manuela ribeiro sanches lisboa pós-colonial e outras fortalezas na modernidade

3
por MANUELA RIBEIRO SANCHES Pesquisar... Manuela Ribeiro Sanches. Especialista em Estudos Pós-Coloniais e administradora do Artafrica. Professora auxiliar com agregação da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Investigadora no Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde coordena o projecto "Dislocating Europe. Post- Colonial Perspectives in Literary, Anthropological and Historical Studies". Organizou os volumes “Portugal não é um país pequeno: Contar a Império na pós-colonialidade", Lisboa: Cotovia 2006; "Deslocalizar a 'Europa'. Antropologia, arte, literatura e história na pós-colonialidade", Lisboa: Cotovia 2005, e, com Carlos Branco Mendes e João Ferreira Duarte, "Connecting Peoples. Identidades Disciplinares e Transculturais/ Transcultural and Disciplinary Identities", Lisboa: Colibri 2004. Artigos relacionados Desta nossa-de-todos Lisboa Interações reflexivas sobre o novo plano MARTIM MONIZ “A identidade multicultural da Índia” Lisboa Mestiça, de José Manuel de S. Lopes, João Vilhena e Vitor Belanciano Ser Escravo. Quadros de um quotidiano: dos trabalhos e dos dias Artigos do autor Defesa da ‘correcção política’ em tempos de penúria económica e intelectual Viagens da teoria antes do pós-colonial Vulnerabilidade, espaços e construção de fronteiras cultura cultura contemporânea contemporânea africana africana VOU LÁ VISITAR CARA A CARA AFROSCREEN A LER MUKANDA PALCOS CIDADE GALERIA DÁ FALA RUY DUARTE DE CARVALHO Head and tales, by Monica Miranda L i s b No chamado mundo pós-moderno – um mundo em que os limites entre disciplinas, géneros e discursos artísticos, o popular e o erudito, se terão, diz-se, esbatido; um mundo em que as fronteiras entre nações e identidades, entre o ‘dentro’ e o ‘fora’ são descritos como sendo porosos; um mundo cuja mestiçagem cultural se gosta agora de celebrar – outros limites e interdições parecem persistir ou regressar sob forma renovada. Vivemos num mundo pós-pós-moderno ou assistimos ao regresso da modernidade? À semelhança de muros e fortificações em torno de continentes e países – a ‘Fortaleza Europa’ ou o muro que divide os Estados Unidos do México - , assiste-se também ao reforço crescente das fronteiras entre o social e o artístico, sob a vigilância atenta tanto de cientistas sociais – com a sua suspeita tradicional da volatilidade, imprecisão e irrealismo das linguagens artísticas – como de artistas, curadores e críticos, estes ansiosos por manter o seu campo demarcado de questões políticas e sociais, receando que estas possam contaminar as suas intenções puramente estéticas. A viragem cultural – associando estreitamente a poética e a politica dos fenómenos culturais, questionando a vigilância disciplinar e disciplinadora dos núcleos duros de áreas de conhecimento e poder e os diálogos interdisciplinares daí decorrentes – parece esgotar-se. Simultaneamente, o nacionalismo e as identidades em torno da diferença religiosa, a par de outras formas de distinção, parecem recrudescer, tendência reforçada não pelo “choque de civilizações”, mas antes pela ameaça da implosão do sistema financeiro e económico global. universalidade, diferença e o multiculturalismo Pese embora este redesenhar das fronteiras disciplinares, um consenso inesperado surgiu nos últimos anos. Se os cientistas sociais parecem, pelo menos em Portugal, desconfiar crescentemente de questões de multiculturalismo e de diferença ‘racial’ e ‘étnica’, as práticas artísticas e os discursos em torno da arte como que partilham esta posições, se bem que por razões distintas, recorrendo, embora, a um argumento idêntico: a desconfiança perante o menor indicio de ‘correcção politica’. Por detrás da dissensão aparente, surge uma outra abordagem consensual: a universalidade, seja das ideias de cidadania, seja dos critérios artísticos, partilhando ambas as abordagens de uma certeza implícita – a da superioridade europeia ou ocidental, por muito que as abordagens pós- coloniais tenham tentado questioná-las. É evidente que as coisas são mais complexas do que este argumento parece dar a entender. A diferença e o multiculturalismo continuam a ser um tema recorrente, frequentemente sob a forma de discursos oficiais sobre questões ‘interculturais’ ou de ‘gestão de conflitos’, quase sempre de laivos paternalistas, ao postular que deve ser ‘dada voz’ aos que dela são destituídos. A mercantilização da diferença é outro campo florescente (mas durante quanto tempo?, haverá ainda que perguntar), com o seu investimento em ‘expressões’ de pressuposta hibridez, ignorando-se outras formas complexas de identificação que não podem ser subsumidas sob o lema – para usar um exemplo familiar – de Lisboa como uma cidade ‘crioula’ ou ‘multicultural’ e que pode corresponder a intenções piedosas, segundo o proverbial respeito europeu pelo ‘Outro’ que ignora os contextos assimétricos que postulam e definem a ‘diferença’, ou determinam quem são aqueles que, tendo ‘cultura’, devem ‘tolerados’. Não se trata de questionar a multicultura (Gilroy) efectiva da Europa, a não ser que esse reconhecimento leve a ignorar outras barreiras surgidas no seu espaço pós-colonial, barreiras essas suscitadas pela crescente precariedade do trabalho, bem como por outras questões sociais emergentes. Contudo, este reconhecimento não pode levar a que o racismo e outras formas de discriminação, em que o factor económico e apenas um entre vários, passem a ser tidos como meramente secundários. Embora as imagens recentes da Grécia contemporânea - questionando aquilo que alguns europeístas ainda gostam de encarar como o lugar das ‘origens’ ou ‘raízes’ do velho continente - apresentem uma familiaridade gritante com as das banlieues franceses exibidas em 2005, há que proceder a comparações simplificadoras. Com efeito, ambos os acontecimentos exigem uma abordagem diferenciada, que não iluda as questões ‘étnicas’ e ‘raciais’ nestes tempos pós-pós-modernos. Todavia, o facto é que os ataques e a invasão de edifícios públicos, tais como universidades e escolas, a par de outros espaços, incluindo a invasão de propriedade privada - enquanto elementos T N R

