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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
MARCOS JOSÉ MARTINS ARAUJO
O BATUQUE E O MARABAIXO PROTESTANTE. PANORAMA MUSICAL DO
QUILOMBO DO MEL DA PEDREIRA
SÃO PAULO
2016
MARCOS JOSÉ MARTINS ARAUJO
O BATUQUE E O MARABAIXO PROTESTANTE. PANORAMA MUSICAL DO
QUILOMBO DO MEL DA PEDREIRA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Ciências da Religião da
Universidade Presbiteriana Mackenzie como
requisito parcial para a obtenção do Título de Mestre
em Ciências da Religião
Orientador: Prof. Dr. João Baptista Borges Pereira
SÃO PAULO
2016
A663b Araújo, Marcos José Martins O batuque e o marabaixo protestante: panorama musical do
Quilombo do Mel da Pedreira / Marcos José Martins Araújo – 2016.
148 f.: il ; 30 cm Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2016. Orientador: Prof. Dr. João Baptista Borges Pereira Bibliografia: f. 146-148
1. Religião 2. Quilombo 3. Música 4. Etnicidade 5. Identidade I. Título II. Quilombo do Mel da Pedreira LC BX9042.B66
Dedico esta pesquisa primeiramente a Deus a
quem reputo ser a fonte de toda inspiração, toda
sabedoria e todo conhecimento. “Ó
profundidade das riquezas, tanto da
sabedoria, como da ciência de Deus! Quão
insondáveis são os seus juízos, e quão
inescrutáveis os seus caminhos! Por que
quem compreendeu a mente do Senhor? Ou
quem foi seu conselheiro? Ou quem lhe deu
primeiro a ele, para que lhe seja
recompensado? Porque dele e por ele, e para
ele, são todas as coisas; glória, pois, a ele
eternamente. Amém. ” Romanos 11:33-36
Agradecimentos
Agradeço primeiramente a Deus provedor desta oportunidade ímpar, ao excelente
Corpo Docente do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da
Universidade Presbiteriana Mackenzie, aos coordenadores Prof. Dr. Rodrigo Franklin
de Sousa e Prof. Dr. Ricardo Bitun e, especialmente meu orientador Prof. Dr. João
Batista Borges Pereira pelos imensuráveis ensinamentos, por ser um grande mestre
que faz com que seus orientandos não se enfastiem do saber e do querer aprender,
e por ser acima de tudo um ser humano muito generoso.
Ao amigo e reverendo Prof. Dr. Antonio Maspoli de Araujo Gomes por me apresentar
o Quilombo do Mel da Pedreira, por ser o meu primeiro incentivador para a pesquisa
e um grande companheiro de visitas e investigações. Muito obrigado também por seus
ensinamentos, por sua amizade e por ter aberto a porta desse lindo caminho para
mim. Que Deus o recompense sobre medida.
Ao amigo-irmão César Vallim Toledo por todo apoio e por sonhar juntamente comigo
com esta pesquisa. Por todo apoio e incentivo, pelas orações, pelo ombro amigo,
pelos conselhos e pela presença sempre marcante em todos os momentos
importantes, principalmente os mais difíceis.
A minha família, aos meus pais Ieda e Alcides pelo irrestrito encorajamento, a minha
querida esposa Denise por toda dedicação, compreensão, por me alentar e
entusiasmar em todo tempo, mesmo nos momentos em que a fadiga da pesquisa e
todos os afazeres profissionais exauriam minha energia. Aos meus lindos filhos Lucas
e Matheus por todo carinho e amor que manifestaram sobretudo nas minhas
ausências por conta das visitas de campo.
Meu especial agradecimento a toda a comunidade do quilombo do Mel da Pedreira
por me receber tão abertamente e me fazer sentir parte do grupo em todos os
inenarráveis dias que compartilhamos experiências e, dedico também este trabalho a
vocês. Agradeço o Sr. Alexandre, o Sr. Benedito, todos os líderes da comunidade,
músicos, cantores, compositores, Pr. Osvaldino e família pela acolhida tão carinhosa
em sua casa e ao grande amigo Zé Miguel. Todos vocês contribuíram
desmedidamente sobre este trabalho!
“Concentrando-nos apenas nesses três: ritmo,
melodia e harmonia, é fato, hoje indiscutível e
cientificamente experimentado, que cada um desses
elementos tem ação (ou influência) preponderante
sobre parte específica do organismo humano: o
ritmo sobre os músculos; a melodia sobre as
emoções e a harmonia sobre o intelecto”
Parcival Modolo
Resumo
Este trabalho analisa a influência da música no contexto social e no culto da
comunidade étnica presbiteriana do Mel da Pedreira. Compara a música do culto
quilombola com a música das festas tradicionais africanas dos quilombos da região, o
Batuque e o Marabaixo, analisando no repertório litúrgico por meio de pesquisas de
observação, audição e entrevistas, as origens culturais presentes nas músicas
executadas na comunidade através dos quatro pilares da música: melodia, harmonia,
ritmo e hinódia, no intuito de contribuir com o registro da identidade quilombola. O que
se encontrou é a música produto da convergência de culturas amalgamadas entre o
ritmo afro-brasileiro, o canto sertanejo oriundo do Brasil rural e a construção
harmônica popular brasileira que induzem efetivamente o comportamento da
comunidade no culto, em todas as suas manifestações culturais e artísticas e que
refletem na rotina da comunidade.
Palavras-chave: Quilombo. Música. Etnicidade. Religião. Identidade.
Abstract
This work analyzes the influence of music in the social context and in the worship of
the Presbyterian ethnic community Mel da Pedreira. Compares the quilombo worship
music with music of African traditional festivals of quilombos in the region, Batuque
and Marabaixo, analyzing the liturgical repertoire through research observation,
listening and interviews, cultural gifts origins in running community music through four
pillars of music: melody, harmony, rhythm and hymnody, in order to contribute to the
record of the quilombo identity. What we found is the music product convergence
amalgamated cultures between the african - brazilian rhythm, the sertaneja music from
the building harmonious rural Brazil and Brazilian popular that effectively induce
community behavior in worship, in all its cultural and artistic events and reflecting on
community routine.
Key-words: Quilombo. Music. Ethnicity. Religion. Identity.
SUMÁRIO
Introdução 11
1. A Comunidade do Mel da Pedreira 20
1.1 Localização 20
1.2 Os primórdios 28
1.3 Manutenção Financeira 35
1.4 A Rotina Diária 37
1.5 O Protestantismo no Quilombo do Mel 41
1.6 O reconhecimento como Quilombolas e a Titulação das Terras 51
2. O Batuque e o Marabaixo 54
2.1.1 O Marabaixo 57
2.1.2 Os Símbolos do Marabaixo 61
2.1.3 Os Instrumentos 63
2.1.4 Tocadores e Cantores 66
2.1.5 A Estrutura Poética dos versos e o “Ladrão” de Marabaixo 67
2.1.6 A Estrutura Rítmica do Marabaixo 69
2.1.7 Outras Características Musicais 69
2.2.1 O Batuque 71
2.2.2 O Rito Religioso do Batuque 73
2.2.3 A Comida 74
2.2.4 O Batuque Festivo 74
2.2.5 A Música Vocal do Batuque Amapaense 75
2.2.6 Características Rítmicas do Batuque 77
2.3 Diferenças entre Batuque e Marabaixo 78
3. A História Musical do Quilombo do Mel da Pedreira 80
3.1 Breve Contextualização da Música Evangélica Brasileira 80
3.2 A Primeira Fase Musical: Festas de Batuque, Marabaixo, Rituais de Pajelança e
Influência do Rádio 85
3.3 A Segunda Fase: A Música do Quilombo do Mel após a Conversão ao
Protestantismo 91
3.3.1 A Música Gospel no Quilombo 104
3.4 A fase musical atual: A Reinserção do Batuque e do Marabaixo no Quilombo do
Mel da Pedreira 105
3.5 O Batuque e o Marabaixo do Mel da Pedreira 108
3.5.1 Conteúdo Poético das Canções de Batuque e Marabaixo do Quilombo do Mel
da Pedreira 108
3.5.2 Estrutura Melódica das Canções de Marabaixo e Batuque do Quilombo do Mel
da Pedreira 109
3.5.3 Constituição Harmônica das Canções de Marabaixo e Batuque do Mel da
Pedreira 130
3.5.4 Instrumentos Utilizados no Batuque e no Marabaixo do Quilombo do Mel da
Pedreira 131
3.6 O Departamento de Música da Congregação Presbiteriana do Quilombo do Mel
da Pedreira 131
3.7 A Organização Cúltica do Mel da Pedreira 134
3.8 A Identidade Protestante do Quilombo do Mel da Pedreira 136
Conclusão 143
Bibliografia 146
11
INTRODUÇÃO
A comunidade do Mel da Pedreira é um lugar encantador. Está situada no
estado do Amapá, aproximadamente a 30 km de distância da capital do estado,
Macapá. Entre as 138 comunidades de quilombolas identificadas no estado, apenas
04 delas tem a titulação outorgada pelo Governo Federal do Brasil, entre elas a
comunidade do Mel da Pedreira, recebida em 2007. Com paisagens e natureza
exuberantes, ocupa uma área de 2.199,4570 ha.
O ritmo de vida deste grupo é muito diferente das práxis metropolitanas. Ir ao
Mel é como voltar no tempo e deixar-se libertar da alucinada organização social das
grandes cidades com seu ritmo frenético e quase autodestrutivo de viver. Um lugar
cujo hino emblemático que traduz um conceito de vida e faz com que a comunidade
se sinta orgulhosa de sua forma de ser é “Vida boa”, música diuturnamente
cantarolada pelas pessoas que vivem na comunidade e também por todas aquelas
pessoas que já viveram por lá ou que são descendentes de outros que lá viveram. A
música poeticamente retrata de forma saudosa a rotina dos quilombolas, já que Zé
Miguel, músico e compositor desta canção já não vive na comunidade, trocou o Mel
pela capital Macapá “... a vida aqui é assim bem devagar... precisa mais nada não
“pra” atrapalhar... nós não tem nem que fazer planos... e assim vão passando os
anos... Eita! Que vida boa!”.
Não debalde, usamos a música como maneira de expressar a maneira como
vivem as pessoas da comunidade, também e principalmente, que uma comunidade
tão musical (por todos os lados é possível encontrar gente desde a mais tenra idade
aos mais velhos cantando, batucando e dançando) quanto essa deveria ser estudada
a partir do prisma da música, buscando a compreensão da identidade étnica de um
grupo formado por remanescentes quilombolas com suas manifestações artísticas e
culturais de matrizes africanas sendo perpetuadas pelas gerações ainda que com um
elemento novo que pode ter adicionado novas matizes na maneira de ser, de pensar
e de agir: o protestantismo.
Os quilombolas do Mel são presbiterianos. E este, seguramente, é o aspecto
mais instigante da comunidade que após muitos anos de vedação no presbiterianismo
12
tradicional e expressão do ser protestante no tocante a não mais usar os ritmos
africanos Marabaixo e Batuque, não só voltaram a manifestar-se voluntariamente e
informalmente com estes ritmos extraídos de festas e rituais das religiões africanas,
bem como os inseriram na liturgia dos cultos dessa comunidade. Esta forma diferente
de ser protestante exprime a necessidade de estudos que possam elucidar o ser
quilombola e protestante, como Souza (2014) menciona em sua tese de mestrado
“Mel da Pedreira: Um quilombo Protestante na Amazônia Brasileira”:
"Esse diferencial observado no Quilombo do Mel da Pedreira
aponta para a necessidade de uma pesquisa que desmembre
em pormenores tal fenômeno cultural religioso. Se a tradição da
religiosidade negra no Brasil se define pela identificação com os
cultos afro-brasileiros e com o catolicismo popular, um grupo que
se autodenomina quilombola e presbiteriano apresenta uma
curiosidade acadêmica que permeia discussões sobre a
identidade ideológica-política e cultural e religiosa do grupo." (P.
09)
Evidentemente, tais ritmos tomarem parte das reuniões na igreja (há uma igreja
presbiteriana construída na comunidade) quer trazer um sentido por assim dizer de
que uma nova identidade étnica “quilombola protestante” quer ser manifesta como
entendimento do ser pessoal e individual de cada um bem como no coletivo, no intuito
de explicitar um novo pensamento, a escolha de uma nova ideologia, uma nova
maneira de ser, um novo valor da identidade étnica, como elucida Cardoso de Oliveira
(1976, p. 22):
“ (...). Se a identidade étnica é um valor, enquanto categoria
ideologicamente valorizada, ela é passível de uma certa escolha
ou opção em situações determinadas, (...) por meio do qual nos
habilita a trabalhar com a dimensão “transacional” da identidade
no sentido em que, numa relação entre A e B, ambos os termos
tentam assegurar que o valor ganho seja sempre maior (ou pelo
menos igual) ao valor perdido. Trata-se, portanto, de modelos
13
estratégicos (escolhas estratégicas), cuja utilização pode nos
levar a descobrir as constrições estruturais que uma situação
totalizadora impõe à escolha que, na teoria dos jogos, são
expressas como “regras” definidoras do “jogo”.
A comunidade do Mel tem uma congregação ligada à Igreja Presbiteriana do
Brasil (IPB) através da Igreja Peniel da capital Macapá. Obviamente que algumas
questões concernentes a identidade do grupo se manifestam ao pensarmos numa
comunidade de remanescentes de escravizados vivendo quase que integralmente no
contexto religioso por esta instituição constituída. Tais questões são construídas em
torno da dicotomia ideológica que pode haver entre esta comunidade negra e a igreja.
O que notamos é que dois conceitos totalmente dissemelhantes – presbiterianismo
como identidade religiosa e o ser quilombola como identidade étnica – convivem em
plena harmonia há quase 50 anos. No diálogo entre a identidade étnica e a identidade
religiosa ambos os lados foram ajustados a fim de promover uma identidade que
contrastaria com ambas ainda que essa nova identidade fosse extraída delas
mesmas, como vemos abaixo (Cardoso de Oliveira, 1976, p. 36):
“Esse jogo dialético (...), exprime noção de “identidade
Contrastiva” e com referência a um tipo particular de identidade
social, a saber a identidade étnica (...) tomando-a como a
essência da identidade étnica: a saber, quando uma pessoa ou
grupo se afirmam como tais, o fazem como meio de
diferenciação em relação a alguma outra pessoa ou grupo com
que se defrontam; é uma identidade que surge por oposição,
implicando a afirmação do nós diante dos outros, jamais se
afirmando isoladamente. ”
Portanto, é notória a busca por uma diferenciação bilateral – no meio religioso
e no meio étnico – que afirma a identidade dessa comunidade e, os meios pelos quais
esta identidade de contraste se articulou, se organizou e formou seu próprio ethos.
14
Essas, portanto, são as respostas que este trabalho busca trazer utilizando como
cerne das pesquisas realizadas a música produzida pelo quilombo do Mel da Pedreira.
A música é um dos mais elevados elementos que contribuem para o
entendimento de quaisquer culturas. Ela traz consigo em sua forma de expressão
sonora toda a identidade do povo que se manifesta por meio dela. A música é o canal
pelo qual compositores, instrumentistas, cantores, artistas da dança e da
representação podem trazer à tona tudo o que se tem preservado em suas histórias
pessoais, suas emoções, lembranças e vida em grupo. A música produzida por um
indivíduo é carregada de todas as influências de seu meio social, das recebidas de
um mestre ou professor (no caso dos que tiveram orientação de outra pessoa) e das
que são captadas dentro e fora de sua comunidade, independentemente do meio que
intermediou o acesso a tal influência. Analisá-la, pode sim trazer um entendimento
profundo sobre um povo, uma comunidade, principalmente pelo fato da música
manifestar claramente sobre cada indivíduo um rastro proveniente do ethos de um
grupo, formando, por conseguinte, o ethos1 da música do próprio grupo.
Sobre os estudos acadêmicos referente o negro brasileiro, há um amplo
material de pesquisa distinguido em quatro importantes fases teóricas. Estas fases se
deram inicialmente entre o fim do século 19 e o início do 20 até atualmente. A primeira
delas, é a fase que identifica o negro como fora dos padrões dos brancos, ou seja, o
negro enquanto raça. A segunda, cuida de caracterizar o negro como expressão de
cultura. Na terceira fase, o negro é um ator social numa sociedade desfavorável para
si em função da conformação de classe. A quarta e atual fase marca um engajamento
entre a produção acadêmica e a militância negra com seus discursos e práticas. Entre
os autores destas quatro diferentes fases encontramos nomes de elevada importância
por tão valiosa colaboração acadêmica: Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Roger
Bastide, Florestan Fernandes, Oracy Nogueira, Fernando Henrique Cardoso e Octávio
Ianni.
Vale frisar que a quarta fase (que vislumbra o negro como desenvolvedor de
sua identidade étnica a partir de referências encontradas em sua própria cultura,
história, características e meio de vida), nos idos da década de 1970, surgem
1 Ethos. Conjunto dos costumes e hábitos fundamentais, no âmbito do comportamento (instituições, afazeres etc.)
e da cultura (valores, ideias ou crenças), característicos de uma determinada coletividade, época ou região.
15
organizações de militância negra, das quais destaco o Movimento Negro Unificado
(MNU). Esta organização passa a trazer o conceito de valorização das características
físicas do negro e demandava esforços para maior visibilidade dos quilombos num
sermão de exaltação de sua etnicidade. Esta fase, inaugurada pelo Prof. Dr. João
Batista Borges Pereira, da qual trinta e sete estudos sobre etnicidade e identidade
religiosa foram produzidos sob sua orientação e coordenação, também é recheada
de pesquisas de destaque que convergem com aspectos das reivindicações negras:
sobre os negros do Cedro, de Baiocchi (1983); os negros do Vale do Ribeira, de
Queiroz (2006); sobre os negros de Vila Bela, de Bandeira (1988); e sobre negros em
um bairro rural de Pernambuco, a comunidade de Castainho, de Monteiro (1985), este
especificamente desenvolve com algum detalhe as questões religiosas. Outra
pesquisa que enfoca um pouco mais a religiosidade do negro, é o trabalho de Melo
(2011). Neste, o estudo sobre a comunidade Arnesto Penna Carneiro, no capítulo
dois, fala das mutações identitárias de negros e de alguns que se converteram
evangélicos neopentecostais.
Os aspectos religiosos pesquisados nos estudos sobre o negro brasileiro até o
momento destacam que o negro desenvolve sua religiosidade entre as culturas de
origem africana e o catolicismo popular, produzindo assim um hibridismo de credo.
