossem
viabilizadas.
Os obstáculos que os trabalhadores enfrentavam para apropriação
definitiva do latifúndio improdutivo eram jurídicos. Por isso,
aguardavam a decisão do Supremo Tribunal de Justiça, que julgaria o
processo de desapropriação da fazenda Santo Inácio Ranchinho. Uma
comissão de trabalhadores viajava, freqüentemente, para Brasília para
100
verificar a si tuação do processo judicial de contestação da
desapropriação e as ações de defesa do INCRA para a efetivação da
desapropriação, mantendo-se bem informada sobre o andamento do
processo.
A vitória dos trabalhadores concretizou-se no dia 05 de outubro de
1993, quando a liminar favorável aos antigos proprietários foi derrubada,
efetivando-se, assim, a desapropriação dos 3.890 ha da Santo Inácio
Ranchinho. Fundamentando-se na Lei Agrária, os juizes do Supremo
Tribunal Federal votaram favoravelmente aos interesses dos
trabalhadores, ficando estabelecido, juridicamente, o direito do acesso à
terra. O único entrave existente para o assentamento definit ivo das 107
famílias na terra, efetivamente desapropriada, era a formulação do
Projeto de Assentamento, que garantiria recursos f inanceiros para
aquisição de equipamentos, sementes, adubos, defensivos agrícolas, além
do crédito-alimentação. Os trabalhadores, mais uma vez, organizaram
diferentes formas de pressão e negociação junto ao INCRA para serem
incluídos na programação orçamentária desse órgão, garantindo, assim,
os recursos financeiros para o custeio agrícola.
No dia 11 de março de 1994, já organizados formalmente na
Associação Nova Santo Inácio Ranchinho, os trabalhadores
encaminharam um documento ao Superintendente do INCRA - MG,
contendo a pauta de reivindicações por eles formulada:
“Após cinco anos de muita lu ta, fome e mi sér ia, problemas que não foram totalmente superados, nos dirig imos a essa Superintendência, não mais como ‘sem-te rras’ e sim como produtores rurais para re latarmos as dec isões tomadas por todos assentados e apresentarmos uma pauta de re ivindicações que, se atendida, poss ibi l i tará o avanço de nossa organização e de nossa produção.
Na madrugada do dia 19 de maio de 1993, saímos da Br 497, em I turama, e entramos na Fazenda Santo Inácio-Ranchinho, em Campo Florido, para nunca mais sairmos. Fel izmente já es tamos com a imissão de posse e t í t ulo em nome da União.
Neste momento nos encontramos organizados em agrovi la e a nossa produção será toda colet iva, apesar da i rr i sória ajuda que recebemos do INCRA.
101
Com a ajuda de várias entidades e da população da região, já possuímos dois t ratores e implementos, vacas , cavalos, fe rramentas , barracos cobertos com telha, e tc . e , depois de mui ta lu ta, a Pre fei tura local es tá construindo uma escola no assentamento, es tando, desde já, garant ido o ano le t ivo das crianças, com aulas sendo minis t radas em salas improvisadas.
Fundamos a Associação, baseada na organização que construímos nos t rês anos e meio em que v ivemos às margens da rodovia . Ela é composta pe la Assemblé ia Geral , os grupos de base, que são oito, a Comissão Central (coordenação colegiada) e as comissões espec í f icas: saúde , educação, meio-ambiente , f inanças, espor te e lazer , etc . Nossa Associação não possui presidente, ex iste a f igura do Animador Geral , só para efei to jur ídico, sendo que a Comissão Central re sponde pelo assentamento.
( . . . )
Diante do expos to, apresentamos a esta Super intendênc ia do INCRA, a seguinte pauta:
01) Liberação imediata de crédito al imentação, por um período mínimo de 06 meses , tendo em v ista que, em função do irr isório crédi to fornec ido pe lo INCRA até então, a produção não se rá suf ic iente para a sobrev ivência das famíl ias a té a próx ima safra;
02) Assis tênc ia médica-odontológica, urgentemente , no assentamento, bem como a doação de medicamentos e a construção imediata de um posto de saúde;
03) Liberação imediata do PROCERA, na forma de custe io e invest imento;
04) Viabi l i zação através de outros órgãos do governo, se necessár io da aquisição de máquinas, implementos agrícolas e fe rramentas;
05) Viabi l i zação da compra de bovinos le i te i ros e eqüinos para tração e locomoção;
06) Viabi l i zação da compra de sementes e outros insumos;
07) Liberação imediata do crédito moradia;
08) Viabi l i zação da construção de uma creche no assentamento;
09) Implantação de um centro de lazer, com quadras de e spor te, campo de fu tebol , parque infanti l , p isc inas, etc . ;
10) Ele tr i f icação rural , imediata, em todo o assentamento;
11) Viabi l i zação da implantação de um t ele fone público.
Sendo o que se apresenta para o momento, despedímo-nos, sol ic i tando o atendimento imediato de nossas re iv indicações." (TRABALHADORES RURAIS ASSENTADOS NA FAZENDA SANTO INÁCIO-RANCHINHO, 1994) .
O trecho do documento acima transcrito constitui um discurso
representativo dos trabalhadores sobre a trajetória de luta por eles
experimentada, desde a época em que viviam acampados nas margens da
BR 497, demonstrando que, no fazer de suas lutas, foram dando passos
102
para expressar suas vontades e realizar suas escolhas. E, assim,
verificamos que, na organização da ação política e da construção de
práticas sociais para a conquista da terra, os trabalhadores foram
construindo uma identidade coletiva, impondo para o espaço público o
reconhecimento de sua cidadania (GRZYBOWSKI, 1991 e MEDEIROS,
1989). Ao indicarem que conquistaram o latifúndio improdutivo, com a
imissão de posse e o título da terra em nome da União, afirmaram sua
identidade, não mais como sem-terra, mas como produtores rurais. Como
diz ARENDT (1983), é pela ação e pelo discurso que os indivíduos
mostram quem são e revelam suas identidades. Pelo fazer de suas ações e
pelo discurso, é que esses trabalhadores, homens e mulheres, idosos,
jovens e crianças, foram construindo uma história coletiva.
Dessa maneira, foi no processo de constituição de práticas
conjuntas que a identidade coletiva, construída e fortalecida ao longo
desses quatro anos, mostrou a sua força social e política. Nesse sentido,
os t rabalhadores afirmaram sua autonomia frente ao Estado, fazendo-o
reconhecer suas reivindicações concretas: o direito à produção, à
moradia, à assistência médico-odontológica, à creche, à rede elétrica e
de telefonia, ao lazer e a um meio ambiente sustentável. Foi pela sua
autodeterminação, no processo luta e conquista da terra e da afirmação
de suas reivindicações, que transformaram suas necessidades e carências
em direitos, redefinindo o espaço da cidadania (DURHAM, 1984-a).
Naturalmente, nesse processo, o papel desempenhado pelas instituições
mediadoras foi relevante. As ações e os discursos do movimento
sindical, bem como da Igreja, representada pela CPT/APR, estiveram
presentes no movimento de luta pela terra, contribuindo para a sua
vi talidade.
Entretanto é a experiência comum dos trabalhadores, construída e
partilhada ao longo dos anos, que se configura como constituição da
cidadania. Ao fazer valer seus interesses, esses trabalhadores agruparam-
se, aliaram-se a diversos segmentos da sociedade civil , enfrentaram o
103
Estado e seus opositores, “forjando-se a si mesmos como sujeitos
coletivos, com identidade sociocultural própria e formas específicas de
organização e partic ipação” (GRZYBOWSKI, 1991:14). Foi no fazer de
suas práticas sociais que reinterpretaram a realidade instituída,
imprimindo a ela novas significações, gestando, assim, uma nova ética
que rompeu com o autori tarismo social, tão enraizado na sociedade
brasileira (DAGNINO, 1994).
O sonho da reforma agrária na fazenda Santo Inácio Ranchinho
realizou-se em 26 de maio de 1994, quando o INCRA criou, naquele
espaço o Projeto de Assentamento, que passou a ser denominado como
fazenda Nova Santo Inácio Ranchinho. O conjunto de práticas sociais e
políticas estabelecido pelo movimento de luta pela terra transformou o
cenário em que os trabalhadores travaram suas lutas. O tipo de progresso
e de espaço rural aí concebido foi questionado por esse sujeito coletivo,
que passou a lutar por direitos de cidadania.
Portanto, o espaço conquistado pelos trabalhadores foi
reconfigurado e t ransformado em território, escolhido para nele
constituírem novas maneiras de produzir, novas formas de organização,
novas sociabil idades, enfim, um novo modo de vida, que serão abordados
no capítulo a seguir.
3 - NOVO TERRITÓRIO EM CONSTRUÇÃO
As experiências vivenciadas pelos trabalhadores e trabalhadoras
sem-terra, hoje assentados na fazenda Nova Santo Inácio Ranchinho, na
luta e conquista de 3.958 ha de terra, demonstraram que, por meio de
suas práticas sociais e ações políticas, eles construíram uma identidade
coletiva que impôs para o espaço público o reconhecimento de sua
cidadania (GRZYBOWSKI, 1991 e MEDEIROS, 1989), como vimos no
capítulo anterior. Ao conquistarem a terra, procuraram reconfigurá-la,
dividindo o latifúndio em pequenas parcelas, transformando-o em
território32, um espaço no qual constituíram novas formas de
organização, novas maneiras de produzir , novas sociabil idades, um novo
modo de vida. Neste capítulo, abordaremos a experiência dos
trabalhadores assentados na Nova Santo Inácio Ranchinho com relação
ao parcelamento e à configuração de um novo território, procurando
refletir sobre o modelo organizativo estabelecido por eles na
estruturação do processo produtivo, as novas práticas de sociabilidade,
bem como as relações de poder introduzidas no interior do assentamento;
a organização produtiva e a inserção no mercado de produção, além das
perspectivas de vida desses trabalhadores diante da realidade que
vivenciam no mundo das relações econômicas.
32Identif icamo-nos com a perspec tiva de CORRÊA (1996) na conceituação de ter r i tór io, entendido como espaço revest ido de dimensão pol í t ica , afe t iva ou ambas: de um lado pode s igni f icar apropr iação mate ri al do espaço, associada ao controle efet ivo, à s vezes, legi t imado por par te de inst i tu ições ou grupos; por out ro, a apropr iação “pode assumir um dimensão afe t iva , derivada de práticas e spec ial i zadas por par tes de grupos di s t in tos def inidos” (CORRÊA, 1996:251) . A apropr iação afet iva pode est ar também associada às ident idades de grupos .
105
3.1 - O parcelamento da terra e a configuração
de um novo território
A divisão da fazenda Nova Santo Inácio Ranchinho em pequenos
lotes evidenciou alguns aspectos importantes. Enquanto estiveram
acampados por um ano dentro da fazenda, os trabalhadores já haviam
discutido as formas de apropriação daquele espaço, quando planejaram a
delimitação do seu território. Recuperando as experiências vividas no
acampamento, nas quais as famílias se organizavam por grupos de
parentesco ou afinidade, os trabalhadores participaram de todo o
processo de deliberação do parcelamento da terra, que se estruturou
mediante os seguintes critérios:
- a delimitação da área de reserva legal foi consti tuída como
uma reserva coletiva, subdividida em dez áreas de vegetação do
cerrado;
- após a demarcação da área desapropriada, a divisão dos lotes
foi realizada mediante o sorteio em duas etapas: num primeiro
momento, o assentamento foi dividido em oito áreas, tendo s ido
sorteada uma área para cada grupo de parentesco ou afinidade;
no momento seguinte, cada grupo realizou novo sorteio, que
definiu a localização de cada lote;
- seriam assentadas as 107 famílias, que, efetivamente,
participaram de todo o processo de luta para a conquista da
terra, selecionadas pela própria comunidade, que se encontrava
acampada na fazenda.
A proposta autônoma de parcelamento apresentada pelos
trabalhadores foi parcialmente respeitada pelo INCRA, que dividiu a
106
fazenda em 115 lotes (ver FIGURA 9), incluindo mais oito famílias além
daquelas selecionadas. A execução oficial de tal proposta significaria
uma ruptura, ainda que parcial, com a atuação do INCRA, que realizava a
demarcação das parcelas e a seleção dos beneficiários do projeto de
assentamento sem a participação efetiva dos trabalhadores no processo
decisório do parcelamento, especialmente, no estabelecimento de
critérios para sorteio e demarcação dos lotes.
