márcio rolo. reencarcerando gramsci

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Temas de Ensino Médio Política, Ciencia e Cultura Organizadores José Roberto Franco Reis Cláudio Gomes Ribeiro Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venancio Ministerio da Saúde FIOCRUZ Fundaçao Osvaldo Cruz Copyright © 2010 dos autores Todos os direitos desta edição reservados à Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fundação Oswaldo Cruz REENCARCERANDO GRAMSCI (p. 141-160) Márcio Rolo (1) Com este trabalho procuramos chamar a atenção para um argumento presente no discurso de alguns atores que defendem a proposta da escola unitária de Gramsci . argumento que, a nosso ver, distorce, em essência, o sentido da concepção educacional do dirigente marxista. Trata-se da ideia de que, diante de uma nova configuração entre ciência e trabalho neste momento de desenvolvimento do capitalismo, o velho sistema dual do ensino médio, com suas vias que levam, uma, à universidade, e a outra, ao mundo do trabalho, já não interessaria ao capital. Pela insistência com que este argumento tem surgido em momentos

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El pensamiento de Gramsci y la reflexión teórica sobre la educación.

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Temas de Ensino Mdio

Poltica, Ciencia e Cultura

Organizadores

Jos Roberto Franco Reis

Cludio Gomes Ribeiro

Escola Politcnica de Sade Joaquim Venancio

Ministerio da Sade

FIOCRUZ Fundaao Osvaldo Cruz

Copyright 2010 dos autores

Todos os direitos desta edio reservados

Escola Politcnica de Sade Joaquim Venncio/Fundao Oswaldo Cruz

REENCARCERANDO GRAMSCI (p. 141-160)

Mrcio Rolo (1)

Com este trabalho procuramos chamar a ateno para um argumento

presente no discurso de alguns atores que defendem a proposta

da escola unitria de Gramsci . argumento que, a nosso ver, distorce,

em essncia, o sentido da concepo educacional do dirigente marxista.

Trata-se da ideia de que, diante de uma nova configurao entre

cincia e trabalho neste momento de desenvolvimento do capitalismo, o

velho sistema dual do ensino mdio, com suas vias que levam, uma,

universidade, e a outra, ao mundo do trabalho, j no interessaria ao

capital. Pela insistncia com que este argumento tem surgido em momentos

importantes do debate poltico-educacional, vemo-lo ganhando

a adeso silenciosa e irrefletida de vrios segmentos envolvidos com a

educao brasileira. Urge discuti-lo, diante dos efeitos que ele pode vir

a acarretar na configurao da educao profissional.

A proposio da qual discordamos, elucidemos logo, ao detectar

uma suposta convergncia de interesses entre o capital e o trabalho, no

tocante necessidade de superar a velha dualidade estrutural do

ensino mdio, no leva em conta a complexidade dos processos pelos

quais o capital funda seu domnio. No nvel ideolgico, sabe-se, este

processo se d por meio de uma multiplicao das vias de construo

de sua hegemonia, seja pela recriao dos velhos sofismas educacionais,

seja pela elaborao de um discurso que, a exemplo do que ocorre

com certas espcies na natureza, mimetiza-se na aparncia de seu inimigo,

para melhor confundir, distrair e assim conseguir o seu intento,

qual seja, o de viver e se reproduzir. O argumento que objeto desta

crtica, parece-nos, apropria-se de conceitos essenciais proposta da

educao unitria: trabalho, cincia, cultura, pensamento, dirigente, tica;

com sentidos inteiramente diversos daqueles que foram pensados

1 Doutorando do Curso de Polticas Pblicas e Formao Humana da UERJ. Professor pesquisador da Fiocruz.

na proposta gramsciana. Contra a proposio de uma convergncia de

interesses entre capital e trabalho no tocante educao, reuniremos

argumentos que nos permitiro afirmar que hoje, mais do que nunca, a

.dualidade estrutural. do ensino mdio vital para a reproduo do

capital, se por este termo entendemos a escolarizao baseada na exist

ncia de um abismo intransponvel entre conhecimentos tericos e conhecimentos

prticos. E que sob uma nova faceta, agora travestida de

unitariedade, mais uma vez ela encontrou abrigo no s na atual legisla-

o educacional brasileira, mas tambm na proposio de atores socialmente

reconhecidos como defensores dos princpios gramscianos da

escola unitria.

No se trata meramente de uma questo terminolgica, uma disputa

para decidir se velho ou novo o estado atual de coisas na educa-

o, mas de ressaltar a existncia de um deslocamento de sentidos em

conceitos estruturantes da proposta pedaggica crtica. E que carregam

um efeito insidioso quando se trata de pensar o papel da escola na

construo da sociedade socialista.