Isso se deve, ao meu ver, muito mais em função dos estudos serem direcionados a
temas relacionados aos processos de territorialidade, narrativas históricas, militância,
organização de trabalho e economia e da falta de evidências claras de uma
religiosidade que fuja ao padrão encontrado na maioria, o catolicismo popular. Isso,
faz com que a comunidade do Mel seja considerada como um novo fenômeno religioso
e cultural, por amalgamar o presbiterianismo e a cultura africana ancestral ao
cotidiano, utilizando-se das doutrinas protestantes tradicionais como meio de crivo
social ainda que boa parte das manifestações doutrinárias são externadas através do
Marabaixo e do Batuque. E aqui reside uma grande controvérsia, no sentido de que a
música produzida nos cultos presbiterianos deve ser solene, formal, no intuito de ser
apenas o instrumento pelo qual os ensinamentos bíblicos sejam fortalecidos sem que
haja um chamamento de atenção aos aspectos musicais em si como arranjo enquanto
que o Marabaixo, vem de uma comemoração religiosa que mescla o ritmo africano
(música também a base de improviso), as ladainhas, danças as doutrinas católicas,
sendo totalmente antagônicas e atualmente usadas nos cultos da comunidade. Por
16
esta razão, faz-se necessário compreender a religiosidade presbiteriana da
comunidade do Mel bem como as questões de identidade, ideologia, cultura e credo.
Além disso, mais que compreende-los enquanto quilombolas protestantes, há que
aprofundar no entendimento de como está comunidade se enxerga tão somente como
quilombolas, descendentes de remanescentes de escravos.
Todavia, existe uma pequena produção de pesquisas publicadas sobre o
quilombo do Mel da Pedreira. As pesquisas por lá ainda são recentes, ainda nem
foram publicados alguns artigos ou trabalhos de pesquisa, o que demonstra o quão
rico e vasto é o campo de pesquisa nesta área. O que se tem notícia é que serão
concluídos estudos dos professores Dr. Antônio Maspoli de Araújo Gomes e Dra.
Suzana Ramos Coutinho, que têm intensificado estudos na comunidade. O que há
atualmente são dissertações de mestrado em sua maioria tratando de assuntos
relacionados a posse de terra, ao reconhecimento do grupo como comunidade de
remanescente de escravizados, das quais citamos Soares (2008), Colares (2010). O
primeiro trabalho voltado a identidade étnica do quilombo do Mel é o de Souza (2014).
Voltando a falar de música, o que os quilombolas do Mel da Pedreira produzem
é mais um diferencial desta comunidade. Trata-se de uma música inédita fruto dessa
nova forma de se enxergarem e de como querem ser vistos. A música do Mel ganhou
muitos novos elementos que se organizaram sob a Marabaixo e o Batuque. A música
sintetiza muito bem todos os componentes do ser quilombola protestante. Por detrás
do ritmo e da melodia africana, se identifica um sistema bem articulado que promove
perfeita interação entre vozes organizadas em forma coral, soprano, contralto, tenor e
as vezes baixo; bem como a inserção de novos instrumentos e uma estrutura
composicional em forma de canção, banindo os improvisos presentes no Marabaixo e
no Batuque. Aqui na música, as identidades de contraste se concatenam. Além disso,
as músicas são apresentadas com forte apelo coreográfico dos executantes e do
público. Essas danças, são as que historicamente foram transmitidas pelas gerações
e que fazem parte das festas de Marabaixo. Todos esses elementos traduzem a
identidade de contraste bilateral, como citei acima, que o grupo quer externar, ou seja,
é a forma como o grupo se vê e constrói sua identidade, partindo do como são vistos
pelos de fora da comunidade. A música é o instrumento utilizado por esta pesquisa
para entender como se dá a formação da identidade dos quilombolas do Mel.
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Este estudo distingue-se dos demais por seu ineditismo. Trata-se da única
pesquisa que investiga a identidade étnica do quilombo do Mel da Pedreira através da
música. Saliento que não muitas pesquisas sobre o negro brasileiro se desenvolveram
pelo viés da música, o que pode acrescentar ainda maior relevância a este trabalho.
Para a realização deste primeiro trabalho de pesquisa identitária via música,
realizei uma vista ao quilombo do Mel em dezembro de 2014, onde permaneci durante
uma semana mergulhado na rotina diária dos quilombolas, entre seus afazeres da
subsistência (caça, o preparo da farinha, a pesca, a colheita de frutas, entre outras
várias atividades). Ademais, participei de vários encontros na igreja (cultos, reuniões
diversas porque a igreja funciona também como um local onde a comunidade discute
assuntos pertinentes à vida comum, ensaios) a fim de compreender a dinâmica da
organização social do quilombo do Mel.
Nas entrevistas com músicos instrumentistas ou cantores, compositores, e os
mais antigos moradores que mantém a história do quilombo acesa através da
oralidade, tive a ilustre companhia do Dr. Antônio Maspoli de Araujo Gomes, que
apesar de não ser meu orientador neste trabalho, contribuiu muito para minha
pesquisa.
Assisti a várias apresentações do grupo musical do quilombo do Mel da
Pedreira na própria comunidade, nos cultos locais e numa apresentação que o grupo
fez no primeiro seminário de música na Igreja Presbiteriana Peniel em Macapá - que
fui convidado para ministrar -, que abrilhantou e enriqueceu muito o evento.
Durante uma semana, diariamente, participei dos ensaios do grupo musical do
quilombo. Foi de suma importância acompanhar in loco como o grupo organiza sua
própria música. Acompanhei processos importantes para entender a música
quilombola: os composicionais (que vão da construção poética à metrificação do texto
na música), o desenvolvimento dos arranjos (os ajustes vocais que abarcam a divisão
de cantores por tessitura2, a inserção dos instrumentos de percussão, e os demais
instrumentos: guitarra, contrabaixo, violão, teclado e bateria), a dinâmica dos ensaios
que resultam na congregação dos elementos anteriores para o resultado musical final.
2 Tessitura (música). Disposição das notas para se acomodarem a uma determinada voz ou a um dado instrumento,
de forma confortável, dentro da capacidade de extensão do instrumento e/ou da voz.
18
Todo esse material foi registrado em vídeos e áudios que totalizam mais de 30
horas de material estudado e analisado. Além do material coletado em campo - que
não se concentrou somente nas entrevistas e gravações de ensaios -, mas em
conversas informais, no recolhimento de histórias curiosas, estudamos a bibliografia
sugerida por meu orientador, voltada aos negros brasileiros.
A base teórica deste trabalho é firmada sobre as propostas de análise,
caracterização e interpretação de identidade e etnia de um grupo étnico que
compartilha através de seus valores culturais, arquitetando sua forma de comunicação
e relação, uma maneira de ser visto pelo outro como uma categoria diferente de outras
da mesma ordem ou origem. Para tanto, o autor que guarnece a estrutura que
corrobora as minhas observações é Roberto Cardoso de Oliveira, que trabalha com
conceitos de identidade étnica partindo da manifestação ideológica em duas
identidades que se aditam e que se desenvolvem de maneira contrastiva:
“(...) Goodenough abre as melhores pistas para o
desenvolvimento de um modelo mais explicativo desse
fenômeno (...) “relações de identidade”. Tal noção, (...) supõe a
existência não de uma, mas de pelo menos duas identidades,
denominadas “identidades complementares” ou “combinadas”.
(...). Ora, tomando o sistema inter étnico como um sistema
cultural inclusivo, ou, em outras palavras, tomando a “cultura do
contato” que lhe é subjacente, a gramaticalidade das relações
de identidade estaria em função das etnias em contato num
sistema inter étnico (...) são perfeitamente gramaticais (e
complementares). Isso significa que as identidades (...)
enquanto tais, só são inteligíveis quando relacionadas entre si,
contrastivamente, como identidades complementares. O caráter
contrastivo destas identidades (...) constitui assim um atributo
essencial da identidade étnica. Por outro lado, a especificidade
da identidade étnica, particularmente em suas manifestações
mais “primitivas” está no conteúdo etnocêntrico inerente à
negação da “outra” identidade em contraste. ” (Oliveira, 1976, p.
45).
19
O foco central de minha pesquisa é como a música representa todas as fases
pelas quais o quilombo passou desde o momento em que se formou como
comunidade, concernente à sua religiosidade, conversão e nova ideologia identitária.
Também identificar quais as influências musicais não africanas (e investigar de qual
origem são as influências) se incorporaram a cultura dos quilombolas do Mel como
“identidades complementares”.
20
1. A Comunidade do Mel da Pedreira
1.1 Localização
O quilombo do Mel da Pedreira nasceu em 11 de maio de 1954 com o patriarca
Sr. Antonio Bráulio, conforme nos relata “Seu Alexandre”, um de seus filhos, que
exerce uma grande liderança na comunidade, um relator por natureza que mantém de
memória todas as histórias dessa comunidade dantes verbalizadas por “Seu Bráulio”
e outras tantas que ele mesmo vivenciou. Ele nos contou que seu pai, Antonio Bráulio,
comprou de seu primo um trecho de terra onde foi formada a comunidade.
O acesso à comunidade é possível pela BR-210, aproximadamente no km 30,
área denominada Ramal do Ambé. No percurso, muitas (antes da chegada ao Ramal
do Ambé) plantações de pinho de uma grande empresa de celulose. A área é cercada
por cerrado, muitos campos de várzea e pelo rio Pedreira. Também há plantações de
milho, mandioca e caju no caminho que leva à entrada principal do quilombo A
comunidade do Mel é fronteiriça às comunidades (também de remanescentes
quilombolas) São Pedro dos Bois e Alegre e margeada por um lago que forma o rio
Pedreira.
O lugar em meio à floresta amazônica, pertencente ao estado do Amapá,
transmite bastante tranquilidade que embala o ritmo adagio3 de vida da comunidade.
O que se pode notar de imediato é que as pessoas que lá vivem ignoram quase por
completo o modo de vida do centro urbano de Macapá.
Vale ressaltar, segundo a Fundação Cultural Palmares, que em todo o território
brasileiro há mais de 2.600 comunidades de remanescentes quilombolas. Somente
no estado do Amapá, foram identificadas 138 comunidades. Deste número listamos
as 33 comunidades que já foram certificadas pela fundação: Cunani, Igarapé do Palha,
São Miguel do Macacoari, Ambé, Campina Grande, Carmo do Maruanum, Conceição
3 Adagio termo italiano para designar uma música cujo andamento é lento. Este andamento gira entre 66 e 76
tempos / batidas por minuto, se usarmos para aferir o andamento um metrônomo convencional. No original italiano,
a tradução livre do termo significa “comodidade”
21
do Macacoari, Curiaú, Curralinho, Ilha Redonda, Lagoa dos Índios, Mel da Pedreira,
Porto do Abacate, Ressaca da Pedreira, Santa Luzia do Maruanum I, Santa Luzia do
Maruanum II, Santo Antonio do Matapi, São José, São José do Mata Fome, São José
do Matapi do Porto do Céu, São Pedro dos Bois, Torrão do Matapi, São Raimundo do
Pirativa, Lagoa do Maracá, Kulumbú do Patuazinho, Alto Pirativa, Cinco Chagas,
Engenho do Matapí, Igarapé do Lago, Nossa Senhora do Desterro dos Dois Irmãos,
São Tomé do Aporema e Taperera. Destas, apenas 04 comunidades receberam sua
titulação: mais recentemente São Raimundo do Pirativa (2013), Curiarú (1999),
Conceição do Macacoari (2006) e Mel da Pedreira (2007), que mais adiante
detalharemos o processo de conquista do título.
A área do quilombo do Mel é bastante extensa, com 2.199,4570 ha, dá
impressão de ser quase desabitada, haja vista apenas encontrar vinte e cinco casas
de madeira, quase sem padrão ou beleza estética, construídas bem distantes uma
das outras construídas próximas ao igarapé, com exceção de algumas poucas casas
que foram erguidas muito próximas umas das outras, ao lado do lago do rio Pedreira,
aparentando ser as casas mais antigas da comunidade. Nas casas, há energia elétrica
e água encanada não tratada extraída do poço amazonas.
Observemos a disposição geográfica do quilombo do Mel da Pedreira e
comunidades vizinhas nos mapas4 a seguir:
4 Dados retirados da “Revista Franco-Brasileira de Geografia” do artigo “Comunidades Quilombolas da Amazônia:
construção histórico-geográfica, características socioeconômicas e patrimônio cultural no estado do Amapá.
https://confins.revues.org/10021?lang=pt
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Atualmente a comunidade quilombola do Mel da Pedreira em seus domínios
tem 112 habitantes5, divididos por faixa etária, a saber:
Homens Mulheres Faixa Etária Total
21 15 Até 12 anos 36
05 07 13 a 20 anos 13
30 24 21 a 59 anos 54
05 04 Acima de 60 anos 09
Algumas novas construções estão aos poucos mudando o cenário na
comunidade do Mel, não somente do ponto de vista arquitetônico, mas principalmente
na organização social do quilombo: a casa de farinha e uma vila com novas casas de
alvenaria.
Na companhia do Dr. Maspoli, visitei a casa de farinha. Encontramos um casal
trabalhando. Foi possível acompanhar cada passo no processo de produção da
farinha. A construção em formato galpão abriga todos os equipamentos mecânicos
necessários para a produção de farinha: triturador (ralador), prensa, peneira e por fim
a farinha é torrada em grandes recipientes de ferro sobre uma fogueira de lenha. A
casa de farinha mecanizada, agiliza o trabalho dos produtores, bem como eleva a
capacidade de produção deste alimento para consumo próprio e venda em larga
escala. Desde o dia 07 de novembro de 2013, data em que a casa foi inaugurada,
está em pleno funcionamento.
Muito próximo à casa de farinha, em fase final de acabamento, estão 42 casas
construídas através de um convênio firmado entre a associação dos moradores do
quilombo do Mel da Pedreira e o Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR). Este
programa é uma ramificação do “Minha Casa, Minha vida” com intuito específico de
subsidiar a produção de residências para agricultores familiares (pescadores
artesanais, extrativistas, silvícolas, agricultores, arvicultores, piscicultores ribeirinhos),
trabalhadores rurais, comunidades quilombolas, povos indígenas e demais
5 Dados coletados em abril de 2016 por Natália Picanço da Associação dos Moradores Remanescentes
Quilombolas do Mel da Pedreira (Amorquimp).
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comunidades tradicionais. Esta vila de casas produzirá uma mudança significativa na
paisagem do local e na dinâmica da comunidade, inclusive por aglomerar numa área
muito próxima todas as casas, característica antagônica ao compararmos com as
moradias antigas que margeiam o rio e que respeitam uma grande distância de uma
para as outras. Muitas pessoas da comunidade relatam que outras tantas que vivem
fora das cercanias do Mel compraram sua casa do programa e retornarão a viver no
quilombo. Muitos dos que saíram para buscar uma vida melhor, atrás de
oportunidades e de estudos para os filhos, acabam retornando. Segundo os relatos,
não “veem a hora” de poder voltar a vida pacata no Mel da Pedreira. É o que nos disse
Dona Minervina, também filha do patriarca “Seu Bráulio” e uma das compositoras da
comunidade. Adiante, trataremos especificamente de música tecendo mais detalhes
sobre esta compositora e sua produção musical:
Fiquei aqui (no quilombo do Mel) até meus 15 anos. Antigamente
as mocinhas do interior casavam mais nova, e então eu me casei
e fui pra cidade. Aí de retorno, eu estou há dois anos, aqui nessa
casa, já indo para os 03 anos. Final de abril completa 03 anos
que eu retornei da cidade. Esperei a moçada crescer para depois
vir. A vontade de vir eu já tinha a muito tempo. Aí tinha filho
estudando e tudo, e mãe tem que cuidar. Então deixei todo
mundo ficar ʺde maiorʺ.
Artur Monteiro de Souza, 37 anos, estudante de arquitetura, gerente de vendas
e projetos de móveis na capital Macapá, neto de “Seu Bráulio” também conta seu
desejo de viver no quilombo. Ele é filho do Souza que também nos mostrou a
construção de sua bela casa na comunidade afim de brevemente poder retornar e
viver no quilombo:
Meu sonho é construir um centro cultural do quilombo do Mel da
Pedreira para preservar a nossa história. Quero recolher as fotos
antigas, e tudo que eu encontrar de documentos, objetos para
isso. Também quero preservar a casa mais antiga da
comunidade, não sei se toda ou pelo menos uma parte, e
guardar dentro do centro cultural que desejo construir. É uma
27
maneira de manter a nossa história e, um dia venho com minha
família “pra” cá.
A comunidade tem uma escola, digamos própria. As crianças que vivem no Mel,
na primeira fase da carreira escolar (estudantes do fundamental I) não precisam se
deslocar para outros lugares para aprender. A diretora dessa unidade escolar, cujo
nome é Escola Estadual Antonio Bráulio de Souza, é Cristina, neta de “Seu Bráulio” o
patriarca. Ela me apresentou os professores e de imediato me levou para conhecer
as crianças. As crianças me receberam de forma muito calorosa, fazendo aquilo que
artisticamente “pulsa” muito forte em seus corações: música! Cantaram 03 canções
ao som do Marabaixo. As crianças demonstram grande aptidão rítmica e musical.
Depois cada uma das crianças queria mostrar suas habilidades enquanto
instrumentistas percussivos. Perguntei a elas onde tinham estudado música e elas
prontamente disseram que não estudaram e que faziam música tão bem de ver e ouvir
os pais. Outras relataram que seus pais as ensinaram.
A escola está na comunidade desde 1977. Mas dona Minervina nos conta que
nem sempre foi assim:
A gente estudou muito pouco porque, “pra” você ter uma ideia a
gente morava aqui e estudava em São Pedro dos Bois (outro
quilombo). A gente saía 5 horas da manhã “pra” chegar 8 horas
na escola. Então, a gente enfrentava um lago imenso até lá no
Limão. De lá a gente largava a canoa e ia a pé. A gente ia pelo
atalho que dava mais uns 04 quilômetros a pé. A gente fazia 08
quilômetros “de pés” ida e volta todos os dias. E depois, meu pai
me tirou da escola cedo e fiquei trabalhando na roça. Meus
irmãos iam caçar por aqui e eu fugia para ir com eles. Às vezes
eu escutava os cachorros “latir” e então eu já fugia “pro” mato
pra caçar porco, porco do mato. Era uma festa.
A igreja é uma construção que deve ser destacada. Não somente por também
ser arquitetonicamente diferente, contrastando e muito com as casas erguidas pelos
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quilombolas, mas por ter seu funcionamento que vai além da esfera religiosa. Fora
erguida numa das mais belas áreas do quilombo, às margens do lago do Rio Pedreira.
Em época de cheia, a paisagem se torna ainda mais bela. Por lá acontecem todos os
eventos da comunidade. É uma unidade central de relacionamentos do povo do Mel.
Se juntam para os cultos, assim como também para festas onde ocorrem almoços
comunitários (cada família contribui com um prato) e compartilham tudo o que tem,
para os ensaios e para muitas reuniões da Associação dos Moradores
Remanescentes Quilombolas do Mel da Pedreira (Amorquimp). Além da área
dedicada ao templo, existe um amplo salão que abriga as festas e almoços da
comunidade e outras salas multiuso. Inclusive, numa dessas salas, funciona o projeto
de Inclusão Digital em parceria com a OSCIP Yaver. Na igreja, pude acompanhar e
participar de uma semana intensa de ensaios com o grupo musical do quilombo, que
se preparava para algumas apresentações, assunto que será abordado mais tarde.
