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Manifestações do Movimento Higienista em Caetanópolis (MG) no início
do século XX
Maria Magna da Silva Moreira
1. Introdução –
O higienismo surgiu na Europa e expandiu-se para outras partes
do mundo, inclusive para o Brasil em um contexto de crescimento do
capitalismo industrial e desenvolvimento das pesquisas científicas. O
processo de industrialização e urbanização vivido a partir da Revolução
Industrial teve como consequência a formação de uma nova classe
social, o operariado e a aglomeração de pessoas no estreito espaço
urbano. As péssimas condições de trabalho e moradia, aliadas a essa
aglomeração de pessoas tiveram como consequência o surgimento de
epidemias. Essas epidemias comprometiam a produção industrial com
as frequentes faltas ao trabalho e à baixa expectativa de vida dos
trabalhadores.
Em todos os lugares surgiram vozes proclamando a necessidade
de se promover a saúde do trabalhador. Isso se daria através da
divulgação e implantação de normas de higiene, uma vez que a doença
era vista como resultado do descuido e da ignorância do operário.
Inúmeras obras foram escritas com essa finalidade. Boa parte das teses
defendidas pelos concluintes do curso de Medicina na Faculdade de
Medicina do Rio de Janeiro em todo o século XIX teve como tema direta
ou indiretamente o Higienismo. Vários veículos de comunicação
produzidos pelo empresariado e destinados à classe operária também
trataram do tema. Em Caetanópolis (MG), dirigentes da Cia de Tecidos
Cedro Cachoeira produziram documentos como os “Conselhos para
uma Vida Feliz” e criaram um serviço de banhos com respectivo
regulamento nas instalações da fábrica, já no início do século XX.
Examinar o discurso presente nesses documentos (Conselhos
para uma Vida Feliz e Regulamento Interno dos Banheiros de Vitalidade
da Fábrica do Cedro) constitui objeto de nosso trabalho. Identificar o
discurso higienista no interior da fábrica é de fundamental importância,
tendo em vista sua influência na formação cultural da sociedade
caetanopolitana.
1.1 Procedimentos utilizados para esclarecimento do problema;
Desenvolveu-se uma pesquisa bibliográfica, de natureza exploratória,
através da leitura de algumas obras sobre o tema. Como fontes primárias
foram utilizados dois documentos; “Conselhos para uma Vida Feliz” e
“Regulamento Interno dos Banheiros de Vitalidade da Fábrica do Cedro”
disponíveis no acervo do Museu Têxtil Décio Magalhães Mascarenhas.
Examinou-se também as correspondências recebidas pela Companhia de
Fiação e Tecidos Cedro Cachoeira entre os anos de 1915 a 1927, período em
que a Companhia foi dirigida por Antonino Pinto Mascarenhas, principal
expoente do Higienismo na região.
2.Desenvolvimento
2.1 Um breve histórico
O movimento higienista surgiu na Europa em um contexto de
crescimento do capitalismo industrial e desenvolvimento das pesquisas
científicas. Se a industrialização trouxe como consequência a urbanização e o
surgimento e pauperização da classe operária, as descobertas científicas, por
sua vez, apontavam para a necessidade de intervenção da sociedade nos
problemas da população. “A urbanização apressada e sem estrutura
condicionou os novos operários a péssimas condições de vida.” (GOIS JR,
2000, p. 31) Não havia saneamento básico e as epidemias alastravam-se.
Médicos, escritores e outros passaram a se manifestar contra as
péssimas condições de saúde da população. Já no início do século XVII, as
doenças ocupacionais eram objeto de obras médicas. Ramazzini publicou “De
Morbis Artificum Diatriba” (Discurso sobre as doenças dos artífices) no qual
“dedicou-se a chamar a atenção para a necessidade de prevenir as
enfermidades dos trabalhadores, estudando mais de quarenta profissões”
(GÓIS JR, 2000, p. 39) O operário doente causava prejuízos à indústria, razão
pela qual a saúde do trabalhador tornou-se motivo de preocupação por parte
do empresariado.
O período foi marcado pela difusão de várias teorias a respeito das
formas de contágio e propagação de doenças. O discurso higienista procurava
demonstrar uma relação direta entre a saúde pública o os níveis de pobreza.
PENTEADO, SHON CHUN e SILVA (2005) lembram que na História o
conceito de higiene “comporta concepções de sujeito, educação e de saúde
que se desenvolvem vinculadas ao desenrolar das tensões existentes nas
relações de poder entre as classes sociais.” Sendo assim:
O higienismo desenvolve-se em meio às tensões dos jogos de interesses econômicos e produtivos, à dominação das classes hegemônicas e às diferenças culturais e de identidade dos vários segmentos sociais e dos seus modos característicos de apropriação da cultura e de sensibilidades, os quais refletem as maneiras de os homens compreenderem o mundo e de nele se posicionarem. (PENTEADO, SHON CHUN e SILVA, 2005. p.11)
Na Grécia Antiga, as questões de higiene eram objeto da atenção da
aristocracia, única classe social apta a viver o ideal de vida higiênica daquela
sociedade: equilíbrio entre nutrição, excreção, exercício e descanso. Na
sociedade romana, a higiene expressava-se nos banhos públicos e nos
sistemas de saneamento. Condenavam-se práticas como comer ou beber em
excesso.
Durante a Idade Média havia uma preocupação em apartar, banir as
imundícies “valendo-se de uma mentalidade de fragmentação entre campo e
cidade, rural e urbano”. Desenvolveu-se uma imagem pejorativa dos
segmentos populares. Os camponeses passaram a serem considerados
ignorantes e sujos.
