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Outubro de 2012 Marco Aurélio Gonçalves Martins Responsabilidade Civil por Atos e Omissões Médicas em Vida Pré-Natal Universidade do Minho Escola de Direito Marco Aurélio Gonçalves Martins Responsabilidade Civil por Atos e Omissões Médicas em Vida Pré-Natal UMinho|2012

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Outubro de 2012

Marco Aurélio Gonçalves Martins

Responsabilidade Civil por Atos e OmissõesMédicas em Vida Pré-Natal

Universidade do Minho

Escola de Direito

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Trabalho realizado sob a orientação da

Prof.ª Doutora Eva Sónia Moreira da Silva

Outubro de 2012

Marco Aurélio Gonçalves Martins

Universidade do Minho

Escola de Direito

Dissertação de Mestrado Mestrado em Direito dos Contratos e da Empresa

Responsabilidade Civil por Atos e OmissõesMédicas em Vida Pré-Natal

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É AUTORIZADA A REPRODUÇÃO PARCIAL DESTA DISSERTAÇÃO APENAS PARA EFEITOS DE INVESTIGAÇÃO, MEDIANTE DECLARAÇÃO ESCRITA DO INTERESSADO, QUE A TAL SECOMPROMETE;

Universidade do Minho, ___/___/______

Assinatura: ________________________________________________

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À Exma. Prof.ª Doutora Eva Sónia Moreira da Silva, aos meus pais, à

minha família, aos meus amigos e à minha namorada, pelo constante e

incondicional apoio.

iii

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RESPONSABILIDADE CIVIL POR ATOS E OMISSÕES MÉDICAS

EM VIDA PRÉ-NATAL

Os fins e propósitos visados nesta dissertação consistem na apreciação, análise e problematização,

no âmbito do ordenamento português e de um ponto de vista jurídico, da interseção da temática da

responsabilidade civil médica com a temática da vida humana pré-natal.

Procuramos, consequentemente, ao longo da elaboração da mesma, realçar, analisar e oferecer

possíveis soluções e posições quanto às diversas questões elevadas por esta interseção, assim como referir e

contextualizar os diversos temas e questões direta ou indiretamente envolvidos com ela.

Assim sendo, ao longo da dissertação refletiremos sobre a responsabilidade civil, a responsabilidade

civil médica, a própria vida pré-natal e a sua tutela, e os casos e problemas mais comuns que surgem da

interseção das duas temáticas mencionadas, assim como alguns menos comuns, como a questão da

responsabilidade civil médica na conceção humana e no próprio nascimento.

O aspeto mais problemático, e que de mais considerações cremos necessitar, trata-se da

responsabilidade civil médica pelo nascimento (em si) de uma criança com deficiência, razão pela qual

dedicaremos mais tempo à análise deste aspeto. Iremos dedicarmos-nos a ele mais profundamente,

sugerindo soluções para estas situações e afirmando o nosso entendimento quanto a elas (sem, contudo,

descurar todos os outros aspetos que surgem da interseção das duas temáticas mencionadas).

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CIVIL LIABILITY FOR MEDICAL ACTS AND OMISSIONS

ON PRE-NATAL LIFE

The aims and objectives pursuded in this thesis consist on the appreciation, analysis and

problematization, within the portuguese system and from a legal point of view, of the intersection of the issue

of medical civil liability with the issue of human pre-natal life.

We sought, consequently, during it's preparation, to highlight, analyze and offer possible solutions and

positions regarding the various questions raised by this intersection, as well as mention and contextualize the

various topics and questions directly or indirectly involved with it.

Therefore, during this thesis we will reflect upon civil liability, medical civil liability, pre-natal life itself

and its protection, and the cases and most common problems that emerge out of the intersection of the two

mentioned issues, as well as some less common, like the issue of medical civil liability in human conception

and birth itself.

The most problematic aspect, which we believe needs the highest amount of considerations, is

medical civil liability for the birth (itself) of a handicapped child, which is why we'll devote more time to the

analysis of this aspect. We'll devote ourselves more heavily to it, suggesting solutions for these situations and

stating our understanding regarding them (without overlooking, however, all the other relevant aspects that

arise from the intersection between the two mentioned issues).

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ÍNDICE

1. Introdução 9

2. Direito e Medicina – Importância e Relação 10

3. Responsabilidade Civil Médica 12

3.1. Perspetiva Histórica 12

3.2. Espécies de Responsabilidade 15

3.3. Natureza da Responsabilidade Civil Médica 16

3.4. Especificidades e Pressupostos da Responsabilidade Civil Médica 18

3.4.1. Ilicitude 19

3.4.2. Culpa 22

3.4.3. Dano 24

3.4.4. Nexo de causalidade 25

4. Vida Humana Pré-Natal 28

4.1. Perspetiva Histórica 28

4.2. Em Portugal 29

4.2.1. Tutela Penal 30

4.2.2. Tutela Civil 34

4.3. A Relação entre a Responsabilidade Civil e a Vida Pré-Natal 39

5. Responsabilidade Civil por Atos e Omissões Médicas em Vida Pré-Natal 42

5.1. A Generalidade dos Casos 43

5.1.1. Contrato com Eficácia de Proteção de Terceiros 43

5.1.2. A Posição Assumida pelo Médico no Procedimento de

Interrupção da Gravidez 44

5.2. Responsabilidade Civil Médica na Conceção Humana 47

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5.2.1. Procriação Medicamente Assistida 47

5.2.2. Casos de "Wrongful Pregnancy" 52

5.3. Responsabilidade civil médica pelo nascimento de criança

com deficiência: ações “Wrongful Life” e “Wrongful Birth” 58

5.3.1. Génese e Direito Comparado 62

a) Ordenamento Norte-Americano 62

b) Ordenamento Germânico 67

c) Ordenamento Austríaco 69

d) Ordenamento Inglês 70

e) Ordenamento Polaco 71

f) Ordenamento Italiano 73

g) Ordenamento Holandês 73

h) Ordenamento Francês 75

5.3.2. Caso Português 80

a) Sede Jurisprudencial 80

b) Sede Doutrinal 82

ba) António Pinto Monteiro 83

bb) Paulo Mota Pinto 84

bc) Manuel A. Carneiro da Frada 87

bd) António Menezes Cordeiro 89

be) Marta de Sousa Nunes Vicente 90

5.3.3. Posição Adotada 96

a) Em Relação às Pretensões de "Wrongful Birth" 96

b) Em Relação às Pretensões de "Wrongful Life" 104

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6. Conclusões 117

7. Bibliografia Consultada 126

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1. Introdução

O trabalho aqui realizado pressupõe a apreciação jurídica dos pontos de interseção entre a

responsabilidade civil médica e a vida humana pré-natal. Questões como a procriação medicamente assistida,

o aborto, a responsabilidade do médico pelo diagnóstico pré-natal, a posição do nascituro e a sua proteção, e

ainda as hipóteses de responsabilidade civil médica pela conceção e nascimento de uma criança (com

deficiência ou saudável), serão, em consequência, questões importantes que carecerão de análise e

tratamento sob o ponto de vista dos objetivos deste trabalho, tendo sido efetivamente abordadas ao longo

deste trabalho.

Contudo, tal abordagem não pode ser precipitada ou cega, devendo ser satisfatoriamente enquadrada

e atribuindo-se a necessária relevância ao contexto em que surge essa interseção. Como tal, uma reflexão

(breve) sobre a própria relação entre o Direito e a Medicina, sobre a responsabilidade civil e sobre a

responsabilidade civil aplicada à medicina, e ainda sobre a própria vida pré-natal, afigura-se necessária e

primordial para a sua correta abordagem e tratamento dos objetivos deste trabalho e o seu aprofundamento.

Começaremos, então, o nosso trabalho, com uma breve perspetiva sobre a relação entre a Medicina

e o Direito e a importância dessa relação.

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2. Direito e Medicina – Importância e Relação

Ao longo da história o papel da Medicina e do médico tem sido primordial para o desenvolvimento

humano no que diz respeito à sociedade, saúde, relações e interesses. Podemos verificar a sua influência e

presença em todos os aspetos da experiência humana. Por outro lado, também o ramo do Direito partilha

uma influência similar na experiência humana. De facto, retirar a influência destes ramos da sociedade

moderna atual poder-se-ia afirmar ser o equivalente a projetá-la para uma existência semelhante à dos tempos

primitivos, de tão difícil que seria perspetivar uma sociedade moderna atual sem as influências de ambos

estes ramos do saber.

Os objetivos de ambos os ramos projetam-se em sentidos diferentes e comuns ao mesmo tempo.

Ambos procuram, a fim, “melhorar” a experiência humana, as nossas vidas, embora partindo de

pressupostos diferentes. A medicina procura a verdade das coisas naturais e do funcionamento do nosso

corpo através da aplicação do método científico de teoria e experimentação, com o propósito de usar as suas

descobertas com o fim de “melhorar” e preservar a nossa saúde, o nosso corpo, curando ou tratando os

malefícios que o afetam. O Direito, todavia, procura pautar as relações humanas, regulá-las, com o propósito

de atingir uma maior justiça, de garantir o funcionamento da sociedade e da realização do homem na

sociedade, protegendo aquilo que se considera ter de ser protegido, enaltecendo os valores que se considera

terem de ser enaltecidos e dando uma voz ao indivíduo perante a sociedade.

Claro, tão grande é a sua presença na sociedade humana que também a sua influência e alcance

chegam inevitavelmente ao domínio de saber um do outro, possibilitando invariavelmente também a sua

mútua influência. Assim sendo, é seguro dizer-se que a relação da Medicina com o Direito tem sido uma de

mútua influência e desenvolvimento, moldando-se ambos os ramos um ao outro.

Como nos refere Rute Teixeira Pedro1, a ciência médica, com os seus cada vez mais frequentes

avanços, tem contribuído de inúmeras maneiras para o Direito, como por exemplo, no âmbito do direito penal,

nos seus contributos para a deteção de crimes, no Direito da Família para a aferição da paternidade (artigo

1796.º do Código Civil), para a dissolução do matrimónio (artigo 1781.º, alínea d) do Código Civil), para a

aferição da capacidade do indivíduo para manifestar a sua vontade (artigo 2199.º do Código Civil) e atestar

eventuais limitações dos indivíduos (artigos 138.º e 152.º do Código Civil), entre muitos outros.

No sentido inverso, também o Direito tem contribuído para a Medicina de inúmeras formas, regulando

as relações dos médicos com o indivíduo comum na sociedade no âmbito da sua profissão (e não só), as

1 Rute Teixeira Pedro, «A Responsabilidade Civil do Médico - Reflexões Sobre a Noção de Perda de Chance e a Tutela do Doente Lesado», in Guilherme de Oliveira,

Centro de Direito Biomédico 15 - A Responsabilidade Civil do Médico - Reflexões Sobre a Noção de Perda de Chance e a Tutela do Doente Lesado , Coimbra,

Coimbra Editora, 2008, pp. 24 a 26.

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relações dos médicos com outros médicos, as relações dos médicos com o Estado e demais entes públicos e

empregadores, e ainda de outras formas.

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3. Responsabilidade Civil Médica

É no âmbito das relações da Medicina com o indivíduo comum, através da figura do médico no

âmbito da sua profissão, que surge a aplicação do instituto da responsabilidade civil médica (em suma, a

responsabilidade civil aplicada ao médico), campo no qual se insere o objetivo deste trabalho2.

A aplicação da responsabilidade civil ao médico, o surgimento da responsabilidade civil médica,

advém da noção da responsabilização dos médicos pelos seus erros e falhas no cumprimento da sua

profissão, dos seus deveres enquanto profissionais, enquanto mestres e senhores de uma arte, de um saber

necessário para o indivíduo e para o qual o individuo recorre quando necessita, depositando a sua confiança

nesse saber e nesse cumprimento de deveres, admitindo-se a obrigação do médico de reparar o dano

causado3 4 5.

Mas em que aspetos é esta responsabilidade civil diferente da responsabilidade civil comum, aplicada

à mais normal das relações humanas? Quais são as especialidades que refletem esta distinção? Que

considerações merecem os pressupostos e requisitos da responsabilidade civil quando aplicados à prática

médica?

3.1. Perspetiva Histórica

Historicamente pode referir-se que, em vários momentos, não existiu esta noção de responsabilização

médica, civil ou não, ou pelo menos esta não existiu realizada sob qualquer forma. A figura do médico era

vista como algo, em rigor, “superior” a isso, e até “superior” aos outros indivíduos. O saber médico gozava de

2 No nosso ordenamento jurídico, podemos referir que, nas considerações doutrinárias, quanto à responsabilidade do médico em geral, segue-se a tendência

geral europeia. Cfr. André Dias Pereira, «La responsabilità medica in Portogallo», Responsabilità Civile e Previdenza - Rivista mensile di dottrina, giurisprudenza e

legislazione , n.º 11 (2007), p. 2469.

3 Existem um quase sem número de formas através da qual o médico se relaciona com o indivíduo comum na sociedade moderna no âmbito da sua profissão,

antevendo-se a possibilidade da sua responsabilização nessas situações.

4 Uma das formas através da qual o médico se relaciona no âmbito da sua profissão com o indivíduo comum, consubstancia-se na prescrição de medicamentos a

esse indivíduo. É possível a existência de responsabilização médica por esta prescrição, incluindo no âmbito civil, mas estamos aqui perante uma situação

ainda mais especial que a atuação médica geralmente considerada devido a todos os fatores que intervêm nesta situação. O aprofundamento da questão

extravasaria o objetivo deste trabalho, pelo que bastará esta breve referência à questão assim como a referência a um trabalho de Diana Montenegro da Silveira

que a desenvolve. Cfr. Diana Montenegro da Silveira, «Responsabilidade Civil por Danos Causados por Medicamentos Defeituosos», in Guilherme de Oliveira,

Centro de Direito Biomédico 18 - Responsabilidade Civil por Danos Causados por Medicamentos Defeituosos, Coimbra, Coimbra Editora, 2010.

5 Outra forma menos comum pela qual o médico se relaciona com o indivíduo é através da realização de ensaios clínicos. Estes alicerçam-se maioritariamente

numa perspetiva de investigação experimental, onde os resultados ainda serão bastante mais imprevisíveis mas existe a hipótese de responsabilização dos

médicos em virtude destes, incluindo responsabilidade civil. Cfr. Jeovanna Viana Alves, «Ensaios Clínicos», in Guilherme de Oliveira, Centro de Direito

Biomédico 8 – Ensaios Clínicos, Coimbra, Coimbra Editora, 2003, pp. 78 a 83.

Também o aprofundamento desta temática extravasaria os propósitos deste trabalho.

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um estatuto quase sagrado e era controlado por uma classe imensamente restrita e diminuta que controlava

o monopólio da ciência médica, o que tornava o surgimento desta responsabilização algo muito difícil de se

manifestar.

Contudo, mesmo em tempos antigos, podemos ver manifestações destas noções (e efetivações das

mesmas), tal como no Código de Hamurábi (século XVIII A.C.), onde se estabeleciam sanções para a

negligência médica, ou na civilização Egípcia antiga, onde se previa a possibilidade de perda da vida do

médico no caso de morte do doente quando houvesse incumprimento dos seus deveres por afastamento e

desrespeito das regras e métodos da ciência médica existentes na altura, e ainda na Roma antiga, onde

existia a possibilidade de responsabilização do médico por morte do doente devido à falta de habilidade e/ou

conhecimentos do médico6.

Mas, tal como se afirmou, em vários momentos tal responsabilização não se encontrou realizada, até

mesmo em momentos bastante mais recentes que os anteriormente mencionados, como, por exemplo, em

certa altura do século XIX, onde encontramos uma certa inversão da lógica da responsabilização da atividade

médica que existiu nos momentos antes mencionados (que, contudo, a fim, veio contribuir para a evolução do

entendimento da ciência médica quanto às suas especialidades e, consequentemente, contribuiu para um

entendimento mais especializado quanto à responsabilização aplicável a ela).

Concretamente, este momento manifestou-se em 1829, em Paris, onde a Academia de Medicina de

Paris afirmou e declarou não existir nada mais que uma mera responsabilização moral dos médicos,

argumentando tal ser até para benefício da própria população, dos próprios indivíduos, já que tal permitiria

mais liberdade para os médicos agirem e testarem novos métodos. Esta ideia de não responsabilização não

prevaleceu, mas, no entanto, como se referiu, contribuiu para uma outra perspetiva da ciência médica e para

o conceito de culpa que se considera ser adequada ao ramo, diminuindo, assim, em certa medida, o grau de

exigência que se impôs aos médicos em certos momentos até então7. De facto, evidenciando como essa

lógica não prevaleceu, em anos mais recentes, a começar no século XX, verificamos um verdadeiro excedente

de ações judiciais por responsabilidade médica nos mais variados ordenamentos, onde talvez o mais

significativo se verifique nos Estados Unidos da América. Também em Portugal tal excedente teve

manifestação8 9 mas não em tão grande número ou com tão grande eficácia na procedência das respetivas

ações, muito graças às dificuldades de prova que assistem a tais ações.

Tal mudança do paradigma deve-se em parte aos progressos da própria Medicina, da evolução incrível

6 Rute Teixeira Pedro, «A Responsabilidade Civil do Médico - Reflexões Sobre a Noção de Perda de Chance e a Tutela do Doente Lesado», cit., pp. 27 e 28.

7 Rute Teixeira Pedro, «A Responsabilidade Civil do Médico - Reflexões Sobre a Noção de Perda de Chance e a Tutela do Doente Lesado», cit., pp. 29 e 30.

8 Como se verifica, desde logo, nas décadas de setenta e oitenta do século vinte em Portugal. Cfr. Jorge de Figueiredo Dias, «Responsabilidade Médica em

Portugal», Boletim do Ministério da Justiça, n.º 332 (1984), pp. 21 e 22.

9 Rute Teixeira Pedro, «A Responsabilidade Civil do Médico - Reflexões Sobre a Noção de Perda de Chance e a Tutela do Doente Lesado», cit., pp. 30 a 33.

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do seu saber, que contribuiu para um aprimoramento dos próprios métodos usados pela Medicina e que

tornou os riscos dos mais variados procedimentos médicos bastante diminutos quando corretamente

realizados. E, conjuntamente com essa evolução, crescem as expectativas e as exigências da própria

sociedade e dos indivíduos em relação à Medicina e de quem a pratica, assim como crescem as regras e

deveres dos praticantes de Medicina (incluindo a codificação dessas regras e deveres). A Medicina, ou mais

propriamente, os praticantes da Medicina, tornam-se assim, num certo sentido, “vítimas” da sua própria

eficácia à medida que os seus fracassos se tornam cada vez mais raros10.

Por outro lado, a relação menos pessoal entre o médico e o doente dos tempos mais modernos,

resultante da especialização dos médicos (derivada do crescimento exponencial do saber médico) e da

massificação da Medicina, é um fator importante no crescimento do número destas ações. A relação de

proximidade que existia outrora é, agora, muito diluída, quase assemelhando-se a uma transação económica.

Tal facto facilita a instauração de ações por parte dos doentes que se sintam de alguma forma lesados, já que

a relação de proximidade funcionaria como um fator dissuasor dessa instauração.

Por último, verifica-se, no mundo de hoje, a existência de um indivíduo, de um cidadão, bastante bem

mais consciente de todos os seus direitos, da sua posição na sociedade, mais participativo e ativo, mais culto,

com um maior grau de educação, e pode-se dizer até mais democrático, graças ao progressos da sociedade

democrática e da educação. Em conjunto com perda do caráter “superior” ou “intocável” da Medicina e dos

médicos que antes lhes assistia e a não aceitação da existência de apenas uma auto-regulação ou auto-

responsabilização da classe médica, este também é um fator importante para a subida e evolução do

número de instauração de ações que visam a responsabilização dos médicos11.

Feita esta breve análise histórica da responsabilização médica e sua evolução, devemos voltar às

perguntas feitas previamente e referir-nos às especificidades da responsabilidade civil médica. Mas, como se

verifica pela breve análise histórica a que procedemos, responsabilidade civil médica não será o mesmo que a

responsabilização em geral da prática médica, entendida como responsabilização dos médicos em todas as

vertentes possíveis (onde se incluem vários tipos de responsabilidade como, por exemplo, responsabilidade

disciplinar, criminal e civil). Responsabilidade civil médica será apenas um dos componentes da

responsabilização dos médicos. Como tal, devemos situar corretamente este componente, distinguindo-o dos

demais.

10 “Já ninguém aceitará facilmente que o médico apenas fez o melhor que soube, pôde ou conseguiu...” . Cfr. Rui Afonso Cernadas, «A Propósito da

Responsabilidade Civil Médica», Jornal do Médico, Vol. 131, n.º 2425 (1991), pp. 358.

11 Rute Teixeira Pedro, «A Responsabilidade Civil do Médico - Reflexões Sobre a Noção de Perda de Chance e a Tutela do Doente Lesado», cit., pp. 35 a 41.

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3.2 Espécies de Responsabilidade

Assim sendo, devemos, antes de mais, referir-nos e distinguir as diferentes espécies de

responsabilidade aplicáveis aos médicos, de um ponto de vista atual, já fora de um contexto histórico, para

melhor abordarmos as especificidades da responsabilidade civil médica.

Como nos refere Rute Teixeira Pedro12, pode dizer-se que a responsabilização do médico é efetuada

por várias vertentes, nomeadamente quatro. São elas a responsabilidade disciplinar, a responsabilidade

disciplinar administrativa, a responsabilidade penal ou criminal e, por fim, a responsabilidade civil13.

Embora a partir de um único facto possam concorrer vários tipos de responsabilidade, o nosso foco

recairá sobre a responsabilidade civil, como referido. Por outras palavras, não nos interessará muito a análise

da responsabilidade disciplinar do médico, onde os únicos deveres em causa serão os próprios deveres

deontológicos da profissão, cuja exclusiva regulação e sanções de carácter meramente disciplinar caberão

apenas aos próprios médicos, representados pela sua Ordem e garantidos pelos órgãos da sua Ordem. Da

mesma forma, também a responsabilidade disciplinar administrativa médica, reguladora da relação entre o

médico e o Serviço Público de Saúde e demais entes públicos e empregadores, pouco interesse terá para os

propósitos deste trabalho, assim como a responsabilidade criminal, proveniente da violação de um ou vários

tipos legais de crime, plasmados e previstos em correspondente lei penal.

Interessará antes, pelo contrário, o foco na responsabilidade civil médica, reguladora da relação entre

o médico e o indivíduo comum, com o objetivo da reparação do dano sofrido pelo lesado.

Como bem se percebe, não se tratará aqui de uma qualquer relação entre estas duas partes, mas

antes uma relação que se realiza do ponto de vista profissional do médico, em que o médico atua como tal e

em função da sua profissão, desenvolvendo-se a relação entre ambas as partes nesses termos. A

responsabilidade civil médica propõe regular esta relação quando exista, por parte do médico, uma conduta

dolosa ou uma negligência, omissão ou erro que cause danos ao indivíduo comum, pressupondo a obrigação

da reparação desse dano por parte do médico quando a responsabilidade civil médica se verifique através do

preenchimento dos seus pressupostos e condições. Esta é, desde logo uma das condições essenciais para

que estejamos perante um caso de existência de responsabilidade civil médica.

Todavia, como se poderá verificar da sua análise, a prática médica é única, distinguindo-se das

demais profissões, e a correta identificação dos casos a que se refere a responsabilidade civil aqui em causa,

não justifica, por si só, a existências de concretas especificidades face à responsabilidade civil comum.

12 Rute Teixeira Pedro, «A Responsabilidade Civil do Médico - Reflexões Sobre a Noção de Perda de Chance e a Tutela do Doente Lesado», cit., pp. 44 a 47.

13 J. A. Esperança Pina também distingue e analisa as diferentes espécies de responsabilidade médica. Cfr. J. A. Esperança Pina, A Responsabilidade dos

Médicos, 3ª edição - revista, actualizada e ampliada, Lisboa, Lidel, 2003, pp. 91 a 186.

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Como tal, é esse carácter excecional da prática médica que requer e justifica uma hábil aproximação

do instituto de responsabilidade civil e dos seus pressupostos à sua atividade, para que a sua aplicação seja a

mais adequada possível e corresponda às necessidades que a própria sociedade tem interesse em ver

supridas com a responsabilização civil do médico. Será nessa adequação que se fundamentará a distinção da

responsabilidade civil médica.

Para aprofundarmos a questão, teremos de começar por nos referir à natureza da responsabilidade

civil aplicável já que tal questão terá relevância para a determinação das especificidades que rodeiam o tema.

3.3. Natureza da Responsabilidade Civil Médica

Tradicionalmente, a responsabilidade civil é perspetivada sob duas óticas: responsabilidade civil

contratual e extra-contratual. Durante bastante tempo foi alvo de discussão no seio do Direito, nomeadamente

na doutrina, sobre qual seria a natureza da responsabilidade civil médica e se esta corresponderia a uma

responsabilidade civil contratual ou extra-contratual. A distinção ganha relevância pois, a aplicação de uma ou

outra das modalidades da responsabilidade civil traria, seguindo-se a lógica de funcionamento de cada uma

das modalidades, consequências a nível dos pressupostos e presunção de culpa da própria responsabilidade,

assim como para o ónus de prova ao caso aplicado.

Ora, a conceção inicial sobre a responsabilidade civil dos médicos era a de que seria fundada na

responsabilidade civil extra-contratual ou delitual. Como nos refere Rute Teixeira Pedro14, a eventual natureza

contratual da responsabilidade era rejeitada com base em vários argumentos, um deles baseado, por

exemplo, no conceito de gratuitidade da remuneração do praticante de medicina, proveniente do Direito

Romano. Outros argumentos negavam esta natureza contratual simplesmente por considerarem ser

demasiado difícil a qualificação do acordo, do contrato que se consideraria estar em causa, ou então

consideravam ser necessária a remoção do âmbito convencional, eliminando-se, de certo modo, a autonomia

privada das partes, uma vez que a regulação da profissão teria que partir de normas legais e não de

convenção, tendo em conta os interesses em causa.

Mas, a questão mais polémica, e um dos maiores obstáculos da aceitação da natureza contratual da

responsabilidade civil médica verificou-se numa das necessárias consequências da sua eventual aceitação e

aplicação, nomeadamente, na aplicação da presunção de culpa sobre o devedor constante da modalidade

contratual de responsabilidade civil (verificada no artigo 799.º, n.º 1 do Código Civil no ordenamento

português).

14 Rute Teixeira Pedro, «A Responsabilidade Civil do Médico - Reflexões Sobre a Noção de Perda de Chance e a Tutela do Doente Lesado», cit., pp. 56 a 61.

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É precisamente deste aspeto que se retira uma das especialidades mais importantes da

responsabilidade civil médica, senão mesmo a mais importante, a qual adiantamos desde já. Eventualmente,

com o avançar dos anos, a aceitação da natureza contratual da responsabilidade civil médica tornou-se cada

vez mais dominante mas, com este advento de aceitação desta natureza contratual da responsabilidade civil

médica, e de modo a poder responder-se às dificuldades causadas por este obstáculo, esta consequência,

esta presunção de culpa, foi acautelada, estabelecendo-se aqui meramente uma obrigação de diligência (ou

de meios) para a prática médica e não uma obrigação de resultado, tal como foi afirmado em 1936 no Arrêt

Mercier da Cour de Cassation.

Daqui se conclui que, mesmo com a eventual aceitação da natureza contratual da responsabilidade

civil médica, não há uma aplicação da modalidade contratual de responsabilidade civil à prática médica que

ignore as suas próprias especialidades. Antes, há uma certa adequação para que possa corresponder

corretamente às necessidades impostas pelas especialidades da prática, começando desde logo a surgir aqui

um esboço das especificidades e da distinção de que a responsabilidade civil médica carece.

Voltaremos a referir-nos a esta especificidade mais adiante, e não já aqui pois, no âmbito da natureza

da responsabilidade aqui em causa, é necessário proceder ainda a mais algumas considerações antes de

partir para essa e outras especificidades.

Como mencionado, com o passar dos anos, aceitou-se a natureza contratual da responsabilidade civil

médica, com a especialidade mencionada de obrigação de diligência ou meios como forma de ultrapassar as

dificuldades impostas pela presunção de culpa. Assim, atualmente, é doutrina dominante o entendimento de

que, na maioria dos casos da prática médica tradicional, estamos perante uma responsabilidade contratual,

existindo um negócio jurídico bilateral de prestação de serviços médicos mediante retribuição, estando essa

doutrina também presente no nosso ordenamento jurídico português15 16.

Excecionam-se aqui alguns casos, visto que nem em todas as situações será defensável a natureza

contratual da responsabilidade civil médica. A questão adensa-se deste modo, entendendo-se estarmos

perante, em regra, uma natureza contratual, mas, em casos específicos, estarmos perante uma natureza

extra-contratual, ao invés, por não ser admissível a consideração de uma natureza contratual nesses casos.

Sendo assim, segundo Rute Teixeira Pedro17, os casos em que poderemos estar perante uma natureza

extra-contratual consistirão nas situações onde haverá uma qualquer nulidade no contrato em causa, ferindo-o

15 João Álvaro Dias, «Breves Considerações em Torno da Natureza da Responsabilidade Civil Médica», Revista Portuguesa do Dano Corporal, Ano II, n.º 3,

(Novembro 1993), p. 27.

16 A natureza contratual desta responsabilidade foi pela primeira vez admitida em Portugal por Moutinho de Almeida em 1972, como nos refere Rute Teixeira

Pedro. Cfr. Rute Teixeira Pedro, «A Responsabilidade Civil do Médico - Reflexões Sobre a Noção de Perda de Chance e a Tutela do Doente Lesado», cit., pp. 60 e

61.

17 Rute Teixeira Pedro, «A Responsabilidade Civil do Médico - Reflexões Sobre a Noção de Perda de Chance e a Tutela do Doente Lesado», cit., pp. 62 a 69.

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de invalidade como, por exemplo, quando existe ilicitude do objeto do contrato ou quando o contrato não é

celebrado em tempo útil, não podendo dizer-se que foi de facto realizado, assim como nos casos onde,

existindo contrato válido, os danos resultantes no caso concreto inserem-se fora do âmbito do contrato

celebrado, como serão os casos em que terceiros são prejudicados (como, por exemplo, na emissão de

certificados falsos por parte do profissional médico).

Os casos mais comuns de responsabilidade extra-contratual serão, no entanto:

– Os casos onde o médico apenas trabalha para uma clínica, existindo o contrato entre o paciente

e a clínica, não o médico em si individualmente considerado, estando o médico apenas numa

posição de “auxiliar do devedor”, assumindo a clínica a posição de devedor;

– Os casos em que o médico atue no conjunto de uma equipa médica, sendo o contrato

estabelecido não com ele mas com o chefe da equipa; e

– Os casos em que a atividade do médico insere-se no âmbito da prestação de saúde pública,

estando portanto inserido numa entidade pública18.

Estes são os casos onde estaremos ainda perante uma responsabilidade delitual, com todas as suas

consequências19.

3.4. Especificidades e Pressupostos da Responsabilidade Civil Médica

Findas as considerações sobre a natureza da responsabilidade civil médica, devemos prosseguir com

o estudo das suas especialidades, aferindo, agora, de que modo os pressupostos da responsabilidade civil 20,

requisitos essenciais para a verificação e efetivação da responsabilidade civil, são moldados pelas

especificidades aqui em causa, e que considerações merecerem ser tecidas acerca destes no contexto da

responsabilidade civil médica no âmbito do nosso ordenamento jurídico.

18 Podemos considerar estar aqui perante uma relação especial de Direito Administrativo como nos refere Ana Raquel Gonçalves Moniz. Cfr. Ana Raquel Gonçalves

Moniz, «Responsabilidade Civil Extracontratual por Danos Resultantes da Prestação de Cuidados de Saúde em Estabelecimentos Públicos: O Acesso à Justiça

Administrativa», in Guilherme de Oliveira, Centro de Direito Biomédico 7 - Responsabilidade Civil Extracontratual por Danos Resultantes da Prestação de

Cuidados de Saúde em Estabelecimentos Públicos: O Acesso à Justiça Administrativa, Coimbra, Coimbra Editora, 2003, pp. 16 a 18.

19 Como nos refere Miguel Teixeira de Sousa, podem, todavia, co-existir responsabilidade contratual e extra-contratual, existindo concurso das responsabilidades.

Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, «Sobre o Ónus de Prova nas Acções de Responsabilidade Civil Médica», Direito da Saúde e da Bioética, Lisboa, AAFDL, 1996, pp.

127 e 128.

20 Tratando dos pressupostos da responsabilidade civil (por factos ilícitos), Mário Almeida Costa e Luís Menezes Leitão. Cfr. Mário Almeida Costa, Direito das

Obrigações, 12ª edição, Coimbra, Almedina, 2009, pp. 557 a 610 e Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações, 9ª edição, Vol. 1, Coimbra, Almedina, 2010,

pp. 295 a 364.

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3.4.1. Ilicitude

É no âmbito da ilicitude que podemos situar a especificidade previamente considerada de obrigação

de meios ao invés de obrigação de resultado, podendo neste momento retomar as considerações acerca de

tal especificidade.

Existirá sempre um ilícito relevante para a modalidade de responsabilidade civil extra-contratual

sempre que exista a violação de normas jurídicas cujo objetivo é o de proteger os interesses do paciente, a

violação de algum direito absoluto ou, ainda, casos de abuso de direito (artigo 483.º, n.º 1 do Código Civil).

Pelo contrário, existirá um ilícito relevante para a modalidade de responsabilidade contratual sempre que se

verifique a violação, o incumprimento dos deveres21 a que o médico está adstrito em virtude do contrato

(artigo 798.º do Código Civil). Ambos os tipos de ilícito pressupõem a reparação do dano através de uma

compensação indemnizatória.

Contudo, no âmbito contratual, a obrigação assumida pelo médico assume um carácter específico

devido às especificidades do ramo médico, entendendo-se aqui que o médico, em princípio, não assumirá o

resultado, não se garantindo o objetivo. Na verdade, o médico apenas se compromete a utilizar o seu saber,

tempo e esforços, respeitando todos os deveres a que está adstrito, e a própria “legis artis” da sua profissão.

Ou seja, o médico compromete-se em enveredar nos meios próprios e corretos para atingir o resultado

pretendido, e não o próprio resultado. É assim que se define a obrigação que recai sobre o médico e se

justifica a sua denominação como uma obrigação de diligência e de meios e não de resultados, como

resultaria de uma aplicação cega do instituto da responsabilidade civil na sua modalidade contratual à prática

médica.

Daqui resulta que o mero facto de não obtenção do resultado pretendido não se traduzirá

automaticamente num incumprimento do contrato, numa violação da obrigação e dos deveres que recaem

sobre o médico. Ao invés, teremos de verificar o porquê de o resultado pretendido não ter sido atingido. A

obrigação do médico, como se disse, resume-se ao compromisso de utilizar o seu saber, tempo e esforços,

respeitando todos os deveres a que está adstrito, e a própria “legis artis” da sua profissão para atingir o

resultado pretendido, pelo que só se verificará a sua ilicitude, a violação da sua obrigação, quando a razão da

não obtenção do resultado foi atribuída ao não cumprimento da sua obrigação, quando se considere existir

dolo ou negligência, erro ou omissão na sua atuação que viole o seu compromisso de diligência e meios e

possa atribuir-se tal factualidade à não obtenção do resultado22.

21 Quanto ao aprofundamento da temática dos deveres constantes do contrato que se estabelece entre médico e paciente, refira-se Rute Teixeira Pedro. Cfr. Rute

Teixeira Pedro, «A Responsabilidade Civil do Médico - Reflexões Sobre a Noção de Perda de Chance e a Tutela do Doente Lesado», cit., pp. 73 a 82.

22 Rute Teixeira Pedro, «A Responsabilidade Civil do Médico - Reflexões Sobre a Noção de Perda de Chance e a Tutela do Doente Lesado», cit., pp. 88 a 92.

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Não se pode, todavia, dizer que estamos sempre perante uma obrigação de meios quando se trata da

prática médica. Em casos específicos e pontuais, deve considerar-se estarmos perante uma verdadeira

obrigação de resultado, comprometendo-se o médico a este. O maior critério de diferenciação entre as duas

circunstâncias deverá ser o carácter incerto, aleatório do próprio resultado, devido aos riscos em jogo, ou seja,

a álea23. Assim, a título de exemplo, podemos referir os casos de um transplante cardíaco e de um

procedimento de cirurgia estética para melhor percebermos este critério de distinção.

No primeiro exemplo, obviamente estaremos perante uma obrigação de diligência, de meios. Trata-se

de um procedimento arriscado, incerto, onde a maior prudência, maior empenho e o maior saber por parte

do médico não reduzirão os riscos de tal procedimento ou operação ao ponto de poderem ser considerados

insignificantes. Tal constatação trata-se meramente do reconhecimento de um facto, decorrente do ser das

próprias coisas. E é disso que a Medicina “vive” na sua generalidade. Existem quase sempre riscos

assinaláveis e por melhor que seja a atuação do médico, haverá sempre um caráter aleatório, de sorte, que

influencia o resultado final. É esta especificidade do ramo de Medicina que fundamenta e legitima a

caracterização da sua obrigação como uma obrigação de diligência ou de meios na generalidade dos casos.

Mas casos haverá onde, mesmo apesar de poderem existirem alguns riscos, é de se considerar

estarmos perante uma obrigação de resultado, tal como no nosso segundo exemplo, a cirurgia estética.

Apesar de ser um exemplo que causará algumas dificuldades e as opiniões acerca do mesmo variarem,

poderá entender-se estarmos nestas circunstâncias perante uma obrigação de resultado, e não de meios,

devido à diminuição do risco e do carácter aleatório existente (apesar de não estar completamente ausente) e

também devido à especialidade dos propósitos da cirurgia estética que se ligam, de forma ainda mais intensa

e estreita, ao resultado pretendido24. De qualquer modo, este não é o único exemplo que podemos referir

perante o qual o médico assumirá uma obrigação de resultados. Podemos ainda verificar este tipo de

obrigação, a título de exemplo, na realização de exames físicos ou biológicos, na elaboração de próteses, no

bom funcionamento dos aparelhos médicos, entre outros25.

Resta referir as consequências derivadas desta assunção de tipo de obrigação na prova ou, melhor

dizendo, no ónus da prova da culpa. Tais considerações serão fundamentais para o regime de

responsabilidade civil médica pois será graças a elas que se poderá determinar a quem incumbirá a prova ou

sobre quem incumbirá o afastamento da presunção.

Neste aspeto, somos elucidados por Carina Susana Vieira Simão26, que abordou a problemática.

23 Rute Teixeira Pedro, «A Responsabilidade Civil do Médico - Reflexões Sobre a Noção de Perda de Chance e a Tutela do Doente Lesado», cit., pp. 93 a 97.

24 Em sentido contrário, argumentando uma obrigação de meios na cirurgia estética, Eduardo Dantas. Cfr. Eduardo Dantas, «A Responsabilidade Civil do Cirurgião

Plástico. A Cirurgia Plástica como Obrigação de Meio», Lex Medicinae - Revista Portuguesa de Direito da Saúde, Ano 4, n.º 7 (2007), pp. 69 a 79.

25 Rute Teixeira Pedro, «A Responsabilidade Civil do Médico - Reflexões Sobre a Noção de Perda de Chance e a Tutela do Doente Lesado», cit., pp. 98 a 102.

26 Carina Susana Vieira Simão, O Ónus da Prova na Responsabilidade Civil Médica, Dissertação do 2.º ciclo em Ciências Jurídico-Civilísticas, Direito Civil

20

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Segundo a autora, devemos concluir pela presunção da culpa do médico (devedor) quando

estivermos perante uma obrigação de resultado, incumbindo ao médico o afastamento desta presunção. Pelo

contrário, nas circunstâncias onde estamos perante uma obrigação de meios, a prova de culpa caberá ao

credor (paciente).

A opinião de Carina Susana Vieira Simão alicerça-se no entendimento de que fará todo o sentido a

existência da presunção de culpa do médico quando se verifique uma obrigação de resultado já que,

fundando-se essencialmente a distinção entre obrigação de resultado e obrigação de meios no critério da álea,

no carácter aleatório, então fará sentido e será razoável presumir que, numa obrigação de resultado, esse

resultado será com quase toda a certeza atingido mediante uma atuação correta e conforme ao exigível por

parte do médico, presumindo-se, portanto, uma atuação desconforme ao exigível quando o resultado

pretendido não é atingido. Já nas obrigações de meios, graças à distinção providenciada pelo carácter

aleatório, tal presunção não fará sentido nem será razoável, devendo ser o credor (paciente) a provar que a

obrigação, ou deveres exigidos ao médico na obrigação de meios, foram violados.

A autora refere ainda que o confronto entre a teoria clássica de divisão entre modalidade contratual e

extra-contratual da responsabilidade civil (com as correspondentes consequências para a prova da culpa) e o

exposto quanto às obrigações de resultado e de meios “... nos leva a considerar obsoleta a teoria clássica.

Assim, as regras de repartição do ónus da prova devem partir da distinção entre obrigações de meios e

obrigações de resultado, não sendo necessário trazer à liça a distinção entre responsabilidade contratual e

aquiliana”27.

É um entendimento que consideramos correto e ao qual aderimos.

Compreende-se então que a nível da presunção de culpa e do ónus de prova da responsabilidade civil

médica será mais importante a distinção entre obrigação de meios e obrigação de resultado do que

propriamente a distinção de modalidade de responsabilidade civil aplicável (extra-contratual e contratual). Na

verdade, por tudo o que já foi referido, podemos até afirmar a existência de uma aproximação destes dois

regimes (e do ilícito contratual e extra-contratual) quando consideramos a responsabilidade civil médica28 29.

apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2010.

27 Carina Susana Vieira Simão, O Ónus da Prova na Responsabilidade Civil Médica, cit., pp. 62 e 63.

28 Rute Teixeira Pedro, «A Responsabilidade Civil do Médico - Reflexões Sobre a Noção de Perda de Chance e a Tutela do Doente Lesado», cit., pp. 109 a 114.

29 No entanto, não podemos deixar aqui de referir o entendimento de André Gonçalo Dias Pereira (cfr. André Gonçalo Dias Pereira, «Responsabilidade Civil dos

Médicos, Danos Hospitalares, Alguns Casos de Jurisprudência», Lex Medicinae - Revista Portuguesa de Direito da Saúde, Ano 4, n.º 7 (2007), pp. 54 e 55), que

nos diz que, quando estamos perante uma responsabilidade civil extra-contratual, o médico possuirá uma melhor proteção já que será o ente público a

responder em primeira linha pelo dano e só depois poderá o médico responder por via de direito de regresso desse mesmo ente público, por força das

disposições do então vigente artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 48051. O mencionado Decreto-Lei foi entretanto revogado pela Lei 67/2007, de 31 de Dezembro,

alterada pela Lei n.º 31/2008, de 17 de Julho, que impõe o regime de responsabilidade civil extra-contratual do Estado atual, impondo-se agora,

aparentemente, uma responsabilidade solidária entre o ente público e o agente médico, mas continuando a existir direito de regresso quando o ente público

responda em primeira linha (artigo 8.º da Lei Lei 67/2007, de 31 de Dezembro, alterada pela Lei n.º 31/2008, de 17 de Julho).