As condies de possibilidade da confuso/distoro tericoideol

gica dos princpios da educao gramsciana, acreditamos, tm

origem no quadro poltico e econmico que emerge nos anos 80, os

anos de emergncia do neoliberalismo. O novo paradigma econmico,

fundado numa financeirizao do capital, associado a um novo

paradigma produtivo, o toyotismo, redefine o quadro de demandas por

conhecimentos e informao em decorrncia do elevado aumento de

competitividade no mundo da produo. Todo o processo de reformas

educacionais em escala global, sabe-se, foi estreitamente articulado,

financiado e controlado pelo capital, atravs das agncias multilaterais

. Banco Mundial, Cepal, Unesco, Unicef etc.

interessante perceber que no processo de implementao das

recomendaes (exigncias) das agncias multilaterais o capital reelabora

seu discurso ideolgico, seja atravs da apropriao, do deslocamento

ou do recalque de conceitos caros tradio socialista. O ideal clssico

do mundo liberal . o mundo homogneo da famlia, da religio, da educa

o, teorizado por Weber . fundado numa tica da acumulao que

se d pela renncia ao gozo imediato, substitudo pela viso de um

mundo assentado no consumo, na multidiversidade cultural, na ao

comunicativa, nos direitos de as minorias tnicas, sexuais, religiosas

expressarem suas diferenas. Play hard, life is short: esta a nova ordem

do capital.

Contudo, todo este elogio do capitalismo diversidade de situa-

es, que subliminarmente realizaria o iderio socialista, se d custa

de um recalque da categoria analtica marxista fundamental: a maisvalia;

expresso necessria . e alvo principal . da contradio fundamental

do capitalismo, do fato de a fora de trabalho ter se transformado

em mercadoria.

Os anos 80 viram aparecer uma srie de novos termos . estado

mnimo, terceira via, pensamento nico ., todos eles forjados com vistas

a vender a ideia de que o modo de produo capitalista tinha finalmente

deixado a alada da histria . com ele, tnhamos chegado ao fim

da histria . para inscrever-se definitivamente no mbito da natureza.

(O oposto simtrico tese marxista de conseguir um .recuo das barreiras

naturais. pelo comunismo: se na viso marxista o comunismo o

modo de produo que permite humanidade superar o mundo da necessidade

rumo ao mundo da liberdade, a terceira via prometia atrelarnos

definitivamente ao mundo da natureza).

Esta nova estratgia do capital na difuso de sua ideologia foi analisada

com bastante perspiccia no livro Poltica educacional: o que

voc precisa saber sobre..., no qual as autoras assinalam que o consenso

sobre as reformas foi alcanado

graas ao sutil exerccio lingustico posto em prtica nos ltimos

tempos, isto , forja de um novo vocabulrio que

ressignifica conceitos, inverte termos e sinais, de modo a

torn-los condizentes com os novos paradigmas que

referenciam a transformao almejada para a educao no

pas. (SHIROMA et al, 2000).

Os documentos analisados aqui deixam entrever esta inverso de

termos e sinais aludida pelas autoras. Ao trmino deste estudo, preten-

demos compreender e questionar a poltica de alianas e a eficcia das

estratgias utilizadas pelos defensores da Escola Unitria gramsciana

neste momento da poltica educacional brasileira. Caberia fazer a crtica,

em outro estudo, sobre o papel dos intelectuais na conduo da

Reforma Educacional de 1996, quando alguns dentre eles, tradicionalmente

identificados com as propostas socialistas de educao, foram

chamados a prestar consultorias e a formular e gerir programas seja no

mbito estadual, seja no mbito federal do governo. Este estudo deveria

investigar as formas como se do a alternncia de discursos, os v-

rios deslocamentos de sentidos, as inverses de termos e sinais e as

descontinuidades entre um discurso dirigido para a Academia e um discurso

elaborado para dar sustentao s polticas de Estado neoliberal.

Numa poca em que as distines ideolgicas foram manchadas, interesante notar as nuances, as tores, as vrias estratgias discursivas

a que se lanam mo alguns segmentos da intelectualidade brasileira

para legitimar as propostas do capital.

Dentre os inmeros documentos que atestam este suposto desconforto

do capital com a velha dualidade estrutural do sistema de ensino,

gostaramos de fixar-nos em dois deles, atravs dos quais a proposi-

o e a justificao dessa suposta convergncia de interesses ficam

bem elucidadas.

Tomaremos como base desta anlise dois livros: Ensino mdio e

profissional: as polticas do Estado neoliberal e Ensino mdio: construindo

uma proposta para os que vivem do trabalho, ambos de autoria da

Dra. Accia Zeneida Kuenzer (2). A autora, educadora da Universidade

Federal do Paran e pesquisadora na rea de Educao e Trabalho,

conhecida como uma defensora da escola unitria gramsciana no Brasil.

No entanto, algumas de suas propostas e afirmaes deveriam ser

objeto de uma anlise mais demorada.

2 O texto em questo foi produzido para a 6 Conferncia Brasileira de Educao, realizada em setembro de 1991, e reapresentado em setembro de 1996, em Caxambu, na Reunio Anual da Anped. A inteno do texto, segundo sua autora, mostrar que, no obstante o fato de j circular na Cmara Federal uma proposta fundamentada na concepo de escola unitria apresentada pelo Deputado Jorge Hage, o MEC j tinha um projeto de constituio de um Sistema diferenciado de educao tecnolgica.

