manifesto da transdisciplinaridade pp 49-65

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1 Uma nova visão do mundo: a transdisciplinaridade O processo de declínio das civilizações é extremamente complexo e suas raízes estão mergulhadas na mais completa obscuridade. É claro que podemos encontrar várias explicações e racionalizações superficiais, sem conseguir dissipar o sentimento de um irracional atuando no próprio cerne deste processo. Os atores de determinada civilização, das grandes massas aos grandes líderes, mesmo tendo alguma consciência do processo de declínio, parecem impotentes para impedir a queda de sua civilização. Uma coisa é certa: uma grande defasagem entre as mentalidades dos atores e as necessidades internas de desenvolvimento de um tipo de sociedade, sempre acompanha a queda de uma civilização. Tudo ocorre como se os conhecimentos e os saberes que uma civilização não pára de acumular, não pudessem ser integrados no interior daqueles que compõem esta civilização. Ora, afinal, é o ser humano que se encontra ou deveria se encontrar no centro de qualquer civilização digna deste nome. O crescimento sem precedente dos conhecimentos em nossa época torna legítima a questão da adaptação das mentalidades a estes saberes. O desafio é grande, pois a expansão contínua da civilização de tipo ocidental por todo o planeta torna sua queda equivalente a um incêndio planetário sem termo de comparação com as duas primeiras guerras mundiais. Para o pensamento clássico só existem duas soluções para sair de uma situação de declínio: a revolução social ou o retorno a uma suposta ‘idade de ouro’. A revolução social já foi tentada no decorrer do século XX e seus resultados foram catastróficos. O homem novo não passou de um homem vazio e triste. Quaisquer que sejam os retoques cosméticos que o conceito de ‘revolução social’ venha a sofrer no futuro próximo, eles não poderão apagar de nossa memória coletiva aquilo que efetivamente foi experimentado. [ESTAS PÁGINAS FORAM EXTRAÍDAS DO LIVRO O MANIFESTO DA TRANSDISCIPLINARIDADE, BASARAB NICOLESCU]

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transdisciplinaridade, educação, ciência.

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    Uma nova viso do mundo:

    a transdisciplinaridade

    O processo de declnio das civilizaes

    extremamente complexo e suas razes esto mergulhadas na mais completa

    obscuridade. claro que podemos encontrar vrias explicaes e

    racionalizaes superficiais, sem conseguir dissipar o sentimento de um

    irracional atuando no prprio cerne deste processo. Os atores de

    determinada civilizao, das grandes massas aos grandes lderes, mesmo

    tendo alguma conscincia do processo de declnio, parecem impotentes para

    impedir a queda de sua civilizao. Uma coisa certa: uma grande

    defasagem entre as mentalidades dos atores e as necessidades internas de

    desenvolvimento de um tipo de sociedade, sempre acompanha a queda de

    uma civilizao. Tudo ocorre como se os conhecimentos e os saberes que

    uma civilizao no pra de acumular, no pudessem ser integrados no

    interior daqueles que compem esta civilizao. Ora, afinal, o ser humano

    que se encontra ou deveria se encontrar no centro de qualquer civilizao

    digna deste nome.

    O crescimento sem precedente dos conhecimentos em nossa poca

    torna legtima a questo da adaptao das mentalidades a estes saberes. O

    desafio grande, pois a expanso contnua da civilizao de tipo ocidental

    por todo o planeta torna sua queda equivalente a um incndio planetrio sem

    termo de comparao com as duas primeiras guerras mundiais.

    Para o pensamento clssico s existem duas solues para sair de uma

    situao de declnio: a revoluo social ou o retorno a uma suposta idade de

    ouro.

    A revoluo social j foi tentada no decorrer do sculo XX e seus

    resultados foram catastrficos. O homem novo no passou de um homem

    vazio e triste. Quaisquer que sejam os retoques cosmticos que o conceito de

    revoluo social venha a sofrer no futuro prximo, eles no podero apagar

    de nossa memria coletiva aquilo que efetivamente foi experimentado.

