manifesto da transdisciplinaridade pp 49-65
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transdisciplinaridade, educação, ciência.TRANSCRIPT
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Uma nova viso do mundo:
a transdisciplinaridade
O processo de declnio das civilizaes
extremamente complexo e suas razes esto mergulhadas na mais completa
obscuridade. claro que podemos encontrar vrias explicaes e
racionalizaes superficiais, sem conseguir dissipar o sentimento de um
irracional atuando no prprio cerne deste processo. Os atores de
determinada civilizao, das grandes massas aos grandes lderes, mesmo
tendo alguma conscincia do processo de declnio, parecem impotentes para
impedir a queda de sua civilizao. Uma coisa certa: uma grande
defasagem entre as mentalidades dos atores e as necessidades internas de
desenvolvimento de um tipo de sociedade, sempre acompanha a queda de
uma civilizao. Tudo ocorre como se os conhecimentos e os saberes que
uma civilizao no pra de acumular, no pudessem ser integrados no
interior daqueles que compem esta civilizao. Ora, afinal, o ser humano
que se encontra ou deveria se encontrar no centro de qualquer civilizao
digna deste nome.
O crescimento sem precedente dos conhecimentos em nossa poca
torna legtima a questo da adaptao das mentalidades a estes saberes. O
desafio grande, pois a expanso contnua da civilizao de tipo ocidental
por todo o planeta torna sua queda equivalente a um incndio planetrio sem
termo de comparao com as duas primeiras guerras mundiais.
Para o pensamento clssico s existem duas solues para sair de uma
situao de declnio: a revoluo social ou o retorno a uma suposta idade de
ouro.
A revoluo social j foi tentada no decorrer do sculo XX e seus
resultados foram catastrficos. O homem novo no passou de um homem
vazio e triste. Quaisquer que sejam os retoques cosmticos que o conceito de
revoluo social venha a sofrer no futuro prximo, eles no podero apagar
de nossa memria coletiva aquilo que efetivamente foi experimentado.
[ESTAS PGINAS FORAM EXTRADAS DO LIVRO O MANIFESTO DA TRANSDISCIPLINARIDADE,
BASARAB NICOLESCU]
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O retorno idade de ouro ainda no foi tentado, pela simples razo de
que a idade de ouro no foi encontrada. Mesmo supondo que esta idade de
ouro tenha existido em tempos imemoriais, este retorno deveria
necessariamente se fazer acompanhar por uma revoluo interior dogmtica,
imagem espelhada da revoluo social. Os diferentes integrismos religiosos
que cobrem a superfcie da terra com seu manto negro so um mau
pressgio da violncia e do sangue que poderia jorrar desta caricatura de
revoluo interior.
No entanto, como sempre, h uma terceira soluo. Esta terceira
soluo o objeto do presente manifesto.
A harmonia entre as mentalidades e os saberes pressupe que estes
saberes sejam inteligveis, compreensveis. Todavia, ainda seria possvel
existir uma compreenso na era do big-bang disciplinar e da especializao
exagerada?
Um Pico de la Mirandola inconcebvel em nossa poca. Dois
especialistas na mesma disciplina tm, hoje em dia, dificuldade em
compreender seus resultados recprocos. Isto nada tem de monstruoso, na
medida em que a inteligncia coletiva da comunidade ligada a esta
disciplina que a faz progredir e no um nico crebro que teria de conhecer
todos os resultados de todos seus colegas-crebros, o que impossvel. Pois,
hoje em dia, existem centenas de disciplinas. Como poderia um fsico terico
de partculas dialogar seriamente com um neurofisiologista, um matemtico
com um poeta, um bilogo com um economista, um poltico com um especia-
lista em informtica, exceto sobre generalidades mais ou menos banais? E no
entanto, um verdadeiro lder deveria poder dialogar com todos ao mesmo
tempo. A linguagem disciplinar uma barreira aparentemente intransponvel
para um nefito. E todos somos nefitos uns dos outros. Seria a Torre de
Babel inevitvel?