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3.4.2. Culpa

Terminadas as considerações acerca do pressuposto da ilicitude, devemos agora atentar no

pressuposto da culpa na responsabilidade civil médica.

Este pressuposto encontra-se mais intimamente ligado ao pressuposto de ilicitude do que uma

análise desatenta poderia talvez encontrar. De facto, a própria existência e aplicação da obrigação de meios (e

a importância dessa aplicação) resultam num vínculo mais estreito entre os dois pressupostos, pois, para se

aferir a ilicitude, para se aferir se, perante uma obrigação de meios, a atuação do médico terá sido

desconforme ao exigível, violando a sua obrigação, também terá de se considerar a sua culpa, ou, por outras

palavras, terá de se aferir se o seu comportamento pode ser considerado como doloso ou negligente e

violador da sua obrigação como resultado.

Sendo assim, os dois pressupostos devem ser considerados e aferidos em conjunto, numa verdadeira

demonstração do seu vínculo mais estreito (e menos “independente”).

Atentando especificamente no pressuposto da culpa individualmente considerado e partindo para as

considerações pertinentes que lhe poderemos tecer no âmbito da responsabilidade civil médica, teremos de

começar por referir o regime de responsabilidade civil comum onde a culpa é perspetivada sob um modelo

bipartido, de mera culpa (ou negligência) e dolo. Na responsabilidade civil que visa a prática médica e o seu

âmbito profissional, contudo, a culpa e a sua aferição não estarão, em princípio, frequentemente relacionadas

com as hipóteses de dolo. Pelo contrário, considera-se, como já foi aflorado, que a culpa do profissional

médico realiza-se com a omissão das diligências e competências exigíveis do mesmo, com o desvio da

atuação do médico ao que seria exigível. Identifica-se ou aproxima-se sempre mais, dessa forma, o

pressuposto da culpa na responsabilidade civil médica, da mera culpa ou negligência e bastará isto para a

verificação deste pressuposto.

Concretamente, segundo Rute Teixeira Pedro30, a culpa da responsabilidade civil médica poderá

verificar-se num modelo tripartido:

– Negligência: quando existe uma omissão nos cuidados exigidos;

– Imprudência: quando existem condutas inadequadas ou perigosas; e

– Imperícia: quando existe uma falta de competência do médico em causa, seja no âmbito teórico

Por sua vez, Pedro Romano Martinez afirma que, na sua opinião, estando perante o caso mais comum (celebração de um contrato de prestação de serviços

entre o paciente e o médico ou o hospital, ou seja, perante responsabilidade contratual), o hospital responderá nos termos do artigo 800.º, n.º 1 do Código Civil.

Cfr. Pedro Romano Martinez, «Responsabilidade Civil por Acto ou Omissão do Médico – Responsabilidade Civil Médica e Seguro de Responsabilidade Civil

Profissional», in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Carlos Ferreira de Almeida, Coimbra, Almedina, 2011, p. 485.

30 Rute Teixeira Pedro, «A Responsabilidade Civil do Médico - Reflexões Sobre a Noção de Perda de Chance e a Tutela do Doente Lesado», cit., pp. 125 a 127.

22

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ou prático do exercício da Medicina.

O pressuposto carece, todavia, de um critério de comparação para a apreciação da conduta do

médico e a determinação da sua culpa. Não existe, quanto a isto, a estipulação de nenhum critério específico

para esta determinação no nosso ordenamento jurídico, pelo que a necessidade de tal critério terá de ser

suprida pelo critério geral do “bom pai de família” plasmado no artigo 487.º, n.º 2 do Código Civil, aplicável

tanto à responsabilidade contratual como à extra-contratual31.

Aplicado tal critério à responsabilidade civil médica, terá de se fazer um esforço interpretativo no

sentido de podermos entender a que se poderá referir no contexto da responsabilidade civil médica. Ora,

seguindo a lógica do critério, este poderá significar e referir-se a um bom profissional médico dentro da

profissão e da categoria médica considerada32, inserido no mesmo contexto factual considerado para o caso

concreto. Será importante a consideração das circunstâncias que condicionam o médico, como por exemplo,

a sua especialidade e a sua experiência, assim como o contexto em que ele se insere e as condições onde

atua, incluindo os meios à sua disposição, urgência do procedimento médico, perigosidade do mesmo, e tudo

o demais, pois só assim pode ser corretamente comparado com a abstração pensada do bom profissional

médico inserido nas mesmas circunstâncias. Ou seja, por outras palavras, o conceito abstrato do bom

profissional médico terá de ter em conta todas as circunstâncias em que o médico concreto atua e que o

condicionam.

Da comparação da atuação do médico considerado no caso concreto e a atuação do bom profissional

médico inserido nas mesmas circunstâncias, aferir-se-á a culpa do referido médico. Conclui-se desta

comparação que nem todos os erros ou omissões por parte do médico serão automaticamente causadores do

preenchimento do pressuposto da culpa com as visadas consequências. Só serão aqueles erros e omissões

cuja não verificação seria exigível à figura abstrata do bom profissional médico, como referido. Também da

comparação se poderá concluir que alguns erros e omissões terão bastante mais relevância que outros, sendo

bastante mais importantes para o preenchimento do pressuposto da culpa, pela sua gravidade em relação ao

que se espera e se considera ser exigível de um bom profissional de saúde.

31 Rute Teixeira Pedro, «A Responsabilidade Civil do Médico - Reflexões Sobre a Noção de Perda de Chance e a Tutela do Doente Lesado», cit., pp. 127 a 132.

32 Seguimos aqui a terminologia usada por Rute Teixeira Pedro de “bom profissional médico” (na sua obra citada), embora a terminologia mais correta talvez fosse

a de um “profissional médico mediano”. De facto, o termo “bom profissional médico” pode ser enganador ao fazer-nos pensar que se refere a um profissional

médico superior à média e que cumpre as exigências da sua profissão para além dos mínimos exigidos. Não é esse o sentido que a autora pretende dar à

terminologia. Ela pretende, ao invés, referir-se a um profissional médico que cumpre o que lhe é exigido, que não atua de modo desconforme ao que lhe é

exigível, segundo o padrão abstrato de comportamento e exigibilidade pensado para o profissional médico baseado no critério de “bom pai de família”. É esse o

sentido que também nós damos ao termo.

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3.4.3. Dano

Findas as considerações acerca do pressuposto da culpa na responsabilidade civil médica devemos

agora analisar o pressuposto do dano no seu âmbito.

A especificidade do pressuposto do dano na responsabilidade civil médica reporta-se à multiplicidade

e carácter multifacetado do dano e do próprio ser humano e da sua saúde, mas também quanto à aferição do

seu valor para efeitos de atribuição de indemnização.

De facto, atualmente, o dano é entendido como que verificado numa imensa multiplicidade de

situações, e não só quando se verifique uma perda patrimonial mas também quando se verifique perda não

patrimonial, podendo, em muitos casos, concorrer em conjunto as duas perdas. Como refere Ribeiro de

Faria33, podemos definir o dano como “toda a perda causada em bens jurídicos, legalmente tutelados, de

carácter patrimonial ou não”. Acontece que, à medida que o Direito evolui, cada vez mais bens jurídicos são

considerados e tutelados, cada vez mais a tutela legal dos bens jurídicos se torna mais abrangente, considera

mais situações e protege contra mais fatores, considerando o ser humano como o ser complexo que ele é e a

multiplicidade dos seus interesses relevantes.

Assim sendo, a preocupação do Direito no âmbito do dano na responsabilidade civil médica traduzir-

se-á na preocupação com a saúde do indivíduo, entendida como a unidade física, psicológica, social e cultural

do seu bem-estar34.

Da consideração desta unidade, da complexidade do próprio ser humano e da complexidade que o

próprio dano pode revestir nesta matéria em consequência disso, verificamos que os danos poderão referir-se

a danos patrimoniais, assim como a não patrimoniais. Os patrimoniais incluirão, não só os danos

patrimoniais imediatamente conexos, entendidos como danos emergentes, mas também os lucros cessantes

daí derivados.

Entender-se-á melhor, possivelmente, a distinção entre danos emergentes e lucros cessantes, neste

âmbito, através de exemplos. Portanto, podemos incluir nos danos patrimoniais emergentes, por exemplo, os

custos que o paciente tenha de suportar com os próprios tratamentos ou procedimentos médicos e, nos

lucros cessantes, por exemplo, as sequelas que se verifiquem na capacidade de trabalho do paciente derivado

da intervenção médica em causa35.

Já quanto aos danos não patrimoniais, é aqui que se constata a verdadeira multiplicidade do dano, do

33 Citado por Rute Teixeira Pedro. Cfr. Rute Teixeira Pedro, «A Responsabilidade Civil do Médico - Reflexões Sobre a Noção de Perda de Chance e a Tutela do

Doente Lesado», cit., p. 142.

34 Rute Teixeira Pedro, «A Responsabilidade Civil do Médico - Reflexões Sobre a Noção de Perda de Chance e a Tutela do Doente Lesado», cit., pp. 142 a 144.

35 Rute Teixeira Pedro, «A Responsabilidade Civil do Médico - Reflexões Sobre a Noção de Perda de Chance e a Tutela do Doente Lesado», cit., pp. 144 a 146.

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caráter multifacetado do ser humano e da sua saúde. Estamos aqui perante danos morais ou psicológicos

“puros”, entendidos como as mazelas psicológicas que se manifestem e que sejam consideradas relevantes,

mas também perante todos os danos que se reflitam sobre os interesses sociais, culturais, afetivos e

quaisquer outros interesses relevantes do paciente, já que o ser humano realiza e prossegue todos estes

interesses na sua relação com o Mundo, merecendo e sendo estes, de facto, tutelados pelo Direito e podendo

eles ser postos em causa com a intervenção médica36.

Uma dificuldade acrescida surge ainda com a consideração dos danos não patrimoniais,

nomeadamente quanto ao cálculo da sua ressarcibilidade, dificuldade não muito sentida quanto aos danos

patrimoniais devido a estes surgirem já, essencialmente determinados, mas somos, neste aspeto, já

remetidos para o último pressuposto de responsabilidade civil que cumpre agora analisar sob o ponto de vista

da prática médica, o nexo de causalidade.

3.4.4. Nexo de causalidade

O nexo de causalidade surge como o instrumento pelo qual é possível relacionar o dano verificado no

caso concreto à conduta do agente levado em conta (o médico, nestas circunstâncias), não se efetivando a

responsabilidade civil quando tal correspondência não se verificar.

Contudo, é também através do nexo de causalidade, em estreita relação com o pressuposto do dano,

que podemos verificar a extensão dos danos considerados relevantes e quantificar o seu valor para efeitos da

atribuição de uma indemnização, permitindo ultrapassar as dificuldades provenientes da consideração dos

danos não patrimoniais no campo da responsabilidade civil médica. Apenas na consideração dos

pressupostos do nexo de causalidade e do dano em conjunto é permitido ultrapassar esta dificuldade.

Ora, as especificidades do pressuposto do nexo de causalidade advêm das próprias circunstâncias

especiais que rodeiam a prática da Medicina, sendo aqui a mais relevante, o carácter aleatório, de sorte, da

álea que rodeia sempre o resultado da prática médica, ou, por outras palavras, das próprias limitações da

Medicina em remover essa “chance” e em prever corretamente o resultado de determinado procedimento ou

conduta médica.

Na responsabilidade civil comum, o pressuposto do nexo de causalidade guia-se pelo critério da

causalidade adequada37, onde não bastará o estabelecimento de uma mera conexão factual entre o dano e a

conduta do médico considerado, mas também será necessário uma operação de análise que determine se a

conduta considerada é a causa adequada do dano, ou seja, se o dano se verifica em consequência de tal

36 Rute Teixeira Pedro, «A Responsabilidade Civil do Médico - Reflexões Sobre a Noção de Perda de Chance e a Tutela do Doente Lesado», cit., p. 146.

37 Segundo a doutrina maioritária dominante.

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conduta, sendo essa conduta, em circunstâncias normais, condição adequada a produzir aquele dano38. A

álea, o carácter aleatório que rodeia, em princípio, o resultado da prática médica, imiscui-se neste operação,

dificultando-a e tornando o estabelecimento do nexo de causalidade quase impossível para alguém que não

seja hábil no saber próprio da Medicina, que não esteja a par das circunstâncias que rodeiam a atividade e

que não consiga analisar a conduta do médico através desses circunstancialismos de modo a poder

aproximar-nos do estabelecimento do nexo da causalidade, do alcance dos danos em causa e do

correspondente montante indemnizatório (e alcançá-los).

Assim, condição fulcral para o estabelecimento do nexo de causalidade será o emprego de peritos

médicos que “emprestem” o seu saber ao Direito (e ao Tribunal que julgue uma ação de responsabilidade

civil médica) de modo a ultrapassar as dificuldades geradas, não só ao nível do nexo de causalidade mas

também ao nível dos outros pressupostos, e em qualquer dificuldade que surja em algum momento de um

determinado processo (gerada pela simples incapacidade por parte do Tribunal e dos demais indivíduos em

furar as “cortinas” da Medicina e do conhecimento e fatores daquele ramo do saber)39 40.

Este uso não é empregue sem dificuldade, contudo.

Como nos refere Rute Teixeira Pedro41, até os próprios conceitos de causalidade empregues nos

campos do Direito e da Medicina, causarão dificuldades por não corresponderem totalmente (e mutuamente)

na sua perspetiva e definição. Para além disso, o próprio “sentimento” de classe dos praticantes de medicina

poderá influenciar este uso, podendo existir uma tendência de proteção mútua dos praticantes de medicina.

Na verdade, a própria dificuldade em penetrar no saber médico e nos seus parâmetros, estando

sempre dependente dos próprios médicos para contextualizar as condutas e poder aferir da responsabilidade

civil dos mesmos, traduz-se numa posição ingrata para o eventual paciente lesado, que se pode considerar

verdadeiramente desvantajosa ou inferior, pondo em causa a proteção dos seus direitos e interesses.

Estas dificuldades da responsabilidade civil médica, entre outras, fundamentam as críticas ao regime

atual de responsabilidade civil da prática médica, tendo já surgido várias vozes sugerindo outras opções para a

resolução dos problemas aqui verificados, tal como a promoção dos tribunais arbitrais para a resolução dos

conflitos em causa42 43, a promoção da emergência da responsabilidade objetiva dos médicos em certas

38 Rute Teixeira Pedro, «A Responsabilidade Civil do Médico - Reflexões Sobre a Noção de Perda de Chance e a Tutela do Doente Lesado», cit., pp. 148 a 151.

39 “A execução da perícia é o momento de maior importância para a obtenção do resultado – a valorização médico-legal do dano -, consubstanciando o relatório o

elemento de maior importância para a apreciação desse mesmo resultado”. Cfr. J. Coelho dos Santos, «A Reparação Civil do Dano Corporal: Reflexão Jurídica

sobre a Perícia Médico-legal e o Dano Dor», Revista Portuguesa do Dano Corporal, Ano II, n.º 4 (Maio 1994), p. 86.

40 Rute Teixeira Pedro, «A Responsabilidade Civil do Médico - Reflexões Sobre a Noção de Perda de Chance e a Tutela do Doente Lesado», cit., pp. 154 a 160.

41 Rute Teixeira Pedro, «A Responsabilidade Civil do Médico - Reflexões Sobre a Noção de Perda de Chance e a Tutela do Doente Lesado», cit., pp. 152 e ss.

42 João Álvaro Dias, «Responsabilidade Civil Médica - Brevíssimas Considerações», Boletim da Ordem dos Advogados, n.º 23 (2002), pp 22 e 23.

43 Ana Raquel Gonçalves Moniz, «Responsabilidade Civil Extracontratual por Danos Resultantes da Prestação de Cuidados de Saúde em Estabelecimentos

Públicos: O Acesso à Justiça Administrativa», cit., pp. 82 a 95.

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situações44 e a promoção do emprego das noções de chance e das teorias que se alicerçam nessas noções

na responsabilização civil dos médicos45 46 47.

A análise destas hipóteses ultrapassa, todavia, o objetivo deste trabalho, que se limita à análise e

ponderação da relação da responsabilidade civil médica com a vida pré-natal e dos casos relevantes onde se

intersetam, pelo que só faremos esta breve referência a elas.

44 Carla Gonçalves, «Responsabilidade Civil Médica: Um Problema para Além da Culpa», in Guilherme de Oliveira, Centro de Direito Biomédico 14 -

Responsabilidade Civil Médica: Um Problema para Além da Culpa, Coimbra, Coimbra Editora, 2008.

45 Rute Teixeira Pedro, «A Responsabilidade Civil do Médico - Reflexões Sobre a Noção de Perda de Chance e a Tutela do Doente Lesado», cit., pp. 176 e 177.

46 Jorge Ribeiro de Faria, «Da Prova na Responsabilidade Civil Médica - Reflexões em Torno do Direito Alemão», Revista da Faculdade de Direito da Universidade

do Porto, Ano I (2004), pp. 188 e ss.

47 Também a perspetiva económica poderá ser uma fator bastante importante na apreciação da responsabilidade civil médica e possíveis novos modelos. Quanto a

esta análise discursa Rui Cascão. Cfr. Rui Cascão, «Análise Económica da Responsabilidade Civil Médica», Lex Medicinae - Revista Portuguesa de Direito da

Saúde, Ano 2, n.º 3 (2005), pp. 133 a 137.

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4. Vida Humana Pré-Natal

A problemática da vida humana pré-natal, entendida, na maioria dos casos, como o ser humano já

concebido mas ainda não nascido, ou nascituro, remete-nos para considerações sobre a própria definição da

vida humana, sobre o seu início, sobre a proteção legal a ela conferida e o seu valor à luz do sistema jurídico

e dos seus princípios estruturantes, mas também do próprio evento que distingue a vida humana pré-natal da

demais, o nascimento.

Mas, fundamentalmente, a reflexão sobre a problemática levar-nos-á a perguntar que efeitos serão

produzidos pelo nascimento na esfera de um nascituro, o que distingue essencialmente a tutela da vida pré-

natal da demais e quais as diferenças na proteção legal concedida aos dois momentos da vida humana, com

ênfase na questão dos direitos que assistem ao nascituro e da própria natureza jurídica da sua condição como

nascituro.

Analisaremos estas questões de modo a podermos integrar o nascituro no campo da

responsabilidade civil em geral e, finalmente, no campo da responsabilidade civil médica.

4.1 Perspetiva Histórica

Historicamente, a posição social e legal relativamente à vida humana pré-natal, ou por outras

palavras, quanto ao nascituro, foi mutável e instável, tendo sido objeto de estudo e preocupações desde os

tempos antigos até aos modernos.

Já no Código do Hamurábi (em 1700 A. C.) se previa penas contra o aborto, estabelecendo-se assim

uma proteção ao nascituro. Também o mesmo acontecia no Antigo Testamento, sendo o aborto abordado de

forma negativa, com a imposição de sanções para o mesmo48.

Na Grécia Antiga podemos encontrar reflexos destas preocupações, tendo sido feitos por Hipócrates

os primeiros estudos que se conhecem sobre Embriologia, por exemplo, e tendo Aristóteles redigido o primeiro

tratado sobre esse tema que se conhece. Quanto à proteção que se considerava devida ao nascituro

verificamos, ainda na Grécia Antiga, preocupação e discussão sobre este tema, havendo várias personalidades

a defender o aborto em si ou apenas em alguns casos, e outros a condená-lo, tendo chegado a existir uma

forte proibição do aborto, com penas previstas que chegavam a configurar penas de morte nalguns casos.

Também acerca dos seus direitos, personalidade e capacidade, já se denotam afloramentos, admitindo-se até,

desde logo, até o titulo de Rei a nascituros49.

48 António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português IV - Parte Geral – Pessoas, 3ª edição, Coimbra, Almedina, 2011, p. 317.

49 Silmara Juny de Abreu Chinelato e Almeida, Tutela Civil do Nascituro, São Paulo, Saraiva, 2000, p. 17.

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Em tempos do Império Romano e no apogeu do Direito Romano, considerava-se o nascituro como um

ser já provido de uma própria autonomia, sendo regulado independentemente com uma personalidade própria

(mas entendida como limitada), embora ainda fosse considerado como uma parte da mãe, e foi no âmbito

deste Direito que se estipulou o famoso princípio pelo qual se ficcionou o nascituro como já nascido sempre

que tal lhe traga vantagens50 51, princípio este que mesmo em tempos mais modernos se lhe extraiu

relevância e ainda hoje é um princípio vigente52. Todavia, ainda falando do Direito Romano, não havia uma

repressão do aborto, carecendo o nascituro de uma proteção a este nível.

Quanto ao período correspondente à Idade Média, o cristianismo e os pensadores cristãos tiveram

também influência nas considerações do nascituro, introduzindo-se a ideia da alma e diversas discussões

sobre o momento em que a alma estaria presente no nascituro. A este nível Tertulliano de Cartago

considerava a alma presente no nascituro desde o momento da conceção mas, por outro lado, Santo

Agostinho e São Jerônimo relevavam este momento para momentos posteriores, nomeadamente, quando o

nascituro assumisse forma humana (pensamentos estes que até se vieram a refletir no antigo direito

germânico, sendo o direito canónico um portante influenciador dos sistemas de direito que lhe seguiram)53.

Mais concretamente, a Lei canónica admitia uma personalidade pré-natal ao mesmo tempo que proibia o

aborto, conferindo proteção ao nascituro, chegando até a admitir-se, em certo momento, no Codex Iuris

Canonici, a possibilidade de se batizar o nascituro ainda antes do nascimento54.

As codificações subsequentes beberam do Direito Romano e consagraram uma personalidade

limitada do nascituro e também uma capacidade jurídica limitada do mesmo, existindo, a este nível, alguma

ambiguidade nas suas considerações. Aplicaram-se os conceitos canónicos relativamente às suas proibições,

deixando-se a tutela protetora do nascituro para o Direito Penal onde, tendencialmente, se tem vindo a

sancionar e a proibir o aborto, embora se tenha ressalvado, em anos mais recentes, a possibilidade do aborto

em caso de malformações/deficiências do nascituro55.

4.2. Em Portugal

Entre nós, também a tutela do nascituro e a sua proteção tem sido garantida essencialmente pela

50 “Infans conceptus pro nato habetur, quoties e commodis ejus agitur”.

51 Sempre que tal seja do seu proveito (“siempre qui se trate de su provecho”). Cfr. Carmen Callejo Rodríguez, Aspectos civiles de la protección al concebido no

nacido, Madrid, Monografia - Ciencias Juridicas, 1997, p.1.

52 António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português IV - Parte Geral – Pessoas, 3ª edição, Coimbra, Almedina, 2011, p. 318.

53 Silmara Juny de Abreu Chinelato e Almeida, Tutela Civil do Nascituro, São Paulo, Saraiva, 2000, pp. 48 a 52.

54 António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português IV - Parte Geral – Pessoas, 3ª edição, Coimbra, Almedina, 2011, p. 319.

55 António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português IV - Parte Geral – Pessoas, 3ª edição, Coimbra, Almedina, 2011, pp. 319 a 322.

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Tutela Penal e o nosso Direito Penal, mas também desde logo a um nível constitucional pelo princípio da

inviolabilidade da vida humana (artigo 24.º, n.º 1 da Constituição da Republica Portuguesa). Contudo, a

problemática do nascituro não envolve apenas consequências e questões penais ou constitucionais, mas

também civis, exigindo-se também uma reflexão sobre a Tutela Civil do nascituro.

4.2.1. Tutela penal

Começando por tratar da Tutela Penal, apercebemos-nos que, no nosso ordenamento jurídico, o

aborto tem sido sistematicamente considerado como um ilícito penal ou um tipo legal de crime.

Primeiramente, nos Códigos Penais de 1886 e 1982, o aborto era considerado um ilícito penal sem mais,

existindo apenas uma circunstância atenuante para o ilícito (resumindo-se aos casos em que o aborto se

destinaria a esconder a desonra da mulher). O paradigma alterou-se com o Código Penal de 1984, no qual se

retirou da esfera de aplicação do tipo legal de crime os abortos considerados efetuados por razões que

envolvessem perigo para a vida da mulher, por violação da mulher ou por malformações/deficiências do

nascituro. Na alteração seguinte ao Código Penal, em 1995, a solução prevista não encontrou mudanças

substanciais56.

No entanto, surgiu, a partir de tal momento, na sociedade portuguesa, uma acesa discussão sobre a

possibilidade do alargamento da despenalização do aborto a mais circunstâncias. Até aí, o aborto encontrava-

se, como visto, já removido da Tutela Penal nas situações que envolvessem perigo para a vida da mulher,

violação da mulher ou malformações/deficiências do nascituro mas discutia-se agora a possibilidade da

despenalização do aborto apenas por pedido da mulher, desde que realizado nas primeiras semanas da

gravidez.

A discussão assumiu contornos importantes, tendo sido efetuados dois referendos nacionais acerca

da questão. O primeiro, realizado em 1998, não foi favorável à despenalização nesses termos. Contudo, o

segundo já foi favorável (embora com uma maioria de abstenções) pelo que, em consequência, procedeu-se a

uma alteração legislativa e significativa do regime de Tutela Penal do nascituro, admitindo-se a queda da

proteção normalmente conferida a ele, não só nas situações de violações, má formação/deficiência do

nascituro ou perigo de vida da mulher, mas também por mero pedido da mulher, desde que obedecendo aos

parâmetros legais previstos, sendo o mais importante o parâmetro temporal da interrupção voluntária da

56 Existem comissões técnicas de certificação da interrupção voluntária da gravidez por força da portaria n.º 189/98 de 21 de Março. Quanto ao seu papel,

estrutura e funcionamento, atente-se no referido por Margarida Cortez. Cfr. Margarida Cortez, «Comissões Técnicas de Certificação da Interrupção Voluntária da

Gravidez. Breve Apontamento sobre o Papel, Estrutura e Funcionamento», Lex Medicinae - Revista Portuguesa de Direito da Saúde, Ano 1, n.º 1 (2004), pp. 27 a

31.

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gravidez (apenas dentro das dez primeiras semanas da gravidez)57 58.

Acerca da própria constitucionalidade da questão, e do eventual conflito com o princípio da

inviolabilidade da vida, António Menezes Cordeiro59 pronuncia-se, afirmando que atesta contra o princípio

constitucional de inviolabilidade de vida humana, simplesmente por não existir em contra-ponto com o

interesse da vida aqui em causa outro interesse de valor similar que legitime a resolução do conflito de

interesses dessa forma, legitimando dessa forma também a constitucionalidade da questão.

Quanto a nós, cremos que é necessário tecer alguns comentários para melhor respondermos à

questão.

Pensamos ser um facto indiscutível que os interesses que fundamentam o aborto por mera decisão

da mulher terão um “peso inferior” quando comparados com os interesses que fundamentam o aborto por

razões de malformações/deficiências do nascituro, o aborto por razões de perigo para a vida da mulher ou o

aborto devido a uma violação (para efeitos de contra-ponto ao interesse da vida). No entanto, existem aqui,

não obstante, interesses relevantes em causa, nomeadamente interesses integrantes da esfera de

autodeterminação da própria mulher.

Para além disso, notamos na previsão penal uma distinção importante que se reflete no parâmetro

temporal. Hoje em dia são atestados pela ciência médica, com muito mais pormenor e rigor, os estágios de

desenvolvimento do nascituro ao longo do tempo e, devido a esses progressos, hoje sabe-se que, por

exemplo, dificilmente um nascituro com um dia de desenvolvimento poderá ser comparável a um nascituro

com oito meses de desenvolvimento no que concerne ao seu desenvolvimento e faculdades, apesar de

estarmos em ambas situações, do mesmo modo, perante o que se considera ser um nascituro.

De facto, mesmo na previsão legal penal anteriormente vigente do aborto, os parâmetros temporais já

tinham relevância e apenas se permitia o aborto por malformações/deficiências (ou por outra razão então

legalmente permitida) dentro de um determinado intervalo de tempo. Na previsão atual continua a relevância

destes parâmetros temporais em todos os casos previstos e admitidos. Estas considerações temporais advêm

do reconhecimento implícito por parte do sistema jurídico do desenvolvimento do feto, do nascituro, no ventre

da mulher, do reconhecimento de que, quanto mais avançada estiver a gravidez, mais o nascituro estará

desenvolvido e mais perto estará de nascer e de se tornar num ser humano fisicamente completo e

independente. E, quanto mais desenvolvido este estará, mais difícil será legitimar o término da sua gravidez

57 Para aprofundamento desta matéria e a sua ligação com o consentimento informado, consultar a doutrina de João Vaz Rodrigues. Cfr. João Vaz Rodrigues, «O

Consentimento Informado para o Acto Médico no Ordenamento Jurídico Português (Elementos para o Estudo da Manifestação da Vontade do Paciente)», in

Guilherme de Oliveira, Centro de Direito Biomédico 3 - O Consentimento Informado para o Acto Médico no Ordenamento Jurídico Português (Elementos para o

Estudo da Manifestação da Vontade do Paciente), Coimbra, Coimbra Editora, 2001, pp. 102 a 116.

58 Atualmente, o regime encontra-se regulado no artigo 142.º do Código Penal.

59 António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português IV - Parte Geral – Pessoas, 3ª edição, Coimbra, Almedina, 2011, pp. 322 a 328.

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perante todos os interesses em causa.

Como será óbvio, este mencionado reconhecimento nos casos de aborto por malformações ou nos

outros legalmente admitidos (para além do de por mera escolha da mulher), não significa que estes se

encontram feridos automaticamente de inconstitucionalidade. O princípio constitucional da inviolabilidade da

vida admite aqui um espaço de conflito entre o princípio absoluto de inviolabilidade da vida e outros interesses

em causa, relevante o suficiente, não para impor um verdadeiro direito ou dever (ao aborto), suspendendo o

referido princípio constitucional, mas para admitir a não penalização, o “levantamento” da absoluta proteção

garantida pelo sistema jurídico ao nascituro, numa lógica de política criminal.

Ou seja, por outras palavras, apesar da Tutela Penal do nascituro e da sua consequente proteção, que

colhem o seu fundamento no princípio constitucional de inviolabilidade da vida (extensível também, em

princípio, à vida intra-uterina), o estado do desenvolvimento do nascituro (determinado pela duração da

gravidez) e os demais interesses em causa conflituantes com o interesse da vida do nascituro, poderão, em

conjunto, ser argumentos ponderosos o suficiente para admitir uma não penalização da situação. Tal não se

reputa, em princípio, como inconstitucional pois trata-se somente do reconhecimento de uma situação-limite

onde o prosseguimento da penalização não visará vantagens relevantes (e que devam ser atendidas, tendo em

conta todos os interesses em causa). Não há sequer uma tomada de posição por parte do Estado e do

sistema jurídico quanto à valorização ou preferência de uma das posições existentes neste conflito, apenas

uma não penalização da opção da mulher60.

Esta lógica também impera quanto à despenalização do aborto por mera escolha da mulher nas

primeiras dez semanas, não o admitindo num estado de desenvolvimento mais avançado do nascituro.

Logo, seguir-se-ão as mesmas considerações para a situação em que a causa do aborto será a mera

escolha da mulher, e a conclusão acerca do tratamento de tal situação e a sua constitucionalidade apenas

dependerá do nosso próprio juízo subjetivo sobre o estado do desenvolvimento do nascituro em causa em

conjunto com a apreciação dos interesses em causa para determinar se tais argumentos serão ponderosos o

suficiente para se admitir a despenalização.

Os interesses em causa serão, como referido, integrantes da própria autodeterminação da mulher

que, embora pareçam diminutos quando comparados com os interesses que pautam as outras causas de

despenalização do aborto, não podem ser subestimados. Cremos que, hoje em dia, é inegável o “peso”, a

capacidade modificativa da vida de uma mulher, que o nascimento de uma criança pode ter, condicionando-a

em toda a sua determinação no seu projeto social, económico, cultural e intelectual.

Como já tivemos oportunidade de referir a propósito das considerações sobre o pressuposto do dano

60 Voltaremos a referir-nos adiante a este assunto aquando dos nossas considerações e a nossa tomada de posição sobre as ações “Wrongful Birth” e “Wrongful

Life”.

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na responsabilidade civil médica, atualmente é possível perspetivar o ser humano, do ponto de vista dos seus

interesses e realização, num cada vez maior número de vertentes, traduzindo-se num número cada vez maior

de eventuais direitos e de eventuais danos. Tal será importante relembrar neste ponto para não cairmos na

tentação de desvalorizar os interesses de autodeterminação aqui em causa.

Por outro lado, os interesses aqui em causa, só por si, não serão suficientes para uma eventual

despenalização, antes têm de ser considerados em conjunto com o estado do desenvolvimento do nascituro

para poder pronunciar-nos quanto à possível despenalização, como referido. E quanto a este estado de

desenvolvimento, teremos então de considerar o desenvolvimento ocorrido até às dez semanas, âmbito no

qual a ciência poderá dar-nos um melhor entendimento (principalmente no que diz respeito ao

desenvolvimento do cérebro e da possibilidade de dor).

Neste ponto, a ciência ajuda-nos a compreender o desenvolvimento do nascituro até esta mencionada

semana. Não é um tema livre de controvérsia ou de diferentes opiniões pois questões sobre o que

determinado desenvolvimento do sistema nervoso e cerebral significam para o nascituro em termos de

consciência e resposta aos estímulos dividem os especialistas.

No entanto, pode-se aqui dizer que, em termos de dor, a maioria dos especialistas não acredita que o

nascituro a possa experienciar como um estímulo antes das primeiras vinte e quatro semanas. Peter Singer

diz mesmo que antes das dezoito semanas, altura em que o córtex cerebral se desenvolve o suficiente para

que os sinais de dor viagem através das sinapses, é improvável que o nascituro possa sentir dor, o que denota

desde logo o desenvolvimento ainda muito precoce do cérebro e do sistema nervoso do nascituro até à

décima semana. Do mesmo modo, todo o restante desenvolvimento cerebral encontra-se bastante limitado

até essa altura61.

Cremos que estes serão os aspetos mais relevantes do desenvolvimento do nascituro a citar para a

discussão tendo em conta que a previsão legal possibilita o término da gravidez até à décima semana

(inclusive). A afixação deste período temporal de dez semanas é um alvo fácil de crítica devido a uma

aparente arbitrariedade na sua escolha já que, cremos nós, não existe nenhum desenvolvimento do nascituro

que surja a partir da décima semana que justifique a despenalização antes desse momento e a penalização

após esse momento. Contudo, como referido, também não podemos deixar de considerar as diferenças de

opinião (mesmo no seio científico e médico) que existem quanto ao desenvolvimento do nascituro nos

diferentes intervalos temporais, pelo que a questão mais relevante a nosso ver é a seguinte: é, até à décima

semana, o desenvolvimento do nascituro precoce o suficiente para justificar uma maior preponderância dos

interesses em causa opostos ao interesse da vida do nascituro?

61 Norman M. Ford, The Prenatal Person: Ethics from Conception to Birth, Malden, Wiley-Blackwell, 2002, p. 155.

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É nossa opinião que o estado de desenvolvimento do nascituro até a esse momento é precoce o

suficiente para legitimar uma maior relevância dos interesses de autodeterminação em causa para efeitos do

conflito em causa, embora admitamos o carácter subjetivo desta posição e, portanto, nos apercebamos da

validade das eventuais posições contrárias a ela.

Quanto à importância do aspeto temporal em si considerado e do desenvolvimento do nascituro, não

pensamos que se pode de todo deixar de considerar o aspeto temporal do desenvolvimento do nascituro, seja

porque essas considerações resultam já do próprio sistema jurídico, seja porque tal implicaria outras

consequências em várias outras situações que não consideramos razoáveis (como, a título de exemplo, no

caso do uso da pílula do dia seguinte62).

Assim sendo, pelos argumentos plasmados, nunca podemos deixar de considerar o aspeto temporal

do desenvolvimento do nascituro nestas problemáticas. E, adquirindo assim os interesses em causa uma

ainda maior relevância, cremos ser possível a consideração desses interesses, em conjunto com o

desenvolvimento do nascituro, como ponderosos o suficiente para o merecimento da despenalização da

situação e a despenalização da opção da mulher. Desde modo, concordamos, tendencialmente e em

princípio, com a constitucionalidade da questão, não havendo aqui uma ofensa ao princípio da inviolabilidade

da vida prevista no texto constitucional63 64.

4.2.2. Tutela civil

Quanto à Tutela Civil do nascituro, podemos referir vários direitos concretos regulados especificamente

para os nascituros na Lei, tal como verificamos nos artigos 952.º, 1855.º, 2033.º e 2240.º65 do Código Civil,

62 Embora existam vários tipos de pílulas do dia seguinte, é possível, à pílula do dia seguinte, através da sua ação (caso o óvulo tenha já sido fecundado e logo,

para todos os efeitos, ser já considerado um nascituro), impedir a fixação desse óvulo fecundado nas paredes do útero, impedindo assim, para todos os efeitos,

a continuação da gravidez. Cfr. Marian Rengel, Encyclopedia of Birth Control, Phoenix, Oryx Press, 2000, p. 75.

Se o desenvolvimento do nascituro fosse irrelevante, sendo comparável, em qualquer momento, desde o momento da conceção, até ao nascimento, então algo

como a pílula do dia seguinte, por exemplo, poderia impor certos problemas já que, tecnicamente, não haveria diferença entre usar a pílula do dia seguinte para

impedir o prosseguimento da gravidez de um óvulo já fecundado (já considerado nascituro) e um aborto de um nascituro com alguns meses de

desenvolvimento. Esta posição carece de razoabilidade. A maior diferença relevante entre as duas situações será o estado de desenvolvimento do nascituro

(umas horas de desenvolvimento versus meses de desenvolvimento), pelo que somos obrigados, sob todas as perspetivas, a conceder a devida importância a

este fator temporal de desenvolvimento do nascituro (já que não cremos que a fixação do óvulo nas paredes do útero, só por si, seja relevante o suficiente para

justificar a diferença de tratamento. Em ambos os casos já existe um nascituro, a fixação nas paredes do útero deve ser encarado apenas como um dos estágios

naturais do seu desenvolvimento).

63 Quanto à licitude deste tema, Diogo Leite de Campos aparenta argumentar em sentido contrário: “A decisão de privar um ser humano (dentro ou fora do útero)

da sua vida é sempre ilícita, moral e juridicamente, como fim em si ou como meio para atingir um fim julgado bom”. Cfr. Diogo Leite de Campos, Nós - Estudos

sobre o Direito das Pessoas, Coimbra, Almedina, 2004, p. 84.

64 Também Henrique Mota parece opor-se. Cfr. Henrique Mota, «Interrupção Voluntária da Gravidez», in José de Oliveira Ascensão, Estudos de Direito da Bioética

Vol. 1, Coimbra, Almedina, 2005, pp. 287 a 308.

65 No âmbito do qual podemos também chamar à colação os artigos 1796.º, 1798.º e 1815.º e seguintes do Código Civil para atestarmos a capacidade sucessória

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entre outros. Mas talvez seja mais importante basear-nos, como faz António Menezes Cordeiro66, na discussão

da existência ou não de um direito à vida por parte do nascituro.

Este autor considera a coordenação entre o plano civil e o penal no sistema jurídico quanto à

admissão do direito à vida do nascituro. Neste âmbito, refere António Menezes Cordeiro67, esta admissão no

campo civil não está dependente da penalização do aborto. Pode co-existir um direito à vida no campo civil

com uma previsão penal que não penalize toda e qualquer situação que atente contra a mencionada vida.

Como afirma o autor, “quer isto dizer que o legislador penal se pode dedicar ao seu múnus de coerência e

eficácia, sem a preocupação de atribuir ou retirar direitos: estes não lhe competem” 68.

Estas considerações acerca do direito à vida do nascituro têm também relevância para o nosso

argumento anterior acerca da despenalização do aborto em virtude dos interesses e da situação em causa, já

que, como ainda refere o autor: “a existência civil do direito à vida do nascituro, sob reserva de convenientes

estudos de política legislativa criminal, recomendaria uma tutela penal desse direito; a despenalização

ocorreria na base de um cauteloso método de indicações, que ponderasse os bens em presença, optando

pelo sacrifício do que, em concreto e razoavelmente, fosse menos intenso”69. Mas, do plano civil, o autor

apenas pretende com isto demonstrar como a admissão do direito à vida do nascituro não está dependente

de penalização criminal de uma eventual violação da referida vida em todas e quaisquer situações. Trata-se de

uma posição admissível.

Já quanto à própria admissão do direito à vida do nascituro, uma perspetiva também possível e

defensável será a de que, apesar de tal direito não estar objetivamente previsto no campo do direito civil,

existirá de facto um direito à vida por parte do nascituro, tal como defende António Menezes Cordeiro. É

legítimo, a nosso ver, a defesa de que a única especialidade que advém da condição de nascituro em si

mesmo quando comparado com a restante vida humana e que poderia causar algumas dúvidas neste âmbito,

é o seu estado de desenvolvimento e formação, não sendo este entendido como relevante para a

consideração da existência do seu direito à vida, já que esse fator apenas poderá ser relevante para as

considerações acerca da despenalização do aborto (para se aferir se, no caso concreto, atendendo a todos os

fatores em causa, se se deverá entender que não deverá existir uma penalização da situação, numa lógica de

política criminal).

Assim sendo, é defensável a posição de que tal não põe em causa o próprio direito à vida do

nascituro. Em consequência, seria legítimo considerar que não existe sequer uma qualquer modificação do

do nascituro. Cfr. Diogo Leite Campos, «A Capacidade Sucessório do Nascituro», Boletim da Ordem dos Advogados, n.º 44 (2006), p. 27.

66 António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português IV - Parte Geral – Pessoas, 3ª edição, Coimbra, Almedina, 2011, pp. 337 a 341.

67 António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português IV - Parte Geral – Pessoas, 3ª edição, Coimbra, Almedina, 2011, pp. 341 a 343.

68 António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português IV - Parte Geral – Pessoas, 3ª edição, Coimbra, Almedina, 2011, p. 342.

69 António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português IV - Parte Geral – Pessoas, 3ª edição, Coimbra, Almedina, 2011, p. 343.

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direito à vida ao longo do desenvolvimento do nascituro, ao contrário do que parece já ter sido o entendimento

do Tribunal Constitucional Alemão70. Assim, entender-se-ia que o direito à vida permaneceria intocado,

relevando o estado de desenvolvimento do nascituro apenas como um dos fatores importantes relevantes no

conflito de interesses existente entre as várias situações de aborto admissíveis, podendo ser um fator decisivo

para a não penalização.

Posto isto, e antes de aprofundarmos qual deverá ser de facto a perspetiva adotada quanto à

admissão ou não do direito à vida do nascituro, devemos fazer a seguinte pergunta: será que se esgotam as

considerações sobre o nascituro no campo civil e sobre a sua Tutela Civil com a consideração dos seus

direitos especificamente regulados e a admissão do seu direito à vida?

A nossa resposta é negativa. Seguindo a perspetiva de António Menezes Cordeiro, facilmente se

conclui pela existência de outros direitos constantes da esfera do nascituro derivados da admissão do seu

direito à vida, tais como o direito à sua integridade física e moral. Tal significa que o nascituro gozaria de uma

proteção civil contra danos provocados contra si por esse fundamento.