1.2 Os primórdios
Alguns materiais de pesquisa recentemente têm sido elaborados e registrados
para esclarecer as origens do quilombo do Mel da Pedreira. São artigos acadêmicos
que tratam da territorialidade desta comunidade, teses que versam sobre a identidade
étnica do grupo, biografia do patriarca “Seu Bráulio” e estudos comportamentais
voltados para questões psicológicas. Esse material é boa base para se conhecer a
gênese do grupo. Porém, muitos outros detalhes são narrados por “Seu Alexandre”
filho do patriarca que ostenta de memória toda a história do quilombo desde a vinda
de seus pais para o Mel até o que se passa na atualidade.
No início, em nossa conversa, “Seu Alexandre” deixa claro sua posição de
convertido ao protestantismo, frisando a todo momento que não concorda com as
“práticas anteriores” se referindo aos rituais de pajelança e o hibridismo com o
catolicismo.
“Seu Bráulio” é filho de Benedito Bráulio de Souza e Ana Regina de Souza. Seu
pai era francês e antes de se mudarem para o quilombo do Ambé viveram em Caiena
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na Guiana Francesa. Casou-se com Auta Augusta Ramos de Souza, negra, do
quilombo Pedra dos Bois, mas originária de Campineiro da Pedra.
A religiosidade sempre esteve presente entre os quilombolas do Mel. Desde o
princípio da formação da comunidade, muitos fatos reputados à religião são narrados.
“Seu Bráulio” foi filho único, fruto da décima gestação. Sua mãe perdeu todos os bebes
anteriores. Porém, “Seu Bráulio” no ventre de sua mãe foi tratado como uma criança
que detinha uma vocação especial para a pajelança. A história conta que ainda na
gestação, aproximadamente no sétimo mês da gravidez, sua mãe sentia que ele se
movia muito em seu ventre, de forma diferente foi quando ela disse que o bebê tinha
um dom especial. Imediatamente ao dizer isso, conta “Seu Alexandre” que no ventre
a criança chorou, o que de acordo com o credo da família atestava sua vocação
religiosa. Segundo esses relatos, ele sofria muito “na mão” dos espíritos durante a
infância, sentindo uma “presença” (reputada a um espírito) que lhe conferia força
descomunal que somente poderia ser contido por dez homens. Isso se passou com
frequência, até que estivesse formado para o exercício vocacional.
A partir de então, homem formado, “Seu Bráulio” começou a atuar como pajé,
como relata “Seu Alexandre”:
Ele fazia sessão. Ele benzia. Ele curava, na verdade usando
ervas medicinais.
Estes rituais eram fortemente marcados por música. Cada mensageiro (ou cada
espírito recebido por “Seu Bráulio”) tinha sua cantoria (música) própria. As cantorias
eram em sua maioria acappella6, e deveriam ser cantadas no momento da visitação
dos espíritos. Algumas cantorias que eles entoavam não eram no idioma português,
sendo repetidas por eles em conjunto com o espírito sem entender se quer uma só
palavra do que estava cantando. Os espíritos também eram conhecidos como
“encantados” e, acreditava-se que eram oriundos do fundo do mar. Eduardo Galvão
em seu artigo “Vida Religiosa do Caboclo da Amazônia” publicado em 29 de abril de
6 Acappella. Música vocal sem acompanhamento instrumental algum.
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1953 Boletim do Museu Nacional, Rio de Janeiro, detalha como o caboclo
amazonense desenvolve suas crenças e práticas que constituem sua religião,
trazendo alguns aspectos importantes para o nosso entendimento do “encantado” no
contexto da comunidade do quilombo do Mel da Pedreira:
“ Os santos são entidades domésticas benevolentes que
protegem o indivíduo ou a comunidade, assegurando-lhe bem-
estar. Existem, contudo, outras forças e seres que povoam a
natureza ou o mundo sobrenatural, contra os quais a ação dos
santos é importante. Neste caso, estão os seres que habitam o
fundo dos rios ou a floresta. Derivam a maior parte das vezes de
crenças provenientes do habitante primitivo, o indígena, e, em
geral, são expressos por denominações de procedência tupi-
guarani, dada a difusão que esse falar teve durante o período
colonial. (...). O conceito de encantado, por exemplo, que domina
na descrição desses seres, deve sua provável origem a crenças
populares que o colono português ou europeu fundiu às do
habitante indígena ou mestiço. Ao mesmo tempo, adaptaram-se
à cultura contemporânea, desligando-se do corpo de ideias
religiosas a que pertenciam primitivamente. Acredita o caboclo
amazônico que o fundo dos rios, igarapés ou lagos seja habitado
pelos companheiros do fundo, criaturas “muito alvas e louras” de
um “reino encantado”. Tem toda a semelhança com seres
humanos e possuem cidades idênticas às dos vivos, com a
diferença que ali tudo reluz como se fosse de ouro. Esses
companheiros têm poderes especiais e podem ser controlados
pelos pajés que os transformam em seus auxiliares na
realização de curas ou na prática de feitiçaria ou atos mágicos. ”
Nesses rituais, havia as manifestações religiosas sincréticas com o catolicismo
e se cantava também as ladainhas, preces extraídas da liturgia católica, estruturadas
em pequenos versos recitadas ou cantadas por um celebrante religioso,
alternadamente repetida pelos presentes na sessão. Geralmente, as ladainhas são
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baseadas em textos de exaltação a Deus, a Jesus Cristo, a virgem Maria e aos outros
santos:
Outra coisa que meu pai aprendeu, e aprendeu facilmente, foi
cantar ladainha para as imagens de escultura. Incrível, né? Ele
cantava ladainha para as imagens de escultura e era procurando
tanto para cura, como curandeiro e procurado com rezador.
Nessa área da cantoria, “pra” ladainha, eu fiquei com uma parte
que agora depois de evangélico eu fui analisar... que é uma parte
que dizia na ladainha: “Ora pro nobis santa unigenitus...” Repare
bem: “Oramos ao nosso Senhor Jesus Cristo, oramos por sua
fundíssima graça e vos suplicamos pela embaixada do anjo, pela
encarnação do seu filho Jesus Cristo, pelos merecimentos de
sua paixão e morte. Chegamos à cruz da glória e da ressureição
pelo mesmo Cristo, o Senhor nosso. Amém.” Então depois,
vinha o oferecimento que é o estrago: “Ladainha que rezamos
ao Senhor São Francisco...” ou a Santo Antonio, que no caso era
o padroeiro do quilombo.
As tradições da religião africana se misturavam fortemente ao catolicismo,
como podemos identificar no testemunho acima. Além disso, cada quilombo tem seu
próprio padroeiro, como podemos citar alguns: no quilombo São Pedro dos Bois, São
Pedro; no quilombo do Ambé, São Roque; no quilombo do Curiaú, São Joaquim;
quilombo do Macacoari, Santa Conceição; no quilombo Ressaca da Pedreira, menino
Deus.
Em 1954, “Seu Bráulio” compra de seu primo algumas propriedades, local esse
que é o quilombo do Mel da Pedreira hoje. Vale ressaltar que a compra das terras
neste momento, antecede e muito, qualquer compreensão ou militância por direitos
das comunidades quilombolas no que se refere ao direito à terra. Tratava-se tão
somente da busca pela posse da terra para produzir e sobreviver. Por encontrarem
muitas árvores ocas com grandes volumes de mel, primeiramente batizaram o local
com o nome de Ressaca do Mel. Posteriormente, o local teve seu nome mudado para
Mel da Pedreira em alusão ao rio Pedreira, cuja comunidade tem uma relação de
32
respeito e até de certa dependência de sobrevivência, haja vista que boa parte da
alimentação das famílias que lá vivem são supridas pela pesca. Juntamente com sua
família passa a morar no local. Viviam da caça, da pesca, da agricultura e do mel.
Nesta época, a família passou a viver isolada, mantendo apenas contato com
os outros quilombos vizinhos. Todavia, não haviam estradas para se conectar com as
cidades vizinhas. Em meio a tanta dificuldade de estrutura, a produção de mandioca
cresceu muito e já havia a necessidade transportar todo o produzido através de algum
veículo. Em 1956, começaram a abrir estrada para escoar a produção que tinham por
outros produtos através da troca. Foi um árduo trabalho, nos diz “Seu Alexandre”.
Muitas foram as árvores que tiveram de ser arrancadas ou cortadas para abrir os
ramais para escoar a produção. Ao concluírem a primeira estrada, alugavam
caminhões para carregar tudo o que a terra dava. Não geriam seus recursos em
moeda corrente e, curiosamente, somente em 1962 conheceram dinheiro, moeda e
cédula impressa.
Depois de abertos alguns desses ramais, ou estradas, foram vistos como
comunidade e a população das cidades teve acesso a eles. Foi na ocasião que
receberam a primeira ajuda do governo através da SUCAM. Segundo o site do
ministério de saúde, este órgão resulta da junção do Departamento Nacional de
Endemias Rurais (DENEru), da Campanha de Erradicação da Malária (CEM) e da
Campanha de Erradicação da Varíola (CEV). Este órgão visitava periodicamente em
todo território nacional as comunidades rurais, inclusive as mais remotas, no intuito de
controlar e sanar enfermidades como malária e varíola. As estradas abertas também
foram as portas abertas para que marreteiros (vendedores) pudessem oferecer suas
mercadorias à comunidade do Mel. E apesar de as negociações com os marreteiros
nem sempre terem sido justas sob perspectiva da comunidade, esse contato
comercial ajudou muito ao grupo a vender e distribuir seus produtos na cidade.
O contato com os marreteiros, que favoreceu o comércio para a comunidade,
deu acesso a alguns programas de saúde do governo, também veio para mudar a
forma de vida. Foi então que algumas atividades de rotina, como cortar lenha para
cozinhar, foi substituída pelo fogão. Na mesma época, meados do ano de 1963
conheceram o rádio - que também traria uma grande influência para a música
produzida no quilombo -, a panela de pressão, a passos muito lentos.
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O quilombo do Mel sempre manifestou formas sincréticas de religiosidade.
Evidentemente que esse hibridismo religioso fora herdado antes da formação dessa
comunidade no quilombo Pedra dos Bois. Devotos de Santo Antonio, dedicavam
festas ao padroeiro e mantinham as práticas das tradições africanas e da pajelança
(Souza, 2014, p. 14):
“Desde de seu início, o quilombo do Mel da Pedreira apresentou
características sincréticas quanto às tradições religiosas. Eram
católicos, devotos de Santo Antonio, e, concomitantemente,
participavam de cerimoniais de pajelança cabocla, com
elementos comuns a outras partes da Amazônia, como a
incorporação de encantados, entidades espirituais que falavam
e interagiam com a comunidade e que se manifestavam através
do patriarca do quilombo. ”
Em época de festa, todos deixavam seus afazeres para somente usufruir da festa. A
comida e a bebida eram fartas. Matavam um boi para os festejos, que poderiam durar
três dias ininterruptos ou mais. Todos da comunidade se envolviam totalmente na
organização do evento. O quilombo do Mel era muito movimentado culturalmente. As
festas eram recorrentes e marcadas por danças, as músicas populares conhecidas
através do rádio, marabaixo, batuque, ritmos a que dedicamos um capítulo para
compreendermos suas estruturas, instrumentos, execução e a sincronização desses
ritmos com as músicas das celebrações da comunidade do Mel. Numa dessas festas,
é introduzido um novo elemento para a música produzida pelo quilombo: a viola. Não
demorou muito e outros instrumentos de cordas foram acrescentados à música do
quilombo. Entre eles, o violão e o cavaquinho. Dá-se então o prelúdio das fusões
musicais que desenvolveria uma nova modalidade de marabaixo, ou um novo gênero
musical quilombola. Podemos entender que os músicos da época, a maioria filhos de
“Seu Bráulio” já nos primórdios, militavam o desejo de produzir uma música marcada
por uma nova identidade, e que diferenciam o marabaixo e o batuque como gêneros
musicais distintos, como nos explanou “Seu Alexandre”:
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Na área do batuque, tem os tambores grossos, alguns finos e o
pandeiro. Na área do marabaixo, são umas “caixas” pequenas e
grossas e são tocadas com baquetas. (...). A música popular na
época – quando eu me converti eu tinha 22 anos -, da minha
infância até os 22 anos começamos com: meu pai tocava viola,
e cada um de nós “sabia” umas notinhas na viola. Aí depois
surgiu o violão. Meu irmão que é antes de mim, o Zé Ramos –
que é outro pretinho, né – ele aprendeu tão bem o violão que ele
não precisava da letra, ele precisava da melodia. Ele ponteava7
todinho o violão. Eu tocava cavaquinho e a gente fazia serenatas
a noite toda. (...) a gente mescla várias modalidades de música
e o povo gosta.
Em outro trecho da conversa, quando verificamos que a música do quilombo nesse
momento da história começa a fugir das características puras e autenticas do
marabaixo e do batuque, ou seja, a se amalgamar com outros gêneros musicais, ele
fala da forte influência do rádio na música que começaram a desenvolver:
Ela foge um pouquinho. Vem o rádio, a moda caipira, de sorte
que a gente mescla e hoje a gente também está fazendo um
mesclado e o povo está gostando.
O quilombo do Mel mudou sua religiosidade, como veremos logo mais adiante.
Passou a adotar o presbiterianismo como meio de fé e prática. Esta conversão,
posteriormente, trouxe novos elementos estilísticos e de gênero à música da
comunidade que já havia passado por uma primeira fusão estética. Estas mudanças
na maneira de se expressar artisticamente, transpassam o despertar de uma nova
ideologia religiosa para o grupo que refletiria na forma de viver de cada pessoa e na
nova configuração da comunidade a partir da decisão patriarcal de um novo ethos
7 Ponteava. Fazendo alusão ao dedilhado. Técnica musical do instrumentista de cordas que tange seu instrumento
com os dedos.
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religioso que buscaria romper totalmente quaisquer ligações com as práticas
religiosas anteriores. Nos próximos capítulos analiticamente trabalharemos os
aspectos musicais que representam todas as fases de mudança ideológica do
quilombo, partindo do estudo do marabaixo e batuque com suas respectivas festas
religiosas, seus significados, formas e música.
1.3 Manutenção Financeira
Cada vez mais os quilombolas do Mel da Pedreira têm buscado novas formas
de trabalho e geração de renda. Significativamente, entre as novas gerações
aumentou o número de membros da comunidade que alcançaram melhores
oportunidades de estudo e consequentemente novas possibilidades profissionais.
Claro que a busca por novas oportunidades de estudo e trabalho muitas vezes foi
sinônimo de um apartamento da vida no quilombo. Muitos tiveram que sair, e entre
todos que saíram que pude conhecer e conversar deixam claro seu desejo de voltar a
morar nas terras da comunidade, já que o ser quilombola passa muito pela relação
que mantém com a terra. A terra, a natureza por muitos e muitos anos foi o único meio
de sustento e de permanência da comunidade. Esta relação com a terra, vai além do
que ela pode dar ao grupo para a sobrevivência, mas é parte direta da concepção de
identidade individual e da identidade do quilombo. Porém, alguns que buscaram
galgar maiores passos rumo à formação profissional não deixaram de viver na
comunidade. Diariamente, saem cedo para a capital Macapá (que não é distante
aproximadamente 30 km em estrada de boas condições de tráfego) e retornam ao
final do dia. Muito comum, após um dia de trabalho, os homens se reunirem para um
café e uma boa conversa no pequeno armazém que fica muito próximo a igreja. Lá,
são vendidos poucos produtos, mais para uma reposição rápida de algo que falte nas
casas como: limpeza, alimentação, refrigerantes, pães, algumas guloseimas e outros
poucos artigos. Entre esses profissionais há transportadores escolares (duas vans),
professores e funcionários públicos, profissionais de informática, proprietários de
pequenos negócios como o armazém e comerciantes de alimentos que vendem os
produtos que cultivam na terra, ou a carne das criações que mantêm geralmente porco
e galinha. Alguns, fornecem galinha já pronta para o consumo nos quilombos da
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região, o que gera uma margem de lucro um pouco maior, já que o abate do animal,
a limpeza, podem ser incluídos no preço final.
A apicultura sempre fez parte da história do quilombo desde sua formação
como já dissemos anteriormente. E por um longo período foi também um dos meios
de geração de recursos e renda para o grupo. Não se tratava de valores considerados
grandes pelo baixo volume de mel que conseguiam produzir para venda em função
de algumas dificuldades com a produção, razão pela qual foi uma atividade
empreendida que não alcançou sucesso. Em 2005 houve uma primeira tentativa de
resgatar a produção de mel através de um programa gerenciado pelo Ministério da
Agricultura sob a orientação técnica de especialistas da área oriundos da
Universidade Federal do Amapá (UNIFAP). Em 2012, foi a vez da OSCIP Yaver dar
novo impulso à atividade apícola na comunidade pela instrumentalidade do
especialista em apicultura César Valim um dos diretores da Yaver. A atividade, apesar
do alto custo com matéria prima – o açúcar é usado para alimentar as abelhas e ajuda
na produção do mel-, continua sendo desenvolvida ainda em baixa escala (SOUZA,
2014, p.19). Em minha visita ao quilombo em dezembro passado (2014), a produção
do mel estava momentaneamente parada. Em conversa com o apicultor César Valim,
ele esclareceu que retomarão a produção do mel partindo de um trabalho de
treinamento e capacitação mais elaborado para os quilombolas da comunidade.
Por outro lado, a Casa de Farinha vem trazendo resultados mais rápidos e
expressivos para a comunidade. O processo de produção da farinha de mandioca é
muito mais simples e sempre foi uma das principais rendas para as famílias do Mel
além do que, a mecanização do procedimento permite a produção de mandioca em
larga escala e está desenvolvendo um importante trabalho de produção cooperada
para todos as famílias do quilombo com o repartir dos lucros.
Há também os que trabalham com os produtos do caju. Torram castanhas, e
produzem cajuína8. A produção é pequena, mas especialmente as castanhas de caju
agregam maior valor econômico, gerando um lucro que pode ser considerado bom,
ainda que o volume vendido não seja grande. Pude acompanhar a produção de
castanhas de umas das famílias do Mel. Todo o processo é manual, desde a secagem
8 Cajuína. Bebida sem álcool clarificada e esterilizada preparada a partir do suco de caju, preparada de maneira
artesanal.