Por sua vez, o INCRA foi criticado por um dos assentados, que
rememora a irresponsabilidade dessa instituição no mapeamento das
glebas da Nova Santo Inácio Ranchinho. Eis o seu depoimento:
"O parcelamento fo i fe i to dum jei to mui to. . . sem cr i tér io! De uma forma, assim, irresponsável pelo INCRA! O INCRA, através de uma foto saté l i te muito antiga. . . nem atualizou a foto saté l i te . . . f ez a cartografia , né? Mapeou, desenhou o assentamento, com um erro drást ico! Aquela fo to saté l i te mos trava bre jo, onde hoje não é bre jo mais! Área de reserva tava totalmente degradada e. . . área onde tava degradada t inha se tornado reserva, já t inha re f lorestado, regenerado! E o INCRA foi assim. . . um tanto quanto displ icente com a di fe renciação das glebas: área mui to pequena, área muito grande! Nós defendíamos que áreas com menas produtividade , ou com mais d i f iculdade de manejo fosse uma gleba maior ( . . . ) Mas o INCRA não considerou isso ( . . . ) Porque acabou prevalecendo lo te minúsculo com te rra ac identada, de 19 ha e, lote com água, com qualidade das terra mais razoável , com 34 ha." (Barroso) .
A forma como o INCRA mapeou o assentamento foi aprovada em
assembléia pelos parceleiros, que, de acordo com o depoimento de
Barroso, estavam ansiosos para realizar a demarcação das glebas, e a
proposta apresentada pelo INCRA solucionava suas necessidades mais
imediatas de sobrevivência, bem como de acesso ao crédito para custeio
agrícola. Uma outra proposta de parcelamento foi apresentada por um
grupo de trabalhadores, o que envolveria uma ruptura com a atuação do
INCRA e o estabelecimento de convênio com a Universidade Federal de
Uberlândia para real ização de análise do solo e demarcação das parcelas.
No entanto tal proposta foi reprovada pelo conjunto de trabalhadores,
visto que demandaria de três a quatro meses para conclusão dos
trabalhos.
107
108
A demarcação das áreas de reserva coletiva, totalizando cerca de
706 ha, averbadas em cartório, foi uma conquis ta dos trabalhadores, que
tiveram oportunidade de formar lavouras e pastagens em seus lotes, sem
terem de dispor 20% de área para reserva legal. Como muitos lotes foram
completamente desmatados pelos carvoeiros, que exploravam a fazenda
quando ela estava em litígio, os parceleiros reservaram as áreas de
vegetação do cerrado (áreas de mata e de pastagens artif iciais, com o
cerrado em regeneração) como áreas de preservação permanente,
utilizando-as como fonte de recursos naturais como madeira e caça.
As áreas de reserva coletiva constituem domínios de caráter
comunal , ou seja, áreas que não pertencem individualmente a nenhum
grupo familiar, sendo vi tais para a sobrevivência de unidades familiares,
tornando-se, para os camponeses, lugares para a retirada de lenha para
combustível, madeiras para construção, além de coleta de plantas
medicinais (ALMEIDA, 1988). O uso das áreas de reserva coletiva tem
suscitado impasses entre os assentados: para alguns, elas representam a
sustentabil idade ecológica, devendo ser área de preservação permanente,
enquanto que, para outros, elas são fonte de recursos naturais, que,
utilizadas ocasionalmente, não causam sérios impactos ambientais para o
assentamento. O assentamento dispõe, também, de abundantes recursos
hídricos, existindo 15 nascentes, que formam 4 veredas, com presença de
buri tis característ icos da vegetação do cerrado, const ituindo-se área de
preservação (ver FIGURA 10).
O processo de parcelamento da terra, segundo critérios de
consolidação dos grupos de afinidade, já organizados na fase de
acampamento, foi uma experiência inédita, possibilitando uma
estruturação grupal próxima do que CANDIDO (1971:62) denomina de
uma sociabilidade caipira, que consiste em um “(. . .) agrupamento de
algumas ou muitas famílias, mais ou menos vinculadas por um
sentimento de localidade, pela convivência, pelas práticas de auxílio
mútuo e pelas atividades lúdico-religiosas”. A consolidação dos grupos
109
de afinidade, ligados entre si por relações de contigüidade, ancorada
numa identidade terr itorial e apoiada no sentimento de pertencer a uma
localidade, é considerada pelos entrevistados como uma experiência
positiva de organização interna no assentamento. Na avaliação de Frei
Rodrigo, o novo modelo de organização em grupos de afinidade, que
vigorou na Nova Santo Inácio Ranchinho,
" ( . . . ) fo i nada mai s, nada menos, do que a gente inst i tuc ionalizar o que já se v ivia no acampamento." (Fre i Rodrigo).
FIGURA 10 - Conservação de área de veredas na Nova Santo
Inác io Rachinho, 1999. Fonte : Seminár io Interno INCRA/MG, 1999.
Zé Maria avalia que a consolidação desses grupos no assentamento
possibilitou a maior proximidade entre os trabalhadores:
"Essa proximidade , e ssa af in idade foi construída na época do acampamento. Porque, incrusive , pra eu tá per to do meu sogro, perto do meu cunhado, perto da minha vó. . . I sso dependeu duma discussão em grupo, duma discussão em assembréia. . . que o assentamento dev ia sê d ividido em grupo. E ex ist i a os individuais , na época, que quer ia que o assentamento fosse espalhado! Aonde que o fu lano saiu, é lá o lo te dele . Não tem af inidade, não tem nada. Nós levamo isso em assembréia , aí 75% das pessoa dec idiram que . . . t inha que respei tá as af inidade , sê em grupo, v i zinhança. . . Incrusive, is so re f lete até lá fora! Porque as pessoas que vem no assentamento. . . as pessoa comenta que, essa par te de cá do assentamento, o povo é mais humilde , o povo é mais amigo, o povo é mais d ic iprinado, o povo tem mais sol idar iedade . . ." (Zé Mar ia) .
110
O relato de Zé Maria revela-nos que a apropriação do espaço
conquistado pelos trabalhadores não se constitui como uma realidade
estática, reif icada, que se apresenta apenas como espaço físico-
geográfico para nele viverem. Ele é transformado em território,
escolhido como um lugar, onde o sentimento de pertencimento a uma
localidade é valorizado por seus moradores, que mantêm um intercâmbio
entre si, constituindo-se como grupo sustentado por um conjunto de
valores tidos como identitários, que serve para diferenciá-lo com os de
“fora” (CARNEIRO, 1999). Essa base territorial, sustentada no
pertencimento a uma localidade, é o que CANDIDO (1971:65) denomina
uma naçãozinha, entendida como “uma porção de terra a que os
moradores têm consciência de pertencer, formando uma unidade
diferente da outra”
Foi sobre esse espaço, transformado em território, que os
trabalhadores imprimiram uma nova configuração, estabelecendo aí
maneiras próprias de produzir, de organizar, de estabelecer
sociabilidades, constituindo novas territorialidades33, enfim, um novo
modo de vida.
Dessa maneira, ao reconfigurarem o espaço conquistado, os
trabalhadores da Nova Santo Inácio Ranchinho transformaram o
latifúndio improdutivo em unidades de produção familiar, promovendo,
assim, um reordenamento terr itorial. Tal reordenamento foi determinado
pelas ações desencadeadas pelos trabalhadores assentados, que já se
encontravam organizados na Associação Nova Santo Inácio Ranchinho,
criada ainda na fase de acampamento.
33Para a concei tuação de te r r i tor ia l idades e novas ter r i tor ia l idades, recor remos a CORRÊA (1996) . Para esse autor , a te r ri t or ial idade “refere-se ao conjunto de prát icas e suas expressões materiai s e s imból icas que capazes de garant irem a apropriação e a permanência de um dado terri tório por um determinado agente soc ial” (CORRÊA, 1996:252) . Já as novas ter r i tor ia l idades dizem respeito à c r iação de novos ter r i tór ios , r econs truindo, parcialmente , em out ros lugares . um terr i tór io novo, que contém a lgumas carac ter í st icas do ve lho.
111
O modelo de organização implementado pelos trabalhadores, como
vimos anteriormente, foi aquele vivenciado no acampamento nas margens
da rodovia, estruturado, inicialmente, de forma horizontalizada, com
direção colegiada, composta pelos coordenadores dos grupos de
afinidade, que formavam a Comissão Central. Inicialmente, o cargo de
animador geral e, posteriormente, os de presidente, secretário, entre
outros, existiam apenas para garantir a representação jurídica da
Associação. Essa nova forma de organização garantia, de acordo com
alguns dos entrevistados, a participação democrática dos assentados no
processo de tomada de decisões da vida do assentamento34. Sobre essa
nova forma de organização, Barroso relata:
"A direção colegiada ela é representada, representat iva ( . . . ) O poder máximo da Associação é a Assemblé ia! Todos os pontos são debatidos, de l iberados. A Assemblé ia, e la é soberana! Então, é um colegiado porque não ex is te uma pessoa com mais re sponsabi l idade que a out ra, que nem um pres idente, um secretário, um tesoure iro! Na direção colegiada, todos assumem a responsabi l idade! Todos! E quando faz sua tarefa, não tem que se r sempre a mesma pessoa, que é a caracter ís t i ca do presidenciali smo ( . . . ) Qualquer pessoa pode representar o assentamento, junto ao INCRA, junto a outras entidades , junto a uma at ividade qualquer. . . Então, a Assembléia de lega as pessoas. . . Então, i sso é ser colegiado." (Barroso) .
Foi o reconhecimento desse modelo de organização, por parte dos
assentados, que garantiu a representação política da Associação Nova
Santo Inácio Ranchinho, como instrumento de ordenação e controle do
novo território. Tal entidade teve uma participação efetiva, tanto no
processo de ocupação do assentamento, como na sua reconfiguração
espacial, buscando a estruturação, tanto de suas bases produtivas, como
de toda infra-estrutura local.
Como o elemento-chave da organização da Associação foi a
formação de grupos de afinidade / produção, seu papel não se restringiu
somente a questões reivindicatórias, mas, fundamentalmente, influiu na
34A aval iação da forma de organização no assentamento não es tá isenta de contradições, passando por re lações de confl i to nas mediações e disputas pelo poder pol í t ico no in ter ior do assentamento, como será vis to mais adiante .
112
construção da proposta de organização do processo produtivo baseado na
utopia da produção coletiva e das experiências associativas.
A discussão estabelecida entre os mediadores externos (APR, CUT,
Igrejas, entidades sindicais) e os trabalhadores assentados sobre as
formas de organização produtiva não forjou nenhum modelo organizativo
para a produção. Cada grupo de afinidade pôde optar por formas
coletivas ou individuais de exploração da terra. Frei Rodrigo rememora a
estrutura organizacional de produção no assentamento:
"No assentamento de Campo Florido, nós (refere-se ao grupo de assessores da Animação Pas toral no Meio Rural / APR) de liberadamente, discut indo também com l ideranças dos trabalhadores de lá. . . . Nós optamos para que a forma de organização dos grupos fosse de acordo, também, com a possibi l idade da forma de v ida que eu quero levar , ou seja, quem quis colet ivo pôde, quem quis individual, também pôde." (Frei Rodrigo) .
Assim, na configuração de um modo de vida, os grupos de
produção tiveram a oportunidade de definir, autonomamente, os padrões
de processos produtivos.
Os trabalhadores experimentaram a organização coletiva de
produção, entretanto tais experiências não vigoraram no assentamento.
Ao analisarem as condições de produção coletiva, os t rabalhadores
avaliam seus aspectos negativos:
"A produção cole t iva não deu certo, não. Tinha veiz que, vamo supô: eu quer ia que o trabalho. . . o outro não queria. Eu achava que , na moda d’outro, amanhã t inha que t rabalhá. . . o outro achava que não prec isava t rabalhá. E quando for na hora de div idir o produto, nóis vamo dividir em par tes iguais! Por causa disso aí , eu tô dançano! Então, por esse mot ivo, os grupo teve todo mundo rachado. Ninguém quis cont inuá mais no cole t ivo, dessa forma. . . Foi só no primero ano que funcionô o cole t ivo. Eu acho que o cole t ivo , conforme a. . . é pra ocupação de terra, é pra alguma tensão. . . f e i to, vamo supô. . . a ocupação de terra. . . é a greve! Várias at iv idade o colet ivo funciona, mais , do contrár io, não funciona! ( . . . ) Então, a cooperat iva. . . a cooperativa funciona. . . pruque na cooperat iva eu vô recebê de acordo com a minha produção!" (Zé Pre tinho) .