A partir do século XVII, o conceito de “limpo” ampliou-se significando
também distinção, elegância, ordem e disciplina. A ordem era manter uma vida
regrada. Obediência, docilidade e utilidade eram características desejáveis ao
indivíduo a serviço da economia. (PENTEADO, SHON CHUN e SILVA, 2005)
No final do século XIX a escola toma para si a missão de disciplinar e preparar
os indivíduos para a vida cotidiana. Assim,
[...]é que, por meio de práticas educativas, o corpo e suas formas de expressão, a vida pública e privada e o conjunto das atividades e condutas a elas relacionadas, mantêm-se aprisionados no interior de poderes que lhes impõem limitações, proibições e obrigações.[...] A partir do século XX, a higiene vai se transformando em disciplina nos campos da medicina e das políticas públicas e torna-se um tipo de policiamento sanitário que incorpora a lógica militar na linguagem, no planejamento e na forma de realizar as práticas de saúde. (PENTEADO, SHON CHUN e SILVA, 2005. p.12)
2.2 O Higienismo no Brasil
A virada do século XIX para o século XX no Brasil foi marcada por
profundas transformações nos campos político, social e econômico. A república
recém-proclamada dava seus primeiros passos. O trabalho escravo fora
substituído pelo trabalho livre. A população tornava-se cada vez mais urbana. A
burguesia sonhava em consolidar-se como Nação desenvolvida. A
industrialização desenvolvia-se e o proletariado crescia em número,
profundidade e organização política. O Estado não conseguia satisfazer as
demandas da população. Pretendia-se diminuir a grande incidência de
mortalidade infantil, aumentar o número de pessoas sadias e dispostas ao
trabalho e transformar o Brasil em uma grande Nação, formada por uma raça
forte.
Aos dirigentes republicanos interessavam o desenvolvimento de um projeto de controle higiênico dos portos, a proteção da sanidade da força de trabalho e o encaminhamento de uma política demográfico-sanitária que contemplasse a questão racial. Abriu-se campo para a proliferação de tecnologias e para o trabalho de especialistas que investigavam sobre a saúde dos imigrantes, a situação sanitária dos portos, o dia-a-dia das cidades, a higiene infantil, os hábitos e costumes populares, a eugenia ou “ideal de branqueamento” do povo brasileiro, o trabalho fabril, o mundo do crime, etc. O discurso médico-higiênico acompanhou o início do processo de transformação política e econômica da sociedade brasileira em uma economia urbano-comercial e expressou o pensamento de uma parte da elite dominante que queria modernizar o país. (MANSANERA; SILVA, 2000. p.117)
As cidades cresciam desordenadamente impulsionadas pela
industrialização. O operariado vivia em condições insalubres ocasionando o
aparecimento de epidemias de febre amarela, cólera, varíola, etc.
O movimento pró-higiene mental é uma orientação teórica e prática, custodiada por uma concepção de mundo e de homem, com forte apelo ao indivíduo e à hereditariedade como princípios de uma Nação saudável. (WANDERBROOCK JR, 2007. p. 13)
Isabel Aparecida Bilhão em sua tese de doutorado intitulada “Identidade
e Trabalho: Análise da construção identitária dos operários porto-alegrenses
(1896 a 1920)” analisa a construção da identidade operária na cidade de Porto
Alegre (RS) na virada e início do século XX, a partir de textos publicados em
jornais operários e comerciais. A autora afirma que naquele período existia, por
parte do estado, da imprensa e mesmo do empresariado uma forte concepção
do trabalho como elemento moralizador e disciplinador da sociedade e,
inclusive uma exaltação permanente, nos discursos e veículos jornalísticos, do
valor do trabalho como dignificador dos homens. (BILHÃO, 2005, p. 70) A
imagem do operário construída pelo discurso dominante associa-o ao vício, à
preguiça e à indisciplina “sempre que ameaçavam sair do controle e/ou
reivindicavam melhores condições de vida e trabalho”. (BILHÃO, 2005, p. 70)
As publicações voltadas ao público operário refutavam a imagem acima,
mas defendiam “uma conduta operária baseada nos cânones éticos-morais
predominantes no período” (BILHÃO, 2005, p.89). Procurava assim, diferenciar
o operário das chamadas “classes perigosas”. Através de um discurso
pedagógico defendiam desde a instrução para os operários até a necessidade
de união e cooperação. Tratavam de questões ligadas à higiene e ao combate
aos vícios.
Inúmeras campanhas sanitaristas eram desenvolvidas em Porto Alegre
(RS) no início do século XX, “trazendo consigo uma grande quantidade de
fórmulas de combate à sujeira e de prevenção de doenças”. (BILHÃO, 2005, p.
95) Em 1912, o jornal O Diário publicava os “Dez Mandamentos de Higiene”:
1º O melhor preservativo das doenças pulmonares é o ar fresco, de dia e de noite, condição necessária para a saúde. 2º O movimento é a vida. Fazer todos os dias exercícios ao ar livre trabalhando e passeando. É o contrapeso do trabalho sedentário. 3º Comer e beber simples e moderadamente. Quem preferir ao álcool a água, o leite e a fruta, consolida a saúde e aumenta as suas capacidades de trabalho e de felicidade. 4º Os cuidados inteligentes da pele, resistir ao frio por meio de lavagens de água fria, e tomar um banho quente uma vez por semana, isto todo o ano; pode-se assim conservar a saúde e evitar os resfriamentos. 5º O vestuário não deve ser nem muito quente, nem justo ao corpo. 6º A habitação deve ser exposta ao sol, seca, desafogada, limpa, clara, agradável e cômoda. 7º Rigoroso asseio em tudo: ar, alimento, água, pão, roupa,
vestuário, casa, tudo deve ser limpo: também a moral; é o melhor preservativo da cólera, tifo e demais doenças contagiosas. 8º O trabalho regular e intensivo é o melhor preservativo das doenças do espírito e do corpo, é a consolação nos contratempos e a felicidade da vida. 9º O homem não acha o repouso e a distração, após o trabalho, nas festas turbulentas. A noite é para dormir. As horas de descanso e as festas devem consagrar-se à família e às satisfações espirituais. 10º A primeira condição de saúde é uma vida fecunda pelo trabalho e enobrecida por boas obras e alegrias sãs. O desejo de ser um bom membro de família, um bom trabalhador na sua esfera de ação, um bom cidadão, isso dá à vida um valor inestimável (BILHÃO. 2005, p.