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das sementes (de onde se extrai a castanha) até a torra que é feita ao ar livre. As
mãos dos produtores acabam sendo castigadas pelo processo da torra e ficam pretas
por causa do contato com a lenha e o fogo. Enquanto trabalhavam, um fiel
companheiro quebrava o silêncio da atividade desempenhada em alto nível de
concentração: o rádio, sintonizado numa emissora evangélica. Muito comum entre os
quilombolas do mel é ouvir canções de origem pentecostal, que sempre foram
bastante presentes na rotina do grupo, que influenciaram o resultado musical da
comunidade e que até os dias de hoje toma parte importante na liturgia do culto
presbiteriano quilombola que veremos no capítulo três. Outro sucesso de audiência
entre os quilombolas é o programa do Reverendo Romilson Leite, pastor da
Presbiteriana Peniel de Macapá, igreja que dá cobertura à congregação do Mel. Nesse
programa, a comunidade se conecta socialmente com a igreja da capital e de outras
congregações no interior do estado. É comum trocas de informações, atividades
eclesiásticas, agenda geral, pedidos de orações e felicitações para os aniversariantes.
O Reverendo Romilson busca desenvolver um repertório bastante eclético dentro das
cercanias da música cristã e os quilombolas do Mel apreciam a programação. Estive
como entrevistado num dos programas falando sobre música cristã e liturgia, já que a
audiência é praticamente em sua totalidade formada por evangélicos.
Com a chegada do projeto de habitação populares do programa do governo
federal, “Minha Casa, Minha vida” vem uma nova oportunidade de trabalho: a
produção de tijolos para construção. Apesar de ser um trabalho sazonal, alguns
quilombolas do Mel estão trabalhando nesta empreitada concomitantemente às suas
outras atividades laborais. O trabalho, apesar de simples, é pesado, ainda mais para
os que estão nessa atividade profissional, acabam em dupla jornada de trabalho
pesado.
1.4 A rotina diária
A comunidade do Mel da Pedreira tem bastante organizada sua forma de
interação entre as famílias residentes e deixam um traçado bastante claro entre as
atividades que são pertinentes a homens e mulheres. Homens, de forma alguma,
executam tarefas delegadas às mulheres, ficando bastante claro na organização
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social do quilombo o papel que cada um deve exercer. Pudemos notar que não há
conflitos na gestão das atividades que cada gênero tem de desenvolver. De sorte que
ao findar o dia todos cumpriram seus deveres e já estão aptos para o descanso ou
para algum evento comunitário, geralmente na igreja. Essa distinção de
responsabilidades e participação no contexto geral para homens e mulheres, ao que
me pareceu, também é refletido na organização musical do quilombo. Não foi possível
notar nenhuma mulher empunhando um tambor para fazer música. As mulheres
geralmente cantam e dançam e os homens trabalham com os instrumentos rítmicos
de modo geral. A única exceção que ficou muito clara é que a Néia, uma das filhas de
“Seu Benedito”, conhecido como Biló Abençoado, exerce uma liderança musical por
ser mais preparada e tocar alguns instrumentos, dirige os ensaios do grupo. Porém,
ela, hierarquicamente, está sob as orientações do irmão João, líder do ministério de
música da igreja.
As tarefas diárias começam muito cedo para os que moram e trabalham na
própria comunidade. Por volta das 05:00 da manhã, se despertam e se dividem
homem e mulher entre as atribuições que cada um tem. O homem sai para caçar ou
pescar, enquanto a mulher colhe frutos, verduras e se responsabiliza pela casa. A
caça tem tempo imprevisível. Às vezes, muito tempo é perdido até que se encontre
um bom animal para abater. Osvaldino, líder da congregação do Mel, nos hospedou
em sua casa e me dizia que sempre buscam abater um animal já em fase adulta a fim
de se respeitar toda a cadeia natural, porque se preocupam em sempre ter nas terras
do Mel animais para caçar e se alimentar. Caçam e abatem quase todo tipo de animal
encontrado por aquela vegetação. Entre os mais caçados, talvez por serem mais
encontrados estão o tatu, o porco do mato e até a cobra. Ao voltar da caça,
dependendo do horário, ou o homem já chega para o almoço ou se dirige para suas
incumbências com a criação de porco, pesca e outras atividades que exercem, seja a
manutenção da casa, a comercialização da produção de farinha de mandioca, entre
outras correlatas.
Em seguida, já chega a hora do almoço que geralmente é em torno de 11:00
da manhã. O almoço é acompanhado, quase que obrigatoriamente por um descanso,
um sono após a refeição. Isso se dá por se despertarem muito cedo e desde então
desenvolver atribuições bastante desgastantes e porque desde que o dia nasce o sol
castiga a região sem misericórdia. O estado do Amapá é muito quente. Isso em função
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da baixa latitude, a cidade de Macapá é dividida pela linha do Equador, o que promove
uma insolação elevada; da baixa altitude, esta região está em média quinze metros
acima do nível do mar o que propicia altas temperaturas; e a proximidade do mar que
traz as correntes marítimas da Guiana Francesa. Logo após o meio dia, até o fim da
tarde, a região se torna um caldeirão de tão quente. Por essa razão os quilombolas
descansam para repor as energias e para esperar por condições climáticas mais
favoráveis ao trabalho. Quando o sol alivia a intensidade da temperatura, homens e
mulheres retomam suas tarefas, que praticamente são iguais ou muito semelhantes
as desempenhadas pela manhã.
Apesar de outros hábitos sociais e de trabalho irrigarem a comunidade
atualmente, fruto do franco contato com a sociedade comum, a tranquilidade e a falta
de urgência ou pressa para execução das tarefas permanecem praticamente intactas.
Ao que parece, o quilombola faz questão de se manter distante de uma maneira de
ser que contrasta com o que sempre foram no que se refere a rotina. Vivem e se
mantêm com o que precisam para o momento e tão pouco transparecem estarem
focados em acumular coisas, sejam bens ou até alimentos. Ainda que todas as casas,
ou quase todas, têm fogão, geladeira, utensílios domésticos em geral, televisão, no
que se refere à caça e à pesca não me pareceu que buscam alimento para mais de
duas ou três refeições como poderiam fazer por exemplo usando a geladeira para
conservar os alimentos. A relação que os quilombolas têm com a terra, com a natureza
parecem dar a convicção à comunidade de que para a subsistência diária não
precisam se desassossegar.
As gerações mais novas sim, manifestam um senso mais emergencial ainda
que não tão latente como entre os jovens das metrópoles. São mais sonhadores, têm
planos maiores que uma vida limitada de recursos financeiros, e alguns até comentam
planos de acumular bens ou ter uma vida financeira equilibrada, tranquila.
Demonstram uma ambição moderada e se organizam empreendendo esforços para o
desenvolvimento financeiro da comunidade.
Por isso, parte da rotina do quilombola é ser solidário entre os membros do
grupo. São muito engajados nas causas de interesse comum, na articulação e no
trabalho duro daquilo que poderá trazer algum benefício para o quilombo. As
lideranças da comunidade, tanto a geração mais velha, quanto a nova que se
40
desponta, tem um poder retórico muito grande no grupo. Facilmente se articulam e se
organizam e direcionam o grupo rumo aos objetivos comunitários. Há também um
respeito de ordem patriarcal ao que é orientado pelos mais velhos, não ocorrendo
quase desentendimentos entre os distintos anseios, quando aparecem. Me lembro
que quando conheci o grupo de música, e por identificar rapidamente tão diferenciada
e rica culturalmente as canções do Mel, em conversas com alguns líderes da
comunidade, sugeri começarmos a organizar as músicas, fazer ensaios programados
com o intuito de gerar uma preparação técnica instrumental e vocal que fosse
suficiente para gravar um CD somente com músicas compostas e arranjadas por eles.
Os líderes receberam a ideia com muita euforia. Então, particularmente cremos que
se tratava de uma decisão tomada e que posteriormente os membros do grupo seriam
comunicados. Para surpresa nossa, o assunto foi encaminhado para as lideranças do
quilombo, - não os líderes de música, os líderes da comunidade no geral-. Em seguida,
convocaram uma reunião com todos os membros do grupo de música, líderes da igreja
e líderes do quilombo para que expuséssemos a ideia para todos, assim poderiam
decidir se abraçariam o projeto ou não. Decidiram por iniciar o projeto e demonstraram
que com muita agilidade se organizam e se articulam em função dos objetivos em
comum e que tais medidas fazem parte da rotina da comunidade.
Também, são muito cooperadores entre si quando algum membro do grupo ou
família necessitam de ajuda inclusive para conclusão de algum trabalho ligado a terra.
Muito rapidamente a ajuda começa a aparecer sempre delineado pelas diferenças
estipuladas pela organização social do quilombo: homens ajudando outros homens, e
mulheres ajudando mulheres.
No dia de nossa despedida, um domingo, logo após o culto promoveram um
almoço. Foi uma grande confraternização. No sábado, pude acompanhar de perto
como se estruturam para a festa, homens e mulheres. Alguns homens mataram um
porco, outros trouxeram caça. As carnes foram divididas entre as mulheres para que
cada uma delas ficassem responsável pela elaboração dos pratos. Prepararam
também vários acompanhamentos, e logo após o culto dominical matutino estava tudo
pronto e organizado. O salão que fica atrás do templo estava com as mesas e bancos
organizados, com talheres e copos. Todos se serviram fartamente, compartilharam,
conversavam e claro, teve canto, dança e batucada. Num evento tão singelo como
este, podemos verificar o quão cristalino era a sensação de pertencimento à
41
comunidade entre todos os membros do quilombo que faz do Mel da Pedreira um
quilombo dos mais organizados e mais avançados em termos de logros para o grupo.
1.5 O protestantismo no Quilombo do Mel
A conversão de todo o quilombo do Mel em protestantes, dantes católicos
devotos de Santo Antonio e mantenedores de práticas religiosas africanas e de
pajelança é a medula para compreensão da identidade étnica do grupo bem como
suas manifestações artísticas e culturais. Negros que viveram sua diáspora ao
imigrarem forçadamente rumo ao Brasil, para serem escravos e violentamente
arrancados de suas origens, familiares e país, construíram um fenômeno cultural
ritualístico afim de fincar estacas em terras estranhas que pudessem servir de alento
para despontar de uma nova identidade, evidentemente, na tentativa de trazer do
passado significação para um presente de solidão e de sofrimento já que foram
tolhidos do curso natural de vida, rituais tais que obscura e secretamente foram
surgindo em meio as senzalas que os prendiam após um dia completo de trabalho
escravo.
Estes rituais que ocorriam nas senzalas, eram também e principalmente de
dança do marabaixo e batuque, especificamente nos quilombos do Amapá e do baixo
Amazonas. Era também um meio pelo qual os negros se comunicavam entre si porque
também lhes fora sacado o direito de conversar entre si, com o objetivo de evitar fugas,
rebeliões e toda sorte de prejuízo aos senhores de escravos. Nesse talvez único meio
de comunicação, surge a figura do ladrão9 que no marabaixo tem uma função crucial,
por mudar os versos das canções, esta função tem uma importância histórica muito
grande. No tempo da escravatura, o ladrão era uma espécie de moderador entre os
assuntos que a comunidade negra queria discutir entre eles, e a única forma era usar
a música com recurso porque não podiam conversar entre si. Então, todos cantavam
marabaixo e em meio a um verso e outro, o ladrão trazia à tona tal assunto e assim
discutiam e conversavam. Tratava-se de uma estratégia por parte dos negros para
9 É um líder poético, ou um orador. Aquele que tem a habilidade de pegar a metade de um verso da música e criar
outra rima poética para finalizar, ou responder ao que fora cantado anteriormente e conduzir a comunicação entre
o grupo.
42
poderem resolver seus assuntos de forma ʺlivreʺ ou sem a intervenção de seus
ʺdonosʺ. O ladrão também trazia os temas de entretenimento e descontração da roda,
assunto que será desenvolvido no próximo capítulo deste estudo.
Como podemos notar, a tradição da oralidade entre os negros quilombolas do
baixo Amazonas é iniciada nessas ocasiões. Por este intermédio as histórias eram
difundidas e todos os negros tomavam ciência de tudo que se passava. As gerações
se passaram, e a tradição da oralidade foi preservada. Quase tudo o que se sabe do
quilombo do Mel é através da “contação” das histórias. Existem poucos documentos,
cartas e até fotos. O maior volume de informações sobre a comunidade é por
intermédio da oralidade. Assim como na tradição das senzalas havia o orador
responsável por conduzir todas as informações durante a roda de marabaixo, a
comunidade do Mel tem seu orador, “Seu Alexandre”. Dono de uma memória
prodigiosa, ele compartilha as histórias com grande alegria e emoção, fazendo suas
atuais ponderações principalmente quando os fatos vão contrariamente ao credo do
quilombo. As conversas com ele são ricas em detalhes, em fatos curiosos e em datas.
Entrevistei também o “Seu Benedito” ou Seu Biló, protagonista da conversão do
quilombo ao protestantismo. Nesse caso, fez-se necessário construir uma espécie de
cânone10 entre ambos os relatos para conferir ao presente estudo maior riqueza de
detalhes.
“Seu Biló” nos disse que a história de sua conversão começa quando tinha entre
32 e 33 anos de idade. Era o ano de 1968. Está por completar 80 anos e ostenta com
alegria seus 47 anos de conversão religiosa. Mas, antes de efetivamente acontecer o
fato que mudaria a história de toda a comunidade do Mel da Pedreira, ele nos conta
que já sentia uma necessidade de buscar a Deus. Porém, não sabia como fazer tão
pouco onde encontra-lo. Sempre teve suas inquietações e indagações sobre a religião
católica, chegando a questionar a festa dedicada aos santos. “Seu Biló” tem um irmão
chamado Gurgel, que hoje tem perto de 90 anos de idade e que havia se convertido
evangélico antes dele. Quando Gurgel falava de Jesus para ele, nos descreve que
10 Música. Cânone é uma composição a duas ou mais vozes entoando uma mesma melodia, que se caracteriza
por essas vozes serem entoadas desfasadas no tempo, porém complementares. São vozes distintas que buscam
afirmação harmônica umas nas outras, feito um diálogo que ao final se concatena em uma só melodia, ou motivo
musical.
43
sentia alguma coisa diferente que não podia ser explicada. Seguiu solitariamente
buscando respostas quanto à existência de Deus.
Um dia, entre amigos e parentes jogavam uma partida de dominó. Estava
nervoso porque estava perdendo e percebeu que uma pedra que falta no jogo e que
ele precisava, seu filho mais velho que era ainda pequeno havia a extraído para
brincar. Isso o enfureceu ainda mais e “Seu Biló” bateu em seu filho. Tal situação
amargurou seu coração e desde este fato nunca mais jogou dominó e se sentiu como
se estivesse totalmente sem rumo, fora do caminho certo. Abandonou a partida com
seus amigos e se retirou para um canto da mata com algumas mangas para merendar
antes de começar a caçar veados. Foi quando, de acordo com o relato abaixo, mais
um fato marcante, reputado como sobrenatural ocorre:
Não demorou muito veio uma nuvem preta.... Estava eu e uma
ponta de mato. Mas aquela nuvem bem escura, e para mim dava
a impressão que vinha há dois metros só do chão, sem chover.
Era grande assim e passou longe como daqui naquela mata. Aí
eu fiquei... disse: Oh Deus, tu “faz” essa nuvem passar aí desse
jeito e eu aqui querendo conhecer de ti. Será que é só padre que
pode fazer isso? Mas eu não tinha nenhuma ligação com pastor
e não tinha conhecimento nenhum.
No dia seguinte, foi à casa de sua irmã e viu uma Bíblia. Imediatamente se
interessou pelo livro e o folheou. (Três anos antes, em 1965, já havia despertado
interesse em ler a Bíblia e havia encontrado uma em Belém, capital do Pará, na casa
de um amigo, mas era escrita em latim e conta que chegaram à conclusão que
precisariam de um padre que pudesse lê-la para eles. Por isso, acabou desistindo de
ler). Começou a ler a Bíblia, mas não conseguia entender nada do que lia. Ficou muito
agoniado e ainda sem respostas as inquietudes que tinha. Nesta época, em Macapá,
conheceram uma mulher chamada Estefânia (que “Seu Alexandre” a chama de
matriarca da fé e a homenageou dando o mesmo nome para uma de suas filhas), que
segundo o que as pessoas comentavam era crente e vivia pela região andando com
a bíblia nas mãos e falando sobre ela.
44
Então, “Seu Biló” e seu irmão Gurgel, acharam por bem procurar a Estefânia
para que ela pudesse explicar o conteúdo da bíblia para eles, como explica “Seu
Alexandre”:
Há possibilidade “da” senhora trazer aqui na nossa casa o pastor
lá da sua igreja? Ela disse: sim. Prometo para vocês. Eu vou
amanhã “pro” culto quando eu voltar já digo o dia que dá para
ele vir. E assim foi. O pastor disse que poderia ir amanhã. (...).
Começaram a convidar os vizinhos de próximo lá da casa que
vinha um pastor lá “pra” fazer um culto. E foi assim. Quando o
pastor chega, na simplicidade, sem gravata. Diz: vocês querem
ouvir uma palavra? Todos disseram que sim. Primeiro cantou os
hinos e depois abriu a bíblia e começou a explanar, né? Com
muita calma, com muita cautela (...).
Todos ficaram muito felizes com tudo o que ouviram e de imediato se
converteram. No dia seguinte, bem cedo, “Seu Biló” pedala aproximadamente 30
quilômetros de Macapá até o quilombo para contar ao sogro “Seu Bráulio” sobre sua
conversão. (Alguns quilombolas tinham bicicletas para se locomover entre o Mel da
Pedreira e a capital Macapá para compras emergenciais ou outras necessidades que
surgiam). Nesse fato, é importante frisar a audácia e coragem de “Seu Biló” para
confrontar religiosamente “Seu Bráulio” o sogro, pajé e patriarca do quilombo do Mel
da Pedreira. O confronto foi muito forte e direto. “Seu Biló”, apesar de todo o respeito
pelo sogro e pela figura de “Seu Bráulio” perante a comunidade não poupou palavras
e foi direto no que ele entendia que estavam fazendo de errado religiosamente,
segundo as orientações do próprio sogro. Vejamos o que fora dito segundo o que “Seu
Alexandre” narrou:
É que nós estamos errados! Esse santo que a gente adora aqui
não presta! (Meu irmão o negócio foi pesado, foi puxado. Meu
pai não dormiu a noite toda). Esses santos são mortos! (Falando
a verdade, né? Mas foi pesado. Primeira evangelização. Hoje eu
45
não faço isso de jeito nenhum. Já tenho 46 anos de “carreira”
então a gente sabe como entrar). Então, eu vou fazer um desafio
para o senhor, velho Caiana: nós vamos pegar uma galinha é
vamos amarrar no pé dela um fio fraco, colocar ali no capim seco
e vamos colocar o santo padroeiro todo poderoso ali do lado.
Vamos tocar fogo e vamos ver quem vai sair de lá. (...). O santo
ou a galinha. Então meu pai disse para ele: é lógico Biló que
quem vai sair primeiro é a galinha. E o Biló disse: ele está morto.
A estratégia usada por “Seu Biló” foi vista, posteriormente, como uma estratégia sábia
para poder contra argumentar com o sogro que mantinha firmes outras convicções
religiosas e era o líder espiritual da comunidade.