No entanto, a condição especial do nascituro é tutelada com mais profundidade em lei civil e merece

alguns apontamentos.

Tal como é referido no artigo 66.º, n.º 2 do Código Civil: “Os direitos que a lei reconhece aos

nascituros dependem do seu nascimento”.

As implicações desta disposição são várias e têm importância nas considerações que se poderão

tecer acerca do nascituro no campo civil, acerca dos seus direitos, a sua personalidade e capacidade, o seu

direito à vida e, por fim, a importância do seu nascimento. O nascimento traduz-se assim, por força da

disposição mencionada (e do constante no artigo 66.º, n.º1 do Código Civil: “A personalidade adquire-se no

momento do nascimento completo e com vida” ), no evento necessário para a existência dos direitos do

nascituro. A disposição contém uma verdadeira condição suspensiva em relação ao nascituro.

Ou seja, o nascituro possui direito à vida, direito à integridade física e moral, e até, pode-se adiantar

desde logo, personalidade jurídica e capacidade de gozo. Mas tal estará sempre dependente do seu

nascimento, destacando o carácter suspensivo da condição. Não existindo nascimento, estes direitos, para

todos os efeitos, nunca existiram. Mas não existirão todos estes direitos? Atente-se no direito à vida. Não

nascendo o nascituro, não se verifica a condição suspensiva, caindo os seus direitos. Incluímos aqui todos os

direitos, incluindo também o direito à vida? Repare-se que uma resposta afirmativa conduziria à conclusão de

que o nascituro não tem direito à vida, desde que morra antes do nascimento, o que pode parecer deveras

incoerente.

70 António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português IV - Parte Geral – Pessoas, 3ª edição, Coimbra, Almedina, 2011, p. 338.

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Quanto a este aspeto, António Menezes Cordeiro afirma71 que aqui não se prevê todos estes direitos,

estando o direito à vida e a personalidade jurídica do próprio nascituro ressalvados. Antes, a condição visará

apenas a capacidade de gozo presente na esfera do nascituro e o que justificará esta solução legal para os

nascituros serão as preocupações maioritariamente patrimoniais provenientes da atribuição plena dos direitos

dos nascituros desde a conceção. Diz aqui, António Menezes Cordeiro72: “Admitir, ad nutum, uma capacidade

plena aos nascituros daria azo, na hipótese do não-nascimento, a retransmissões complexas. Haveria

desvantagens sociais, sem qualquer aportação para os próprios nascituros. Mais: o próprio nascituro passaria

a ser considerado como um centro de imputações patrimoniais, perturbando-se a quietude requerida pela

gestação”. Sendo considerações maioritariamente patrimoniais que estão por detrás desta solução legal, as

afirmações de António Menezes Cordeiro em se limitar a condição suspensiva à capacidade (de gozo) dos

nascituros parecem defensáveis.

Volvendo, contudo, à discussão dos direitos do nascituro, e também da sua personalidade e

capacidade, verificamos que o artigo 66.º, n.º 1 do Código Civil faz depender a atribuição da personalidade

jurídica ao evento do nascimento completo e com vida, parecendo aqui, mais uma vez, dar-se vital

importância ao nascimento, identificando-o como o momento decisivo para a formação da personalidade

jurídica. Todavia, cada vez mais autores têm, pelo contrário, identificado o momento da conceção como o

momento de atribuição de personalidade jurídica ao indivíduo, defendendo tal posição (que aliás, também

podemos considerar advir desde logo do eventual reconhecimento do direito à vida do nascituro).

Poder-se-ia, portanto, defender que o artigo 66.º, n.º 1 do Código Civil requererá uma interpretação

hábil, talvez até atualista, no que diz respeito ao “nascimento completo e com vida”, expressão, à partida,

algo duvidosa, possuindo, o nascituro, personalidade jurídica, não estando tal dependente do nascimento,

como se poderia também entender pela leitura do artigo 66.º, n.º 2 do Código Civil 73 74. Mas esta é uma

perspetiva que não ignora a incoerência que existe entre defender-se os direitos do nascituro à data da sua

conceção e o texto legal. Aqui estará, talvez, o busílis da questão.

Repare-se, até agora temos admitido como defensável a posição da admissão do direito à vida do

71 António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português IV - Parte Geral – Pessoas, 3ª edição, Coimbra, Almedina, 2011, pp. 370 e 371.

72 António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português IV - Parte Geral – Pessoas, 3ª edição, Coimbra, Almedina, 2011, p. 371.

73 Mário Bigotte Chorão refere-nos a necessidade de “reformular as normas civis sobre o nascituro, como as que se referem à aquisição da personalidade”

parecendo defender uma posição que atribua a personalidade jurídica desde a conceção numa lógica realista de personalidade jurídica singular. Cfr. Mário

Bigotte Chorão, «Concepção Realista da Personalidade Jurídica e Estatuto do Nascituro», O Direito, Ano 130, I-II (1998), p. 87.

74 “... a personalidade jurídica das pessoas humanas não depende da lei e está fora do alcance do poder legislativo do Estado retirar ou não reconhecer a

qualidade da pessoa humana a quem a tem. Por isso, o artigo 66.º do Código Civil deve ser entendido como referido à capacidade de gozo e não propriamente

à personalidade jurídica. Assim interpretado, o artigo 66.º do Código Civil torna-se harmónico com os demais citados preceitos do mesmo Código. A

personalidade jurídica das pessoas humanas tem início concomitantemente com o início da sua vida e existência enquanto pessoas” . Cfr. Pedro Pais

Vasconcelos, Teoria Geral de Direito Civil, 4ª edição, Coimbra, Almedina, 2007, p. 74.

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nascituro, assim como, consequentemente, da sua personalidade jurídica e demais direitos, defendida, com

variações, por António Menezes Cordeiro e outros autores. No entanto, não podemos ignorar que tais

perspetivas aparentam ser contra legem, conflituando com as disposições relevantes do campo civil

destinadas ao nascituro, nomeadamente as do artigo 66.º do Código Civil.

Como referido, estas disposições estabelecem, de facto, uma condição essencial para a existência

destes direitos e parece-nos claro que defender estes direitos, ignorando esta condição, é também, de certo

modo, ignorar as disposições previstas. Do mesmo modo, uma coisa é defender a mudança do paradigma

legal, defendendo-se que o regime previsto deveria ser de uma outra determinada forma, outra é defender

uma interpretação desse regime que vá ao encontro do que se considera dever ser o regime, ignorando os

pontos que parecem inultrapassáveis. Talvez seja mais coerente defender-se a mudança do paradigma legal,

não ignorando as disposições existentes, do que defender uma interpretação deste género.

Parece-nos que, apesar de as citadas posições serem perspetivas defensáveis, e embora estejamos

perante uma situação muito duvidosa e controversa, que a posição mais coerente e razoável do ponto de vista

do sistema jurídico não será uma das interpretações citadas.

Com efeito, por um lado, o sistema jurídico estabelece, constitucionalmente, uma proteção da vida

humana através do princípio da inviolabilidade da vida humana na qual nos parece razoável e coerente incluir,

como referido, a vida intra-uterina, sendo tal princípio o fundamento da proteção penal dos nascituros

(admitindo, no entanto, numa lógica de política criminal, o seu levantamento em situações-limite, como já

analisamos). Por outro lado, contudo, o sistema jurídico escolheu atribuir, civilmente, direitos específicos aos

nascituros (tal como verificamos nos artigos 952.º, 1855.º, 2033.º e 2240.º do Código Civil, entre outros), e

ainda outros direitos, já não especificamente pensados para os nascituros e sendo correspondentes aos

destinados às pessoas humanas nascidas mas ainda menores, tal como a personalidade jurídica, direito à

integridade física e moral, o direito à vida (implicitamente), e outros, mas estando estes sempre dependentes

do seu próprio nascimento, tal como é deixado claro pelas disposições constantes do artigo 66.º do Código

Civil, configurando-se o nascimento como a condição essencial para esses direitos.

Ora, parece-nos claro o cuidado que o sistema jurídico teve ao tipificar e tratar do regime destinado ao

nascituro e ao distingui-lo do nascido, utilizando o nascimento como o ponto de distinção e atribuindo-lhe o

carácter de condição para a existência dos direitos correspondentes aos direitos dos nascidos. E, embora o

nascituro possua uma proteção penal fundamentada constitucionalmente, tal não significa que ele

automaticamente possuirá um direito à vida entendido como correspondente ao direito à vida destinado ao

nascido ou os demais direitos destinados a ele, nos mesmos exatos termos. Se assim fosse, dificilmente se

entenderia como se poderia sequer admitir a interrupção da gravidez em casos onde não estamos perante o

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confronto da vida com a vida como, por exemplo, no caso de violação de uma mulher de onde resulte a

conceção de um nascituro. Repare-se, não estamos aqui sequer a tratar da interrupção da gravidez por

escolha da mulher (algo muito controverso em si mesmo e que aqui já tratamos). Estamos, pelo contrário, a

referir uma causa justificativa de não penalização da interrupção da gravidez já há bastante tempo admitida

sem grande contestação. Mas, se analisarmos bem esta situação, reparamos que não estamos perante o

confronto do valor da vida com a vida. De facto, tendo esta situação presente e admitindo-se o direito à vida

do nascituro nos mesmos termos que o nascido, como é que se pode admitir que a mulher, nesta situação,

não correndo risco de vida, interrompa a gravidez sem ser penalizada? Certamente, existindo direito à vida

nos mesmos termos, só um conflito de interesses e direitos com o mesmo peso (no caso, direito à vida),

poderia ser suficiente para justificar a interrupção da gravidez, mas tal não é o que acontece. Tal não é o

funcionamento do sistema jurídico.

Este exemplo é um bom indicador, a nosso ver, de como o nosso sistema jurídico está configurado

quanto ao nascituro, não só quanto à sua tutela penal, mas também quanto à sua tutela civil. A defesa do

direito à vida do nascituro e demais direitos, ignorando a condição do nascimento parece-nos entrar em

contradição com a configuração atual do sistema jurídico e o regime pensado para o nascituro. Deverá assim,

em nossa opinião, não se defender tal, mas sim dar o devido ênfase à existência de todos esses direitos,

personalidade e capacidade, mas sempre sob a lógica da condição suspensiva do nascimento.

Pelo exposto, não podemos deixar de discordar com a posição de António Menezes Cordeiro (e

demais autores semelhantes na sua posição a António Menezes Cordeiro) no que diz o direito à vida do

nascituro (e restantes direitos), por razões de coerência e adequação ao funcionamento do sistema jurídico.

Mas então em que posição estará o nascituro antes do nascimento ou se não ocorrer nascimento?

Não está protegido? O que significa isto do ponto de vista da responsabilidade civil?

4.3 A Relação entre a Responsabilidade Civil e a Vida Pré-Natal

Como podemos facilmente concluir em virtude do que foi previamente exposto, o nascituro goza de

uma proteção civil que inclui a sua proteção contra danos, tal como um nascido. Aqui encontramos a

fundamentação da aplicação do regime de responsabilidade civil ao nascituro. O nascituro não está excluído

do uso deste regime para reparação do dano sofrido, pelo contrário, tem o mesmo direito a ele que outro

indivíduo comum terá.

No entanto, o seu uso estará dependente e ligado à sua capacidade jurídica e, como concluímos,

dependente do seu nascimento. Quer isto dizer que em caso de dano que resulte na morte do nascituro, tal

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dano não poderia ser ressarcido pelo regime de responsabilidade civil? Neste aspeto, António Menezes

Cordeiro defende, como verificamos, que o nascituro terá direito à vida e que tal não estará dependente do

seu nascimento, existindo uma “capacidade de gozo limitada ao direito à vida”75. Contudo, quanto à morte do

nascituro, o autor refere o seguinte: “A morte do nascituro dará lugar a direitos de indemnização por danos

morais, funcionando o artigo 496.º. Além disso, todos os danos patrimoniais provocados aos pais do

nascituro deverão ser ressarcidos. Quanto ao nascituro em si: não tendo havido nascimento, o direito à

indemnização não se constitui. Trata-se de uma consequência do artigo 66.º/1, justificada por razões sociais

e dogmáticas abaixo referidas”76.

Do referido conclui-se facilmente pela irrelevância da posição quanto ao direito à vida do nascituro (e

demais direitos) no que concerne à responsabilidade civil pela sua morte. Havendo morte do nascituro, seja

qual for a posição adotada quanto ao previamente tratado, facilmente se conclui pela entrada em

funcionamento do artigo 496.º, n.º 2 do Código Civil. Significa isto que o nascituro não está protegido? Que

está excluído da responsabilidade civil? Não. Como vimos, o nascituro possui uma proteção penal,

constitucional e também civil, estando, neste campo, os seus direitos apenas condicionados ao seu

nascimento e existindo responsabilidade civil por danos provocados a ele. Contudo, no caso de morte do

nascituro, estamos perante considerações sobre titularidade de direitos. De facto, como refere o artigo 496.º,

n.º 2 do Código Civil: “Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em

conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes,

aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem”. Serão estes os

titulares em causa, não a própria vítima que, em virtude de ter morrido, não faria sentido ser compensada.

Cremos que não haverá dificuldades de entendimento quanto a incluirmos o nascituro no conceito de

vítima segundo a lógica do artigo 496.º, n.º 2 do Código Civil, razão pela qual cremos que facilmente se

conclui pela entrada em funcionamento desta disposição no caso de morte do nascituro. No entanto, mesmo

que tal não se entenda, haveria sempre lugar a responsabilidade civil derivada da morte do nascituro. Como

se verificou, o nascituro possui uma proteção penal e, como se compreenderá, “havendo ilícito penal haverá

responsabilidade civil extraobrigacional por acto ilícito em caso de ocorrência de dano, sendo certo que,

mesmo que não haja dolo (essencial, por via de regra, à responsabilidade penal), pode haver culpa” 77.

E no caso de dano que não resulte em perda de vida do nascituro? Quanto a este não se vislumbra

qualquer dificuldade. Será o próprio nascituro, entretanto nascido, a intentar uma ação de responsabilidade

civil contra quem lhe tiver causado o dano, com vista à sua reparação. Carecerá, contudo, normalmente, de

75 António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português IV - Parte Geral – Pessoas, 3ª edição, Coimbra, Almedina, 2011, p. 355.

76 António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português IV - Parte Geral – Pessoas, 3ª edição, Coimbra, Almedina, 2011, pp. 355 e 356.

77 Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues, «Reflexões em Torno da Responsabilidade Civil dos Médicos», Direito e Justiça, Vol. XIV, Tomo III, (2000), p. 242.

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representação, com vista a poder efetivar a sua pretensão, necessidade normalmente suprida pela

representação parental da criança dentro dos seus parâmetros devidos.

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5. Responsabilidade Civil por Atos e Omissões Médicas em Vida Pré-Natal

Pode-se entender o referido nestes últimos parágrafos como as especialidades da maioria dos casos

de responsabilidade civil quanto ao nascituro. Todavia, estas apenas refletem o panorama geral desse instituto

quando aplicado a circunstâncias em que exista o dano a um nascituro, seja quem for o autor de tal dano. E

quando o autor desse dano é um médico atuando no âmbito da sua profissão? É precisamente neste ponto

que a temática da responsabilidade civil médica interceta a problemática da vida pré-natal, ou do nascituro, e

é sobre tal interseção que recai o estudo e o âmbito deste trabalho, sendo o nosso propósito analisar e

comentar o que de relevante se eleva desta interseção.

Perspetivamos uma reflexão sobre tal interseção como revestida de importância graças a um duplo

fator.

Por um lado, é uma situação cada vez mais comum, na medida em que há um cada vez mais

presente acompanhamento médico da gravidez, do estado da grávida e do próprio nascituro o que em

consequência origina cada vez mais casos de eventual responsabilidade civil médica.

Por outro lado, determinadas circunstâncias e possibilidades originadas por esta interseção são

problemáticas e até controversas, pelo que merecem uma análise atenta que possa descortinar a melhor

solução e tratamento a dar a essas circunstâncias e possibilidades.

Que circunstâncias estarão então aqui em causa?

A circunstância mais comum será aquela em que o próprio médico, no âmbito da sua atuação como

profissional médico para com a grávida e para com o nascituro, causa um dano ao nascituro. Mas outras

circunstâncias de eventual responsabilidade civil também importarão aqui, nomeadamente os casos onde

possa existir responsabilidade civil médica na própria conceção do nascituro (onde podemos referir os casos

de procriação medicamente assistida que carecerão sempre de uma intervenção profissional médica), e ainda

os casos onde, embora não exista um dano concreto diretamente causado pelo médico ao nascituro, tendo o

nascituro nascido com malformações/deficiências e não tendo tal sido detetado pelo médico ou não tendo

este informado os pais da existência das malformações/deficiências negligentemente, pode estar em causa a

eventual responsabilidade civil do médico por essa sua atuação, a qual permitiu e resultou no nascimento da

criança com deficiência em causa (esta última questão é talvez a questão mais controversa que resulta da

interseção entre os campos da responsabilidade civil médica e a vida pré-natal, e à qual mais dedicaremos o

nosso tempo).

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5.1. A Generalidade dos Casos

Quanto à primeira circunstância, a mais comum, pouco mais haverá a acrescentar que o que já foi

referido acerca da responsabilidade civil médica em geral e dos seus pressupostos (nomeadamente a

ilicitude, culpa, nexo de causalidade e o dano), acerca da posição do nascituro quanto ao dano sofrido e

acerca do regime de responsabilidade civil quanto ao nascituro, para cuja argumentação de novo remetemos.

Devemos, no entanto, neste âmbito, atender a duas outras preocupações que surgem neste domínio:

– A possibilidade de aplicação da figura do contrato com eficácia de proteção de terceiros à relação

que se estabelece entre o médico, a mãe e nascituro, configurando-se o nascituro como o

terceiro protegido; e

– A posição assumida pelo próprio médico no procedimento de interrupção da gravidez (nos casos

despenalizados por lei criminal) quanto à responsabilidade civil.

5.1.1 Contrato com Eficácia de Proteção de Terceiros

Quanto à primeira preocupação, vários autores têm já defendido a possibilidade de aplicação da figura

à situação em que a mulher grávida se dirige ao médico carregando o nascituro no seu ventre, assumindo o

médico a posição de devedor, a mulher a posição de credor e o nascituro a posição de terceiro78.

Esta figura pressupõe a existência, no âmbito da relação contratual, de deveres laterais especiais de

cuidado e de proteção por parte do devedor relativamente a terceiros, estando estes terceiros elementos (ou

partes) situados fora da relação contratual em si. No entanto, devido à proximidade e inegável e indissociável

interesse que estes possuem relativamente à relação contratual (e a sua consequente posição especialmente

sensível ao que venha a resultar da relação contratual), justifica-se uma consideração por parte do devedor da

posição destes terceiros e a imposição desses deveres laterais especiais de cuidado e de proteção por parte

do devedor em relação a eles, sendo tal derivado até do princípio da boa fé79.

Manuel A. Carneiro da Frada80, quanto à figura em si e a sua aplicação, esclarece-nos que esta

78 Autores como, por exemplo, António Pinto Monteiro e Marta de Sousa Nunes Vicente. Cfr. Marta de Sousa Nunes Vicente, «Algumas Reflexões sobre as Acções

de Wrongful Life: a Jurisprudência Perruche», Lex Medicinae - Revista Portuguesa de Direito da Saúde, Ano 6, n.º 11 (2009), pp. 117 a 141 e António Pinto

Monteiro, «Direito a não nascer? (Anotação ao Acórdão do STJ de 19 de Junho de 2001)», Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 134, n.º 3933,

(2002), pp. 371 a 384.

79 Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações, 9ª edição, Vol. 1, Coimbra, Almedina, 2010, pp. 379 e 380.

80 Manuel A. Carneiro da Frada, Uma «Terceira Via» no Direito de Responsabilidade Civil?, Coimbra, Almedina, 1997, pp. 88 a 93.

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dependerá, para efeitos da sua aplicação, da existência de uma “relação pessoal ou de dependência social”

entre credor e terceiro, “nos termos da qual coubesse ao credor um dever de assistência para com o

terceiro”, mas também da existência de um interesse, por parte dos terceiros em causa, “substancialmente

coincidente ou concordante com o credor da prestação”81. O mesmo autor refere até, como exemplo da

aplicação da figura, a situação em que os pais levam o seu filho menor ao médico.

Não nos choca a aplicação, em princípio82, da figura à situação do nascituro. Pelo contrário, parece

ser uma aplicação razoável e correta desta figura, que nos parece ter sido pensada de modo a levar o devedor

a adotar uma atuação que não desconsidere aqueles que, apesar de não se encontrarem incluídos como

parte propriamente dita na relação contratual entre devedor e credor, estarão intimamente ligados ao credor,

havendo uma certa sobreposição ou confusão dos seus interesses e posições na realidade, justificando a sua

especial sensibilidade à atuação do devedor e a exigência de deveres laterais especiais de cuidado e proteção

por parte do devedor para com o terceiro.

O nascituro parece, pois, poder ser configurado como terceiro na lógica da figura sem grandes

dificuldades, pelo menos em princípio, pelo que concordamos com a aplicação desta figura à situação.

A admissão desta figura nesta situação resultará, no âmbito da responsabilidade civil, num mais fácil

preenchimento dos pressupostos para a efetivação da responsabilidade civil. Bastará ao nascituro demonstrar

o erro ou negligência no cumprimento dos deveres principais da relação contratual e, como tal, a consequente

violação dos deveres laterais de proteção e cuidado para com ele. Mas tal parece-nos também razoável. Se

existe uma situação em que realmente se impõe a existência destes deveres laterais, será esta. Podemos até

considerar estar, esse objetivo, implícito na confiança que a mulher grávida deposita no seu médico,

confiando-lhe não só a si mesma, mas também o seu nascituro.

5.1.2. A Posição Assumida pelo Médico no Procedimento de Interrupção da Gravidez

Quanto à segunda preocupação, esta basicamente assentará na interrogação a que poderíamos

chegar quanto à posição do médico nos procedimentos de interrupção da gravidez no campo da

responsabilidade civil.

Como já concluímos, existe uma despenalização da interrupção da gravidez no âmbito criminal em

casos específicos. Mas também concluímos pela existência de responsabilidade civil e correspondente

indemnização civil por danos e morte do nascituro. Poderia então o médico ser responsabilizado civilmente,

81 Voltaremos a referir a aplicação desta figura adiante na nossa posição adotada acerca das ações de “Wrongful Life”.

82 Poderão existir casos em que a aplicação da figura ao nascituro não seja razoável, como refletiremos adiante na nossa posição adotada acerca das pretensões

de “Wrongful Life”.

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ainda que não criminalmente, pela interrupção da gravidez? Ou a mulher que requer o aborto?

Cremos que não, desde logo por uma lógica de unidade do sistema jurídico. O âmbito penal e o

âmbito civil do sistema jurídico funcionam, na verdade, mais em conjunto do que funcionam em separado. E,

nestes casos, estar a permitir uma responsabilização civil, iria contra os propósitos alcançados no campo

penal, retirando a eficácia dos objetivos visados.

Como foi anteriormente tratado, a despenalização no campo criminal destes casos de interrupção da

gravidez, resulta do reconhecimento por parte do sistema jurídico de um conflito de interesses. E a decisão

pela despenalização resulta numa opção por parte do sistema jurídico em não penalizar e não pressionar a

mulher na sua decisão em prosseguir com a gravidez ou não prosseguir com a gravidez nestes casos-limite.

Reconhece-se (implicitamente) estarmos perante o campo de interesse da autodeterminação da mulher e

deixa-se, para esse campo, essa tomada de decisão.

No entanto, a aplicação de tal lógica limitada estritamente ao campo penal, resultaria na sua própria

perversão já que, havendo a possibilidade de responsabilização civil do médico ou da mulher por essa

interrupção, tal traduzir-se-ia, da mesma forma, na existência de pressão para agir em determinado sentido.

Aliás, tal inutilizaria perfeitamente os propósitos visados com a despenalização já que, sendo a

intervenção médica instrumental para os casos de interrupção da gravidez admitidos, existindo a

responsabilização civil dos médicos por tal ato, a mulher ver-se-ia impedida de interromper a gravidez por

recusa dos médicos em o fazer. Tal não se coaduna com o visado na despenalização da interrupção da

gravidez nos casos previstos. Para cumprir os propósitos visados pela despenalização não basta, de facto,

uma mera remoção nos tipos legais de crime destas situações já que a interrupção voluntária da gravidez não

é algo que possa ser efetivada eficazmente e com segurança sem condições adequadas para o fazer. Deste

modo, torna-se essencial não só a não existência de pressões por parte do sistema jurídico e a não permissão

de pressões sobre a mulher por parte do sistema jurídico (que incluirá as “ameaças” de ações de

responsabilidade civil contra o médico e contra ela mesma), mas também as condições físicas para efetuar o

procedimento (que incluirá a assistência médica). Foram estes os propósitos visados com a despenalização e,

portanto, numa lógica de unidade do sistema jurídico, não cremos que fossem admissíveis as hipóteses

mencionadas de responsabilidade civil83.

Não cremos ainda que o mencionado nestes últimos parágrafos atente contra as considerações

previamente referidas acerca da posição do nascituro e a sua posição quanto à responsabilidade civil. Nos

casos-limite que admitem a despenalização da interrupção da gravidez, existe uma verdadeira

desconsideração do nascituro e da sua posição, em virtude do conflito aí em causa e da própria natureza do

83 Não cremos que isto se traduza na existência de um verdadeiro direito ao aborto. Apenas cremos estar em causa a permissão (pelo sistema jurídico) das

condições necessárias para o cumprimento dos propósitos visados com a despenalização dos casos mencionados de interrupção de gravidez.

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caso-limite, onde se considera verdadeiramente violento obrigar ou pressionar a mulher a uma determinada

decisão. Um dos interesses em causa é a própria autodeterminação da mulher, pelo que, nestes casos,

relega-se para esse campo, a decisão a tomar, afastando-se, o próprio sistema jurídico, da própria tomada de

decisão quanto ao prosseguimento ou não da gravidez. É nesta lógica que se processa o que se pode chamar

de uma desconsideração da posição do nascituro por parte do sistema jurídico, em prol da posição da mulher

de modo a poder chegar-se a uma possível solução para o conflito em causa, mas não sendo o próprio

sistema jurídico a tomar uma posição quanto à mencionada decisão, sendo tal resolução deixada para o

campo de autodeterminação da mulher.84.

Mas tal desconsideração apenas se processa aqui, decorrente do conflito de interesses em causa e

das situações-limites em causa, pelo que não estará em causa a proteção, a posição e os direitos do nascituro

em si considerados, aos quais já nos referimos (e portanto cremos que as nossas prévias considerações

também não estarão em causa).

Concluímos assim, desde logo, pela inexistência de uma possível responsabilização civil por parte do

médico nesta situação (ou da mulher)85.

No entanto, tal não quer dizer que não possa existir responsabilidade civil médica derivada de um

procedimento de interrupção de gravidez quando a atuação concreta do médico assim o justifique. Repare-se

que a licitude da atuação do médico no procedimento de interrupção da gravidez está dependente dos

requisitos rígidos plasmados nas disposições penais correspondentes. Fora desses requisitos e circunstâncias,

a tutela da vida pré-natal efetiva-se e a sua proteção à luz do sistema jurídico não cai ou esmorece. Logo, o

incumprimento destes requisitos importará a ilicitude penal da conduta e, consequentemente, a ilicitude civil

da conduta do médico86, pelo que o preenchimento dos mencionados requisitos será primordial para a licitude

da atuação e a inexistência da responsabilidade civil e criminal do médico. Ou seja, uma atuação por parte do

médico que caia fora do previsto e permitido pelas disposições penais reguladoras da interrupção da gravidez

não punível, é fundamento de responsabilidade do médico, incluindo responsabilidade civil.

Do mesmo modo, o próprio procedimento de interrupção da gravidez (considerado como intervenção

médica) pode ser, por si só, fundamento de responsabilidade civil médica quando o médico não atue

conforme ao que lhe seria exigível. Trata-se de um procedimento médico delicado com possíveis complicações

graves, pelo que a diligência e cuidado exigíveis ao agente médico serão sempre necessárias para evitar

qualquer complicação e qualquer possível dano. Todavia, não estamos perante uma circunstância,

considerada sob esta perspetiva, diferente de qualquer outra que envolva um procedimento médico que,

84 Voltaremos a abordar este assunto mais adiante na nossa posição adotada acerca das pretensões de “Wrongful Life”.

85 Para mais considerações sobre a posição do pai do nascituro, consultar nota de rodapé 200.

86 Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues, «Reflexões em Torno da Responsabilidade Civil dos Médicos», Direito e Justiça, Vol. XIV, Tomo III, (2000), pp. 241 e 242.

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como tal, pode ser fundamento de responsabilidade médica.

5.2. Responsabilidade Civil Médica na Conceção Humana

Vista e analisada a circunstância mais comum da interseção dos dois campos em causa, partiremos

agora para a apreciação da responsabilidade do médico na própria conceção do nascituro.

Os casos mais interessantes e relevantes para se analisar neste âmbito, do ponto de vista da

responsabilidade civil do médico, serão os casos onde a atuação do médico leva a uma conceção não

pretendida ( casos de “Wrongful Pregnancy” ), como iremos analisar.

Mas, como referimos, incluir-se-á aqui também os casos de procriação medicamente assistida onde

se pressupõe a existência de um ato médico com o objetivo de se atingir, de facto, uma conceção bem

sucedida de um nascituro. Que relevância terá esta situação para a eventual responsabilidade civil do médico?

5.2.1. Procriação Medicamente Assistida

A procriação medicamente assistida87 surge como uma solução, uma vitória da ciência médica sobre

o meio tradicional de reprodução humana e as dificuldades que surjam quanto à sua eficácia na produção

eficaz de uma conceção. É tradicionalmente pensada como uma resposta para aqueles que possuem

dificuldades em se reproduzir ou estão impossibilitados de todo por serem verdadeiramente inférteis.

No entanto, foi desde cedo tratada com cuidado e desde cedo foi aparente a necessidade de

regulação e de responsabilização desta atividade, uma vez que estamos perante a intervenção humana e

científica na própria conceção humana e tudo o que esta possibilita. Não só estamos perante a possibilidade

de uma conceção mais eficaz, mas perante a interferência nessa conceção, na alteração da mesma, no uso

impróprio das células de reprodução humana, numa intervenção quase sem limites no património genético

humano que põe em cheque o próprio princípio da dignidade humana.

A este respeito, no nosso ordenamento, tais situações, usos e procedimentos são regulados e

previstos na Lei 32/06, de 26 de Julho, alterada pela Lei n.º 59/2007, de 04 de Setembro 88 89 90, para cujas

87 Para aprofundamento desta temática e a sua relação com o consentimento informado consultar a doutrina de João Vaz Rodrigues. Cfr. João Vaz Rodrigues, «O

Consentimento Informado para o Acto Médico no Ordenamento Jurídico Português (Elementos para o Estudo da Manifestação da Vontade do Paciente)», cit.,

pp. 116 a 143.

88 Regulamentada pelo Decreto Regulamentar n.º 5/2008, de 11 de Fevereiro, alterado pelo Decreto Regulamentar n.º1/2010, de 26 de Abril.

89 Quanto aos antecedentes da Lei e uma análise mais pormenorizada dos seus aspetos gerais, refira-se José de Oliveira Ascensão. Cfr. José de Oliveira Ascensão,

«A Lei n.º 32/06 sobre procriação medicamente assistida», in José de Oliveira Ascensão, Estudos de Direito da Bioética Vol. III, Coimbra, Almedina, 2009, pp.

25 a 50.

90 Também Vera Lúcia Raposo e André Dias Pereira comentam a mencionada Lei. Cfr. Vera Lúcia Raposo e André Dias Pereira, «Primeiras Notas Sobre a Lei

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disposições remetemos. Nesta Lei é, desde logo, prevista a responsabilidade criminal e contra-ordenacional

do médico em causa pela violação dos preceitos estipulados na presente Lei (nomeadamente nos seus

artigos 34.º a 45.º) e será, sem dúvida, este o âmbito de responsabilidade do médico mais relevante a

considerar.

Estamos aqui perante um tema sensível, onde se aprecia o que o médico pode ou não fazer e como

deve ou não agir no próprio procedimento de procriação assistida, assim como no uso das células de

procriação humanas às quais tem acesso. É um tema merecedor de profunda reflexão que envolve até a

consideração de problemáticas como a clonagem e a experimentação humana91. No entanto, cremos que tal

vasta reflexão extravasa o objetivo deste trabalho e a consideração da responsabilidade puramente civil do

médico no âmbito da interseção com a vida pré-natal. Tal reflexão será mais importante do ponto de vista da

responsabilização do médico nos campos para além do civil, como no campo criminal92 93 e no campo da

ética médica e bio-ética, entrelaçado com a deontologia própria da profissão, pelo que não abordaremos tanto

esta reflexão, devendo cingir-nos ao propósito do nosso trabalho.

Todavia, posto isto, tal não quer dizer que não exista uma possível responsabilidade civil por parte do

médico no circunstancialismo próprio onde se integram os variados métodos de procriação assistida, o que

justifica a sua abordagem no nosso trabalho.

Devemos aqui distinguir duas causalidades:

– Responsabilidade civil médica derivada do próprio procedimento de procriação assistida; e

– Responsabilidade civil médica derivada do uso impróprio das células humanas de reprodução.

Referindo-nos à primeira causalidade, podemos afirmar que existem vários métodos e procedimentos

de procriação assistida possíveis e admitidos juridicamente94. No entanto, estes requererão sempre, pelo

menos, a implantação do óvulo fecundado (embrião) na mulher. Este procedimento, e qualquer outro

Portuguesa de Procriação Medicamente Assistida (Lei n.º 32/2006, de 26 de Junho)», Lex Medicinae - Revista Portuguesa de Direito da Saúde, Ano 3, n.º 6

(2006), pp. 89 a 104.

91 José de Oliveira Ascensão refere-se a algumas destas problemáticas. Cfr. José de Oliveira Ascensão, «O Início da Vida», in José de Oliveira Ascensão, Estudos

de Direito da Bioética Vol. II, Coimbra, Almedina, 2008, pp. 9 a 28.

92 Quanto à responsabilidade criminal na procriação assistida, a problematização da temática da maternidade de substituição e a solução encontrada na Lei

quanto a ela, refira-se Rafael Vale e Reis. Cfr. Rafael Vale e Reis, «Responsabilidade Penal na Procriação Medicamente Assistida – A Criminalização do Recurso à

Maternidade de Substituição e Outras Opções Legais Duvidosas», Lex Medicinae - Revista Portuguesa de Direito da Saúde, Ano 7, n.º 13 (2010), pp. 69 a 93.

93 Para aprofundamento das considerações sobre a maternidade de substituição, proibida pelo artigo 8.º da Lei 32/06, de 26 de Julho, alterada pela Lei n.º

59/2007, de 04 de Setembro, consulte-se Vera Lúcia Raposo. Cfr. Vera Lúcia Raposo, «De Mãe para Mãe - Questões Legais e Éticas Suscitadas pela

Maternidade de Substituição», in Guilherme de Oliveira, Centro de Direito Biomédico 10 - De Mãe para Mãe - Questões Legais e Éticas Suscitadas pela

Maternidade de Substituição, Coimbra, Coimbra Editora, 2005.

94 Artigo 2.º da Lei 32/06, de 26 de Julho, alterada pela Lei n.º 59/2007, de 04 de Setembro.

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necessário utilizado no âmbito da procriação assistida, como todas as intervenções médicas, requer o saber e

cuidado próprio exigido à profissão (segundo o critério do bom profissional médico, como concluído

anteriormente) pois não é um procedimento de onde qualquer tipo de risco está ausente do campo das

possibilidades.

Sendo assim, quando a conduta do médico assim o justifique pelo preenchimento dos pressupostos

próprios da responsabilidade civil (existindo, inclusive, um dano), o procedimento de procriação assistida

poderá sempre dar azo à responsabilidade civil do médico para a reparação de um eventual dano, tal como,

por exemplo, o dano físico sofrido pela mulher proveniente da atuação do médico em causa 95. Não existe

aqui, deste modo, nenhuma especial circunstância que motive considerações especiais comparando com os

restantes atos e procedimentos médicos96.

Contudo, recusa-se, a nosso ver, a hipótese de existência de responsabilidade civil médica apenas

pela não concretização do resultado obtido. Como nos refere João Álvaro Dias 97: “pode, com toda a

segurança, afirmar-se que a orientação conformadora do regime jurídico das técnicas de procriação

medicamente assistida vai no sentido de considerar que o médico está apenas vinculado por uma obrigação

de meios, salvo tratando-se de análises que não requerem qualquer interpretação ou juízo médico de

apreciação, pois que em tais casos (v. g. testes de laboratório) qualquer erro terá como consequência uma

responsabilização do médico sem que seja necessário provar a desconformidade da conduta do agente com

o padrão de cuidados genericamente aceite e reconhecido”.

Conclui-se assim pela não existência de uma obrigação de resultados no que se refere à verificação

dos objetivos da procriação assistida por parte do médico em causa, não existindo assim responsabilidade

civil decorrente dessa não verificação.

Resta abordarmos a segunda causalidade, a que se refere ao uso das células humanas de

reprodução por parte do médico, ou seja, ao uso por parte do médico dos óvulos, espermatozoides e

consequentes embriões e/ou qualquer outro material orgânico e/ou genético humano utilizado nestas

técnicas, como fundamento para a responsabilidade civil médica.

Estas células, na lógica da procriação medicamente assistida, são fornecidas pelos intervenientes

com propósitos definidos, não podendo ser utilizadas para outros fins que não os visados com o fornecimento

95 “Operative procedures either go wrong through the fault of the doctor or risks become realities”. Cfr. Michael Davies, Textbook on Medical Law, 2ª edição,

Londres, Blackstone Press Limited, 1998, p. 177.

96 Tal como nos refere Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues, citando Gonzalez Morán e referindo-se à procriação assistida: “... admitindo que o tratamento da

esterilidade insere-se no conceito de acto médico, não faz sentido delinear perfis específicos de responsabilidade civil, exclusivamente aplicáveis ao exercício da

actuação clínica neste âmbito, pelo que à actividade do médico que estuda, projecta e aplica tais novas técnicas, são aplicáveis os princípios gerais da

responsabilidade civil profissional dos médicos, que assentam na observância da legis artis...” cfr. Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues, «Reflexões em Torno da

Responsabilidade Civil dos Médicos», Direito e Justiça, Vol. XIV, Tomo III, (2000), p. 232.

97 João Álvaro Dias, «Procriação Assistida e Responsabilidade Médica», Stvdia Ivridica, n.º 21 (1996), pp. 255 e 256.

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e os permitidos por lei. Emanam daqui múltiplas factualidades, desde o casal que procura ajuda médica para

engravidar, ao casal que requer a doação dessas células por parte de outrem e de ajuda médica para

engravidar.

Contudo, existe um traço comum que pauta todas estas factualidades, que se traduz na restrição do

uso das células em causa para os objetivos visados com o seu fornecimento e os permitidos por lei. Estão

presentes preocupações, como já referimos, de temas como a clonagem, a experimentação humana e da

própria dignidade humana, que legitimam tal limitação mas, para além disso, também podemos considerar

que tal limitação sucede, na maioria dos casos, da própria relação que se estabelece entre o médico e os

intervenientes em causa.

Assim sendo, existirá, em princípio, fundamento para a responsabilidade civil médica, sempre que o

uso dessas células não se coadune com os propósitos visados com o fornecimento dessas células nem com

os permitidos pela lei, ou se desvie do caminho traçado por lei e pelo vínculo que se estabelece entre os

intervenientes quanto ao uso dessas células.

A título de exemplo, podemos referir o artigo 25.º, n.ºs 1, 2 e 3 da referida Lei 32/06, de 26 de

Julho, alterada pela Lei n.º 59/2007, de 04 de Setembro, que regula o destino dos embriões no caso de

fertilização in vitro. O seu n.º 2 estabelece a possibilidade dos embriões fornecidos serem doados a outro

casal para procedimento de procriação assistida. Contudo, tal dependerá sempre, segundo o seu n.º 3, do

consentimento dos “beneficiários originários ou sobrevivo”, já que tal uso já extravasa os propósitos originais

do fornecimento das células. A violação deste preceito por parte de um médico, o uso destas células noutro

casal sem o consentimento, violaria o preceito legal mencionado e relação estabelecida entre quem forneceu

as células e o médico em causa, verificando-se, facilmente, em nossa opinião, os requisitos para a efetivação

da responsabilidade civil do médico.

Do mesmo modo, múltiplas outras situações resultariam numa eventual responsabilidade civil do

médico, para além de uma eventual responsabilidade disciplinar, contra-ordenacional e/ou criminal, como os

casos em que se violem os preceitos relativos ao uso de embriões para investigação científica98, ou nos casos

em que um interveniente é incorretamente informado sobre as implicações médicas dos tratamentos

propostos99, entre muitas mais situações. Até podem acontecer casos em que a atuação do médico em causa

resulta na inutilidade das células humanas de reprodução de um determinado casal, sendo essas células a

última esperança e possibilidade que esse casal possuía de se reproduzir, justificando-se assim facilmente a

efetivação da responsabilidade civil nesta situação, caso a atuação do médico tenha sido desconforme ao

exigível.

98 Artigo 9.º, n.º 5 da Lei 32/06, de 26 de Julho, alterada pela Lei n.º 59/2007, de 04 de Setembro.

99 Artigo 12.º, alínea c) da Lei 32/06, de 26 de Julho, alterada pela Lei n.º 59/2007, de 04 de Setembro.

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Existe, assim, um grande número de possibilidades para uma eventual efetivação de responsabilidade

civil médica no âmbito do uso das células de reprodução humana e o nosso propósito não é proceder aqui a

um elenco exaustivo destas situações, mas sim demonstrar de que maneira a responsabilidade civil médica

se relaciona com a procriação assistida e o uso das células de reprodução humana requeridas por estes

procedimentos, assim como pode ela surgir e o que a legitima, o que cremos ter já atingido, pelo que

bastarão as situações já consideradas como exemplos dessas possibilidades.

Devemos, por fim, escrever umas breves notas sobre o estatuto jurídico dos embriões, aspeto ao qual

não nos referimos especificamente quando tratamos do estatuto e posição do nascituro, mas que terá aqui

algum interesse em referir, até do ponto de vista da responsabilidade civil.

Tal como será facilmente compreendido, consistindo os embriões num óvulo já fecundado, eles são,

para todos os efeitos, também nascituros100. Deste modo, as considerações anteriores acerca dos nascituros

também são aplicáveis aos mesmos. Segundo a opinião de António Menezes Cordeiro estes possuirão

também direito à vida, consequentemente101 102. O autor esclarece, todavia, que as variadas técnicas de

procriação assistida implicam, todavia, uma especialidade técnica quanto ao tratamento dos embriões.

Técnicas como a fertilização in vitro implicam o uso e a produção de mais do que um embrião, sendo que

apenas um deles será depois implantado. Isto significa que sobrarão embriões, nascituros de facto, com

direito à vida, que não serão utilizados.