"A produção já foi experimentada de tudo quanto é t ipo: t anto no cole t ivo , quanto no individual, semi-colet ivo, né? Houve uma época que o pessoal do grupo 6, grupo 8 , fazia tudo no cole t ivo. Tudo era cole t ivo ( . . . ) e que. . . a prática demons trou que não dava certo
113
daque la forma, não deu certo! Porque , na realidade, o que aconteceu foi o seguinte: dentro do cole t ivo . . . vamo supô, uma gal inha que eles t inha, era do cole t ivo. Se alguém quise sse matá aque la gal inha t inha que fazê uma discussão do grupo. Então, na realidade e les passava mais tempo reunido do que t rabalhano! ( . . . ) Is so levou o pessoal daquele grupo. . . não se i se concordam com essa idé ia, mas é o que todo mundo que tava por fora vê , que o pessoal daquele grupo produzia menos que as outras pessoas ( . . . ) Uma das coisa que é colet ivo aqui, hoje, e tem dado certo é a venda do le i te . Quer dizer , a produção do le i te não é colet iva, a venda é, porque a gente vende a granel ." (Edivaldo).
O que tais depoimentos revelam é que as expectativas dos
parceleiros da Nova Santo Inácio Ranchinho, com relação ao modelo
produtivo, fundamenta-se na produção individual, o que lhes garante uma
certa autonomia no controle da organização do trabalho, buscando
efetivar um projeto de organização semi-coletiva, em que a
comercialização do produto se dá coletivamente, enquanto o espaço
produtivo permanece individual.
Essas observações estão de acordo com a literatura sobre a
formação dos assentamentos no Brasil (ABRAMOVAY, 1994-b;
FERRANTE, 1994; MEDEIROS, 1994) ao indicar que, se na fase de luta
pela terra é possível falar na prioridade de uma identidade construída
nesse processo35, não se pode dizer que, uma vez obtido o acesso à terra,
haja disposição dos assentados em “estruturar-se coletivamente para a
organização social da produção” (FERRANTE, 1994:137), mesmo
porque a organização coletiva da produção parece ser uma utopia das
instituições mediadoras do processo de luta pela terra e não resultado da
vontade dos trabalhadores.
Há que se considerar ainda que os grupos de agricultores dos
assentamentos estabelecem um novo reordenamento espacial,
fundamentado na estrutura produtiva da agricultura familiar, cuja
característica genérica é a combinação da propriedade dos meios de
produção com o trabalho familiar no estabelecimento rural, mas que não
35Esse processo de cons t rução da ident idade cole t iva acaba sendo reforçado no acampamento, por força do convívio e dos enfrentamentos vivenciados em conjunto com estranhos (MARTINS, 2000) .
114
produz uma ruptura com a tradição camponesa (WANDERLEY, 1999).
Estudos sobre as realidades e perspectivas da agricultura familiar
(ABRAMOVAY, 1992-a; WANDERLEY, 1999)36 demonstram que o
agricultor familiar moderno incorpora traços específicos do campesinato:
uma autonomia relativa frente à sociedade global, uma racionalidade
econômica relativamente autônoma, além de uma sociabilidade voltada
para laços comunitários locais. Para agricultores familiares, a terra
representa, sobretudo, um modo de vida de relativa autonomia social, por
isso, suas expectativas de organização produtiva fundamentam-se, como
mostra FERRANTE (1994), na busca de trabalhar a terra em termos
individuais, representando, assim, uma situação de maior
independência37.
A opção pela forma de organização individual no processo
produtivo não signif ica uma rejeição por práticas associativas. Em seus
depoimentos, os t rabalhadores relatam experiências de compra de
insumos em conjunto, uso comunitário de quatro tratores pertencentes à
Associação, comercialização da produção de leite em comum, através do
posto de resfriamento , além das expectativas de criação de cooperativas.
O projeto de formação de cooperativas é apontado como forma de
36Tais es tudos rompem com o paradigma marxi sta sobre os camponeses, que cons truiu a imagem do campesina to como cla sse deposi tár ia de um t radic ional ismo conservador , que e sta ria fadada ao desaparec imento na soc iedade capi tal i s ta contemporâneo. Nesse sentido, ABRAMOVAY (1992-a :54) expõe que “é possível local i zar no camponês e lementos de permanência, de cont inuidade, de unidade, de um modo de ser que ex ige e merece das ciências soc iais uma caracterização própria, que não se apoie apenas em suas di fe renças com re lação a outras categorias soc iais .” 37Contudo a re la t iva autonomia soc ia l , t íp ica do campesina to, não s igni f ica a ges tação de uma forma soc ial pura, com carac ter í s t ica ant i-capi ta l i sta . Como indica MUSUMECI (1988) , os camponeses, mesmo vivendo em um grupo soc ial com tra je tór ias homogêneas, não pensam, nem agem de mane ira idênt ica quando se referem à ter ra . “Por vezes , como veremos, suas formulações sugerem uma ideologia comuni tária e uma concepção não mercant i l da terra; outras ve zes parecem expressar uma v isão radicalmente individualis ta, ut i l i taris ta, pequeno burguesa; outras, ainda, ressaltam elementos bem pouco aprovei táveis , quer pe los ideólogos do ‘capi tal ismo utópico’ , quer pe los part idár ios do ‘ soc ial i smo utópico camponês’- elementos do que poderíamos denominar de uma ‘ant iutopia autor i tária’: a terra (nem tão) l iber ta como l ocus da patronagem personalizada, da exploração comercial , da arbi trariedade e da v iolência.” (MUSUMECI, 1988:53).
115
fortalecer o processo produtivo no assentamento. Contudo o que se
observa é que o cooperativismo permanece no plano da utopia, como um
sonho ainda não realizado no interior do assentamento38.
Se, por um lado, a identidade coletiva consolidada no processo de
conquista da terra é fragmentada, quando os trabalhadores decidem por
formas de organização diferenciadas do processo produtivo, por outro,
ela se fortalece em termos de conquista de uma infra-estrutura social.
Os parceleiros da Nova Santo Inácio Ranchinho tiveram acesso ao
crédito-habitação do Programa de Crédito Especial para Reforma Agrária
- PROCERA - para a construção de suas moradias. As condições de
habitabilidade são variadas, havendo desde casas grandes de alvenaria,
até mesmo casas de taipa. Algumas casas apresentam boas condições
sanitárias, tendo banheiros e rede de esgoto, enquanto outras possuem
fossas no quintal.
O abastecimento de água no assentamento é realizado mediante
sistema de captação de água do Córrego das Candinhas e de uma
nascente próxima à sede da fazenda, além da perfuração de um poço
artesiano, tendo sido aplicados recursos do PROCERA. De acordo com o
Diagnóstico Rápido Participativo Emancipador (BRASIL, 1998),
realizado pelo INCRA, apenas sete famílias não são beneficiadas com
sistema de abastecimento de água.
Com relação à eletrificação rural, os trabalhadores conquistaram o
direito à energia elétrica em 1995, mediante as ações desencadeadas pela
sua Associação junto ao INCRA, sendo que todas as parcelas e áreas
comunitárias - escolas, casa de farinha, tanque de expansão de leite -
38De acordo com os depoimentos dos entrevis tados , a formação de uma coope ra t iva no assentamento não se r ea l izou por d if iculdades quanto à burocracia na sua formal ização.
116
estão eletrificadas. A eletrif icação foi executada com recursos do
PROCERA39.
O assentamento também é servido por um telefone público,
instalado na Escola Municipal Santa Terezinha, além do telefone
adquirido pela Escola Família Agrícola 19 de Maio, conectado à rede de
Internet.
Existem no local cerca de 40 km de estradas construídas que dão
acesso a todas as glebas, facilitando, assim, o escoamento da produção.
As estradas estão em bom estado de conservação, sendo que alguns lotes
possuem acesso precário até à estrada principal. A construção de estradas
vicinais e recuperação da estrada já existente foi uma das primeiras
reivindicações feitas junto ao INCRA, como forma de facilitar o acesso
dos parceleiros à infra-estrutura existente no assentamento. A execução
das obras de construção e recuperação das estradas foi de
responsabilidade do próprio INCRA, já que a atuação da Prefeitura
Municipal de Campo Florido no interior do assentamento foi considerada
ineficiente pelos assentados, havendo denúncias de omissão na
conservação de estradas.
Na área do assentamento, funcionam duas escolas: a Escola
Municipal Santa Terezinha e a Escola Família Agrícola 19 de Maio (ver
FIGURA 11). A primeira escola, mantida pela Prefeitura Municipal de
Campo Florido, conta com três salas de ensino infantil (pré-escola) e
fundamental, com turmas multisseriadas de 1ª a 4ª séries. Os alunos que
cursam da 4ª à 8ª série estudam na sede do município, sendo de
responsabilidade da Prefeitura o transporte desses alunos, do
assentamento até a escola.
39Os recursos aplicados para a execução da ele tr i f icação e do s i s tema de abastec imento de água no assentamento foram na ordem de R$ 257.194,00 e R$ 98.440,00, respect ivamente.
117
FIGURA 11 – Escola Munic ipal Santa Terezinha - assentamento
Nova Santo Inác io Ranchinho, 2000. Foto: Letíc ia de Cas tro Guimarães.
A Escola Família Agrícola - EFA - atende estudantes de ensino
médio. Trata-se de uma escola comunitária que se fundamenta na
pedagogia da alternância, um modelo de educação básica e profissional,
em que a escola e a família alternam-se na formação do adolescente para
a vida e para o trabalho agrícola, sendo apropriada à realidade do campo.
Essa proposta de ensino articula teoria e prática, alternando o ambiente
da escola com o das unidades familiares de produção, buscando envolver
as famílias no projeto educativo dos f ilhos. Sendo a EFA parte de um
movimento educacional de caráter internacional, ela é gerida no âmbito
local pela Associação Escola Família Agrícola 19 de Maio. Esta
Associação está ligada à Associação Mineira das Escolas Famílias
Agrícolas - AMEFA -, bem como à União Nacional das Escolas Famílias
Agrícolas do Brasil - UNEFAB -, constituída por 95 Associações.40 O
grupo dirigente da Associação objetiva contribuir, por meio do seu
projeto pedagógico, com o desenvolvimento sustentável do assentamento
e seu entorno, fundamentando-se na adaptação da cultura camponesa e no
40A UNEFAB es tá sediada no munic ípio de Anchieta , no Espír i to Santo. Os e stados onde as Escolas Famí lias estão instaladas são: Amazonas, Amapá, Pará , Rondônia, Tocant ins , Goiás , Mato Grosso do Sul , Espí r i to Santo, Minas Gerais , Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia , Maranhão P iauí e Sergipe . A sede in ternac ional das EFA’s é a Associação Internac iona l dos Movimentos Famil iares de Formação Rura l - AIMFR - sediada em Par is , França.
118
fortalecimento do associativismo e do cooperativismo. Tendo iniciado
suas atividades em 2001, com uma turma de 20 alunos na sede do
Assentamento, a Escola buscou parcerias com a comunidade local e com
a Secretaria de Educação de Minas Gerais para garantir sua manutenção,
pretendendo ampliar suas atividades para este ano.
As condições do atendimento à saúde no assentamento são
precárias. Não existe posto de saúde no local e os trabalhadores buscam
atendimento médico no posto de saúde de Campo Florido. De acordo com
o Diagnóstico Rápido Participativo Emancipador (BRASIL, 1998), um
veículo desloca-se três vezes por semana até o assentamento para
transportar os usuários do serviço público de saúde até o posto médico
local. O sistema de transportes apresenta deficiências, já que o
assentamento f ica sem transporte para casos extraordinários, além do
comprometimento no atendimento aos parceleiros da Nova Santo Inácio
Ranchinho, que não são atendidos, em razão do horário em que chegam
em Campo Florido41. Outro fator agravante para as condições de saúde no
assentamento é que não existe hospital em Campo Florido e, em caso de
emergência, as pessoas enfermas têm que se deslocar até Uberaba, 88 Km
distante do assentamento. Existe uma reivindicação antiga de construção
de uma unidade básica de saúde no local, entretanto o poder público
municipal não a viabilizou.