No primeiro dos livros citados, acha-se publicado o documento A

questo do ensino mdio no Brasil: a difcil superao da dualidade

estrutural. O texto, resultado de um amplo debate que envolveu representantes

dos diversos segmentos organizados da sociedade . conforme

ficamos sabendo pela introduo ., faz a defesa apaixonada de

uma educao bsica, unitria, integrada, comum para todos os cidad

os, criticando duramente a dualidade entre sistemas de ensino incorporada

na proposta da criao do Sistema Nacional de Educao

Tecnolgica. J o segundo livro, editado em 2001, rene, de acordo com

o que lemos na Introduo, a contribuio de professores e tcnicos da

Secretaria de Educao do Estado de Mato Grosso, e foi desenvolvido

com o objetivo de .traduzir as determinaes legais relativas ao Ensino

Mdio em princpios orientadores da ao das escolas na construo de

seu projeto poltico-pedaggico, a partir das demandas de sua principal

clientela: os que vivem trabalho. (KUENZER, 2001b, p. 11).

Os dois livros, no obstante terem sido produzidos em contextos

diferentes, articulam uma crtica contundente dualidade estrutural do

ensino mdio, e, para tanto, se apoiam fundamentalmente na proposta

educacional de Gramsci. O problema, a nosso ver, que se o diagnstico

que fazem da permeabilidade da educao brasileira violncia da

diviso classista acurado, o mesmo no se pode dizer da soluo que

apontam, qual seja, o tipo de escola unitria que defendem distorce

inteiramente a proposta educacional gramsciana.

Parte da nossa crtica a estes documentos deve-se existncia de

afirmaes pouco precisas sobre a nova base tcnica da produo e

suas relaes com a nova conjuntura do trabalho na sociedade contempor

nea, levando defesa de uma proposta educacional no

emancipadora. Exemplo disso o conflito na caracterizao das rela-

es entre cincia e tcnica que ora caracterizado, no seu atual est-

gio de desenvolvimento, como uma atividade social em processo de

complexificao, ora, e reversamente, como um atividade num processo

de simplificao. Na medida em que no fica claro luz de qual

marco referencial esse julgamento feito, fica evidenciada uma contradi

o que no teria maiores consequncias se da caracterizao em

pauta no se derivasse a concluso perniciosa da existncia de uma

convergncia de interesses entre o capital e o trabalho no tocante s

propostas educacionais.3 Nossa discordncia refere-se no somente

anlise de conjuntura que consta dos documentos em questo, mas

estende-se mesmo aos princpios que subjazem concepo educacional

defendida pela autora que ferem um a um os pressupostos da Escola

unitria.

Para melhor avaliar a contribuio de Gramsci viso que temos

hoje da escola, e com vistas a confrontar os pressupostos do documento

em questo com a proposta do dirigente marxista, faremos uma breve

aluso concepo de educao do dirigente italiano, que por sua vez s

pode ser apreendida no interior de sua teoria ampliada de Estado.

EDUCAO E HEGEMONIA

Quando se pensa a instituio escolar na sociedade moderna,

Gramsci uma referncia obrigatria. Isto porque foi ele o responsvel

por submeter a instituio escolar a uma rigorosa crtica dialtico-materialista, ao cabo da qual ela aparece caracterizada como uma instituio enlaada aos interesses do capital e inserida num quadro de relaes sociais e histricas que a determinam e a ultrapassam.

Gramsci chega a esta caracterizao da escola, compreenso do

enlace entre escola e interesses do capital, como um desenvolvimento

necessrio de sua teoria poltica.

s voltas com o problema de entender por que a revoluo comunista

aconteceu na Rssia, mas no nos demais pases da Europa,

Gramsci elabora um par de conceitos para pensar as formaes

sociais, da combinao dos quais resultaria a estrutura peculiar de

3 Outras contradies aparecem no decorrer dos textos. Para ficar somente em mais uma delas: apesar da crtica da autora pedagogia das competncias na proposta formulada para o ensino mdio de Mato Grosso . no tpico intitulado Por que no falamos competncias ., logo depois, reconhecendo um avano das proposies da educao neoliberal, ela afirma: .Sem sombra de dvida, a exigncia de mais domnio de conhecimentos cientficos-tecnolgicos e de desenvolvimento de competncias cognitivas superiores atravs da expanso da escolaridade, [...] positiva . (KUENZER, 2001b, p. 58).

uma determinada sociedade. A primeira formao refere-se s sociedades

com menor grau de desenvolvimento, sociedades menos complexas,

caracterizadas, sobretudo, pelo predomnio quase absoluto de

um Estado forte . o Estado-coero e a ausncia (ou debilidade) de

qualquer outro organismo mediador entre este Estado e a populao.

A este tipo de formao Gramsci denominou .formaes sociais do

oriente., sendo exemplo delas a Rssia. J o segundo tipo de forma-

o, denominada .formao social do ocidente., refere-se s sociedades

com um grau de complexidade maior, constitudas por dois componentes

em relaes dinmicas: a sociedade civil . formada pelo

conjunto das organizaes sociais: igrejas, partidos polticos, escolas,

organizaes culturais . e a sociedade poltica, que se identifica

com os aparelhos de coero sob controle das burocracias executiva e

policial-militar. Caracterizar-se-iam por este tipo de formao sociedades

tais como a Alemanha e a prpria Itlia.