    [ESTAS PGINAS FORAM EXTRADAS DO LIVRO O MANIFESTO DA TRANSDISCIPLINARIDADE,

    BASARAB NICOLESCU]

  • 2

    O retorno idade de ouro ainda no foi tentado, pela simples razo de

    que a idade de ouro no foi encontrada. Mesmo supondo que esta idade de

    ouro tenha existido em tempos imemoriais, este retorno deveria

    necessariamente se fazer acompanhar por uma revoluo interior dogmtica,

    imagem espelhada da revoluo social. Os diferentes integrismos religiosos

    que cobrem a superfcie da terra com seu manto negro so um mau

    pressgio da violncia e do sangue que poderia jorrar desta caricatura de

    revoluo interior.

    No entanto, como sempre, h uma terceira soluo. Esta terceira

    soluo o objeto do presente manifesto.

    A harmonia entre as mentalidades e os saberes pressupe que estes

    saberes sejam inteligveis, compreensveis. Todavia, ainda seria possvel

    existir uma compreenso na era do big-bang disciplinar e da especializao

    exagerada?

    Um Pico de la Mirandola inconcebvel em nossa poca. Dois

    especialistas na mesma disciplina tm, hoje em dia, dificuldade em

    compreender seus resultados recprocos. Isto nada tem de monstruoso, na

    medida em que a inteligncia coletiva da comunidade ligada a esta

    disciplina que a faz progredir e no um nico crebro que teria de conhecer

    todos os resultados de todos seus colegas-crebros, o que impossvel. Pois,

    hoje em dia, existem centenas de disciplinas. Como poderia um fsico terico

    de partculas dialogar seriamente com um neurofisiologista, um matemtico

    com um poeta, um bilogo com um economista, um poltico com um especia-

    lista em informtica, exceto sobre generalidades mais ou menos banais? E no

    entanto, um verdadeiro lder deveria poder dialogar com todos ao mesmo

    tempo. A linguagem disciplinar uma barreira aparentemente intransponvel

    para um nefito. E todos somos nefitos uns dos outros. Seria a Torre de

    Babel inevitvel?

    No entanto, um Pico de la Mirandola em nossa poca concebvel na

    forma de um supercomputador no qual poderamos injetar todos os

    conhecimentos de todas as disciplinas. Este supercomputador poderia tudo

  • 3

    saber mas nada compreender. O usurio deste supercomputador no estaria

    em melhor situao que o prprio supercomputador. Ele teria acesso

    instantneo a no importa que resultado de no importa qual disciplina, mas

    seria incapaz de compreender seus significados e muito menos de fazer

    ligao entre os resultados das diferentes disciplinas.

    Este processo de babelizao no pode continuar sem colocar em perigo

    nossa prpria existncia, pois faz com que qualquer lder se torne, queira ou

    no, cada vez mais incompetente. Um dos maiores desafios de nossa poca,

    como por exemplo os desafios de ordem tica, exigem competncias cada

    vez maiores. Mas a soma dos melhores especialistas em suas especialidades

    no consegue gerar seno uma incompetncia generalizada, pois a soma das

    competncias no a competncia: no plano tcnico, a intercesso entre os

    diferentes campos do saber um conjunto vazio. Ora, o que vem a ser um

    lder, individual ou coletivo, seno aquele que capaz de levar em conta

    todos os dados do problema que examina?

    A necessidade indispensvel de laos entre as diferentes disciplinas

    traduziu-se pelo surgimento, na metade do sculo XX, da

    pluridisciplinaridade e da interdisciplinaridade.