Upload: nuno-rodrigues

Post on 14-Aug-2015

24 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Page 1: Manuela Ribeiro Sanches Lisboa pós-colonial e outras fortalezas na modernidade

por MANUELA RIBEIRO SANCHES

Pesquisar...

Manuela Ribeiro Sanches.Especialista em Estudos Pós-Coloniais eadministradora do Artafrica. Professora auxiliarcom agregação da Faculdade de Letras daUniversidade de Lisboa. Investigadora no Centrode Estudos Comparatistas da Faculdade deLetras da Universidade de Lisboa, ondecoordena o projecto "Dislocating Europe. Post-Colonial Perspectives in Literary, Anthropologicaland Historical Studies". Organizou os volumes“Portugal não é um país pequeno: Contar aImpério na pós-colonialidade", Lisboa: Cotovia2006; "Deslocalizar a 'Europa'. Antropologia, arte,literatura e história na pós-colonialidade", Lisboa:Cotovia 2005, e, com Carlos Branco Mendes eJoão Ferreira Duarte, "Connecting Peoples.Identidades Disciplinares e Transculturais/Transcultural and Disciplinary Identities", Lisboa:Colibri 2004.

Artigos relacionados

Desta nossa-de-todos Lisboa

Interações reflexivas sobre o novo plano MARTIMMONIZ

“A identidade multicultural da Índia”

Lisboa Mestiça, de José Manuel de S. Lopes,João Vilhena e Vitor Belanciano

Ser Escravo. Quadros de um quotidiano: dostrabalhos e dos dias

Artigos do autor

Defesa da ‘correcção política’ em tempos depenúria económica e intelectual

Viagens da teoria antes do pós-colonial

Vulnerabilidade, espaços e construção defronteiras

culturaculturacontemporâneacontemporâneaafricanaafricana

VOU LÁ VISITAR CARA A CARA

AFROSCREEN A LER MUKANDA

PALCOS CIDADE GALERIA DÁ FALA

RUY DUARTE DE CARVALHO

Head and tales, by Monica Miranda

Lisboa pós-colonial e outras fortalezas na modernidade

No chamado mundo pós-moderno – um mundo em que os limites entre disciplinas, géneros ediscursos artísticos, o popular e o erudito, se terão, diz-se, esbatido; um mundo em que as fronteirasentre nações e identidades, entre o ‘dentro’ e o ‘fora’ são descritos como sendo porosos; um mundocuja mestiçagem cultural se gosta agora de celebrar – outros limites e interdições parecem persistirou regressar sob forma renovada.

Vivemos num mundo pós-pós-moderno ou assistimos ao regresso da modernidade?