Esta distino entre formaes sociais define (condiciona), para

Gramsci, formas diferentes de luta contra o capital. O autor dos Cadernos

do crcere refletiu extensamente sobre estes dois modos de

enfrentamento poltico, legando reflexes preciosas sobre o processo

de conquista do poder na sociedade ocidental. A luta de classes nas

sociedades onde predominariam a formao .oriental. imporia a .guerra

de movimento. . uma estratgia de ataque frontal, fundada na fora

fsica, voltada diretamente para a conquista e conservao do Estado,

prpria para aquelas formaes nas quais predominaria o Estado-coer-

o; j nas formaes .ocidentais. a luta de classes exigiria um tipo

inteiramente diferente de enfrentamento, a .guerra de posio., uma

forma de luta processual e molecular, travada principalmente no mbito

da sociedade civil, que deslocaria a luta contra o capital para o nvel

poltico-ideolgico.

assim que chegamos ao conceito gramsciano fundante de sua

teoria da ao poltica: o conceito de hegemonia. A conquista gradual

da direo poltico-ideolgica pelas diversas organizaes sociais que

compem a sociedade civil, justamente designadas por Gramsci de .aparelhos

privados de hegemonia., constitui o ncleo da luta poltica que se

desenvolveria prioritariamente no plano discursivo e ideolgico, atravs

do confronto de ideias e da persuaso. Gramsci, com grande sensibilidade

para a psicologia social, legou longos e inestimveis estudos sobre

os processos de formao de conscincia ideolgica do .homem comum

., combatendo a viso paralisante do marxismo vulgar e

reintroduzindo a vitalidade transformadora do pensamento dialtico.

Na teoria de Gramsci, o reconhecimento da escola como um aparelho

de elaborao e difuso de ideologia circunscreve um limite e uma

possibilidade. Retira-a do lugar ingnuo de transmissora de conhecimentos,

explicitando os limites histricos dentro dos quais ela se move,

e amplia, em contrapartida, suas possibilidades, tomando-a como lugar

de construo de vises de mundo unitrias e consensuadas.

UNITARIEDADE E ESVAZIAMENTO POLTICO

Voltemos a ateno para os documentos que esto sob anlise.

Deslocando o ponto de vista de sua crtica correta ao sistema dual previsto

na proposta de criao do Sistema Nacional de Educao

Tecnolgica4, passamos a focar sua proposta de escola unitria.

O ncleo do argumento, a nosso ver problemtico, acha-se

explicitado no seguinte trecho:

H um reconhecimento geral (sic), por parte de empres-

rios e trabalhadores, de que o desenvolvimento do processo

produtivo, a par das presses sociais pela democratizao,

j no pode compactuar com um sistema escolar que

recoloque a velha dualidade estrutural: escola .desinteressada

. para dirigentes e escola profissionalizante para os trabalhadores.

(KUENZER, 2001a, p. 37).

4A proposta de criao do Sistema Nacional de Educao Tecnolgica previa cinco modalidades:

1) qualificao ocupacional dirigida queles que no tiveram oportunidade de frequentar a escola regular e para aqueles que quereriam ter formao especfica, independentemente de formao escolar; 2) educao prtica em nvel de primeiro grau; 3) formao tcnica de nvel mdio, oferecida nas escolas de segundo grau que ofertam profissionalizao em reas definidas (Escolas Tcnicas); 4) formao tcnica de nvel superior, destinada preparao de tecnlogos; 5) formao profissional superior oferecida pelas universidades nos cursos plenos, preparando no s para o exerccio profissional, como tambm para a investigao cientfica.

Acompanhando a linha de raciocnio que precede esta afirmao, podemos detectar a lgica dos argumentos que a sustenta, qual seja, a conhecida diferena entre o modelo de produo taylorista-fordista e o modelo de produo toyotista.5 Esta argumentao pode ser resumida em quatro afirmaes, das quais vo derivar a proposta educacional

de Kuenzer: 1) o mundo da produo origina grupos sociais

diferenciados, com necessidades especficas; esta diferena fornece

o modelo de configurao da escola; 2) o modelo de produo tayloristafordista, assentado numa diviso tcnica-social do trabalho, demanda formas distintas de formao: cientfica e propedutica para quem vai exercer funes intelectuais e tcnica e profissional para quem vai

exercer funes instrumentais; 3) o avano cientfico e tecnolgico pe

em crise esta clssica diviso. Com a substituio da tecnologia de

base eletromecnica, que caracteriza o taylorismo-fordismo, pela

tecnologia de base eletrnica, do modelo toyorista, cai por terra a divis

o nitidamente estabelecida entre funes instrumentais e intelectuais.

Reconhece-se .que todos desempenham, em certa medida, fun-

es intelectuais e instrumentais.; 4) medida que o desenvolvimento

contemporneo no permite mais separar a funo intelectual da

funo tcnica, torna-se necessria uma formao que unifique cincia

e trabalho, trabalho intelectual e instrumental.

Acham-se assim delineadas, no documento, as premissas que permitem

concluir que a escola clssica .j no serve nem mesmo para a

burguesia.. Pois, segundo seu argumento, o desenvolvimento cientfico

e tecnolgico vai, na medida de seu avano, introduzindo uma contradi-

o que consiste em simplificar as atividades prticas do fazer e

complexificar as atividades de gerenciamento e manuteno. .O trabalho

mais se simplifica enquanto mais se torna complexa a cincia.

(ibidem, p. 35, grifo nosso).