97)
Em Sergipe, em 1893 o seu Presidente faz publicar regulamentação
para o serviço de higiene pública ao instituir o Regulamento do Serviço
Sanitário do Estado, datado de 30 de novembro de 1892. No documento oficial
tratava-se do Serviço de Higiene – Inspetoria e atribuições do Inspetor e dos
Delegados de Higiene; normatizava o exercício da Medicina, de Farmácia, de
Obstetrícia e da Odontologia, e o funcionamento de drogarias e lojas de
instrumentos cirúrgicos e por fim tratava da competência da então instituída
Polícia Sanitária. (AZEVEDO, )
A medicina, que no século XIX procurava ocupar um lugar central na
sociedade, incorporou o discurso higienista. Na corte do Rio de Janeiro, por
exemplo, ocupava-se de explicitar as contribuições da “Hygiene” para a
formação de um novo homem. É o que se pode depreender das análises das
teses defendidas pelos concluintes do curso de medicina na segunda metade
do século e que foram objetos de estudo de José Gondra. As prescrições
médicas se estendiam a recomendações quanto às configurações do espaço
escolar. Segundo esse autor, a Higiene foi o ramo da ciência médica
que mais intensiva e prolongadamente colaborou para unificar as prescrições médicas, no que diz respeito às representações acerca da escola e dos sujeitos escolarizadores e escolarizáveis; respectivamente, professores e alunos.(GONDRA, 2004, p.133)
Os futuros médicos estavam preocupados com questões como a
localização, a dimensão e a arquitetura dos estabelecimentos escolares. Era
preciso construir a escola longe dos focos de infecção e dentro dos princípios
da Higiene. Regulavam também o tempo das aulas e dos recreios; a
alimentação dos alunos; os sentidos e suas excreções; o banho; o sono; o
tralho físico e intelectual e, finalmente, os princípios morais e disciplinares. A
formação adequada do ser humano estava relacionada à sua saúde, ao seu
desenvolvimento físico e intelectual e à dimensão moral. (GONDRA, 2004, p.
154)
Apoiando-se no modelo defendido por higienistas franceses, defendia-se
seis princípios que norteavam as recomendações quanto as configurações do
espaço escolar, a saber:
1) Circumfusa: referia-se à localização e configuração física dos
estabelecimentos escolares; dever-se-ia levar consideração aspectos
climáticos e geográficos na escolha do local de construção dos colégios.
Estes deveriam ser afastados do centro urbano e do mar (e de sua
umidade), cercados de arvoredos (os quais não deveriam ser plantados
muito próximos das construções) e próximos de um curso d’água
(favoreciam a prática da natação). Internamente, os dormitórios
deveriam ser amplos e arejados, a enfermaria afastada das demais
instalações e as latrinas deveriam ser construídas em lugar remoto no
sistema inglês. Especial cuidado deveria ser tomado com a iluminação,
preferindo-se a luz natural; na ausência desta dever-se-ia utilizar óleos
purificados na alimentação das velas.
2) Applicata: tratava-se da higiene pessoal, dos cuidados com o corpo e
com os dentes e do vestuário. Os higienistas preocupavam-se com
questões como o material utilizado na confecção dos tecidos, a
conservação das roupas e combate à moda, a qual considerava nociva à
saúde. Regulavam os banhos e outros aspectos da higiene pessoal.
Nesse aspecto prescreviam detalhadamente a regularidade a duração
dos banhos, a temperatura da água e as ações a serem desenvolvidas
no seu decorrer.
3) Ingesta: o terceiro item defendido pelos higienistas tratava
especificamente da alimentação. As orientações eram quanto à rotina
alimentar (quantidade de refeições, duração das mesmas, cardápio);
quantidade (moderação) e qualidade (substancialidade, digestibilidade e
variedade). Havia uma série de informações químicas, bioquímicas e
fisiológicas acerca dos alimentos e eram dadas recomendações
específicas em relação à configuração das cozinhas (a serem
localizadas em construção separada das demais instalações).
4) Gesta: Os médicos refletiam sobre a importância do exercício físico
executado de modo adequado. Apresentavam uma série de exercícios
apoiados em ideias de disciplinarização e de formação de uma raça
forte. As representações médicas acerca do corpo estavam associadas
a)à necessidade de se intervir no corpo, isto é, de formar e de educar o corpo; b) a perspectiva de se desenvolver uma intervenção integrada, articulada e associada com as preocupações intelectuais e morais; e c)a extensão da intervenção no corpo.(GONDRA, 2004. p. 287)
5) Excreta: os médicos identificavam diferentes modalidades de excreção,
todas muito importantes para o equilíbrio do corpo: cutânea
(transpiração; a pele, local de trocas entre organismo e ambiente deveria
estar sempre limpa e livre), pulmonar, corneal, bucal, urinária,
defecativa, seminal e catamenial. Descreviam detalhadamente os
procedimentos a serem adotados quanto a higienização da pele, da
boca e dos cabelos. Afirmavam que não se deveria restringir a
satisfação das necessidades fisiológicas. Prescrevia-se cuidados a
serem tomados com a moça após a primeira menstruação e com os
rapazes púberes. Nesse sentido, as preocupações se davam de modo a
se preservar os valores morais da sociedade da época.
6) Percepta: Nesse item estavam inclusas as recomendações cujo objetivo
era moldar os sentidos, através da educação literária, moral e religiosa.
Para isso, os higienistas procuravam “traçar um mapa das funções
vinculadas aos sentidos da visão, do tato, do olfato e do paladar”.