À semelhança de muros e fortificações em torno de continentes e países – a ‘Fortaleza Europa’ ou omuro que divide os Estados Unidos do México - , assiste-se também ao reforço crescente dasfronteiras entre o social e o artístico, sob a vigilância atenta tanto de cientistas sociais – com a suasuspeita tradicional da volatilidade, imprecisão e irrealismo das linguagens artísticas – como deartistas, curadores e críticos, estes ansiosos por manter o seu campo demarcado de questõespolíticas e sociais, receando que estas possam contaminar as suas intenções puramente estéticas.A viragem cultural – associando estreitamente a poética e a politica dos fenómenos culturais,questionando a vigilância disciplinar e disciplinadora dos núcleos duros de áreas de conhecimento epoder e os diálogos interdisciplinares daí decorrentes – parece esgotar-se. Simultaneamente, onacionalismo e as identidades em torno da diferença religiosa, a par de outras formas de distinção,parecem recrudescer, tendência reforçada não pelo “choque de civilizações”, mas antes pela ameaçada implosão do sistema financeiro e económico global.

universalidade, diferença e o multiculturalismo

Pese embora este redesenhar das fronteirasdisciplinares, um consenso inesperado surgiu nosúltimos anos. Se os cientistas sociais parecem, pelomenos em Portugal, desconfiar crescentemente dequestões de multiculturalismo e de diferença ‘racial’ e‘étnica’, as práticas artísticas e os discursos em tornoda arte como que partilham esta posições, se bem quepor razões distintas, recorrendo, embora, a umargumento idêntico: a desconfiança perante o menorindicio de ‘correcção politica’. Por detrás da dissensãoaparente, surge uma outra abordagem consensual: auniversalidade, seja das ideias de cidadania, seja doscritérios artísticos, partilhando ambas as abordagensde uma certeza implícita – a da superioridade europeiaou ocidental, por muito que as abordagens pós-coloniais tenham tentado questioná-las.

É evidente que as coisas são mais complexas do queeste argumento parece dar a entender. A diferença e omulticulturalismo continuam a ser um tema recorrente,frequentemente sob a forma de discursos oficiais sobrequestões ‘interculturais’ ou de ‘gestão de conflitos’,

quase sempre de laivos paternalistas, ao postular que deve ser ‘dada voz’ aos que dela sãodestituídos. A mercantilização da diferença é outro campo florescente (mas durante quanto tempo?,haverá ainda que perguntar), com o seu investimento em ‘expressões’ de pressuposta hibridez,ignorando-se outras formas complexas de identificação que não podem ser subsumidas sob o lema –para usar um exemplo familiar – de Lisboa como uma cidade ‘crioula’ ou ‘multicultural’ e que podecorresponder a intenções piedosas, segundo o proverbial respeito europeu pelo ‘Outro’ que ignora oscontextos assimétricos que postulam e definem a ‘diferença’, ou determinam quem são aqueles que,tendo ‘cultura’, devem ‘tolerados’. Não se trata de questionar a multicultura (Gilroy) efectiva daEuropa, a não ser que esse reconhecimento leve a ignorar outras barreiras surgidas no seu espaçopós-colonial, barreiras essas suscitadas pela crescente precariedade do trabalho, bem como poroutras questões sociais emergentes. Contudo, este reconhecimento não pode levar a que o racismoe outras formas de discriminação, em que o factor económico e apenas um entre vários, passem aser tidos como meramente secundários.

Embora as imagens recentes da Grécia contemporânea - questionando aquilo que alguns europeístasainda gostam de encarar como o lugar das ‘origens’ ou ‘raízes’ do velho continente - apresentem umafamiliaridade gritante com as das banlieues franceses exibidas em 2005, há que proceder acomparações simplificadoras. Com efeito, ambos os acontecimentos exigem uma abordagemdiferenciada, que não iluda as questões ‘étnicas’ e ‘raciais’ nestes tempos pós-pós-modernos.Todavia, o facto é que os ataques e a invasão de edifícios públicos, tais como universidades eescolas, a par de outros espaços, incluindo a invasão de propriedade privada - enquanto elementos

PT

EN

FR

Page 2: Manuela Ribeiro Sanches Lisboa pós-colonial e outras fortalezas na modernidade