Esta complexificao da cincia, ainda segundo o documento,

acompanhada por uma ampliao dos espaos de participao .do ho-

5Valeria lembrar que o ncleo desta argumentao em nada difere daquele que seria utilizado, anos depois, como o eixo central de sustentao dos Parmetros Curriculares Nacionais.

mem comum. nas atividades culturais, associativas, sindicais, partid-

rias, por conta do desenvolvimento cientfico e tecnolgico e tambm

das .presses pela democratizao..

Ora, prosseguindo na leitura do documento, percebemos que se a

cincia foi, at ento, caracterizada como um processo em vias de

complexificao, ela, contudo, deixa de s-lo imediatamente, no par-

grafo seguinte, sem que nada explique mudana to significativa. Vamos

ao texto, no qual grifamos, em negrito, a passagem que aponta,

paradoxalmente, para uma simplificao da cincia . afirmao que nega

o que foi dito anteriormente:

A crescente cientificizao da vida social e produtiva passa

a exigir do trabalhador cada vez maior apropriao do conhecimento

cientfico, tecnolgico, poltico e cultural, uma vez que a simplificao do trabalho contemporneo a express o concreta da complexificao da tecnologa atravs da operacionalizao da cincia. Ou seja, quanto mais avana o desenvolvimento das foras produtivas, mais a cincia se simplifica, fazendo-se prtica, e criando tecnologia; ao mesmo tempo, a tecnologia se complexifica, fazendo-se cientfica; ambas fazem uma nova

cultura, criando novas formas de comportamento, ideologas e normas. (Ibidem, p. 35, gripos nossos).

Tudo isto soaria meramente estranho, um descuido da autora ao

caracterizar estes tempos da tecnocincia, no fossem as afirmaes

que se seguem neste mesmo pargrafo, que advogam uma unidade

restituda s relaes entre conhecimento, produo e relaes sociais

no mundo contemporneo.

O trabalho e a cincia, dissociados anteriormente por

efeito da forma tradicional de diviso do trabalho, voltam

a formar uma unidade (sic) por meio da mediao

da tecnologia, em consequncia do prprio desenvolvimento

do capitalismo, como forma de superao dos

entraves de seu processo de ampliao. Como resultado,

estabeleceram-se novas formas de relao entre

conhecimento, produo e relaes sociais.

(Ibidem, p. 35).

Sigamos as observaes contidas no texto e veremos que a unidade

atestada pela autora entre trabalho e cincia vem para justificar a

indispensabilidade de um novo princpio educativo, que no separe fun-

o intelectual e funo tcnica.

Cincia e trabalho, estabelecendo novas formas de relao,

passaram a exigir um intelectual de novo tipo, no mais o

homem culto, poltico, mas o dirigente, sntese entre o pol-

tico e o especialista. (Ibidem, p. 35).

Este novo princpio educativo sobre o qual est fundada a forma-

o do dirigente . um conceito caro proposta educacional de Gramsci

. visa preparar o trabalhador para desempenhar sua parte num .acordo

social imposto pelas relaes de trabalho.. Um acordo no de todo ruim

para o trabalhador, j que, surpreendentemente, ficamos sabendo de

um interesse do capital em que os trabalhadores tenham acesso cultura

sob todas as formas. Vejamos esta ideia nas palavras da autora:

O capital precisa, para se ampliar, de trabalhadores capazes

de desempenhar sua parte no acordo social imposto pelas

relaes de trabalho (sic), pelo cumprimento dos seus deveres,

e ao mesmo tempo capazes de incorporar as mudanas

tecnolgicas, sem causar estrangulamento produo. Para

tanto, a mera educao profissional j no suficiente. Por

isso, o prprio capital reconhece que os trabalhadores em

geral precisam ter acesso cultura sob todas as formas,

para o que indispensvel uma slida educao bsica.

(Ibidem, p. 37, grifo nosso).

Ao trmino desta argumentao, fica clara a inteno da proposta:

convencer-nos de que, em face de uma mudana nas relaes entre

cincia e trabalho . mudana creditada a um desenvolvimento do pr-

prio capitalismo ., chegamos hoje a uma situao inteiramente nova a

respeito de concepes educacionais emancipadoras. A contradio que

se dava no plano poltico, entre propostas educacionais em disputa, foi

resolvida . inesperadamente, diga-se . por um desenvolvimento do pr-

prio capitalismo.

Chegado a este ponto, algumas observaes se impem:

1) Em nenhum momento a autora considerou que, se a .velha

dualidade estrutural. no interessa mais nem ao capital nem ao trabalhador, nada a autoriza a concluir por uma convergncia de interesses

entre capital e trabalho no que diz respeito unitariedade escolar. O

sofisma do raciocnio claro: uma vez que as duas partes em conflito

rejeitam a mesma coisa, ento, conclui-se, elas passam a demandar a

mesma coisa. Sofisma este que se nutre numa nebulosa zona em torno

do termo trabalho como princpio educativo. Ora, quando Gramsci coloca

o trabalho como o campo fundamental em torno do qual vo ser

feitas as construes dos conceitos, ele s o faz visando trazer luz a

contradio fundamental do trabalho, isto , o fato de que quem .vive

do trabalho. no o proprietrio dos meios de produo. Em torno desta

contradio fundamental, constelam-se os conceitos na proposta

gramsciana. Kuenzer faz desaparecer a contradio fundamental por

meio de uma epistemologizao do trabalho; restando da um conceito

diludo, para no dizer pouco operativo, de trabalho.