    A pluridisciplinaridade diz respeito ao estudo de um objeto de uma

    mesma e nica disciplina por vrias disciplinas ao mesmo tempo. Por

    exemplo, um quadro de Giotto pode ser estudado pela tica da histria da

    arte, em conjunto com a da fsica, da qumica, da histria das religies, da

    histria da Europa e da geometria. Ou ainda, a filosofia marxista pode ser

    estudada pelas ticas conjugadas da filosofia, da fsica, da economia, da

    psicanlise ou da literatura. Com isso, o objeto sair assim enriquecido pelo

    cruzamento de vrias disciplinas. O conhecimento do objeto em sua prpria

    disciplina aprofundado por uma fecunda contribuio pluridisciplinar. A

    pesquisa pluridisciplinar traz um algo mais disciplina em questo (a histria

    da arte ou a filosofia, em nossos exemplos), porm este `algo mais est a

    servio apenas desta mesma disciplina. Em outras palavras, a abordagem

    pluridisciplinar ultrapassa as disciplinas, mas sua finalidade continua inscrita

  • 4

    na estrutura da pesquisa disciplinar.

    A interdisciplinaridade tem uma ambio diferente daquela da

    pluridisciplinaridade. Ela diz respeito transferncia de mtodos de uma

    disciplina para outra. Podemos distinguir trs graus de interdisciplinaridade:

    a) um grau de aplicao. Por exemplo, os mtodos da fsica nuclear

    transferidos para a medicina levam ao aparecimento de novos tratamentos

    para o cncer; b) um grau epistemolgico. Por exemplo, a transferncia de

    mtodos da lgica formal para o campo do direito produz anlises

    interessantes na epistemologia do direito; c) um grau de gerao de novas

    disciplinas. Por exemplo, a transferncia dos mtodos da matemtica para o

    campo da fsica gerou a fsica-matemtica; os da fsica de partculas para a

    astrofsica, a cosmologia quntica; os da matemtica para os fenmenos

    meteorolgicos ou para os da bolsa, a teoria do caos; os da informtica para

    a arte, a arte informtica. Como a pluridisciplinaridade, a

    interdisciplinaridade ultrapassa as disciplinas, mas sua finalidade tambm

    permanece inscrita na pesquisa disciplinar. Pelo seu terceiro grau, a

    interdisciplinaridade chega a contribuir para o big-bang disciplinar.

    A transdisciplinaridade, como o prefixo 'trans' indica, diz respeito quilo

    que est ao mesmo tempo entre as disciplinas, atravs das diferentes

    disciplinas e alm de qualquer disciplina. Seu objetivo a compreenso do

    mundo presente, para o qual um dos imperativos a unidade do

    conhecimento.

    Haveria alguma coisa entre e atravs das disciplinas e alm delas? Do

    ponto de vista do pensamento clssico, no h nada, absolutamente nada. O

    espao em questo vazio, completamente vazio, como o vazio da fsica

    clssica. Mesmo renunciando viso piramidal do conhecimento, o

    pensamento clssico considera que cada fragmento da pirmide, gerado pelo

    big-bang disciplinar, uma pirmide inteira; cada disciplina proclama que o

    campo de sua pertinncia inesgotvel. Para o pensamento clssico, a

    transdisciplinaridade um absurdo porque no tem objeto. Para a transdisci-

    plinaridade, por sua vez, o pensamento clssico no absurdo, mas seu

  • 5

    campo de aplicao considerado como restrito.

    Diante de vrios nveis de Realidade, o espao entre as disciplinas e

    alm delas est cheio, como o vazio quntico est cheio de todas as

    potencialidades: da partcula quntica s galxias, do quark aos elementos

    pesados que condicionam o aparecimento da vida no Universo.

    A estrutura descontnua dos nveis de Realidade determina a estrutura

    descontnua do espao transdisciplinar, que, por sua vez, explica porque a

    pesquisa transdisciplinar radicalmente distinta da pesquisa disciplinar,

    mesmo sendo complementar a esta. A pesquisa disciplinar diz respeito, no

    mximo, a um nico e mesmo nvel de Realidade; alis, na maioria dos

    casos, ela s diz respeito a fragmentos de um nico e mesmo nvel de

    Realidade. Por outro lado, a transdisciplinaridade se interessa pela dinmica

    gerada pela ao de vrios nveis de Realidade ao mesmo tempo . A

    descoberta desta dinmica passa necessariamente pelo conhecimento

    disciplinar. Embora a transdisciplinaridade no seja uma nova disciplina, nem

    uma nova hiperdisciplina, alimenta-se da pesquisa disciplinar que, por sua

    vez, iluminada de maneira nova e fecunda pelo conhecimento

    transdisciplinar. Neste sentido, as pesquisas disciplinares e transdisciplinares

    no so antagnicas, mas complementares.