A noite foi praticamente em clara para o “Seu Bráulio” após o confronto que
o genro propôs. Não pela situação em si – porque apesar do forte embate ideológico
da nova religião que fora trazida, o genro foi muito respeitoso e era muito querido por
ele – mas porque os argumentos usados despertaram no pajé do quilombo vontade
de saber mais a respeito dessa nova religião. No dia seguinte, logo pela manhã, um
outro filho de “Seu Bráulio” que também havia se convertido na Assembleia de Deus,
confirmou para o pai a mesma compreensão sobre a fé em santos. Por esta razão,
“Seu Bráulio” toma a decisão de querer saber mais detalhes desta nova fé e pediu
para que o pastor do genro viesse explicar o porquê de genro e filho terem mudado
de religião e estarem fervorosamente envolvidos nela.
Em onze de maio de 1968, a pedido de “Seu Bráulio” uma equipe de
pastores da Igreja Presbiteriana Central da capital Macapá chega ao quilombo do Mel
da Pedreira com a missão de acalmar e responder as dúvidas do aflito pajé da
comunidade. A equipe liderada pelo pastor José Auro de Araújo foi composta também
por: Manuel José dos Passos e Damião Lima, presbíteros da igreja. Com eles, estava
o tio do Reverendo Romilson Bastos Leite – atual pastor da Igreja Presbiteriana Peniel
– o senhor José Rubens Bastos. Realizaram um culto e “Seu Bráulio” e esposa mais
dez pessoas se converteram protestantismo naquele dia. O próprio pastor José Auro
ficou sensibilizado com a conversão coletiva, porque em toda sua carreira pastoral
não havia presenciado tal feito. “Seu Alexandre” ainda resistiu por algum tempo,
chegando a sair do quilombo e viver na comunidade do Galo, para não ter que ver e
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ouvir a mudança de credo das pessoas do quilombo. Passando algum tempo,
enviaram um bíblia para “Seu Alexandre”. Assim o fizeram porque muitos novos
convertidos religiosos do quilombo do Mel também queriam que ele se convertesse,
mas “Seu Alexandre” queria buscar uma certeza ou uma segurança para a mudança
de fé. Ele nos relata que sua resistência passa pela imagem que havia sido criada dos
evangélicos, segundo o que ele ouvia dizer uma imagem negativa, pejorativa. Ao ler
a bíblia por algum tempo, meses depois, se converte ao protestantismo em de julho
de 1968.
Como anteriormente pontuamos, a vida de “Seu Bráulio” sempre foi
marcada por muitas ocorrências reputadas ao sobrenatural desde de sua gestação.
Essa sensibilidade se desenvolveu até que fosse o pajé da comunidade. De acordo
com os relatos, ele recebia os espíritos – conhecidos também como encantados – e
tinha um guardião espiritual, um mensageiro da família, que se apresentou a eles
como Esmeraldo. Certa vez alguns poucos anos antes da conversão, Esmeraldo
prediz o rompimento de “Seu Bráulio” e, por conseguinte de toda a comunidade a fé
através da pajelança. Vejamos a fala de “Seu Alexandre” confirmada por “Seu Biló”:
Alguns anos, poucos anos antes da nossa conversão, o
mensageiro da família baixava no meu pai é dizia: “Vocês vão
nos abandonar”. E minha mãe só faltava chorar porque ele era
tudo para ela. (...). Minha mãe dizia: “Não pode acontecer isso! ”
E o mensageiro disse: “Vocês estão caminhando numa ponte
velha, quebrada e vocês estão chegando no final dessa ponte e
vocês vão “tá” entrando numa pista linda. ” Ninguém
compreendia. A gente não tinha noção. Quando a gente se
converteu a gente entendeu a mensagem. Meu pai abandonou
o “pajelismo”, meu pai abandou a idolatria, abandonou tudo. A
gente vivia assim monitorado por essas coisas e abandonamos
tudo. E a pista linda é o caminho de Deus.
Em 1968 ainda, no local que hoje é a igreja, havia uma casa de “Seu Bráulio”
onde os novos convertidos se reuniam para os cultos protestantes. Mensalmente, a
igreja presbiteriana enviava um pastor para realizar um culto com eles. Pouco tempo
47
depois, iniciaram a Escola Bíblica Dominical, após terem a conhecido na igreja em
Macapá. Acharam importante para se firmarem ainda mais no novo credo e adotaram
também no quilombo do Mel.
O confronto cultural foi inevitável. Os quilombolas do Mel orientados pela
igreja não podiam mais participar ou organizar as antigas festas regadas a marabaixo
e batuque. Apesar da comunidade protestante ter crescido muito e rapidamente entre
os quilombolas do Mel, alguns não suportaram as proibições da igreja quanto a cultura
e abandonaram a nova fé. Porém, a congregação do Mel foi se organizando desde o
início já a sua própria maneira. Não somente por causa da forte personalidade de sua
identidade étnica, mas ao meu entender por dois outros fatos. O primeiro deles, devido
à ausência diária, ou ao menos semanal, de um pastor na comunidade, certos
costumes doutrinários da igreja presbiteriana tradicional, não foram introduzidos. Por
outro lado, os quilombolas buscaram uma maneira mais confortável – ou mais próxima
da cultura étnica – de celebrar os cultos com muita festa e música. Tais atos culturais
tão pouco seriam retirados depois de instaurados, ainda que fossem totalmente
contrários aos costumes tradicionais, e foram tolerados pela igreja presbiteriana para
que não houvesse um abandono coletivo da nova fé. O outro fato é que havia um
contato muito grande entre a comunidade presbiteriana quilombola e a Igreja
Assembleia de Deus. Alguns quilombolas do Mel haviam se convertido lá, inclusive
um dos filhos de “Seu Bráulio”. Por se tratar de uma igreja pentecostal, os cultos não
são solenes e comumente extravasam suas emoções e espiritualidade em voz alta e
com música alegre. Em suas igrejas eram muito presentes, naquela época, o violão,
o pandeiro, o cavaquinho e o acordeom. As músicas por eles entoadas mesclavam
gêneros nordestinos e moda sertaneja. Esses hábitos musicais foram introduzidos no
culto presbiteriano do Mel. “Seu Alexandre” nos conta que desde o começo dos cultos
na comunidade, “Seu Biló” adotou o violão para os cânticos congregacionais. Usavam
o hinário “Salmos e Hinos” e adaptavam para as modas sertanejas que de certa forma
eram toleradas pela igreja presbiteriana de Macapá que tinha cultos bem solenes e
somente adotavam o piano ou o órgão como instrumentos apropriados para
acompanhar o canto congregacional.
Um dos hinos mais cantados pela comunidade do Mel no início de sua
formação protestante foi o número 304 do “Salmos e Hinos”. “Seu Alexandre” com
bastante saudosismo, recita a letra do cântico e nos relata que na companhia
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inseparável do violão cantavam à moda do quilombo, o que segundo ele foi um dos
ensinamentos mais importantes e mais marcantes para sua conversão:
A voz do Evangelho
Já se fez ouvir aqui,
Publicando, em som alegre,
O que Deus já fez por ti.
Pois tanto ao mundo amou
E ao perdido pecador,
Que do céu lhe deu seu Filho
Para ser seu Redentor.
Santa paz e perdão,
É a nova lá dos céus!
Santa paz e perdão,
Bendito o nosso Deus!
A voz do Evangelho
Segurança, vida e paz,
E o amor de Jesus Cristo
Que o perdão de Deus nos traz.
As novas se nos dão
De haver um Salvador,
Poderoso e mui bondoso
Que perdoa o pecador.
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A voz do Evangelho
Vem a todos avisar
Do perigo, grande e grave,
Para quem se descuidar.
Salvai-vos desde já,
Não vos detenhais no mal,
Cobiçando os seus prazeres,
Pois vos pode ser fatal.
Alguns hinários como “Salmos e Hinos” foram utilizados por diversas igrejas
ainda que com contextos teológicos diferentes. Como boa parte deste cancioneiro se
dedica a temas relacionados a salvação, perdão de pecados e a morte de Cristo na
cruz para remissão da humanidade, ponto comum entre as igrejas sejam tradicionais
ou pentecostais, por muitas décadas foi utilizado. (Mendonça, 1995, p.190).
Posteriormente outras denominações evangélicas acabaram por criar seus próprios
hinários. A maioria deles têm praticamente as mesmas músicas com letras alteradas.
Já algumas canções, foram integralmente mantidas e publicadas novamente.
Atualmente, somente as igrejas tradicionais fazem uso recorrente dos hinários. Muitas
outras instituições evangélicas praticamente aboliram o uso dos hinários e adotaram
músicas avulsas de diversos intérpretes para o canto congregacional que mudou de
nome para momento de “Louvor e Adoração”. Mais adiante, no capítulo três,
analisaremos o repertório utilizado nos cultos do quilombo do Mel da Pedreira, onde
poderemos notar um grande congraçamento entre canções tradicionais, pentecostais,
escatológicas e do movimento gospel atual.
A ruptura da cultura de marabaixo e batuque foi imediata. Os quilombolas
foram ensinados a abandonar completamente essas práticas que no entender da
igreja presbiteriana estavam totalmente ligadas as oferendas praticadas nas festas
dos santos. Por longos anos, até o reconhecimento da comunidade como
50
remanescentes de escravizados, próximo aspecto que queremos abordar, não se
manifestavam pelos ritmos musicais da tradição africana nas reuniões e eventos
familiares do quilombo, tão pouco nos cultos. É que nesse caso, segundo a tradição
presbiteriana, a música não deve ser para “impressão” e sim para “expressão” como
aborda em sua tese de mestrado (Modolo, 2006, p.43):
“O papel de “impressão” da música certamente é o que causou,
e ainda causa maiores dificuldades quando visto da perspectiva
do culto. (...) Trata-se do poder que a música tem de atuar sobre
nosso corpo e nossas emoções, alterando-as. Nesse caso ela
pode nos acalmar ou excitar, ainda que sem palavras, e criar
diferentes atmosferas. (...). Longas melodias, repetição
exaustiva de frases musicais, extrema ênfase melódica com
grandes saltos intercalados de cromatismos, são recursos
musicais que geram, em essência, música emotiva e de efeito
contagiante que, embora possa vir acompanhada de texto, dele
não depende, nem com ele se preocupa. Sua finalidade é
alcançar os presentes emocionalmente, criando “ambiente”
preparatório, suposta ou verdadeiramente litúrgico. (...), os
cânticos entoados pela congregação ou grupo especial, em
diferentes momentos de culto, cujos textos tenham sido
elaborados e escolhidos para que a mensagem neles contida
seja compreendida, absorvida e fixada pelos participantes, (...)
cujo sentido é reforçado pela música, esses podem ser
classificados como “música de expressão”. A música, nesse
caso, será veículo para o texto e será tão mais eficiente quanto
melhor for seu “casamento” com as palavras, isto é, quanto
melhor a música puder expressar, por si só, as ideias contidas
no texto. ” (...) O que parece ter despertado tanta antipatia em
alguns dos reformadores e, antes deles, nos Pais da Igreja,
quanto ao uso da música instrumental ou de um tipo de música
“ricamente ornamentada” no culto, foi a consciência de que os
sons podiam exercer poder sobre as emoções humanas. Eles
declararam seus temores de que a música pudesse chamar
tanto a atenção para si, desviar tanto os fiéis da Palavra, inebriá-
51
los tanto pela sua beleza, que poderia levá-los a perder o eixo
central do culto. Seria a “música pela música”, no máximo para
criar ambientes atraentes, isto é, apenas em sua função de
“impressão”. ”
Todos esses conflitos ideológicos que circundam o tema música apropriada para o
culto desta comunidade, serão abordados no capítulo três desta pesquisa.
Por toda a trajetória da congregação do Mel, a igreja de Macapá, a Peniel,
sempre enviou mensalmente os pastores para a celebração de cultos. Foram muitos
pastores de 1968 para cá. Os pastores também dedicam tempo em atender as famílias
e as necessidades do quilombo. Até o presente momento, a congregação
presbiteriana do quilombo do Mel não tem um pastor ordenado dedicado
integralmente para atender a igreja e toda a comunidade. Na própria localidade do
quilombo, Seu Alexandre e Seu Osvaldino lideram e conduzem os cultos e
“funcionam” como pastores da congregação do quilombo.
1.6 O reconhecimento como quilombolas e a titulação das terras
Desde 1954, os quilombolas do Mel vivem nas terras compradas por Seu
Bráulio de seu primo. Esta área, sempre foi vista por toda a comunidade como de
pertencimento, ou seja, ela é herança para todos eles desde que o patriarca iniciou o
grupo a partir de sua família. Ao longo dos anos viveram a certeza da posse da terra,
ainda que em algumas situações tiveram que enfrentar invasões de posseiros11 até
que o governo interveio e desapropriou do local os invasores. (Souza, 2014, p.21).
Em março de 2004, o governo federal lança o Programa Brasil Quilombola
(PQB) com uma política estatal para as áreas onde vivem remanescentes de
escravizados e determinou que o INCRA, Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária fosse o gestor das políticas de reconhecimento e regularização das terras
11 Posseiro. Os posseiros são lavradores (agricultores) que juntamente com a família ocupam pequenas áreas de
terras devolutas ou improdutivas, isto é, terras que não estão sendo utilizadas e que pertencem ao governo.
52
ocupadas pelas comunidades, tarefa antes atribuída ao ministério da cultura. Todo o
processo que regulamenta a identificação, o reconhecimento, a delimitação, a
demarcação e a titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades
dos quilombos consta no decreto 4.887, de 20 de novembro de 2003. Por sua vez, o
INCRA, como órgão competente para gestão das regularizações dessas terras, cria a
Coordenação Geral de Regularização de Territórios Quilombolas (DFQ) vinculado à
Diretoria de Ordenamento da Estrutura Fundiária. O artigo 2 do decreto diz:
“consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste
Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto atribuição, com trajetória
histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de
ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida”.
Porém, para iniciar o processo junto ao INCRA, a comunidade precisa se
auto reconhecer como remanescentes de quilombo, e encaminhar uma declaração
deste reconhecimento à Fundação Cultural Palmares, órgão competente para expedir
a Certidão de Auto Reconhecimento do grupo solicitante.
O processo não é simples. São diversas as etapas até a titulação das terras.
Para que o INCRA de início ao processo de reconhecimento, após a declaração de
auto reconhecimento e da certificação emitida pela Fundação Cultural Palmares,
como primeira parte de todo o procedimento desenvolve um estudo da área, para
emissão do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) do território em
questão. A segunda parte envolve a recepção, análise e julgamento de eventuais
contestações. Após a aprovação definitiva do relatório (RTID), o INCRA pública uma
portaria de reconhecimento e delimitação do território quilombola. A terceira e
derradeira parte envolve o processo administrativo da regularização fundiária, a
retirada de invasores não quilombolas através de desapropriação das terras ou
pagamento de indenizações. Ao final, o INCRA emite a concessão do título de
propriedade à comunidade, que é coletivo, pró-indiviso e em nome da associação dos
moradores da área, registrado no cartório de imóveis, sem qualquer ônus financeiro
para a comunidade beneficiada.
Seu Alexandre nos conta quando recebeu a visita dos antropólogos do
INCRA, houve um conflito em função da fé cristã reformada do grupo, ou seja, um
quilombo, remanescentes de escravizados não podem expressar outra religião porque
53
tal feito seria uma negação das raízes e a perda da identidade étnica de acordos com
os antropólogos que se reuniram com ele:
Aqui no relatório está dizendo que vocês aderiram a fé cristã
evangélica. A partir desse momento, vocês perderam a
identidade das raízes, das matrizes africanas. Eu só pedi a Deus
ajuda e sabedoria. (...). Naquele momento, (...), eu disse: Olha
eu não conheço nada, sou leigo, analfabeto perto de vocês, que
são letradas e tudo, mas vocês sabem mais do que eu que nosso
país brasileiro é um país democrático. A democracia nesse país
“é” direito iguais, é direito de ir e vir é direito de escolha.
Liberdade de expressão. Então eu disse: O que vocês acham de
eu escolher a religião que eu quero?
Depois, acrescenta que a escolha de uma nova fé, não altera suas raízes tão pouco
sua história, a cor da pele e seus traços.
Após essa visita e entrevista, em abril de 2007 o quilombo do Mel recebeu
a titulação da terra, a tão esperada garantia de posse para a comunidade presente e
as futuras gerações.
No capítulo três, analisaremos a história da música do quilombo do Mel da
Pedreira, como a cultura ancestral africana foi introduzida no culto bem como o
entendimento de identidade étnica e como a música transmite a ideologia quilombola
do Mel. Antes, porém, no capítulo dois, estudaremos o marabaixo e o batuque, ritmos
advindos das festas e da cultura dos negros do baixo amazonas.
54
2. O Batuque e o Marabaixo
Para compreendermos as origens da cultura do quilombo do Mel e
consequentemente a música que produzem atualmente, precisamos nos volver a
história do Batuque e do Marabaixo. Sabemos (ao ouvir a música executada pelo
quilombo atualmente) que ao apreciá-la, não poderíamos incluí-la numa única
categoria estética e analítica, que pudesse abarcar todas as diferenças por ela
manifestadas no que se refere a execução de um modo geral. Nesta arte encontramos
o ritmo africano tão fortemente desvelado, a música sertaneja do homem do campo,
a música religiosa tradicional vinda dos hinários a música religiosa mais popular que
engloba diversos gêneros da música gospel12 atual e antiga e, a música do rádio nos
idos da década de 1960 e 1970.
Evidentemente, o que mais chama atenção nesta miscelânea de gêneros é o
marabaixo e o batuque. É o “ingrediente” mais usado para esta “massa” sonora. As
porções generosas destes ritmos musicais, colocados em primazia sobre os outros
gêneros que formam esta “receita”, transmitem um anseio de desabafamento
ideológico e identitário sob a etnia negra que nunca é negada, mas sim ostentada com
orgulho por esta comunidade, como nos disse Seu Alexandre ao afirmar que o fato de
serem protestantes não muda a cor de sua pele, sua ancestralidade e seu apego a
cultura africana.
A música sempre foi um meio eficiente de promover a fácil fusão entre os
ensinamentos religiosos e a memorização de tais ensinanças pelo indivíduo religioso,
a fim de que ele possa ter consolidado o que aprendeu do que lhe fora transmitido.
Isto forma uma maneira de ser para todos os que são submetidos à música,
independentemente do estilo. Ela interfere, e muito, ditando por vezes o
comportamento de seus apreciadores, não tanto quanto interfere no comportamento
dos executores. E nesse sentido, marabaixo e batuque são gêneros musicais
completamente antagônicos ao ethos religioso protestante, principalmente o
12 Gospel. A música gospel em seu país de origem é a música negra estadunidense. No Brasil, o termo gospel
serve para identificar toda música evangélica sem distinção de gênero ou estilo. A música gospel pode transitar
em quaisquer estilos e características, desde que sua hinódia seja voltada a temas bíblicos ou doutrinários de cada
vertente evangélica.