No entanto, um Pico de la Mirandola em nossa poca concebvel na
forma de um supercomputador no qual poderamos injetar todos os
conhecimentos de todas as disciplinas. Este supercomputador poderia tudo
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saber mas nada compreender. O usurio deste supercomputador no estaria
em melhor situao que o prprio supercomputador. Ele teria acesso
instantneo a no importa que resultado de no importa qual disciplina, mas
seria incapaz de compreender seus significados e muito menos de fazer
ligao entre os resultados das diferentes disciplinas.
Este processo de babelizao no pode continuar sem colocar em perigo
nossa prpria existncia, pois faz com que qualquer lder se torne, queira ou
no, cada vez mais incompetente. Um dos maiores desafios de nossa poca,
como por exemplo os desafios de ordem tica, exigem competncias cada
vez maiores. Mas a soma dos melhores especialistas em suas especialidades
no consegue gerar seno uma incompetncia generalizada, pois a soma das
competncias no a competncia: no plano tcnico, a intercesso entre os
diferentes campos do saber um conjunto vazio. Ora, o que vem a ser um
lder, individual ou coletivo, seno aquele que capaz de levar em conta
todos os dados do problema que examina?
A necessidade indispensvel de laos entre as diferentes disciplinas
traduziu-se pelo surgimento, na metade do sculo XX, da
pluridisciplinaridade e da interdisciplinaridade.
A pluridisciplinaridade diz respeito ao estudo de um objeto de uma
mesma e nica disciplina por vrias disciplinas ao mesmo tempo. Por
exemplo, um quadro de Giotto pode ser estudado pela tica da histria da
arte, em conjunto com a da fsica, da qumica, da histria das religies, da
histria da Europa e da geometria. Ou ainda, a filosofia marxista pode ser
estudada pelas ticas conjugadas da filosofia, da fsica, da economia, da
psicanlise ou da literatura. Com isso, o objeto sair assim enriquecido pelo
cruzamento de vrias disciplinas. O conhecimento do objeto em sua prpria
disciplina aprofundado por uma fecunda contribuio pluridisciplinar. A
pesquisa pluridisciplinar traz um algo mais disciplina em questo (a histria
da arte ou a filosofia, em nossos exemplos), porm este `algo mais est a
servio apenas desta mesma disciplina. Em outras palavras, a abordagem
pluridisciplinar ultrapassa as disciplinas, mas sua finalidade continua inscrita
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na estrutura da pesquisa disciplinar.
A interdisciplinaridade tem uma ambio diferente daquela da
pluridisciplinaridade. Ela diz respeito transferncia de mtodos de uma
disciplina para outra. Podemos distinguir trs graus de interdisciplinaridade:
a) um grau de aplicao. Por exemplo, os mtodos da fsica nuclear
transferidos para a medicina levam ao aparecimento de novos tratamentos
para o cncer; b) um grau epistemolgico. Por exemplo, a transferncia de
mtodos da lgica formal para o campo do direito produz anlises
interessantes na epistemologia do direito; c) um grau de gerao de novas
disciplinas. Por exemplo, a transferncia dos mtodos da matemtica para o
campo da fsica gerou a fsica-matemtica; os da fsica de partculas para a
astrofsica, a cosmologia quntica; os da matemtica para os fenmenos
meteorolgicos ou para os da bolsa, a teoria do caos; os da informtica para
a arte, a arte informtica. Como a pluridisciplinaridade, a
interdisciplinaridade ultrapassa as disciplinas, mas sua finalidade tambm
permanece inscrita na pesquisa disciplinar. Pelo seu terceiro grau, a
interdisciplinaridade chega a contribuir para o big-bang disciplinar.
A transdisciplinaridade, como o prefixo 'trans' indica, diz respeito quilo
que est ao mesmo tempo entre as disciplinas, atravs das diferentes
disciplinas e alm de qualquer disciplina. Seu objetivo a compreenso do
mundo presente, para o qual um dos imperativos a unidade do
conhecimento.
