machado, ondina maria r. - trauma e sintoma na contemporaneidade
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estudo sobre a relação da teoria psicanalítica do trauma com os sintomas na contemporaneidadeTRANSCRIPT
Trauma e sintoma na contemporaneidade1
Palavras-chave: sintoma, sujeito contemporâneo, trauma, gozo.
Ondina Maria Rodrigues MachadoMembro da EBP- Seção Rio, Mestre em Psicanálise – IPUB/UFRJ, doutoranda em Teoria Psicanalítica – IP/UFRJ, pesquisadora do Núcleo Séphora – PPGTP/UFRJ.
Nas suas primeiras formulações, Freud liga o trauma à experiência da sedução como
gerador dos sintomas. Quando desiste da sua ‘neurótica’, mantém, porém, a ligação entre
trauma e sintoma, entendendo que o valor traumático de uma experiência está na qualidade
desta experiência. Mais tarde vai incluir neste valor traumático um aspecto quantitativo que
determinaria as possíveis reações ao trauma - em função de sua intensidade se criaria uma
fixidez da libido. Esta se caracteriza por “um acréscimo de estímulo poderoso” cujo “tom
afetivo é muito intenso” (1917, p.324-325). Nesta concepção a intensidade da experiência
seria de tal ordem que geraria uma dificuldade para lidar com a situação. Assim, toda
neurose seria uma doença traumática, isto é, teria como causa um trauma, algo não
assimilável pelo sujeito em função do excesso de estimulação. Em um segundo momento
Freud situa como traumática a própria fixação da libido a uma fase do desenvolvimento. O
trauma, então, não seria da ordem de uma experiência, de um evento. A fixação se daria por
um excesso de estimulação, porém, não só causada por fatores externos. Haveria uma
predisposição constitucional, oriunda do desenvolvimento libidinal, que tornaria o sujeito
suscetível de desenvolver uma neurose. Com esta reformulação Freud pode afirmar que
“toda neurose inclui uma fixação...mas nem toda fixação conduz a uma neurose” (ibid.,
p.326). Os sintomas seriam derivados deste núcleo traumático, mas não só dele. Em 1920,
Freud vai apontar para a força poderosa que está além do princípio do prazer criando um
paradoxo entre prazer e desprazer. Em 1926 vai situar que o sintoma é o verdadeiro
substituto e derivativo do impulso reprimido, daí sua força. O sintoma funcionaria como
um substituto da satisfação pulsional e por isso a dificuldade em removê-lo.
Lacan (1953) vai destacar que a descoberta de Freud com a talking cure mostra que
o acontecimento traumático, como núcleo patogênico na neurose, se modifica ao nele
incidir a fala (p.255-256). Assim, sintoma e fala são homogêneos, ambos são feitos da
mesma matéria: a linguagem. Nesta perspectiva o sintoma seria uma fala aprisionada,
porém, mesmo ao libertá-la não damos conta do sintoma. Há algo nele que resiste à
significação. Diante desta dificuldade, Lacan vai postular que o sintoma tem uma vertente
de sentido, mas tem também a sua face de gozo. É este conceito de gozo em Lacan que vai
reconciliar o sintoma como mensagem à pulsão freudiana. O sintoma seria uma conexão
real entre o significante e o corpo, donde a parte significante seria passível de interpretação,
enquanto o gozo que se liga ao corpo exigiria mais que a produção de sentido.
Chegamos, mesmo que com a rapidez de um raio, ao ponto a partir do qual,
podemos pensar a articulação do trauma com o sintoma tendo em vista aqueles que se
evidenciam na contemporaneidade. Para tal precisamos situar a configuração cultural, o
caldo de cultura no qual eles nascem.
Giddens (1991) caracteriza a sociedade contemporânea como aquela que radicaliza
e universaliza as conseqüências da sociedade moderna. A modernidade "refere-se a estilo,
costume de vida ou organização social que emergiram na Europa a partir do século XVII"
(p.11) e que se caracterizou por uma ruptura com o modelo tradicional de organização
social. O que vivemos hoje é uma conseqüência dessa ruptura, onde aquilo que era da
ordem da tradição, com seus valores morais e sua organização hierárquica, foi substituído
por um modo de organização cujo maior valor está na liberdade individual e cuja hierarquia
foi aplanada.
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O estado moderno surgiu na esteira da secularização - separação e emancipação do
estado do poder da igreja com a separação dos domínios econômico, social e político de
toda a influência eclesiástica. O poder de Deus extensivo à igreja passou ao pai de família
burguês (Coelho dos Santos, 2001, p.261). É este pai que Freud tem em vista quando da
formalização do Complexo de Édipo: aquele que transmite os ideais da cultura pela sua
internalização no supereu. O pai era o representante de Deus no mundo. Com o declínio da
autoridade divina, o pai de família se esvazia de sua força simbólica, o que vai redundar em
novas configurações sociais.
A ordem social, por sua vez, passa a ser enormemente influenciada pela ordem
econômica. As relações entre capital e trabalho se modificam. O trabalho deixa de agregar
valor sendo este transferido ao capital.
A moral burguesa levava o homem à renúncia do gozo em prol do trabalho, da
família e da cultura. Na contemporaneidade o pai de família abre mão da sua função
simbólica para buscar para si, individualmente, a realização de satisfações particulares. A
mulher, por sua vez, entrou no mercado de trabalho para dar vazão aos seus desejos
pessoais, mas também para complementar a renda familiar (Sennet, 2000, p.66).