(GONDRA, 2004. p 217). Um extenso conjunto de medidas era
defendido para a promoção da saúde da visão, da audição, do paladar,
do tato e do olfato. Essas medidas estavam ligadas à configuração dos
ambientes e a hábitos a serem adotados.
O discurso médico higienista, por tanto, descrevia as indicações e
contra-indicações quanto à organização do espaço escolar, estabelecendo o
que era considerado normal ou patológico. Aos poucos, esse discurso
dispersou-se por outros espaços sociais, determinando as regras para a
promoção e conservação de indivíduos sadios. Um dos espaços sociais no
qual esse discurso se difundiu foi a fábrica, como veremos a seguir.
2.3 O discurso higienista no interior da fábrica
Como foi dito anteriormente, o Brasil passava por profundas
transformações no final do século XIX e início do século XX. No plano
econômico, o país tornava-se menos agrário e experiências de industrialização
ocorriam em várias partes do país, mais notadamente na região Sudeste.
No interior do estado Minas Gerais as fábricas de tecidos desenhavam
uma nova ordem social, com o surgimento de uma classe operária e das
cidades em seu entorno.
A formação do operariado constituiu-se desde o início uma preocupação
constante por parte do empresariado, tendo em vista que esse era um fator
vital para o sucesso do empreendimento industrial. Construídas em regiões até
então com vocação agrária, no interior, distante dos grandes centros urbanos,
as fábricas de tecidos necessitavam qualificar seus funcionários e adequá-los à
nova visão de mundo representada pelo modo de produção capitalista.
Desse modo, era necessária a construção e adoção de um novo
arcabouço ideológico,
numa estratégia de formação de mão-de-obra,(...) pela assimilação de valores, de normas, pela mudança de mentalidade, pela adoção
de uma nova concepção do mundo, por um novo modo de pensar e sentir a vida.(GIROLETTI, 2002. p 186)
O homem forte e enérgico defendido pelo movimento higienista
configurava-se como ideal nesse novo cenário. Dessa forma, os dirigentes
apoderaram-se do discurso higienista como estratégia de formação desse novo
operário.
Em Caetanópolis (MG), o movimento higienista manifestou-se,
sobretudo no interior da Companhia de Fiação e Tecidos Cedro Cachoeira.
Criada em 1868, a empresa que daria origem à Companhia inaugurou sua
primeira fábrica de tecidos no ano de 1872, no povoado do Cedro, atual
Caetanópolis. Tal fato transformou radical e definitivamente a região. Nos
arredores da fábrica, construída em área rural, surgiu e cresceu rapidamente a
vila operária. Para a vila acorreram pessoas vindas de todo o interior de Minas
Gerais. Pessoas habituadas a um modelo de vida rural, ao modo de produção
agrário e escravagista que vigorara até então.
Era necessário, por tanto, adequar essas pessoas ao modo de produção
industrial; transformá-las em operários disciplinados, saudáveis, dispostos ao
trabalho duro das fábricas. Para que essa transformação se efetivasse algumas
estratégias foram utilizadas pelos dirigentes. Dentre essas estratégias destaca-
se o regulamento.
No interior da fábrica, o comportamento dos operários era influenciado por vários dispositivos que regulavam sua atuação em aspectos importantes: a)criar hábitos de obediência e respeito aos superiores; b)infundir um ambiente de “ordem”, de “organização”, de “limpeza”, de “economia”, que garantisse o funcionamento ordenado da produção fabril eliminando-se qualquer desperdício; c)ensinar a melhor maneira de trabalhar e o emprego produtivo do tempo, evitando a dispersão, distração ou posturas inadequadas que comprometessem o bom desempenho da produção; d)evitar o absenteísmo ou retiradas inesperadas do trabalho; e) coibir a circulação aleatória na própria seção ou entre repartições durante a jornada; f) eliminar a violência física nas relações de trabalho entre operários e chefes ou subordinados (GIROLETTI, 2002. p. 193-194)
O regulamento estabelecia o lugar e o papel de cada indivíduo dentro
das instalações da fábrica e as sanções para quem infringisse as regras. Do
mesmo modo, a vida nas vilas operárias estava sujeita ao cumprimento de uma
série de normas previstas no regulamento, as quais procuravam garantir a
ordem social. Essas normas estavam relacionadas ao comportamento no
espaço público e no interior das residências, além de regras de higiene.
Mas, os principais mecanismos utilizados na formação do homem novo e
que se utilizavam dos princípios higienistas, foram a criação de um serviço de
banhos no interior das fábricas e a distribuição de documentos com preceitos
de higiene, notadamente os “Conselhos para uma vida feliz”. Esse documento,
sem data, foi elaborado e distribuído início do século XX, pela direção da
Companhia a todos os operários. Elaborado pelo gerente da fábrica do Cedro,
o Sr. Antonino Pinto Mascarenhas, esse documento inicia-se com um aviso:
A administração da Fábrica do Cedro tendo verificado que muitos dos males, senão todos, que tanto deprimem e fazem sofrer o homem, amargurando-lhe a existência e inutilizando-o para o trabalho, são, principalmente, devidos à ignorância e ao descuido dos que os contraem, resolveu pedir conselho a uma das mais esclarecidas sumidades médicas do país, o Exmo. Sr. Dr. Miguel Couto, que traçou um regime higiênico de defesa, dentro do qual o indivíduo se manterá em imunização permanente, como se o revestisse diamantina couraça. A doença, quando irrompe, é como o fogo que, depois de se haver comunicado à lenha, mordendo-a, aos poucos, crestando-a, esbraseando-a, súbito, a um sopro de ar, atiça-se e flameja. Assim, a enfermidade: antes de abater já lavrava, latente, envenenando o sangue, relaxando os nervos, invadindo todo o organismo, até manifestar-se, como a chama, na violência da febre e na decadência das forças. A vida é um bem precioso, que se deve zelar, e, em tal zelo, além do interesse próprio, deve também haver respeito e gratidão pelo dom divino que recebemos. O homem são é uma força nobre; o enfermo é uma inutilidade que, com o seu sofrimento, com sua fraqueza torna-se um ser incômodo, vexame para si próprio, peso para os seus e elemento nulo, quando não prejudicial à espécie. A vida que recebemos é uma fortuna e aquele que a dissipa é o pior dos pródigos. Assim, o nosso dever consiste em zelar e defender o tesouro que temos. Vivamos e sorrindo, isto é – cultivando a alegria, que é a flor da saúde. E, para que vivam felizes todos os seus auxiliares aqui lhes oferece a administração da Fábrica do Cedro os preciosos segredos contidos, como talismãs de ventura, nos Conselhos do Dr. Miguel Couto para conservação e aperfeiçoamento da vida.