Em termos de equipamentos comunitários voltados para produção,
o assentamento conta com uma casa de farinha e um posto de
resfriamento de leite.
A casa de farinha foi construída pelo INCRA, como forma de
industrializar a mandioca, uma das principais culturas do assentamento,
muitas vezes, comercializada in natura para fábricas de farinha de
41O número de atendimentos no posto de saúde f ica l imi tado a uma quantidade de f ichas que são dis tr ibuídas por ordem de chegada. Normalmente , ocorre at raso no transpor te dos assentados , que não chegam no horár io de di s tr ibuição das f ichas, comprometendo seu a tendimento no Sis tema Único de Saúde .
119
municípios vizinhos. No entanto a casa de farinha foi subdimensionada
pelo INCRA, que construiu uma pequena unidade artesanal de produção,
não correspondendo ao volume da matéria-prima produzida pelos
trabalhadores. Interrogados sobre a sua utilização, os assentados
respondem:
"A fábr ica de farinha não func iona. Foi um e le fante branco porque o INCRA tem algumas de terminações, que é para contar nos números , na estat í s t ica, pra di zer que tem uma fábrica de farinha aqui e nunca fo i ut i l i zada, né?" (Barroso).
"Eles t inha vontade ( re fere- se ao INCRA), fazê uma casa de far inha, mai s eu acho num entendeu como era uma casa de farinha! Purque uma casa de farinha tem que ter es trutura, né? Ela é mui to pequena. O forno. . . é uma cois inha de nada. É uma porcariazinha de nada! Não dá pra fazê nada al i! " (seu Calu) .
Tais depoimentos revelam a ineficácia do poder público ao
implementar as condições mínimas necessárias para os sistemas de
produção no assentamento. Em 1998, o INCRA, mediante um convênio
estabelecido com o Banco Interamericano de Desenvolvimento - BID -,
realizou um diagnóstico participativo sobre as condições do sistema
produtivo, bem como da infra-estrutura social no assentamento,
objetivando estruturar as unidades familiares de produção, de forma a
sistematizar e acelerar o processo de consolidação e emancipação do
assentamento42. Após a realização do referido diagnóstico, a equipe
técnica do INCRA elaborou o Plano de Consolidação do Assentamento
Nova Santo Inácio Ranchinho (BRASIL, 1998), apresentando propostas
de atividades econômicas que possibilitassem “o desenvolvimento
sustentável das parcelas, assegurando a sua viabilidade econômica, com
melhor utilização dos recursos naturais disponíveis” (BRASIL,
1998:22), dentre elas, a ampliação da casa de farinha, o incremento da
bovinocultura de lei te, instalação de um posto de resf riamento do leite,
redimensionamento da produção agrícola, além da melhoria das estradas
42A consol idação do a ssentamento refere- se à fase em que se buscará a auto-sufic iência do assentamento, com a es truturação de suas bases produt ivas e consol idação da inf ra-es trutura loca l . Já a emancipação refere- se ao per íodo em que o assentamento tornar- se-á auto- suf ic iente e os parce le iros r ecebem o t í tulo de propr iedade da te r ra .
120
vicinais e construção do posto de saúde local. No entanto, tal plano não
foi implementado, trazendo um impacto negativo para as condições
socioeconômicas dos assentados.
Percebendo que o INCRA não implementaria os projetos
levantados pelos próprios trabalhadores, quando da realização do
Diagnóstico Rápido Participativo Emancipador (BRASIL, 1998), um
grupo de produtores de leite apresentou uma proposta de f inanciamento
de um posto de resfriamento de leite para uma empresa de laticínios. A
empresa f inanciou a instalação do posto e o grupo pagou o f inanciamento
com o próprio produto, comprometendo-se a comercializar coletivamente
para a fábrica de laticínios (ver FIGURA 12). Essa foi a primeira
experiência de organização semi-coletiva, como afirmamos
anteriormente, em que a comercialização se deu coletivamente, enquanto
o espaço produtivo permaneceu individual.
FIGURA 12 - Tanque de expansão de le i te - assentamento Nova
Santo Inác io Ranchinho, 2001. Foto: Letíc ia de Cas tro Guimarães.
A configuração terri torial construída no assentamento efetuou-se
por meio da luta dos trabalhadores na implementação de uma infra-
estrutura básica (saneamento básico, habitação, rede de energia, escola,
121
transporte), assim como de projetos de estruturação de bases produtivas,
garantindo um padrão de vida mínimo no local. As entrevistas
evidenciam que as condições estruturais das famílias melhoraram
substancialmente após a implantação do assentamento, seja em termos
objetivos, como acesso à moradia mais digna, alimentação garantida pela
produção de subsistência, acesso à educação dos f ilhos, seja em termos
subjetivos, referentes a um novo modo de vida.
Quando são interrogados a respeito das mudanças ocorridas em
suas vidas com a conquis ta da terra, os trabalhadores referem-se sempre
à oportunidade que tiveram de engendrar uma nova temporalidade, em
que administram, autonomamente, o seu próprio tempo, diferente da
situação vivenciada como trabalhadores bóias-frias, em que o tempo
representava para eles o sacrifício, o sofrimento e o controle disciplinar.
A esse respeito, Edivaldo relata:
"Então, eu acho que com a conquista da terra, a gente acaba conquistano uma série de direi tos . E alguns fundamentais, como é esse do e studo, da al imentação. . . É você ser dono do própr io nariz! Não preci sa perguntá pro patrão: - Oh, eu posso ir na c idade? Eu tô doente . . . Eu tenho que i r no médico, eu posso i r? Ser dono do s í t io e fa lar: - Hoje eu vou no médico. . . Hoje eu vô em Uberaba resolvê um problema part icular. . . Não tenho que dar sat i s fação ao patrão. Então i sso é uma conquista de dire i tos que a gente tá conseguino." (Edivaldo) .
Esse relato revela a importância dada a uma nova dimensão do
tempo, movido por um ideal de autonomia por parte dos trabalhadores do
campo, demonstrando, assim, o processo de resistência às condições
disciplinares a que foram submetidos quando eram bóias-frias. Essas
observações estão de acordo com as reflexões de FERRANTE (1994)
sobre as motivações que levaram os trabalhadores rurais bóias-frias a
lutar para viver na terra: “(. . .) a perspectiva de trabalhar com maior
liberdade, o viver melhor, o poder ter controle de seu tempo e o produto
de seu trabalho” (FERRANTE, 1994:138) .
Por sua vez, na configuração de um novo território, os
trabalhadores procuram construir um espaço de trabalho e de vida, e o
122
território é percebido como lugar de fartura, de autonomia, de liberdade
e, sobretudo, de produção e renda. Ao serem indagados sobre a
representação da terra conquistada, os trabalhadores respondem:
"Pra mim. . . essa terra. Como ela mudou minha vida, ela s igni f ica pra mim, hoje, a v ida! É mui to for te. . . Foi uma conquista mui to for te! Se eu quisé, hoje , se a famí l ia quisé , hoje, v ive r reunida. . . que é uma coi sa rara na sociedade. . . eu posso por minha famí l ia todinha nesse lo te aqui , que vai t odo mundo sobrev ivê dessa terra! É um signif icado mui to forte pra mim, signi f ica, pra mim isso! Signi f ica unidade , s igni f ica a v ida, enf im." (Lourival) .
Ter a terra, por s i só, não s ignif ica nada! Tem que te r condições de sobrev iver aqui dentro, né? Essa terra s igni f ica uma conquista mui to grande! A terra pra mim ela tem um signi f icado. . . além do sustento, a terra pra mim é um grande ens inamento! Ela me ensinou a ser mais jus to. . . a concordar que , realmente, é prec iso haver mais l ibe rdade no nosso meio, mais. . . just iça. . . Então essa terra foi uma v i tória mui to grande pra mim!" (Zé Maria) .
"Ela s igni f ica a l ibe rdade , condições de produzir . . . Acaba sendo is so aí: essa l iberdade to tal . Essa terra s igni f ica l iberdade!" (Edivaldo) .
"Essa terra, é o seguinte: o s igni f icado dessa terra pra mim. . . o que eu não t i nha antes , hoje eu tenho! Eu tenho umas vaquinha aqui, e eu não t inha! Eu tenho uma casa. . . a casa não é boa não mais . . . é melhor do que a que eu morava ne la. É , se eu não t ivesse essa terra aqui, eu não t inha e ssa casa. A conquista da. . . o conhecimento geral que eu tenho é atravéis da terra! Eu, pra dizê a verdade , tudo que eu tenho hoje, tudo que eu tenho foi um benef íc io da te rra. A terra que me deu i sso tudo! E eu lu te i pela terra! Mais atravé is da terra eu chegue i em tudo que eu queria! Então a te rra é importante nesse sent ido." (Zé Pre tinho) .
"A terra signif ica renda, poder, autonomia, l iberdade , meio de produção! Nós tamos na lu ta por um meio de produção, e tamos, de fa to, desenvolvendo e sse instrumento com sua potencial idade" (Barroso) .
Dessa maneira, é na construção de um novo território que os
assentados da Nova Santo Inácio Ranchinho buscam a auto-sustentação
das unidades familiares de produção, estabelecem relações de poder,
além de produzirem novos espaços de sociabilidade, como analisaremos
a seguir.
123
3.2 - Os novos espaços de sociabilidade
Como já vimos, a sociedade é reinventada nos assentamentos,
abrindo-se para espaços mais amplos de sociabilidade, mantendo, ao
mesmo tempo, as concepções que ordenam a vida social, provenientes do
familismo e da vizinhança rurais (MARTINS, 2000).
No assentamento Nova Santo Inácio Ranchinho, as formas de
sociabilidade, marcadas por relações de contigüidade, por laços
familiares e de parentesco, são alargadas pela convivência com outras
categorias sociais, desenvolvendo, assim, uma sociabilidade específica,
constituída por uma rede de relações sócio-políticas.
As novas experiências de relações sociais t razidas pelos
trabalhadores rurais produziram um grande impacto na entorno do
assentamento. Se, no momento em que chegaram à terra conquistada, as
relações que estabeleciam com o meio externo resumiam-se ao
envolvimento com uma rede de entidades que apoiava o movimento de
luta pela terra e com as instâncias de representação do Estado, quando se
deu o processo de assentamento, esses trabalhadores ampliaram suas
redes de relações sócio-políticas, relacionando-se com múltiplos atores.
Dentre estes, podemos citar: o INCRA, a Prefeitura Municipal de Campo
Florido, a EMATER como órgão de assistência técnica, a CUT, a APR, a
FETAEMG, o PT, as Igrejas Católica e Evangélicas, a Cáritas -
organização não-governamental, l igada à Igreja Católica e voltada para a
o apoio e assessoria às organizações dos trabalhadores - e o MLST -
Movimento de Libertação dos Sem Terra -, uma organização de
trabalhadores rurais e urbanos, consti tuída com a participação de
algumas lideranças do assentamento, tendo como principais bandeiras de
124
luta a reforma agrária e a construção de uma sociedade socialista43. Essas
redes de relações constituem-se como espaços de sociabilidade no
interior da Nova Santo Inácio Ranchinho, promovendo formas mais
participativas no processo de tomada de decisões da esfera pública,
rompendo, ainda que parcialmente, com práticas sociais t radicionais -
fundamentadas nas relações clientelistas e paternalistas, tão enraizadas
em nossa cultura política.
As novas práticas de sociabilidade estabelecidas no interior do
assentamento acabaram por introduzir ações políticas, por vezes
desconhecidas no âmbito do município, produzindo, assim, modificações
moleculares na cultura política local (LEITE, 2000). Exemplos dessas
alterações na cultura política local são a constituição do Conselho
Municipal de Desenvolvimento Rural de Campo Florido e da Associação
Escola Família Agrícola 19 de Maio. O Conselho Municipal de
Desenvolvimento Rural constituiu-se como a primeira experiência de
implementação de uma instância de gestão paritária - com a participação
de instituições governamentais e não-governamentais -, no
gerenciamento das políticas públicas de desenvolvimento rural em
Campo Florido, tendo a representação da Associação Nova Santo Inácio
Ranchinho na sua composição. Já a Associação Escola Família Agrícola
19 de Maio, que tem como missão contribuir com o desenvolvimento
sustentável no campo, mediante a educação da alternância, abre espaço
para outras representações do município na composição de sua diretoria,
garantindo a participação ativa dos seus membros no processo de decisão
da gestão da Escola.