55
tradicional assim como o é o presbiterianismo. Acrescento que nos meandros
evangélicos como um todo, esses ritmos não são considerados adequados para o
culto. Algumas poucas igrejas aceitariam o uso desses gêneros como meio de
comunicação e atração para as comunidades negras no objetivo de conversão, assim
como fazem com o rock, o rap e outros para distintos grupos, porém, imediatamente
após convertidos, seriam motivados a deixar de apreciá-los ou praticá-los. Sem contar
que tambores, de uma forma geral, são vistos no contexto da religião como sempre
alusivos ao candomblé, umbanda e outros e, no caso do batuque e marabaixo são
ritmos pertencentes, ou dedicados as festas de santos. Os próprios quilombolas do
Mel já disseram que com certa frequência provam da reprovação dos protestantes no
que se refere a música que produzem.
A música ideal para os cultos é um tema de discordâncias históricas. Sempre
foi um assunto recorrente, e que até os dias de hoje não se chega a uma conclusão
definitiva sobre quais estilos ou gêneros são apropriados. Desde os tempos primórdios
da igreja cristã, sempre houve uma busca por produzir música litúrgica que se
diferenciasse das outras classes musicais, no sentido de promover uma música pura,
apropriada para o sagrado. Por isso ao longo dos séculos da história da música
ocidental vemos o desenvolvimento de muitas liturgias e todas com a sua forma
específica musical. O interessante é observar que o objetivo das liturgias – e aqui me
refiro especificamente aos aspectos musicais – sempre foi de desenvolver uma
música diferente do contexto social geral como meio fundamental de manifestar uma
ideologia religiosa contrastante como foi com a liturgia de Bizâncio que se opunha as
tradições judaicas, como os hinos compostos por Martinho Lutero e outros nas línguas
de origem (não mais em latim) na reforma protestante e no caso desta comunidade,
com a inserção do marabaixo e do batuque no culto quilombola protestante
presbiteriano (GROUT, D. J.; PALISCA, C. V., 2007).
Assim como é difícil definir exatamente de qual país vieram os escravos que
formaram as comunidades quilombolas no Amapá, tão complexo quanto definir as
origens do Marabaixo e do Batuque. O negro e sua cultura afro descendente é parte
dessa região desde o século XVIII. Os negros que foram enviados a Belém e
distribuídos por toda a região do baixo amazonas vieram de diversos países,
provenientes dos portos de Luanda (Guiné-Bissau), Cabinda, Benguela (Angola) e
Moçambique. Alguns outros, vieram da Guiné Portuguesa para trabalhar na
56
agricultura, mas a maioria de negros eram foragidos de Belém na época do governo
do grão Pará (SANTOS, 1998). Em 1751, os negros trabalhavam fortemente não só
nas lavouras de arroz e cana de açúcar, mas também nas construções urbanas e
principalmente na edificação da Fortaleza São José por razões de proteção do
território ameaçado pelos franceses. Esta construção é considerada a maior fortaleza
erguida na américa latina no período colonial. A construção é imponente, cercada de
beleza e possível pelo trabalho escravo de negros e índios.
O Marabaixo e o Batuque se apresentam como os mais importantes
representantes da cultura dos remanescentes negros escravizados no estado do
Amapá. Igualmente são danças e músicas executadas com caixas, tambores,
pandeiros e outros instrumentos membranofones13 de construção primitiva. Os ritmos
fazem parte de festas em sua maioria dedicada aos santos católicos. São presentes
no Marabaixo e no Batuque diversos rituais de matriz africana e de pajelança. Como
protagonistas da cultura do estado, atualmente, vem recebendo aportes financeiros
dos governos municipais e estaduais, especificamente para o “Ciclo do Marabaixo”
período festivo do estado onde grupos de quilombolas se apresentam publicamente.
Em função desse investimento e do incentivo publicitário da cultura local pelo governo,
têm ganhado muitos outros admiradores e praticantes que não são oriundos das
comunidades de quilombolas. Em 2015, a Secretaria de Estado de Cultura (Secult),
disponibilizou cento e noventa mil reais para as apresentações dos diversos grupos
de quilombolas. Esses valores foram divididos de forma igualitária entre todas as
comunidades que mantêm grupos para a festividade. Os recursos apoiam as
comunidades no custo das indumentárias, instrumentos, comida entre outros custos.
Em 13 de julho de 2004, o governador Antonio Waldez Góes da Silva sanciona
a lei 0845 que cria e insere o “Ciclo do Marabaixo e Batuque” no Amapá. A lei, projeto
do deputado Alexandre Barcellos, descreve que os festejos se estendem a todas as
comunidades, independendo do período que cada uma delas dedica a festa em louvor
ao padroeiro e define que o ciclo se inicia no sábado de aleluia (semana santa do
13 Membranofone. A Organologia, disciplina que trata da descrição e da classificação de qualquer instrumento
musical, tendo em conta o material empregue, a forma, a qualidade do som produzido, o timbre, o modo de
execução; define que são instrumentos de percussão, que produzem som através da vibração de membranas
distendidas. As membranas distendidas podem ser peles de animais, ou películas sintéticas produzidas pela
indústria de instrumentos musicais.
57
calendário cristão) e se estende até a primeira quinzena do mês de junho, período
dedicado ao Divino Espírito Santo e Santíssima Trindade. Outro evento importante é
o chamado “Encontro dos Tambores”, promovido pela Secult e pela Seafro (Secretaria
de Políticas para Afro descendentes). Ocorre na semana da conscientização negra.
O grupo musical do quilombo do Mel da Pedreira participa há três anos ativamente
desta programação. Também são desenvolvidas palestras, oficinas e seminários com
temas voltados às questões da negritude no estado, para difusão de uma gama de
informações mais completa para o público geral.
Como se pode notar, os governos regionais estão valorizando a cultura local e
investindo recursos para que essas festas cada vez mais sejam conhecidas na
localidade e consequentemente em todo o Brasil.
O Batuque e o Marabaixo são danças cuja forte caracterização é o arrastar dos
pés no ritmo imposto pelos tambores, no sentido circular e anti-horário. A música se
caracteriza por alegria e espontaneidade e, é o meio pelo qual agradecem aos santos
padroeiros intercessores pelas graças alcançadas. Também, celebram a sofrimento
dos negros antepassados. A poética de ambos é muito simples e reflete o cotidiano
das comunidades e mais recentemente suas afirmações étnicas e identitárias, como
detalharemos a seguir.
2.1.1 O Marabaixo
Nas conversas com os quilombolas, quando perguntamos o que significa, ou
qual a origem do Marabaixo, ouvimos algumas versões diferentes. Entre elas, existem
duas mais recorrentes: a primeira conta que eventualmente os senhores
“proprietários” dos negros nas grandes festas os permitiam fazer a sua “mar-a-baixo”.
A outra versão, e a mais popular e difundida pelos remanescentes de escravizados
em função de um apelo mais emocional, conta que o ritmo das batidas dos remos nas
caravelas trazia os negros mar a baixo, saindo da África para o Brasil. Tais batidas,
teriam sido a sugestão para as batidas das caixas do ritmo construído, ou seja, do
Marabaixo. Ao certo, ninguém sabe afirmar com total segurança a origem do
marabaixo. Talvez esse significado tenha sido construído pelos antigos quilombolas
58
com o objetivo de se referir às dores diásporas de uma forma saudosista, melancólica
ao continente de origem, a África.
Sobre a origem do Marabaixo, Zé Miguel, músico, cantor e compositor, ex-
secretário de cultura do estado Amapá, filho de Seu Biló e neto de Seu Bráulio – os
dois protagonistas da conversão ao protestantismo do quilombo do Mel, conforme
descrito no capítulo anterior -, reforça a tese de que o Marabaixo tenha surgido entre
as comunidades negras de escravizados no Brasil, no estado do Amapá:
Eu creio que os elementos [rítmicos do Marabaixo e Batuque]
vieram de lá. Mas eles tomaram uma nova forma aqui [Amapá].
Porque a incidência de Batuque e Marabaixo só ocorre aqui. Se
você vai aqui no estado vizinho, do Pará, você não tem
Marabaixo. Você tem outros [ritmos]. E o Amapá, foi província
do Pará, antes de ser estado era província do Pará. Então, essa
é uma coisa interessante, porque nós sendo província do Pará,
o Marabaixo só ocorre aqui e não tem no Pará? Entendeu? Diz-
se aqui que o Marabaixo veio com os negros que foram trazidos
para a construção do forte (...).
Se os rituais religiosos das comunidades de remanescentes escravizados têm
elementos fortes da pajelança, como os atos dos curandeiros xamânicos, não seria
surpreendente conjecturar que o Marabaixo tenha absorvido elementos musicais,
rítmicos ou coreográficos dos indígenas, o que reforçaria o depoimento de Zé Miguel.
O convívio era, geograficamente falando, bastante próximo entre quilombolas e índios.
Tiago de Oliveira Pinto, musicólogo da Universidade de São Paulo, professor da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, em seu ensaio “Música dos
Quilombos” em pesquisa realizada no estado do Amapá nas comunidades do
Maruanum, Favela, Mazagão, Laguinho, concorda que o marabaixo passou por
adaptações ou mudanças no Brasil, e que provavelmente incorporou ao menos na
dança elementos indígenas (Pinto, 2000, extraído do site:
http://sonsdobrasil.blogspot.com.br/2005/09/msica-dos-quilombos.html ):
59
No contexto tradicional afro brasileiro é raro, talvez até mesmo
único do marabaixo, o desempenho do agente musical
simultaneamente como percussionista, cantor e dançarino,
conforme observado com os puxadores desse gênero
genuinamente amapaense. Diferente do batuque, parece que o
marabaixo absorveu elementos indígenas da região amazônica
que se fazem presentes na maneira como o grupo dança em
torno dos percussionistas. Não obstante a produção sonora ser
de nítido cunho afro brasileiro, a dança coletiva do marabaixo
lembra os movimentos compassados de um grande grupo coeso
que percorre ciclos infinitos, redesenhando o próprio espaço
mítico dos torés14 indígenas e caboclos da região norte e
nordeste do Brasil.
Porém, a história do marabaixo transmitida ao longo dos séculos através da
oralidade dos líderes das comunidades de remanescentes escravizados, trata a dança
como elemento coreográfico genuinamente negro, desenvolvido nas senzalas quando
presos e obrigados a trabalhar na construção da Fortaleza São José, como comenta
Zé Miguel:
O marabaixo era proibido de tocar. Mas quando eles eram
reunidos nas senzalas, eles tocavam e era uma forma de
comunicação. No meio das músicas eles falavam o que
acontecia durante as atividades. Eles lamentavam, contavam as
fofocas da mulher do fulano que estava pulando a cerca com não
sei quem... Era o processo de comunicação deles. (...). A dança
diferente do carimbó15, o pé não sai do chão. (...) O pé era no
14 Toré. É uma dança que inclui práticas religiosas secretas a que somente os índios têm acesso. A dança é
realizada por homens e mulheres, que formam um grande círculo que gira em torno do centro. É acompanhado
por maracas e pelas vozes dos dançarinos. 15 Carimbó é uma sonoridade de procedência indígena, aos poucos mesclada à cultura africana, com a assimilação
das percussões dos negros; e a elementos de Portugal, como o estalar dos dedos e as palmas, que intervêm em
alguns momentos da coreografia. Originalmente, em tupi, esta expressão significa tambor, ou seja, curimbó, como
inicialmente era conhecido este ritmo. Gradualmente o termo foi evoluindo para carimbó.
Esta dança teve sua origem no território de Belém, mais precisamente na área do Salgado, composta por
Marapanim, Curuçá e Algodoal; e também se disseminou pela Ilha de Marajó, onde era cultivada pelos pescadores.
60
chão. Dançavam em roda em forma de mandala. Os dos
tambores ficam no meio da roda e a comunidade vai em volta
rodando em todo o tempo.
Os relatos acima ao meu ver não se contradizem. É possível que de fato a
dança do marabaixo surja exclusivamente das reuniões nas senzalas, e que com o
passar dos anos, a liberdade das comunidades quilombolas e indígenas já que
também os índios foram obrigados a trabalhar na construção da fortaleza, tenha
produzido depois alguma convergência coreográfica. Fato é que ambas as etnias
mantêm a dança como elemento crucial de suas manifestações culturais e
ritualísticas. Outro aspecto importante, é que a dança, segundo os historiadores era
estimulada pelos colonizadores dentro dos navios negreiros com o objetivo de ao
menos minimizar o chamado banzo que é o sentimento de nostalgia, de saudades da
terra natal e a tristeza produzida pela privação da liberdade. Então, de certo modo, a
cultura negra era usada em próprio benefício dos colonizadores e de seus objetivos
que somente poderiam ser alcançados mediante o trabalho escravo. Por este aspecto,
podemos pensar que os escravos desenvolveram o marabaixo antes da chegada ao
Brasil, mas este fato, como dissemos antes, não impediria algum tipo de hibridismo
cultural, fruto da convivência das duas etnias.
Outro fator que aponta para o hibridismo do marabaixo é o festejo dedicado aos
santos católicos. Como veremos mais adiante, ainda neste capítulo, o marabaixo e o
batuque são os gêneros musicais africanos usados para louvor aos santos por parte
dos quilombolas. Provavelmente, o contato dos negros com o catolicismo deu-se
somente no Brasil por causa das famílias portuguesas e dos brasileiros colonizadores,
o que acena para a comprovação das influências não africanas.
O que fica bastante delineado é que há dois tipos de marabaixo. Um ritualista,
religioso. O outro, cultural, de entretenimento que apesar das dificuldades impostas
pelo tolhimento da liberdade aos negros, sobreviveu como estética identitária dos
Acredita-se que o Carimbó navegou pela baía de Guajará, pelas mãos dos marajoaras, desembarcando nas areias
do Pará, justamente nas praias do Salgado. Não se sabe exatamente em que ponto desta região ele tomou forma
e se consolidou, embora Marapanim clame pela paternidade desta coreografia, editando anualmente o famoso
Festival de Carimbó de Marapanim.
61
quilombolas do Amapá. Tanto a música quanto a dança são recheadas de
sentimentos e ideias do passado que é muito distante, místico e que foi reorganizado
em função da cultural local, especialmente do catolicismo popular. (Gomes, 2012).
2.1.2 Os Símbolos do Marabaixo
O marabaixo tem diversos símbolos. Eles em sua grande maioria fazem
menção ao catolicismo popular. São de homenagem aos santos e gratidão e louvor
por boas colheitas. Os significados de tais objetos são descritos de maneira que
podemos compreender como a igreja católica conseguiu reforçar a fé dos quilombolas
em seus símbolos e santos, em perfeita e híbrida convivência com os rituais religiosos
afro-brasileiros. A coroa, a bandeira, o mastro, as fitas, a murta são todos elementos
católicos, como vemos abaixo:
As coroas são peças de prata em formato de globo com uma pomba em cima
simbolizando o Espírito Santo e a Santíssima Trindade. Nas hastes das coroas são
amarradas fitas coloridas que representam as promessas dos posseiros.
No marabaixo existem duas bandeiras. Uma, de coloração vermelha e branca
com uma pomba impressa representando o Espírito Santo. A outra bandeira, tem as
cores azul e branca. Nela está impressa a imagem da Coroa do Divino Espírito Santo.
Tanto nas rodas de marabaixo, quanto nos desfiles públicos as bandeiras são
agitadas pelos festeiros.
A murta, planta extraída das matas e com um perfume agradável, é utilizada
para trazer boas energias ao Ciclo do Marabaixo. São utilizadas para enfeitar os
mastros da Santíssima Trindade e do Divino Espírito Santo. Os músicos, enfeitam
seus instrumentos com a planta e quando o fazem, cantam e dançam com os ramos
da planta em suas mãos.
Os mastros são madeiras, geralmente troncos esguios de árvores que foram
esculpidos e pintados com as cores dos santos. Eles representam a própria entidade
divina. Para cada santo, são feitos dois mastros. Um para receber as cores do santo
62
e o outro para ser adornado com as folhas de murta. No extremo alto de cada mastro,
são colocadas as bandeiras dos santos.
Para os festejos de marabaixo, homens e mulheres devem se vestir com as
indumentárias específicas. Há trajes específicos para homens e outros para as
mulheres. Anteriormente, as mulheres se vestiam com camisa de renda, saia
estampada com rendas, anágua, sandálias de couro e arranjos florais na cabeça. Por
sua vez, os homens se vestiam com camisa branca com bordados, calça branca e
chapéu de palha enfeitados com flores e fitas coloridas. Usavam também sandálias
de couro. Com o passar do tempo, os trajes também sofreram algumas mudanças e
as mulheres passam a vestir saias floridas e rodadas, blusa de renda, anágua, flores
no cabelo e uma tolha que foi adicionada a indumentária e posta nos ombros para
secar o suor do rosto. Já os homens, passaram a vestir calça branca, camisa florida
e chapéu de palha enfeitado com murta. Zé Miguel nos contando sobre sua primeira
memória musical no quilombo do Mel ainda criança especifica também os trajes
femininos:
Minha primeira memória musical é das festas de marabaixo que
meu avô dava na casa dele. Ele tinha uma casa grande, com um
grande salão e a cozinha. E nesse salão meu pai recebia as
pessoas para as festas. A maioria das festas já eram de
marabaixo e batuque. (...). As mocinhas da época usavam flor
no cabelo e vestido rodado de algodão que são elementos do
marabaixo. A mulher põe a flor no cabelo, um lenço, a saia
rodada e dança. A minha primeira memória é vinculada a isso,
as festas tradicionais na casa do meu avô, Seu Antonio Caiana
[Seu Bráulio patriarca do quilombo do Mel da Pedreira].
Outros símbolos importantes das festas de marabaixo são a bebida e a comida.
A bebida é a tradicional gengibirra feita de cachaça, gengibre, cravo, água e açúcar.
Segundo os relatos, a gengibirra traz energia aos festeiros para dançar até o
amanhecer e o momento em que os mastros serão erguidos e sustentados por eles.
A comida é farta e distribuída gratuitamente em todas as festas de marabaixo.
Basicamente são servidos caldo de carne e verdura e mamão verde. Há também as
festas onde se distribui bolo de mandioca, tapioca e outros alimentos. O objetivo da
63
comilança é manter os festeiros com energia suficiente para disfrutar da festa desde
seu início até o fim. Tanto comida como a bebida, além de seus valores energéticos
ao físico, são considerados elementos que trazem bons fluídos para as festas assim
como as folhas de murta.
2.1.3 Os Instrumentos
No marabaixo os instrumentos utilizados são os membranofones. A
organologia, - disciplina que trata da descrição e da classificação de qualquer
instrumento musical, tendo em conta o material empregue, a forma, a qualidade do
som produzido, o timbre, o modo de execução, entre outros aspectos -, tipifica os
instrumentos em três grandes famílias, os instrumentos de cordas, de sopro e de
percussão. Os membranofones são os instrumentos que residem nessa última
categoria como instrumentos que produzem som através de uma membrana esticada
sobre uma estrutura de madeira ou metal. As membranas podem ser sintéticas ou de
peles de animais.