A seguir, o documento passa a traçar alguns conselhos para se viver
uma vida de equilíbrio. Orienta a aproveitar os benefícios da luz solar. Deve-se
abrir as janelas, para que a luz do sol adentre os ambientes. “Na casa onde
brilha o sol o médico não entra.” Recomenda-se respirar o ar mais puro
possível, por isso a casa deve estar limpa e seus arredores livres do lixo e das
águas estagnadas. A água deve ser filtrada. Em tempos de epidemias deve-se
ferver a água para inutilizar os germens que nela se depositam.
Especial atenção é dada as atividades físicas. “O movimento é o
despertador da vida e o mantenedor da energia.” Recomendam-se passeios ao
ar livre, entre árvores, perto de água viva. Já o alimento “deve ser
rigorosamente fiscalizado, desde o leite que se dá a uma criança, até a sopa
que se ministra ao ancião.” Devem-se evitar os exageros e observar os
horários. Deve-se “sentar à mesa com espírito tranquilo e bem disposto”,
evitando-se no momento das refeições as conversas que aborrecem, as
discussões e as lembranças acabrunhantes.
O documento afirma ainda que “enquanto dormimos a natureza
providencial repõe o que o trabalho, os sofrimentos físicos e morais exauriram”.
Sendo assim, é necessário dormir em um ambiente purificado pela renovação
do ar. Para isso, o quarto deve receber o sol durante o dia e o ar à noite. O leito
deve ser asseado e as roupas sempre limpas e secas. Deve-se deitar e
levantar cedo. Os cuidados devem continuar no dia seguinte, ao se levantar,
com o asseio e refresco do corpo, principalmente da boca.
Bons dentes – sobre serem ornamentos dos que mais atraem e atestam cuidado de limpeza, são garantias de bom estomago e, sendo o estomago o aparelho distribuidor das substancias as nutrição, possuí-lo perfeito é ter garantida a força, que é o capital da saúde.
O documento continua, combatendo os abusos, os exageros, pois “o que
é benefício, quando tomado em porção bastante ou realizado com método
pode acarretar a ruína se o empregarmos (...) com abuso”. Afirma que o corpo
e a alma pedem cuidados idênticos. Sendo assim, da mesma forma que se
frequentarmos lugares imundos ou nos servimos de utensílios sujos teremos
nosso corpo contaminado, o mesmo se dará com nossa alma se nos
acamaradarmos com gente de má vida, pessoas vadias. “O tempo que se
perde em más companhias volta-nos mais tarde, em miséria e remorso.”
Um especial cuidado deve-se ter quando se chefia um lar, pois “um
relaxado de si e, duas vezes, criminoso porque não só se inutiliza, a si, como,
procriando, gera infelizes degenerados.” A criança deve, pois, ser educada e
corrigida desde o berço. Ela aprende com o exemplo. Por tanto, “é dever dos
pais fazerem a criança sentir e amar a natureza, não consentindo que nela
dominem maus instintos.”
O documento termina afirmando que
Observando tais preceitos o homem viverá feliz, e com honra, útil a si, aos seus, à Pátria, à Humanidade e ao tempo, agradando a Deus que é remunerador generoso de todas as virtudes, que por si só encerram as recompensas.
Vê-se, pois, a preocupação do gerente da fábrica em regulamentar os
hábitos dos operários e a forma como organizavam o espaço de suas
residências, de modo a promoverem a saúde física e mental. Nessa época,
filtros de água foram comprados e distribuídos a todas as famílias dos
operários mediante desconto do valor nos ordenados.
Percebe-se na leitura do documento uma postura paternalista por parte
da direção da fábrica. Esta assume para si a tarefa de orientar a seus operários
quanto à postura adequada e ao conjunto de hábitos para uma vida saudável.
Ao regular a vida do trabalhador em todas as instâncias de sua vida, inclusive
quando o mesmo estava afastado de suas atividades laborais, a fábrica tomava
para si a tutela do cidadão, incutindo-lhe uma nova visão de mundo, aquela
preconizada como ideal pelo empresariado.
Sendo, segundo essa visão, a doença o resultado da ignorância e do
descuido do operário, cabe à fábrica impor-lhe um “regime higiênico de
defesa”. Para isso, utiliza-se de uma linguagem prescritiva, com máximas e
axiomas a serem seguidos. As orientações permeiam todos os momentos da
vida do operário, desde o acordar, a alimentação, a configuração de seu quarto
e de sua casa, até a vida social, o lazer e o sono. A fábrica se faz onipresente.