43O MLST, hoje MLST de Luta (nova denominação, resultante de uma fragmentação no in ter ior do movimento) , teve uma par t ic ipação express iva de algumas l ideranças do assentamento na sua Coordenação. Sua atuação no âmbi to do assentamento não é hegemônica, sendo considerada por alguns de seus integrantes como referência ideológica nas discussões e encaminhamentos de ações cole t ivas , enquanto para out ros , a par t i cipação do MLST está l igada a questões relac ionadas a assuntos externos , mas de interesse pol í t ico para os a ssentados .
125
Desse modo, alguns dos trabalhadores da Nova Santo Inácio
Ranchinho tiveram oportunidade de disseminar suas práticas de
sociabilidade, ao participar da rede de movimentos sociais de luta pela
terra, contribuindo, por meio de suas experiências, com a viabilização de
novos assentamentos na região. Destaca-se, nesse contexto, a experiência
de formação do Movimento de Luta Pela Terra - MLT - no interior do
assentamento em 1996, posteriormente integrado ao MLST, cuja atuação
no Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba tem sido expressiva, especialmente
no que se refere ao movimento de territorialização dos sem-terra.
Além do mais, os moradores da Nova Santo Inácio Ranchinho
buscam a expansão da consciência social e dos termos de convivência da
comunidade local com a sociedade mais ampla. A procura de laços de
convivência se dá nos momentos de lazer: o futebol jogado por crianças
e jovens, e a realização de festas lúdico-religiosas no interior do
assentamento constituem outras formas de sociabilidade.
As festas lúdico-rel igiosas ocorriam por ocasião do dia 19 de
maio, data em que chegaram à terra conquis tada e escolhida pelos
trabalhadores como o dia do aniversário do assentamento. Esta data tem
um significado simbólico para os moradores da Nova Santo Inácio
Ranchinho, posto que simboliza a disposição que tiveram para disputar a
apropriação do latifúndio improdutivo. A função primordial das festas de
aniversário do assentamento era reforçar a memória das práticas e ações
coletivas de luta e conquista do terri tório onde plantaram os seus
projetos de uma vida mais digna. Em seus depoimentos, os trabalhadores
e trabalhadoras exprimem a importância das festas como fonte de resgate
da memória para a comunidade que vive no assentamento:
"Uma luta do jei to que nóis f i zemo não pode ser esquec ida! ( . . . ) Então, a gente tá sempre organizano essa at iv idade ( re fere- se às fe stas ce lebrativas) . I sso é muito bom pra tá re lembrano a luta, né?" (Mar ia) .
"A festa é um momento impor tante que ce lebra a v ida dessa comunidade, é um momento mui to forte com o entrosamento com outras comunidades, pessoas de outras comunidades. Ela tem o caráte r mais ce lebrat ivo, mais pol í t ico, mais no sentido de viver o
126
momento da luta! ( . . . ) Então tamos tentando recuperar a memória, no sentido de levar aquela comunidade a acreditar que só a luta pode t razer algum benef íc io, só a luta pode t razer alguma me lhora de vida." (Barroso) .
A festa comemorativa, realizada por ocasião do aniversário,
constituía-se como um momento de congraçamento entre a coletividade
do assentamento e outras comunidades com as quais mantinham relações
sociais. Como a festa assumia uma forma religiosa, fazia parte de sua
programação a celebração de uma missa marcada pela ótica da Teologia
da Libertação, cujo discurso apresentava-se nos cânticos, na leitura de
textos bíblicos e na homilia (ver ANEXO 1). É interessante observar que,
durante as celebração da missa, a passagem bíblica da parti lha da terra
entre as tribos judaicas44 era relacionada com a realidade vivenciada
pelos trabalhadores, quando conquistaram e realizaram o parcelamento
da terra (ver FIGURA 13). Como observa MICHELOTO (1991:125), o
Antigo Testamento é valorizado pela Teologia da Libertação como
símbolo da justiça agrária. No dizer desse autor:
FIGURA 13 - Missa de ce lebração do aniver sár io de sete anos do
assentamento Nova Santo Inácio Ranchinho, 2000. Foto: Letíc ia de Cas tro Guimarães.
“(. . . ) a part i lha da ant iga Palest ina entre as t r ibos judaicas é v i sta como uma verdadeira re forma agrár ia, a to exemplar que não tem apenas um s igni f icado mater ial , mas se inse re em todo um processo
44Refer ímo-nos à Par t i lha da Terra, Josué , Capítulo 18, Versículo 1 a 10, do Ant igo Testamento ( texto em ANEXO 2) .
127
cultural / re l ig ioso. A te rra é herança que se recebe de um pai espec ial , o próprio Deus, e sua posse , assim como seu cult ivo devem ser base propícia para o cul to à di vindade.”
A referência à passagem bíblica da partilha da terra corresponde ao
que a memória dos trabalhadores selecionou como símbolo religioso de
legit imação do processo de luta, conquista e parcelamento da terra onde
vivem e trabalham, reafirmando, assim, a identidade coletiva dos
moradores da Nova Santo Inácio Ranchinho.
Por seu turno, o caráter lúdico-religioso da festa, além da
expressão religiosa, constituiu-se, também, como forma de lazer e meio
de interação social, como nos sugere o trabalho de CAMARGO (1979). A
realização da Folia de Reis (ver FIGURA 14), uma festa popular em que
se comemora o nascimento de Cristo, e do baile, ao cair da noite, atraiu a
população de Campo Florido e de assentamentos da região, reforçando os
laços de sociabilidade da comunidade local com a sociedade mais ampla,
confirmando as afirmações de DURHAM (1984-b) a respeito das
atividades lúdico-rel igiosas nas comunidades rurais brasileiras. Além de
contribuir para o convívio social e para o fortalecimento da sol idariedade
local, a festa reforçava o sentimento de pertencimento à localidade,
consolidando, assim a identidade territorial no assentamento, por meio
da manutenção das tradições culturais camponesas.
A memória de uma história comum, vivenciada pela comunidade
local nos períodos das festas em que comemoravam o aniversário do
assentamento, serviu para mostrar a coesão que o grupo mantinha. Os
moradores da Nova Santo Inácio Ranchinho mantiveram essa memória
viva até a realização da festa de sétimo aniversário do assentamento,
ocorrida no dia 20 de maio de 2000. No ano de 2001, não realizaram
nenhuma forma de celebração da história por eles vivenciada, podendo
significar o desmembramento do grupo e o estilhaçamento da identidade
construída durante esses anos todos.
128
FIGURA 14 - Festa de Fol ia de Reis , real izada no aniver sár io do
assentamento Nova Santo Inácio Ranchinho, 2000. Foto: Letíc ia de Cas tro Guimarães.
3.3 - A organização interna no assentamento:
mediações e lutas de poder
A organização interna dos trabalhadores apresenta elementos
interessantes para a análise de práticas de disputa pelo poder exercido
nas relações internas e externas que foram sendo construídas no interior
do assentamento. Tal análise requer a compreensão de que as relações
estabelecidas nos assentamentos de reforma agrária não são, de forma
alguma, harmoniosas, mas permeadas por conflitos de interesses. Nessa
perspectiva, entendemos que o processo de organização implantado no
espaço conquistado configurou-se como expressão de relações de poder,
ou seja, o controle e a ordenação do novo terri tório consist iu-se como
129
manifestação de estratégias de poder estabelecidas pelos grupos sociais
existentes no assentamento45.
O modelo de organização interna implementado na Nova Santo
Inácio Ranchinho teve, como já vimos, a Associação como representante
legal dos trabalhadores assentados e instância controladora do território
que ali se reconfigurava. A formação dessa entidade, regulamentada
juridicamente, era uma forma de organização proposta pelas instituições
mediadoras e pelo próprio Estado, que vinculava a liberação de recursos
para o assentamento à constituição de uma instância legal de
representação. Tendo sido estruturada, inicialmente, de forma
horizontalizada, com direção colegiada e constituída como fórum de
discussão e de tomada de decisão sobre questões organizacionais do
assentamento, emergem na Associação relações conflituosas, resultantes
de diferentes projetos que as insti tuições mediadoras colocavam para os
trabalhadores.
Configurando-se como espaço de disputas e de luta pelo poder no
interior do assentamento, afloravam, na Associação, feixes de relações
diferenciadas, que se manifestavam por meio de grupos de interesses,
que ora estabeleciam alianças, ora o conflito aberto entre s i. Mediadas
tanto pelo consenso, como pelo dissenso, as decisões tomadas pelos
associados em assembléias dependiam, freqüentemente, do apoio das
frações de poder representadas pelas lideranças dos grupos de afinidades,
que sempre se articulavam de acordo com seus interesses.
Um dos confrontos estabelecidos entre as lideranças do
assentamento manifestou-se por época da alteração ocorrida no Estatuto
da Associação. Constituída inicialmente, como vimos, com estrutura
horizontalizada e direção colegiada, essa entidade teve seu modelo de
45A compreensão dos assentamentos como expressão de relações de poder , remete-nos à noção de te r ri tór io apresentada por FOUCAULT (1979:157) . Para esse f i lósofo, o ter r i tór io “é sem dúvida uma noção geográf ica, mas é antes de tudo uma noção jur ídico-pol í t ica: aquilo que é controlado por um cer to t ipo de poder.”
130
organização modificado por deliberação de uma assembléia geral,
realizada em 1995, no assentamento. O cargo de animador geral,
representante jurídico da direção colegiada, foi subst ituído pelos cargos
de presidente, secretário e tesoureiro, compondo, assim, uma
composição mais verticalizada na diretoria da Associação. Todavia, a
Comissão Central, formada por lideranças dos grupos de afinidades, foi
mantida, sendo portadora do poder horizontal inst ituído na formação
dessa entidade. Tal alteração foi resultado de um conflito de interesses
que estava em jogo no assentamento: o presidencialismo, contraposto à
representação colegiada na estrutura organizacional do assentamento. A
esse respeito, os trabalhadores comentam:
"A di reção colegiada é di ferente do presidenciali smo. Nela todos os assuntos são debat idos ou de liberados na assemblé ia! Então, é um colegiado porque não ex is te uma pessoa com mais re sponsabi l idade que a out ra, que nem um pres idente, um secretário, um tesoure iro! No pres idencial ismo, é sempre o presidente que dá a úl t ima palavra, o pres idente que coordena a assemblé ia , o presidente que representa fora o assentamento!" (Barroso).
"No presidencial i smo, ao invés de i r todo dia pra assemblé ia. . . Oh, gente! Como é que nóis vamo fazê? Não, a gente faz o que prec isa fazer . Quando eu tava falano na ques tão do democrat ismo. . . é nesse sentido. Eu acho que direção tem que ser pra tomá iniciat iva! É lógico que , vai tomá inic iat iva que vai por em dúvida, por em risco o bem-estar . . . o andamento das coisa. . . Tem que consul tá! Mas se é uma coi sa que é em benefíc io pro assentamento. . . não tem que f icá perguntano se quer, não! Porque o que é bom, a base vai receber de braços abertos! ( . . . ) Eu penso, que tem que ter um pouco mais de in ic iat iva por parte da direção." (Edivaldo) .
Dessa forma, percebemos que, os modelos organizacionais que
vigoraram no assentamento, variavam de acordo com os grupos de
interesses que ocupavam cargos de direção da Associação, servindo
como palco para uma rede de relações de poder que se estabelecia no
interior do assentamento.
A constituição da rede de relações de poder foi resultado de
diferentes orientações políticas que ali se configuravam, por meio dos
projetos distintos disputados pelas instituições mediadoras. Tais projetos
indicavam as formas específicas estabelecidas pelos mediadores na
concepção de modelos organizativos para a gestão do território,
131
agudizando as diferenciações existentes entre grupos de interesses46, o
que demonstra que a identidade coletiva, construída na fase do
acampamento, fragmentou-se diante das relações de disputa pelo poder
político no interior do assentamento.
