mais técnicos, menos bacharéis - revista cidade nova

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BRASIL 10 Cidade Nova • Abril 2014 • nº 4 mARtInA CAVALCAntI [email protected] Mais técnicos, menos bacharéis MERCADO DE TRABALHO mais de 42 milhões de brasileiros ascenderam à nova classe média na última década, trazendo consigo um sonho: investir nos estudos e crescer profissionalmente. É possível desfazer o mito do diploma universitário e garantir a mão de obra qualificada de que a economia necessita? maioria acha menos nobre trabalhar na in- dústria. Mas as pessoas não sabem que um técnico petroquímico, por exemplo, ganha mais que algumas profissões de nível superior”, esclarece o ge- rente de estudos e prospectivas do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), Márcio Guerra, para quem o mito só pode ser des- feito na base de informação. Estudo da Confederação Nacio- nal da Indústria (CNI) mostra que 82% concordam que as pessoas com certificado de qualificação profis- sional têm salários maiores. Apesar disso, são poucos os que buscam esse tipo de formação. Entre os jo- vens, a maioria cursa o superior (18%), seguido do médio (15%) e do fundamental (5%). O ensino profis- sional é opção de apenas 3% deles. Em países com tradição no en- sino técnico, como os europeus, o Japão, a Coreia do Sul e os Estados Unidos, foram necessários em mé- dia 150 anos para estabelecer as es- colas profissionais, explica Divonzir Arthur Gusso, do Instituto de Pes- quisa Econômica Aplicada (Ipea). Não à toa, na média das nações mais ricas, o índice de pessoas que pas- sam pela educação profissional é de 46%: quase o dobro do percen- tual registrado no Brasil, de acordo com os dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Formação Para Luis Alberto Piemonte, pro- fessor da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-EAESP), os recentes programas federais são uma boa resposta para a falsa ideia de que cursar uma faculdade é sem- pre a melhor opção. Enquanto o governo Lula ficou conhecido pelo Prouni, programa voltado para in- serção da população de baixa renda em faculdades particulares, a va- lorização da educação profissional tem sido uma das principais ban- deiras do governo da presidente Dilma Rousseff. Lançado em 2011, o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Téc- nico e ao Emprego (Pronatec) con- ta com 5,7 milhões de matrículas e a meta é chegar a 8 milhões ainda neste ano. O Sistema de Seleção Unificada da Educação Profissional e Tecnológica (Sisutec) seleciona jovens e adultos que já concluíram o ensino médio para as vagas ofe- recidas pelo programa. Apesar do substancial aumento da oferta, três pontos prejudicam a expansão do projeto, de acordo com levantamen- to do Ipea: vagas ociosas, evasão de alunos e déficit de professores. Segundo o gerente do Senai, instituição responsável pela maior oferta de cursos no Pronatec, o pro- blema da evasão só pode ser resolvi- do com ensino básico de qualidade, já que muitos alunos desistem do curso por não terem conhecimentos suficientes de português e matemá- tica para acompanhar as aulas. Atual- mente é de 50% o índice de aban- dono nos cursos de qualificação profissional, de acordo com o Ipea. Já Piemonte, da FGV, destaca a importância da conscientização. “É preciso explicar aos estudantes que o curso técnico é um caminho seguro para encontrar um emprego interes- sante”, aconselha. O perfil assinala- do pelo especialista é mais comum do que se imagina. Dos 22,5 milhões de jovens brasileiros entre 18 e 24 anos, cerca de um terço concluiu o “A

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Mais de 42 milhões de brasileiros ascenderam à nova classe média na última década, trazendo consigo um sonho:investir nos estudos e crescer profissionalmente. É possível desfazer o mito do diploma universitário e garantir a mão de obra qualificada de que a economia necessita?

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Brasil

10 Cidade Nova • Abril 2014 • nº 4

mARtInA [email protected]

mais técnicos, menos bacharéismeRcado de TRaBalHo mais de 42 milhões de brasileiros ascenderam à nova classe média na última década, trazendo consigo um sonho: investir nos estudos e crescer profissionalmente. É possível desfazer o mito do diploma universitário e garantir a mão de obra qualificada de que a economia necessita?

maioria acha menos nobre trabalhar na in-dústria. Mas as pessoas não sabem que um

técnico petroquímico, por exemplo, ganha mais que algumas profissões de nível superior”, esclarece o ge-rente de estudos e prospectivas do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), Márcio Guerra, para quem o mito só pode ser des-feito na base de informação.

Estudo da Confederação Nacio-nal da Indústria (CNI) mostra que 82% concordam que as pessoas com certificado de qualificação profis-sional têm salários maiores. Apesar disso, são poucos os que buscam esse tipo de formação. Entre os jo-vens, a maioria cursa o superior (18%), seguido do médio (15%) e do fundamental (5%). O ensino profis-sional é opção de apenas 3% deles.