Já os serviços de banho foram instituídos pelo mesmo gerente “com o
fim de proporcionar todo vigor e salubridade a seus operários e, ao mesmo
tempo facultar-lhes meio de aperfeiçoar-se e valorizar-se.” Todo operário de
procedimento regular e que não sofresse de doenças infectocontagiosas tinha
direito a um banho semanal nas instalações da fábrica. Com a construção das
salas de banho, a administração da fábrica esperava que todos concorressem
para a “conservação moral e material desta instituição, coisa, aliás, fácil de
conseguir de um pessoal de bons costumes e amante do progresso, como é o
pessoal da Cedro.” O Regulamento Interno dos Banheiros de Vitalidade da
Fábrica do Cedro trazia a descrição detalhada dos procedimentos a serem
tomados pelo operário ao se candidatar a esse serviço. Cada operário recebia
um cartão no qual eram marcadas a data e a hora para o banho. Era
expressamente proibido ofender os companheiros com gestos ou palavras
imorais. Durante o horário de serviço era proibida a presença de operários na
casa de banho. Era proibido estragar pertences e móveis, sujar ou rabiscar
paredes, quebrar vidros, arrombar portas, correr dentro da casa de banhos e
frequentar um banheiro diferente do indicado no cartão. Proibia-se também a
presença simultânea de duas pessoas no mesmo banho ou latrina e andar
descomposto nos corredores e salas. O banho de chuva (chuveiro) deveria
durar no máximo quinze minutos. Por fim, proibia-se também permanecer ao
redor da casa de banhos “tentando olhar ou gritar para os que estão dentro e
praticar atos reprováveis.”
Alguns preceitos do banho eram explicitados aos operários:
1) O banho em temperatura natural, o qual não deve ser demorado, estimula todo o corpo e, roubando-lhe calor, já sem utilidade refresca salutarmente as pessoas que reagem bem.
2) O banho morno também chamado neutro ou indiferente é o mais aconselhado e, de 26 a 30 graus centígrados acalma, desaltera, descansa o organismo.
3) Qualquer dos banhos acima faz o asseio da pele, retirando as impurezas que de continuo caem sobre ela. Estas impurezas são ora lançadas pelo exterior e são as poeiras, gazes e todos maus contatos; ora lançados pelo interior do corpo e que são, além dos apontados nos “Conselhos para uma vida feliz” mais de 3.000.000 de esgotinhos (que são os poros) lançam diariamente na pele de cada pessoa na quantidade cerca de 1 a 2 quilos de imundícies que não retiradas azedam e dão um cheiro desagradável e as feridas perceptíveis ou não, que prejudicam o bom funcionamento da pele, o qual é de maior importância para a vida.
4) O banho, pois, cura certas moléstias, atalha muitas outras, perfectibiliza (sic) as pessoas sadias que dele faz uso e constitui prazer deleitável para pessoas perfeitas, como para todo vivente sobre quem Deus faz cair a chuva benéfica do Céu.
5) Antes do banho, que não deve ser usado com estomago cheio, deve-se limpar os entre dentes com palito ou fio de linha, escová-los e à boca, com sabão comum e gargarejar, enxaguar a garganta com água desinfetante ou pura; cortar as unhas dos pés e das mãos, aparar a barba (se a tiver) e uma vez por mês aparar o cabelo.
6) Os banhos de chuva, neutros ou frios, devem ser tomados de dois jatos, sendo o primeiro rápido para molhar o corpo, feito o que se esfrega com toda força com bom sabão, fazendo a massagem enérgica da pele e músculos. Em seguida, tomam-se um jato para enxaguar a fundo, sem deixar nenhum sabão na pele.
7) Após o banho é indispensável usar roupa limpa para que a pele não reabsorva os venenos perigosos que contem a roupa suja.
8) Ainda hoje discutem os sábios a vantagem de enxugar, ou não, o corpo após o banho.
O regulamento trazia ainda, as penalidades a serem aplicadas no caso
de desobediência às regras. Dependendo da gravidade da infração as
penalidades iam desde a proibição de frequentar os banhos por até dois
meses, até o desligamento e expulsão do operário. As proibições ocupavam
grande parte do documento. Também estava presente a linguagem prescritiva
e paternalista. Essas estratégias (proibições e linguagem utilizada) garantiam
o entendimento e o cumprimento das regras. O operário competente tinha
uma postura adequada no ambiente de trabalho, ocupando exatamente o
espaço que lhe era reservado pela fábrica; não desperdiçava tempo ou
recursos materiais (matérias-primas e bens de produção); não se ocupava de
atividades estranhas ao trabalho. A mesma postura ilibada era adotada nos
outros momentos de sua vida. Ao levar uma vida comedida, sem exageros
fora do ambiente de trabalho e ao cuidar do ambiente de sua residência, de
modo a se evitar as doenças, o operário mantinha-se produtivo, garantindo
dessa forma a regularidade, sempre crescente, de produção da fábrica.
Por outro lado, em uma sociedade em que o Estado pouco se fazia
presente, a escolarização era precária e a saúde pública um tema quase
desconhecido, a fábrica assumia o papel de educar e orientar. A área de
atuação da fábrica ultrapassou seus limites estendendo-se à vila operária e
até mesmo às cidades vizinhas.
Sobre esse aspecto, a fábrica assumir o papel do agente público, uma
carta da diretoria da empresa ao agente executivo do município, Padre
Augusto Horta, enviada em 21 de março de 1925, é bem sintomática. O autor
da carta informa ao agente que:
Quando fui vereador, creio que em 1913, apresentei à Câmara Municipal da Vila um projeto sobre a instalação de um “moinho de vento” na fábrica do Cedro, tendo o mesmo sido convertido em lei, em virtude de aprovação da Câmara e sanção do Agente Executivo de então. Até hoje, porém, não foi dada execução a aludida lei, não sei se por ter sido revogada ou por qualquer outra circunstância; o fato é que até o presente momento não foi instalado o Moinho a que me refiro. E assim sendo, venho consultar a V. Revdma. sobre o seguinte: Tendo a gerencia da Fábrica do Cedro obtido do governo do Estado a vinda aqui de profissionais com os respectivos aparelhos para perfurarem um ou mais poços artesianos par afins industriais, julgo propícia a ocasião par a a instalação do Moinho, e, assim desejava saber se V. Revdma. na qualidade de muito digno Agente Executivo, poderia concorrer com o Moinho, por conta do Município (cujo Moinho poderá custar pouco mais ou menos 2:000$000), correndo as demais despesas por conta da fábrica do Cedro. A gerência do Cedro se prontifica a comprar o Moinho e ir recebendo a importância de 500$000 ou 600$000 que seriam retirados dos impostos a serem pagos pela fábrica ao Município. É uma medida de grande utilidade para os habitantes do Cedro e para o público em geral e que deveria ser tomada na devida consideração pelo esclarecido espírito de justiça de V. Revdma. Fica muito cômodo par ao Município, que terá assim ensejo de prestar relevante benefício a uma população que raríssimas vezes incomoda a Câmara com tais pedidos. (...)