Contudo, quando a Associação encaminhava propostas de interesse
coletivo, como a definição de recursos para o custeio agrícola, a
construção da escola, a eletrif icação, assim como o sistema de
abastecimento de água e outros benefícios voltados para o assentamento,
vigorava a harmonização de interesses em torno de um objetivo comum.
Nos depoimentos dos entrevistados, não houve registro de subordinação
ou negociação externa que privilegiasse interesses individuais na Nova
Santo Inácio Ranchinho. Quando tomavam decisões que exigiam a
presença do Estado para o atendimento às necessidades coletivas, a
atuação dos dirigentes da Associação demonstrava a coerência e a força
de pressão.
Consideramos ainda que, se, por um lado, o processo de luta pela
terra e de formação do assentamento proporcionaram novas práticas de
participação e de sociabilidade, por outro, as relações pessoais,
clientelistas, reproduziram-se entre os assentados, confirmando as
sugestões de D’INCAO (1991), em seu estudo sobre as experiências de
organização dos trabalhadores do assentamento Porto Feliz, no estado de
São Paulo, em que mostra a permanência de tais relações. Alguns
trabalhadores registraram, em suas entrevistas, casos de l íderes que
exerciam favores pessoais, estabelecendo relações paternalistas com
alguns trabalhadores: cuidavam da compra de insumos, ajudavam na
comercialização da produção, além de outros favorecimentos. Dessa
46 Os proje tos em di sputa na Nova Santo Inác io Ranchinho expressavam a ar t iculação de diferentes forças pol í t icas que al i se manife stavam, espec ia lmente das l ideranças vinculadas ao MLST de Luta , que sustentavam a direção colegiada para a Associação, e dos representantes do segmento s indica l , defensores do pres idencia l i smo como modelo organizat ivo.
132
forma, asseguravam, no plano das disputas pelo poder interno, uma
relação de f idelidade com esses trabalhadores que, sempre apoiavam suas
deliberações nas assembléias da Associação. As práticas de relações
voltadas para a manutenção do poder pessoal de alguns, são apontadas
como força desagregadora do sujeito coletivo no assentamento. Nesse
sentido, o depoimento de um entrevistado revela:
"Nós t i vemos um companhei ro nosso que debandou pro lado da pol í t ica t radicional . . . De acei tar , inc lusive, de acabar gostando dos chamegos que o governo faz! Trabalha um pouco a questão da personal idade, da vaidade e do favorecimento pessoal . Na verdade, a gente vê que um companhe iro nosso que debandou aí! De certa forma, e sta pessoa consegue desar t icular o conjunto. ( . . . ) E não fomenta a discussão, não fomenta a re f lexão, não fomenta o posicionamento. Tá mais no sent ido de predominar que no sentido de ref let i r . Mas aí , também ent ra um problema sério: tá fal tando a gente se sent i r suje i to polí t ico para propor uma al teração. Na verdade , ex is te um inconformismo, mas também, não ex is te uma proposição." (Barroso) .
O que esse relato indica-nos é que, se, por um lado, as lideranças
no assentamento exercem um poder arbitrário, por outro, os
trabalhadores mantêm-se passivos a respeito dos dirigentes,
predominando um certo conformismo no assentamento. Atribuímos tal
passividade às trajetórias de dominação vivenciadas pelos assentados.
Nesse sentido, entendemos que os feixes de convivência que se
estabeleceram nos processos de organização interna do assentamento
reproduziram, ainda que parcialmente, relações de dominação,
fundamentadas num ordenamento social dirigido por relações de poder
hierárquicas, que não promoveram uma completa ruptura com o
autoritarismo social, característico de nossa cultura política.
133
3.4 - A organização produtiva e a inserção no mercado
de produção
O sistema de produção predominante na Nova Santo Inácio
Ranchinho constitui-se de pastagens formadas pelo antigo proprietário
associado a de culturas anuais como a mandioca, o arroz, o milho, a cana
forrageira e o sorgo (estas duas últimas destinadas à alimentação do
gado) (ver FIGURA 15). Observa-se também o cultivo de melancia,
abacaxi, guariroba, quiabo e moranga híbrida, ainda que em áreas
menores, variando entre 1 e 7 ha.
As culturas do arroz e do milho são destinadas ao consumo
próprio, sendo o pequeno excedente comercializado no próprio
município.
O algodão já foi produzido no assentamento com caráter comercial,
mas as entrevistas revelam o insucesso do seu cultivo, em razão da
exigência intensiva de insumos agrícolas, especialmente, de agrotóxicos,
FIGURA 15 - Vista de um lote com produção de arroz, na Nova
Santo Inác io Rachinho, 1999. Fonte: Seminár io Interno INCRA/MG, 1999.
134
não havendo uma resposta positiva nos resultados da produção. Em seu
Diagnóstico Rápido Participativo Emancipador (BRASIL, 1998), o
INCRA relata um balanço econômico realizado com um produtor de
algodão, mostrando que dos 5 ha cultivados dessa cultura, o referido
agricultor aplicou R$3.000,00, apurando, na venda do produto, em torno
de R$1.400,00.
Uma outra cultura introduzida no assentamento foi a pimenta. Seu
cultivo foi comercializado, inicialmente, para uma fábrica de
condimentos, tendo sido apurado, segundo depoimento de alguns dos
entrevistados, um bom rendimento econômico. Com o sucesso do plantio
desse produto, aumentou-se sua produção no interior do
assentamento.Entretanto, a oferta da pimenta foi maior que a procura,
prejudicando, assim, sua comercialização. Alguns agricultores que
venderam a pimenta para atravessadores tiveram prejuízos. Seu Calu
comenta sobre as condições adversas a que ficaram submetidos na
comercialização da pimenta:
"Dispois que o Sinvaldo começô com a pimenta, os outro começô tudo atrás de le, né? Eu prantei , o Donize te prantô , o pessoal do outro lado prantô! Então nóis tá em 8 pessoa que tá prantano pimenta. . . Só que tem pouco compradô! Tem um do es tado de São Paulo que ve io e pagô cert inho. Pagô oito conto! Agora, ve io um de Uberlândia, esses d ias, pagano nove real . Então esse rapaiz veio e comprô mui ta pimenta aí . Acho que e le comprô uns dois mil real de pimenta! Só que pagô com cheque. . . E o pessoal vendeu as pimenta como se fosse à vis ta! Mais só que quando t rocô o cheque , o cheque tava gelado! O cara suspendeu o cheque! E eles . . . t odo mundo perdeu! Teve gente que perdeu quatrocentos conto! Agora tem mui ta gente que tem 100, 150 l i t ro de pimenta. . . Eu mesmo tenho 50 l i t ro pra vendê, mais tenho medo de vendê pra qualquer um. Só tem que vendê à v is ta. Se num vendê à v is ta, f ica compricado pra gente vendê, porque tá sujei to a tomá um pre juízo, né?"(seu Calu) .
O leite e o cultivo da mandioca constituem atividades de maior
expressão econômica do assentamento, sendo também as que ocupam a
maior área de cultivo.
135
O cultivo da mandioca chegou a ocupar uma área de 184 ha em
1997, alcançando1.200 toneladas na safra agrícola de 1997/199847. Sua
comercialização se dá em nível regional, sendo vendida para
proprietários de duas grandes fábricas de farinha dos municípios de
Perdizes e Veríssimo. Apesar da comercialização de mandioca não estar
subordinada aos atravessadores, o poder de barganha dos assentados na
determinação do preço do produto é bem pequeno, posto que as fábricas
de farinha é que fixam o valor da venda, além de haver uma grande
disponibil idade desse produto no mercado agrícola, diminuindo, assim, a
sua demanda. Sobre a comercialização da mandioca, seu Calu comenta:
"Os pr imeiro que plantou mandioca aqui, foi nóis ( re fere- se ao grupo por af in idade que produz iu cole t ivamente) . Nóis demo na te lha de plantá, plantemo e deu certo! Só que naque le tempo t inha duas fábrica que comprava e agora o povo desmot ivô um pouco com a mandioca, porque num tá tendo quem compra! Cê vê que coisa! Aumentô o plant io e caiu a venda. Naquele t empo, tá com quatro anos, nóis vendemo a R$70,00 a tonelada. Hoje tá na base de R$80,00! Aumentô pouquinha coisa! E olha que naquele tempo t inha quem comprava e hoje num tem quem compra. ( . . . ) A venda da mandioca tá ruim pra vendê! (. . . ) Tinha uma fábrica em Veríssimo que levô muita mandioca nossa, mais depois começô a dá problema. . . O cara não era bom! Era bom pra comprá, educado e tudo. . . mais o pagamento começô atrasá! Atrasava os pagamento. . . Uma hora t ratava de levá em tre is viagem por semana e num levava. . . Tinha vezes que a gente arrancava e e le demorava a buscá, a mandioca f icava es tragano no solo, né? Então, tudo é pre juízo!" (seu Calu) .
De acordo com os depoimentos do seu Calu, notamos a luta dos
agricultores familiares para terem acesso ao mercado, demonstrando as
derrotas que sofreram no campo da comercialização de seus produtos,
ficando fragilizados diante da instabil idade posta pelo mercado da
mandioca e da pimenta.
Para a produção de leite, os parceleiros possuem uma área de
1.707 ha de pastagens, dispondo de um pequeno rebanho. Segundo o
Diagnóstico Rápido Participativo Emancipador (BRASIL, 1998),
produzido pelo INCRA, as pastagens encontravam-se sub-utilizadas,
47Dados obt idos at ravés do “Quadro Demons trat ivo de Produção e Comercial ização de Produtos e Subprodutos dos Projetos de Assentamento em Minas Gerais” , fornecidos pela Super intendência Regional do INCRA.
136
sendo, muitas vezes, arrendadas para os fazendeiros da região. Como a
pecuária leiteira tem sido uma fonte de renda contínua para os
assentados, tornou-se vocação do local. Sua produção média diária gira
em torno de 1850 li tros, na estação das chuvas, e 1350 no período da
seca. Até 1999, a comercialização do leite era realizada de forma
individual, mediante a entrega diária a uma empresa de laticínios. Nesse
ano, um grupo composto por 53 produtores financiou, por intermédio da
empresa de laticínios, um posto de resfriamento de leite. Com a
instalação do posto, o grupo comprometeu-se a realizar a
comercialização do leite, exclusivamente, com a empresa, pagando o
financiamento com a própria produção. Com a aquisição de um tanque
resfriador, passou-se a realizar a entrega intercalada do leite, reduzindo
os gastos com o transporte. Além do mais, com a entrega intercalada, tal
grupo teve oportunidade de tirar o leite duas vezes por dia, aumentando
o volume a ser comercializado. Uma outra vantagem da produção
granelizada do leite diz respeito a sua qualidade, já que o resfriamento
evita a sua acidez. Como explica Barroso,
"Então, o nosso l ei t inho passado no caminhãozinho de lei te , que f icava rodando pe la fazenda in te ira , ou por outras f azendas até chegar no lat ic ínio, por vol ta de meio-dia, uma hora da tarde, esse le i te já e stava em es tado adiantado de ac idez . Então com o tanque , esse problema de ac idez, ele é e l iminado." (Barroso) .
Para a comercialização coletiva do leite, os produtores destinam
um litro de leite/dia para um fundo de caixa, com o objetivo de custear
as despesas do posto de resfriamento, como energia, material de consumo
e pagamento de um funcionário. De acordo com o depoimento de um
produtor, no pico da safra, chegaram a comercializar 45.000 lit ros de
leite ao mês. O valor máximo alcançado pelo litro de leite foi de R$0,35.
Entretanto, durante o segundo semestre de 2001, o valor do litro de leite
baixou para R$0,25. A oscilação do preço do leite vem acontecendo em
razão do excesso da produção, da desregulamentação do mercado, bem
como da nova tendência que vem ocorrendo com a cadeia agroindustrial
do leite, que é a concentração de empresas por grandes corporações,
137
detendo, assim, um grande poder de barganha no estabelecimento dos
preços. Além do mais, os produtores do leite subordinaram sua atividade
à agroindústria do le ite, de tal forma que a indústria assume grande parte
de decisão sobre a forma de produzir.