    Os trs pilares da transdisciplinaridade os nveis de Realidade, a lgica do

    terceiro includo e a complexidade determinam a metodologia da pesquisa

    transdisciplinar.

    H um paralelo surpreendente entre os trs pilares da

    transdisciplinaridade e os trs postulados da cincia moderna.

    Os trs postulados metodolgicos da cincia moderna permaneceram

    imutveis desde Galileu at os nossos dias, apesar da infinita diversidade dos

    mtodos, teorias e modelos que atravessaram a histria das diferentes

    disciplinas cientficas. No entanto, uma nica cincia satisfaz inteira e

    integralmente os trs postulados: a fsica. As outras disciplinas cientficas s

  • 6

    satisfazem parcialmente os trs postulados metodolgicos da cincia

    moderna. Todavia, a ausncia de uma formalizao matemtica rigorosa da

    psicologia, da histria das religies e de um nmero enorme de outras

    disciplinas no leva eliminao dessas disciplinas do campo da cincia.

    Mesmo as cincias de ponta, como a biologia molecular, no podem

    pretender, ao menos por enquanto, uma formalizao matemtica to

    rigorosa como a da fsica. Em outras palavras, h graus de disciplinaridade

    proporcionais maior ou menor satisfao dos trs postulados metodolgicos

    da cincia moderna.

    Da mesma forma, a maior ou menor satisfao dos trs pilares

    metodolgicos da pesquisa transdisciplinar gera diferentes graus de

    transdisciplinaridade. A pesquisa transdisciplinar correspondente a um certo

    grau de transdisciplinaridade se aproximar mais da multidisciplinaridade

    (como no caso da tica); num outro grau, se aproximar mais da

    interdisciplinaridade (como no caso da epistemologia); e, ainda num outro

    grau, se aproximar mais da disciplinaridade.

    A disciplinaridade, a pluridisciplinaridade, a interdisciplinaridade e a

    transdisciplinaridade so as quatro flechas de um nico e mesmo arco: o do

    conhecimento.

    Como no caso da disciplinaridade, a pesquisa transdisciplinar no

    antagnica mas complementar pesquisa pluri e interdisciplinar. A

    transdisciplinaridade , no entanto, radicalmente distinta da pluri e da

    interdisciplinaridade, por sua finalidade: a compreenso do mundo presente,

    impossvel de ser inscrita na pesquisa disciplinar. A finalidade da pluri e da

    interdisciplinaridade sempre a pesquisa disciplinar. Se a

    transdisciplinaridade to frequentemente confundida com a inter e a

    pluridisciplinaridade (como, alis, a interdisciplinaridade to

    frequentemente confundida com a pluridisciplinaridade), isto se explica em

    grande parte pelo fato de que todas as trs ultrapassam as disciplinas. Esta

    confuso muito prejudicial, na medida em que esconde as diferentes

    finalidades destas trs novas abordagens.

  • 7

    Embora reconhecendo o carter radicalmente distinto da

    transdisciplinaridade em relao disciplinaridade, pluridisciplinaridade e

    interdisciplinaridade, seria extremamente perigoso absolutizar esta distino,

    pois neste caso a transdisciplinaridade seria esvaziada de todo seu contedo

    e sua eficcia na ao reduzida a nada.