O membranofone utilizado no marabaixo é o que se assemelha bastante ao
conhecido no Brasil como Surdo. Este instrumento é um tambor cilíndrico de tamanho
médio e som grave, porém, não tão grave quanto o Bombo. No samba, o surdo é
utilizado como instrumento que marca o tempo das batidas para que outros
instrumentos percussivos possam desempenhar um papel musical mais elaborado.
Ao contrário, no marabaixo o surdo é o protagonista e não se encarrega
exclusivamente do tempo, mas sim de toda a dinâmica rítmica. Este instrumento na
cultura quilombola do Amapá é chamado, na maior parte das regiões do estado como
Caixa de Marabaixo. Este nome, pode variar de acordo com cada comunidade.
A caixa de marabaixo por sua vez é tocada por um par de baquetas de
espessura média o que permite produzir um som ligeiramente mais agudo que o
tradicional surdo que é tocado por uma baqueta espessa, pesada e com feltro na
ponta, como as que são utilizadas para tocar bombo. Existem variações no tamanho
e na largura das caixas de marabaixo. E a medida que os instrumentos não têm
dimensões padronizadas, o timbre especifico de caixa de marabaixo varia um pouco.
64
E num conjunto, formado por três ou quatro tambores destes que são executadas as
músicas deste gênero musical quilombola amapaense. Assim como o surdo, a caixa
de marabaixo é presa junto ao corpo do percussionista por uma correia de couro
transpassada pelo pescoço para que haja total mobilidade dos braços para o tocar do
instrumento sem a preocupação de sustentação do tambor.
Os membranofones antigos eram tradicionalmente construídos pelos próprios
quilombolas com os recursos que a natureza disponibilizava para as comunidades.
Troncos de árvores ocas são a base de madeira utilizada para a colocação da
membrana (pele de animal). Há uma variação muito grande quando se trata da pele
dos animais que eram caçados também para essa finalidade. Mas, a maior incidência
é de caixas de marabaixo com pele de cobra, carneiro ou bovino. Aí está mais uma
razão da produção de timbres16 diferentes por cada caixa de marabaixo, em função
da resistência, elasticidade e espessura das peles de cada animal caçado.
Atualmente, ainda se encontram tambores construídos como descrevemos aqui, mas
também já se utiliza, em larga escala, verdadeiros surdos industrializados utilizados
como a tradicional caixa de marabaixo. Evidentemente, também ocorre mais uma
variação timbrística em função das membranas sintéticas utilizadas na fabricação
destes instrumentos. Vejamos algumas fotos dos instrumentos:
16 Timbre. Característica sonora específica de cada instrumento ou voz que nos permite identificar e distinguir as
diferentes origens de cada som.
65
66
Geralmente, as comunidades tinham seus artesãos responsáveis pela
confecção dos tambores. Esses conhecimentos eram transmitidos de pai para filho,
assim, até os dias de hoje existem [poucos] artesãos com habilidades para fornecer
esses instrumentos. O processo, completamente artesanal é bastante simples e em
poucos estágios. Após encontrado o tronco e a pele de animal a serem utilizadas, com
o auxílio de ferramentas improvisadas ou manuais, se extrai um pouco mais a madeira
interna do tronco oco. O material é lixado, preparado então para receber a pele do
animal. Na comunidade do Mel da Pedreira, encontramos tambores artesanalmente
produzidos, também o surdo fabricado pela indústria utilizado como caixa de
marabaixo como verificaremos no próximo capítulo onde descreveremos o marabaixo
e o batuque encontrado atualmente neste quilombo.
2.1.4 Tocadores e Cantores
A função de tocador ou tocadora – como são chamados os percussionistas – e
a de cantor ou cantadeira, são pessoas dotadas de algumas características
primordiais que as diferenciam das demais pessoas da comunidade. Primeiramente,
é necessário que esses indivíduos exerçam uma liderança musical sobre os demais.
Para isso o bom conhecimento de todo o repertório, das melodias e dos refrãos são
condições sine qua non para assumir este posto. Segundo, e não menos importante,
é ter bom desempenho musical. Não podem ser pessoas com dificuldades rítmicas ou
de afinação, ainda que as melodias entoadas no marabaixo sejam extremamente
simples.
Esses líderes musicais precisam transmitir alegria e contagiar a comunidade
que está dançando e cantando o marabaixo. Sem contar que necessitam ter uma
memória privilegiada para cantar a sequência de todas as estrofes durante toda a
festa. O posto pode ser ocupado tanto por homens quanto por mulheres, apesar de
que no quilombo do Mel não identificamos nenhuma mulher tocadora. Os tocadores
se posicionam no centro. Enquanto tocam, a comunidade festeja em círculo no em
torno dos percussionistas.
A seguir, vamos analisar a estrutura poética das canções de marabaixo.
67
2.1.5 A Estrutura Poética dos Versos e o “Ladrão” de Marabaixo
Ao analisarmos a estrutura musical do marabaixo pelo viés acadêmico, vemos
que são organizadas de forma bastante simples. Estão estruturadas em duas partes,
que predominantemente são: A – estrofes, B – refrão. Neste caso, não podemos
inserir o marabaixo numa única forma de análise, por ter características de dois grupos
distintos: a Forma Canção e a Forma Estrófica. As canções estróficas mantêm a
mesma melodia que são repetidas sobre todos os versos. Já na forma canção, as
músicas têm dois episódios melódicos diferentes que se repetem, sob uma variação
poética ou não. As cantigas de marabaixo têm as diferentes estrofes que se repetem
melodicamente com o texto modificado e também têm refrãos, que podem ser
considerados como segundo episódio melódico. Acrescenta-se a esta pequena
diferença estrutural um fato que é o “ladrão” de marabaixo.
Define-se como ladrão de marabaixo as estrofes que são cantadas no
improviso, assim como caracteristicamente fazem os repentistas17 do norte e nordeste
do Brasil. Historicamente, são melodias que retratam a rotina das comunidades
quilombolas. São cantadas críticas, histórias pessoais, narrativas de fofocas,
agradecimentos, lamentações e todos os temas pertinentes ao grupo. Os ladrões,
eram no início, no marabaixo da senzala o único meio de comunicação entre os negros
que eram tolhidos muitas vezes de até se comunicarem. Essa era uma estratégia de
poderem conversar, combinar coisas, entender e decidir em conjunto algumas ações
que poderiam beneficiar o grupo. Como os colonizadores não entendiam a cantoria
de ladrões e refrãos, os escravos podiam se atualizar de todas as notícias importantes
enquanto seus “donos” pensavam que estavam apenas festejando, dançando e
cantando.
O termo “ladrão” também pode ser aplicado àquele indivíduo que tomou a vez
de improvisação de seu companheiro anterior. Ou seja, o indivíduo “roubava” a vez
para improvisar e cantar algo novo que era trazido a roda.
17 Repentista. O que executa o repente, ou seja, o improviso. Música, verso ou poema composto a partir do
improviso, sem preparação ou reflexão, feito impensadamente.
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Todo improviso novo inserido pelos “ladrões”, eram intercalados pelos refrãos,
cujas letras, conhecidas, eram cantados por todos os negros da senzala, daí a
explicação para que os colonizadores pensassem que se tratava de música comum.
Esta estrutura simples A – B, como explicamos acima, atualmente é mantida.
Muitos dos versos anteriormente considerados ladrões, versos improvisados,
acabaram assumindo o papel de versos oficiais de várias canções de marabaixo.
Mesmo assim, não tendo mais características de improviso ou repente, continuam
sendo consideradas e identificadas como ladrões de marabaixo, sempre intercalados
por refrãos onde toda a comunidade entoa juntamente com os líderes musicais. Por
outro lado, ainda muitos “ladrões” são produzidos nas festas. Mantendo a tradição de
criação e interatividade na comunidade, narrando os fatos cotidianos.
Um dos ladrões mais conhecidos em Macapá é o “Aonde tu vais, rapaz? ”. Este,
fala de uma ocorrência política que transferiria as comunidades negras pobres que
viviam no centro da antiga Macapá e os deslocou para áreas afastadas como o
Laguinho e a Favela. Foi uma decisão tomada pelo governo que tinha por objetivo
construir casas, prédios públicos, hospitais, residência governamental, entre outras
construções para estruturar a cidade que viria a ser Macapá. Na ocasião, e como não
poderia ser diferente, isto não agradou o grupo de negros que foram afastados, e uma
das formas de protesto foi a canção de marabaixo:
Aonde tu vais, rapaz?
Aonde tu vais rapaz
Neste caminho sozinho (BIS)
Eu vou fazer minha morada
Lá nos campos do Laguinho (BIS)
O que é que houve com o Bruno
Que anda falando só. (BIS)
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Será possível meu Deus,
Que ele não tenha dó? (BIS)
2.1.6 A Estrutura Rítmica do Marabaixo
A organização melódica do marabaixo é de fato simples. Os elementos mais
elaborados estão na estrutura rítmica. Como já descrevemos, apesar de se utilizar
apenas a caixa de marabaixo, são utilizadas três ou quatro caixas simultaneamente.
Esses tocadores não executam a mesma função rítmica. Cada percussionista tem
uma responsabilidade nesta estrutura, utilizando do conjunto percussivo de
instrumentos com variação de tamanhos (variação de afinação). Estes fatores fazem
do marabaixo um ritmo mais sofisticado, variado e que exige uma organização musical
maior. Ou seja, existem funções rítmicas e de liderança musical diferentes. A saber:
Repelão: são os que conduzem ritmicamente o marabaixo. Tocam uniformemente
para dar base às improvisações rítmicas que são colocadas na música pelo repelão
chefe.
Repelão chefe: é o que demanda as mudanças de levada rítmica e improvisação do
grupo percussivo. Enquanto ele repeli 18, todos os demais têm que amassar e, no
caso do marabaixo, são vários amaciados e o repelão chefe repenicando. Portanto,
pode se notar a liderança exercida pelo repelão chefe. É ele quem cadencia e varia o
ritmo enquanto os demais mantêm o grupo percussivo num ritmo uniformizado que da
base à improvisação do chefe.
2.1.7 Outras Características Musicais
18 As palavras grifadas são variações linguísticas, lembranças de dialetos ou hibridações. Não serão por mim
traduzidas, pois dentro do contexto podem ser compreendidas e também por ser necessário um estudo linguístico
aprofundado que não é objetivo nesta pesquisa.
70
Por fim, e brevemente, algumas outras características musicais do marabaixo.
São aspectos, ao meu ver secundários porque todas as descrições anteriores são
mais emblemáticas para explicar o marabaixo, mas que complementam as
informações supracitadas.
O marabaixo não emprega o uso de nenhum outro tipo de instrumento de
quaisquer classes de instrumentos. Não são utilizados membranofones de outras
categorias de tambores, sejam ele de dimensões maiores ou menores, tocados a mão
ou por intermédio de baquetas. Tão pouco tem acréscimo de instrumentos melódicos
e de sopro, como flautas, trompetes, trombones e outros e nenhum outro da categoria
de cordas como violinos, ou instrumentos harmônicos – que produzem acordes para
acompanhamento – como violão, viola caipira e outros.
As melodias que dão forma musical aos versos são muito simples e compostas
por poucas notas de uma escala musical. Na maior parte das canções, não são
utilizadas mais que cinco notas. Também não são encontrados cromatismos19 nas
canções. As músicas são basicamente diatônicas20.
Todas as canções do marabaixo são entoadas em uníssono21. Não se
encontram divisões vocais, onde se estabelecem melodias paralelas, como por
exemplo, a segunda voz, tão presente na música caipira e na música sertaneja.
Em todos os ensaios, apresentações, gravações de minhas pesquisas, e nas
entrevistas, e demais meios pelos quais busquei informações sobre o marabaixo, não
foram encontrados registros de apresentações unicamente instrumentais ou
exclusivamente vocais. Nos dados que tive acesso, o gênero musical foi desenvolvido
canto e o ritmo em conjunto, assim como não é desassociado das danças.
19 Cromatismo é a utilização das notas da escala cromática composta de 12 semitons no contexto de uma
composição tonal. São geralmente estruturados como frases musicais compostas de notas cromáticas, com a
intenção de gerar tensão melódica ou harmônica, prolongando o desenvolvimento tonal e adiando a resolução
melódica. 20 Escala diatônica é uma escala de oito notas, com cinco intervalos de tons e dois intervalos de semitons entre as
notas. As escalas modernas maior e menor são diatônicas, assim como todos os sete modos tonais utilizados
atualmente. 21 Uníssono é um adjetivo que faz referência a um conjunto de sons que tem a mesma altura ou a mesma
frequência. É o que possui harmonia, que é unissonante, uniforme.
71
2.2.1 O Batuque
O batuque, assim como o marabaixo, é uma festa dedicada aos santos
concatenadas com rituais africanos. Trata-se também de um dos gêneros musicais
africanos mais conhecidos no Brasil. Por todo nosso território existem comunidades
negras que se manifestam cultural e religiosamente através do batuque. No Brasil é
expressado de diversas formas e teve sua origem nos cultos aos orixás.
Originalmente, o termo “batuque” não era utilizado pelos negros. Este era o termo que
os brancos usavam para identificar os negros nesses rituais religiosos. O termo “Pará”
que significa a junção de todos os países africanos era de fato o usado pelas
comunidades de remanescentes de escravizados.
No Amapá, o batuque ao lado do marabaixo são consideradas as mais
importantes culturas populares do estado. Por lá, nos idos do século XVIII, se iniciou
com o povoamento das regiões chamadas Nova Mazagão e São José de Macapá.
Para o aumento da densidade demográfica no estado do Amapá, de várias regiões do
Brasil e até de outros países vieram pessoas para morarem nessa região. Muito
comum na época, muitas famílias tinham seus próprios escravos que junto com seus
pertences e outras propriedades foram levados a essa região. A maior parte desses
negros escravizados não tinham mais sua herança étnica e identitária e já tinham
absorvido de negros oriundos de outras partes novos hábitos culturais. Muitos deles,
sequer sabiam de que lugar da África teriam vindo. Esta mescla cultural propiciou a
propagação do batuque na comunidade negra.
O batuque que tão logo instaurou em praticamente todas as comunidades
negras do Amapá vem de uma origem, digamos negro sincrética como já abordamos,
sofreu maior hibridismo ao ser influenciado pelas crenças. Os brancos, eram católicos
conforme vemos no caderno “Tambores no Meio do Mundo – O rufar da cidadania”
sob coordenação de Carlos do Rosário Souza, 2012:
Esses povoadores ao chegarem às respectivas vilas, os que
tinham afinidade com a agricultura, procuraram se instalar em
áreas distantes dos povoamentos e constituírem suas fazendas.
72
No período da colheita, faziam promessas aos seus santos de
devoção. Quando se obtinha resultado e um bom volume de
produtividade agrícola ou de criação de animais, era de costume
se fazer uma celebração, uma festa em louvor ao santo
prometido pelo resultado obtido e o pagamento da promessa, as
Festas do Criador como assim era chamada. (...), o senhor da
fazenda ofertava um dia inteiro para os negros escravos se
divertirem, cultuarem seus santos, onde eram oferecidas
bebidas e comida para esses negros escravos festejarem.
Desta maneira, o batuque em meio às senzalas foi se desenvolvendo nos campos e
fazendas do Amapá. A igreja católica considerava que estas manifestações religiosas
eram ofensivas a seus praticantes e proibiu que estes rituais negros fossem realizados
onde se concentrava a maior parte da população.
Como toda cultura popular, à medida que os anos passam é possível encontrar
variações da mesma manifestação em áreas geograficamente distintas. Novos
elementos da crendice são adicionados bem como o meio pelo qual os rituais são
organizados ganham mudanças. É muito comum, quando falamos de culturas e rituais
expressados pela música, nos depararmos com a inserção ou exclusão de
instrumentos, novas melodias vocais, novos padrões harmônicos, em alguns casos, o
hibridismo com outros gêneros é tão denso que pode até descaracterizar as formas
originais, ou até criar novos estilos como resultado dessas fusões. Um exemplo
bastante conhecido, fruto desse fenômeno de fusão de estilos musicais na região do
baixo amazonas é o chamado Calipso do Pará, efusivamente popular no estado e que
carrega desde seu nascedouro junções com a lambada e o carimbó. O batuque no
estado do Amapá já apresenta variações como essas anteriormente relacionadas em
diferentes comunidades quilombolas. Todavia, essas variações se restringiram aos
instrumentos musicais empregados, na maioria dos casos, ao acolhimento de novos
grupos instrumentais. Nas comunidades de Curiaú e São Pedro dos Bois, são usados
dois tambores, conhecidos como “macaco”, repenique ou amassador e pandeiros. Em
Mazagão, Mazagão Novo, Carvão e Igarapé do Lago são utilizados os tambores
macaco e o Cheque-cheque, provavelmente um chocalho. No quilombo do Mel da
Pedreira, o batuque é executado somente com um tambor.
73
Nas comunidades do Cria-ú, cujo batuque e oferendado ao padroeiro Glorioso
São Joaquim, encontramos as maiores diferenças. Foram inseridos diversos outros
instrumentos musicais, não somente novos membranofones como alguns
instrumentos de cordas. Entre esses instrumentos estão a viola caipira, o reco-reco.
Outro ponto diferenciado do batuque produzido pelas outras comunidades é que são
utilizados vários instrumentos iguais e que desempenham papéis distintos na música,
assim como uma orquestra. Se organizam em primeira e segunda violas, de primeiro
à quarto pandeiro, e de primeiro a oitavo reco-reco (Videira, 2010).
2.2.2 O Rito Religioso do Batuque
Diferentemente do marabaixo, ao que me parece, o batuque preserva um apelo
religioso maior e é totalmente estruturado em distintos momentos litúrgicos. Para mim,
uma clara evidência do fator religioso mais contundente é a pouca presença do
batuque no quilombo do Mel da Pedreira, ainda que segundo a nova ideologia étnico
identitária desenvolvida pela comunidade através do protestantismo, “liberá-los” para
que se manifestem com sua cultura ancestral. Os quilombolas do Mel consideram o
marabaixo mais cultural enquanto o batuque com seu apelo ritualístico mais evidente,
extremamente religioso, consagrado aos santos, como nos relatou Seu Alexandre
algumas vezes. Outrossim, em virtude da própria falta de depoimentos que
descrevessem com riqueza de detalhes os rituais do batuque, fez-se necessário
acrescentar bibliografia que pudesse trazer descrições sistematizadas, como citado
anteriormente no introito desta pesquisa e, de gravações de vídeos dos eventos rituais
complementando o material coletado em meu trabalho de campo.
No ritual do batuque a participação dos homens é predominante. As mulheres
são responsáveis pelo trabalho na cozinha, do preparo e da distribuição dos
alimentos. Neste aspecto, a organização social dos cultos afro religiosos se
assemelham muito com a organização sacerdotal de diversas igrejas, como a católica,
as protestantes tradicionais e as pentecostais. Na cúpula do ritual, somente uma
mulher pode participar ocupando o papel de “madrinha da bandeira”. O rito mistura
rezas, ladainhas, testemunhos de graças alcançadas através do santo homenageado.