O que os estudos sobre a realidade e as perspectivas da agricultura
familiar no Brasi l indicam é que, com esse novo modelo econômico que
está sendo implantado com o processo de globalização, os produtores
familiares tornam-se mais vulneráveis: pois, à medida que o
envolvimento do Estado na regulamentação dos preços do mercado e a
proteção a estes produtores tende a diminuir, a competição do mercado
externo tende a aumentar (BRUMER, 1999). Fica evidente a ineficácia
das políticas públicas voltadas para os assentamentos de reforma agrária,
havendo uma grande desarticulação entre a política de desenvolvimento
agrário e a política agrícola, sendo esta última influenciada pela
tendência liberalizante da economia brasileira, responsável pela perda de
terra e pela exclusão dos pequenos produtores de leite do processo de
produção (SANTOS et al. , 2001). Dessa maneira, observamos que o
sucesso ou a instabilidade da comercialização coletiva do leite no
assentamento dependerá do cenário econômico dessa cadeia produtiva,
especialmente do poder de barganha dos produtores do leite na
determinação do preço de mercado. Tudo indica que, permanecendo o
atual cenário econômico, os assentados f icarão em condições adversas de
competição.
Analisar as condições de produção e comercialização no
assentamento Nova Santo Inácio Ranchinho requer, também,
compreender as condições em que as famílias se encontravam, na fase de
implantação do assentamento.
Como referimos anteriormente, o assentamento Nova Santo Inácio
Ranchinho resultou de um intenso processo de luta dos trabalhadores
sem-terra, sendo que sua efetivação definitiva deu-se após mais de
quatro anos. Nesse período, os trabalhadores viviam em acampamentos
138
sob condições precárias de subsistência, acentuando, assim, o processo
de degradação econômica de suas famílias. Além do mais, essas famílias
encontravam-se em situação provisória na fase de acampamento, período
suficiente para que os poucos bens que possuíam fossem se deteriorando.
Com isso, os limitados recursos do PROCERA destinados à produção, na
fase de implantação do assentamento, foram utilizados para pagamento
de dívidas contraídas nos armazéns de Campo Florido, aquisição de
eletrodomésticos, veículos para transporte da família e reposição de
equipamentos vendidos durante o período em que viviam acampados. Do
ponto de vista de alguns dos entrevistados, esse processo de degradação
econômica resultou em uma diferenciação social no assentamento: as
famílias que permaneceram acampadas durante mais de quatro anos
entraram nas suas parcelas em condições desiguais daquelas que
mantinham suas residências na cidade. Quando tiveram acesso aos
créditos do PROCERA, aquelas famílias descapitalizadas utilizaram
parte dos recursos com pagamento de dívidas. Nesse sentido, Branca
analisa:
"Com re lação a algumas pessoas tá com um níve l f inanceiro melhor, outras tá com mais di f iculdade. . . Então, a gente tem tre is s i tuação aqui dentro: tem pessoas que nada tem mesmo! Outras têm alguma coisinha, outras tá num níve l mais a l to. Por que que ele tá com nível mais al to? Porque o governo invest iu mais nele? Não, o governo invest iu igualmente em todos! Uns e stão bem porque os parente ajudaram, né? Então, invest i ram nele, mandaram gado, né? Tinham casa na cidade , venderam e construíram casa boa aqui . Enquanto outras vieram com um saquinho nas cos ta, com pane linha, um colchãozinho velho e que não deu pra tá em si tuação melhor hoje! Porque recebe mil reais por ano, prec isa se al imentar! E como f ica sua s i tuação na cidade? Eu acho, que é dever seu se r hones to, não é qualidade, não. Então se o armazém cede a al imentação, eu tenho que pagá. Quando aquele crédito chega, eu devo uma quant ia no armazém. Eu vou e pago aquela quantia e vou plantá na minha roça com aquela parte que dá pra mim plantá, né? Aí, geralmente, o que que acontece? Não houve dinheiro suf ic iente pra um bom preparo do solo . . . porque o governo num tá preocupado com isso, né? A í, vamo produzí menos. De modo que , quando eu colhê, não dá pra eu pagá o que eu devia pagá para o banco." (Branca) .
Tendo os assentados iniciado suas atividades produtivas já
descapitalizados, a área desapropriada pelo INCRA ia apresentando
139
problemas do ponto de vista do potencial produtivo48, o que exigia
elevados custos com aquisição de insumos para preparo do solo. Como os
agricultores já não dispunham de recursos suficientes para o plantio, os
sistemas de produção tornaram-se mais vulneráveis.
Por sua vez, a assistência técnica prestada no assentamento pela
Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Minas
Gerais - EMATER-MG - incentivou a adoção da tecnologia moderna
(mecanização e quimificação da agricultura)49, exigindo dos assentados
um expressivo investimento na aquisição de equipamentos e insumos
químicos, não havendo, no entanto a respectiva resposta quanto ao
resultado de suas atividades. Fica evidente que o modelo de tecnologia
proposto por essa empresa aos agricultores não garantiu melhores
condições de produção para o assentamento, comprometendo, assim, a
sua viabilidade econômica. Como indica GRAZIANO DA SILVA
(1999:139), a geração e difusão da tecnologia pelo setor público,
mediante a implementação de uma política tecnológica, não favorece os
agricultores familiares, mas, ao contrário,
“.. .a nova organização ins t i tuc ional baseada fundamentalmente em l inhas de pesquisa por produto e na cent rali zação dos recursos disponíve is, tende a re forçar as penalizações que já são impostas pe lo s i stema econômico ao se tor de pequenos produtores .”
Ainda com relação ao acesso ao crédito, verificamos com base nos
dados fornecidos pelo INCRA, que todos os parceleiros da Nova Santo
Inácio Ranchinho chegaram a atingir o teto máximo pelo PROCERA -
Invest imento, equivalente a R$7.500,00. Esse valor, no entanto, não foi
suficiente para estruturar o sistema produtivo local, já que as famílias
48Como af irma BAVARESCO (1999) , a Cons ti tu ição de 1988 l imitou drast icamente as possibi l idades de desapropr iação de ter ras, especialmente daquelas que bem ou mal são ut i l izadas em at ividades agr ícolas . Isto fez com que o INCRA comprasse ou desapropr iasse áreas com limitações à produção agr ícola. 49Em seu Re latório Anual sobre o Proje to Nova Santo Inác io Ranchinho, o extensionis ta agropecuár io da EMATER - MG, conf irma uma melhor perspec t iva de produção, “tendo em v ista que os assentados já melhor se organizaram, se adaptaram ao cl ima, solos e cos tumes da região, acei tando e ut i l i zando melhor as tecnologias preconizadas pe la equipe técnica” (MINAS GERAIS, s /d) .
140
assentadas estavam completamente descapitalizadas ao entrar em suas
parcelas. Além disso, ao recursos liberados pelo PROCERA foram
insuficientes para a correção do solo. Eis o depoimento de Zé Pretinho:
"Eu acho que o governo deveria invest ir mais nos assentamento, porque eu acho que os recurso que são enviado pro assentamento. . . acho que são mui to pouco ( . . . ) Então eu acho o que que eles passa pro assentamento é uma micharia de dinheiro! Então, acho que t i nha que invest ir mai s ( . . . ) Porque se e le dá a terra mais não dá as condições. . . Se dá a terra mais não dá as condições pra produzir , o que vai acontecer? A terra sem condição de produzir , não s ignif ica nada! Vamo supô: eu pranto arroz, mas como é que vai prantá arroz, se não tem dinheiro pra prantá arroz? Pra poder gradeá a te rra? Pra poder comprá adubo? No caso, f ica muito mais caro o plant io do que talve iz o que el e vai colhê!" (Zé Pre tinho) .
Em seu depoimento, Zé Pretinho não revela sua condição de
inadimplência com relação ao financiamento do PROCERA, o que o
impede de ter acesso a qualquer outro financiamento. A condição de
inadimplência é geral em todo o assentamento, posto que uma das
exigências para a liberação desse financiamento foi a assinatura de um
contrato, que, na verdade, nada mais é que um compromisso coletivo de
uma dívida solidária, por cujo montante dos recursos liberados todos são
responsáveis. Mesmo aqueles produtores que conseguiram pagar sua cota
ficaram inadimplentes e, automaticamente, impossibil itados de receber
novos f inanciamentos. Sem o acesso ao crédito, os assentados da Nova
Santo Inácio Ranchinho têm dificuldades em garantir a sua reprodução
social como agricultores familiares, buscando outras saídas para
manterem suas unidades de produção, como veremos a seguir.
141
3.5 - Novas perspectivas de vida: entre a cidadania
utópica e a realidade vivida
Como vimos, os resultados alcançados pelo processo de produção e
comercialização na Nova Santo Inácio Ranchinho não atingiram níveis
satisfatórios, comprometendo a capacidade produtiva do assentamento e,
conseqüentemente, a reprodução social dos agricultores. As políticas
públicas implementadas no assentamento não proporcionaram uma
garantia de renda mínima para os seus beneficiários. Ao contrário, os
agricultores permaneceram à margem do desenvolvimento econômico, em
situação extremamente desfavorável para competir em um mercado no
qual prevalece a hegemonia da grande empresa e dos grandes negócios
agroindustriais.
Desse modo, a visão de que o mundo das relações econômicas que
se implantaria no assentamento seria a continuidade de um certo mundo
comunitário estabelecido na fase de acampamento permaneceu no plano
de uma cidadania utópica, ou de um mundo encantado em que se busca
lutar por uma situação ideal fundamentada na igualdade, como afirma
ABRAMOVAY (1994-b).
Na verdade, a realidade vivenciada no assentamento é a “realidade
da sociedade capitalista, onde se tem um mercado, desigualdade,
despersonalização das relações econômicas e assim por diante”
(ABRAMOVAY, 1994-b:316). Ao enfrentarem as condições desiguais de
um mercado competitivo, os agricultores da Nova Santo Inácio
Ranchinho percebem o descompasso entre o sonho de um projeto
alternativo de vida e a dura realidade em que se encontram para se
manterem como produtores rurais. Sobre o assunto, Zé Pretinho relata:
"Agora, uma das coisa que a gente acha. . . a di f iculdade é na questão da produção. . . na questão da produção. Porque a gente
142
achava que . . . conquis tada a terra terminava os problema. Depois que conquista a terra é que vem os problema, da produção. E se a gente br incasse , a gente acha mui to mais di f í ci l produzí , que conquistá a te rra. Se cê não soubé. . . Aonde mui tos abandona a te rra e vai embora, porque acha que a terra. . . num tem sentido. Então, é a hora que cê tem que tomá cuidado é . . . com a produção. Sabê apl icá os recurso no lugar ce rto, e le vol ta a ser um bóia- fr ia. (Zé Pre t inho) .
Em seu depoimento, Zé Pretinho expressa bem a realidade vivida
pelos assentados: o estrangulamento do sistema de produção e
comercialização, bem como as dif iculdades que encontram para resist ir
no território por eles conquistado, indicando, assim, o receio que têm os
agricultores familiares de tornarem-se bóias-frias.
A tentativa procurada pelos assentados na formação de
cooperativas, como uma saída para viabilizar a compra de insumos para a
produção e comercialização de seus produtos, não se concretizou ainda,
permanecendo como um projeto a ser realizado para proporcionar a
sustentação econômica das unidades de produção familiar.
A fragilidade vivenciada pelos assentados em razão da falta de
créditos para produção e da imposição do INCRA em consolidar o
projeto de assentamento, sem se preocupar com a dimensão econômica
das unidades produtivas, os coloca diante do impasse de abandonar a
terra ou buscar outras saídas como forma de resistir no território
conquistado.
Uma das saídas encontradas pelos trabalhadores da Nova Santo
Inácio Ranchinho para se sustentarem na terra vem sendo o arrendamento
de suas propriedades para grandes produtores, que fornecem cana para
uma usina de produção de álcool e açúcar: a Usina Cururipe de Açúcar e
Álcool S/A.
O arrendamento de lotes é visto por alguns parceleiros como a
única saída que têm para sobreviverem no assentamento, enquanto que,
para outros, trata-se de um projeto que ameaça a sustentabilidade
econômica e ambiental do assentamento.