    O carter complementar das abordagens disciplinar, pluridisciplinar,

    interdisciplinar e transdisciplinar evidenciado de maneira fulgurante, por

    exemplo, no acompanhamento dos agonizantes. Esta atitude relativamente

    nova de nossa civilizao extremamente importante, pois, reconhecendo o

    papel de nossa morte em nossa vida, descobrimos dimenses insuspeitas da

    prpria vida. O acompanhamento dos agonizantes no pode dispensar uma

    pesquisa transdisciplinar, na medida em que a compreenso do mundo

    presente passa pela compreenso do sentido de nossa vida e do sentido de

    nossa morte neste mundo que o nosso.

    Transdisciplinaridade e

    unidade aberta do mundo

    A viso transdisciplinar prope-nos a considerao de uma Realidade

    multidimensional, estruturada em mltiplos nveis, substituindo a Realidade

    unidimensional, com um nico nvel, do pensamento clssico. Esta

    constatao no basta, por si s, para justificar uma nova viso do mundo.

    Antes de mais nada, precisamos responder, da maneira mais rigorosa

    possvel, a vrias perguntas. Qual seria a natureza da teoria que pode

    descrever a passagem de um nvel de Realidade a outro? Existiria uma

    coerncia, ou mesmo uma unidade do conjunto dos nveis de Realidade?

    Qual seria o papel do sujeito-observador na existncia de uma eventual

    unidade de todos os nveis de Realidade? Haveria um nvel de Realidade

    privilegiado em relao a todos os outros nveis? A unidade do conhecimento,

    se existir, seria de natureza objetiva ou subjetiva? Qual seria o papel da

    razo na existncia de uma eventual unidade do conhecimento? Qual seria,

  • 8

    no campo da reflexo e da ao, o poder preditivo do novo modelo de

    Realidade? Finalmente, seria possvel compreender o mundo presente?

    A Realidade comporta, segundo o nosso modelo, certo nmero de

    nveis. As consideraes que se seguem no dependem do fato deste nmero

    ser finito ou infinito. Para a clareza terminolgica da exposio, vamos supor

    que este nmero seja infinito.

    Dois nveis adjacentes esto ligados pela lgica do terceiro includo, no

    sentido de que o estado T presente num certo nvel, est ligado a um par de

    contraditrios (A, no-A) do nvel imediatamente vizinho. O estado T produz

    a unificao dos contraditrios A e no-A, mas esta unificao ocorre num

    nvel diferente daquele onde esto situados A e no-A. Neste processo o

    axioma da no-contradio respeitado. Isto significa que podemos com isso

    obter uma teoria completa capaz de dar conta de todos os resultados

    conhecidos e vindouros? A resposta a esta pergunta tem apenas um

    interesse terico, pois toda ideologia ou todo fanatismo que tenha como

    ambio mudar a face do mundo esto baseados na crena de que seu

    enfoque completo. As ideologias ou os fanatismos em questo acreditam

    deter a verdade, toda a verdade.

    H certamente uma coerncia entre os diferentes nveis de Realidade,

    ao menos no mundo natural. Com efeito, uma vasta autoconsistncia parece

    reger a evoluo do Universo, do infinitamente pequeno ao infinitamente

    grande, do infinitamente breve ao infinitamente longo. Por exemplo, uma

    mnima variao da constante de juno das interaes fortes entre as

    partculas qunticas conduziria, no nvel do infinitamente grande - o nosso

    universo -, seja converso de todo hidrognio em hlio, seja inexistncia

    dos tomos complexos como o carbono. Ou ainda, uma mnima variao da

    constante juno gravitacional conduziria seja a planetas efmeros, seja

    impossibilidade de sua formao. Alm disso, segundo as teorias

    cosmolgicas atuais, o Universo parece capaz de criar a si mesmo sem

    qualquer interveno externa. Um fluxo de informao transmite-se de

    maneira coerente de um nvel de Realidade a outro nvel de Realidade de

  • 9

    nosso universo fsico.