Em princípio, seguindo a opinião deste autor, o facto de se “desperdiçar” estes embriões, estes

nascituros (que possuem direito à vida segundo o autor), poderia ser contrário à tutela e proteção destinada

aos nascituros, com possível responsabilização. Contudo, este “desperdício” ocorre por manifesta

necessidade, não por opção. Refere, assim, António Menezes Cordeiro103 que, “a técnica humana não pode

viabilizá-los a todos. Proibir a investigação genética e a fecundação in vitro, em nome dos embriões que não

se poderão desenvolver, será excessivo”, “desde que que se proceda a manipulações dentro de uma

deontologia cuidada, sem quebras de dignidade, podemos inverter o problema: os médicos especialistas não

100 Distinguem-se os embriões das células humanas de reprodução nos mesmos termos em que se distingue nascituro de concepturo. Um embrião já é, para todos

os efeitos, um nascituro, uma pessoa humana que irá, de facto, desenvolver-se até se tornar num humano maturo (desde que existam condições para tal),

enquanto que as células humanas de reprodução são apenas um concepturo, a possibilidade de formação de um humano. Quanto à distinção de tratamento

entre os dois, refere-nos Pedro Pais Vasconcelos que “os concepturos não estão concebidos, não têm vida humana, e não têm sequer existência. Não são

entes. O termo concepturo exprime apenas uma potência, a possibilidade abstrata de alguém vir a ser concebido. Em relação ao concepturo não se coloca

sequer a possibilidade de reconhecimento de personalidade ou de capacidade. Por isso, não deve ser confundido o seu regime jurídico com o dos nascituros,

ainda que o legislador, com uma deficiente técnica de redacção, os tenha por vezes associado na letra da lei. O intérprete não pode, porém, deixar de distinguir” .

Cfr. Pedro Pais Vasconcelos, Teoria Geral de Direito Civil, 4ª edição, Coimbra, Almedina, 2007, p. 83.

101 António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português IV - Parte Geral – Pessoas, 3ª edição, Coimbra, Almedina, 2011, pp. 352 a 354.

102 Helena Pereira de Melo parece divergir deste entendimento. Cfr. Helena Pereira de Melo, «O Embrião e o Direito», in Rui Nunes, Helena Pereira de Melo, Ética e

o Direito no Início da Vida Humana, Porto, Gráfica de Coimbra, 2001, pp. 173 e 174.

103 António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português IV - Parte Geral – Pessoas, 3ª edição, Coimbra, Almedina, 2011, p. 353.

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podem ser responsabilizados por, tecnicamente, não ser (ainda) possível assegurar a sobrevida de todos os

embriões”.

Ou seja, mesmo António Menezes Cordeiro, que defende o direito à vida destes embriões, não

perspetiva um problema nesta situação, concluindo, resumidamente, que não seria razoável equacionar-se

aqui uma qualquer responsabilização por parte do médico em causa. Estaríamos assim, mais uma vez,

perante uma situação de conflito de interesses que, porventura, será significativamente mais fácil de resolver

pois não causará tantas dúvidas ou controvérsia como algumas das situações já tratadas.

Para quem adote a perspetiva contrária, de não admissão do direito à vida dos nascituros, a situação

tornar-se-á ainda mais fácil de resolver. Deve-se, contudo, fazer uso do mesmo argumento (da necessidade do

“desperdício” dos embriões usado por António Menezes Cordeiro) para justificar a queda da proteção

normalmente destinada aos nascituros.

5.2.2. Casos de “Wrongful Pregnancy”

Vimos, nestes últimos pontos, a eventual responsabilidade civil do médico nas hipóteses de uma

conceção pretendida. Mas e nos casos de uma conceção não pretendida, ou não pretendida nas condições

existentes, poderá existir aqui uma eventual responsabilidade civil do médico?

É assim que nos deparamos com as ações denominadas pela expressão inglesa “Wrongful

Pregnancy” ou, numa tradução possível, gravidez indevida.

De facto, os casos em que ocorre uma conceção ou gravidez indesejada têm-se denominado por

regra como casos de “Wrongful Pregnancy” e as ações destinadas a apurar a responsabilidade civil dos

agentes médicos em tal conceção, ações de “Wrongful Pregnancy”. Argumenta-se neste ponto que a mãe da

criança, ou os pais da criança, não desejariam a conceção/gravidez de todo ou não a desejariam nas

condições existentes, e que a conceção ou a gravidez apenas existe nessas condições por via de um erro,

omissão ou negligência médica. Ou seja, que essa gravidez só existe devido a uma conduta por parte do

médico não coerente com o que lhe seria exigível, sem a qual nunca teria a gravidez existido104 105.

104 Parece aqui existir uma certa confusão entre as noções de “Wrongful Conception” e “Wrongful Pregnancy”. Embora vários autores pareçam usá-los,

alternativamente, como sinónimos ou termos referentes à mesma situação (como Paulo Mota Pinto), existe quem não os faça corresponder na sua totalidade.

Bernard Dickens identifica o termo “Wrongful Conception” como referente a uma situação menos abrangente que a “Wrongful Pregnancy”, mas ainda

englobada nela. Segundo ele, será este termo reservado para as situações em que a negligência existente na execução de procedimento de esterilidade induzida

resulta na conceção de um feto não desejado. Cfr. Bernard Dickens, «Wrongful Birth and Life, Wrongful Death before Birth, and Wrongful Law», Legal Issues in

Human Reproduction, Dartmouth Publishing Company, 1989-1990, pp. 82 e 83.

Para efeitos deste trabalho, no entanto, preferimos seguir, até por uma questão de simplicidade, o termo “Wrongful Pregnancy”, ou “gravidez indevida” numa

possível tradução, por ser o termo mais apaziguador quando consideradas estas diferentes interpretações.

105 Tradicionalmente é uma pretensão pensada como uma ação de responsabilidade civil do médico. No entanto, poderão existir circunstâncias que configurem

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Como nos refere Paulo Mota Pinto106, distinguem-se aqui os casos em que a conceção é de todo

indesejada e os casos em que o feto é concebido em condições indesejadas, como por exemplo, quando

padece de uma deficiência genética, tendo os pais ou a mãe consultado o médico previamente para aferir os

riscos de tal acontecimento.

Em ambos os casos, terá de ter existido o referido erro, omissão ou negligência médica causador da

existência da gravidez, a distinção baseia-se somente entre não se pretender de todo uma conceção/gravidez

e não se pretender uma conceção/gravidez naquelas condições.

No primeiro caso, onde não se pretende de todo a conceção, a responsabilidade civil do agente

médico pode resultar, por exemplo, do facto de ter prescrito ao casal ou à mulher medicação que veio a final

revelar-se ineficaz para o controlo da natalidade ou ter dispensado tal medicação, quando não o devia ter

feito. Pode-se até extremar a situação, afirmando estarmos perante um caso de “Wrongful Pregnancy” até

simplesmente por o médico em causa ter falhado no seu aconselhamento destinado ao planeamento familiar.

Todavia, os casos mais comuns que têm surgido com pretensões de “Wrongful Pregnancy” têm-se verificado

em casos de ineficácia da implementação de procedimentos de esterilização (resultando em gravidezes

indesejadas), onde se argumenta e afirma a relação entre essa ineficácia e a conduta do médico.

No segundo caso, onde não se pretende uma conceção naquelas condições, podemos falar nas

conceções enfermadas por deficiências genéticas. A responsabilidade civil do agente médico recairá aqui

sobre ele próprio devido, fundamentalmente, ao emprego incorreto das ferramentas de diagnóstico e de

análise clínica e genética para apurar os riscos genéticos concretos existentes na conceção, ou, a incompleta,

incorreta ou errada informação transmitida aos pais da criança sobre esses riscos (estamos aqui perante

diagnósticos genéticos, uma atividade médica com um grau bastante reduzido de certeza, o que terá de

relevar nas considerações sobre a conduta do médico).

As pretensões de “Wrongful Pregnancy” têm já algum registo jurisprudencial e doutrinal nos mais

variados ordenamentos jurídicos.

No ordenamento jurídico norte-americano, ordenamento que serviu de berço a este tipo de

pretensões, as ações de “Wrongful Pregnancy” surgem tradicionalmente em situações de negligência em

procedimento de esterilização, resultando posteriormente numa gravidez indesejada por falta de eficácia do

procedimento107 (embora as ações com pretensões de “Wrongful Pregnancy” não se limitem unicamente a

uma pretensão de “gravidez indevida” sem que a conceção seja o resultado de intervenção médica mas sim de um outro elemento, como, por exemplo, num

caso de violação, como iremos referir adiante acerca de um caso concreto do ordenamento Polaco.

106 Paulo Mota Pinto, «Indemnização em caso de “nascimento indevido” e de “vida indevida” (“wrongful birth” e “wrongful life”)», Nos 20 anos do Código das

Sociedades Comerciais – Homenagem aos Profs. Doutores A. Ferrer Correia, Orlando de Carvalho e Vasco Lobo Xavier, Vol. III, Coimbra, Coimbra Editora, 2007,

p. 916.

107 David J. Burke, «Wrongful Pregnancy: Child Rearing Damages Deserve Full Judicial Consideration», Pace Law Review, Vol. 8, n.º 2 (1988), pp. 313 a 323.

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esta factualidade).

O primeiro caso a reconhecer verdadeiramente este tipo de ação, e a admiti-la, denominou-se por

Custodio v. Bauer e ocorreu em 1967, proferindo-se, neste caso, a atribuição de uma indemnização destinada

a cobrir os custos da operação de esterilização e os custos emocionais e psicológicos em causa, assim como

as diferenças económicas introduzidas pela alteração no agregado familiar.

Tornou-se, pelo exposto, numa decisão jurisprudencial impressionante devido à sua posição sem

precedentes quanto à indemnização atribuída, especialmente tendo em conta que só com esta decisão

jurisprudencial é que pela primeira vez foi sequer admitida a procedência deste tipo de pretensão. Ainda mais

impressionante se torna por não ser uma posição que tenha sido seguida ou imitada nos anos seguintes pela

grande maioria dos tribunais norte-americanos, pelo menos quanto à estipulação da indemnização atribuída

neste caso.

Na verdade, a jurisprudência norte-americana aqui divide-se quanto à indemnização a atribuir e o seu

montante, existindo várias perspetivas. A maioria atribui o que se pode denominar genericamente por uma

indemnização “regular” assente, essencialmente, no custo do procedimento médico em causa e nos danos

não patrimoniais existentes. Contudo é nos custos quanto à criança nascida e quanto à eventual

indemnização aos pais pelo seu sustento que as dificuldades surgem e as opiniões mais se dividem.

Existem assim quatro perspetivas quanto à indemnização a atribuir pelo mero sustento da criança em

causa:

– A que nega a atribuição de qualquer indemnização com base em tal facto, argumentando-se aqui o

valor da vida e argumentando-se que o facto de se ter uma criança apenas pode ser encarado como

uma dádiva e não um encargo;

– A que limita a indemnização aos custos resultantes da própria gravidez e parto, não cobrindo, em boa

verdade, os custos de se sustentar e criar a criança;

– A que não limita a indemnização, cobrindo-se pois todos os custos, numa compensação que se pode

chamar de “total”; e

– A que impõe a chamada “benefit rule”, diminuindo à indemnização os benefícios que os pais retiram

por terem essa criança.

É este o maior ponto de controvérsia no que diz respeito às ações com pretensões de “Wrongful

Pregnancy”.

Não devemos no entanto esquecer que estamos aqui perante os casos tradicionais de “Wrongful

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Pregnancy” em que nasce uma criança saudável, apenas indesejada. No entanto, como anteriormente

referido, é possível outro tipo de casos de “Wrongful Pregnancy”, como sugerido por Paulo Mota Pinto108,

onde existe uma conceção ou gravidez em condições indesejadas. Ou seja, é o caso em que o casal deseja

um filho, mas apenas em certas condições, nomeadamente apenas o deseja se não tiver riscos genéticos

relevantes para o surgimento de deficiências, pelo que consulta o seu médico para aferir tais riscos antes da

conceção. Existindo aqui negligência, erro ou omissão quanto a este procedimento quanto a esta informação

e que faça o casal optar pela conceção, verificando-se mais tarde na gravidez as temidas deficiências,

estaremos aqui também perante um caso de “Wrongful Pregnancy”, mas de certo modo diferente dos casos

mais tradicionais.

Num caso assim, o nascituro, nascendo, nascerá com deficiências, o que imporá um maior peso nos

custos com o seu sustento, revestindo-se pois tal facto de importância na apreciação da indemnização a

atribuir.

Na Alemanha também se tratou e discutiu acerca destas referidas ações. Tanto é assim que em

1980, perante o Supremo Tribunal da Alemanha (BGH)109, um casal que tinha recorrido a um tratamento de

esterilização por razões médicas e por não desejarem mais filhos, e que acabou por gerar gémeos após esse

mesmo tratamento, pediu uma indemnização com base em “Wrongful Pregnancy”, afirmando a negligência

do médico em causa no tratamento de esterilização, o que foi comprovado pelo tribunal.

A decisão do tribunal deu razão ao casal mas restringiu a indemnização, não atribuindo uma

indemnização onde se possa incluir os custos com a criação dos filhos. Em vez, foi a indemnização calculada

com recurso a uma figura destinada a situações onde existem filhos gerados fora do casamento

(“Regelunterhalt” ).

No Reino Unido, também encontramos exemplos de “Wrongful Pregnancy”, sendo de realçar um caso

jurisprudencial neste ordenamento, denominado por McFarlane and another v. Tayside Health Board, de

1999110.

In casu, um homem foi sujeito a um procedimento de vasectomia tendo, no entanto, gerado um filho

saudável e tendo este nascido após a intervenção médica, contrariamente aos desejos do referido homem. A

decisão destinada ao caso pelo tribunal mostrou-se reveladora de uma tendência restritiva, nestas ações,

relativamente à indemnização atribuída aos pais. Decidiu-se, na verdade, que não se poderia atribuir uma

108 Paulo Mota Pinto, «Indemnização em caso de “nascimento indevido” e de “vida indevida” ( “wrongful birth” e “wrongful life” )», Nos 20 anos do Código das

Sociedades Comerciais – Homenagem aos Profs. Doutores A. Ferrer Correia, Orlando de Carvalho e Vasco Lobo Xavier, Vol. III, Coimbra, Coimbra Editora, 2007,

p. 916.

109 Anastasios Moraitis, «When Childbirth becomes Damage: a Comparative Overview of “wrongful birth” and “wrongful life” claims», Lex Medicinae - Revista

Portuguesa de Direito da Saúde, Ano 4, n.º 8 (2007), p. 41.

110 Paulo Mota Pinto, «Indemnização em caso de “nascimento indevido” e de “vida indevida” (“wrongful birth” e “wrongful life”)», cit., p. 924.

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indemnização correspondente aos custos totais de cuidar da criança nascida suportada pelo médico e/ou

clínica de saúde.

Todavia, como referido, notou-se uma tendência restritiva da indemnização e não uma tendência de

rejeição destes casos.

A lógica e fundamentos usados pelo tribunal foram a desproporcionalidade entre o facto ilícito e a

indemnização a atribuir, caso esta tivesse o objetivo de compensar os custos do sustento da criança saudável

nascida, e também a falta de consideração dos benefícios retirados pelos pais em obter o seu filho, mesmo

que tal não fosse sua vontade, aproximando-se aqui o tribunal da lógica do argumento chamado “benefit

rule” já referido, relativo ao ordenamento norte-americano.

Sendo assim, em jeito de conclusão no que concerne a este ordenamento, atribuiu-se, de facto, uma

indemnização compensatória neste caso, apenas restringida no seu montante e cobertura de custos,

revelando-se ser esta a tendência dentro do ordenamento.

Quanto ao ordenamento Polaco, como nos refere Ewa Bagi skań 111 verificamos que, de facto, já vários

casos de negligência médica envolvendo “Wrongful Pregnancy” foram julgados com um parecer favorável e,

embora não seja unânime, defende-se a procedência das ações com pretensões de “Wrongful Pregnancy”.

No entanto, é referido também pela autora um caso especial neste âmbito em que a conceção ou

gravidez não foi causada por uma ação médica, mas sim por uma violação, tendo havido uma recusa por

parte das autoridades médicas em proceder à interrupção da gravidez. Segundo a autora, este caso fez com

que até se procedesse a uma certa retificação no raciocínio jurisprudencial relevante.

Existe legitimidade neste ordenamento para proceder à interrupção da gravidez nesta situação, de

violação de uma mulher com gestação de um feto em virtude dessa violação, desde que cumpridos certos

formalismos. Contudo, o importante a reter deste caso foi a recusa do Supremo Tribunal em identificar ou

admitir um “direito ao aborto”, como parecia decorrer de decisões anteriores. Antes, apenas se admite a não

ilegitimidade de se proceder à interrupção em certas situações. Defende-se, portanto, que a não ilegalidade

do aborto provém somente de uma situação de conflito de interesses que se verifica quando o interesse de se

proteger o feto se opõe a outros interesses relevantes que, de imediato ou no entretanto, entraram em conflito

com ele.

Já quanto à indemnização atribuída, no caso tratado de “Wrongful Pregnancy”, estabeleceu-se um

critério de análise das potencialidades económicas da mãe. Foi julgado que, em casos desta natureza, só os

custos de sustento da criança que a mãe se encontra impossibilitada de suportar devido às suas

potencialidades económicas, deverão ser considerados como danos patrimoniais para efeitos da

111 Ewa Bagi ska, «The Liability for Wrongful Conception and Wrongful Birth in Polish Law», ń Lex Medicinae - Revista Portuguesa de Direito da Saúde, Ano 5, n.º 10

(2008), pp. 42 a 45.

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compensação indemnizatória112 .

Por sua vez, no ordenamento Italiano, esclarece-nos Paulo Mota Pinto113 referindo um caso de 10 de

Setembro de 2002, onde esteve em causa uma pretensão de “Wrongful Pregnancy” e um procedimento de

esterilização ineficaz.

In casu, tanto o procedimento de esterilização se provou ineficaz, como as informações

providenciadas pelo agente médico se revelaram insuficientes quando atentado o exigível, fundamentando

consequentemente a pretensão e a sua procedência, concluindo-se pela admissão da procedência deste tipo

de pretensões no ordenamento em causa.

E quanto ao nosso próprio ordenamento? Será que se pode, à luz do ordenamento português admitir a

procedência das pretensões denominadas por “Wrongful Pregnancy”?

Atentemos no que diz Marta de Sousa Nunes Vicente114 sobre o assunto.

Concretamente, a autora concorda com os argumentos de A. Menezes Cordeiro de que uma não

procedência deste tipo de ações imporia a possibilidade de os contratos de prestação de serviço médico

serem tomados de ânimo leve por parte dos médicos em causa, visto que da deficiência da sua prestação

resultaria “apenas” uma criança, sendo tal facto insuscetível de compensação indemnizatória.

Assim, é opinião da autora que neste tipo de ações estamos perante apenas a “existência de um

inadimplemento culposo de uma obrigação contratual” e os danos daí decorrentes, tanto não patrimoniais

como patrimoniais, incluídos na figura do “dano de planeamento familiar” (“familienplanungsschaden” ). Tais

danos patrimoniais resumem-se aos custos acrescidos para a mãe com a criação/sustento da criança, mas

tal atribuição e entendimento apenas será sustentável, na ótica da autora, quando o objetivo da mãe com o

procedimento médico levado a cabo seria precisamente evitar o peso extraordinário que uma criança traria

para a esfera patrimonial da mãe115.

Quanto a nós, esta posição parece-nos razoável e correta. O facto de a única consequência ser a

conceção e eventual nascimento de uma criança não pode, por si só, ser justificação da não admissão da

pretensão. Como já tivemos oportunidade de referir, não se pode subestimar o peso patrimonial (e até não

112 Ewa Bagi ska, «The Liability for Wrongful Conception and Wrongful Birth in Polish Law», ń Lex Medicinae - Revista Portuguesa de Direito da Saúde, Ano 5, n.º 10

(2008), p. 48.

113 Paulo Mota Pinto, «Indemnização em caso de “nascimento indevido” e de “vida indevida” (“wrongful birth” e “wrongful life”)», cit., pp. 924 e 925.

114 Marta de Sousa Nunes Vicente, «Algumas Reflexões sobre as Acções de Wrongful Life: a Jurisprudência Perruche», Lex Medicinae - Revista Portuguesa de

Direito da Saúde, Ano 6, n.º 11 (2009), pp. 124 e 125.

115 A autora esclarece também a posição da própria criança neste tipo de situação fáctica, dispondo a impossibilidade da criança, nascida saudável, de intentar

uma ação de “Wrongful Life” (tipo de pretensão que analisaremos no ponto seguinte), invocando para si qualquer tipo de dano pois, mesmo numa ação de

“Wrongful Life” típica, não é invocado pela criança um dano por ter simplesmente nascido, mas por ter nascido com deficiência, como refere a autora. Logo,

tendo nascido saudável, não haveria fundamento para uma possível pretensão de “Wrongful Life”. Cfr. Marta de Sousa Nunes Vicente, «Algumas Reflexões sobre

as Acções de Wrongful Life: a Jurisprudência Perruche», cit., p. 125.

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patrimonial) que uma criança exercerá sobre a vida da mãe ou dos pais e para a sua realização e

determinação em todas as suas vertentes, sendo de referir aqui, mais uma vez, o alcance cada vez mais

vasto dos campos que se consideram relevantes para e englobados na realização humana assim como o

dano eventualmente resultante daquilo que impeça ou dificulte tal realização. Não parece também coerente

considerar-se o nascimento de uma criança meramente como uma dádiva para os pais quando a gravidez

não era pretendida, irresponsabilizando-se, no processo, a atuação do agente médico que, efetivamente

possibilitou e foi consequência necessária para a existência da gravidez.

Quanto ao alcance e montante da indemnização a atribuir, cremos que talvez seja relevante adotar

um critério de proporcionalidade neste caso, já que a atribuição de uma indemnização total capaz de cobrir o

sustento da criança nascida parece-nos manifestamente excessiva. Talvez um critério de proporcionalidade

próxima da regra do “benefit rule” presente no ordenamento norte-americano fosse mais adequado, pelo

menos nos casos em que nasce uma criança saudável. Nos casos em que venha a nascer uma criança com

deficiência, tendo em conta que a criança era pretendida, apenas não padecendo de deficiências, não vemos

porque não aplicar uma indemnização que pelo menos cubra os custos extraordinários que os pais da criança

terão de suportar em virtude da criança ter deficiência (deixando de parte os custos que se verificariam caso

a criança não padecesse de deficiências).

5.3. Responsabilidade Civil Médica pelo Nascimento de Criança com Deficiência: Acções “Wrongful Life” e

“Wrongful Birth”

Partamos agora para a análise da temática mais problemática e controversa da interseção entre as

questões da responsabilidade civil médica e vida pré-natal: a apreciação de uma eventual responsabilidade

civil médica pelo próprio nascimento de uma criança com deficiência.

No âmbito da responsabilidade civil por atos e omissões médicas em vida pré-natal, esta questão

revela especial importância e dificuldade de tratamento. Estamos aqui a falar de uma matéria que se situa no

âmbito do diagnóstico pré-natal116 (podendo existir, de facto, responsabilidade civil médica derivada deste

diagnóstico117), mas apenas de uma única matéria, já que nem todas as situações que se situem no âmbito do

diagnóstico pré-natal revelarão especial importância ou dificuldade.

De facto, nos casos mais comuns, em que a má prática médica e a violação dos deveres a que os

116 Para aprofundamento da matéria do diagnóstico pré-natal e da sua relação com o consentimento informado, consultar João Vaz Rodrigues. Cfr. João Vaz

Rodrigues, «O Consentimento Informado para o Acto Médico no Ordenamento Jurídico Português (Elementos para o Estudo da Manifestação da Vontade do

Paciente)», cit., pp. 92 a 102.

117 Cfr. Guilherme de Oliveira, «O Direito do Diagnóstico Pré-natal», in Guilherme de Oliveira, Centro de Direito Biomédico 1 – Temas de Direito de Medicina, 2ª

edição aumentada, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, pp. 228 a 232.

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agentes médicos estão adstritos leva a um diagnóstico pré-natal deficiente, incompleto ou incorreto, e tal

diagnóstico resulta numa ação positiva ou omissão por parte do agente médico que causa direta e

necessariamente danos no feto e/ou mãe (existindo o preenchimento consequente dos pressupostos de

responsabilidade civil), poucas dúvidas haverão da existência de responsabilidade civil no caso concreto, ou

poucas dificuldades existirão no tratamento do caso concreto quando comparado com qualquer outro caso

comum de responsabilidade civil médica, como já verificamos quando nos referimos aos casos comuns de

interseção entre responsabilidade civil médica e a vida pré-natal.

Assim sendo, do mesmo modo, podemos concluir, desde já, facilmente, pela existência de

responsabilidade civil do médico que cause, pela sua atuação desconforme ao exigível, danos ao nascituro

que resultem numa deficiência para o mesmo. Ou, por outras palavras, quando a deficiência do nascituro é

causada diretamente pela atuação do médico.

Nem sempre será assim, no entanto.

Existem casos muito específicos, já bastante discutidos e problematizados na doutrina e

jurisprudência global, em que a análise se condensa e a complexidade se intensifica. Estamos a referir-nos às

ações denominadas por “Wrongful Birth” e “Wrongful Life” ou, numa tradução possível, de “nascimento

indevido” e de “vida indevida”, respetivamente (ações estas que se aproximam, na sua natureza, das ações

previamente analisadas de “Wrongful Pregnancy”, mas que se distinguem facilmente delas).

O uso da língua inglesa para denominar este tipo de ações é reveladora da sua herança anglo-

saxónica. De facto, este tipo de ações teve a sua origem no ordenamento jurídico norte-americano e um dos

seus aspetos mais polémicos, e que mais respostas internacionais tem suscitado, trata-se das hipóteses de

resposta à questão que põe em causa a existência de um hipotético “direito a não nascer” ou até da questão

que interroga se pode o nascimento de alguém ser considerado como um dano ou como uma razão

justificativa de atribuição de uma indemnização no campo da responsabilidade civil118.

Para já, e antes de mais, devemos explicar devidamente cada uma das ações em cima referidas, de

modo a que seja possível referir cada uma delas individualmente, sabendo-se exatamente de que tipo de

factualidade estamos a falar.

Ora, nestas referenciadas ações, de um modo geral, pensa-se nos casos de erro, omissão ou

negligência médica quer no próprio diagnóstico (pré-natal), quer na deficiente ou incompleta informação

transmitida aos pais do nascituro no pós-diagnóstico, onde existe, decorrente dessa situação, um nascimento

indesejado de uma criança com deficiência. Distinguem-se aqui das previamente mencionadas ações de

“Wrongful Pregnancy” pois não é a própria conceção que estará em causa, mas o próprio nascimento. Ou

118 “O assunto toca as fronteiras do direito com a ética e a moral”. Cfr. Gisela Hildegard Kern, «O Valor Absoluto da Vida Humana - Limite para a Responsabilidade

Civil?», Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Ano IV (2007), p. 87.

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seja, a mãe ou os pais do nascituro não recorreram, nestes casos, a ajuda médica para impedir uma eventual

conceção ou para determinar os riscos que uma futura conceção acarretaria quanto a deficiências genéticas

do nascituro, só se pretendendo a conceção quando esses riscos fossem aceitáveis do ponto de vista da mãe

ou dos pais. Pelo contrário, nestes casos, a conceção já estará efetuada. A mãe ou os pais recorrem ao

médico para, através de diagnóstico pré-natal, determinar se o seu nascituro será saudável ou se sofrerá de

alguma deficiência, só se pretendendo prosseguir com a gravidez até ao nascimento, se realmente for

saudável. Não existe, nestes casos, um dano direto causado pelo médico ao feto (ou à mãe, influenciando o

nascituro), distinguindo-se estes casos também dos casos comuns de responsabilidade civil por atos ou

omissões médicas em vida pré-natal.

Argumenta-se antes a responsabilidade civil do agente médico não porque o seu erro, omissão ou

negligência médica causou direta e necessariamente as malformações/deficiências do nascituro, mas porque

o erro, omissão ou negligência médica no diagnóstico ou na transmissão da informação aos pais,

impossibilitou os pais de uma decisão plenamente informada, consciente da correta realidade, quanto ao

nascimento do seu filho. De facto, argumenta-se que a opção tomada pelos pais, quanto ao nascimento do

nascituro, a sua existência e continuação, variaria conforme as informações prestadas a eles pelo agente

médico, podendo eles terem optado pela interrupção da gravidez caso estivessem munidos das corretas

informações sobre o estado do nascituro (pressupõe-se estarem aqui reunidos todos os requisitos para a

interrupção da gravidez não punível na altura em que se situa a atuação faltosa do médico em causa, sendo

esta também uma condição para o funcionamento da lógica destas ações, relacionando-se desta forma com a

problemática da despenalização do aborto).

Como refere Paulo Mota Pinto119, nestes casos, a conceção em si pode ser indesejada ou não, mas

será o próprio evento do nascimento que estará em causa, sendo irrelevante saber-se se a conceção foi

planeada ou desejada.

O erro, omissão ou negligência médica consiste essencialmente, nesta situação, no facto de o agente

médico não ter detetado ou, se detetou, de não ter informado corretamente os pais da existência dessa

deficiência. Ou seja, estamos perante casos em que seria possível a deteção da deficiência num padrão de

normalidade da prática médica, a informação aos pais desse problema, e seria possível, graças a isso, a

criança nunca nascer, devido a uma opção por parte dos pais nesse sentido, munidos dessa informação. De

facto, argumenta-se até que não só seria possível, como seria sem dúvida o que aconteceria. Seria a única

consequência de tal circunstancialismo.

Já distinguimos estas duas ações das ações de “Wrongful Pregnancy” e também dos casos comuns

119 Paulo Mota Pinto, «Indemnização em caso de “nascimento indevido” e de “vida indevida” (“wrongful birth” e “wrongful life”)», cit., p. 916.

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de interseção da responsabilidade civil médica com a vida pré-natal. Mas qual a diferença essencial entre

estas duas ações?

A ação de “Wrongful Birth” é pensada do ponto de vista dos pais, lesados pelo erro, omissão ou

negligência do agente médico que os impossibilitou de oportunamente analisar a situação fáctica real e tomar

uma decisão com base nela quanto ao prosseguimento ou não da gravidez e nascimento do nascituro.

A ação de “Wrongful Life” é, por sua vez, pensada do ponto de vista da criança nascida. É evidente,

desde já, portanto, que se trata de algo bastante diferente. De facto, é a própria criança que vem pedir

compensação devido ao seu próprio nascimento na mesma situação de erro, omissão ou negligência médica,

denominando-se o seu próprio nascimento como indesejado, visto ter a criança nascido com uma deficiência,

afetando-lhe negativamente todos os aspetos da sua vida.

A distinção assenta-se assim, como referido, nos autores da ação, assim como o dano em concreto

existente.

Na ação de “Wrongful Birth” os autores serão os pais da criança, exigindo compensação dos danos

sofridos a nível do planeamento familiar (“Familienplanungsschaden”) 120 e/ou pelos danos resultantes do

nascimento da criança. Na ação de “Wrongful Life” o autor é a própria criança exigindo compensação pelos

danos sofridos pelo seu próprio nascimento.

A maior controvérsia deste tema assenta neste último ponto referido. Parece configurar-se, neste

caso, a própria vida/nascimento da criança como um dano para ela mesma, o que será a razão principal da

controvérsia e da dificuldade desta questão e que suscitará imensa discussão, mesmo a nível da definição e

valorização da vida humana.

Serão assim, estas duas ações, ações ligadas, mas bastante diferentes, merecendo, cada uma delas,

uma reflexão e tratamento diferente, sendo a mais controversa das duas a ação de “Wrongful Life” devido às

suas conceções legais e até filosóficas.

A sua ligação é até suficiente para justificar o seu cúmulo na maioria dos casos, assentando na

mesma matéria factual. Assim, o mesmo caso poderá ter presentes uma pretensão de “Wrongful Birth” e

outra de “Wrongful Life”, ambas co-existindo, tendo a primeira os pais como autores e a segunda a própria

criança como autor121.

120 “Dano de planeamento familiar”. Cfr. Paulo Mota Pinto, «Indemnização em caso de “nascimento indevido” e de “vida indevida” (“wrongful birth” e “wrongful

life”)», cit.,, p. 916.

121 Distinguimos até agora as ações “Wrongful Birth” e “Wrongful Life” das ações “Wrongful Pregnancy”. No entanto, apesar das suas diferenças, tal não significa

que elas, ou as situações fáticas que lhes dão fundamento, não possam todas elas também co-existir num único caso, devido à sua proximidade. Pense-se num

caso, a título de exemplo, em que um casal recorre a um médico para aferir os riscos genéticos de uma futura conceção, sendo incorretamente informados pelo

médico, e existindo, logo após a consulta, uma conceção. E imagine-se também que os pais, após descobrirem a gravidez, consultam o mesmo médico, para

determinar o estado do nascituro através de diagnóstico pré-natal e verificar se o mesmo é saudável ou se possui deficiências e que, mais uma vez, são

incorretamente informados desse estado, podendo-se culpabilizar a conduta do médico em causa pelas mencionadas incorreções. Neste caso, podemos estar

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Referir-se-á ainda que estas ações assentarão, ou poderão assentar, em pedidos de indemnização por

danos não patrimoniais e também por danos patrimoniais. Na verdade, não estamos perante casos em que

há apenas uma ofensa ou dano não patrimonial resultante do erro, omissão ou negligência do agente médico,

do nascimento da criança e/ou do dano de planeamento familiar. Nos casos em que nasce uma criança com

uma ou várias deficiências, não nos podemos esquecer e muito menos negar os encargos patrimoniais

acrescidos de que a criança necessariamente necessitará ao longo da sua vida, em virtude dessa deficiência

ou malformação, o que teria obviamente sido evitado pelo não nascimento da criança. São, portanto,

encargos patrimoniais indemnizáveis na lógica das ações referidas, justificando o pedido por danos

patrimoniais.

Agora devemos, antes de partirmos para a análise do mérito e legitimidade destas ações no

ordenamento português, expor e analisar as suas origens e o seu tratamento nos vários ordenamentos

estrangeiros, assim como os casos mais conhecidos e mais mediáticos englobados nesses ordenamentos,

dando uma especial atenção e prevalência à jurisprudência em causa, para além da doutrina que se revele

relevante.

5.3.1. Génese e Direito Comparado

a) Ordenamento Norte-Americano

Como já mencionado, este específico tipo de ações teve a sua génese num contexto anglo-saxónico,

mais concretamente no contexto do ordenamento norte-americano, embora com soluções um pouco

diferentes conforme o Estado norte-americano em causa, não só devido à diferente jurisprudência de cada

Estado mas também devido a diferente legislação. De facto, há até Estados onde foram introduzidas leis que

efetivamente impediram a proposição deste tipo de ações122.

De qualquer modo, caminha-se nesse ordenamento, assim como na generalidade dos ordenamentos,

para uma cada vez maior aceitação do tipo de ações referidas, embora a admissibilidade da ação de

“Wrongful Life” suscite ainda imensas dúvidas e resistência, muito mais que as pretensões de “Wrongful

Birth”. Por outras palavras, no ordenamento norte-americano, assim como nos restantes ordenamentos,

parece tendencialmente aceitar-se a legitimidade da procedência das ações de “Wrongful Birth” e sua

prossecução, embora ainda exista muita resistência à aceitação das pretensões de “Wrongful Life” (sendo a

perante as três pretensões, assentes num único caso, co-existindo.

122 Lusa Pinto César Correia de Paiva, Pretensões de Wrongful Life: Uma Alternativa aos Quadros Tradicionais da Responsabilidade Civil?, Dissertação de Mestrado

apresentada à Universidade Católica Portuguesa, 2011, p. 14.

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sua rejeição a tendência habitual na abordagem a esta pretensão).

Todavia, uma coisa é certa: são cada vez mais os ordenamentos jurídicos que, pelo menos, abordam

a questão, tendo-se ramificado internacionalmente a partir do ordenamento norte-americano.

Falando da sua génese, Bernard Dickens123 revela-nos que o nascimento deste tipo de ações nos EUA

surge no contexto da (e nunca indiferente à) discussão do aborto, da posição antagónica dos que defendem a

posição da “escolha” (“pro-choice”) e os que defendem a posição da “vida” (“pro-life”), sendo as referidas

ações fortemente opostas pelos defensores do pro-life e defendidas pelos defensores do pro-choice. As ações

referidas assentam na possibilidade de terminar a vida do feto existente, o que justifica a discórdia entre os

dois grupos. Segundo o autor referido, a posição defendida pelo movimento pro-life é de se rejeitar pelo

simples facto de, pela sua lógica implícita de valorização cega da vida (em abstrato), preterir a compensação

a crianças nascidas vivas com deficiências em favor da compensação a fetos não nascidos com vida, quando

a posição mais correta será a de se admitir a compensação à criança nascida com vida que sofre e suporta

custos médicos devido à negligência de outros, assim como admitir a compensação resultante de negligência

que se traduz no término da vida do feto.

Neste ponto somos ainda elucidados mais um pouco pelo mesmo autor que nos refere a importância

do desenvolvimento científico e médico nos campos do diagnóstico pré-natal e da genética. Estes grandes

desenvolvimentos, assim como a evolução do tratamento criminal do aborto sob o ponto de vista legal, foram

fulcrais para alterar a perceção dos tribunais norte-americanos quanto aos deveres do agente médico e a sua

relação com o paciente, nomeadamente quanto aos seus deveres perante os riscos genéticos e congénitos

relevantes numa gravidez, assim como qualquer outros riscos relevantes.

Independentemente da posição concreta tomada acerca da temática da interrupção da gravidez,

percebe-se a absoluta dependência das ações tratadas e a discussão (e eventual aceitação) do aborto ou

interrupção da gravidez. Seria de certo modo ilógico, ou pelo menos incoerente, pensarmos numa atribuição

de responsabilidade civil (e consequente indemnização com base neste tipo de ações) se outra situação

factual, para além da existente, não poderia ser alcançada legalmente (devido à não permissibilidade da

interrupção da gravidez em causa ou, caso não fosse possível, ou pelo menos exigível, ao agente médico

detetar os riscos e informá-los aos pais do nascituro unicamente por limitações reais da ciência médica ao

tempo do caso em tratamento) havendo ou não negligência, omissão ou erro por parte do agente médico.

Ou seja, com a conjugação destes dois fatores, pode-se afirmar que a ciência médica e a perceção

legal evoluíram para um ponto onde já não seria admissível aos olhos do tribunal não responsabilizar o agente

médico numa destas situações (desde que existindo por parte dele negligência, erro ou omissão) ou pelo

123 Bernard Dickens, «Wrongful Birth and Life, Wrongful Death before Birth, and Wrongful Law», cit., pp.81 a 111.

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menos abordar a questão seriamente, discutindo-a e decidindo-a jurisprudencialmente.

Certo é que, tanto no ordenamento norte-americano como noutros ordenamentos, só com tendencial

afrouxamento por parte dos Estados relativamente à punição legal do aborto, é que puderam as ações aqui

tratadas e referidas ser consideradas legítimas e admissíveis. Antes de tal ponto de viragem, que se situa

temporalmente e essencialmente a partir dos anos 70 do século XX, como nos refere Anastasios Moraitis124,

elas seriam facilmente rejeitadas pelo simples facto de não ser permitida a interrupção da gravidez pela lei

penal respetiva em vigor. Pode-se então traçar aqui uma correspondência necessária e co-dependente entre o

surgimento destas ações e a permissibilidade ou a despenalização do aborto no âmbito da lei penal de um

país e a alteração da perceção por parte dos tribunais possibilitada pelo avanço científico médico.

Abordado o contexto da sua génese, iremos agora procurar concretizar o que já foi dito e proceder

para um breve estudo histórico do ordenamento norte-americano, focado essencialmente no tratamento

jurisprudencial da temática.

Assim sendo, dentro da jurisprudência norte-americana (claramente o âmbito mais importante para o

estudo destas ações, até pela natureza e lógica do funcionamento do sistema de âmbito anglo-saxónico

presente nos EUA), podemos referir-nos a vários casos, entre eles, por exemplo, o caso Gleitman v. Cosgrove

discutido em 1967 em sede do Supremo Tribunal da Virgínia125.

Neste caso, uma criança nasceu com graves deficiências após uma consulta médica onde foi

garantido aos pais da criança que o nascituro não teria problemas no futuro pelo facto de a mãe do mesmo

ter contraído rubéola nos primeiros meses da gravidez, apesar de já ser reconhecido pela ciência médica

dessa altura que tal acaso poderia, em boa probabilidade, causar graves deficiências à criança, por uma

relação causa-efeito a que se denomina por Síndrome da Rubéola Congénita.

Verificadas as deficiências da criança, cada um dos pais, assim como a própria criança, intentaram

ações com diferentes fundamentos: a mãe, com o fundamento nos danos emocionais que sofreu com o

estado do filho; o pai, com o fundamento nas despesas médicas que o seu filho necessitava; e a criança,

representada pelos pais, com o fundamento nas suas próprias deficiências.

Neste caso, todos os pedidos foram rejeitados pelo tribunal com base fundamentalmente na

impossibilidade de se considerar a vida de alguém como um dano (ou como fonte de danos), com base na

preciosidade da vida humana e com base nas considerações de política pública derivadas dessa noção, assim

como se considerou ser impossível ou impraticável comparar a situação de vida da criança existente com a

sua situação de não existência. Rejeitou-se assim a procedência e a legitimidade das ações de “Wrongful

Birth” e “Wrongful Life”, ambas pedidas e pretendidas neste caso.

124 Anastasios Moraitis, «When Childbirth becomes Damage: a Comparative Overview of “wrongful birth” and “wrongful life” claims», cit., pp. 42 a 44.

125 Anastasios Moraitis, «When Childbirth becomes Damage: a Comparative Overview of “wrongful birth” and “wrongful life” claims», cit., p. 40.

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No entanto, tal decisão não se manteve inabalável. De facto, em 1979, no caso Berman v. Allan, esta

decisão foi revertida, pelo menos parcialmente, tornando-se este o primeiro caso a reconhecer a legitimidade

e a admitir a procedência das ações de “Wrongful Birth” nos EUA126, mas não quanto à pretensão de

“Wrongful Life” cuja situação se manteve, apesar disto, inalterada.

Não tendo este caso alterado a situação quanto às ações de “Wrongful Life”, será portanto

conveniente referir ainda outros casos127, como o caso Park v. Chessin de 1977, onde, na sequência de uma

consulta médica, a mãe do nascituro foi informada que seria quase impossível ter uma criança com a mesma

doença genética que tinha previamente tirado a vida ao seu primeiro filho. Mas, tal aconteceu de facto, e,

consequentemente, em apreciação jurisprudencial, considerou-se procedente o pedido de indemnização em

sede de danos próprios sofridos segundo a lógica do tipo de ação de “Wrongful Life”, verificando-se aqui uma

alteração quanto à situação destas ações.