Under-construction, greater Lisbon, Monica Miranda / PaulGoodwin 2009

mais ‘visíveis’ desses acontecimentos que não podem, em ambos os casos, ser reduzidos ao seuimpacto espectacular -, requerem uma abordagem mais complexa de um vasto conjunto defenómenos com que as sociedades modernas se defrontam na Europa contemporânea, fenómenosesses a que os modelos sociais herdados não conseguem dar uma resposta adequada. O mesmo seaplica ao discurso político. O cosmopolitismo foi tradicionalmente associado a uma forma específicade se imaginar o espaço, ou seja, a cidade como o lugar ‘civilizado’ onde decorreriam os intercâmbios democráticos, a negociação das diferenças em torno de uma cidadania partilhada. Masas tensões nossas contemporâneas não podem ser subsumidas ao slogan ‘todos diferentes, todosiguais’, segundo uma suposta dialéctica do ‘Mesmo’ e do ‘Outro’, dialéctica essa que ignora não sóos complexos processos de identificação existentes, mas também a dissensão que aqueles quepretendem ‘viver com a diferença’, em termos efectivamente democráticos, têm de enfrentar.

cosmopolitismo para alguns e barreiraspara muitos

Como praticar o cosmopolitismo, se a cidadepersiste em criar barreiras entre aqueles quepertencem e os que dela são excluídos? Se osbairros lisboetas tradicionais têm vindo aacolher imigrantes recentes, estes também sãorapidamente imobilizados em territóriosespecíficos, como o Martim Moniz, a Praça deS. Domingos, os Restauradores, algumaspartes de Alfama, antigo gueto mouro e judeu.Algo que testemunha o carácter sempremulticultural da cidade; tanto os seus

momentos mais tolerantes como racistas. Mas, por sua vez, aqueles que vivem há mais tempo emPortugal e cujos filhos já nasceram em Lisboa parecem ter sido relegados, banidos, para não-lugares,as banlieues, locais de ostracismo, bairros sociais que fornecem a matéria-prima que apimenta asnoticias sensacionalistas que os repórteres gostam de inventar em torno da criminalidade, violência ediferença. E assim se desvia uma classe media entediada e empobrecida, sobretudo durante o picodo tórrido Verão lisboeta, das suas preocupações sociais. A ‘maioria’ pode encontrar um modo decompensar as suas frustrações, convencendo-se dos seus costumes ‘superiores’, da ‘civilizaçãoeuropeia’ que as ‘minorias étnicas’ ou os imigrantes não partilham. Ao mesmo tempo que vibram aoritmo do kuduro e de outras sonoridades africanas ou crioulas em concertos ao ar livre durante asfestas da cidade, os ‘indígenas’ lisboetas parecem ver com desconfiança, quer a invasão de lugaresde ócio, sobretudo por parte de jovens negros, predominantemente masculinos, como sucedeu com ocelebre arrastão que nunca existiu, quer a ideia de que viver com a diferença implica oquestionamento de paradigmas herdados que determinam quem pode fazer parte da nação, daEuropa e do Ocidente.

Serão a mestiçagem e a hibridez um modo de negar ou recusar as fronteiras efectivamente impostasaqueles que os discursos acerca da ‘diferença’ insistem em segregar através de subtis praticas deexclusão? Será a cidadania, enquanto forma de garantir direitos iguais para todos, um modo deassegurar a igualdade efectiva, nomeadamente àqueles que querem pertencer ao lugar ondenasceram, apesar da sua ligação persistente – porque se sabem indesejados – à sua diferença(re)inventada – recorrendo a símbolos de culturas negras globais, incluindo gíria, indumentaria ecabelo, do streetwear às rastas? Note-se que estes símbolos também são apropriados por jovens‘brancos’; o que nos diz muito acerca de formas alternativas de convivialidade (Gilroy), para além depolíticas oficiais em torno da ‘diferença”.

periferias e segregação

Os espaços agora ocupados pelos bairros sociais – os chamados ‘bairros problemáticos’, numatradução literal da expressão francesa – onde esses ‘imigrantes de segunda ou terceira geração’vivem, coabitando e interagindo com populações pobres e brancas, encontram-se demarcados poruma linha anteriormente traçada pela antiga Estrada Militar, construída para conter os invasoresfranceses, durante as Guerras Napoleónicas. Mas, paradoxalmente, os mesmos bairros descritos ediscriminados como guetos resistem a esse rotulo excessivamente familiar, ao recorrer as suaspróprias tradições, incluindo as que descobrem localmente, apontando assim para asinterdependências inevitáveis das historias (pós)coloniais, apesar e para além da sua violênciaintrínseca. Assim, a ‘casa portuguesa’ de triste memória - fado que a minha geração não pode deixarde associar à atmosfera autoritária e repressivamente pequeno-burguesa do Portugal colonial e pré-democrático – surge sob novas roupagens, em perspectivas e justaposições inesperadas. E istoaponta para outras estórias, para além da célebre narrativa da proverbial tendência portuguesa para amestiçagem, consequência inevitável de qualquer cenário colonial, a par de todos os tipos demedidas mais ou menos rígidas de segregação, distintamente introduzidas consoante contextosgeográficos e históricos diversos. O que evidencia também sublinhar as negociações tensas, bemconhecidas daqueles que habitam a linha a demarcar o que ainda é definido como nacional(portugalidade) e transnacional (europeu).