Haveria alguma coisa entre e atravs das disciplinas e alm delas? Do
ponto de vista do pensamento clssico, no h nada, absolutamente nada. O
espao em questo vazio, completamente vazio, como o vazio da fsica
clssica. Mesmo renunciando viso piramidal do conhecimento, o
pensamento clssico considera que cada fragmento da pirmide, gerado pelo
big-bang disciplinar, uma pirmide inteira; cada disciplina proclama que o
campo de sua pertinncia inesgotvel. Para o pensamento clssico, a
transdisciplinaridade um absurdo porque no tem objeto. Para a transdisci-
plinaridade, por sua vez, o pensamento clssico no absurdo, mas seu
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campo de aplicao considerado como restrito.
Diante de vrios nveis de Realidade, o espao entre as disciplinas e
alm delas est cheio, como o vazio quntico est cheio de todas as
potencialidades: da partcula quntica s galxias, do quark aos elementos
pesados que condicionam o aparecimento da vida no Universo.
A estrutura descontnua dos nveis de Realidade determina a estrutura
descontnua do espao transdisciplinar, que, por sua vez, explica porque a
pesquisa transdisciplinar radicalmente distinta da pesquisa disciplinar,
mesmo sendo complementar a esta. A pesquisa disciplinar diz respeito, no
mximo, a um nico e mesmo nvel de Realidade; alis, na maioria dos
casos, ela s diz respeito a fragmentos de um nico e mesmo nvel de
Realidade. Por outro lado, a transdisciplinaridade se interessa pela dinmica
gerada pela ao de vrios nveis de Realidade ao mesmo tempo . A
descoberta desta dinmica passa necessariamente pelo conhecimento
disciplinar. Embora a transdisciplinaridade no seja uma nova disciplina, nem
uma nova hiperdisciplina, alimenta-se da pesquisa disciplinar que, por sua
vez, iluminada de maneira nova e fecunda pelo conhecimento
transdisciplinar. Neste sentido, as pesquisas disciplinares e transdisciplinares
no so antagnicas, mas complementares.
Os trs pilares da transdisciplinaridade os nveis de Realidade, a lgica do
terceiro includo e a complexidade determinam a metodologia da pesquisa
transdisciplinar.
H um paralelo surpreendente entre os trs pilares da
transdisciplinaridade e os trs postulados da cincia moderna.
Os trs postulados metodolgicos da cincia moderna permaneceram
imutveis desde Galileu at os nossos dias, apesar da infinita diversidade dos
mtodos, teorias e modelos que atravessaram a histria das diferentes
disciplinas cientficas. No entanto, uma nica cincia satisfaz inteira e
integralmente os trs postulados: a fsica. As outras disciplinas cientficas s
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satisfazem parcialmente os trs postulados metodolgicos da cincia
moderna. Todavia, a ausncia de uma formalizao matemtica rigorosa da
psicologia, da histria das religies e de um nmero enorme de outras
disciplinas no leva eliminao dessas disciplinas do campo da cincia.
Mesmo as cincias de ponta, como a biologia molecular, no podem
pretender, ao menos por enquanto, uma formalizao matemtica to
rigorosa como a da fsica. Em outras palavras, h graus de disciplinaridade
proporcionais maior ou menor satisfao dos trs postulados metodolgicos
da cincia moderna.
Da mesma forma, a maior ou menor satisfao dos trs pilares
metodolgicos da pesquisa transdisciplinar gera diferentes graus de
transdisciplinaridade. A pesquisa transdisciplinar correspondente a um certo
grau de transdisciplinaridade se aproximar mais da multidisciplinaridade
(como no caso da tica); num outro grau, se aproximar mais da
interdisciplinaridade (como no caso da epistemologia); e, ainda num outro
grau, se aproximar mais da disciplinaridade.
A disciplinaridade, a pluridisciplinaridade, a interdisciplinaridade e a
transdisciplinaridade so as quatro flechas de um nico e mesmo arco: o do
conhecimento.