Seguindo a esteira deste caso, um outro também surgiu, denominado por Becker v. Schartz em 1978,

onde a mãe deu à luz uma criança afligida pela doença conhecida por Síndrome de Down e onde se

argumentou a existência de falta de informação prestada pelo médico sobre os riscos da mãe em ter uma

criança com tal doença com a presente idade dela, como também se argumentou a falta de informação por

parte deste relativamente aos testes de amniocentese que poderiam determinar se a criança sofreria da

doença, existindo e justificando-se assim um pedido de “Wrongful Life”. Num primeiro momento, este caso foi

considerado procedente alicerçando-se no caso anterior referido mas foi posteriormente rejeitado por um

tribunal superior, que revogou a jurisprudência tanto deste caso como a do caso anterior, revertendo-se a

alteração da situação relativa às ações de “Wrongful Life”.

No entanto, continuando a tratar de casos de “Wrongful Life”, descobre-se que. em 1980, no caso

Curlender v. Bio-Science Laboratories, tal pretensão foi considerada procedente na sua generalidade.

Já em 1984, no caso Procanik by Procanik v. Cillo, em sede do Supremo Tribunal de New Jersey128

(caso este bastante parecido com o caso anterior Gleitman v. Cosgrove), mais uma vez nos deparámos com

uma situação de Síndrome da Rubéola Congénita, mas, ao contrário do caso de Síndrome da Rubéola

Congénita analisado anteriormente, aqui atribui-se razão ao pedido de “Wrongful Life” existente, atribuindo-se

uma compensação especial para as despesas médicas da pessoa em causa, embora não lhe tenha sido

atribuída compensação por quaisquer danos emocionais e/ou afetação da sua infância129.

126 Maria Canellopoulu Bottis, «Wrongful Birth and Wrongful Life Actions», European Journal of Health Law, Vol. 11, n.º 1 (2004), pp. 56 e 58.

127 Lusa Pinto César Correia de Paiva, Pretensões de Wrongful Life: Uma Alternativa aos Quadros Tradicionais da Responsabilidade Civil?, cit., pp. 13 e 14.

128 Anastasios Moraitis, «When Childbirth becomes Damage: a Comparative Overview of “wrongful birth” and “wrongful life” claims», cit., pp. 40 e 41.

129 Anteriormente a estes últimos casos, em 1973, podemos também referir o caso Roe v. Wade, unicamente pela sua concreta importância para o tema, já que foi

nesta decisão jurisprudencial que, pela primeira vez, se reconheceu o direito da mulher ao aborto, perante certos requisitos ou condições, situação essencial

para a aceitação das ações aqui referidas e tratadas, como já mencionado. Cfr. Maria Canellopoulu Bottis, «Wrongful Birth and Wrongful Life Actions», cit., pp.

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Estes últimos casos contribuíram, com a admissão da procedência da ação em causa, para uma

alteração da situação das pretensões de “Wrongful Life” e as considerações acerca delas, já que passaram a

existir casos de pretensões de “Wrongful Life” com sucesso. Contudo, apesar destes exemplos precedentes,

esta não é a regra no que concerne ao tratamento destinado às ações e pedidos de “Wrongful Life” nos EUA.

Estaríamos a errar se pensássemos que esta alteração da situação é uma alteração que modificou a

tendência geral de tratamento destas ações neste ordenamento. De facto, como regra, elas são negadas,

invocando-se as razões normalmente usadas para o fazer nestes casos, que passam pela ilógica da própria

ação e pelas considerações sobre a própria vida e a sua valorização. São negadas não só por questões de

princípio, como também como parte de política pública e por falta de preenchimento dos requisitos que se

consideram necessários para a viabilidade de uma ação de responsabilidade civil130. Em contraste, as de

“Wrongful Birth” são, em geral, atualmente, bem aceites.

O que foi até agora tratado referiu-se à admissibilidade das mencionadas ações (“Wrongful Birth” e

“Wrongful Life”). Mas não só o tratamento quanto à sua admissibilidade é importante analisar, é-o também o

tratamento quanto às compensações atribuídas e o seu montante. Resta-nos, deste modo, analisar o que

este ordenamento, a origem destas ações, considera relativamente ao montante a compensar ou indemnizar.

Existem aqui todo um leque de opiniões ou perspetivas. Quatro delas, para resumir131.

Como já se referiu, tendencialmente, a procedência e admissão das ações “Wrongful Life” é negada

dentro do ordenamento em causa. E mesmo as ações “Wrongful Birth” sofrem, certas vezes, o mesmo

destino, apesar de serem tendencialmente muito melhor aceites e admitidas. Nestes casos, qualquer

compensação é negada, obviamente. É o que se pode considerar ser a primeira perspetiva, que faz uso dos

argumentos tradicionalmente invocados para negar a procedência destas ações, tais como o valor

fundamental da vida humana, essencialmente.

Mas três mais perspetivas existem, atribuindo, cada uma delas, uma certa indemnização e

pressupondo a procedência deste tipo de pretensões (e sendo tradicionalmente pensadas e aplicadas aos

casos de “Wrongful Birth”, tendo em conta o ponto de vista dos pais). Uma delas é o completo oposto da

perspetiva que nega qualquer compensação, visto que atribui o que se pode chamar de uma indemnização

completa aos pais da criança. Esta perspetiva “generosa” indemniza-os com os custos completos com a

criança até à maioridade. Escusado será dizer que é uma perspetiva muito pouco frequentemente aplicada

(não sendo sequer aplicada na grande maioria dos casos, e, quando o é, ou quando é considerada, nunca o é

de ânimo leve).

56 e 58 e Anastasios Moraitis, «When Childbirth becomes Damage: a Comparative Overview of “wrongful birth” and “wrongful life” claims», cit., pp. 42 e 43.

130 Anastasios Moraitis, «When Childbirth becomes Damage: a Comparative Overview of “wrongful birth” and “wrongful life” claims», cit., p. 47.

131 Anastasios Moraitis, «When Childbirth becomes Damage: a Comparative Overview of “wrongful birth” and “wrongful life” claims», cit., pp. 48 a 53.

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As duas teses restantes denominam-se por tese da “benefit rule” e a tese dos “limited damages”.

A primeira destas duas estabelece a necessidade de serem levados em conta os benefícios que os

pais ganham pela sua própria paternidade, pelo facto de terem uma descendência, pela felicidade que sentem

por isso. Estes benefícios deverão ter o seu peso no cálculo da indemnização atribuída pela sua relevância.

Quanto à segunda, a tese dos “limited damages”, tal como o seu nome indica, ela procura limitar a

indemnização aos danos mais próximos do “acontecimento” em si, os custos do procedimento e do

nascimento, por exemplo. Esta é a tese mais aplicada pelos tribunais norte-americanos. Percebe-se o porquê,

já que a sua solução pressupõe uma decisão a meio-termo, que procura satisfazer em parte os interesses de

ambas as partes, em vez de uma decisão que vá de encontro a apenas uma das posições. Pode-se dizer que,

neste sentido, também não será muito diferente da tese da “benefit rule” que também acaba por limitar a

indemnização, mas que aparenta não o fazer em tão grande medida.

Relativamente às pretensões de “Wrongful Life” (e apenas estas), quando estas são admitidas, a

denotar-se uma tendência na atribuição da indemnização em causa, é a de uma tendência limitadora da

mesma, aproximando-se assim esta tendência das perspetivas referidas denominadas “benefit rule” e

“limited damages”.

b) Ordenamento Germânico

Deixando agora de parte o ordenamento norte-americano, devemos referir-nos a um ordenamento

mais próximo do nosso (nem que seja pelo mero critério geográfico): o ordenamento germânico.

Na Alemanha, quanto às ações de “Wrongful Birth” e “Wrongful Life”, caminha-se, neste

ordenamento, como é a tendência geral dos vários ordenamentos e verificou-se também no ordenamento

norte-americano, para a aceitação das primeiras e a resistência das últimas.

Refira-se aqui um caso de 1981, mais uma vez de afetação do nascituro pela presença de rubéola na

mãe do mesmo132 133, onde mais uma vez estamos perante negligência médica, visto que existiu uma falha

quanto à informação prestada à mãe do nascituro quanto aos riscos da doença na gravidez. Consumadas as

deficiências na criança após o nascimento com vida, o médico foi demandado em tribunal com pedidos de

“Wrongful Birth” e “Wrongful Life”, tanto pelos pais, como pela própria criança.

Neste caso, num primeiro momento, a pretensão de “Wrongful Birth” foi acolhida mas a de “Wrongful

Life” não. Num segundo momento, no equivalente ao Tribunal de Relação português, foram ambas as

pretensões rejeitadas. E finalmente, num terceiro momento, decidiu-se acolher, mais uma vez, a pretensão de

132 Lusa Pinto César Correia de Paiva, Pretensões de Wrongful Life: Uma Alternativa aos Quadros Tradicionais da Responsabilidade Civil?, cit, pp. 17 a 20.

133 António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português IV - Parte Geral – Pessoas, cit., 2011, pp. 346 e 347.

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“Wrongful Birth” mas rejeitar mais uma vez a pretensão de “Wrongful Life”, regressando ao que já tinha sido

decidido no primeiro momento, em sede de primeira instância (confirmando-o).

Outro caso relevante foi presente em Tribunal em 1983, desta feita sendo um caso de um nascituro

que nasceu com Síndrome de Down. Foi aqui, de certo modo, seguido o mesmo entendimento anterior,

atribuindo-se uma indemnização por “Wrongful Birth”134.

A questão adensou-se ainda mais, como refere António Menezes Cordeiro135, quando em sede

jurisprudencial constitucional alemã se considerou, em 1993, que nunca a existência de alguém pode ser

equacionado como um dano por força da previsão constitucional de dignidade intrínseca de todas as pessoas

humanas. Poderia estar aqui em causa a anterior jurisprudência, mas a posição do Tribunal Constitucional

retinha carácter não vinculativo, resultando na manutenção das posições jurisprudenciais anteriores.

Após esse momento, em nova posição por parte do tribunal constitucional alemão, a posição

sustentada aproximou-se das posições jurisprudenciais dos tribunais comuns que sustentavam que não

estaria em causa a dignidade da existência da criança, simplificando-se a questão.

De facto, no âmbito deste ordenamento, denota-se aqui um certo distanciamento entre a perceção da

atribuição da responsabilidade (e necessidade de atribuição de consequente indemnização) e a dignidade da

pessoa nascida. É deste modo que no contexto do ordenamento alemão podemos falar e adensar mais sobre

um dos problemas que aflige a aceitação das ações de “Wrongful Birth” e também as de “Wrongful Life”.

Estamos a falar do problema de se considerar (no contexto destas ações) a criança, ou o nascimento

da criança, como uma fonte de dano, o que se pode considerar a principal problemática da questão. Como

refere Anastasios Moraitis136, e como também foi já aflorado, este entendimento provoca um sufrágio de não

aceitação destas ações, uma reação quase visceral de rejeição das mesmas. Mas é no contexto deste

ordenamento (e também de outros) que se avança para além deste entendimento inicial de atentado à

dignidade da vida e do valor da mesma (que até foi sufragado, em certa altura, pelo tribunal constitucional

alemão como se viu), e se chega à conclusão que os danos nestes casos não devem ser considerados como

sendo a própria criança ou o seu nascimento, mas sim o “positiver Vermogenschaden”, a concreta e positiva

perda económica dos pais (isto no âmbito das ações de “Wrongful Birth”).

Este foi um importante contributo doutrinário, que não terá, no entanto, uniformizado as posições

existentes quanto ao assunto. Pormenorizando ainda mais a questão e evoluindo ainda mais a perspetiva,

Koziol137 esforça-se ainda por demonstrar que nem sempre num caso em que algo é considerado uma fonte

134 António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português IV - Parte Geral – Pessoas, cit., 2011, pp. 347 e 348.

135 António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português IV - Parte Geral – Pessoas, cit., 2011, pp. 348 e 349.

136 Anastasios Moraitis, «When Childbirth becomes Damage: a Comparative Overview of“wrongful birth” and “wrongful life” claims», cit., pp. 44 e 45.

137 Anastasios Moraitis, «When Childbirth becomes Damage: a Comparative Overview of “wrongful birth” and “wrongful life” claims», cit., p. 45.

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de dano se deverá entender (ou poderá considerar) que recai sobre essa coisa uma perspetiva ou um juízo

negativo, sendo assim possível e preferível a separação do valor da criança e do valor da obrigação existentes

nestes casos.

Já tratamos (brevemente) dos aspetos que consideramos mais relevantes acerca dos ordenamentos

norte-americano e germânico quanto aos seus contributos e posições quanto às ações aqui tratadas. Resta-

nos ainda tratar resumidamente de alguns concretos ordenamentos (se bem que de um modo

tendencialmente ainda mais resumido) antes de nos debruçarmos sobre o que consideramos ser de maior

importância tanto para o nosso ordenamento como para o nosso trabalho aqui realizado. Dedicaremos,

contudo, algum tempo à análise de alguns casos paradigmáticos que se verificaram no contexto de alguns

destes ordenamentos.

Falaremos então dos ordenamentos austríaco, inglês, polaco, italiano, holandês e francês e alguns

dos seus pontos de interesse ou exemplos.

c) Ordenamento Austríaco

Dentro do ordenamento Austríaco referenciamos como exemplo jurisprudencial um caso de 1999138,

decidido pelo Supremo Tribunal Austríaco onde, após não terem sido detetadas as deficiências congénitas da

criança antes do seu nascimento (por meio de ultra-sons), argumentou-se terem sido os pais impedidos (por

essa razão) de optarem por recorrer ou não à interrupção da gravidez, algo que o poderiam fazer legalmente

no caso em análise e iriam fazer (como argumentado)139. Os pedidos apresentados foram efetuados pelos

pais da criança e pela criança representada pelos pais, configurando-se assim no caso ações tanto de

“Wrongful Birth” como de “Wrongful Life”.

O Tribunal em causa decidiu conferir aos pais da criança uma compensação indemnizatória pelo

estado clínico da criança, condenando o Município de Viena e a República da Áustria a essa compensação

indemnizatória. Todos os pedidos elaborados pela criança foram no entanto rejeitados, arguindo-se a

impossibilidade de se considerar a vida da mesma como um dano, um dos fundamentos tradicionais para a

recusa.

138 Anastasios Moraitis, «When Childbirth becomes Damage: a Comparative Overview of “wrongful birth” and “wrongful life” claims», cit., pp. 41 e 42.

139 Uma questão relevante no ordenamento austríaco (e também no ordenamento germânico) será a de se analisar se o seu regime, quanto à permissibilidade da

interrupção da gravidez (em conexão com as ações em análise), será exatamente o mesmo regime que verificamos no ordenamento norte-americano. Quanto a

isto, verifica-se uma ligeira diferença, já que, no ordenamento alemão e austríaco exige-se não só, para a admissibilidade destas ações, que a interrupção da

gravidez não seja considerada relevante do ponto de vista dos ilícitos criminais, mas também que não seja relevante civilmente. Ou seja, tem que existir uma

razão fundamentada na lei para a existência da interrupção. Cfr. Anastasios Moraitis, «When Childbirth becomes Damage: a Comparative Overview of “wrongful

birth” and “wrongful life” claims», cit., pp. 43 e 44.

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Sendo assim, verificamos que também no ordenamento austríaco a tendência geral de aceitação das

ações “Wrongful Birth” se cumpre, assim como a tendência geral para a rejeição das ações “Wrongful Life”.

d) Ordenamento Inglês

Quanto ao ordenamento Inglês, encontramos também alguns pontos a realçar, salientando,

principalmente, o caso Mckay v. Essex Area Health Authority de 1982140 141.

Fixa-se, neste caso concreto, uma factualidade típica de pretensão de “Wrongful Life”, argumentando-

se a negligência do agente médico ao não informar correta e/ou completamente os pais das possibilidades de

malformações congénitas. A pretensão não foi atendida por parte do Tribunal. As razões e argumentos

invocados para tal centraram-se na impossibilidade de se comparar a vida da criança com a sua não

existência com o objetivo de se aferir os danos existentes, no facto de a afirmação de que a vida com

deficiência é menos valiosa que uma vida sem deficiência não se poder conformar com a política pública

(“public policy”), mas ainda também na possibilidade futura, vista sob um juízo negativo por parte do

Tribunal, de que, caso, fosse a pretensão julgada procedente, poderiam vir a ser demandados civilmente

agentes médicos em virtude de não sugerirem e aconselharem a interrupção da gravidez aos pais em

qualquer circunstância em que se verifique deficiências, mesmo sendo elas deficiências de grau diminuto.

Centraram-se ainda, finalmente, na possibilidade de serem os próprios pais alvos de futuros processos por

parte dos filhos caso, corretamente informados das suas opções, optassem por ter a criança, mesmo com

deficiências.

Os apontamentos do Tribunal também refletiram por fim sobre a relação do médico e o próprio

nascituro, considerando que não existe, na sua perspetiva, um vínculo legal por parte do médico para com o

nascituro que possa ser usado para justificar ou legitimar e, por fim, assegurar o seu não nascimento.

A decisão deste caso foi alcançada ainda no âmbito da chamada “common law” em virtude da

criança ter nascido anteriormente a 1976, extraindo-se daí a sua relevância, já que é em 1976 que aparece o

chamado Congenital Disabilities (Civil Liability) Act, diploma legislativo aparecido em sequência do caso

jurisprudencial referenciado e de um certo relatório denominado Report on Injuries to Unborn Children

elaborado pela Law Commission's em 1974.

O objetivo traçado por este diploma é o de, como refere Paulo Mota Pinto142, delimitar a compensação

indemnizatória atribuída aos pais das crianças que se encontram nas situações previstas das ações referidas

140 Lusa Pinto César Correia de Paiva, Pretensões de Wrongful Life: Uma Alternativa aos Quadros Tradicionais da Responsabilidade Civil?, cit, pp. 15 a 17.

141 Paulo Mota Pinto, «Indemnização em caso de “nascimento indevido” e de “vida indevida” (“wrongful birth” e “wrongful life”)», cit., pp. 923 e 924.

142 Paulo Mota Pinto, «Indemnização em caso de “nascimento indevido” e de “vida indevida” (“wrongful birth” e “wrongful life”)», cit., pp. 923 e 924.

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e, mesmo em relação a estes, excluir “a perda económica que resulta do custo de educar uma criança”,

apesar de se lhes atribuir uma compensação nos casos de deficiências graves relativamente às suas

despesas adicionais, como se verifica por exemplo nos casos Parkinson v. St. James and Seacroft University

Hospital NHS Trust, Rand v. East Dorset Health Authority e Rees v. Darlington Memorial Hospital NHS Trust.

Deste modo, foi elaborada neste ordenamento e aplicada legislação que vem no sentido da tendência

geral global já anotada neste trabalho. A de aceitação das ações denominadas por “Wrongful Birth” e rejeição

das denominadas por “Wrongful Life”.

e) Ordenamento Polaco

Falemos agora do ordenamento polaco e os pontos mais relevantes do mesmo.

Doutrinalmente, neste ordenamento, como nos refere Ewa Baginska143, a tendência geral tem sido a

de recusar o sucesso deste tipo de ações, todas elas. Mas não se trata de uma posição unânime, havendo

autores a defender outros pontos de vista. De facto, Tomasz Justynsky144, por exemplo, nos seus estudos

acerca do sistema de direito polaco e a possibilidade da existência destas ações no seu contexto, defende o

sucesso das mesmas, pelo menos de um ponto de vista teórico, com a exceção da mais polémica, a tratada

por “Wrongful Life”, que considera não se coadunar com o sistema jurídico polaco.

Jurisprudencialmente, e apesar da posição da doutrina considerada mais dominante, a posição dos

tribunais polacos parece, no entanto, mais próxima da doutrina minoritária, ou seja, tendencialmente aceita-se

na jurisprudência polaca, pelo menos, o sucesso das ações de “Wrongful Birth”, embora já não se possa

referir o mesmo para as ações de “Wrongful Life”, como podemos constatar em casos específicos julgados

pelo Supremo Tribunal Polaco145.

Afigura-se assim uma inversão da tendência dominante quando comparada a doutrina polaca com a

jurisprudência polaca.

De facto, em casos de “Wrongful Birth”, parecem ainda subsistir dúvidas quando à sua aceitação e

admissão do seu sucesso mas, na falta de uma posição unânime quanto a esta pretensão, verifica-se a

tendencial aceitação da mesma, como é regra na maioria dos ordenamentos que já se debruçaram sobre a

temática. Refletindo sobre o caso conhecido como caso “Lomzynska” de 2005, a tendência revela-se

consubstanciada e aparente.

In casu, a mãe do nascituro em discussão, tinha já sido mãe de uma primeira criança, tendo esta

143 Ewa Bagi ska, «The Liability for Wrongful Conception and Wrongful Birth in Polish Law», ń cit., pp. 41 e 42.

144 Como menciona Ewa Bagi ska. Cfr. Ewa Bagi ska, «The Liability for Wrongful Conception and Wrongful Birth in Polish Law», ń ń cit., p. 41.

145 Ewa Bagi ska, «The Liability for Wrongful Conception and Wrongful Birth in Polish Law», ń cit., pp. 45 a 48.

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nascido com uma doença genética grave. Isto levou a mulher a recorrer a conselho médico quando mais uma

vez engravidou, pretendendo recorrer à interrupção da gravidez caso existisse séria probabilidade de o mesmo

acontecer. Todavia, o médico ao qual recorreu, após ter feito um chamado scan regular (e não um

procedimento especializado de deteção para o efeito pretendido), e tirado apontamentos sobre a condição da

paciente, nada mais fez para além do referido, nem foi o seu caso seguido ou transferido para outro hospital

para mais análises e diagnósticos.

O resultado final foi o de se ter elapsado o período temporal em que a lei polaca admite o recurso à

interrupção da gravidez antes da mãe ter recorrido a nova consulta médica noutros hospitais,

impossibilitando-a assim de aferir o estado do seu feto e optar pela interrupção da gravidez ou não em tempo

útil.

Deste modo, já em sede do Supremo Tribunal Polaco, é concedida razão aos pais da criança, que

tinham demandado tanto o médico, como o hospital e o diretor do hospital e é atribuída uma compensação

indemnizatória pelos custos acrescidos do sustento da criança com deficiência. Na opinião do Tribunal,

existiu, in casu, uma relação clara entre o modo de agir, a atuação do médico e do hospital em causa, e o

que se considera ser a perda sofrida pelos pais, justificando a procedência da pretensão.

Em matéria dos danos e dos tipos de danos146 a atribuir no âmbito das ações de “Wrongful Birth”, tal

como noutros ordenamentos, a discussão neste ordenamento prevalece maioritariamente sobre a questão

dos danos patrimoniais, havendo poucas dúvidas sobre a existência legítima de danos não patrimoniais e a

legitimidade de uma compensação indemnizatória para e segundo os mesmos.

Para os danos patrimoniais nos caso aqui tratado de “Wrongful Birth”, o que se estabeleceu

jurisprudencialmente foi o seguinte: estabeleceu-se a diferença entre os custos acrescidos existentes devido

às necessidades especiais da criança com deficiência e os custos existentes “normais”, que não provêm da

sua deficiência. Por critério do Tribunal, só os primeiros relevarão para efeitos da compensação indemnizatória

como danos patrimoniais. Esta solução não é, no entanto, imune a certas dúvidas.

Como nos refere Ewa Bagi skań 147, aqui o que se compara (em abstrato) é a situação em que os pais

ficariam caso tivesse existido a interrupção da gravidez comparada com a situação em que se encontram de

facto, e não a situação em que se encontram de facto comparada com uma situação apenas académica onde

eles poderiam ter um filho saudável em substituição do seu filho real. Denota-se portanto o propósito de se

restringir a indemnização concedida, mas estranha-se o critério e a argumentação onde ela assenta.

Vários autores polacos, incluindo Ewa Bagi skań 148, devido às dúvidas ainda existentes quanto a estas

146 Ewa Bagi ska, «The Liability for Wrongful Conception and Wrongful Birth in Polish Law», ń cit., p. 48.

147 Ewa Bagi ska, «The Liability for Wrongful Conception and Wrongful Birth in Polish Law», ń cit., pp. 48 e 49.

148 Ewa Bagi ska, «The Liability for Wrongful Conception and Wrongful Birth in Polish Law», ń cit., pp. 41, 42 e 49.

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matérias, defendem a intervenção do legislador polaco. É de se compreender tal opinião pois, caso o

legislador interviesse na matéria, seria conferido um muito maior grau de certeza ao próprio cidadão comum

polaco quanto a estas situações e também se preveria uma sanação da maioria das disputas doutrinais

quanto à temática.

f) Ordenamento Italiano

Em Itália, por sua vez, vários casos chegaram às instâncias jurisprudenciais do país 149, entre eles os

casos de 10 de Maio de 2002, e 29 de Julho de 2004. Em todos eles foi admitida uma compensação

indemnizatória aos pais ou, dito de outra forma, admitiu-se a procedência das pretensões de “Wrongful Birth”

que estavam em causa.

Especificamente, no primeiro caso, num caso em que o agente médico falhou na realização do

diagnóstico pré-natal de modo a possibilitar a deteção de uma malformação no feto, foi atribuída uma

indemnização tanto por danos não patrimoniais como por danos patrimoniais.

No segundo caso, esteve em questão tanto um pedido de “Wrongful Birth” como um pedido de

“Wrongful Life”. Foi reconhecida a admissibilidade e procedência do pedido de “Wrongful Birth”, como no

caso anterior, sendo atribuída uma indemnização compensatória aos pais. Mas não teve o mesmo destino a

pretensão invocada de “Wrongful Life”, seguindo-se, mais uma vez, a tendência geral dos vários

ordenamentos de rejeição desta pretensão. Concretamente, pode-se referir que, nesta decisão, rejeitou-se um

eventual “diritto a non nascere”, sendo da opinião do tribunal que seria essa uma das questões em causa

caso se optasse pela procedência deste tipo de ação.

g) Ordenamento Holandês

Um dos casos mais reconhecidos internacionalmente, denominado por caso Kelly Molenaar150 151 152

ou “baby Kelly”, provém do ordenamento Holandês, tendo gozado de significativa importância dentro deste

específico ordenamento e também no contexto internacional. Tal importância e reconhecimento provém da

invulgaridade da decisão jurisprudencial em causa já que, em desintonia com a tendência global, foi, neste

caso, julgada e reconhecida a admissibilidade e procedência das pretensões de “Wrongful Birth” e “Wrongful

149 Paulo Mota Pinto, «Indemnização em caso de “nascimento indevido” e de “vida indevida” (“wrongful birth” e “wrongful life”)», cit., pp. 924 e 925.

150 Lusa Pinto César Correia de Paiva, Pretensões de Wrongful Life: Uma Alternativa aos Quadros Tradicionais da Responsabilidade Civil?, cit, pp. 20 a 22.

151 Vanessa Cardoso Correia, «Wrongful Birth e Wrongful Life: de Nicolas Perruche a Kelly Molenaar (comentário)», Sub Judice, n.º 38 (2007), pp. 104 e 105.

152 Paulo Mota Pinto, «Indemnização em caso de “nascimento indevido” e de “vida indevida” (“wrongful birth” e “wrongful life”)», cit., p. 925.

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Life” apresentadas perante o tribunal.

Analisemos.

In casu, estamos perante a apreciação das circunstâncias que precederam o nascimento de Kelly

Molenaar. A sua mãe, previamente à gravidez de Kelly, tinha já sofrido dois abortos instantâneos. Tal facto era

revelador de uma propensão genética preocupante ou, pelo menos, era fundamento para um grande receio e

apreensão por parte da mãe de Kelly o que a motivou a recorrer a uma consulta médica no Hospital

Académico de Leiden e solicitar um diagnóstico pré-natal quando se encontrou grávida de Kelly.

Tal procedimento, como se veio a saber, era adequado e eficaz a detetar o problema genético aqui em

causa, pelo que teria com toda a probabilidade detetado o problema, caso fosse realizado. Foi-lhe, no entanto,

recusado tal procedimento pela médica obstetra a quem ela recorreu, com o fundamento que tal diagnóstico

só lhe seria indicado caso já tivesse sofrido três abortos instantâneos, e não apenas dois.

Como resultado, não foi feito qualquer diagnóstico pré-natal como era o propósito da mãe, nem foram

os pais reencaminhados para qualquer outra consulta, nomeadamente de aconselhamento genético, nesse

hospital ou noutro serviço de saúde.

Assim nasceu Kelly Molenaar, pouco tempo depois, encarnando os receios da mãe, padecendo de

uma doença genética muito grave que lhe provocou uma série de deficiências gravíssimas. Assim sendo, Kelly

é autista, ouve e vê mal, não consegue falar nem andar, mal reconhece as pessoas e tem asma, insuficiência

cardíaca e alterações intestinais frequentes. Foram já necessárias várias cirurgias e a sua existência é uma de

sofrimento constante e choro causado pelas suas dores.

A opção dos pais, confrontados com a situação, foi portanto recorrer à justiça holandesa. Para

cumprimento desse propósito foram instaurados ações judiciais com pedidos congruentes com as ações de

“Wrongful Birth” e “Wrongful Life”, em seu nome e em nome da criança nascida.

Num primeiro momento, apenas a procedência do pedido de “Wrongful Birth” foi aceite pelo tribunal.

Considerou-se provada a negligência da médica e a sua responsabilidade civil perante os danos causados aos

pais da criança. Estabeleceu-se que haveria em causa um determinado interesse da mãe em interromper a

mencionada gravidez, possibilidade essa afastada pela negligência comprovada. Foi-lhes concedido então

uma compensação indemnizatória por danos patrimoniais e danos não patrimoniais, condenando-se tanto o

hospital como a médica em causa. Mas a procedência da pretensão de “Wrongful Life” foi negada nesta

primeira instância.

Inconformados os pais, a decisão seguiu para os tribunais superiores.

Já em sede de segunda instância, o desejo dos pais de Kelly é atendido pelo tribunal e é também

considerado procedente o pedido por “Wrongful Life”. Para chegar a tal conclusão o tribunal argumentou aqui

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que Kelly, enquanto nascitura, previamente ao seu próprio nascimento, era já parte numa relação contratual

estabelecida entre ela e o hospital/médico, existindo assim deveres contratuais por parte do hospital e do seu

médico perante ela como nascitura, e serão estes deveres contratuais que fundamentam a responsabilidade

civil destes perante Kelly e os seus danos.

O caso não ficou decidido em segunda instância, todavia. A decisão seguiu em frente na via

jurisprudencial, mais uma vez, por via de recurso, devido à inconformação da parte contrária. Mas, desta

feita, chegada ao “Hoge Raad”, em 18 de Março de 2005, a decisão da segunda instância não se alterou,

antes manteve-se, confirmando-se a decisão.

O Hospital e a médica foram assim condenados, não possuindo qualquer outra escolha que não a de

seguir a decisão do tribunal e pagar, aos pais de Kelly, as despesas médicas relevantes, as despesas com o

sustento de Kelly até aos seus 21 anos de idade e uma compensação pelos danos não patrimoniais

resultantes da violação do que se considera ser os seus direitos de autodeterminação familiar. Incluiu-se

ainda, na compensação indemnizatória atribuída, as despesas sofridas pela mãe de Kelly nas consultas e

tratamentos psiquiátricos (tornadas necessárias perante a sua situação) e finalmente também uma

compensação destinada à própria Kelly para o ressarcimento dos seus próprios danos não patrimoniais.

Por fim, merece ainda uma referência outro caso anterior, julgado pelo mesmo tribunal (o “Hoge

Raad”) de 21 de Fevereiro de 1997, onde já era considerado admissível a compensação indemnizatória pelos

danos não só dos pais, como também pelos danos da própria criança, como nos refere Paulo Mota Pinto153,

provando que esta linha de raciocínio jurisprudencial não foi um caso único ou um mero acaso no

ordenamento holandês.

h) Ordenamento Francês

No ordenamento Francês154 155 encontramos aquele que deve ser o caso mais paradigmático e

reconhecido internacionalmente deste tipo de ações, talvez ainda mais que o caso anterior. Tal como o caso

Kelly Molenaar, mais uma vez estamos perante um caso de admissão de uma pretensão de “Wrongful Life”, o

tipo de ação mais polémica das aqui referidas e aquela que se pode considerar menos bem aceite.

Sendo assim, tal como o caso Kelly Molenaar, o caso que ficou conhecido como o caso “Arrêt

Perruche” adquire a sua notoriedade em virtude da sua invulgaridade e polémica.

No entanto, ao contrário do caso holandês, pode-se dizer que este caso terá provocado uma reação

153 Paulo Mota Pinto, «Indemnização em caso de “nascimento indevido” e de “vida indevida” (“wrongful birth” e “wrongful life”)», cit., p. 925.

154 Paulo Mota Pinto, «Indemnização em caso de “nascimento indevido” e de “vida indevida” (“wrongful birth” e “wrongful life”)», cit., pp. 919 a 921.

155 Vanessa Cardoso Correia, «Wrongful Birth e Wrongful Life: de Nicolas Perruche a Kelly Molenaar (comentário)», cit., pp. 102 e 103.

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ainda mais empolada no seu correspondente ordenamento. De facto, este caso está na origem de uma reação

e de uma mudança legislativa na França, o que só comprova as repercussões trazidas pela decisão.

Igualmente, a nível internacional, o seu efeito foi bastante significativo, como já referido, sendo

bastante referenciado na Europa, incluindo no ordenamento português, mas não só.

Partamos para a sua análise.

Esta decisão jurisprudencial dos tribunais franceses admitiu de facto a atribuição de uma

compensação indemnizatória pelo nascimento de uma criança com deficiência à própria criança,

considerando pois, o seu próprio nascimento como um prejuízo indemnizável, trazendo à tona toda a polémica

que este tipo de ações é capaz de trazer e contrariando a perspetiva maioritária dos tribunais europeus e do

resto do mundo quanto a este tipo de ação.

Estava em causa o caso de um rapaz, já com dezassete anos na altura, chamado Nicholas Perruche,

com cegueira parcial, problemas cardíacos, surdez e grave atraso de desenvolvimento em consequência de

rubéola contraída pela sua mãe enquanto ela ainda se encontrava grávida dele, sendo, portanto, um caso

semelhante aos aqui já tratados a propósito do ordenamento norte-americano na sua factualidade, mas não

completamente correspondente.

Distingue-se na sua factualidade dos casos já tratados por, na altura, a mãe ter sido informada,

erradamente e por mais do que uma vez, nomeadamente duas, tanto pelo seu médico como pelo laboratório

que procedeu à sua análise, que não se encontrava sequer infetada com a doença, apesar das suspeitas da

mãe de que estaria, e não apenas que a doença não afetaria a criança como aconteceu nos casos anteriores.

De um modo mais concreto podemos referir que foram-lhe feitas três análises ao sangue com o

objetivo de despistar doenças como a rubéola por vontade e insistência da mãe. No primeiro exame, nada foi

detetado, mas em ambas as análises seguintes foi detetada a presença de anti-corpos. Apesar disso, foi

considerado que a mãe não estaria doente, que não estaria infetada por rubéola (em tom de aparte, neste

caso, pode-se dizer que a negligência existente talvez tenha sido ainda mais grosseira que nos casos

anteriormente referidos neste trabalho já que foram incapazes de identificar e informar a mãe da doença de

que padecia e que a afetava apesar das diferentes análises, pese embora as dificuldades que qualquer juízo

comparativo encontra quando, ao final de contas, estamos perante casos que não se correspondem na

perfeição).

A mãe de Nicholas estava bem informada quanto aos possíveis efeitos da doença em causa num

nascituro por ter anteriormente passado por dificuldades semelhantes e chegou até a informar o seu médico

que pretendia interromper a gravidez caso se se confirmasse que tinha contraído a doença, não o tendo feito,

única e exclusivamente devido a ter sido assegurada pelo seu médico que não estava doente.

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Foi neste contexto que o nascituro nasceu e, encontrando-se a mãe efetivamente infetada com a

doença aquando da gravidez, o nascituro nasceu de facto com as mencionadas deficiências.

Tendo sido levado o caso à justiça francesa, e sido demandados o médico e o laboratório,

instauraram-se duas ações distintas para o efeito, uma com pretensão de “Wrongful Birth” e outra

consubstanciando-se numa pretensão de “Wrongful Life”.

Em primeira decisão jurisprudencial, no tribunal de grande instance de d'Evry, julgaram-se

procedentes as referidas pretensões e reconheceu-se a responsabilidade dos demandados no caso,

atribuindo-se uma compensação indemnizatória à criança pelos seus danos. Contudo, em recurso da mesma

para a Cour d'appel de Paris, a decisão é indeferida, julgando-se não haver relação causal entre a condição de

Nicolas e atuação médica no caso, desmontando-se a possibilidade de estabelecimento de responsabilidade

civil.

Finalmente, um novo recurso interposto para a “Cour de Cassation” veio a confirmar a procedência

das pretensões, tanto de “Wrongful Life” como de “Wrongful Birth”, atribuindo-se o direito de compensação

indemnizatória à criança, entendendo o tribunal que se encontravam preenchidos os pressupostos da

responsabilidade civil e que existia a necessária relação entre a atuação médica e o estado de Nicolas para tal

responsabilidade, uma vez que é essa atuação que permite que Nicolas nasça e impossibilita a mãe de optar

pela interrupção da gravidez, o que teria com certeza feito não fosse a atuação do médico e do laboratório.

Em suma, admitindo-se a procedência de uma ação com uma pretensão de“Wrongful Life” pela primeira vez

neste ordenamento.

A importância desta decisão não deve ser menosprezada pois foi precisamente esta decisão da “Cour

de Cassation” que, de certo modo, trouxe estas questões à discussão em vários outros ordenamentos

jurídicos, sempre envolta em polémica, contribuindo decididamente para o estudo da temática.

Ainda em França, a decisão não escapou a fortes e imediatas críticas dos mais variados grupos e

interessados das quais podemos destacar o que foi escrito a esse respeito em relatório do “Conseil Consultatif

National d`Éhtique”. Opondo-se à decisão Perruche, este organismo critica-o argumentando que a admissão

de um direito a não nascer possibilita outro tipo de considerações que poderão resultar na responsabilidade

destravada tanto dos médicos como dos pais pelo nascimento da criança.

Do mesmo modo, nos seus argumentos de crítica, afirma também que a determinação e fixação de

um certo limite de gravidade de uma deficiência de um feto considerado anormal, a partir do qual se pode

legitimar a eliminação desse feto considerado anormal (fazendo uso desse limite como critério para tal

eliminação do feto), sem mais considerações (sem considerar sequer a opinião da mãe quanto ao assunto),

não é algo que deva ser estipulado ou usado, ofendendo-se os princípios bio-éticos pelos quais estes casos se

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devem nortear.

Este mesmo organismo exalta também o poder e o dever da própria sociedade de, por si só, resolver

casos semelhantes a este, através da ajuda aos mais carenciados para que a opção de uma mãe nesta

situação em ter, criar e sustentar a criança (ou não) não seja apenas uma opção influenciada pela vertente

económica.

Não se verificam só aqui as críticas mais relevantes, contudo. Até mesmo a Cour d'Appel (tribunal

inferior) parece não aceitar tal decisão, continuando a aplicar a lógica jurisprudencial que já tinha aplicado

como segunda instância no caso Perruche, continuando a considerar incumprido o requisito do nexo de

causalidade da responsabilidade civil nos seus casos.

Inabalável, e apesar da contestação e crítica, o tribunal (Cour de Cassation) continuou a seguir o seu

mesmo entendimento em casos seguintes julgados por ele em Julho e Novembro de 2001, aumentando e

fomentando a contestação e polémica, embora tenha optado por completar o seu entendimento nestes casos,

estipulando que a sua jurisprudência é também aplicável a crianças nascidas com Síndrome de Down, não se

limitando a crianças com o Síndrome da Rubéola Congénita, e referindo que o seu entendimento só poderá

ser considerado aplicável aos casos em que a interrupção da gravidez por parte da mãe poderia ser feita

dentro do âmbito da lei (ou seja, nos casos em que a própria lei permite tal interrupção, restringindo-se assim

a sua jurisprudência apenas a esses casos).

A polémica continuou imparável e como já referido, originou uma forte reação no país nos mais

variados grupos de interessados. Tão forte, que até os médicos franceses, como grupo, acharam necessário

ameaçar entrar em greve contra a jurisprudência Perruche.

Compreende-se assim que, aos olhos do legislador Francês, a sua intervenção tornou-se necessária.

Foi então que foi elaborada a Lei n.º 2002-303, de 4 de Março de 2002, conhecida por Lei “Kouchner”.

Esta Lei veio contrariar as decisões jurisprudenciais seguidas até aí na esteira do caso Perruche,

estabelecendo desde logo, no seu artigo 1.º, n.º 1, que o próprio nascimento não pode nunca ser invocado

como um prejuízo, negando pois o próprio conceito de “Wrongful Life” e sanando a polémica com força de lei.

É também estipulado nesta Lei (e exigido por ela) uma causalidade direta entre os danos da criança e

a atuação do agente médico, com uma correspondência necessária e direta entre as duas, mostrando-se

assim uma predileção pela jurisprudência da Cour d'Appel em detrimento da de Cour de Cassation já

mencionada.

Todavia o impulso legislativo não se ficou por aí, tendo-se tratado também da questão do “Wrongful

Birth”.

De facto, refere a mencionada Lei que no caso de negligência, omissão ou erro por parte e por culpa

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do médico que resulte na não deteção de uma deficiência durante a gravidez, existindo em seguida o

consequente nascimento, será lícito os pais da criança exigirem uma indemnização dos médicos considerados

responsáveis, mas tal indemnização, exigida aos agentes médicos em causa, nunca poderá ser uma

indemnização compensatória que inclua os encargos dos pais com o filho com deficiência ao longo da sua

vida. Antes, esses encargos só serão suportados pelo sistema nacional de saúde francês, extraindo-se

propositadamente a problemática do campo da responsabilidade civil e deixando que o suprimento das

necessidades destes casos sejam totalmente suportados pelo Estado Social, verificando-se aqui uma certa

influência do entendimento plasmado no relatório do “Conseil Consultatif National d`Éhtique”.

Conclui-se assim que a tendência francesa de aceitação de procedência das ações com pretensões

de “Wrongful Life” não se manteve, sendo fortemente criticada e contrariada por meio da intervenção do

legislador. A perspetiva legislativa vigente na Lei “Kouchner” é a que se pode considerar correspondente à

tendência maioritária do panorama internacional: rejeição das ações “Wrongful Life” e aceitação das ações

“wrongful birth”, mas com algum tipo de limitação da compensação indemnizatória e dos danos. No caso

francês, esta limitação traduz-se na não inclusão dos encargos parentais com o sustento do filho ao longo da

sua vida na indemnização exigida dos médicos considerados responsáveis e atribuída aos pais da criança,

relegando-se tais custos para o sistema nacional de saúde francês (prejuízo da “solidariedade nacional”).

Referiu-se que a imposição da chamada Lei “Kouchner” sanou a polémica causada pela

jurisprudência Perruche com força de lei, mas tal não aconteceu por completo.

De facto, a problemática introduzida pela jurisprudência Perruche inflamou a discussão desta

questão, não havendo uma única posição de contestação ou de aceitação, mas sim várias. Deste modo,

também a Lei “Kouchner” causou uma certa reação adversa por parte dos grupos que não concordaram com

a solução imposta, provando que, mesmo quando a questão é resolvida por força da via legislativa, as dúvidas

e as diferenças de opinião quanto à pretensão e a situação em causa permanecem, um verdadeiro atestado

de força à sua polémica.