Em países com tradição no en-sino técnico, como os europeus, o Japão, a Coreia do Sul e os Estados Unidos, foram necessários em mé-dia 150 anos para estabelecer as es-colas profissionais, explica Divonzir Arthur Gusso, do Instituto de Pes-quisa Econômica Aplicada (Ipea). Não à toa, na média das nações mais

ricas, o índice de pessoas que pas-sam pela educação profissional é de 46%: quase o dobro do percen-tual registrado no Brasil, de acordo com os dados da Organização para a Coo peração e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

formaçãoPara Luis Alberto Piemonte, pro-

fessor da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-EAESP), os recentes programas federais são uma boa resposta para a falsa ideia de que cursar uma faculdade é sem-pre a melhor opção. Enquanto o governo Lula ficou conhecido pelo Prouni, programa voltado para in-serção da população de baixa renda em faculdades particulares, a va-lorização da educação profissional tem sido uma das principais ban-deiras do governo da presidente Dilma Rousseff.

Lançado em 2011, o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Téc-nico e ao Emprego (Pronatec) con-ta com 5,7 milhões de matrículas e a meta é chegar a 8 milhões ainda neste ano. O Sistema de Seleção

Unificada da Educação Profissional e Tecnológica (Sisutec) seleciona jovens e adultos que já concluíram o ensino médio para as vagas ofe-recidas pelo programa. Apesar do substancial aumento da oferta, três pontos prejudicam a expansão do projeto, de acordo com levantamen-to do Ipea: vagas ociosas, evasão de alunos e déficit de professores.

Segundo o gerente do Senai, instituição responsável pela maior oferta de cursos no Pronatec, o pro-blema da evasão só pode ser resolvi-do com ensino básico de qualidade, já que muitos alunos desistem do curso por não terem conhecimentos suficientes de português e matemá-tica para acompanhar as aulas. Atual-mente é de 50% o índice de aban-dono nos cursos de qualificação profissional, de acordo com o Ipea.

Já Piemonte, da FGV, destaca a importância da conscientização. “É preciso explicar aos estudantes que o curso técnico é um caminho seguro para encontrar um emprego interes-sante”, aconselha. O perfil assinala-do pelo especialista é mais comum do que se imagina. Dos 22,5 milhões de jovens brasileiros entre 18 e 24 anos, cerca de um terço concluiu o

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ensino médio e não ingressou em nenhum outro sistema de ensino, superior ou de formação técnica.

A questão das vagas ociosas deve ser combatida na medida em que aumenta o conhecimento da po-pulação sobre o programa, afirma o professor da FGV. “O Pronatec foi criado há dois anos, mas só come-çou a ser conhecido agora. Repre-sentantes da escolas do Pronatec vão a instituições de ensino médio e informam sobre a existência do pro-grama, mas essa forma de divulga-ção não tem sido suficiente”, opina.

O gerente do Senai assinala tam-bém a relevância de integrar ensi-nos médio e técnico: “A integração é um bom mecanismo para associar teoria à prática. Em uma aula de física, é possível utilizar um labo-ratório industrial para realizar de-terminado fenômeno. Na química, pode-se simular a existência de um novo plástico. Dessa forma, você re-

duz o desinteresse pela educação tradicional, dando concretude ao processo de aprendizagem”.

Mesmo com dificuldades, o pro-grama possui a virtude de levar ensino médio e técnico de melhor qualidade para o interior do país, ar-gumenta o pesquisador do Ipea. “De 2011 a 2013, o governo gastava R$ 3,59 bilhões e passou a gastar R$ 4,5 bilhões, sendo que R$ 3 bilhões são aplicados na manutenção das suas próprias escolas, o número de alunos aumentou muito”, contabiliza Gus-so. Segundo ele, o objetivo do go-verno com a interiorização da oferta do ensino técnico é “conferir maior ‘empregabilidade’ aos jovens e dar--lhes melhor escolaridade e preparo técnico para contribuir no desenvol-vimento de suas regiões de origem”.

Para Márcio Guerra, do Senai, com a utilização da nota do Enem, exame utilizado como vestibular em algumas universidades, o in-

gresso de alunos através do Prona-tec deve crescer ainda mais.

necessidadeFoi a impossibilidade de pagar o

curso superior de gastronomia que levou Rafaela Damaris a ingressar no técnico em engenharia de ali-mentos, no Senai, logo após concluir o ensino médio em 2009, antes da criação do Pronatec. “Quando come-cei a fazer o técnico, vi que gastrono-mia não era muito para mim, porque envolve principalmente o preparo e a apresentação do alimento. O técni-co é focado na qualidade do alimen-to, assegurar que vai sair da manei-ra correta, e foi isso que me deixou mais envolvida com o curso”, conta.

No terceiro semestre, Rafaela con-seguiu um estágio em uma indús-tria. Poucos meses depois foi efeti-vada e trabalhou no local durante um ano e nove meses. c

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Formado no mesmo curso, Dio-go Prates ressalta que as empresas do ramo alimentício valorizam a formação técnica em relação à su-perior. “Onde eu trabalho tem três técnicos e só um graduado. Inclu-sive eu recebo um salário maior do que a pessoa com diploma de facul-dade”, explica.