Assim, a função de Outro que se encarnava no pai fica diluída de tal forma que se
torna pouco visível, pouco localizável. As conseqüências são macro e micro sociais, elas
aparecem tanto na sociedade quanto na família. O pai como uma instituição familiar
emprestava seu vigor às instituições sociais. Se o pai está desacreditado nada mais natural
que as instituições também o estejam.
O mercado é o grande concentrador de poder, o Outro da cultura pós-moderna. Ele
coloca em disponibilidade bens que o homem não necessita, mas para os quais vai inventar
uma necessidade para poder consumi-los. Deste modo o Outro deixa de ser aquele que
exige obediência à tradição e passa a ser um Outro que impõe que o sujeito consuma para
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além de suas necessidades (Coelho dos Santos, 2001, p.322). Os bens úteis estão no campo
do prazer, os bens inúteis estão para além dele, portanto, no campo do gozo.
Laurent e Miller (1996) dizem que o reinado do Nome-do-Pai corresponde na
psicanálise à época de Freud, mas que Lacan reconheceu que havia uma nova configuração
social bastante diferente daquela que possibilitou a Freud fundear o Édipo na figura do pai
de família. Isto fez com que Lacan (1975-76) pluralizasse o Nome-do-Pai mostrando o
desgaste da ligação entre este significante e seu significado. Se antes havia um sujeito
dividido diante de um Outro consistente, o que esta pluralização aponta é uma configuração
onde o sujeito não mais se divide diante do Outro porque este Outro se mostra, na
atualidade, inconsistente (Coelho dos Santos, 2001, p.325). O sujeito, desta forma, é
tomado em uma radical particularidade, na medida em que sua vinculação ao Outro se dará
sem o apoio do universal da lei, que para Freud era a lei do incesto e para Lacan a da
linguagem. O trauma, por sua vez, ligado ao sexual para Freud e à linguagem para Lacan,
parece, nos tempos atuais, ser justamente esta falta de universal. Se o sujeito é tomado no
caso a caso mais radical, sem um significante que o nomeie na esteira da tradição do Pai,
resta-nos perguntar: quem o nomeia?
O sujeito sai da tradição do Pai para entrar na lógica do self-made-man, onde não
conta com a baliza dos ideais que tinham como função mediar, substituir e derivar a
satisfação pulsional. Os sintomas mais característicos de nossa época, - compulsões,
depressões, pânico – testemunham a busca da satisfação pulsional direta, sem mediação ou
acordos. Mas nesta busca o sujeito está mais só do que antes, pois não pode culpar a
ninguém por seu fracasso. E qual é o fracasso? É a não satisfação da pulsão. O acesso
direto ao objeto da pulsão passa a ser o ideal a ser alcançado (Coelho dos Santos, 2001,
p.330), não mais bastando os seus derivativos. Assim, o sujeito nunca está à altura deste
novo ideal de satisfação que o encerra em si próprio, que não lhe dá saída para a realização
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fora do circuito pulsional. A exigência de gozo traz a incapacidade de se incluir na
coletividade. Na busca pelo gozo próprio tudo se justifica: a corrupção, a violência. O gozo
é imperativo e não faz negociação, daí sua semelhança com o supereu. O sintoma, então,
responde mais à exigência de gozo do que à renúncia. E, talvez, neste ponto a psicanálise
possa ter seu lugar no mundo atual.
A psicanálise não tem mais o que desrecalcar, o que decifrar; não se trata mais de
um sentido a ser liberado, mas, sim, de fazer vacilar a convicção da satisfação (Coelho dos
Santos, 2001, p.333). A psicanálise precisa retomar sua origem transgressora do discurso
dominante e promover, na particularidade do caso a caso, a invenção de um laço com o
Outro. A lógica do não-todo e da não-relação sexual, ao invés de levar o sujeito ao cinismo
do vale tudo, deveria servir de causa para fazer emergir o inconsciente na sua singularidade.
No tempo do declínio dos ideais usar a linguagem para inventar um Outro pode ser a
função heróica da psicanálise em nosso tempo.
Referências bibliográficas:
COELHO DOS SANTOS, T. (2001) Quem precisa de análise hoje? O discurso analítico: novos sintomas e novos laços sociais. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
FREUD, S. (1917). Conferências Introdutórias, conferência XVIII, Fixação em traumas – O inconsciente. Edição Standard Brasileira das Obras Completas, vol. XVI. Rio de Janeiro: Imago, 1977.
FREUD, S. (1920) Além do Princípio do Prazer. Edição Standard Brasileira das Obras Completas, vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1977.
FREUD, S. (1926) Inibição, Sintoma e Ansiedade. Edição Standard Brasileira das Obras Completas, vol. XX. Rio de Janeiro: Imago, 1977.
GIDDENS, A. (1991) As conseqüências da modernidade. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista.
LACAN, J. (1953) Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
LACAN, J. (1975-76) Joyce, o sintoma. Coimbra: Escher, AS, 1986.
LAURENT, E., MILLER, J.-A. (1996) L'Autre qui n'existe pas et ses comités d'éthique Revue de La cause freudienne, Paris, n. 35, février, 1997.
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SENNET, R. (2000) A corrosão do caráter: as conseqüências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro: Editora Record.
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1 Trabalho apresentado no Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental e VII Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental, promovido pela Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, PUC-RIO, 2004