2) Mesmo concordando, parcialmente, com a tese de um interesse

do capital no trabalhador pensante, caberia lembrar que vrios autores

tm se dedicado a investigar qual a natureza deste pensamento exigido

pelo capital. O pensamento, sabe-se, no , nunca foi, uma faculdade

unitria e homognea, a-histrica, capaz de ser definida em si mesma

. como quer dar a entender a autora. Hegel inaugura a tradio

filosfica que pensa o pensamento na histria... e neste horizonte se

move todo o pensamento marxista. Os estudos de Gramsci sobre as

condies concretas que fazem emergir um pensamento mostraram que

somente pela natureza de seu objeto, nos contextos em que ele emerge

e nas finalidades .pelas quais ele se pe., que o pensamento pode

ser apreendido e julgado. Haveria, pois, que distinguir na proposta da

professora Kuenzer a natureza do pensamento requerido pela escola

unitria gramsciana e op-la ao pensamento que hoje o capital requer

para a sua reproduo.

Para isso, ela poderia recorrer longa tradio de estudos marxistas

voltados para este tema, que mostram justamente que as novas

configuraes entre as funes pensantes e funes instrumentais na

sociedade contempornea nada mais so que novas voltas do parafuso

da expropriao. Para ficar somente em alguns: Adorno, para quem a

cincia, e toda forma de pensamento instrumental, so j formas de

dominao de classe; Richard Sennett, que vem investigando a impossibilidade de os trabalhadores construrem uma .narrativa coerente. De sua situao social neste estgio de financeirizao do capital; Frederic

Jamenson, que elege este mesmo tempo histrico para pesquisar as

condies concretas de possibilidade do pensamento . e seu diagnstico

da impossibilidade do homem contemporneo de traar um mapa

cognitivo da atual configurao do capital. Isso sem contar a persuasiva

reflexo de Iztvan Mzaros sobre as novas formas ideolgicas assumidas

nos discursos sobre a cincia que tentam obscurecer a afirmao

marxista de que a cincia uma relao social.

Todas estas investigaes, entendemos, convergem para a tese de

que o capital requer, ainda hoje, para sua reproduo, a mesma distin-

o entre pensamento e ao irrefletida que sublinhou todas as propostas

educacionais liberais, e que a ciso estruturadora da sociedade em

classes sociais dever ser procurada num nvel bem menos aparente

deste em que se acha presa a proposta da professora Kuenzer. Em

outras palavras, dever-se- abordar o nvel mais fundamental que trata

da natureza e das finalidades do pensamento, pois, salvo pela complexidade, isto , por um aspecto meramente quantitativo (que, para efeito das relaes entre a atividade pensante e atividade instrumental, no

se supera dialeticamente), no h uma diferena de fundo entre as capacidades intelectuais requeridas pelo modelo taylorista-fordista e as

capacidades intelectuais requeridas pelo modelo toyotista.

O pensamento requerido pelo capital acha-se estritamente determinado

pelos seus interesses. Que o digam aqueles que ousam pensar fora dos interesses do capital.

3) Voltemos nossa ateno para esta afirmao contida no texto:

.trabalho e cincia voltam a formar uma unidade em consequncia do

prprio desenvolvimento do capitalismo.. Afirmao esta que desbanca

toda a teoria marxista, que s admite a possibilidade de uma conciliao

entre trabalho e cincia no modo de produo comunista. Pois, justa-

mente, para Marx, a cincia, no modo de produo capitalista, um

instrumento fundamental no processo de alienar o trabalhador do produto

de seu trabalho. ela quem promove a reificao da mercadoria,

isto , ela o instrumento que faz desaparecer o trabalho inscrito na

mercadoria. E s o faz mediante o mesmo processo pela qual ela se

reifica. Segundo a lio marxista, a cincia tal qual a conhecemos a

forma de conhecimento prpria do atual modo de produo capitalista .

a superao dessa forma social de produo dever levar superao

dessa forma de estabelecer o conhecimento.

A contradio capital/trabalho que no plano do conhecimento toma

a forma de uma contradio entre cincia e trabalho constitui o princ-

pio educacional por excelncia da escola crtica marxista. Nada mais

estranho, portanto, tradio marxista que postular um acordo entre

esses dois termos na sociedade de classes.

Quando Marx e Gramsci perceberam a necessidade de uma educa

o cientfica para o trabalhador, com vistas a prov-lo de uma compreens

o dos fundamentos de seu trabalho, isto se devia compreens

o do papel estratgico que o conflito trabalho/cincia desempenhava

na conformao do modo de produo capitalista. A residiria,

dialeticamente, uma possibilidade de superao (como o estrategista

que, no campo de batalha, determina a importncia de um alvo a partir

da avaliao da importncia que este alvo tem para o inimigo).