143
Aqueles assentados que se posicionam contra o arrendamento dos
lotes para a produção da cana-de-açúcar justif icam que a adoção das
práticas agrícolas adotadas por essa monocultura pode degradar o solo,
com o passar do tempo, além de contribuir para a redução da diversidade
biológica, facilitando o surgimento de novas pragas e doenças no sistema
produtivo do assentamento, comprometendo a preservação ambiental
local. No dizer de Barroso,
"Nós vamos sofrer as conseqüências t í picas desse conce ito de produção que é a monocultura! A monocul tura, por si só, já é um afronta à agricultura fami l iar! ( . . . ) Com o arrendamento nós não te remos mais a te rra, te remos apenas o terri tór io!" (Barroso) .
Por sua vez, aqueles que defendem a introdução do arrendamento
para plantio de cana nas parcelas do assentamento avaliam que a falta de
capital individual para investir na produção poderá provocar a venda de
lotes no interior do assentamento50 e o arrendamento seria a única
alternativa possível para resisti rem na terra conquistada.
Contudo diante do impasse estabelecido no interior do
assentamento, entre as propostas de arrendar ou não arrendar as parcelas
para o plantio de cana, a primeira foi vitoriosa. Em decisão tirada em
assembléia da Associação Nova Santo Inácio Ranchinho, f icou
determinada a liberação do arrendamento das parcelas, contando ainda
com a autorização da Superintendência Regional do INCRA- MG.
O arrendamento das suas parcelas foi a solução encontrada por
muitas famílias do assentamento para resistirem em suas unidades
familiares de produção, que procurarão desenvolver, numa área restrita,
a produção para a sua subsistência. Outras famílias continuam a resisti r,
mesmo sem o acesso ao crédito, na continuidade da produção familiar,
mantendo a sua reprodução social, ainda que de forma subordinada ao
mercado competitivo e à hegemonia das grandes empresas
agroindustriais.
144
Dessa maneira, o novo território conquistado pelos trabalhadores
rurais, hoje agricultores familiares da Nova Santo Inácio Ranchinho,
ainda resiste aos fortes impactos desse modelo de agricultura
modernizada, ainda que, retomando algumas das características do velho
território.
50Vale ressal tar que , de acordo com os depoimentos dos entrevis tados , não houve nenhuma venda de lotes por parte dos assentados na Nova Santo Inác io Ranchinho, pe lo menos a té o momento em que f inal izamos nossa pesquisa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Um dos primeiros aspectos revelados por este estudo diz respeito à
reflexão sobre o processo de ações coletivas no cenário da globalização,
buscando demonstrar que, ao invés de diluir as singularidades, a
globalização pode proporcionar um reforço das identidades coletivas. O
que procuramos evidenciar nesta análise foi que as novas práticas
gestadas pelos movimentos sociais podem propiciar reações locais ao
processo de homogeneização dos espaços políticos, sociais e culturais ,
imposto pela era da globalização. Fundamentamos tal pressuposto no
estudo das experiências e práticas vivenciadas por um grupo de
trabalhadores rurais sem-terra na luta para disputar a apropriação de um
latifúndio improdutivo.
Ao analisar a trajetória de luta desses trabalhadores - assalariados
rurais, parceiros, arrendatários -, marcada por derrotas e vitórias,
observamos que, por meio de suas práticas, eles apresentaram -se para o
espaço público, colocaram-se em cena como sujeitos de sua própria
história, afirmando, assim, a luta pela sua cidadania.
Para compreender as experiências e práticas dos trabalhadores
sem-terra, hoje agricultores familiares da fazenda Nova Santo Inácio
Ranchinho, analisamos o cenário regional em que travaram suas lutas
para a conquista do direito de acesso à terra. Demonstramos que o
processo de modernização da agricultura implementado na região do
Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba deixou marcas de uma forte exclusão
social , produzindo efeitos perversos para os trabalhadores rurais da
região. Esse foi o contexto de fundo estrutural que, certamente,
145
estimulou a luta pela terra, desencadeando na desapropriação de um
latifúndio improdutivo.
Para resgatar a história, tecida por homens e mulheres, que
procuraram afirmar sua cidadania no processo de luta e conquista da
terra, recorremos à memória desses trabalhadores e trabalhadoras Por
meio de suas narrativas, registramos que, pelas histórias de vida, os
entrevistados revelaram suas identidades pessoais, marcadas pelo
sofrimento, pela desvalorização como seres humanos e, sobretudo, pela
frustração que sentiam com relação ao processo de exclusão e
subordinação a que foram submetidos como trabalhadores rurais bóias -
frias. Pelas suas narrativas, fica evidente que a motivação subjetiva que
os estimulou a participar de um processo organizado de luta pela terra,
foi a negação à vida sofrida que levavam como assalariados rurais.
Desse modo, constatamos que, se, a princípio, tais sujeitos,
submetidos às condições de exploração e subordinação produ zidas pelo
processo de modernização da agricultura na região, ocupavam o espaço
social como sujeitos submissos e obedientes, destituídos de seus direitos,
ao longo de suas experiências e práticas de luta, eles procuraram romper
com as péssimas condições de vida a que foram submetidos, saindo do
anonimato e do isolamento para construir uma história coletiva, na qual
inscreveram suas práticas de luta.
Tais trabalhadores, que viviam dispersos e isolados, sujeitos cuja
sociabilidade era marcada pelo mando e a obediência, vivenciaram
experiências de constituição de uma identidade coletiva, que impôs para
o espaço público o reconhecimento de sua cidadania. Por meio de suas
práticas e de seus discursos instituintes, esses homens e mulheres
reinterpretaram a realidade instituída, típica de uma sociedade
autoritária, cujas características mais visíveis são: a desigualdade
econômica, a exclusão social e, sobretudo pelo ordenamento de relações
sociais desiguais, fundamentadas numa organização hierárquica. Quando
se constituíram sujeitos de sua própria história, que lutaram pelo direito
146
do acesso à terra, esses trabalhadores contestaram o poder de mando
exercido pelas velhas forças agrárias da região, minando, ainda que
parcialmente, os pilares do autoritarismo social , tã o característico em
nossa cultura polí tica.
Verificamos em nossa pesquisa que o processo de luta pela terra
que conduziu à desapropriação da fazenda Nova Santo Inácio Ranchinho,
em Campo Florido - M.G, não pode ser entendido como um processo
isolado, restrito apenas ao âmbito local. Deve, pois, ser compreendido
como um movimento que, na luta pelo estabelecimento de novos direitos
e na conquista de direitos já instituídos, constituiu, por meio de suas
práticas sociais, um projeto coletivo que estabeleceu, ju nto a outros
movimentos sociais, estratégias para a construção de uma sociedade mais
democrática.
Assim, podemos afirmar que as experiências vivenciadas no
processo de luta pela terra, tais como a reivindicação do direito de
acesso à terra, os acampamentos , as ocupações de latifúndios
improdutivos, bem como de espaços públicos, as ações de contestação e
de pressão contra o Estado, as exigências dos direitos à produção, à
moradia à saúde, à educação, dentre outras, estudadas nos limites deste
trabalho, forjaram práticas de construção da cidadania entre os
trabalhadores sem-terra, hoje, agricultores familiares. No período em que
lutaram para conquistar um latifúndio improdutivo, para nele plantar
seus sonhos de uma vida mais digna, esses trabalhadores, por int ermédio
de suas práticas de luta, recolocaram o problema da constituição do
sujeito coletivo entrelaçado à afirmação de sua cidadania, visando, tanto
resgatar seus direitos mais elementares (civis, sociais e polí t icos), como
inventar novos direitos, dentre eles, as ocupações de terras.
As ações desencadeadas pelos trabalhadores para conquistar um
pedaço de terra evidenciaram sua disposição para inserir -se num campo
de disputas, no qual se manifestam uma diversidade de forças políticas:
de um lado, tais trabalhadores aglutinavam seus interesses, mediante a
147
formação de uma rede de instituições organizadas na sociedade civil,
como a APR/CPT, a CUT, o MST, as entidades sindicais, que apoiavam,
incondicionalmente, suas lutas; do outro, os grandes proprietários de
terras, organizados pela UDR, demonstravam sua força polít ica,
reagindo, violentamente, contra o movimento dos sem -terra. Permeando
essa correlação de forças, encontrava -se o Estado, em suas diversas
instâncias, agindo, ora de acordo com os interesses dos trabalhadores,
ora numa posição favorável aos proprietários rurais. Nesse processo de
correlações de forças, os trabalhadores saíram vitoriosos, com a
desapropriação do território disputado, fazendo valer seus interesses,
mediante o confronto com o Estado e com seus opositores.
Após a realização do projeto de reforma agrária na fazenda Nova
Santo Inácio Ranchinho, os trabalhadores reconfiguraram o espaço
conquistado. Desse modo, averiguamos que, para a organização de um
novo território, apresentaram novas formas de ocupação territorial ,
fundamentadas na formação de grupos de afinidade, produzindo uma
mudança significativa na dinâmica de reordenamento territorial do
assentamento.
Averiguamos que, na constituição de novas territorialidades,
baseadas em laços de parentesco, amizade, vizinhança e, sobretudo, em
formas de organização que lhes são próprias, os trabalhadores
construíram uma nova identidade no interior do assentamento, ancorada
no pertencimento à localidade. As reflexões à respeito da consolidação
das identidades terri toriais, contradizem as tendências que preconizam a
globalização como um processo inexorável à homogeneização, que dilui
as singularidades das culturas locais.
No que se refere às relações societárias, podemos afirmar que
houve um processo de aprendizagem de formas organizativas pelos
sujeitos sociais envolvidos neste estudo. As práticas de luta pela terra e
de constituição do novo território proporcionaram experiências de novas
formas de participação e de sociabilidade entre os assentad os da Nova
148
Santo Inácio Ranchinho, possibilitando a abertura para concepções mais
amplas de sociabilidade. Destacou-se, nesse contexto, a disseminação de
práticas que contribuíram para a formação de novos assentamentos na
região. Contudo, as formas de sociabilidade, herdadas do familismo e das
relações de vizinhança rurais resgatadas por tais sujeitos, demonstram o
reforço às concepções tradicionais, fundamentadas num ordenamento
social hierárquico.
O registro das experiências vivenciadas por esses trabalha dores,
durante esses anos todos, demonstra que, em suas trajetórias, marcadas
por avanços e recuos, eles constituíram feixes de relações de poder,
reforçando tanto as práticas democráticas, como as relações de
dominação baseadas num poder hierárquico, não promovendo, dessa
forma, uma ruptura completa com o autoritarismo social. Tais
experiências consistem em um aprendizado complexo da prática polít ica,
na qual os grupos de interesses fazem-se e desfazem-se, manifestando-se
de formas diversas, de acordo com as situações por eles enfrentadas.
Em nossas análises sobre a organização produtiva no assentamento
estudado, pudemos observar que, em condições adversas de produção e
de inserção no mercado competit ivo, os trabalhadores vivenciam uma
outra forma de luta: a resistência no território conquistado. Esse
processo de resistência manifesta-se no retorno às relações tradicionais
de produção, como o arrendamento de lotes e outras formas de parcerias
de uma parte de suas terras.
Diante da difícil realidade vivenciad a para garantir a sua
reprodução social, em condições adversas de competição, os assentados
adotaram em seus sistemas de produção o mesmo pacote tecnológico
preconizado pela política de modernização da agricultura, que produziu
efeitos perversos para os camponeses, contribuindo, assim, para o
surgimento dos sem-terra.
Desse modo, atribuímos ao modelo tecnológico adotado no
assentamento, os insatisfatórios níveis de produção e de comercialização,
149
comprometendo a capacidade produtiva e, conseqüentemente, a
reprodução social dos agricultores da Nova Santo Inácio Ranchinho.
Além disso, a reflexão sobre as perspectivas de vida no
assentamento, remete-nos à ineficácia das políticas públicas voltadas
para a reforma agrária, resultante de um descompasso entre a pol ít ica de
desenvolvimento agrário e a polí tica agrícola adotada nestes últimos
anos pela tendência liberalizante da economia brasileira. Assim,
consideramos que o efetivo apoio do Estado torna -se essencial para a
reprodução social dos agricultores familiares e para a viabilização
econômica do assentamento.
Portanto, se os agricultores familiares ainda resistem aos fortes
impactos produzidos pelo modelo de agricultura modernizada, é porque
buscam a inserção nesse contraditório espaço social , mediado pela
inclusão e exclusão, construindo estratégias de sobrevivência que visem
garantir sua nova condição social: a de sujeitos que se incorporaram ao
mundo dos direitos.
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