Como no caso da disciplinaridade, a pesquisa transdisciplinar no
antagnica mas complementar pesquisa pluri e interdisciplinar. A
transdisciplinaridade , no entanto, radicalmente distinta da pluri e da
interdisciplinaridade, por sua finalidade: a compreenso do mundo presente,
impossvel de ser inscrita na pesquisa disciplinar. A finalidade da pluri e da
interdisciplinaridade sempre a pesquisa disciplinar. Se a
transdisciplinaridade to frequentemente confundida com a inter e a
pluridisciplinaridade (como, alis, a interdisciplinaridade to
frequentemente confundida com a pluridisciplinaridade), isto se explica em
grande parte pelo fato de que todas as trs ultrapassam as disciplinas. Esta
confuso muito prejudicial, na medida em que esconde as diferentes
finalidades destas trs novas abordagens.
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Embora reconhecendo o carter radicalmente distinto da
transdisciplinaridade em relao disciplinaridade, pluridisciplinaridade e
interdisciplinaridade, seria extremamente perigoso absolutizar esta distino,
pois neste caso a transdisciplinaridade seria esvaziada de todo seu contedo
e sua eficcia na ao reduzida a nada.
O carter complementar das abordagens disciplinar, pluridisciplinar,
interdisciplinar e transdisciplinar evidenciado de maneira fulgurante, por
exemplo, no acompanhamento dos agonizantes. Esta atitude relativamente
nova de nossa civilizao extremamente importante, pois, reconhecendo o
papel de nossa morte em nossa vida, descobrimos dimenses insuspeitas da
prpria vida. O acompanhamento dos agonizantes no pode dispensar uma
pesquisa transdisciplinar, na medida em que a compreenso do mundo
presente passa pela compreenso do sentido de nossa vida e do sentido de
nossa morte neste mundo que o nosso.
Transdisciplinaridade e
unidade aberta do mundo
A viso transdisciplinar prope-nos a considerao de uma Realidade
multidimensional, estruturada em mltiplos nveis, substituindo a Realidade
unidimensional, com um nico nvel, do pensamento clssico. Esta
constatao no basta, por si s, para justificar uma nova viso do mundo.
Antes de mais nada, precisamos responder, da maneira mais rigorosa
possvel, a vrias perguntas. Qual seria a natureza da teoria que pode
descrever a passagem de um nvel de Realidade a outro? Existiria uma
coerncia, ou mesmo uma unidade do conjunto dos nveis de Realidade?
Qual seria o papel do sujeito-observador na existncia de uma eventual
unidade de todos os nveis de Realidade? Haveria um nvel de Realidade
privilegiado em relao a todos os outros nveis? A unidade do conhecimento,
se existir, seria de natureza objetiva ou subjetiva? Qual seria o papel da
razo na existncia de uma eventual unidade do conhecimento? Qual seria,
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no campo da reflexo e da ao, o poder preditivo do novo modelo de
Realidade? Finalmente, seria possvel compreender o mundo presente?
A Realidade comporta, segundo o nosso modelo, certo nmero de
nveis. As consideraes que se seguem no dependem do fato deste nmero
ser finito ou infinito. Para a clareza terminolgica da exposio, vamos supor
que este nmero seja infinito.
Dois nveis adjacentes esto ligados pela lgica do terceiro includo, no
sentido de que o estado T presente num certo nvel, est ligado a um par de
contraditrios (A, no-A) do nvel imediatamente vizinho. O estado T produz
a unificao dos contraditrios A e no-A, mas esta unificao ocorre num
nvel diferente daquele onde esto situados A e no-A. Neste processo o
axioma da no-contradio respeitado. Isto significa que podemos com isso
obter uma teoria completa capaz de dar conta de todos os resultados
conhecidos e vindouros? A resposta a esta pergunta tem apenas um
interesse terico, pois toda ideologia ou todo fanatismo que tenha como
ambio mudar a face do mundo esto baseados na crena de que seu
enfoque completo. As ideologias ou os fanatismos em questo acreditam
deter a verdade, toda a verdade.