4) Talvez o argumento da autora pudesse ser mais bem sustentado

se ela afirmasse que nesta etapa de desenvolvimento do capitalismo as

operaes ligadas ao trabalho se simplificaram . tese discutvel de

qualquer modo ., mas no o trabalho; este, pelo contrrio, complexificase

cada vez mais, ampliando e multiplicando suas mediaes com a

natureza, e esta complexidade cada vez mais se coloca fora do campo

de compreenso do trabalhador. Assim que a superao dialtica entre

trabalho e cincia no advm, para o marxismo, do mundo da produ-

o, como consequncia do prprio desenvolvimento do capitalismo .

este mundo das causalidades cegas, no dizer de Luckcs, a quem somente

nos caberia conformar ., mas do mundo da prxis poltica . este

mundo da liberdade, dos valores, .das finalidades postas a partir da

cadeia de causalidades., tomando de emprstimo, novamente, um termo

do marxista hngaro.

5) Caberia perguntar qual o papel que restaria poltica neste

estgio de desenvolvimento do capital se as relaes entre cincia e

trabalho se unificaram/harmonizaram. Parece-nos que a resposta da

autora, ao localizar uma mudana nas relaes entre cincia e trabalho

na base tcnica da produo, ou seja, fora do domnio poltico, o faz,

justamente, para esvaziar a poltica, atenuar a contradio de interesses

e esvaziar a luta pela hegemonia socialista.

A tentativa do documento de prover um fundamento histrico-materialista

ao novo princpio educativo, fundando-o numa nova relao

entre trabalho, cincia e conhecimento, no faz, a nosso ver, justia ao

princpio educativo gramsciano . conforme dissemos . e isto porque,

para o dirigente italiano, se o princpio educativo da escola unitria est

fundado numa relao objetiva derivada do mundo da produo, sua

realizao se d sob a gide da poltica. Explicamos: para Gramsci, a

no segmentao da sociedade entre os que vo desempenhar fun-

es pensantes e os que vo desempenhar funes instrumentais no

algo que adviria .deterministicamente. do mundo da produo . este

substrato de causalidades mecnicas ., mas , sobretudo, um imperativo

tico a ser atingido pela prxis poltica, a partir de condies concretas

dadas. Lembramos aqui a lio de Laclau:

Para Gramsci, a hegemonia poltica um momento de

prevalncia da superestrutura sobre a estrutura, somente o

aspecto de deciso que no predeterminado por um padr

o normativo existente propriamente tico. (BUTLER;

LACLAU; ZIZEK, 2000, p. 45-87).

Se assim no fosse, como deveramos entender a afirmao do

dirigente italiano de que a Escola Unitria faz parte da estratgia de

disputa de hegemonia do trabalho com vistas a efetuar a passagem

da mentalidade econmico-corporativista para a mentalidade ticopol

tica? E onde situar-se-ia a prxis poltica se a poltica educacional

consistisse somente em conformar (adequar) a instituio esco-

lar quilo que dado fora dela, isto , ao mundo da produo? No

ser isso uma reverberao do velho mecanicismo que Gramsci combateu

to duramente?

6) O argumento de que a unitariedade escolar interessaria indistintamente

tanto ao capital quanto ao trabalho no se conflitua, parecenos,

somente com a teoria marxista, mas se ope prpria afirmao

da autora que, alguns pargrafos antes, percebera que, quanto mais se

avana o desenvolvimento cientfico e tecnolgico, .mais o trabalhador

se distancia da compreenso e do domnio das tarefas que executa..

Como explicar contradio to gritante? Vamos arriscar uma hiptese:

a poltica de alianas inaugurada no neoliberalismo, qual capitularam

vrios intelectuais, vem acostumando os atores polticos de diversas

extraes polticas, seja de direita ou de esquerda, a elaborar documentos

pretensamente consensuados sobre tpicos de interesse pblico,

cujos resultados dependem de um embate terico-poltico no interior de

grupos de trabalho, nos quais cada segmento tenta impor sua viso de

mundo. Assim, os documentos elaborados nestas ocasies padecem

de qualquer unidade terica/metodolgica/poltica, tendo pouca utilidade

na funo social de estabelecer parmetros claros de orientao

poltica. O exemplo mais bem acabado desta geleia conceitual geral so

os Parmetros Curriculares Nacionais, para os quais a proposta aqui

analisada nada fica a dever.

Os autores de tais propostas quase sempre se isentam de qualquer

responsabilidade sobre a coerncia terica, respondendo, quando

questionados, que aquilo que est escrito foi o possvel para aquele

momento histrico.

Caberia perguntar quem que ganha com esta confuso. Arriscamos

dizer que no so os trabalhadores, que muito mais teriam a ganhar

com o processo gramsciano de .construo de uma viso

consensuada., calcado na ideia de que uma certa viso limitada de mundo

s pode ser superada no confronto lcido das diferenas.

7) Os Parmetros Curriculares Nacionais (PCNs) fizeram escola

quando desviaram a ateno do conflito fundamental do capitalismo

para um conflito entre modos de organizao do trabalho. atravs

deles que ficamos sabendo que o taylorismo-fordismo, com seu trabalho

cinza e seriado, o grande responsvel pelo sofrimento do trabalhador

. situao passvel de ser revertida, conforme o documento, no

modelo de produo toyotista. Essa tese, revestida de termos

gramscianos, a mesma que sustenta as propostas analisadas aqui.

A nosso ver, este deslocamento dos PCNs no seno uma atualiza

o daquilo que Gramsci designou como uma substituio da .grande

poltica. pela .pequena poltica., isto , a poltica meramente

conjuntural que no se d com vistas a uma mudana do modo de produ

o, mas se atm a endossar e reproduzir o modo de produo dado.