Garanto a V. Revdma. que a vossa aprovação a este nosso “desideratum” muito agradará ao povo do Cedro. (CE A84-ano:1925, mês:03)
A instalação do moinho certamente beneficiaria a fábrica. No entanto,
seus benefícios se estenderiam a toda a comunidade em seu entorno. A
fábrica, por tanto, assumia o papel do poder público (propiciando algum
benefício à população, embora fosse remunerada para tal). Uma
correspondência da Comissão Geográfica e Geológica recebida pela fábrica
em novembro de 1925 demonstra que o agente executivo municipal aceitou tal
proposta:
(...) De acordo com o meu ofício nº 27 de 04 de abril do corrente ano,
o preço do moinho fornecido a essa firma, é de 2:080$000, por esta
razão, rogo-vos o obséquio de mandar o pagamento do restante que
é de 80$000, diretamente a essa comissão. (CE A84-ano: 1925,
mês:10)
A fábrica orientava, educava, regulamentava e exercia o papel do poder
público. Quando as orientações não eram seguidas, o regulamento não era
cumprido, a fábrica exercia o poder de polícia. Uma consulta feita pela gerência
a um serviço jurídico em 14 de maio de 1925 ilustra bem isso:
Em uma vila operária aparecem gatunos, que entram, à noite, nos quintais e roubam frutas, galinhas, alimentos e peças de roupas, etc. além de implantarem a desmoralização, o regime de costumes inferiores e o desassossego social.
Pergunta-se: a) se em acordo com a polícia se pode armar ratoeiras para afugentá-los ou, na pior hipótese, apanhá-los, depois de advertidos, com tempo suficiente, pela imprensa e muitos editais nos lugares de costume. – b) em caso do aparelho apanhar um gatuno nestas condições, isto é, em um quintal de residência privada onde ele penetra contra a vontade do dono e houver grandes ferimentos, qual a responsabilidade de quem armou ou emprestou a ratoeira? (CE A84 – Ano: 1925; mês: 05)
O serviço jurídico consultado, após fazer longas considerações sobre a
legislação penal da época, concluiu que era lícito armar tais ratoeiras e que o
dono da residência poderia alegar legítima defesa em eventual demanda
processual. Tal consulta denota a interferência da fábrica no tema da
segurança pública da vila operária. Tal interferência é perfeitamente
compreensível, pois a vila localizava-se em terras de propriedade da
Companhia.
Um interessante documento ditado por Antonino Pinto Mascarenhas a
seu filho, então adolescente, Antonio Joaquim, em 1942, evidencia os
princípios higienistas que orientaram sua gestão na Fábrica do Cedro entre
1915 e 1927. Trata-se de um conjunto de conselhos ditados a seu filho quando
o mesmo estava prestes a deixar a casa paterna para estudar em um colégio
interno. Em seu prólogo estão axiomas como: “todo excesso e toda falta, são
prejudiciais e tiram do corpo e do espírito a satisfação da necessidade.”;
“Satisfazer-se é dar ao corpo e ao espírito... tudo que eles precisam e retirar
deles o que é inútil e prejudicial.”
O extenso documento faz algumas considerações filosóficas sobre a
racionalidade humana, mas o apresenta como obra do Criador. Alerta o filho
para a necessidade de cumprimento dos deveres e o alerta para as influências
do meio em sua formação. Mas, principalmente, orienta-o quanto aos
procedimentos necessários para a manutenção da saúde física e mental.
Segundo ele, deve-se levar “uma vida natural, procurando os recantos da
natureza, que nos desingrenem (sic) da vida do mundo humano, tantas vezes
viciado (...)”(MASCARENHAS, 1942,s.p). Segundo esse autor “(...) para a
respiração temos 3.000.000 de poros de Malpighi devem funcionar para
purificar o corpo e assim, indiretamente, purificar o espírito e elevar a raça.
(...)”. Ele faz uma extensa explanação sobre a importância da alimentação.
“Deve o alimento fornecer as calorias necessárias (...) para aquecer e
movimentar o corpo, o que se obtém por meio dos alimentos chamados
energéticos, caloríficos ou respiratórios.” E faz uma classificação dos mesmos:
Alimentos chamados de poupança são os chás que têm muito efeito na vida, beneficiando a saúde.
Alimentos sípidos ou temperos, que são estimulantes da digestão e da nutrição. Devem ser pouco usados pelos moços. Alimentos que são desinfetantes como o limão, alho, urucum. Os vitaminados que são as frutas e modo especial (sic). Há uma classe de substância que se podem ingerir ou injetar no corpo que se chamam medicamentos, aplicáveis também em casos anormais ou de doença. Há os venenos que danificam ou destroem a vida, que devem ser evitados em doses e intenções tais.(MASCARENHAS, 1942. s.p) (...)