    A lgica do terceiro includo pode descrever a coerncia entre os nveis

    de Realidade pelo processo interativo compreendendo as seguintes etapas:

    1. um par de contraditrios (A, no-A) situado num certo nvel de Realidade

    unificado por um estado T situado num nvel de Realidade imediatamente

    vizinho; 2. por sua vez, este estado T est ligado a um par de contraditrios

    (A', no-A'), situado em seu prprio nvel; 3. o par de contraditrios (A', no-

    A') est, por sua vez, unido por um estado T situado num nvel diferente de

    Realidade, imediatamente vizinho daquele onde se encontra o ternrio (A',

    no-A', T). O processo interativo continua infinitamente at o esgotamento

    de todos os nveis de Realidade conhecidos ou concebveis.

    Em outras palavras, a ao da lgica do terceiro includo sobre os

    diferentes nveis de Realidade induz uma estrutura aberta, gdeliana, do

    conjunto dos nveis de Realidade. Esta estrutura tem um alcance

    considervel sobre a teoria do conhecimento, pois implica na impossibilidade

    de uma teoria completa, fechada em si mesma.

    Com efeito, o estado T produz, de acordo com o axioma da no-

    contradio, a unificao do par de contraditrios (A, no-A) mas est

    associado, ao mesmo tempo, a outro par de contraditrios, (A', no-A'). Isto

    significa que podemos construir, a partir de um certo nmero de pares

    mutuamente exclusivos, uma nova teoria, que elimina as contradies num

    certo nvel de Realidade, mas esta teoria apenas temporria, pois levar

    inevitavelmente, sob a presso conjunta da teoria e da experincia,

    descoberta de novos pares de contraditrios, localizados no novo nvel de

    Realidade. Portanto, esta teoria ser, por sua vez, substituda, medida que

    novos nveis de Realidade forem descobertos, por teorias ainda mais

    unificadas. Este processo continuar ao infinito, sem jamais poder chegar a

    uma teoria completamente unificada. O axioma da no-contradio sai cada

    vez mais reforado deste processo. Neste sentido, podemos falar de uma

    evoluo do conhecimento, sem jamais poder chegar a uma no-contradio

    absoluta, implicando todos os nveis de Realidade: o conhecimento est

  • 10

    aberto para sempre. No mundo dos nveis de Realidade per se, aquilo que

    est em cima como aquilo que est embaixo, mas aquilo que est embaixo

    no como aquilo que est em cima. A matria mais fina penetra a matria

    mais grosseira, como a matria quntica penetra a matria macrofsica, mas

    a afirmao recproca no verdadeira. Os graus de materialidade colocam

    uma flecha de orientao da transmisso da informao de um nvel para

    outro. Neste sentido, "o que est embaixo no como ao que est em cima",

    as palavras alto e baixo no tendo aqui nenhum outro significado (espacial

    ou moral) seno aquele, topolgico, associado flecha da transmisso da

    informao. Esta flecha est associada, por sua vez, descoberta de leis

    cada vez mais gerais, unificantes, englobantes.

    A estrutura aberta do conjunto dos nveis de Realidade est de acordo

    com um dos resultados cientficos mais importantes do sculo XX: o teorema

    de Gdel, que diz respeito aritmtica. O teorema de Gdel nos diz que um

    sistema de axiomas suficientemente rico leva, inevitavelmente, a resultados

    quer indecidveis, quer contraditrios.

    O alcance do teorema de Gdel de considervel importncia para toda

    teoria moderna do conhecimento. Primeiro, ele no se refere apenas ao

    campo da aritmtica, mas a toda matemtica, inclusive a aritmtica. Ora, a

    matemtica, que a ferramenta bsica da fsica terica, contm,

    evidentemente, a aritmtica. Isto significa que toda pesquisa de uma teoria

    fsica completa ilusria. Se esta afirmao for verdadeira para os domnios

    mais rigorosos do estudo dos sistemas naturais, como poderamos sonhar

    com uma teoria completa num campo infinitamente mais complexo: o das

    cincias humanas?