No documento de Kuenzer, esta estratgia de deslocamento bem

utilizada quando, apropriando-se indistintamente tanto dos termos da

educao liberal quanto dos termos da educao marxista, manchando

os contornos que definem uma e outra, a autora credita a um problema

na base tcnica de produo o problema da perversidade social.

Ouamo-la mais uma vez:

preciso um novo projeto poltico-pedaggico que prepare

os jovens para ao mesmo tempo atender e superar as revolu

es na base tcnica de produo com seus perversos

impactos sobre a vida individual e coletiva. (KUENZER,

2001b, p. 58).

Ora, para Marx, a revoluo se d pela apropriao dos trabalhadores

dos meios de produo, jamais por uma mudana na base tcnica

da produo. Esta uma tese bsica do marxismo e a escola

gramsciana jamais a renegou.

Ser a revoluo, na proposta da Secretaria Estadual de Educa-

o de Mato Grosso, um problema a ser empreendido por tcnicos?

Nada no texto de Kuenzer deixa entrever que no o seja. Impresso

confirmada logo depois, quando a autora, bem no esprito dos PCNs,

apregoa o uso de conhecimentos cientficos para .resolver problemas

da prtica social e produtiva.. Apropriar-se do conhecimento cientfico

para .resolver problemas. do cotidiano: no ouvimos ressoar aqui o velho

revisionismo, com sua estratgia de reduzir a luta poltica a uma agenda

progressiva de problemas sociais particulares?

8) A estratgia discursiva da autora assemelha-se muito queles

quadros que na Idade Mdia representavam os cus e a Terra como

mundos inteiramente separados, dicotmicos, sem que nada fizesse uma

passagem entre eles. Por conta de uma concepo de mundo que muito

se devia ainda s esferas concntricas aristotlicas e ausncia do

mtodo perspectivo que permite representar o espao de modo unificado,

nada nestas representaes faria supor um relacionamento entre

estes mundos no fosse o fato de seus habitantes olharem uns para os

outros nostlgicos de uma conciliao impossvel.

A estratgia discursiva da autora segue o mesmo padro: discorre

com desenvoltura sobre os conceitos educacionais de Gramsci, aplica-

os com pertinncia histria da educao brasileira . elucidando-a

., mas tudo isto desaparece naqueles momentos cruciais e concretos

de defesa de proposies polticas. Nestes momentos, excludo de

cena o conflito essencial entre capital e trabalho, abrindo lugar para a

tese de uma suposta convergncia de interesses entre eles. Desnecess

rio dizer que na proposta gramsciana tal convergncia de interesses

jamais se daria, pois, para Gramsci, seria impensvel a exist

ncia de um conflito na relao de produo e uma conciliao no

nvel educacional/ideolgico.

9) Em vrios momentos, a autora insiste em reduzir o problema

educacional ao problema de sua universalizao. assim que ouvimos

a autora, depois de elogiar os pressupostos da nova pedagogia do capital,

afirmar: .o problema que no para todos.. Ou afirmar que a

unitariedade expressa o compromisso com a igualdade de direitos.

O discurso pautado no trinmio cidadania/direito/incluso, de que

a autora faz largo uso, a expresso moderna da .pequena poltica.

gramsciana. A nosso ver, anlise muito mais fina sobre as polticas de

incluso tem a pedagoga Roseli Caldart, para quem o trabalhador no

deve ter como projeto o desejo de ser includo, mas sim o de incluir: no

esqueamos que quem detm a proposta universal de educao a

classe trabalhadora. S sua proposta pode ser inclusiva.

Muitos outros exemplos de distoro dos conceitos gramscianos

so visveis nos documentos analisados. Sobre um deles, o termo dirigente,

limitamo-nos a transcrever um texto do prprio Gramsci: .Na

formao de dirigentes fundamental a premissa: pretende-se que sempre

existam governantes e governados ou pretende-se criar as condi-

es nas quais a necessidade desta diviso desaparea?. (GRAMSCI,

Q. 15 & 4, p. 1752).

Para finalizar, gostaramos de citar uma observao de Slavoj Zizek

sobre o hbito recorrente de justificar as limitaes de nossas proposi-

es polticas com o argumento de uma limitao do horizonte histrico.

Segundo ele, .um ato no ocorre simplesmente dentro de um horizonte

dado no qual ele aparece como possvel . mais que isso, sua ocorrncia

redefine os contornos do que possvel. (BUTLER; LACLAU; ZIZEK,

2000, p. 126).

REFERNCIAS

BUTLER, J.; LACLAU, E.; ZIZEK, S. Contingency, hegemony, universality:

contemporary dialogues on the left. London: Verso, 2000.

GRAMSCI, A. Quaderni del Carcere. Torino: Einaudi, 1977.

KUENZER, A. Z. (Org.). Ensino mdio: construindo uma proposta para os que

vivem do trabalho. So Paulo: Cortez, 2001b.

________. Ensino mdio e profissional: as polticas do Estado Neoliberal. So

Paulo: Cortez, 2001a.

SHIROMA E. O. et al. Poltica educacional: o que voc precisa saber sobre... Rio

de Janeiro: DP&A, 2000.