Entre as críticas, destacam-se as opiniões doutrinárias que se insurgiram contra a mencionada

legislação, referindo-nos a contradição existente no estabelecimento de regimes distintos para casos com uma

factualidade exatamente igual, cujas únicas distinções ao nível jurídico resumem-se a quem interpõe a ação e

ao modo como se exige a compensação (os pais da criança, a título próprio, a exigir a compensação pelos

seus danos, ou os pais, em representação da criança, a exigir a compensação pelos danos da criança), e

ainda acusando a legislação de providenciar um regime de responsabilidade civil para os agentes médicos

mais favorável a eles que a regra geral de responsabilidade civil (neste âmbito).

Para além de tais dúvidas doutrinárias, esta Lei também sofreu contestação ao nível da sua própria

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aplicação concreta. Apesar de se estabelecer nesta Lei um regime de “solidariedade nacional” para o

tratamento de casos similares aos tratados, ainda não existiam os meios ou a estrutura para a aplicação de

um regime desse género a casos similares a estes no momento em que a jurisprudência começou a aplicar o

plasmado na mencionada Lei, empolando a contestação também a este nível (sendo até exigida a sua

revogação por vários grupos).

5.3.2. Caso Português

Até agora analisamos a origem, evolução e tratamento destas determinadas ações ou pretensões em

vários ordenamentos jurídicos. Por muito importante que seja essa análise para compreendermos o contexto

em que estas surgem, a sua importância e para onde poderá caminhar o tratamento conferido a elas no

futuro, ainda mais importante para nós será verificar como tais ações são tratadas e o que existe sobre elas

no nosso próprio ordenamento, isto tanto em sede doutrinária como em sede jurisprudencial.

a) Sede Jurisprudencial

Em sede jurisprudencial a análise prende-se fatalmente com um caso, decidido pelo Supremo

Tribunal de Justiça, em 19 de Junho de 2001156 157 158 159 . Nesta data, o Supremo Tribunal de Justiça julgou

improcedente uma pretensão de “Wrongful Life”, a qual já tinha sido julgada improcedente em primeira e

segunda instâncias.

Em causa estava André Filipe160 e as circunstâncias que antecederam o nascimento deste, enquanto a

sua mãe se encontrava grávida dele.

A mãe de André Filipe possuía uma malformação no útero e tinha já feito uma cesariana numa

gravidez anterior. Esses factos eram do conhecimento do médico (réu na ação referida) e que acompanhou a

mãe de André Filipe tanto na sua primeira gravidez como na sua segunda gravidez.

Durante o acompanhamento médico da gravidez da mãe de André Filipe (quando esta estava grávida

dele), esta realizou uma ecografia num gabinete de radiologia (também ré na ação referida) e entregou-a,

juntamente com o respetivo relatório, ao médico que a acompanhava.

156 António Pinto Monteiro, «Direito a não nascer? (Anotação ao Acórdão do STJ de 19 de Junho de 2001)», Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 134, n.º

3933, (2002), pp. 371 a 384.

157 Vanessa Cardoso Correia, «Wrongful Birth e Wrongful Life: de Nicolas Perruche a Kelly Molenaar (comentário)», cit., p. 104.

158 Paulo Mota Pinto, «Indemnização em caso de “nascimento indevido” e de “vida indevida” (“wrongful birth” e “wrongful life”)», cit., pp. 925 a 927.

159 António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português IV - Parte Geral – Pessoas, 3ª edição, Coimbra, Almedina, 2011, pp. 349 e 350.

160 Que veio a nascer com variadas malformações.

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Este, através da ecografia e do relatório, informou os pais de André que estava tudo bem com a

gravidez, mas, no entanto, considerou-a uma gravidez de risco, parecendo estar o volume uterino inferior à

idade gestacional (determinada ecograficamente), e aconselhou nova ecografia no mesmo gabinete.

Embora a atuação mencionada do médico tenha sido, abstratamente, correta, não se pode considerar

que tenha sido totalmente correta, respeitando totalmente “praxis clínica”, já que este não solicitou a

realização de outros exames mais específicos para aferir, nomeadamente, das medições embrionárias

(mediante medição do comprimento do fémur), que desde logo, demonstraria malformações no feto.

O médico limitou-se, de facto, a apenas solicitar mais quatro ecografias durante a gravidez, as quais

foram realizadas pela ré, e não apontaram qualquer anomalia com André.

Os pais de André só tomaram conhecimento das malformações do filho aquando do nascimento

daquele, tendo este nascido, de facto, com malformações. Argumenta-se portanto que se não fosse a má

praxis profissional do réu e do comissário da ré, que sabiam tratar-se de uma gravidez de risco, ter-se-ia

evitado o nascimento de uma criança com deficiência que terá de suportar e lidar com a sua condição

durante toda a sua vida161. Com efeito, se a mãe de André tivesse sido devidamente informada das

malformações, teria podido recorrer à interrupção voluntária da gravidez (não punível na situação concreta por

força do disposto em lei penal no artigo 142.º do Código Penal), fundamento que é invocado por ela na ação

judicial em causa, sendo garantido por ela que teria realmente optado por tal faculdade caso tivesse

conhecimento de todos os factos (e não tivesse sido impossibilitada de optar por esse caminho em virtude da

atuação médica em causa).

Perante tal factualidade, André, menor, representado pelos seus pais, intenta uma ação pedindo uma

indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, causados pelo médico e pela clínica, configurando-

se uma pretensão de “Wrongful Life”.

Havendo absolvição dos réus em primeira e segunda instâncias, os pais, em representação do seu

filho, recorrem para o Supremo Tribunal de Justiça que julga improcedente a ação, apresentando, em suma,

três fundamentos:

– Primeiro, não se verificou a responsabilidade civil dos réus pelos danos sofridos pelo autor uma

vez que a conduta omissiva por parte dos mesmos não foi nem causa nem condição adequada e

típica das malformações sofridas pelo autor. Conclui-se que se a conduta dos mesmos tivesse

sido outra, verificariam-se exatamente as mesmas malformações. Ou seja, não se considerou

existir nexo de causalidade entre a conduta e o dano, mas apenas um nexo de causalidade que

161 André está, por exemplo, dependente de terceiros para se locomover e praticamente não possui funcionalidade na mão direita.

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se estabelece entre a atuação médica e a possibilidade dos pais recorrerem à interrupção da

gravidez;

– Em segundo, fundamenta-se que em bom rigor não existe conformidade entre pedido e causa de

pedir. O autor invoca danos por si sofridos mas invoca a sua indemnização com base na

supressão da faculdade que os pais teriam em interromper a gravidez. O que implica que quem

teria de formular o pedido de indemnização seriam os pais, admitindo-se que existe nexo de

causalidade entre a conduta médica e a faculdade que os pais teriam em interromper a gravidez,

e que existe culpa dos médicos, não por terem causado as malformações ou por não terem

conseguido a cura , mas por não terem usado todos os conhecimentos, diligências e cuidados

que a profissão exige162 e com os quais seria possível informar os pais das malformações do feto;

– Por último, conclui que existe, no âmbito do direito de personalidade, o direito à vida. O qual deve

ser respeitado pelo próprio titular do direito. Não reconhecendo a nossa ordem jurídica qualquer

direito a eliminar a própria vida, o autor, não pode invocar o direito à não existência. Ainda que a

ordem jurídica o admitisse, este não pode ser exercido pelos pais em nome do menor. Somente

este, quando for maior, poderá concluir se devia ou não existir. O poder-dever que constitui o

poder paternal e a representação dos pais para suprir a incapacidade do filho não servem para

decidir do eventual direito que ele possa ter à não existência163.

Desta forma, o Supremo Tribunal de Justiça, como afirmam António Pinto Monteiro164 e Paulo da Mota

Pinto165, e como se verificou pelo estudo breve dos restantes ordenamentos, decide em conformidade com a

doutrina estrangeira dominante. Ou seja, parece inclinar-se para a admissibilidade de uma pretensão de

“Wrongful Birth” (e correspondente indemnização aos pais da criança) e parece rejeitar a hipótese de uma

pretensão “Wrongful Life” (pelo menos quando tipicamente configurada).

b) Sede Doutrinal

Na nossa doutrina, e em comentário à decisão jurisprudencial analisada (mas não só), vários autores

162 O dever de informação é um dever lateral do contrato médico e encontra-se consagrado no Código Deontológico dos médicos, nomeadamente no artigo 4.º.

163 Vanessa Correia afirma que esta decisão do Supremo Tribunal de Justiça deixa em aberto a admissibilidade de uma ação de “Wrongful Birth”, intentada pelos

pais da criança, por danos por eles próprios sofridos, assim como deixa em aberto a eventualidade de uma ação de “Wrongful Life”, intentada pelo criança,

quando este atingir a maioridade. Cfr. Vanessa Cardoso Correia, «Wrongful Birth e Wrongful Life: de Nicolas Perruche a Kelly Molenaar (comentário)», cit., p.

104.

164 António Pinto Monteiro, «Direito a não nascer? (Anotação ao Acórdão do STJ de 19 de Junho de 2001)», Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 134, n.º

3933, (2002), pp. 381 e 382.

165 Paulo Mota Pinto, «Indemnização em caso de “nascimento indevido” e de “vida indevida” (“wrongful birth” e “wrongful life”)», cit., p. 927.

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portugueses tomaram uma posição quanto à possibilidade de admissibilidade e sucesso deste tipo de ações

no ordenamento português.

Antes de tecermos as nossas próprias considerações e apresentarmos a nossa tomada de posição

quanto a estas ações, estudemos brevemente a posição de alguns destes autores, os quais pensamos ser

importante e relevante tratar individualmente neste trabalho (tanto devido à sua posição quanto à temática,

como pelos seus argumentos apresentados).

ba) António Pinto Monteiro

António Pinto Monteiro, em anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Junho de

2001166, tece algumas considerações e algumas questões sobre o tema aqui em apreço.

Com efeito, este autor considera que a decisão do Supremo Tribunal de Justiça trouxe um “apport

important” que consiste em descobrir-se se, no caso de se admitir um direito de não existência à criança,

este pode ser exercido pelos pais em representação do filho menor ou incapaz, ou se este devia ser exercido

pela criança quando atingisse a maioridade ou atingisse a capacidade de discernimento necessária.

Isto, acrescenta o autor, leva-nos a considerar que, conforme se opte por uma ou por outra hipóteses,

levantar-se-ão vários problemas: poderá haver contradição entre a decisão que cabia aos pais (quanto à

interrupção da gravidez) e a avaliação posterior da criança, de que dependerá o exercício do direito à não

existência; poderá haver, de igual modo, contradição entre a decisão de não interromper a gravidez por parte

dos pais (ainda que esclarecida) e o juízo da criança enquanto maior; ou será que os casos de conflito de

interesses entre o menor e os seus representantes não deveria ser ultrapassado pelo tribunal, estando o

pedido indemnizatório dependente da autorização deste último, tal como sucede nos casos do artigo 1889.º

do Código Civil?

Por outro lado, o autor considera que, neste caso, pode ser ultrapassada a questão da

desconformidade entre o pedido e causa de pedir através da figura do contrato com eficácia de proteção para

terceiros proveniente da doutrina alemã. Na verdade, através deste contrato estar-se-ia a proteger o filho do

casal como terceiro beneficiário do contrato celebrado entre os pais (ou um deles) e o médico, no caso de

incumprimento ou incumprimento defeituoso do contrato.

Todavia, o autor deixa um alerta: apesar de ultrapassada a questão da desconformidade do pedido

com a causa de pedir, a indemnização esbarraria com o problema de ser reconhecido o dano de a criança ter

nascido, ou o direito à não existência, não ultrapassando esse problema.

166 António Pinto Monteiro, «Direito a não nascer? (Anotação ao Acórdão do STJ de 19 de Junho de 2001)», cit., pp. 381 a 384.

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Acrescenta ainda, o autor, vários argumentos ou interrogações sobre as similaridades e diferenças das

pretensões “Wrongful Life” e “Wrongful Birth” referindo que ao admitir-se somente a indemnização aos pais e

recusando-a aos filhos, os tribunais podem ser levados a incluir nos danos dos pais os danos do filho com

deficiência, e estes podiam até descurar o acompanhamento da criança, quer por negligência, quer por

qualquer vicissitude conjugal, quer por falecerem. Depois, ao admitir-se indemnizar os pais e não o filho gera-

se uma contradição interna, pois os danos de ambos resultam do mesmo comportamento culposo. No

mesmo sentido, a mesma objeção de que a alternativa à vida do filho com deficiência seria a não vida, obsta

ao reconhecimento indemnizatório ao filho, mas já não obsta aos pais.

Por último, no que respeita à dignidade da pessoa humana, interroga-se ele: será que se respeita

mais a dignidade da pessoa, reconhecendo-lhe uma indemnização que lhe permita suportar a vida com um

mínimo de condições materiais e de dignidade, ou recusando-lhe tal indemnização?

Face a estas considerações/questões, António Pinto Monteiro coloca a hipótese de sermos levados a

acolher uma posição semelhante àquela que foi tomada no “arrêt Perruche”. Todavia, considera que essa não

seria a posição mais adequada, desde logo pelos seus pressupostos e consequências. Na realidade, as

malformações não são criadas pelo, médico, estas já existem. A criança também não pode invocar o direito a

não nascer nem se pode aferir do dano que esta sofre, mas mesmo admitindo que o dano estaria na vida e a

ausência dele na morte, seria impossível o cálculo do dano por confronto entre a vida com deficiência e a não

vida dessa pessoa.

Quanto às suas consequências, o autor demonstra que, ainda que os pais tenham sido esclarecidos

acerca das deficiências, mas tenham optado por não abortar o nascituro, mais tarde, esta poderia pedir uma

indemnização àqueles contendendo com a sua liberdade reprodutiva, ecoando uma preocupação com esta

hipótese já demonstrada noutros ordenamentos (como aliás já aqui mencionamos).

Exposto isto, o autor conclui que se está a pedir demasiado à responsabilidade civil e à justiça

corretiva, devendo a solução ser encontrada, não nesta, mas na justiça distributiva. Ou seja, devem-se apoiar

estas pessoas com deficiência, reclamando a intervenção dos mecanismos da segurança social e não

responsabilizando o médico por uma deficiência “que não lhe é devida”.

bb) Paulo Mota Pinto

Por sua vez, Paulo Mota Pinto167, admite uma indemnização aos pais pelos seus danos patrimoniais e

não patrimoniais, resultantes do nascimento de uma criança indesejada, referindo o seu dano como um

167 Paulo Mota Pinto, «Indemnização em caso de “nascimento indevido” e de “vida indevida” (“wrongful birth” e “wrongful life”)», cit., pp. 927 e 946.

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“dano de planeamento familiar”168, e, por outro lado, admite também uma indemnização à criança com

deficiência, pelas suas necessidades acrescidas e pelos seus danos não patrimoniais (operando aqui uma

alteração de entendimento doutrinário relativamente ao autor anterior quanto às chamadas ações “Wrongful

Life”).

Paulo Mota Pinto169 argumenta que o principal e direto visado, no caso de nascimento de uma criança

com deficiência derivado de erro médico, é a própria criança que nasceu (por causa das suas necessidades

acrescidas) e não os seus pais. Ademais, os seus pais só serão lesados na medida em que “puderem e

deverem cuidar da criança”. Afirmando que “contra isto não vale argumentar que a existência da criança só

era concretamente concebível naquelas condições, e portanto, dependente da assistência paterna” , ou seja,

não colhe o argumento de“acrescentar à dependência natural e geral desta [criança] uma dependência, para

obter indirectamente uma reparação, no plano jurídico, do exercício pelos pais do direito a uma indemnização

e do cumprimento do seu dever de alimentos, bem como logo da própria existência destes”170 171.

Para reafirmar mais a posição socorre-se das considerações de António Pinto Monteiro172, também já

aqui tratadas, alicerçando-se nelas, afirmando este autor, como se viu, que a solução de indemnizar os pais e

somente eles, não é a mais correta, uma vez que estes podem descurar o acompanhamento da criança, quer

voluntariamente, quer por razões exógenas, como o falecimento dos mesmos. Além disso, a possibilidade de

se admitir somente a indemnização aos pais e recusando-a aos filhos, os tribunais seriam levados a incluir

nos danos dos pais os danos do filho com deficiência, aumentando dessa forma o montante indemnizatório,

não sendo essa a atitude juridicamente correta, pois, como já se viu, os pais podem descurar os cuidados ao

filho.

No que concerne à ilicitude, Paulo Mota Pinto diz que “talvez seja (...) útil não trabalhar com um

pretenso “direito a não nascer” ou com um “direito à não existência”, cuja difícil articulação, pela contradição

que encerra em si mesmo, logo remete o julgador para uma atitude negativista”173. Antes propõe que a

ilicitude resulta, desde logo, da violação de um contrato por parte do profissional responsável ou, por outro

lado, da violação de um direito subjetivo dos pais da criança – a liberdade reprodutiva 174, ou mesmo “da

168 Distingue-se, neste ponto, o caso do nascimento de uma criança saudável. Neste caso, afirma o autor que já não concorda com a atribuição de uma

indemnização por danos não patrimoniais. Cfr. Paulo Mota Pinto, «Indemnização em caso de “nascimento indevido” e de “vida indevida” (“wrongful birth” e

“wrongful life”)», cit., pp. 927 e 928.

169 Paulo Mota Pinto, «Indemnização em caso de “nascimento indevido” e de “vida indevida” (“wrongful birth” e “wrongful life”)», cit., p. 930.

170 Parêntesis reto nosso.

171 Deste modo, será de se afirmar que, não se reconhecendo o direito de indemnização à criança, muito menos será de o reconhecer aos pais.

172 António Pinto Monteiro, «Direito a não nascer? (Anotação ao Acórdão do STJ de 19 de Junho de 2001)», Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 134, n.º

3933, (2002), p. 383.

173 Paulo Mota Pinto, «Indemnização em caso de “nascimento indevido” e de “vida indevida” (“wrongful birth” e “wrongful life”)», cit., p. 932.

174 Neste caso, liberdade de não reproduzir, ou liberdade reprodutiva negativa, que é parte integrante do direito geral de personalidade ou direito à liberdade dos

pais.

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violação de um dever profissional, integrante das legis artis”, como nos casos dos artigos 142.º/1/c) e 150.º

do Código Penal, que gera ilicitude na segunda modalidade prevista no n.º 1 do artigo 483.º do Código

Civil175.

Neste último caso, existe um dever para com os pais mas é um dever que também visa proteger a

futura criança do ónus de viver com uma pesada deficiência (tornando-se dependente de outros) e por isso é

concedida aos pais uma decisão. De igual modo, apesar de não existir um contrato entre a criança por nascer

e o profissional responsável, este, tal como o pai, foram incluídos no âmbito de proteção do contrato, pelo que

se pode chamar à colação a figura do contrato com eficácia de proteção para terceiros, tal como

argumentado por António Pinto Monteiro.

Face à impossibilidade de se configurar um dano, por implicar uma avaliação contrafactual da

situação do concreto lesado e a situação em que este estaria se não tivesse ocorrido o dano, ou seja, uma

vida com deficiência e um não nascimento, Paulo Mota Pinto afirma que “a negação de uma indemnização

com fundamento na inadmissibilidade de uma bitola “contrafactual”, ou hipotética, a que aquela criança que

formula a pretensão possa recorrer, quase envolve, nos resultados a que chega (que são evidentemente o

teste decisivo), como que renovada afirmação da ofensa que lhe foi feita: não só a criança nasceu com uma

grave deficiência, como, na medida em que não teria podido existir de outro modo, é-lhe vedado sequer

comparar-se a uma pessoa “normal”, para o efeito de obter uma reparação pelo erro médico”176.

Ou seja, o dano não deve ser avaliado face ao não nascimento, mas sim face a uma vida normal sem

a deficiência, aproveitando a ideia de que “nasciturus pro jam nato habeteur quotiens de commodis ejus

agitur”177, como acontece no direito sucessório ou para a proteção por lesões sofridas no ventre materno.

Por outro lado, afasta objeções à indemnização com fundamento na indisponibilidade da pessoa

humana. Com efeito, a vida é protegida pela ordem jurídica e, em si, é um direito/valor que se subtrai à

disponibilidade das partes. No entanto, como nos diz Paulo Mota Pinto, o que está em causa não é uma

reconstituição natural, consistente na eliminação da criança com deficiência. Nem é isso que se pretende,

mas sim uma indemnização por equivalente. Acrescentando que não é o facto de se reconhecer o direito a

uma indemnização que vai afetar a indisponibilidade da vida humana. A vida só seria afetada se a concessão

de uma indemnização pressupusesse necessariamente um juízo sobre o valor da vida humana face à não

vida.

O que aqui está em causa não é o valor ou desvalor da vida, mas os sofrimentos e necessidades

causadas pelo nascimento da mesma. Nem tão pouco está em causa a configuração do nascimento da

175 Paulo Mota Pinto, «Indemnização em caso de “nascimento indevido” e de “vida indevida” (“wrongful birth” e “wrongful life”)», cit., p. 932.

176 Paulo Mota Pinto, «Indemnização em caso de “nascimento indevido” e de “vida indevida” (“wrongful birth” e “wrongful life”)», cit. p. 934.

177 Tenha-se o nascituro por nascido, na medida em que se trate dos seus interesses.

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criança com deficiência ou a vida da criança com deficiência como dano (e mesmo na reparação de danos

não patrimoniais aos pais, o que está em causa é a reparação de uma violação a um direito fundamental dos

mesmos).

Aduz, ainda o autor, que se respeita mais a dignidade humana através da atribuição de uma

indemnização com o fim da criança suportar a sua própria vida com um mínimo de condições materiais de

dignidade do que sem indemnização alguma.

Por fim, evidencia o autor que não colhe o argumento de que o reconhecimento de uma

indemnização pedida pela própria criança iria tornar possível uma ação de indemnização da mesma contra os

pais, pois esta indemnização não se baseia num direito de não existência, ou de interrupção da gravidez,

fundamenta-se sim na “violação de um dever profissional, integrante das legis artis” ou na violação de um

“contrato com eficácia de protecção para terceiros”, não podendo assentar nas mesmas uma pretensão

contra os pais. Destarte, há que ter em consideração razões específicas do direito da família e o conflito com

o exercício da liberdade reprodutiva dos próprios pais.

bc) Manuel A. Carneiro da Frada

Manuel A. Carneiro da Frada também se debruçou sobre estas questões178, tendo-o feito após a

decisão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Junho de 2001 e após o comentário ao mesmo elaborado

por António Pinto Monteiro.

Na sua douta opinião, a decisão do Supremo Tribunal de Justiça encontra-se essencialmente correta.

Elabora portanto o autor, para esse efeito, variados argumentos que resumiremos.

Começa por referir que, na sua opinião, tanto não existe na nossa ordem jurídica qualquer “direito ao

aborto”, apenas uma não punição em certos casos de acordo com a legislação penal, como não pode o dever

de informação do médico ter como objetivo a prática de aborto, antes só pode ter como finalidade um

tratamento correto do feto.

Assim, do mesmo modo também não existe um dever ao aborto, uma obrigação a praticá-lo.

Não se compreenderá assim como se poderá classificar a atuação do médico nos casos em apreço

como ilícita, como aliás também não se compreenderia que pudesse o médico responder pela deficiência da

criança não tendo ele causado essa deficiência, tendo-se limitado apenas a não informar corretamente os

pais acerca dela. O médico será parte terceira em relação à existência da deficiência, não tendo

responsabilidade pela sua existência e não podendo “transferir-se para o médico aquilo que corresponde à

178 Manuel A. Carneiro da Frada, «A Própria Vida como Dano? Dimensões Civis e Constitucionais de uma Questão-limite», Estudos em honra do Professor Doutor

José de Oliveira Ascensão, Vol. I, Almedina, 2008, pp. 165 a 199.

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liberdade reprodutiva dos pais e aos seus riscos próprios”.

Poderia aqui argumentar-se que os pais teriam mais responsabilidade pela existência da deficiência

que o médico, segundo a posição do autor.

Outro argumento usado por Manuel A. Carneiro da Frada é a quase impossibilidade de prova de que

os pais teriam realmente, no caso em concreto, e devidamente informados da deficiência, optado por

interromper a gravidez. O grau de incerteza desta atuação em termos factuais constitui um grande obstáculo

às pretensões indemnizatórias em causa e só raramente seria possível atestar com grau razoável de certeza

que tal aconteceria.

Além disso, trata-se aqui de um circunstancialismo muito sensível já que quer-se que a pretensão

indemnizatória seja assegurada em virtude do interesse do filho. Ora, o filho está naturalmente impedido de

poder avaliar a sua situação e chegar a uma decisão sobre o seu próprio nascimento naquele momento, o que

evidentemente destrói a possibilidade de existência do dever do médico em proceder ao aborto fundado no

interesse do bebé em não existir, já que naquele momento, a criança ainda não terá e não poderá ter tal

interesse.

Argumenta ainda o autor que o nosso ordenamento jurídico impõe limitações à possibilidade de

disposição dos direitos de personalidade, incluindo a impossibilidade de abdicar da própria capacidade e da

personalidade jurídica. Como tal, e considerando a própria vida da perspetiva dos direitos de personalidade

esta também não será suscetível de disposição e nunca poderá ser equacionada como um dano.

Aliás, se o objetivo da indemnização é repor a situação que existiria antes do facto invocado, então

necessariamente teríamos que comparar a situação de vida com a de não vida e teríamos que chegar à

conclusão que a linha de pensamento é a de que a vida é a situação não pretendida no caso concreto, mas a

indemnização pretende uma certa quantia em dinheiro para a contínua formação dessa mesma vida, o que

gera uma incongruência absoluta, já que “não se pode não querer viver e querer viver ao mesmo tempo”.

O autor leva este ponto ainda mais longe e interroga-se em tom de exagero o porquê de não existir

nestes casos uma ação de reivindicação de morte assistida fundada na reconstituição natural.

Por último, esta incompatibilidade afeta também em consequência a conformidade processual do

pedido e causa de pedir.

Com isto o autor entra nas suas considerações finais sobre a problemática. Refere ele que “a vida

como dano é um falso problema”. Segundo o autor, o que existem nestes casos são necessidades, as

necessidades que as deficiências das crianças comportam. O meio correto de suprir tais necessidades não

será, nem poderá ser o instituto de responsabilidade civil, sob pena de o estarmos a instrumentalizar com o

objetivo da compensação dessas necessidades e, ainda por cima, às custas do médico.

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O instituto de responsabilidade civil funda-se no preenchimento dos seus pressupostos, o que não se

verifica nestes casos, não sendo suficiente nalguma medida que se esteja “implicado causalmente na

produção de um dano”. O meio correto de suprir essas necessidades será através do apoio do Estado,

nomeadamente da segurança social, e nunca através da responsabilidade civil.

Ressalva ainda o autor que também não será coerente, considerando a sua linha de argumentação,

admitir uma indemnização aos pais fundada no dano do nascimento do filho. Se o filho não poderá

argumentar a sua vida como dano então também não poderão os pais dele fazê-lo.

Distingue-se assim aqui o autor, não admitindo nem as pretensões de “Wrongful Birth” nem as

pretensões de “Wrongful Life”, baseando-se, para tal, na mesma lógica argumentativa.

Na sua perspetiva, o que os pais têm são as necessidades pressupostas pela deficiência do filho, que

por sua vez pressupõe a sua vida. O meio correto de corresponder a essas necessidades será mais uma vez a

segurança social, não sendo a vida do filho um prejuízo que possa ser invocado contra terceiro como meio de

colmatar essas necessidades.

bd) António Menezes Cordeiro

Este autor, por sua vez, aborda o tema do seguinte modo: quanto às pretensões de “Wrongful Life”179,

ele considera que o fundamental em causa na temática resume-se à questão-limite da relação e comparação

entre a “não vida” e a vida existente, concretamente. A procedência deste tipo de ações, com a sua

correspondente compensação indemnizatória à criança, passará necessariamente, segundo o autor, por um

juízo de avaliação do valor de uma em relação a outra.

De facto, in casu, só existe uma outra hipótese de realidade para a criança. A sua “não vida”. Ou

seja, ou existe como ela é, com as suas deficiências inerentes à sua condição existencial, ou não existe de

todo. O termo de comparação não se prenderá com o equivalente a uma “vida normal” (pois tal seria sempre

impossível para a criança a que a pretensão diz respeito), mas sim entre a sua vida e a sua “não vida”.

Prendendo-se neste ponto toda a questão, impondo a procedência destas ações uma comparação

entre estas duas hipóteses e uma preterição do valor da vida da criança com deficiência em favor da sua

“não vida”, o autor considera a questão ausente de qualquer possibilidade de admissão, referindo-nos até que

tal seria contrário a “qualquer sistema jurídico civilizado”, incluindo o nosso, obviamente.

Explorando a matéria do dano relevante para a apreciação da ação, o autor prossegue afirmando que

em causa estará uma “contradição absoluta”, olhando para o tratamento dado pela própria lei e pelo sistema

179 António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português IV - Parte Geral – Pessoas, cit., pp. 350 a 352.

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jurídico ao nascituro com deficiência e ao recém-nascido com deficiência. Enquanto o nascituro com

deficiência é ou pode ser considerado “eliminável”, tal não acontece com o recém-nascido com deficiência. A

própria lei e o sistema jurídico contêm esta contradição ao conferirem uma muito mais forte proteção ao

recém-nascido (através, por exemplo, da criminalização do chamado infanticídio, também aplicável a crianças

com deficiência), do que ao nascituro com deficiência, cujo término a lei opta por não criminalizar ou

responsabilizar.

Tal raciocínio entra diretamente em conflito com o raciocínio pressuposto na ação “Wrongful Life”,

onde a valorização oposta ocorre. Torna-se assim impossível, de acordo com o autor, considerar a própria vida

da criança nascida como um dano em face da própria criança nascida, no âmbito deste tipo de ação (onde a

pretensão pressupõe a responsabilização pela atuação médica que impossibilita o término voluntário da

gravidez).

Já quanto a pretensões de “Wrongful Birth” o autor mostra-se favorável180. Na verdade, o autor

considera até que a solução da questão passa mais pelas pretensões de “Wrongful Birth” do que pelas de

“Wrongful Life”.

Em sua douta opinião, a solução passa pois pelo debruçamento do estudo do contrato de prestação

de serviço médico e sua “(in)execução” alicerçado no “no alargamento dos escopos da responsabilidade civil

e a tutela da confiança na execução dos contratos”.

A linha de raciocínio anteriormente seguida pelo autor acerca da proteção dada à vida da criança

nascida com deficiência pode levar à conclusão, como referido por ele, que também uma pretensão

indemnizatória por parte dos pais estaria posta em causa, mas tal não é considerado por este. Estamos

perante outro ponto de vista e outro raciocínio. Em causa está ou poderá estar a violação deste contrato e o

dever de informação do médico aos pais da criança, o seu mau cumprimento, conducente à sua

responsabilidade por tal perante os pais da criança. E esta conclusão ou desfecho é admitida e considerada

razoável pelo autor.

be) Marta de Sousa Nunes Vicente

A autora agora em análise toma também a posição181 de não admissão da procedência das

pretensões de “Wrongful Life”.

Para tal fundamenta a sua posição desconstruindo a temática e abordando precisamente os maiores

problemas e obstáculos considerados pela jurisprudência e doutrina quanto à ação em causa, concluindo pela

180 António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português IV - Parte Geral – Pessoas, cit., pp. 350 e 351.

181 Marta de Sousa Nunes Vicente, «Algumas Reflexões sobre as Acções de Wrongful Life: a Jurisprudência Perruche», cit., pp. 117 a 141.

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não procedência da ação, não devido propriamente a esses obstáculos considerados, mas por um outro

arguido pela autora e considerado por esta como fundamental: a contradição existente entre o objetivo da

pretensão e a possibilidade facultada à própria mãe de prosseguir ou não com a interrupção voluntária da

gravidez sem qualquer punição ou pressão por parte da sistema jurídico.

Assim, a argumentação da autora aproxima-se (aparentemente) da argumentação de António Menezes

Cordeiro quanto à contradição que existira no sistema jurídico com a procedência da ação.

Os mencionados obstáculos à procedência da ação (para além deste último) que a autora desconstrói

centram-se, essencialmente, e nas palavras da autora, na:

– existência de nexo de causalidade entre o ato ilícito (atuação do médico) e o dano (nascimento da

criança com deficiências);

– legitimidade do instituto da representação legal nesta situação; e

– existência de um prejuízo juridicamente reparável à luz do Princípio da Dignidade Humana.

Estes são os maiores obstáculos invocados pela jurisprudência e doutrina para a procedência da

pretensão em causa, na perspetiva da autora. Mas, todavia, todos estes obstáculos são, a seu ver,

ultrapassáveis.

O primeiro problema (o problema do nexo de causalidade) é abordado pela autora, expondo desde

logo as diferentes abordagens surgidas na doutrina e jurisprudência, invocando, para tal, argumentos de

autores como A. C. Papachristos, M. Fabre-Magnan, Pires de Lima, Antunes Varela, Guilherme de Oliveira,

Galvão Telles e Luc Mayaux. O seu objetivo com tal invocação é meramente demonstrar como o problema é

bastante mais ultrapassável do que se poderia imaginar, com diversas interpretações e teorias relativas ao

nexo de causalidade relevantes para a temática, algumas delas permitindo, possivelmente, essa

ultrapassagem.

No entender da autora, todavia, só fará realmente sentido falar da ultrapassagem do problema em

causa (a existência de um nexo de causalidade) quando se configura a aplicação de uma figura, a figura dos

contratos com eficácia de proteção de terceiros. Será esta a figura que permitirá, com a sua aplicação,

avançar no entendimento do problema e perceber exatamente que tipo de deveres foram violados pelo

médico para com o nascituro e compreender o nexo de causalidade que se estabelece entre essa violação e o

dano arguido na pretensão, permitindo, definitivamente, ultrapassar o problema, na sua ótica.

Com efeito, na sua perspetiva, o nascituro configura-se como um terceiro no contrato de prestação de

serviços médicos entre a mãe e o seu médico, beneficiando de proteção à luz desse contrato.

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Concretizando, um contrato com eficácia de proteção de terceiros, entendido como um contrato pelo

qual existe um terceiro que é incluído na sua esfera por exigências de “boa fé, dado o fim do contrato ou a

eficácia reconhecível da prestação contratual sobre terceiros”, garante o estabelecimento de deveres laterais

especiais de proteção e cuidado para com o terceiro. Tais deveres advêm naturalmente desse contrato e da

situação que lhe dá luz.

De facto, como arguido pela autora, a situação em que uma mulher grávida se dirige a um médico

para averiguar o seu estado de saúde e do seu feto, estabelecendo-se desse modo um vínculo contratual

entre ela e o seu médico, parece, com elevado grau de certeza, configurar-se na hipótese de um contrato com

eficácia de proteção de terceiros. Ao agir desse modo, é difícil argumentar que a mulher não está a depositar

a sua confiança e a sua segurança, assim como a do seu nascituro, nas mãos do seu médico, com o objetivo

de evitar o seu próprio dano, assim como de evitar o dano ao nascituro (até por o nascituro estar numa

posição ao mesmo tempo frágil e privilegiada para com o contrato estabelecido, sendo especialmente sensível

à violação ou incumprimento do mesmo). Justifica-se assim o nascimento desses mencionados deveres

laterais especiais de proteção e cuidado para com o nascituro no âmbito do contrato.

Como mencionado, dado o fim do contrato nesta situação, parece coerente reconhecer a aplicação

da figura a tal circunstância e, tal aplicação, pressupõe, na sua essência (para além do estabelecimento

desses deveres especiais de proteção e cuidado), o direito do terceiro a uma compensação indemnizatória por

violação de tais deveres especiais.

No entanto, tal reconhecimento não basta, na ótica da autora, para ultrapassar o problema do nexo

de causalidade da ação. Antes, é necessário que não existam dúvidas sobre a vontade da mãe em proceder

com a interrupção voluntária da gravidez no caso de ser informada corretamente acerca das deficiências do

nascituro. Só aqui pode o problema ser ultrapassado pois, de outro modo, não existindo tal certeza na

vontade e procedimento da mãe, os mencionados deveres de proteção por parte dos médicos, e sua eventual

violação, não poderão fixar-se para com o nascituro, não se estabelecendo o nexo de causalidade necessário

para a efetivação da compensação indemnizatória no âmbito da responsabilidade civil.

De facto, sendo o objetivo do contrato estabelecido a verificação do estado de saúde da mãe e do

nascituro, com a correspondente e correta informação desse estado, a autora afirma, usando como exemplo

o caso jurisprudencial francês Perruche (onde essa certeza encontra-se verificada para além de qualquer

dúvida já que a mãe afirmou mesmo perante o médico que seria a sua opção interromper voluntariamente a

gravidez caso se verificasse no feto as deficiências que temia), que só com essa certeza é que poderão estar

tais deveres laterais de proteção e cuidado, segundo a lógica da figura dos contratos com eficácia de proteção

de terceiros, efetivamente verificados no caso, estabelecendo-se o nexo de causalidade.

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Já quanto à legitimidade do instituto da representação legal nesta situação, o segundo obstáculo

mencionado, a autora reflete sobre o eventual conflito de interesses subjacente à representação legal. Analisa

para isso a possibilidade desta representação legal por parte dos pais (ou outros) na pretensão de “Wrongful

Life” (pressupondo que a invocação do dano em causa é aceite no sistema jurídico).

Ora, no entender de outros autores como António Pinto Monteiro e Denys de Béchillon, cujos

argumentos a autora em causa invoca, a legitimidade desta representação prende-se com a possibilidade de

ela ser isenta e imparcial em prol do filho, não a poluindo com pretensões que não lhe pertençam, mas que

pertençam aos pais. Segundo os autores invocados, esta possibilidade não existe, existindo sempre uma

parcialidade que contaminará sempre a pretensão de “Wrongful Life”.

Todavia, segundo a autora, tal não pode encontrar acolhimento pois significaria o fim da figura da

representação legal de pessoas sem capacidade física e/ou mental, impossibilitando-as de se poderem

exprimir perante o sistema jurídico por completo, prejudicando mais esses indivíduos apenas por se

prosseguir tal entendimento do que com qualquer eventual conflito de interesses que se possa admitir existir

na representação legal destas pessoas. Tal não se admite, na ótica da autora. Acrescenta ainda a autora que:

“aquela argumentação não vinga, como não vinga, por conseguinte, a objecção de que se configuraria como

discriminatório e violador do Princípio de Igualdade o facto de se aceitar a representação legal, através do

poder parental, nos casos em que a deficiência do indivíduo não afecta de forma incisiva as suas funções

mentais, e de se negar a legitimidade da actuação daquele instituto quando o peso das deficiências afecta

em absoluto a faculdade de avaliação desse indivíduo”.

Já quanto ao terceiro obstáculo mencionado entra-se nos meandros das considerações éticas sobre a

pessoa humana e as considerações acerca do dano passível de estar em causa na pretensão “Wrongful Life”.

A autora esclarece-nos, neste ponto, referindo que o prejuízo sofrido pela criança é, de facto,

juridicamente reparável, já que resulta da violação dos deveres laterais de proteção para com o nascituro por

parte do médico, decorrentes da violação dos deveres principais para com a mãe. Nunca está a solução

relegada para o campo da solidariedade social mas, antes, mantém-se no campo da responsabilidade civil por

verificação e preenchimento dos seus requisitos e pressupostos, sem nunca o objetivo da pretensão de

“Wrongful Life” ser a reconstituição natural ou até o auxílio para uma morte mais digna (ou o suicídio), como

acontece numa situação de eutanásia, pelo que se entende que não existe, na pretensão em causa, uma

limitação pelo autor ao seu próprio direito à vida.

Contudo, a autora admite estarmos perante uma circunstância em que se configura o dano como o

facto de se ter nascido com deficiência. Admite que a procedência da pretensão leva ao reconhecimento por

parte do Tribunal que existem “vidas que não merecem ser vividas” e admite, em virtude disto, que a questão

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de se saber se no caso concreto haverá um conflito de interesses intrínseco semelhante aos casos da

eutanásia (conflituando com os princípios de dignidade de vida humana, a sua santidade e necessidade da

sua preservação), parece “insusceptível de decisão, ou melhor, insusceptível de uma decisão capaz de servir

como fundamento jurídico a uma acção condenatória ao pagamento de uma indemnização”.

Mas é do ponto de vista da interrupção da gravidez não punível, da sua posição e tratamento perante

a Lei e o sistema jurídico, que a autora argui o que considera ser fundamental para a não procedência da

pretensão. De facto, olhando para este tratamento, verifica-se que o sistema jurídico põe a questão à

disposição de cada mulher, ou seja, opta por apenas não punir quem opte pela interrupção voluntária da

gravidez ou quem decida prosseguir com a gravidez, desde que se verifiquem todos os requisitos

circunstanciais para tal permissibilidade. Por outras palavras, como refere a autora, é uma questão deixada

para a esfera da autodeterminação de cada indivíduo, para o domínio da autodeterminação.

Contudo, segundo a autora, o reconhecimento da procedência de uma pretensão de “Wrongful Life”

levaria o sistema jurídico a tomar uma posição contraditória com a sua posição atual, pondo-a em cheque. Ao

reconhecer-se a procedência da pretensão, o sistema jurídico estaria a tomar a posição de considerar a “não-

vida” preferível à vida já que a procedência da pretensão leva ao reconhecimento por parte do sistema jurídico

de que há “vidas que não merecem ser vividas”.

Consequentemente, enquanto que, atualmente, o sistema jurídico assume uma posição neutra acerca

da questão, a procedência da pretensão de “Wrongful Life” levá-lo-ia, implicitamente, à tomada de uma

posição quanto à questão, sendo essa posição a de que, essencialmente, há “vidas que não merecem ser

vividas”.

Formar-se-ia assim a contradição com o disposto na Lei quanto à permissibilidade dada a cada

mulher quanto a esta questão. Assim, o sistema jurídico, pelo argumento de coerência, não poderia manter a

contradição e teria de intervir no que até agora deixou para a autodeterminação de cada mulher, retirando

essa liberdade e forçando a interrupção da gravidez, indo contra os desejos daqueles que optariam por

prosseguir com a gravidez.

Independentemente de qualquer opinião sobre tal opção, certo é que, na ótica da autora, mantendo-

se o disposto na Lei e admitindo-se, ao mesmo tempo, judicialmente, a procedência de pretensões de

“Wrongful Life” gerar-se-ia uma contradição comprometedora da unidade do sistema jurídico (do seu

entendimento e tratamento da questão). Pelo que a única conclusão será a de não admissão da procedência

de tais pretensões, na visão da autora.

Ainda assim, a doutrina da autora aqui em questão, e as suas tomadas de posição, não se resumem

às pretensões de “Wrongful Life”, tendo esta também abordado a questão das pretensões de “Wrongful

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Birth”.

Ao contrário das pretensões anteriores, a autora admite este tipo de pretensões, estabelecendo duas

questões relevantes (no seu entender) para se poder pronunciar quanto ao atendimento e procedência deste

tipo de ações:

– o nexo de causalidade; e

– o montante indemnizatório.

Quanto à primeira questão, a autora entende que se verifica, de facto, o nexo de causalidade nesta

pretensão, até mesmo quando se possa provar, no caso concreto, que a autora (mãe) não teria recorrido à

interrupção voluntária da gravidez.