H certamente uma coerncia entre os diferentes nveis de Realidade,
ao menos no mundo natural. Com efeito, uma vasta autoconsistncia parece
reger a evoluo do Universo, do infinitamente pequeno ao infinitamente
grande, do infinitamente breve ao infinitamente longo. Por exemplo, uma
mnima variao da constante de juno das interaes fortes entre as
partculas qunticas conduziria, no nvel do infinitamente grande - o nosso
universo -, seja converso de todo hidrognio em hlio, seja inexistncia
dos tomos complexos como o carbono. Ou ainda, uma mnima variao da
constante juno gravitacional conduziria seja a planetas efmeros, seja
impossibilidade de sua formao. Alm disso, segundo as teorias
cosmolgicas atuais, o Universo parece capaz de criar a si mesmo sem
qualquer interveno externa. Um fluxo de informao transmite-se de
maneira coerente de um nvel de Realidade a outro nvel de Realidade de
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nosso universo fsico.
A lgica do terceiro includo pode descrever a coerncia entre os nveis
de Realidade pelo processo interativo compreendendo as seguintes etapas:
1. um par de contraditrios (A, no-A) situado num certo nvel de Realidade
unificado por um estado T situado num nvel de Realidade imediatamente
vizinho; 2. por sua vez, este estado T est ligado a um par de contraditrios
(A', no-A'), situado em seu prprio nvel; 3. o par de contraditrios (A', no-
A') est, por sua vez, unido por um estado T situado num nvel diferente de
Realidade, imediatamente vizinho daquele onde se encontra o ternrio (A',
no-A', T). O processo interativo continua infinitamente at o esgotamento
de todos os nveis de Realidade conhecidos ou concebveis.
Em outras palavras, a ao da lgica do terceiro includo sobre os
diferentes nveis de Realidade induz uma estrutura aberta, gdeliana, do
conjunto dos nveis de Realidade. Esta estrutura tem um alcance
considervel sobre a teoria do conhecimento, pois implica na impossibilidade
de uma teoria completa, fechada em si mesma.
Com efeito, o estado T produz, de acordo com o axioma da no-
contradio, a unificao do par de contraditrios (A, no-A) mas est
associado, ao mesmo tempo, a outro par de contraditrios, (A', no-A'). Isto
significa que podemos construir, a partir de um certo nmero de pares
mutuamente exclusivos, uma nova teoria, que elimina as contradies num
certo nvel de Realidade, mas esta teoria apenas temporria, pois levar
inevitavelmente, sob a presso conjunta da teoria e da experincia,
descoberta de novos pares de contraditrios, localizados no novo nvel de
Realidade. Portanto, esta teoria ser, por sua vez, substituda, medida que
novos nveis de Realidade forem descobertos, por teorias ainda mais
unificadas. Este processo continuar ao infinito, sem jamais poder chegar a
uma teoria completamente unificada. O axioma da no-contradio sai cada
vez mais reforado deste processo. Neste sentido, podemos falar de uma
evoluo do conhecimento, sem jamais poder chegar a uma no-contradio
absoluta, implicando todos os nveis de Realidade: o conhecimento est
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aberto para sempre. No mundo dos nveis de Realidade per se, aquilo que
est em cima como aquilo que est embaixo, mas aquilo que est embaixo
no como aquilo que est em cima. A matria mais fina penetra a matria
mais grosseira, como a matria quntica penetra a matria macrofsica, mas
a afirmao recproca no verdadeira. Os graus de materialidade colocam
uma flecha de orientao da transmisso da informao de um nvel para
outro. Neste sentido, "o que est embaixo no como ao que est em cima",
as palavras alto e baixo no tendo aqui nenhum outro significado (espacial
ou moral) seno aquele, topolgico, associado flecha da transmisso da
informao. Esta flecha est associada, por sua vez, descoberta de leis
cada vez mais gerais, unificantes, englobantes.
A estrutura aberta do conjunto dos nveis de Realidade est de acordo
com um dos resultados cientficos mais importantes do sculo XX: o teorema
de Gdel, que diz respeito aritmtica. O teorema de Gdel nos diz que um
sistema de axiomas suficientemente rico leva, inevitavelmente, a resultados
quer indecidveis, quer contraditrios.