Em seguida passa a discorrer sobre a importância da água, na qual “se
acha o hálito que anima a vida”. Sua função seria “facilitar o transporte e
reações dos alimentos, lavar nossos tecidos, desalterar-nos, disseminar-nos a
saúde, a força e a graça, por todo o corpo.” Para alguns males, os alimentos
são indicados:
Por vezes temos falta de apetite e há os alimentos analíticos que no-lo dão, tais como o mingau o jiló, etc. Outras vezes a digestão se enfraquece e há pepsinas e o jenipapo que melhoram a digestão. Outras vezes, temos prisão de ventre e é comendo gorduras e ervas, adequadas que podemos melhorar este estado, quando ele não vem de impressões ou apreensões forte. Há alimentos que fazem desenvolver a urinação e que se chama aperiente ou diuréticos, tais como a cerveja, o aspargo, o chá de Congonhas. Por vezes, as vezes (sic) temos a sudoração retardada, e nesse caso se torna plantar diaforéticos que contém acetato de amônio. Muitas vezes o sangue está impuro, carregado de toxinas e há plantas que o purifica, salsaparrilha.
Uma série de conselhos com o objetivo de se obter uma boa conduta
moral ocupa parte do documento. O autor faz uma descrição de alguns vícios
como a preguiça, a mentira, o orgulho, a inveja e outros e dos malefícios que
os mesmos trazem para o indivíduo. A ira, a raiva e a zanga são descritas
como os “maiores sorvedouros de energia psíquica” Segue-se um conjunto de
“Conselhos para afugentar todos os males, e conquistar o caminho da vida”:
1º) Fazer, sempre tudo que for devido e de dever, bem feito e destinado ao bem comum.(...) 2º) Respirar, segundo as instruções, reeducando e retemperando com exercício a respiração em lugar de ar puro e tonificante (...) 3º) Alimentar, com seleção de quantidade, qualidade e modo.(...) 4º) Nutrição. É preciso saber o que seja o encontro da respiração com os produtos da alimentação na profundidade das células, o que se chama nutrição. (...) 5º) O asseio. É preciso remover as cinzas da vida; (...) É preciso suar um pouco, movimentar bem, defecar bem, expirar bem. (...) 6º) (...) tendo o corpo sadio, fazer exercícios totais como o tênis, alpinismo, natação, marcha forçada, acelerada (...) O exercício visa dar à molécula, à célula, aos órgãos e tudo em conjunto ou ao homem, a forma e a força que ele precisa para existir, resistir e persistir; (...) 7º) Completam as providências e deveres primordiais da construção do homem, um sono profundo e reparador(...) (...) 12º) É preciso distrair, instruindo-se e construindo-se e reconstruindo-se, vivendo e renovando-se sempre.(MASCARENHAS, 1942. s.p).
Nos conselhos acima estão presentes os princípios da applicata
(cuidados com o corpo); ingesta (cuidados com a alimentação); gesta
(exercícios físicos); excreta (expiração, defecação) e percepta (distração e
instrução). Havia a preocupação com a qualidade do sono. É evidente que os
Conselhos ditados por Antonino não se dirigiam somente ao filho. Daí a
recomendação para que o mesmo os escrevesse. O documento deveria servir
de guia para toda a família e outras pessoas de sua influência. Com isso
objetivava-se influenciar a conduta da sociedade caetanopolitana na primeira
metade do século XX.
3.Considerações Finais
O Higienismo foi utilizado pelos administradores das fábricas de tecido
do interior de Minas Gerais, notadamente de Caetanópolis, como instrumento
de formação do operariado, de adequação do mesmo às necessidades da
atividade fabril. Exigia-se que o operário gozasse de boa saúde, além de ser
disciplinado, ordeiro e moldado ao trabalho com as máquinas por longas
jornadas. A vila operária, situada aos arredores da fábrica, dentro da
propriedade particular da empresa estava também sujeita aos ditames e
regulamentos impostos pelos industriais. Ao proporem novos hábitos
alimentares e de higiene pessoal, ao regularem os divertimentos os industriais
acabavam por atuarem como agentes de saúde pública, melhorando as
condições de vida da população. Ao mesmo tempo em que funcionavam como
instrumento de controle, essas ações tinham também uma função social, ainda
que carregada de paternalismo. No caso da fábrica do Cedro, seu
administrador, no período estudado, tinha formação em Farmácia, o que ajuda
explicar a profusão das ideias higienistas. Consideramos que o tema merece
um estudo mais profundo, tendo em vista sua influência na formação da
sociedade caetanopolitana. No início do século XX foram criados na vila um
cinema e uma banda de música (que existe até hoje). Foi construído, ainda, um
estádio de futebol. Todas essas iniciativas tinham como objetivo a formação de
um homem novo alinhado com os princípios higienistas e com a modernidade.
• REFERÊNCIAS
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da República.
BILHÃO, Isabel Aparecida. Identidade e Trabalho: análise da construção
identitária dos operários porto-alegrenses (1896-1920). Tese apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2005
GÓIS JR, Edivaldo. Os Higienistas e a Educação Física: a história por seus
ideais. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Educação Física da Universidade Gama Filho. Rio de janeiro, 2000.
LUZ, Nicia Vilela. A Luta pela Industrialização do Brasil. São Paulo: Editora Alfa
Omega, 1978. Disponível em
http://www.usp.br/fau/docentes/depprojeto/c_deak/AUP840/2bib/luz/luz-luta-
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MANSANERA, Adriano Rodrigues; SILVA, Lucia Cecília. A influencia das ideias
higienistas no desenvolvimento da psicologia no Brasil. Psicologia em estudo.
DPI/CCH/UEM. V.5 n. 1 p. 115-137.
PENTEADO, Regina Z; SHON CHUN, Regina Yu; SILVA, Reginalice C. Do
higienismo às ações promotoras de saúde: a trajetória em saúde vocal.
Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 17 (1): 9-17 abril, 2005.
WANDERBROOCK JR., Durval. A EDUCAÇÃO SOB MEDIDA: OS TESTES
PSICOLÓGICOS E O HIGIENISMO NO BRASIL (1914-1945). 169 fls.
Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Estadual de Maringá.
Orientadora: MariaLúcia Boarini. Maringá, 2007.