As culturas negras, a ‘presença africana’ (embora se esteja a falar maioritariamente de populaçõesnascidas em Portugal), são bem-vindas em Lisboa desde que sirvam à mercantilização da cidadecomo espaço cosmopolita global, justapondo o exótico ao familiar, como sucede com o kuduroLuanda-Lisboa, crescentemente popular em Londres. A música e a nomenclatura dos Buraka SomSistema constituem, assim, uma presença eficaz, a garantir a vitalidade de tais empreendimentos eexperiências, facilmente cooptáveis por interesses económicos - embora também lhes possamresistir. Se o fado – música nacional por excelência desde o final do século XIX, a era da invençãodas tradições (Hobsbwam/Ranger) – é crescentemente entendido como uma forma híbrida de

Page 3: Manuela Ribeiro Sanches Lisboa pós-colonial e outras fortalezas na modernidade

Under-construction, greater Lisbon, Monica Miranda / PaulGoodwin 2009

Under-construction, greater Lisbon, Monica Miranda / PaulGoodwin 2009

Facebook

música, ao mesmo tempo que mercantilizada como uma manifestação exótica de música do mundo,ele continua a ser encarado como uma expressão da lusofonia. Pesem embora a mescla de origensafricanas com sonoridades brasileiras e as suas viagens transatlânticas, o mar português resisteainda a ser ‘negro’, de acordo com outras narrativas ainda presentes nas histórias do passadoimperial português.

redesenhando os limites

Haverá outros modos de imaginar o tempo e o espaço como alternativa aos entendimentos que,apesar das proclamações da porosidade de fronteiras e disciplinas, insistem em fazer perdurar aseparação entre os que podem pertencer (ou os que só o podem parcialmente), segundoprocedimentos de vigilância que definem os limites territoriais a ser habitados por ‘autóctones’ e‘imigrantes’? Como desfazer o nó apertado das narrativas ainda consensuais acerca da ideia daEuropa e das suas nações? Como questionar barreiras e suspeitas? Talvez tentando quebrar,persistente e teimosamente, os limites, questionando os discursos que legitimam a segregação dadiferença sob diferentes estandartes disciplinares e políticos.

“Underconstruction”

Lugares abandonados, bairros destruídos comoos que são apresentados no livro“Underconstruction” de Mónica Miranda e PaulGoodwin, servem, assim, menos para estimularuma meditação sobre a ruína, o caráctertransitório da natureza humana universal, talcomo enfatizado pela alegoria barroca (WalterBenjamin), do que para apontar para ostrânsitos de um mar menos português do quenegro ou pardo (Vale de Almeida). As casasabaladas pela vontade de modernizar retêmvestígios e fragmentos de vidas, com as suas

aspirações por realizar, mas não menos vividas, testemunhando dessa forma o modo comoinfluenciaram e foram influenciadas pelo espaço urbano que não pode ser reduzido a umacosmopolis clássica.

O espaço contemporâneo, pós-colonial, resiste e, por isso, reclama formas mais diversificadas decultura, encaradas mais na sua plena modernidade e menos no seu exotismo de culturas negrasglobais, sejam elas vernaculares ou de vanguarda.

A vida quotidiana não tem de ser o terreno exclusivo das ciência sociais, nem a arte entendida comoo domínio exclusivo dos discursos artísticos. Ambos têm de ser encarados nas suas tensões econflitos produtivos na Europa pós-colonial, nomeadamente em países que, como Portugal,construíram a sua identidade nacional em torno de uma suposta excepcionalidade na históriauniversal, papel esse que não impediu a subalternização do país em contextos locais e globais.

Num momento em que o redesenhar de fronteiras parece ser a estratégia mais eficaz, projectosartísticos como Underconstruction obrigam-nos a considerar a complexidade das interdependências edos encontros, com exigências e aspirações diversas, consoante as experiências quotidianas detodos aqueles que aspiram a uma vida melhor, apesar das restrições e desigualdadeseconómicas crescentes.

por Manuela Ribeiro SanchesCidade | 13 Maio 2010 | cosmopolitismo, lisboa, migrantes, multiculturalismo, pos-colonial, território

sobre nós | ficha técnica | participar | subscrever | publicidade | ligações Publicado sob uma Licença Creative Commons