O alcance do teorema de Gdel de considervel importncia para toda
teoria moderna do conhecimento. Primeiro, ele no se refere apenas ao
campo da aritmtica, mas a toda matemtica, inclusive a aritmtica. Ora, a
matemtica, que a ferramenta bsica da fsica terica, contm,
evidentemente, a aritmtica. Isto significa que toda pesquisa de uma teoria
fsica completa ilusria. Se esta afirmao for verdadeira para os domnios
mais rigorosos do estudo dos sistemas naturais, como poderamos sonhar
com uma teoria completa num campo infinitamente mais complexo: o das
cincias humanas?
De fato, a procura de uma axiomtica que conduza a uma teoria
completa (sem resultados indecidveis ou contraditrios) marca ao mesmo
tempo o apogeu e o ponto de partida do declnio do pensamento clssico. O
sonho axiomtico desmoronou com o veredito do santo dos santos do
pensamento clssico: o rigor matemtico.
O teorema que Gdel demonstrou em 1931 teve, no entanto, uma
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repercusso muito pequena fora de um crculo muito restrito de especialistas.
A dificuldade e a extrema sutileza de sua demonstrao explicam porque
este teorema precisou de um certo tempo para ser compreendido dentro da
comunidade dos matemticos. Atualmente, ele comea a penetrar aos pou-
cos no mundo dos fsicos (Wolfgang Pauli, um dos fundadores da mecnica
quntica, foi um dos primeiros fsicos a compreender a extrema importncia
do teorema de Gdel para a construo das teorias fsicas). Deveramos
ento reprovar Stalin por no ter tomado conhecimento do teorema de Gdel
e com isso no ter assim podido evitar a queda, pstuma, de seu imprio?
A estrutura gdeliana do conjunto dos nveis de Realidade, associada
lgica do terceiro includo, implica a impossibilidade de elaborar uma teoria
completa para descrever a passagem de um nvel ao outro e, a fortiori, para
descrever o conjunto dos nveis de Realidade.
A unidade que liga todos os nveis de Realidade, se existir, deve
necessariamente ser uma unidade aberta.
verdade que h uma coerncia no conjunto dos nveis de Realidade,
mas esta coerncia orientada: uma flecha est associada a toda
transmisso de informao de um nvel ao outro. Consequentemente, a
coerncia, se estiver limitada apenas aos nveis de Realidade, pra no nvel
mais alto e no nvel mais baixo. Para que a coerncia continue para alm
destes dois nveis limites, para que haja uma unidade aberta, preciso
considerar que o conjunto dos nveis de Realidade prolongue-se para uma
zona de no-resistncia s nossas experincias, representaes, descries,
imagens ou formalizaes matemticas. Esta zona de no-resistncia
corresponde, em nosso modelo de Realidade, ao vu daquilo que Bernard
d'Espagnat denomina o real velado. O nvel mais alto e o nvel mais baixo
do conjunto dos nveis de Realidade unem-se atravs de uma zona de
transparncia absoluta. Contudo, estes dois nveis sendo diferentes, a
transparncia absoluta mostra-se como um vu, do ponto de vista de nossas
experincias, representaes, descries, imagens ou formalizaes
matemticas. De fato, a unidade aberta do mundo implica em que aquilo que
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est embaixo como o que est em cima. O isomorfismo entre o alto e o
baixo restabelecido pela zona de no-resistncia.
A no-resistncia desta zona de transparncia absoluta deve-se,
simplesmente, aos limites de nosso corpo e de nossos rgos dos sentidos,
quaisquer que sejam os instrumentos de medida que prolonguem estes
rgos. Se afirmamos o limite de nosso corpo e de nossos rgos dos
sentidos, a afirmao de um conhecimento humano infinito (que exclua
qualquer zona de no-resistncia), parece-nos uma mgica lingstica. A
zona de no-resistncia corresponde ao sagrado, isto , quilo que no se
submete a nenhuma racionalizao. A proclamao da existncia de um
nico nvel de Realidade elimina o sagrado, s custas da autodestruio
deste mesmo nvel.
O conjunto dos nveis de Realidade e sua zona complementar de no-
resistncia constituem o Objeto transdisciplinar.
Na viso transdisciplinar, a pluralidade complexa e a unidade aberta so
duas facetas de uma nica e mesma Realidade.