    De fato, a procura de uma axiomtica que conduza a uma teoria

    completa (sem resultados indecidveis ou contraditrios) marca ao mesmo

    tempo o apogeu e o ponto de partida do declnio do pensamento clssico. O

    sonho axiomtico desmoronou com o veredito do santo dos santos do

    pensamento clssico: o rigor matemtico.

    O teorema que Gdel demonstrou em 1931 teve, no entanto, uma

  • 11

    repercusso muito pequena fora de um crculo muito restrito de especialistas.

    A dificuldade e a extrema sutileza de sua demonstrao explicam porque

    este teorema precisou de um certo tempo para ser compreendido dentro da

    comunidade dos matemticos. Atualmente, ele comea a penetrar aos pou-

    cos no mundo dos fsicos (Wolfgang Pauli, um dos fundadores da mecnica

    quntica, foi um dos primeiros fsicos a compreender a extrema importncia

    do teorema de Gdel para a construo das teorias fsicas). Deveramos

    ento reprovar Stalin por no ter tomado conhecimento do teorema de Gdel

    e com isso no ter assim podido evitar a queda, pstuma, de seu imprio?

    A estrutura gdeliana do conjunto dos nveis de Realidade, associada

    lgica do terceiro includo, implica a impossibilidade de elaborar uma teoria

    completa para descrever a passagem de um nvel ao outro e, a fortiori, para

    descrever o conjunto dos nveis de Realidade.

    A unidade que liga todos os nveis de Realidade, se existir, deve

    necessariamente ser uma unidade aberta.

    verdade que h uma coerncia no conjunto dos nveis de Realidade,

    mas esta coerncia orientada: uma flecha est associada a toda

    transmisso de informao de um nvel ao outro. Consequentemente, a

    coerncia, se estiver limitada apenas aos nveis de Realidade, pra no nvel

    mais alto e no nvel mais baixo. Para que a coerncia continue para alm

    destes dois nveis limites, para que haja uma unidade aberta, preciso

    considerar que o conjunto dos nveis de Realidade prolongue-se para uma

    zona de no-resistncia s nossas experincias, representaes, descries,

    imagens ou formalizaes matemticas. Esta zona de no-resistncia

    corresponde, em nosso modelo de Realidade, ao vu daquilo que Bernard

    d'Espagnat denomina o real velado. O nvel mais alto e o nvel mais baixo

    do conjunto dos nveis de Realidade unem-se atravs de uma zona de

    transparncia absoluta. Contudo, estes dois nveis sendo diferentes, a

    transparncia absoluta mostra-se como um vu, do ponto de vista de nossas

    experincias, representaes, descries, imagens ou formalizaes

    matemticas. De fato, a unidade aberta do mundo implica em que aquilo que

  • 12

    est embaixo como o que est em cima. O isomorfismo entre o alto e o

    baixo restabelecido pela zona de no-resistncia.

    A no-resistncia desta zona de transparncia absoluta deve-se,

    simplesmente, aos limites de nosso corpo e de nossos rgos dos sentidos,

    quaisquer que sejam os instrumentos de medida que prolonguem estes

    rgos. Se afirmamos o limite de nosso corpo e de nossos rgos dos

    sentidos, a afirmao de um conhecimento humano infinito (que exclua

    qualquer zona de no-resistncia), parece-nos uma mgica lingstica. A

    zona de no-resistncia corresponde ao sagrado, isto , quilo que no se

    submete a nenhuma racionalizao. A proclamao da existncia de um

    nico nvel de Realidade elimina o sagrado, s custas da autodestruio

    deste mesmo nvel.

    O conjunto dos nveis de Realidade e sua zona complementar de no-

    resistncia constituem o Objeto transdisciplinar.

    Na viso transdisciplinar, a pluralidade complexa e a unidade aberta so

    duas facetas de uma nica e mesma Realidade.