Como a autora esclarece, estamos perante o poder e direito de autodeterminação de alguém, minado

e impossibilitado pela violação dos deveres de informação do médico para com este alguém. É a própria

violação deste dever, a impossibilidade dessa pessoa se auto-determinar com base nas informações corretas

prestadas pelo médico, que fundamentam a pretensão. No fundo, o nexo de causalidade verifica-se entre a

conduta médica e a impossibilidade de esse alguém decidir com base nessas informações e dispor

diferentemente esmagaria “parte do conteúdo do direito de autodeterminação”, nas palavras da autora, sendo

a pessoa prejudicada, sofrendo um dano, com esse esmagamento.

Finalmente, quanto ao montante indemnizatório, um primeiro aspeto prende-se com o facto de se

poder considerar integrado neste montante, a título de danos patrimoniais, todos os custos com a

criação/sustento da criança com deficiência ou apenas os custos extraordinários decorrentes da sua condição

(não se considerando os custos normais da sua criação/sustento já que estes sempre se verificariam mesmo

sem a sua deficiência).

Neste aspeto, a autora defende a segunda opção, considerando ser a única opção viável, já que a

mãe da criança optou por ter uma criança, não estando, no entanto, informada que teria uma ou várias

deficiências. Ou seja, apesar da informação incorreta ou incompleta, a mãe teria já aceite os encargos com a

criação/sustento de uma criança normal, sem deficiência, pelo que seria incoerente arguir no sentido da

compensação desses custos “normais”.

Um segundo aspeto prende-se com a possibilidade de se considerar tal montante variável conforme a

variabilidade da certeza de que se optaria no caso concreto pela interrupção voluntária da gravidez. Aqui, a

autora admite tal possibilidade referindo a “teoria de perda de chance” e o seu papel em “regular a

indemnização em função da maior ou menor probabilidade de realização de um certo evento” (assim como a

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doutrina de Guilherme de Oliveira que parece afirmar uma argumentação semelhante quanto às dificuldades

de prova no caso).

A autora reflete, por fim, ainda mais um pouco sobre as pretensões de “Wrongful Birth” esclarecendo

que estas não se confundem com as pretensões de “Wrongful Life” e o seu objetivo, não havendo lugar a um

aumento no montante indemnizatório por não haver uma indemnização para o filho com deficiência. Neste

ponto é, contudo, possível atribuir uma indemnização aos pais, substanciada no pagamento de uma

mensalidade que dure durante toda a vida da criança, e não apenas durante a vida dos pais, como se verifica

numa decisão do Conseil d'État de 14 de Fevereiro de 1997. Na ótica da autora, tal é admissível pois, caso

assim não fosse, uma nova preocupação económica/financeira surgiria na vida dos pais da criança, assente

no facto de a criança já não receber essa mensalidade após a sua morte, ficando numa posição frágil. Assim,

eles teriam que assegurar esse futuro da criança, realizando-se essa preocupação económica/financeira.

5.3.3. Posição adotada

Após a breve exposição dada ao tratamento jurisprudencial e doutrinário deste tipo de ações nos

vários ordenamentos (e a sua génese), com uma especial atenção ao tratamento dado a estas no nosso

próprio ordenamento (com o propósito de as melhor entender e tratar), cumpre agora expormos a nossa

própria reflexão sobre a temática no contexto do sistema jurídico atual em que vivemos, sempre alicerçados

pelos doutos entendimentos que nos precederam, procurando encontrar uma argumentação satisfatória para

a admissão da procedência (ou não) deste tipo de ações (e qual consideramos ser o tratamento devido à

situação fáctica que sustenta este tipo de pretensões).

a) Em Relação às Pretensões de "Wrongful Birth"

Da análise desta primeira pretensão, podemos desde já referir que o nosso entendimento vai,

tendencialmente, de encontro à doutrina e jurisprudência maioritária dos mais diferentes ordenamentos

(incluindo o nosso) quanto à sua aceitação tendencial da procedência deste tipo de pretensões.

Parece-nos inegável estarem em causa deveres de informação, cuja existência é irrefutável e o seu

cumprimento exigível pelos pais do nascituro (ou pela mãe do nascituro), por parte desse mesmo agente

médico para com eles ou, pelo menos, para com a mulher grávida por força do vínculo existente entre o

médico em causa e os pais, ou a mãe do nascituro em causa (em boa verdade, parece-nos que estejam em

causa deveres de informação para com ambos os pais e não só com a mãe, assumindo que ambos os pais

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são atendidos, em conjunto, pelo agente médico182).

Parece-nos também inegável que existe um reconhecimento por parte da maioria dos sistemas

jurídicos, incluindo o nosso, do direito à autodeterminação do indivíduo. Na lógica de funcionamento do

regime da interrupção da gravidez não punível este é um dos interesses fulcrais que estarão em causa no

conflito de interesses existente e será, pelo menos parcialmente com base nele, que se atenderá aos desejos

da mulher quanto ao destino do seu nascituro, livre de coerção ou influência por parte do Estado, nas

situações específicas previstas.

Assim se justifica a não punição, a permissibilidade da interrupção da gravidez nos casos de

interrupção da gravidez não punível (nas condições previstas do artigo 142.º do Código Penal).

Nos casos em que existam malformações no nascituro (situações previstas no regime de interrupção

da gravidez não punível e que podem dar origem a uma eventual pretensão de “Wrongful Birth” no caso de

negligência, omissão ou erro no cumprimento dos deveres de informação por parte do agente médico) o

cumprimento de acordo com o exigível destes deveres de informação por parte do médico afigura-se

primordial, pois só com esse cumprimento pode a mulher (ou os pais) apreciar corretamente a verdadeira

realidade onde está inserida e só assim estará habilitada a agir em todos os sentidos permitidos pelo sistema

jurídico a indivíduos com tal dilema (sendo completamente impossibilitada de outro modo e esvaziando-se de

significado o previsto no regime de interrupção de gravidez não punível nesse caso).

Não entendemos que a permissibilidade admitida pelo sistema jurídico nestes casos de

malformações (ou até nos casos de interrupção voluntária da gravidez por mera escolha da mulher), seja a

admissão pelo sistema jurídico de um verdadeiro direito ao aborto, ou um direito a dispor livremente da vida

do nascituro. Na verdade, entendemos apenas existir o reconhecimento de uma situação-limite onde vários

interesses estarão em conflito, tal como o direito à autodeterminação do indivíduo e a proteção legal

normalmente conferida aos nascituros.

O sistema jurídico opta então, não por uma posição rígida e concreta em relação ao tema, mas por

admitir a escolha, a opção, da mulher, sem a prejudicar por tal ou a coagir numa determinada direção.

Assim, caso a mulher opte por interromper a gravidez, existe apenas uma permissibilidade do sistema jurídico

quanto a tal facto, reconhecendo-se a natureza da situação-limite e os vários interesses em conflito, assim

como o reconhecimento da “violência” que seria obrigar a mulher a suportar, a ter a criança com deficiência

182 Entendemos que a realidade subjacente à situação concreta evidencia um mais forte dever de informação em relação à mulher grávida. Esta distinção ecoa na

distinção que fisicamente existe entre a mãe e o pai relativamente ao nascituro, por ser a mulher, a mãe, e não o pai, que carrega o nascituro em seu ventre,

estabelecendo-se um forte vínculo físico entre os dois, inexistente da perspetiva do pai, que pressupõe que o procedimento de interrupção da gravidez, a existir,

seja aplicado, não só sobre o ser físico do nascituro mas também sobre o corpo da mãe, com efeitos distintos para os dois, obviamente (assim como qualquer

outro procedimento destinado ao nascituro).

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e a suportá-la ao longo de toda a sua vida (assim como todas as consequências daí decorrentes)183.

Ora, o tratamento dado pelo próprio sistema jurídico à situação, bem como a opção da mulher,

encontram-se inequivocamente ligados e dependentes do cumprimento conforme ao exigível dos deveres de

informação do agente médico perante a mãe/pais, pelo que, mesmo para além da lógica do vínculo e relação

que se estabelece entre o agente médico e a mãe/pais, e dos deveres de informação estabelecidos

(existentes e exigíveis do médico perante eles em virtude desse vínculo/relação, suficiente por si mesmo para

legitimar a responsabilidade civil do agente médico pelo não cumprimento desses deveres perante os pais),

também por uma lógica mais abrangente, pensada a partir do ponto de vista do tratamento dado a esta

situação pelo sistema jurídico, não se entenderia como se poderia não responsabilizar o agente médico pela

sua atuação, a nosso ver.

Posto isto, cremos que os requisitos e os pressupostos de responsabilidade civil necessários para a

efetivação da responsabilidade civil do médico perante a mãe ou os pais numa pretensão do género de

“Wrongful Birth”, são preenchidos sem dificuldades, não causando problemas à admissão da procedência da

pretensão, com a possível exceção do pressuposto do nexo de causalidade.

De facto, um dos maiores entraves à admissão da procedência da pretensão aqui em causa é, a

nosso ver, a questão de se saber se a mãe/pais, munidos da correta informação acerca do estado do

nascituro, em vez de uma informação incorreta ou incompleta derivada da negligência, omissão ou erro de

médico no cumprimento dos seus deveres de informação, optariam, de facto pela interrupção voluntária da

gravidez, e não pelo seu prosseguimento.

Estamos perante uma questão ardilosa, não só no sentido da prova perante a apreciação do tribunal

num sentido ou no outro, mas também perante a sua própria natureza. Repare-se, estamos aqui a discutir

como uma pessoa agiria num cenário hipotético (embora possível). Não estamos a referir-nos ao que alguém

testemunhou, ou qual foi a sua opinião sobre algo, ou o que aconteceria num cenário hipotético com base em

factos empíricos e, portanto, previsíveis com um grau de certeza científica. Estamos, ao invés, a tentar

determinar o comportamento de uma pessoa numa situação reconhecidamente sensível e difícil, onde é

admissível que até o mais convicto individuo poderia realisticamente optar por outra solução que não a sua

convicção “normal” visto estar, precisamente, perante uma situação-limite.

Poderá até ser legítimo afirmar que estamos a tentar “adivinhar” como uma pessoa agiria numa

situação-limite como esta com base apenas em indícios que nunca nos possibilitarão uma verdadeira certeza

científica quanto ao assunto. O único ramo da ciência que poderia talvez aproximar-se de uma certeza neste

âmbito seria talvez a psicologia, mas este ramo da ciência é precisamente caracterizado por um acrescido

183 Como já tivemos oportunidade de analisar quando nos referimos à tutela do nascituro no nosso ordenamento.

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grau de incerteza quando comparado com a maioria dos demais ramos científicos. O agir humano não é algo

que se possa quantificar e prever facilmente, principalmente em situações-limite. Até mesmo a própria pessoa

em causa, quando realmente confrontada com a pergunta que a interroga sobre como agiria, pode revelar

imensas dificuldades em pronunciar-se num determinado sentido (caso analise a questão seriamente e

realisticamente), pelo que poderia ser até perigoso atribuir um tal carácter de certeza a opiniões sobre o agir

humano em situações-limite deste género, mesmo que provenientes desse ramo científico (aliás, nada nos

garante que mesmo que a própria pessoa em causa se pronuncie num determinado sentido quanto ao que

faria, ela realmente, inserida nessa situação, optaria por esse sentido. A apreciação de um cenário hipotético

nunca consegue apreciar e prever todas as possibilidade e probabilidades de um cenário que acontece de

facto).

Como tal, as dificuldades impostas por tal cenário perante o nexo de causalidade afiguram-se

evidentes, já que, não se provando convenientemente que a atuação da mãe seria a de optar pela interrupção

voluntária da gravidez, o nexo de causalidade, pressuposto necessário da responsabilidade civil, aparenta cair.

No entanto, cremos que tal não é uma dificuldade inultrapassável para a procedência deste tipo de

ações. Será importante para desenvolvermos tal entendimento refletirmos sobre as teorias de perda de

chance, como referido por Marta de Sousa Nunes Vicente184, visto ser da nossa perspetiva que essas teorias

poderão ter aqui uma vital importância.

Para melhor entendermos a noção de perda de chance, devemos analisar as palavras da autora que

nos diz: “Na verdade, a problemática que suscita a aplicação da noção de perda de chance é constituída por

situações em que um sujeito se encontra num estado que lhe propicia a possibilidade – a chance – de

alcançar um determinado resultado favorável, e em que, em virtude de um comportamento de um terceiro,

essa possibilidade fica irremediavelmente perdida – perda da chance. Porém, dada a incerteza da

consumação do resultado esperado, mesmo que o comportamento (tido por) lesivo não tivesse ocorrido,

muitas dificuldades se colocam ao direito quando é confrontado com um pedido ressarcitório da perda

daquele resultado. É a incerteza exógena, de que fala Caroline Ruellan, elevada a um grau maior do que

aquele, a que a realidade, inevitavelmente multifacetada e desconhecida, já habituou o direito. A questão

apresentará, ainda assim, algumas certezas que constituirão outros pontos de apoio – a existência efectiva de

uma possibilidade e o seu malogro definitivo”185.

Uma análise atenta das palavras da autora, assim como uma reflexão cuidada sobre as hipóteses,

exemplos e noções de perda de chance, rapidamente nos conduz à conclusão da possibilidade, conveniência

e razoabilidade da aplicação da teoria à pretensão.

184 Marta de Sousa Nunes Vicente, «Algumas Reflexões sobre as Acções de Wrongful Life: a Jurisprudência Perruche», cit., p. 122.

185 Rute Teixeira Pedro, «A Responsabilidade Civil do Médico - Reflexões Sobre a Noção de Perda de Chance e a Tutela do Doente Lesado», cit., pp. 184 e 185.

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Referindo-se à aplicabilidade destas teorias a este tipo de pretensão, afirma Rute Teixeira Pedro186 que

“os tribunais tendem a optar por considerar a contribuição causal do erro médico para uma outra espécie de

dano traduzido na privação da possibilidade “de prende une décision éclairée quant à la possíbilité de recourir

à une interruption de grossesse thérapeutique” (o preceituado por esta autora refere-se tanto às pretensões

de “Wrongful Birth” como às pretensões “Wrongful Life”, como se verifica na sua obra, variando apenas a

perspetiva por onde verificamos haver a perda de chance ou perda de oportunidade).

Como refere mais ainda a autora, no caso Rance and another v Mid-Dows Health Authority and

another, caso esse julgado no ordenamento inglês, estamos perante uma situação em que se fala da perda de

oportunidade dos pais de interromperem a gravidez. É precisamente nessa ótica que consideramos que a

aplicação destas noções fazem todo o sentido no contexto das pretensões “Wrongful Birth”, permitindo

ultrapassar o embaraço causado pela dificuldades de prova do nexo causal derivado da incerteza da atuação

hipotética da mãe/pais.

Concordamos, portanto, com o entendimento de Rodrigo Bercovitz Rodríguez-Cano, referenciado pela

autora mencionada, ao afirmar que “a falta de informação sobre o estado do feto gera, sempre, um dano

grave consistente na privação da opção da mulher sobre a continuidade ou não da gestação. A incerteza do

sentido da decisão é irrelevante, porque inultrapassável, por ser impossível substituir a reacção de uma

pessoa perante uma “circunstância real que afecta intensamente a sua vida”” 187.

Como é também referido pela autora188, as noções de perda de chance ou oportunidade têm sido

pouco tratadas no nosso ordenamento e até pouco referidas, mas tal não impediu de as vermos surgir em

determinadas circunstâncias no nosso ordenamento e em certas decisões jurisprudenciais, embora sem

serem devidamente mencionadas pela sua concreta e correta denominação189. Na doutrina são

tendencialmente relegadas para um tratamento que se pode chamar de secundário, mas surge na

jurisprudência a sua importância, pois, embora não sejam referidas por nome, o certo é que a presença do

raciocínio que legitima estas noções em certas decisões jurisprudenciais faz-nos acreditar que a sua presença

e aplicação no ordenamento português não só é possível, como é desejável.

Possível e desejável é também a aplicação da lógica que subjaz às teorias de perda de chance ou

oportunidade no âmbito da responsabilidade civil do médico, incluindo nas pretensões de “Wrongful Birth”,

tanto nos ordenamentos estrangeiros como no nosso. Facilmente se imaginará casos onde tais teorias terão

relevância no âmbito da responsabilidade civil do médico, como, por exemplo, um caso onde a atuação

186 Rute Teixeira Pedro, «A Responsabilidade Civil do Médico - Reflexões Sobre a Noção de Perda de Chance e a Tutela do Doente Lesado», cit., pp. 274 e 275.

187 Rute Teixeira Pedro, «A Responsabilidade Civil do Médico - Reflexões Sobre a Noção de Perda de Chance e a Tutela do Doente Lesado», cit., pp. 275 e 276.

188 Rute Teixeira Pedro, «A Responsabilidade Civil do Médico - Reflexões Sobre a Noção de Perda de Chance e a Tutela do Doente Lesado», cit., pp. 232 e 236.

189 Como, por exemplo, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Dezembro de 1976. Cfr. Rute Teixeira Pedro, «A Responsabilidade Civil do Médico -

Reflexões Sobre a Noção de Perda de Chance e a Tutela do Doente Lesado», cit., p. 235.

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negligente de um médico retira a possibilidade de cura a um doente ou o impossibilitará de melhorar a sua

condição. Do mesmo modo, estas noções também se adequam à pretensão analisada.

Como já vimos, apesar de possuir pouca presença, o facto de já se usar o raciocínio presente nestas

teorias no nosso ordenamento em determinadas circunstâncias, atesta a admissibilidade da aplicabilidade

deste raciocínio no nosso ordenamento. Para mais, seguindo este raciocínio, verificamos que ele se adequa

na perfeição para os casos onde exista uma pretensão de “Wrongful Birth”, pois é de facto devido à

negligência, omissão ou erro no cumprimento dos deveres de informação por parte do médico que a

mãe/pais ficam impossibilitados de optar pela interrupção voluntária da gravidez, ou melhor dizendo, que

perdem a oportunidade de optar pela interrupção voluntária da gravidez.

É nestas últimas palavras que deve assentar a distinção mais importante para a admissão da

procedência deste tipo de pretensão. Em boa verdade, o que está em causa, ou deve entender-se estar em

causa, não é a impossibilidade da mãe/pais interromperem a gravidez devido à violação dos deveres de

informação do agente médico. Pondo-se a questão assim, não só não estamos, ou podemos não estar, a dizer

toda a verdade, como estamos, desde logo, devido a isso, a possibilitar alguns entraves à pretensão. Isto é

assim porque, tal como já se disse, ao pormos a questão dessa forma, estamos a fazer depender a pretensão

da atuação hipotética da mãe/pais, algo que se pode até considerar impossível de determinar ou provar, como

também já referimos. Deve-se antes referir aquilo que, a nosso ver, para o caso concreto, é mais correto

referir-se: que a mãe/pais foram impossibilitados de optar pela interrupção da gravidez, privados dessa

oportunidade ou chance, devido somente à atuação do agente médico (e não que é meramente graças a essa

atuação que a gravidez não foi interrompida).

Distinguimos assim estas duas formas de se pôr a questão da pretensão de “Wrongful Birth”,

destacando qual, a nosso ver, é o modo correto de se pôr a questão, a que mais correspondência tem com a

verdade, e que não causa, na nossa ótica, qualquer dificuldade no preenchimento dos pressupostos da

responsabilidade civil, incluindo o nexo da causalidade (graças ao raciocínio das teorias de perda de chance

ou oportunidade, também estas relevantes no nosso ordenamento).

Quanto ao montante indemnizatório e tipo de danos que devem ser compensados, no nosso entender,

parece-nos inequívoco a existência de danos não patrimoniais assim como patrimoniais. Os não patrimoniais

estarão assentes num certo dano moral ou psicológico existente na esfera da mãe/pais ao verem-se

definitivamente privados da oportunidade de optar pela interrupção voluntária da gravidez, estando agora, de

certo modo, “condenados” a suportar, a todos os níveis, um filho com deficiência, sem se terem pronunciado

sobre esse destino, situação essa que o próprio sistema jurídico tenta evitar ao admitir a permissibilidade da

interrupção da gravidez nestas situações, mediante a opção dos pais. Parecem-nos danos facilmente

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compreensíveis e inegáveis, cabendo ao tribunal a sua determinação e materialização num certo montante

pecuniário a atribuir a título de montante indemnizatório.

Quanto aos danos patrimoniais, estes corresponderão, como facilmente se depreenderá, aos gastos

extraordinários com o sustento e criação da criança com deficiência.

No entanto, como, na nossa ótica, fazemos a pretensão sustentar-se no raciocínio presente nas

teorias de perda de chance (ou oportunidade), os montantes indemnizatórios atribuídos devem ser habilmente

considerados.

Cremos que muito dificilmente, senão nunca, deveria ser atribuída uma indemnização por danos

patrimoniais correspondente a todos os gastos extraordinários com a criança com deficiência por parte da

mãe/pais. Existe uma impossibilidade ou improbabilidade de prova de que se optaria de facto pela

interrupção da gravidez, o que sustenta o raciocínio da aplicação das teorias de perda de chance ao caso,

considerando-se existir apenas a perda dessa oportunidade. Assim sendo, torna-se desproporcional, a nosso

ver, a atribuição de uma indemnização em tudo idêntica à hipotética indemnização que seria atribuída caso

houvesse tal certeza e prova da atuação da mãe/pais.

Dito por outras palavras, os danos patrimoniais decorrem da perda da opção de interrupção ou

manutenção da gravidez. Não sendo certo (ou não estando provado, ou não se podendo provar, a escolha

pela interrupção da gravidez), não vemos como atribuir um montante indemnizatório como se assim fosse.

Por este aspeto, consideramos que também o montante indemnizatório atribuído a título de danos

não patrimoniais é afetado (pelo menos em parte), pela mesma lógica.

Não consideramos que o montante indemnizatório atribuído a título de danos não patrimoniais

resultantes de se ver privado da oportunidade da escolha seja completamente alterado pela incerteza da

hipotética escolha, já que, fosse qual fosse a opção tomada (fosse possível ou não aferir com certeza qual

seria a escolha), haveria, em nossa perspetiva, sempre esse dano por se ver privado da oportunidade da

escolha. Todavia, não podemos deixar de considerar que o montante indemnizatório atribuído a título de

danos não patrimoniais não se deve resumir a tal. Na verdade, o montante indemnizatório atribuído a título de

danos não patrimoniais deve ser intensificado, expandido e empolado pelo facto de ter de sustentar e criar a

criança com deficiência depois de se ver privado da oportunidade da escolha, pelo que esse montante deve

ser afetado, pelo menos nessa parte. Deve pois, o montante indemnizatório atribuído a título de danos não

patrimoniais, ser também habilmente atribuído já que estará, pelo menos em parte, tal como o montante

indemnizatório atribuído a título de danos patrimoniais, em estreita ligação com a escolha hipotética incerta e,

como tal, também seria desproporcional considerar o montante igual ao que seria atribuído num cenário

hipotético em que a escolha pela interrupção da gravidez pudesse ser tomada como certa e provada.

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Logo, em alternativa, aderimos à opinião de Rute Teixeira Pedro190 de que poderá haver dois critérios

válidos para a determinação destes montantes.

O primeiro assenta numa dupla apreciação, envolvendo a apreciação do prejuízo/dano existente e a

apreciação da probabilidade de este ter acontecido ou não ter acontecido (ou seja, no caso concreto, na

apreciação da probabilidade de se ter optado pela interrupção da gravidez ou não).

O segundo assenta na resolução da questão por critério de equidade (artigo 566.º, nº 3 do Código

Civil).

Neste aspeto, referindo-nos ao primeiro critério, no nosso entender, a própria dificuldade de prova e de

apreciação da escolha hipotética que seria levada a cabo, poderá não permitir, em princípio, uma correta

apreciação percentual da probabilidade de tal escolha ocorrer. No entanto, não consideramos que tal seja

impossível, pelo contrário. Apesar das dificuldades, consideramos este método como o método mais viável

para a determinação dos montantes.

De facto, na nossa ótica, decorrerá do caso concreto a aplicação do primeiro ou do segundo critério e

o recurso à equidade (segundo critério) deverá ser sempre o último recurso, aplicável apenas em casos em

que o tribunal considere que o montante indemnizatório não poderá ser determinado por outro critério

(pressupondo que a aplicação do primeiro critério afigura-se inviável no caso concreto).

Nos casos em que tal não aconteça, poderá e deverá o tribunal fazer uso do primeiro critério,

determinando o prejuízo em causa (atribuindo-lhe um valor, por exemplo, 25.000,00) e determinando a€

percentagem probabilística do facto em apreciação se realizar (atribuindo-lhe uma percentagem, por exemplo,

40%). De seguida, deverá o tribunal conjugar as duas apreciações, determinando e correspondendo o

montante indemnizatório à percentagem aferida equacionada com prejuízo aferido (seguindo os exemplos

dados, 40% de 25.000,00).€Em conclusão, seguimos a tendência maioritária de aceitação da procedência deste tipo de

pretensões (“Wrongful Birth”), sendo nosso entendimento que nada obsta ao seu sucesso (quando

corretamente configuradas), devendo o seu foco ser a perda da oportunidade por parte da mãe/pais de optar

pela interrupção voluntária da gravidez (ou não) decorrente da violação dos deveres de informação do médico,

e o dano daí resultante.

Resta referir, finalmente, que não aderimos ao douto entendimento, já referido, de Carneiro da

Frada191 de que as pretensões de “Wrongful Life” e de “Wrongful Birth” terão de partilhar o mesmo destino

porque fundadas no mesmo facto, não podendo os pais invocar com sucesso uma pretensão com base no

nascimento do seu filho, quando a própria criança não o pode fazer em seu benefício. Tal posição não colhe,

190 Rute Teixeira Pedro, «A Responsabilidade Civil do Médico - Reflexões Sobre a Noção de Perda de Chance e a Tutela do Doente Lesado», cit., pp. 230 a 232.

191 Manuel A. Carneiro da Frada, «A Própria Vida como Dano? Dimensões Civis e Constitucionais de uma Questão-limite», cit., pp. 165 a 199.

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em nossa perspetiva, pois, embora as pretensões tenham por base a mesma situação fáctica, certo é que o

dano invocado, a posição jurídica dos autores das pretensões (assim como a sua própria identidade) e, em

suma, os fundamentos das duas pretensões, são perfeitamente distintos, não se podendo confundir. E, como

tal, merecerão tratamento diferente.

Tal tornar-se-á ainda mais evidente na nossa análise da pretensão de “Wrongful Life” que iniciaremos

de seguida.

b) Em Relação às Pretensões de "Wrongful Life"

Ao contrário da posição sustentada por nós acerca da pretensão anterior, afirmando a sua

procedência, o mesmo entendimento já não é (tendencialmente) acolhido por nós acerca das ações

denominadas por “Wrongful Life” (embora tal posição vá de encontro às posições dominantes acerca desta

pretensão, tal como no caso anterior).

Devemos, antes de mais, traçar ainda mais claramente a distinção entre as pretensões referidas. Já o

fizemos anteriormente mas cremos ser importante dar mais uma vez ênfase às suas diferenças pois é aqui

que assenta a diferença no seu tratamento, a nosso ver.

Ora, na pretensão anterior, a mãe ou os pais da criança, procuram uma indemnização por parte do

seu agente médico, assente no instituto de responsabilidade civil (médica), pelos seus próprios danos,

originados no facto de terem sido impedidos de poderem optar pela interrupção voluntária da gravidez do seu

nascituro devido à negligência, omissão ou erro nos deveres de informação do seu agente médico.

Na pretensão de “Wrongful Life”, pelo contrário, é o próprio nascituro, entretanto já nascido, que

procura uma indemnização desse mesmo agente médico, assente no instituto de responsabilidade civil, pelos

seus próprios danos, originados no facto de a sua mãe ou pais terem sido impedidos de poderem optar pela

interrupção voluntária da gravidez do seu nascituro (ou seja, da própria criança, do próprio autor da pretensão)

devido à negligência, omissão ou erro nos deveres de informação do seu agente médico.

Como vemos, o que varia é o sujeito, o autor da pretensão, e como tal também variará o tipo de dano

invocado. E é precisamente neste pressuposto da responsabilidade civil, no dano, e atendendo às mais

importantes diferenças entre as duas pretensões, que pensamos existir o maior impedimento à aceitação da

procedência deste tipo de ação.

Com efeito, na pretensão de “Wrongful Birth”, é fácil concretizarmos os danos em causa, é fácil

apercebermos-nos como a mãe ou os pais saíram prejudicados pela violação dos deveres de informação

exigíveis, tal como verificamos no ponto anterior. Mas e nas pretensões “Wrongful Life”? Nunca é demais

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relembrar que aqui a deficiência do nascituro não foi causada pelo médico, antes ela é uma condição inerente

e intrínseca ao nascituro, sendo inevitável. Logo, tal deficiência (em si) nunca pode ser imputada à

responsabilidade (civil ou de outra natureza) do agente médico.

Neste tipo de pretensão, a única violação de deveres que existe, a única coisa que pode ser invocada

contra o agente médico, é a violação dos seus deveres de informação para com os pais da criança. Em que

medida isto afeta a criança? Afeta-a somente e unicamente na questão do seu nascimento, nada mais.

Tivessem esses deveres sido perfeitamente cumpridos e a mãe ou os pais do nascituro poderiam ter optado

pela interrupção da gravidez, o que resultaria em a criança nunca ter nascido. Ora, portanto, é isto que a

criança invoca neste tipo de pretensões, que terá existido um dano por ter nascido, já que é portadora de

deficiência e terá de suportar essa condição durante toda a sua vida.

É esta conceção de dano que mais estranheza e problemas causa quando consideramos esta

pretensão, e é justo que assim o seja.

No nosso ordenamento, assim como na maioria dos ordenamentos, existe um valorização

fundamental da vida, não estando a vida do indivíduo na sua própria disponibilidade, não havendo distinção

entre pessoas com deficiência, ou de outro modo diminuídas, e as saudáveis192 (mas existe, por outro lado,

distinção entre um nascituro com deficiência e um nascituro sem deficiência, e entre o nascituro com

deficiência e um recém-nascido com deficiência ou não, quanto à sua proteção legal193).

Isto, esta valorização da vida implícita e explícita nos princípios mais basilares do sistema jurídico, por

si só, já poderá ser considerado impeditivo da consideração de qualquer dano válido juridicamente nesta

pretensão, como aliás atestamos nos argumentos de alguma jurisprudência e doutrina analisada

anteriormente.

Será portanto legítimo a criança com deficiência invocar o seu próprio nascimento como dano para ela

mesma, preferindo ela o término da sua existência antes de sequer nascer, ao invés do seu nascimento e

prosseguimento da sua existência?

Poder-se-ia argumentar que sim, uma vez que o próprio sistema jurídico, ao permitir a interrupção

voluntária da gravidez em casos específicos despenalizados na lei criminal, pode parecer estar a reconhecer a

validade do término da gravidez em causa em virtude de reconhecer a deficiência do nascituro como uma

circunstância danosa ou um dano para ele mesmo. Ou seja, poder-se-ia dizer que o Estado, o sistema

jurídico, reconhece aqui o dano que é nascer com deficiência ao garantir a impunidade do término destas

gravidezes. Mas, no entanto, não podemos concordar com essa interpretação.

Como se depreenderá do que aqui já tivemos oportunidade de referir acerca da interrupção voluntária

192 É aqui que se fundamenta a proibição do suicídio e da eutanásia no nosso ordenamento (e em muitos outros ordenamentos).

193 Como já vimos nas nossas considerações acerca da tutela do nascituro e da vida humana pré-natal no nosso ordenamento.

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da gravidez e da sua permissibilidade194, esta permissibilidade não confere um direito ao aborto, nem um

dever ao aborto, apenas considera que, face a esta questão-limite, não haverá vantagens em pressionar o

indivíduo, a grávida, num determinado sentido, aceitando, ou melhor dizendo, não condenando, a opção da

grávida quanto ao destino do nascituro, promovendo-se a autodeterminação da própria mulher (e não do

nascituro).

Ou seja, esta permissibilidade e a lógica que a fundamenta, é pensada do ponto de vista da mulher

grávida, nunca do nascituro. Não é o objetivo desta permissibilidade aferir-se o valor da vida do nascituro para

ele mesmo, e/ou se consideraria, ele próprio, que valeria a pena nascer ou não. Não há qualquer tomada de

posição por parte do sistema jurídico quanto a estas questões. Deste modo, é impossível retirar daqui, a

nosso ver, algum reconhecimento do nascimento de uma criança com deficiência como um dano para ela

mesma.

Posto isto, atendendo à impossibilidade de se retirar daqui qualquer interpretação que justifique o

reconhecimento perante o ordenamento jurídico da configuração do nascimento de uma criança com

deficiência como um dano para ela mesma (válido juridicamente), e atendendo à valorização dada pelo

próprio ordenamento jurídico à vida e à sua dignidade, estando a vida em si retirada da disponibilidade de

cada indivíduo, o pressuposto do dano afigura-se quanto a nós, em princípio, como um obstáculo fatal para a

pretensão.

Paulo Mota Pinto195, quanto a esta questão, refere-nos que a admissão da procedência da ação não

implica, por si, a consideração do nascimento como um dano, ou interfere com a princípio da

indisponibilidade da vida. Diz-nos antes, como se viu, que a improcedência da ação seria como que vedar à

criança com deficiência “comparar-se a uma pessoa “normal”, para o efeito de se obter uma reparação pelo

erro médico” e que as considerações e princípios sobre a disponibilidade da vida implícitos e explícitos no

nosso sistema jurídico só seriam afetados pela concessão da indemnização em causa se se pressupusesse

um juízo de valor sobre a vida humana e o seu valor comparada com a não vida. Mas perguntamos nós

agora, não é precisamente isto que está em causa? Não estará vedado por natureza à criança com deficiência

equacionar-se como uma criança sem deficiências quando tal característica (a deficiência) é uma

característica inerente dela, não podendo ela nunca existir sem essas deficiências? E porque se deveria

permitir essa abstração para efeitos de reparação de um erro médico quando tal erro não causou nem

influenciou de qualquer maneira essa característica na criança e apenas possibilitou o seu nascimento? E

ainda, não estará de facto aqui em causa um juízo quanto ao valor da vida humana face à sua não existência?

Repare-se, só existem dois cenários hipotéticos possíveis para a criança com deficiência decorrentes

194 Na nossa análise acerca da tutela do nascituro e da vida humana pré-natal no nosso ordenamento.

195 Paulo Mota Pinto, «Indemnização em caso de “nascimento indevido” e de “vida indevida” (“wrongful birth” e “wrongful life”)», cit., pp. 915 a 946.

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do cumprimento perfeito, ou conforme ao exigível, dos deveres do médico ou da sua violação: o nascimento

da criança com deficiência ou o não nascimento da criança com deficiência em virtude da gravidez ser

interrompida. Qualquer abstração que leve a criança a comparar-se com uma criança sem deficiências está

assente num cenário hipotético impossível, jamais alcançável fosse qual fosse a atuação do agente médico.

Logo, não fará sentido, nem será correto, comparar a criança com deficiência com essa situação impossível,

quanto mais responsabilizar o agente médico arguindo uma comparação entre a situação concreta e real do

autor da pretensão e uma situação impossível do mesmo.

Na nossa modesta opinião, só é possível comparar a situação concreta e real da criança com

deficiência (para efeitos de aferição de dano) com outra situação possível em que a criança se pudesse

encontrar em virtude da atuação do médico quanto aos seus deveres de informação. E só existe aqui uma

outra situação: a situação em que a criança não teria nascido.

Logo, para efeitos de aferição do dano, forçosamente temos de comparar a sua situação real com

uma situação de não vida, de não nascimento, e terá de existir um juízo que considere a situação de não vida

como inferior ou superior à situação real para se determinar se existiu o que pode ser considerado como um

dano para a criança, comparando uma situação com a outra. Logo, haverá, de facto, uma afetação dos

princípios acerca da disponibilidade da vida do nosso sistema jurídico, assim como os princípios que

subjazem à valorização da vida humana e da sua inviolabilidade no nosso ordenamento, na apreciação da

pretensão.

Não colhem assim os doutos argumentos de Paulo Mota Pinto quanto a esta temática, na nossa

modesta opinião.

Por sua vez, Marta de Sousa Nunes Vicente196 argumenta que, em virtude da aplicação da figura do

contrato com eficácia de proteção de terceiros ao caso concreto, existirá um prejuízo juridicamente reparável

derivado da violação dos deveres laterais de proteção para com o nascituro. Todavia, esta mesma autora

admite que estamos perante uma configuração do nascimento da criança com deficiência como um dano

para ela mesma. Logo, quanto a nós, esta figura não resolverá o problema do dano e da impossibilidade da

configuração do dano nesta perspetiva, tal como refere António Pinto Monteiro197. Terá sempre de existir a

comparação da situação real da criança com deficiência com a situação possível em que estaria, o que

pressupõe um juízo acerca do valor da vida da criança face à sua não vida para aferirmos qualquer possível

dano, o que se revela contrário aos princípios do nosso ordenamento jurídico.

Marta de Sousa Nunes Vicente198, contudo, avança para além deste problema e fundamenta a sua

196 Marta de Sousa Nunes Vicente, «Algumas Reflexões sobre as Acções de Wrongful Life: a Jurisprudência Perruche», cit., pp. 129 a 132.

197 António Pinto Monteiro, «Direito a não nascer? (Anotação ao Acórdão do STJ de 19 de Junho de 2001)», cit., pp. 382 e 383.

198 Marta de Sousa Nunes Vicente, «Algumas Reflexões sobre as Acções de Wrongful Life: a Jurisprudência Perruche», cit., pp. 139 e 140.

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posição de não aceitação da procedência deste tipo de pretensões nos princípios e fundamentos que

considera basearem o instituto de permissibilidade da interrupção da gravidez em certas circunstâncias (por

força de Lei Penal). Na opinião da autora, visto o carácter neutro que o sistema jurídico relega para a

apreciação destas questões, deixando-as essencialmente no âmbito da autodeterminação da mulher, não

assumindo ele mesmo uma real posição quanto à questão, seria contrário a esta lógica e contraditório ao

próprio sistema jurídico e à sua unidade admitir-se a procedência de uma ação de “Wrongful Life”, pois tal

seria como que o sistema jurídico tomasse uma posição ativa e valorativa acerca desta questão, imiscuindo-

se numa esfera que, por Lei, não interfere.

Concordamos com a autora, no seu argumento, mas apenas em parte. Ou, pelo menos,

consideramos que a posição requer um esclarecimento ou aprofundamento199.

Concretamente, não consideramos que existiria, propriamente, com a procedência desta pretensão,

uma tomada de posição por parte do sistema jurídico em si quanto a esta questão, quando até aí foi neutro,

mas existiria na mesma uma contradição quanto à unidade do sistema jurídico, também passível de obstar à

procedência da pretensão “Wrongful Life” (como o é o problema previamente considerado do dano). O que

existiria com a procedência da pretensão seria uma invasão da esfera de autodeterminação da mulher quanto

a estas questões, não pelo Estado, mas pelo próprio nascituro. O sistema jurídico apenas estaria a permitir

essa invasão.

Repare-se, o Estado e o sistema jurídico, na interrupção de gravidez permitida por Lei Penal ou não

punível, não só toma uma posição neutra quanto ao assunto, não pressionando a mulher em nenhuma

direção, como também garante que apenas a mulher tem o poder de decisão quanto ao assunto, deixando

fora de tal poder e dessa esfera qualquer outra pessoa, incluindo o próprio pai 200 do nascituro e o próprio

199 Refira-se ainda que Lusa Pinto César Correia de Paiva critica a posição mencionada de Marta de Sousa Nunes Vicente, arguindo que a autora deu um “salto

lógico” na sua argumentação ao afirmar o reconhecimento de “existências que não merecem ser vividas ou de um direito à não-vida”. No nosso entender,

concordamos que não será propriamente isto que estará em causa, mas pelas razões explicitadas e argumentadas, não concordamos com a conclusão de Lusa

Pinto César Correia de Paiva de admissão da procedência da pretensão em causa. Cfr. Lusa Pinto César Correia de Paiva, Pretensões de Wrongful Life: Uma

Alternativa aos Quadros Tradicionais da Responsabilidade Civil?, cit., pp. 77 e 78.

200 Discordamos aqui da posição aparentemente sustentada por Pedro Pais de Vasconcelos em que o autor admite que o pai do nascituro, devido a essa qualidade,

e apesar de estar retirado da previsão das disposições penais que regulam a interrupção da gravidez não punível, possa recorrer à Justiça para obrigar a mãe

do seu nascituro a prosseguir com a gravidez. Cfr. Pedro Pais de Vasconcelos, «A Posição Jurídica do Pai na Interrupção Voluntária da Gravidez», Pessoa

Humana e Direito, Coimbra, Almedina, 2009, pp. 381 a 409.

Cremos que o pai não está excluído desta previsão por acaso ou que se trate de uma lacuna. Não negamos a paternidade do pai da criança e os direitos

advindos dessa condição, mas também não negamos a relação especial derivada do vínculo biológico e físico da mãe ao nascituro, fator esse que se imiscui e

tem importância na posição dos pais em relação à criança. Esse fator impõe, desde logo, uma diferenciação entre os dois pais que o Direito não pode fingir não

existir. De fato, o nascituro confunde-se com o próprio corpo da mulher por estar dentro dele e qualquer decisão em relação a ele envolve considerações sobre o

corpo da mulher e poderá implicar alterações no mesmo. Obrigar a mulher a ter a criança seria uma “violência” que, desde logo, não teria equivalência com a

situação inversa (obrigar o pai a “ter” uma criança). Para além disso, a admissão de tal seria uma autêntica subversão da lógica que prevalece na

despenalização da interrupção da gravidez e que pretende libertar a mulher das pressões e da “violência” que se considera ser obrigá-la a optar num

determinado sentido. O sistema jurídico estaria a libertar a mulher dessa pressão e “violência” por parte de si mesmo, mas a admiti-la na mesma por outro

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nascituro. Há, de facto, uma certa desconsideração do nascituro nesta temática, como já previamente

referimos201, levantando-se (ou caindo) inclusive a proteção legal normalmente destinada aos nascituros

nestes casos. Não há uma preocupação nestes casos com a sua posição, em virtude do conflito em causa.

Ora, a contradição presente no sistema jurídico verificar-se-ia, desde logo, a partir do momento da

procedência da pretensão de “Wrongful Life”, pois estar-se-ia a desconsiderar o nascituro quanto à tomada de

decisão da interrupção voluntária da gravidez não punível num primeiro momento, mas estar-se-ia, pelo

contrário, a considerá-lo e valorizá-lo, exatamente quanto à mesma temática, mais tarde. A hipotética vontade

ou interesse do nascituro é desconsiderado nesse primeiro momento visto o regime em causa estar pensado

como um garante de reserva exclusiva para a mulher na tomada da decisão quanto à interrupção ou

prosseguimento da sua gravidez, mas essa vontade ou interesse do nascituro seria, mais tarde, já depois de

nascer, considerado e valorizado.