Um novo Princpio de Relatividade emerge da coexistncia entre a
pluralidade complexa e a unidade aberta: nenhum nvel de Realidade
constitui um lugar privilegiado de onde possamos compreender todos os
outros nveis de Realidade. Um nvel de Realidade aquilo que porque
todos os outros nveis existem ao mesmo tempo. Este Princpio de
Relatividade d origem a uma nova maneira de olhar a religio, a poltica, a
arte, a educao, a vida social. E quando nossa viso de mundo muda, o
mundo muda. Na viso transdisciplinar, a Realidade no apenas
multidimensional, tambm multireferencial.
Os diferentes nveis de Realidade so acessveis ao conhecimento
humano graas existncia de diferentes nveis de percepo, que se acham
em correspondncia biunvoca com os nveis de Realidade. Estes nveis de
percepo permitem uma viso cada vez mais geral, unificante, englobante
da Realidade, sem jamais esgot-la completamente.
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A coerncia dos nveis de percepo pressupe, como no caso dos nveis
de Realidade, uma zona de no-resistncia percepo.
O conjunto dos nveis de percepo e sua zona complementar de no-
resistncia constituem o Sujeito transdisciplinar.
As duas zonas de no-resistncia do Objeto e do Sujeito
transdisciplinares devem ser idnticas para que o Sujeito transdisciplinar
possa se comunicar com o Objeto transdisciplinar. Ao fluxo de informao
que atravessa de maneira coerente os diferentes nveis de Realidade
corresponde um fluxo de conscincia atravessando de maneira coerente os
diferentes nveis de percepo. Os dois fluxos esto numa relao de
isomorfismo graas existncia de uma nica e mesma zona de no-
resistncia. O conhecimento no nem exterior, nem interior: ao mesmo
tempo exterior e interior. O estudo do Universo e o estudo do ser humano
sustentam-se mutuamente. A zona de no-resistncia desempenha o papel
do terceiro secretamente includo, que permite a unificao, em suas
diferenas, do Sujeito transdisciplinar e do Objeto transdisciplinar.
O papel do terceiro termo explcita ou secretamente includo, no novo
modelo transdisciplinar de Realidade, no to surpreendente. As palavras
trs e trans tm a mesma raiz etimolgica: trs significa a transgresso do
dois, o que vai alm do dois. A transdisciplinaridade a transgresso da
dualidade que ope os pares binrios: sujeito/objeto,
subjetividade/objetividade, matria/conscincia, natureza/divino,
simplicidade/complexidade, reducionismo/holismo, diversidade/unidade. Esta
dualidade transgredida pela unidade aberta que engloba tanto o Universo
como o ser humano.
O modelo transdisciplinar de Realidade tem consequncias
particularmente importantes no estudo da complexidade. A complexidade,
sem seu plo contraditrio, a simplicidade, aparece como uma distncia cada
vez maior entre o ser humano e a Realidade, introduzindo uma alienao
autodestrutiva do ser humano, mergulhado no absurdo de seu destino.
complexidade infinita do Objeto transdisciplinar responde a simplicidade
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infinita do Sujeito transdisciplinar, da mesma forma que a complexidade
terrificante de um nico nvel de Realidade pode significar a simplicidade
harmoniosa de um outro nvel de Realidade.
A unidade aberta entre o Objeto transdisciplinar e o Sujeito
transdisciplinar se traduz pela orientao coerente do fluxo de informao
que atravessa os nveis de Realidade e pelo fluxo de conscincia que
atravessa os nveis de percepo. Esta orientao coerente d um novo
sentido verticalidade do ser humano no mundo. Em lugar da postura ereta
sobre esta terra devida lei de gravidade universal, a viso transdisciplinar
prope a verticalidade consciente e csmica da passagem atravs de
diferentes nveis de Realidade. esta verticalidade que constitui, na viso
transdisciplinar, o fundamento de todo projeto social vivel.
NICOLESCU, Basarab. O Manifesto da Transdisciplinaridade. So Paulo: Triom, 1999,
pp. 49-65.