    Um novo Princpio de Relatividade emerge da coexistncia entre a

    pluralidade complexa e a unidade aberta: nenhum nvel de Realidade

    constitui um lugar privilegiado de onde possamos compreender todos os

    outros nveis de Realidade. Um nvel de Realidade aquilo que porque

    todos os outros nveis existem ao mesmo tempo. Este Princpio de

    Relatividade d origem a uma nova maneira de olhar a religio, a poltica, a

    arte, a educao, a vida social. E quando nossa viso de mundo muda, o

    mundo muda. Na viso transdisciplinar, a Realidade no apenas

    multidimensional, tambm multireferencial.

    Os diferentes nveis de Realidade so acessveis ao conhecimento

    humano graas existncia de diferentes nveis de percepo, que se acham

    em correspondncia biunvoca com os nveis de Realidade. Estes nveis de

    percepo permitem uma viso cada vez mais geral, unificante, englobante

    da Realidade, sem jamais esgot-la completamente.

  • 13

    A coerncia dos nveis de percepo pressupe, como no caso dos nveis

    de Realidade, uma zona de no-resistncia percepo.

    O conjunto dos nveis de percepo e sua zona complementar de no-

    resistncia constituem o Sujeito transdisciplinar.

    As duas zonas de no-resistncia do Objeto e do Sujeito

    transdisciplinares devem ser idnticas para que o Sujeito transdisciplinar

    possa se comunicar com o Objeto transdisciplinar. Ao fluxo de informao

    que atravessa de maneira coerente os diferentes nveis de Realidade

    corresponde um fluxo de conscincia atravessando de maneira coerente os

    diferentes nveis de percepo. Os dois fluxos esto numa relao de

    isomorfismo graas existncia de uma nica e mesma zona de no-

    resistncia. O conhecimento no nem exterior, nem interior: ao mesmo

    tempo exterior e interior. O estudo do Universo e o estudo do ser humano

    sustentam-se mutuamente. A zona de no-resistncia desempenha o papel

    do terceiro secretamente includo, que permite a unificao, em suas

    diferenas, do Sujeito transdisciplinar e do Objeto transdisciplinar.

    O papel do terceiro termo explcita ou secretamente includo, no novo

    modelo transdisciplinar de Realidade, no to surpreendente. As palavras

    trs e trans tm a mesma raiz etimolgica: trs significa a transgresso do

    dois, o que vai alm do dois. A transdisciplinaridade a transgresso da

    dualidade que ope os pares binrios: sujeito/objeto,

    subjetividade/objetividade, matria/conscincia, natureza/divino,

    simplicidade/complexidade, reducionismo/holismo, diversidade/unidade. Esta

    dualidade transgredida pela unidade aberta que engloba tanto o Universo

    como o ser humano.

    O modelo transdisciplinar de Realidade tem consequncias

    particularmente importantes no estudo da complexidade. A complexidade,

    sem seu plo contraditrio, a simplicidade, aparece como uma distncia cada

    vez maior entre o ser humano e a Realidade, introduzindo uma alienao

    autodestrutiva do ser humano, mergulhado no absurdo de seu destino.

    complexidade infinita do Objeto transdisciplinar responde a simplicidade

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    infinita do Sujeito transdisciplinar, da mesma forma que a complexidade

    terrificante de um nico nvel de Realidade pode significar a simplicidade

    harmoniosa de um outro nvel de Realidade.

    A unidade aberta entre o Objeto transdisciplinar e o Sujeito

    transdisciplinar se traduz pela orientao coerente do fluxo de informao

    que atravessa os nveis de Realidade e pelo fluxo de conscincia que

    atravessa os nveis de percepo. Esta orientao coerente d um novo

    sentido verticalidade do ser humano no mundo. Em lugar da postura ereta

    sobre esta terra devida lei de gravidade universal, a viso transdisciplinar

    prope a verticalidade consciente e csmica da passagem atravs de

    diferentes nveis de Realidade. esta verticalidade que constitui, na viso

    transdisciplinar, o fundamento de todo projeto social vivel.

    NICOLESCU, Basarab. O Manifesto da Transdisciplinaridade. So Paulo: Triom, 1999,

    pp. 49-65.