Ainda assim, Diogo admite que a ausência de um curso universitário limita seu crescimento na empresa. “O engenheiro de alimentos tem re-gistro no Crea [Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agro-nomia]. Eu não tenho direito a essa afiliação como técnico, o que me impede de assinar alguns documen-tos. Então acabo limitado no cargo técnico, ainda que eu esteja capaci-tado a fazer o mesmo trabalho que um graduado”, exemplifica.

Para fugir desse tipo de dificul-dade, Rafaela decidiu fazer uma faculdade de tecnologia de alimen-tos, deixou o emprego e percebeu o quanto a qualificação técnica foi importante para abrir as portas do mercado de trabalho. “Essa expe-riência anterior me ajudou bastante a conseguir o estágio para ensino superior. Na entrevista, eu estava competindo com engenheiros de alimentos e acho que essa formação técnica e a experiência anterior na área foram pontos a meu favor”, diz.

competitividade e inovação

Se os jovens têm pressa em ar-ranjar um bom emprego, a indústria também não vê a hora de preencher suas vagas com profissionais qualifi-cados. Segundo o Senai, mesmo sem crescer desde 2010, o setor industrial gerou 1,1 milhão de novos empregos no ano passado. Além disso, é enor-me a rotatividade nesse mercado: 50% dos trabalhadores da indústria trocam de emprego a cada ano.

“Num momento em que a eco-nomia não cresce quase nada, con-tinuamos com falta de mão de obra qualificada”, alerta Márcio Guer-ra. Esse é um problema que afeta 65% das indústrias brasileiras dos segmentos extrativa mineral e de transformação, segundo pesquisa da CNI. “Em todos os países, os gra-duados recebem mais do que os for-mados em níveis inferiores. Mas no Brasil, com a falta de trabalhadores qualificados, o mercado de trabalho começa a dar resposta aumentando os salários dos técnicos”, diz.

Segundo ele, se hoje já é difícil repor os trabalhadores que trocam constantemente de emprego em bus-ca de remunerações maiores, a lon-go prazo manter o contingente de mão de obra qualificada será um dos maiores desafios de uma indústria com alto potencial de crescimento.

Piemonte alerta também para a questão da competitividade: “Hoje temos que produzir bens com qua-lidade e com preço competitivo. Se não tiver profissional qualificado, você pode planejar da melhor forma, não vai funcionar”. Como exemplo, cita a Coreia do Sul. Conhecido pela tecnologia de ponta, o país passou por três etapas: copiar, aprender a fa-zer e, finalmente, produzir melhor. “O Japão, a partir da Segunda Guer-ra [1939-1945] até hoje, passou pelas três fases. A China está na primeira, mas logo vai começar a melhorar e inovar”, aposta. “Para entrar nesse ciclo, precisa pôr a mão na massa, fazer direito e isso é ensino técnico. A chave do sucesso para ser competi-tivo não é formar doutores.”

O potencial inovador do técnico é tão grande que muitos se formam e acabam fugindo das fábricas ou da continuidade dos estudos para se tornarem donos do próprio negócio. “Quanto melhor você souber fazer e reconhecer as dificuldades, mais vai enxergar alternativas para me-

lhorar, então ser técnico facilita o empreendedorismo”, diz Piemonte.

Perspectivas“Se o país tem plano de desenvol-

vimento para avançar no processo de agregação de valor dos produtos, no fortalecimento de setores que te-nham maior capacidade tecnológi-ca e de inovação, a figura do técnico é crucial. Temos que trabalhar para melhorar essa relação porque isso vai ser bom para a sociedade, para a indústria e para todos os segmentos que exijam esses profissionais”, re-sume Guerra.

Para Piemonte, o principal desa-fio na expansão do ensino técnico é descobrir quais são as profissões que podem fortalecer o país nos próxi-mos anos. “O Chile optou por não produzir carros porque não possuía mercado interno suficiente. Então investiu em itens mais relevantes para a economia do país: vinho, frutas secas e softwares”, enumera.

O gerente do Senai aposta que as áreas com maior potencial no Brasil serão as de biotecnologia e nanotec-nologia. “São conhecimentos trans-versais que estão presentes desde a embalagem até o setor de alimentos ou o automobilístico, e que têm a ver com evolução dos produtos e agregação de valor”, explica. Ainda assim, Guerra assinala a contínua relevância das áreas mais tradicio-nais, já que a estrutura do país não deve mudar de uma hora para outra.

Já Gusso ressalta a necessidade de suprir as escolas “tanto de professo-res pós-graduados, quanto de bons instrutores com conhecimentos téc-nicos”. Para ele, também é importan-te criar currículos mais adequados a esse tipo de formação e às exigên-cias do mercado de trabalho. Assim como o pesquisador do Ipea, Guerra, do Senai, defende o aumento de qua-lidade dos cursos técnicos.

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