Segundo a lógica da pretensão de “Wrongful Life”, o nascituro teria um interesse relevante em que o

agente médico cumprisse perfeitamente (ou conforme ao exigível) os seus deveres de informação para que os

pais, ou melhor dizendo, a mãe, pudesse ter a oportunidade de optar pela interrupção da gravidez, o que

evitaria a situação em que este agora se encontra depois de nascer (existir como portador de deficiência).

Mas onde está este interesse e esta posição considerada nas disposições que regulam a interrupção voluntária

da gravidez não punível? Poder-se-ia argumentar que este instituto também é pensado a favor da criança com

deficiência, sendo do interesse da criança não nascer com deficiência e estando isso pressuposto no instituto,

mas discordamos deste entendimento. É nosso entender que, como já foi referido, o instituto é pensado do

ponto de vista da mulher, simplesmente não condenando a sua opção nesta situação-limite, admitindo que

seria uma “violência” obrigar ou pressionar de qualquer forma a mulher a optar em qualquer um dos sentidos

possíveis.

Sendo assim, cremos que existiria aqui, de facto, uma contradição na unidade do sistema jurídico ao

admitir e valorizar este interesse do próprio nascituro quando tal interesse é completamente desconsiderado

num momento anterior relativamente à mesma circunstância e temática. Ou seja, a contradição não

assentaria no facto de o Estado e o sistema jurídico tomarem uma posição quanto ao assunto quando, até aí,

e por Lei, tem uma posição neutra, mas no facto de admitir uma ingerência, por parte do nascituro,

entretanto nascido, numa esfera que reserva exclusivamente para a mulher grávida nessas questões (e em

relação à qual o desconsiderou previamente).

lado, quando nos parece evidente que o objetivo das disposições sobre a despenalização da interrupção da gravidez foi a reserva exclusiva da tomada da

decisão para a mulher. Se assim não fosse, poderíamos encontrar-nos perante a situação algo absurda de uma mulher com a possibilidade de interromper a

gravidez sem ser penalizada pela lei, mas estar obrigada a prossegui-la pelo Tribunal.

201 Quando tratamos da tutela do nascituro e da vida humana pré-natal no nosso ordenamento.

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Não cremos que o facto de o nascituro ter nascido entre estes dois momentos seja o suficiente para

justificar esta contradição inerente pois, apesar das mudanças e efeitos possibilitados pelo nascimento na sua

posição (aos quais já nos referimos202), nunca, em nenhum momento, enquanto nascituro ou enquanto

pessoa já nascida, está ou esteve na sua esfera o poder ou o direito de ingerir na esfera reservada

exclusivamente para a sua mãe enquanto mulher grávida. Valorizar ou considerar relevante o seu interesse

quanto a essa mesma questão quando previamente existe uma desconsideração do mesmo conduz, sem

dúvida, à permissibilidade da ingerência do nascituro nessa esfera e à contradição do sistema jurídico.

O nosso entendimento neste aspeto aproxima-se assim da lógica que subsistiu ao nosso Supremo

Tribunal de Justiça quando este se referiu à “desconformidade entre pedido e causa de pedir” na pretensão

de “Wrongful Life” que teve a oportunidade de julgar203 já que, como foi referido pelo Tribunal, a criança

alicerça o seu pedido numa faculdade exclusiva da mãe fora da sua própria esfera. No entanto, cremos que

não se trata apenas de um impedimento de foro formal e/ou processual como o Supremo Tribunal de Justiça

parece dar a entender. Como foi referido, para além do foro processual, parece-nos que tal implicaria uma

contradição do próprio sistema jurídico e da sua unidade, não podendo ser admissível.

António Pinto Monteiro204 refere-se à possibilidade de ultrapassagem do problema suscitado pelo

Tribunal quanto a esta desconformidade também por aplicação da figura denominada por contrato com

eficácia de proteção de terceiros. Tal solução parece-nos, todavia, insuficiente para a resolução da contradição

originada pela procedência desta pretensão.

A figura poderia de facto resolver o problema do ponto de vista da perspetiva formal ou processual, já

que a existência de deveres laterais de cuidado e proteção por parte do agente médico para com o nascituro,

que pressupõem a não violação dos deveres principais para com a mãe ou os pais do nascituro por parte do

agente médico, dão a legitimidade ou o fundamento ao nascituro, entretanto nascido, de prosseguir uma ação

com o objetivo de obter uma compensação indemnizatória por violação dos deveres principais e, em

consequência, dos deveres laterais para com ele. Mas temos dúvidas se essa aplicação resolveria a

contradição mencionada.

Na nossa ótica, a aplicação desta figura não afasta a comparação que se terá de efetuar entre a

situação real e a situação hipotética possível, como já tivemos oportunidade de ver, e tal pressupõe um juízo

sobre essa comparação para a aferição do dano. Do mesmo modo, a aplicação da figura não afasta o facto

de se estar a atender, na lógica das pretensões “Wrongful Life”, a um interesse do nascituro que é

desconsiderado previamente. A violação dos deveres laterais de cuidado e de proteção, existentes por via da

202 Quando tratamos da sua tutela à luz do nosso ordenamento.

203 E que já analisamos.

204 António Pinto Monteiro, «Direito a não nascer? (Anotação ao Acórdão do STJ de 19 de Junho de 2001)», cit., pp. 382 e 383.

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aplicação da figura, continuaria a implicar que se considere o interesse da criança com deficiência, que se

traduz no cumprimento perfeito (ou conforme ao exigível) desses deveres, para que fosse possível, à criança

com deficiência, nunca ter nascido (sendo esse interesse previamente desconsiderado no instituto de

permissibilidade da interrupção da gravidez nesses casos, como se referiu).

Ou seja, mesmo com a aplicação da figura, continuar-se-ia perante um desvirtuamento da lógica e do

fundamento que subsiste no sistema jurídico quanto à permissibilidade da interrupção da gravidez nos casos

previstos na Lei Penal e da sua reserva exclusiva para a esfera da mulher grávida.

Cremos, por força dos argumentos até agora aqui plasmados, que já se poderia concluir pela não

admissibilidade da procedência das ações de “Wrongful Life” no nosso ordenamento jurídico. Todavia,

subsistem ainda umas dúvidas quanto a um argumento frequentemente utilizado por vários autores para a

ultrapassagem dos variados problemas que esta pretensão suscita a nível dos pressupostos da

responsabilidade civil (e da lógica do funcionamento do sistema jurídico).

Como tal, dedicaremos agora algumas considerações acerca da possibilidade de aplicação da figura

dos contratos com eficácia de proteção de terceiros a esta situação factual.

Na nossa opinião, e tal como tivemos oportunidade de referir, a aplicação de tal figura é um dos

argumentos mais fortes para a aceitação da procedência da pretensão, uma vez que, a partir da sua

aplicação, aparenta tornar-se possível ultrapassar certos problemas que surgem a nível dos pressupostos

necessários para a efetivação da responsabilidade civil do agente médico.

Mas será esta aplicação possível e, sendo possível, resolverá ela todos os problemas de

admissibilidade da pretensão? Para se descortinar uma resposta, atentemos no que diz Manuel A. Carneiro da

Frada205 acerca do contrato com eficácia de proteção de terceiros.

Efetivamente, segundo o autor, e como até já tivemos oportunidade de referir206, admite-se a hipótese

da existência e aplicação desta figura no nosso ordenamento jurídico, sendo um exemplo clássico o contrato

de prestação de serviços médicos e o circunstancialismo em que o pais levam o filho menor ao médico,

tomando-se o filho como terceiro, e verificando-se uma “relação pessoal ou de dependência social” entre

credor e terceiro, “nos termos da qual coubesse ao credor um dever de assistência para com o terceiro”.

Mas, na perspetiva do autor, outro critério afigura-se importante para a aplicação da figura.

Nomeadamente, terá de existir um interesse, por parte dos terceiros em causa, “substancialmente

coincidente ou concordante com o credor da prestação”, caindo a aplicação da figura, a proteção dos

terceiros, no caso contrário. Apesar da doutrina divergente existente207, estamos inclinados a concordar com

205 Manuel A. Carneiro da Frada, Uma «Terceira Via» no Direito de Responsabilidade Civil?, Coimbra, Almedina, 1997, pp. 88 a 93.

206 Quando falamos da generalidade dos casos de responsabilidade civil por atos e omissões médicas em vida humana pré-natal.

207 Manuel A. Carneiro da Frada explica que Sinde Monteiro discorda neste ponto, argumentando que a figura pode existir em caso de interesses contraditórios mas

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Manuel A. Carneiro da Frada com a exigência deste critério. Não nos parece admissível que possam existir

deveres especiais de proteção e cuidado para com terceiros ao contrato que não possuam interesses

coincidentes com o credor, até porque poderia dar-se o caso da existência de uma situação em que, devido

aos interesses contraditórios existentes do credor e do terceiro, a mesma atuação do devedor poderia ir de

encontro aos interesses do credor mas contra os interesses do terceiro em causa.

Parece-nos que a razão de ser desta figura assenta num reconhecimento por parte do sistema

jurídico de que, em certos casos factuais e pontuais, será legítimo exigir do devedor uma atuação que não

desconsidere aqueles que, apesar de não se encontrarem incluídos como parte propriamente dita na relação

contratual entre devedor e credor, estarão intimamente ligados ao credor, havendo uma certa sobreposição ou

confusão dos seus interesses e posições na realidade, justificando a sua especial sensibilidade à atuação do

devedor e a exigência de deveres laterais especiais de cuidado e proteção por parte do devedor para com o

terceiro. A existência de interesses contraditórios ou a não existência de interesses coincidentes, quanto a nós,

não nos parece que se coadune perfeitamente com essa razão de ser, não havendo a tal sobreposição ou

confusão realística da sua posição e interesses.

Ora, considerando agora a mulher grávida e o nascituro no seu ventre, tomando-se a mulher grávida

como credor e o nascituro como terceiro no contrato de prestação de serviços médicos, podemos de facto

afirmar que existe uma “relação pessoal ou de dependência social” entre credor e terceiro, “nos termos da

qual coubesse ao credor um dever de assistência para com o terceiro” e que, em princípio, existirá, por parte

do nascituro um interesse substancialmente coincidente ou concordante com o credor da prestação,

estabelecendo-se um contrato com eficácia de proteção de terceiros a partir do contrato de prestação de

serviços médicos, conclusão a que já tínhamos até chegado previamente208. Mas existirá sempre este

interesse coincidente?

A relação entre a mulher grávida e o nascituro é uma relação complexa e mutável pelo que, em certos

casos, será complicado afirmar que o interesse dos dois, individualmente e abstratamente considerados, é, de

facto, coincidente. Atente-se no caso em que, por qualquer motivo, o feto põe em causa a vida da mulher

grávida, sendo o curso de ação médica mais aconselhável, terminar a gravidez (e sendo esta uma das

circunstâncias pela qual se admite a não punibilidade da interrupção da gravidez). Se considerarmos o

interesse de cada um dos dois, mulher grávida e nascituro, credor e terceiro, dificilmente podemos concordar

com uma argumentação que suponha que existe um interesse coincidente entre os dois nesta situação, se

forem os dois individualmente e independentemente considerados. E, nesta situação, o médico em causa

apenas caso o autor do parecer surja numa posição independente. Cfr. Manuel A. Carneiro da Frada, Uma «Terceira Via» no Direito de Responsabilidade Civil?,

cit., p. 92.

208 Quando falamos da generalidade dos casos de responsabilidade civil por atos e omissões médicas em vida humana pré-natal.

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dificilmente poderá atuar de acordo com os interesses da mulher e do nascituro, sem ir contra nenhum.

E quanto aos casos que fundamentam as pretensões de “Wrongful Life”? Aqui, as considerações

sobre os interesses em causa assumem ainda mais dificuldade. De facto, estas pretensões são pensadas e

invocadas a favor e em nome do nascituro entretanto nascido, e invoca-se no âmbito da ação que o interesse

da criança realmente é, ou seria, coincidente com o da sua mãe ou pais (em não nascer).

No entanto, o nascituro não tem voz própria para podermos aferir se o invocado era ou é realmente e

objetivamente o seu interesse, isto até porque estamos perante interesses de certo modo subjetivos,

estreitamente dependentes de um juízo valorativo. Na verdade, a pretensão funda-se precisamente no juízo

valorativo desse interesse, de que a criança com deficiência considera o seu nascimento, a situação real em

que se encontra, como um dano para ela mesma e que tal resulta unicamente da violação dos deveres de

informação do médico em causa para com a mãe ou aos pais da criança, já que, tendo sido estes cumpridos,

ter-se-ia seguramente optado pela interrupção da gravidez, sendo portanto o interesse do nascituro

coincidente com o interesse da mãe ou dos pais. Caso não existisse esse juízo valorativo, ou esse juízo fosse

diferente, dificilmente poderíamos dizer que estávamos perante interesses coincidentes.

Portanto, acreditamos que a aplicação da figura de um contrato com eficácia de proteção de terceiros

neste caso está inteiramente dependente de se considerar que o interesse do nascituro seria o mesmo que o

da sua mãe ou pais e, portanto, também proximamente ligado à questão da representação legal neste caso

(já que é através da representação que se vem afirmar que o interesse da criança é coincidente com o dos

seus pais).

Analisemos então se estaremos de facto perante o mesmo interesse ou se se poderá supor que é de

facto o mesmo interesse.

Na pretensão de “Wrongful Life”, a criança surge tipicamente representada pela mãe ou pelos pais.

São estes que invocam que o interesse da criança é ou seria coincidente com o deles. Poderão eles fazê-lo?

Em princípio, nada obstaria à sua representação, mas o caso concreto trata-se de uma situação-limite. Aqui,

não podemos de deixar de concordar com António Pinto Monteiro e Denys de Béchillon e afirmar que não

poderá deixar de existir uma contaminação entre a posição dos pais e a do nascituro209. Não vemos como

poderão eles assumir uma posição isenta, com suficiente abstração para, de facto, poderem aferir

corretamente o interesse do nascituro, quando todos os aspetos da sua própria vida estarão de tal forma

dependentes desse circunstancialismo e serão tão grandemente influenciados conforme o resultado.

Aliás, não vemos como poderia sequer alguém fazê-lo, mesmo não se tratando de nenhum dos pais,

amigo dos pais ou família da criança, pois está aqui a discutir-se, concretamente, o interesse da criança em

209 Marta de Sousa Nunes Vicente, «Algumas Reflexões sobre as Acções de Wrongful Life: a Jurisprudência Perruche», cit., pp. 138 e 139 e António Pinto Monteiro,

«Direito a não nascer? (Anotação ao Acórdão do STJ de 19 de Junho de 2001)», cit., p. 382.

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que o médico em causa cumprisse perfeitamente (ou conforme ao exigível) os seus deveres de informação

para dar à sua mãe a oportunidade de optar por terminar a sua existência. Isto pressupõe, inegavelmente,

que o representante considere se o nascituro tem o interesse de prosseguir a sua própria existência e nascer

ou se tem o interesse de não prosseguir a sua existência. Esta situação afigura-se complexa e difícil o

suficiente seja qual for a pessoa, quanto mais se for alguém com uma posição “contaminada”, como será o

caso dos pais da criança.

Neste aspeto, devido às dificuldades enunciadas, custa-nos a crer que seja de facto possível aferir o

interesse da criança e representá-la nesse sentido. Marta de Sousa Nunes Vicente210 argumenta que estas

dificuldades não poderão constituir um impedimento à representação da criança pois tal seria o mesmo que

remeter a criança a um “silêncio eterno”, mais prejudicial do que qualquer prejuízo que poderia advir desta

representação. Mas não podemos acolher esta perspetiva.

Na nossa ótica, estas dificuldades não impedirão a representação jurídica geral das crianças com

deficiência, conferindo-lhes uma voz (jurídica) perante a sociedade e o sistema jurídico, apenas poderão

impedir a sua representação nestes casos-limite muitos específicos onde o possível interesse em causa é de

tal complexidade e de uma natureza tão pessoal e sensível que dificilmente se admitirá que alguém possa

representar a criança nessa invocação.

Estamos a falar da valorização da própria vida e, em nossa modesta opinião, mesmo admitindo-se

hipoteticamente a configuração do nascimento da criança com deficiência como dano para ela mesma,

ultrapassando-se hipotética, abstrata e temporariamente este obstáculo fatal à pretensão aqui em causa, isto

não pressuporia, por si só, que algo tão sensível como essa configuração possa ser decidida ou perspetivada

por via da representação legal. Uma coisa será a valorização do próprio indivíduo sobre a sua própria vida e

outra será essa valorização efetuada por outrem, representante legal ou não.

Em nossa ótica, mesmo neste hipotético cenário onde se poderia admitir a vida como um dano para a

própria pessoa, tal matéria não seria automaticamente suscetível de representação legal devido à sua

excecionalidade.

Este possível entendimento proposto por nós pressupõe de facto um “silêncio” limitado a estas

pretensões ou circunstâncias excecionais para aquelas crianças cuja deficiência as impedirá de, por si só,

alguma vez intervir no sistema jurídico, mas outra solução não se nos afigura como adequada. O juízo

valorativo sobre a vida da criança com deficiência que teria de ser emitido pelo representante ou

representantes ultrapassa o que consideramos ser admissível, sendo na sua essência o mesmo que lhes

conferir a faculdade de poder afirmar com sucesso, perante o sistema jurídico, o valor da vida ou da não

210 Marta de Sousa Nunes Vicente, «Algumas Reflexões sobre as Acções de Wrongful Life: a Jurisprudência Perruche», cit., p. 139.

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existência da criança com deficiência.

No caso dos pais, como referido, tal seria ainda mais gravoso pois, apesar de serem aqueles que

estariam em abstrato mais habilitados a tal representação, são também aqueles que, bem analisados, serão

talvez os mais incapazes de uma representação correta devido à contaminação da sua posição e

sobreposição dos seus próprios interesses.

Posto isto, na nossa perspetiva, o interesse da criança nesta pretensão não poderá ser corretamente

escrutinado por via de representação legal, nem poderão vir os pais afirmar qual seria o interesse da criança.

Tão pouco se poderá presumir ser o interesse da criança coincidente com o interesse da mãe ou dos pais,

visto o nosso sistema jurídico não tomar qualquer posição quanto ao assunto. Mesmo no cenário hipotético

que admita perspetivar o próprio nascimento como um dano para a própria criança, tal facto não tornaria

possível qualquer presunção nesse sentido e, no sistema jurídico atual, em que tal perspetiva sobre um tal

dano não é possível na nossa ótica, uma presunção desse género seria possivelmente bem mais facilmente

estabelecida a favor da criança preferir a vida do que o contrário, devido à subjacente valorização e proteção

da vida do nosso ordenamento jurídico, estando até retirada da disponibilidade dos indivíduos (embora, como

se tenha referido, não haja uma tomada de posição pelo sistema jurídico).

Sendo assim, não vemos como seria possível acolher uma posição que considere os interesses do

nascituro e da mãe ou dos pais como coincidentes. Não existe uma presunção nesse sentido para estes

casos e, se existisse, o interesse do nascituro seria provavelmente mais facilmente considerado oposto ao

interesse da mãe ou dos pais que o contrário. Por via da representação também não vemos como seria

possível aferir esse interesse de modo correto e legítimo, não se devendo por isso admitir ou considerar

juridicamente possível tal eventualidade apenas e só nesta situação-limite, não estando em causa a sua

representação legal geral das crianças com deficiência nas demais situações.

Esta conclusão traz, desde logo, consequências ao nível da pretensão de “Wrongful Life” quanto à

representação do autor da pretensão, mas não traz consequências só a este nível pois, como vimos, a não

existência de interesses coincidentes será um obstáculo à aplicação do contrato com eficácia de proteção de

terceiros. Sem essa figura, vários obstáculos quanto aos pressupostos da responsabilidade civil não são

facilmente ultrapassados como mencionado pelos vários autores referidos, configurando-se também aqui, por

esta razão, uma séria dificuldade à aceitação da procedência deste tipo de ações no nosso ordenamento.

Por todos estes argumentos aqui expostos, somos forçados a concluir pela não admissibilidade da

procedência da pretensão de “Wrongful Life” no âmbito da responsabilidade civil (médica) no nosso

ordenamento, como referido. A solução para estes casos passará, em alternativa, pela segurança e

solidariedade social. Não estamos aqui perante uma “escolha” consciente, uma opção entre o instituto da

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responsabilidade civil e a solidariedade. O instituto da responsabilidade civil, no fundo, existe como uma

forma de responsabilização (civil) dos indivíduos cujo fim é a reparação do dano existente (mediante o

preenchimento dos requisitos necessários para a consideração e efetivação de tal responsabilização), e tal

simplesmente não acontece, não é o caso, nesta situação concreta. Não estamos aqui a tentar afirmar que a

atuação do médico não carece de qualquer responsabilização civil, consideramos apenas que tal

responsabilização já se encontra efetivada e esgotada mediante a pretensão “Wrongful Birth”, estando, aí sim,

todos os pressupostos e requisitos preenchidos e realizados. Tal não acontece com a pretensão “Wrongful

Life”.

Logo, não se opta pela não aplicação do instituto da responsabilidade civil, chega-se antes a essa

conclusão pela correta análise da questão. A segurança social ou solidariedade social surge então como

salvaguarda da posição da criança com deficiência, cumprindo a sua função de ajuda aos necessitados e

carenciados. É este, no fundo, o objetivo essencial da segurança ou solidariedade social, pelo que facilmente

se conclui que terá de ser por este caminho que se deverá proteger a criança com deficiência em caso de

necessidade.

Por último, não concordamos com a opinião de que a aceitação de uma destas pretensões

(“Wrongful Birth” e “Wrongful Life”) deverá significar a automática aceitação da outra, simplesmente por

assentarem no mesmo facto e só variar o autor da pretensão211, tal como já referimos também quanto à

nossa apreciação das pretensões de “Wrongful Birth”. Aprofundando mais um pouco a questão, cremos que

esta é uma perspetiva simplista do problema que ignora as reais diferenças entre as duas pretensões,

começando desde logo pelo diferente dano existente e reclamado nas duas pretensões. Não estamos perante

uma mera ilusão jurídica quando apreciamos as diferenças entre ambas as pretensões, estamos apenas a

tratar diferentemente o que realmente é diferente. Na nossa opinião é óbvio que, em abstrato, de um único

facto podem resultar vários possíveis danos a vários e distintos sujeitos, relacionados ou não entre si, e que a

admissão de um ou alguns destes danos não implica automaticamente a admissão de todos, seja por não

serem danos válidos de um ponto de vista jurídico ou por qualquer outra razão. Deste modo concluímos pela

independência de tratamento reservada a cada uma das pretensões.

211 Como sustenta, por exemplo, Fernando Dias Simões. Cfr. Fernando Dias Simões, «Vida Indevida? As Acções por Wrongful Life e a Dignidade da Vida Humana»,

Revista de Estudos Politécnicos, Vol. VIII, n.º 13 (2010), p. 202.

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6. Conclusões

– Os ramos de ciência e saber humano designados por Medicina e Direito influenciam-se e moldam-se

mutuamente, contribuindo de variadas formas para o seu mútuo desenvolvimento e dando, cada um

deles, um contributo vital para a sociedade humana atual e a realização do indivíduo na mesma;

– O regime de responsabilidade civil aplica-se também à Medicina, procurando pautar e regular as

relações que se estabelecem entre os médicos e os indivíduos comuns da sociedade, no âmbito do

exercício profissional do médico;

– O regime de responsabilidade civil aplicado ao médico no âmbito do exercício da sua profissão

(também denominado de regime de responsabilidade civil médica) não desconsidera as

especialidades da profissão, existindo uma adequação do regime de responsabilidade civil comum às

especificidades da prática médica e às necessidades que a sociedade pretende ver supridas com a

responsabilização (civil) do médico nestas situações;

– Com essa adequação surgem várias considerações acerca da natureza da responsabilidade civil

médica, dos seus pressupostos e requisitos, o preenchimento destes e a obrigação que recai perante

os médicos nas factualidades que poderão dar azo à efetivação da responsabilidade civil médica;

– Conclui-se assim, em princípio (e admite-se) a natureza contratual da responsabilidade civil médica,

embora existam também várias situações onde a única conclusão possível é a de estarmos perante

uma natureza extra-contratual desta responsabilidade, dependendo assim, a natureza desta

responsabilidade, da situação fáctica concreta. Contudo, em princípio, a obrigação que vincula o

médico é uma obrigação de meios e de diligência, e não de resultado (embora existam situações em

que o profissional médico está vinculado por uma verdadeira obrigação de resultado), pelo que no

exercício da sua profissão o médico não se comprometerá, não irá garantir, o resultado pretendido.

Antes, ele apenas se comprometerá a agir conforme ao exigível pela “legis artis” e também segundo

um critério abstrato de um bom profissional médico. A distinção entre obrigação de meios e de

resultado permite ultrapassar as dificuldades que de outro modo surgiriam pela aplicação de uma

modalidade de responsabilidade (contratual ou extra-contratual) e correspondente presunção de

culpa, sendo esta distinção talvez mais importante que a distinção entre a modalidade de

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responsabilidade existente (até por se considerar existir uma certa aproximação das duas

modalidades na responsabilidade civil médica);

– A responsabilidade civil médica pressupõe, na sua generalidade, o uso de peritos médicos que

“emprestem” o seu saber ao Direito de modo a que conduta concreta de um determinado médico

possa ser corretamente apreciada. Deste modo, esta intervenção é instrumental para essa

apreciação, assim como para o preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil médica

(como, por exemplo, a culpa e o nexo de causalidade) e qualquer outra dificuldade que o Direito,

materializado no Tribunal e no Juiz da causa, possa sentir no caso concreto por não estar a par da

realidade médica (ou compreendê-la) como esses peritos estarão (e compreenderão). Todavia, esta

realidade que torna necessário o recurso a peritos médicos é indicador da posição inferiorizada do

indivíduo comum no âmbito da responsabilidade civil médica, já que, cabendo-lhe geralmente a

prova, ele estará muitas vezes dependente da opinião e da intervenção destes peritos para fazer valer

a sua pretensão. Tais dificuldades têm contribuído significativamente para uma boa parte das críticas

que se fazem sentir ao regime de responsabilidade civil médica;

– A vida humana pré-natal, ou seja, o nascituro, encontra, no nosso ordenamento, uma tutela penal,

assim como uma tutela civil, que regula a sua posição, sendo-lhe concedida uma forte proteção legal;

– Trata-se de um tipo de ilícito penal atentar contra a vida e integridade física do nascituro no nosso

ordenamento, sendo assim proibido, em princípio, o aborto, configurando-se assim uma real tutela

penal do nascituro, que também encontra justificação na letra constitucional (princípio da

inviolabilidade da vida). Contudo, existem situações, previstas na Lei Penal, onde a interrupção da

gravidez não é penalizada. Considera-se estar, nestes casos, perante uma situação-limite de conflito

de interesses contrapostos, justificando-se assim a não penalização da situação. Tal não se afigura

como inconstitucional pois estas situações-limite originadas pelos conflito de interesses em causa

pressupõem que não seja razoável uma aplicação cega e inadequada dos princípios constitucionais

relevantes, nomeadamente o princípio da inviolabilidade da vida. Mesmo no caso da interrupção da

gravidez por mera escolha da mulher, situação permitida e despenalizada recentemente na Lei Penal,

não se afigura estarmos perante uma inconstitucionalidade. Apesar de, nesta situação, os interesses

em causa, contrapostos ao interesse do nascituro, não serem tão relevantes ou fortes como os

presentes nas outras causas previstas para a despenalização da interrupção da gravidez, estes serão

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relevantes e não poderão ser subestimados. Em conjunto com o exigido desenvolvimento precoce do

nascituro (na Lei Penal em virtude do parâmetro temporal exigido), estes podem ser argumentos

ponderosos o suficiente para, dentro da lógica de conflito de interesses existente, também

justificarem a despenalização dessa situação, sem que tal padeça de inconstitucionalidade;

– No âmbito da tutela civil do nascituro verificamos diversas opiniões quanto aos seus direitos.

Consideramos várias posições nesta matéria válidas e defensáveis, defendendo várias delas o direito à

vida do nascituro e, até decorrentes do mesmo, o seu direito à integridade moral e física, assim como

personalidade jurídica e capacidade de gozo. Não negamos estes direitos mas também não

ignoramos a condição imposta pelo artigo 66.º, n.º 2 do Código Civil, exigindo o seu nascimento para

a existência dos seus direitos, pelo que existirá uma verdadeira condição suspensiva para a efetivação

destes direitos. De modo similar, o artigo 66.º, n.º 1 do Código Civil, que faz corresponder a

atribuição da personalidade jurídica ao nascimento completo e com vida, também impõe uma

condição suspensiva sobre a personalidade jurídica do nascituro. Existem cada vez mais autores a

fazer corresponder a personalidade jurídica ao nascituro a partir da sua conceção, mas não cremos

que tal posição, assim como a defesa destes direitos do nascituro ignorando a condição suspensiva

existente por força das mencionadas disposições, seja coerente com o funcionamento do regime

pensado e existente no nosso sistema jurídico. É importante distinguir aqui a defesa do que o sistema

jurídico devia ser e a defesa de interpretações do sistema jurídico que tentam puxar o sistema jurídico

para o que se acha que devia ser, ignorando (parcialmente ou não) como ele é;

– O regime de responsabilidade civil comum encontra aplicação nas situações que envolvem

nascituros, consistindo aí a capacidade do nascituro um caso especial. No caso de morte do

nascituro, tal dano pode ser, mesmo assim, ressarcido por responsabilidade civil fundamentada no

artigo 496.º do Código Civil. Não importa aqui as considerações sobre o direito à vida do nascituro

pois, seja qual for a consideração, parece líquida a aplicação e relevância deste artigo e das suas

disposições já que não será aqui o nascituro o titular do direito. Não parecem existir dificuldades em

incluir-se o nascituro no conceito de vítima usado no artigo 496.º do Código Civil mas, mesmo que

assim se entendesse, a sua morte seria sempre origem de responsabilidade civil uma vez que o

nascituro tem proteção legal e penal, sendo o término da sua vida, em princípio, um tipo legal de

crime, e portanto suscetível de originar responsabilidade civil para além de penal. Em caso de

qualquer dano para além da morte, virá, o próprio nascituro, normalmente através de representação

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legal parental, deduzir, em juízo, o ressarcimento dos seus danos, não existindo, neste caso,

nenhuma consideração especial a tecer;

– Quando estamos perante uma situação que envolva um nascituro e um médico no âmbito do

exercício da sua profissão, estamos perante uma eventual interseção das temáticas da

responsabilidade civil médica e da vida pré-natal;

– Os casos mais comuns desta interseção serão os casos onde o médico, atuando no âmbito da sua

profissão mas de modo desconforme ao que lhe seria exigível, causa um dano ao nascituro. Mas

existem ainda outros casos mais incomuns de uma eventual interseção entre estas duas temáticas:

os casos de responsabilidade civil médica na conceção humana e os casos de responsabilidade civil

médica pelo nascimento (em si) de uma criança com deficiência;

– Os casos mais comuns não carecem de extensos comentários já que poucas mais considerações

relevarão para estes casos do que o que já expusemos acerca da responsabilidade civil comum

aplicada ao nascituro e as especialidades próprias referidas da responsabilidade civil médica. Todavia,

deve-se referir dois aspetos que aqui podem ser integrados. Quanto ao primeiro, referente à

possibilidade de admissão da figura de contratos com eficácia de proteção de terceiros nos casos de

estabelecimento de um contrato de prestação de serviços médicos entre o médico em causa e a

mulher grávida, configurando-se o nascituro como um terceiro, deve-se concluir, em princípio, pela

aceitação desta aplicação (devido à sua razoabilidade e preenchimento das características

necessárias). Quanto ao segundo, referente à posição assumida pelo próprio médico no procedimento

de interrupção da gravidez nos casos despenalizados por Lei Criminal para efeitos de

responsabilidade civil, devemos concluir que não existe aqui qualquer possibilidade de

responsabilidade civil médica por simplesmente interromper a gravidez, já que tal seria contrário à

unidade do sistema jurídico. Contudo, tal como qualquer outro procedimento médico, pode existir

responsabilidade civil médica se a atuação do médico não for conforme ao exigível e se se desviar

das condições rígidas plasmadas na Lei Penal para a legitimidade da interrupção da gravidez não

punível;

– Quanto a um dos casos mais incomuns da interseção das temáticas referidas, mais concretamente,

relativamente à responsabilidade civil médica na conceção humana, podemos dividir esta questão em

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duas: procriação medicamente assistida e casos de “Wrongful Pregnancy”;

– Na procriação medicamente assistida, existem preocupações substanciais com a dignidade humana e

com as possibilidades de intervenção e alteração da conceção humana e do próprio ser humano. Tais

preocupações refletem-se em múltiplas possibilidades de responsabilidade para o médico, sendo

talvez a perspetiva criminal e a contra-ordenacional mais relevantes neste âmbito que a

responsabilidade civil do mesmo. No entanto, mesmo esta responsabilidade terá aqui relevância

podendo surgir no contexto dos próprios procedimentos médicos conexos com a procriação

medicamente assistida, assim como da utilização e manuseamento das células humanas de

reprodução. A Lei 32/06, de 26 de Julho, tem aqui relevância fundamental, regulando e pautando a

procriação medicamente assistida no ordenamento português;

– Os casos de “Wrongful Pregnancy”, por seu lado, consubstanciam-se numa pretensão, numa ação de

responsabilidade civil (médica), que argumenta que a conduta do médico em causa (desconforme ao

exigível) provocou uma conceção indesejada ou, pelo menos, indesejada nas condições factuais

existentes, pretendendo-se, em consequência, uma indemnização do médico;

– As factualidades típicas que fundamentam as pretensões “Wrongful Pregnancy” consistem,

maioritariamente, na ineficácia de procedimentos de esterilização (por negligência, erro ou omissão

do médico em causa) ou num erróneo diagnóstico genético sobre a propensão genética de um

eventual nascituro para alguma deficiência congénita;

– Este tipo de pretensões foi já alvo, ao longo dos anos, nos mais variados ordenamentos, de várias

apreciações jurisprudenciais e doutrinárias, tendo-se questionado se se deverá admitir e aceitar a

procedência de tais ações, ou se elas estarão sempre condenadas ao fracasso. Tende-se, atualmente,

para uma posição que admite a procedência deste tipo de ações quando todos os pressupostos e

requisitos se encontrarem preenchidos. A maior dificuldade passa, no entanto, pela atribuição da

indemnização, existindo múltiplas perspetivas sobre o montante da mesma e o alcance dela,

existindo múltiplas considerações sobre o montante e o alcance dos danos que se pretende

indemnizar;

– Também no nosso ordenamento devem estas pretensões ser admitidas, sob pena de

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desresponsabilizar completamente a conduta do médico sempre que o resultado da sua conduta seja

“apenas” a conceção de um nascituro. Quanto ao alcance e montante da indemnização, quanto

estamos perante uma criança saudável, talvez fosse útil a aplicação de um critério de

proporcionalidade quanto a esse alcance e quanto a esse montante, sob pena de serem excessivos.

No entanto, no caso de nascimento de uma criança com deficiência, tendo em conta que a criança

era desejada, apenas não era pretendida com deficiências, não vemos porque não atribuir uma

indemnização capaz de cobrir os custos extraordinários suportados pelos pais em virtude da

deficiência (excluindo os custos normais de sustento da criança);

– O outro caso mais incomum de uma eventual interseção das duas temáticas referidas, resume-se às

situações onde estarão em causa ações de “Wrongful Birth” e “Wrongful Life”, ou seja, à

problemática da responsabilidade civil médica pelo próprio nascimento (no âmbito destas ações, pelo

próprio nascimento de uma criança com deficiência);

– Ao contrário das ações de “Wrongful Pregnancy” não se argumenta, nestas ações agora em causa,

que a conduta do médico, desconforme ao que seria exigível, provocou uma conceção. Ela já existia

nestes casos. Antes argumenta-se que a conduta do médico, desconforme ao que seria exigível,

violadora dos seus deveres de informação para com os pais do nascituro, provocou a impossibilidade

destes de optarem pela interrupção da gravidez já que existe nestes casos uma malformação no

nascituro que permitiria a interrupção da gravidez não punível e eles não foram corretamente

informados sobre essa malformação (sem nunca a própria malformação ter sido provocada pelo

médico, contudo);

– As ações de “Wrongful Birth” e “Wrongful Life” distinguem-se entre si pela posição do autor da

pretensão e pelo dano invocado. Nas ações de “Wrongful Birth” os autores da pretensão são os pais

do nascituro, invocando danos próprios por se terem visto privados da opção de interromper a

gravidez devido à conduta do médico em causa (não tendo ele agido como lhe seria exigido, violando

os seus deveres de informação para com os pais do nascituro). Pelo contrário, nas ações de

“Wrongful Life”, o autor será a própria criança, invocando o dano de ter que viver com deficiência, por

ter nascido, devido à conduta do médico em causa que privou os seus pais de poderem optar pela

interrupção da gravidez, terminando, desse modo, a sua existência;

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– Ambas as pretensões são ricas em jurisprudência e doutrina nos mais variados ordenamentos

(incluindo o nosso), existindo múltiplas tomadas de posições quanto a ambas em vários sentidos.

Contudo, a tendência global verificada é a de aceitação da procedência das ações de “Wrongful

Birth” (quando todos os seus requisitos se verificarem) e a rejeição, por outro lado, das pretensões de

“Wrongful Life”. Tal reação é natural devido à estranheza que causa esta última pretensão, parecendo

configurar a vida da própria criança como um dano ou uma fonte de dano, o que, tendo com conta o

princípio de valorização de vida humana presente na maioria dos ordenamentos, parece ditar o

insucesso da pretensão;

– Quanto a nós, seguimos esta tendência global de aceitação das ações de “Wrongful Birth” e rejeição

das de “Wrongful Life”;

– No caso das ações de “Wrongful Birth”, parece-nos certo que o agente médico violou deveres que lhe

eram exigíveis devido ao vínculo existente entre ele e os pais do nascituro. Além disso, o cumprimento

destes deveres afigura-se primordial para a possibilidade de interrupção de gravidez não punível

devido a malformações do nascituro. Não lhe ser exigível esse cumprimento (inclusive por parte dos

pais do nascituro) pareceria ser contrário ao que se espera alcançar com as disposições da

interrupção da gravidez não punível. Quanto aos pressupostos necessários para a efetivação da

responsabilidade civil, estes parecem preencher-se sem dificuldade, com a exceção do pressuposto

do nexo da causalidade. Na verdade, apesar de se argumentar no âmbito destas ações que a mãe do

nascituro teria optado pelo interrupção da gravidez, a verdade é que estamos a falar de um cenário

hipotético, impossível de se verificar. Logo, tal causa dificuldades ao pressuposto do nexo da

causalidade, pois não há uma garantia que se teria optado pela interrupção da gravidez e haverá

sempre muita dificuldade de prova neste aspeto. Contudo, cremos que não é uma dificuldade

inultrapassável já que acreditamos que a aplicação das teorias de chance e oportunidade têm aqui

relevância e poderão ser aplicadas, fazendo uso da probabilidade da verificação do acontecimento

dessa interrupção para limitar o montante da indemnização atribuída. A lógica subjacente a estas

teorias já encontrou acolhimento no nosso ordenamento em alguns casos, pelo que cremos que nada

obsta à sua aplicação neste caso e no nosso ordenamento, já que tal é razoável e adequado.

Concluímos assim pela procedência deste tipo de ações;

– Quanto às ações de “Wrongful Life”, cremos que a possibilidade da sua admissão cai desde logo por

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esta pressupor uma comparação entre a situação de vida existente da criança e a única outra

possibilidade para a criança: a não vida. Isto pressupõe um juízo valorativo de comparação entre as

duas situações que considere a situação de não vida como superior à situação de vida existente da

criança, atentando-se assim contra o princípio de dignidade de vida humana e a sua valorização que

fundamenta todo o nosso sistema jurídico. Tal não poderá ser admissível, caindo a possibilidade de

procedência da ação já aqui. Por outro lado, esta ação também pressupõe uma valorização da

posição e da opinião da criança em relação a algo que a exclui e a desconsidera, nomeadamente, as

disposições sobre a interrupção de gravidez não punível. De facto, nestas disposições existe uma

reserva absoluta da posição da mãe em virtude do reconhecimento da situação-limite em que se

encontra e do conflito de interesses em causa. Ou seja, o sistema jurídico, tendo em conta o conflito

de interesses em causa, não toma uma posição por ele mesmo em relação ao assunto mas, no

entanto, resolve-o deixando para a esfera de autodeterminação da mulher a decisão quanto ao

prosseguimento ou interrupção da gravidez, reconhecendo que seria uma “violência” obrigar a

mulher a agir num determinado sentido. Garante o sistema jurídico, deste modo, a reserva dessa

decisão para a mulher, livre de quaisquer pressões e influências, havendo, inclusive, uma verdadeira

desconsideração do nascituro, da sua posição e do seu interesse no processo. Ora, numa pretensão

de “Wrongful Life”, pelo contrário, argumenta-se que o nascituro tinha um determinado interesse

nessa matéria. A procedência da ação causaria, por isso, uma contradição, já que num primeiro

momento, relativamente ao mesmo assunto, o sistema jurídico desconsidera o nascituro, a sua

posição e interesse, e agora, através da procedência da ação, estaria a considerar e a valorizar essa

posição e interesse e a permitir que o nascituro entrasse numa esfera que foi reservada

exclusivamente para a mãe. Tal afigura-se incoerente e portanto, também por razões de unidade e

coerência do sistema jurídico, também a ação não deveria ser admitida. Por último, outras

dificuldades também obstariam ou causariam enormes entraves à procedência desta ação já que a

aplicação da figura do contrato com eficácia de proteção de terceiros, um dos maiores argumentos

para a ultrapassagem das dificuldades de aceitação destas ações, não se nos afigura como certa. De

facto, um dos requisitos essenciais para a aplicação da figura é a correspondência dos interesses do

credor e do terceiro (da mãe ou dos pais e o nascituro) mas não nos parece certo que estes o sejam

de facto já que a mera determinação do interesse da criança nesta ação parece-nos algo bastante

complexo e dificilmente ultrapassável. Geralmente a necessidade dessa determinação seria suprida

através da representação legal, normalmente através da representação legal parental, mas não

cremos que numa situação em que o que está em causa é a determinação do interesse da criança

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em viver ou não viver, nascer ou não nascer, fosse legítimo a qualquer pessoa representar alguém

para proferir esse seu interesse (de tão sensível, pessoal e dependente de valorização que esse

interesse é). Acresce que os pais, em teoria os que melhor poderiam representar a criança, estarão

sem dúvida contaminados na sua aferição do interesse da criança devido à confusão entre este e os

seus próprios interesses. Deste modo, não cremos que esse interesse pudesse ser determinado desta

forma e dependendo a aplicação da figura do contrato com força de proteção de terceiros do

interesse coincidentes, esta aplicação cairia causando também, aqui, imensas dificuldades à

aceitação da procedência da ação;

– Cremos, portanto, que as possibilidades de responsabilidade civil médica nestes casos esgotam-se

nas pretensões de “Wrongful Birth”, não sendo de se admitir as pretensões de “Wrongful Life”,

cabendo ao Estado Social o suprimento de quaisquer outras necessidades que surjam, por ser essa a

sua função e propósito.

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