74
Tambores são utilizados para anunciar os novos eventos do ritual, assim encerrando
um momento e iniciando um novo na cerimônia.
2.2.3 A Comida
Como na maioria das festas religiosas populares, sejam elas católicas, de
matriz africana ou indígenas, a comida é símbolo fundamental da consagração dos
alimentos aos santos ou a quem foi dedicado, bem como símbolo do comungar da
comunidade que se senta à mesa para comer. Muito semelhante aos alimentos
preparados nas festas de marabaixo sempre há preparados à base de carne bovina,
legumes e farinha de mandioca. As carnes são dos animais sacrificados que foram
doados pelos devotos ao santo e consequentemente a toda comunidade. Este é um
fato muito parecido com o que vivenciei no quilombo do Mel da Pedreira após o culto
de Santa Ceia. Foi organizado um almoço de confraternização com carne de animais
caçados e doados para a esta festa. O compartilhar do alimento, assim como em
outras culturas, para o quilombola é sagrado e o momento é tão importante que remete
à espiritualidade. Toda a comida é distribuída entre todos gratuitamente.
2.2.4 O Batuque Festivo
Após os atos rituais dá-se início aos festejos. Neste, todos participam sem
distinção diferentemente do ritual que designa funções específicas para homens e
mulheres, como os responsáveis pelo ritual, os tocadores, os responsáveis pelos
mastros, como no marabaixo. A festa se estende por toda a madrugada é somente é
interrompida com o nascer do sol, a chegada do novo dia. O intuito neste momento é
se divertir. Logo pela manhã, todos os participantes da festa se posicionam à frente
do local que mantém a imagem do padroeiro e ainda em caráter festivo saúdam o
santo.
Alguns batuques festivos são organizados até com um baile que ocorre
geralmente no segundo dia de festa. Nos bailes, são introduzidos outros estilos
75
musicais e alguns novos instrumentos, como a clarineta, o banjo e a viola. Atualmente,
são inseridos instrumentos eletrônicos como o teclado e o contrabaixo.
2.2.5 A Música Vocal do Batuque Amapaense
Um dos pontos diferentes que retém a nossa atenção ao analisarmos a
estrutura musical do batuque do Amapá é a melodia. Mais elaborada que as melodias
do marabaixo, se aproximam de certa forma as melodias dos cantos da música
sertaneja. É possível que tal semelhança ocorra porque este e outros gêneros
geograficamente circundam o batuque. Estes estilos musicais são diuturnamente
praticados pelas comunidades de etnias não negras muito próximas dos quilombos e
afetam diretamente as populações de negros inclusive dado o presente momento de
plena comunicação e interação com diversas culturas através do acesso a
informações dantes intangíveis ou possível em parte através do rádio. Me refiro ao
contato cada vez mais estreito entre as novas gerações de quilombolas e o mundo
globalizado. Estas informações alteram o comportamento geral dos indivíduos
especialmente no campo da música, ou seja, somos musicalmente aquilo que
praticamos e apreciamos. Este fato justifica a utilização de instrumentos eletrônicos
encontrados no batuque festivo.
Por outro lado, existem semelhanças com o cancioneiro do catolicismo popular
que une a música regional, a música africana com costumes e melodias das liturgias
católicas. O significado religioso de adoração e louvor aos santos padroeiros nos
rituais, é um dos portadores dos elementos que propiciaram mudanças na estrutura
melódica do batuque assimilando uma nova forma canção.
É comum encontrar nas cantigas do batuque, música responsorial22 que pode
ser considerada uma influência dos atos litúrgicos católicos que na realidade só
22 Canto responsorial é um tipo de canto coletivo onde uma voz interpretada por um indivíduo a resposta das outras
vozes em coro. Ou seja, uma voz entra com o tema inicial e é seguida pouco tempo depois por uma resposta das
outras vozes, geralmente em imitação com pequenas variações. Na liturgia, considera-se que o canto responsorial
tenha origem na tradição das sinagogas judias e que seja a forma mais antiga de canto da Igreja Católica. Nestes
casos, trata-se geralmente de um salmo, cuja parte principal é cantada por um solista ou por um coro, seguida
76
tornaram ainda mais confortável essa modalidade de canto entre as comunidades de
quilombolas afirmando suas matrizes negras, porque também é uma forma canção
muito presente na cultura africana. Este cantar no formato “perguntas e respostas”
também são encontrados em outras regiões do Brasil como Pará, Maranhão e outros
estados do nordeste e em outros países como Venezuela, no Suriname e Guiana
Francesa, onde há forte presença de negros. Observando holisticamente, as frases
musicais curtas, apontam para a continuidade no Amapá do que se iniciou na África
(Pinto, 2000, http://sonsdobrasil.blogspot.com.br/2005/09/msica-dos-quilombos.html):
No repertório do Curiaú ocorre a predominância de uma
configuração melódica pentatônica23, além das melodias
compostas por poucos graus24. As escalas pentatônicas e as
incursões em escalas, com redução de graus, distancia essa
música da funcionalidade harmônica25 de tradição europeia. O
estilo de execução vocal, com sua sobreposição do início da
frase do puxador sobreo final da frase do coro, é outro critério
que remete a África. É curioso observar que estilos mais
populares da Amazônia, como o carimbó, já aderiram à
funcionalidade harmônica europeia na sua construção melódica,
embora preservem outros elementos de origem africana, como
a mencionada sobreposição do final com o início da frase
cantada, entre outros.
Um terceiro aspecto presente nas melodias são pequenos duetos26 que
delicadamente são inseridos ainda de forma rudimentar. A melodia principal das
após cada versículo ou grupo de versículos por uma resposta iterativa da assembleia. Na tradição católica, o canto
responsorial surge ligado ao canto gregoriano, mas sua influência musical estendeu-se a outras manifestações do
canto coral como cantatas e oratórios da música de concerto do período barroco e posteriores. 23 Pentatônica. Qualquer escala formada a partir de cinco notas. 24 Graus. Nesse caso é o nome dado para cada nota sistematizada numa escala. 25 Harmonia Tradicional. Estudo que organiza e classifica a emissão simultânea de diferentes notas, sobrepostas
através de intervalos que formam acordes. 26 Dueto. Música arranjada para cantar à duas vozes com notas diferentes que formam uma espécie de paralelismo
sonoro.
77
cantigas de batuque por serem muito simples e construídas com cinco notas em
média, não suportariam melodias mais elaboradas para uma segunda voz. Com a
provável expansão das notas do canto principal do batuque, por consequência das
constantes mudanças melódicas que se dão através do contato inter étnico, a
tendência é que esta segunda voz se desenvolva ao ponto de ser mais utilizada como
já ocorre no batuque produzido pelos quilombolas do Mel da Pedreira.
Finalmente, no batuque não existem os “ladrões” ou letras improvisadas pelos
repentistas como frequentemente ocorre no marabaixo. O batuque é estruturado em
forma estrófica e responsorial.
2.2.6 Características Rítmicas do Batuque
Quando se fala em música afro brasileira o ritmo é visto como primordial para
assegurar se de fato estamos tratando de um gênero musical africano. Para tanto, é
importante definir primeiramente o que é ritmo. Trata-se de um evento sonoro
melódico ou não que mantém regularidade de tempo, ou a organização dos sons
conforme padrões musicais estabelecidos. O que os diversos estilos fazem do ritmo
pode ter muitas variações. No caso da maioria das músicas ocidentais o ritmo tem
padrões simples estabelecidos, ao passo que no oriente o ritmo é mais complexo,
composto por alternâncias pulso, ou seja, de tempo. A música africana faz uso intenso
da polirritmia27. Por esta razão é facilmente identificada e rotulada.
O batuque do Amapá ao ser analisado em linhas gerais preserva a polirritmia
presente na música africana através dos tambores de várias classes que são
utilizados e que são facilmente relacionados com a construção coletiva do ritmo, suas
relações com os movimentos corporais e a dança. Isto pode ser observado em toda a
música produzida pelos quilombolas do Mel. De fato, há um pulso primordial
caracterizado pela marcação dos tambores que dá estrutura para que os outros
instrumentos percussivos possam desempenhar funções rítmicas diferentes em torno
de um padrão rítmico de estrutura assimétrica. Isso foi muito mais observado nas
27 Polirritmia. Execução simultânea de duas ou mais estruturas rítmicas diferentes.
78
apresentações de marabaixo que nas poucas apresentações de batuque que este
quilombo preparou. Também, como já dissemos antes, me pareceu que o grupo
musical do Mel estaria mais disposto a tocar suas canções no ritmo do marabaixo. Em
observação ao batuque produzido por outras comunidades através dos registros das
festas do “Ciclo do Marabaixo” e do “Encontro de Tambores” podem ser constatados
os elementos que Tiago Pinto elencou em seu artigo “Música dos Quilombos:
(...) uma primeira lista de itens para a investigação musicológica
dos elementos musicais deste batuque, podem ser enumerados:
(...) clara noção de acentuação polirritmia e polimetria28 entre as
diferentes linhas sonoras; relação estrutural de fala e ritmo;
instrumentos com técnicas específicas de execução para o
gênero estudado; integração de som e movimento; (...); polifonia
parcial nas partes cantadas; estilos vocais especiais.
2.3 Diferenças entre Batuque e Marabaixo
São muitas as semelhanças entre batuque e marabaixo, sobretudo as de ordem
religiosa, simbólica, ritualística e festiva. As maiores diferenças, de fato se concentram
na música especialmente, como comenta João Ataíde:
O batuque é um ritmo envolvente que transmite alegria, celebra
a liberdade e a vitória nas batalhas. Mostra-nos um toque
aguerrido, esse ritmo vem dos instrumentos chamados de
amassador (mais grave) e o macaquito (mais agudo), estes sons
somam-se aos do pandeiro ou pau de chuva, esses tambores
são feitos de madeira. Nos festejos são posicionados no centro
da roda formada por homens e mulheres, que dançam e catam
28 Polimetria. Execução simultânea de duas ou mais variantes métricas relacionada ao ritmo da poesia no canto.
79
as badaias musicais do batuque que retratam o dia, as lendas e
os causos.
O marabaixo é um ritmo de lamento que retratava a escravidão,
saudade e representa o ritual da despedida, simbolizado pelo
momento em que os negros passam pela árvore do
esquecimento, o último contato com a mãe África. Possui um
toque mais lento vindo das “caixas”, que hoje são produzidas
com latão, coberta com couro de animais e seu fundo é
composto por miçangas e linha de nylon para dar um timbre
sonoro diferente, nos festejos. Os tocadores e cantadores são
posicionados no centro da roda composta por pessoas de ambos
os sexos, que dançam com um compasso mais miudinho,
representando os pés acorrentados na época da escravidão
onde seus passos eram limitados. Suas cantigas são chamadas
de “ladrão”, porque retratam o cotidiano das pessoas que lhes
roubaram suas privacidades.
Após analisarmos com minúcia o batuque e o marabaixo, temos maiores
subsídios para a compreensão da música do quilombo protestante do Mel da Pedreira
com todas as suas mutações e inserções de novos gêneros musicais bem como, toda
a influência da música protestante. A harmoniosa convivência entre todos estes estilos
musicais dispares nas canções do Mel, construídos sobre a base dos ritmos africanos,
produz uma música única, que diferencia esta comunidade de todas as demais
formadas por remanescentes de escravizados no estado do Amapá e possivelmente em
todo o Brasil.
O próximo e derradeiro capítulo deste estudo, explora está música diferenciada
no contexto dos cultos religiosos presbiterianos e nas manifestações culturais do
cotidiano artístico da comunidade.
80
3. A HISTÓRIA MUSICAL DO QUILOMBO DO MEL DA PEDREIRA
3.1. Breve contextualização da música evangélica brasileira
Para melhor compreensão da história musical do quilombo do Mel da Pedreira,
faz-se necessário contextualizar-nos com a história da música evangélica no Brasil de
uma forma geral, principalmente no que tange ao encontro desta música protestante
com a comunidade do Mel. É importante avaliarmos em quais aspectos, em que
período e com qual repertório este grupo étnico foi confrontado em suas
manifestações artísticas e culturais, principalmente musicais, e quais foram os
resultados desse enfrentamento.
A igreja protestante é uma igreja cantante, altamente musical. Este é um traço
da igreja extremamente potencializado a partir e através da reforma. O objetivo claro
disso era a aproximação do leigo à uma nova doutrina que privilegiaria a Bíblia, que
até aquele momento da pré-reforma, o contato dos fiéis com o livro sagrado era
praticamente nulo. A reforma aconteceu para produzir diversas correções doutrinárias
contrastantes ao pensamento católico romano. Como a doutrina católica na época era
fortemente difundida e vivida (talvez ainda mais consolidada que nos dias atuais) as
pessoas, a sociedade de uma maneira geral, o contexto cultural, eram conformados a
ideologia católica. Portanto, com este cenário, uma mudança doutrinária intermediada
tão somente por uma hábil retórica, ou por bravos e destemidos reformadores não
seriam capazes de gerar efetiva mudança religiosa em todos esses âmbitos. Havia a
necessidade de se utilizar um meio condutor que fosse competente para disseminar
todas as mudanças que a reforma tinha como objetivo, e este perfeito conduíte foi a
música. Vale lembrar que a música já era parte da missa católica e tinha um papel
muito importante como ainda hoje é, porém, assim como o conteúdo bíblico, litúrgico
e doutrinário, a música era ritualística, é altamente elitizada. As missas em latim,
impediam que os católicos tivessem contato com os ensinamentos na língua nativa.
O mesmo se passava com a música. Eram cantados motetos29 a quatro vozes
29 Moteto. É um gênero musical polifônico surgido no século XIII, onde, inicialmente, usavam-se textos distintos
para cada voz. Dessa característica vem a origem do termo, derivado de mot, palavra, em francês. Composição
polifônica sacra.
81
geralmente em latim, e quando não, poderiam ser entoados em mais de um idioma
simultaneamente.
Por todas essas razões, a música desempenhou papel de inegável importância
na reforma. As músicas litúrgicas com arranjos muito densos, com melodias
exageradamente melismáticas30 e cantadas em diversos idiomas que não os nativos
ou locais, foram substituídas por músicas com o idioma local, com melodias simples,
mais óbvias (com o objetivo de facilitar a memorização melódica e consequentemente
as mensagens contidas no discurso musical) e carregadas da doutrina da reforma
protestante. A igreja reformada passou a cantar os hinos que eram verdadeiras aulas
teológicas. Boa parte dos hinos eram soteriológicos, doxologias, à trindade e, a nova
doutrina assim foi difundida, como comenta Sérgio Freddi Junior:
“ No século XVI, quando aconteceram as reformas protestantes,
ocorreu a evolução da música sacra. Diante do contexto musical
da Igreja Romana, cujas práticas polifônicas31 eram exageradas,
os reformadores, ao repensarem o culto, transformaram o uso e
a produção musical para o culto das novas igrejas protestantes.
Uma das preocupações dos reformadores era viabilizar a música
como prática pública. Este seria o aspecto referencial mais
importante para o desenvolvimento da música protestantes. A
partir desse momento, a música seria cantada e compreendida
pelos cristãos. ” (Freddi Junior, 2002, p. 22).
O objetivo era que as pessoas pudessem ter acesso irrestrito e límpido às
escrituras sagradas. A grande massa social deste período era não alfabetizada, tão
pouco havia Bíblia traduzida nos idiomas europeus, somente em latim, como
dissemos antes, o que trouxe sobre a música o peso de ser um dos principais meios
de propagação das doutrinas bíblicas da reforma. Para que a música cumprisse seu
30 Melisma. Trecho melódico com várias notas para uma mesma sílaba no cantochão. Ornamento.
31 Polifonia. Multiplicidade de sons; conjunto harmonioso de sons. Em música, é a combinação simultânea de várias
melodias.
82
papel de intermédio competente entre as doutrinas da nova igreja e a comunidade
geral, era necessário que a música fosse popular, que estivesse - como se expressa
em linguagem comum – na “boca do povo”. E as primeiras tentativas de promoção
desta aproximação entre igreja e sociedade leiga através da música,
“ (...) foi buscar nas melodias populares alemãs a base para a
música que seria desenvolvida na sua igreja. Inspirado nessas
práticas cujos temas populares eram tratados polifonicamente,
Lutero sistematizou o coral luterano a quatro vozes mistas
(Soprano32, Alto33, Tenor34, Baixo35) que se caracterizava pela
estrutura polifônica, nota contra nota, e tinha as melodias
localizadas na voz do soprano, adotando também assim, as
práticas musicais francesas e italianas da época. A criação do
coral luterano gerou uma coesão na música alemã e resultou na
sua projeção no cenário musical do ocidente, favorecendo a
evolução das estruturas da música ocidental. ” (Freddi Junior,
2002, p. 23).
Na contramão das ações de Lutero no que se refere a utilização de músicas
folclóricas alemãs conhecidas para a popularização dos ensinamentos da nova igreja,
Calvino contratou compositores e poetas para musicalizar e metrificar36 os salmos de
acordo com essa estrutura musical mais popular e acessível. Apesar de verificarmos
significantes diferenças entre as propostas de popularização da doutrina da igreja
reformada de Lutero e Calvino, ambos lograram êxito, pois permitiram que as canções
se desenvolvessem em estilo menos conservador que o praticado pela igreja católica
e, que pode absorver elementos culturais da comunidade onde suas igrejas estavam
32 Soprano. Classificação vocal. Voz feminina mais aguda. 33 Alto ou Contralto. Classificação vocal. Voz feminina mais grave. Transita entre o soprano e o tenor. 34 Tenor. Classificação Vocal. Voz masculina mais aguda. 35 Baixo. Classificação Vocal. Voz masculina mais grave. 36 Métrica. O conjunto das regras que presidem a medida, o ritmo e a organização do verso, da estrofe e do poema
como um todo; metrificação, versificação. Modo de versejar próprio de um poeta.
83
inseridas, de tal maneira, que a música da igreja se fundiu com a música do povo e
com o pensamento musical popular da época.
Entre o episódio da reforma protestante no século XVI e a chegada dos
primeiros missionários evangélicos no Brasil no século XIX, é bem verdade que temos
um hiato muito grande. Foi um período em que o catolicismo no Brasil se desenvolveu
muito e que a música barroca brasileira também aprofundou suas estacas.
Compositores muito importantes como José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita, o
padre José Maurício Nunes Garcia, o maior nome da música brasileira colonial e o
responsável pela regência da primeira audição do Réquiem de Wolfgang Amadeus
Mozart no continente americano, entre outros nomes, mantiveram firme, inabalável a
estrutura religiosa do catolicismo bem como a formalidade e a inacessibilidade popular
as missas.
Pois bem, o cenário encontrado pelos missionários no Brasil fora bastante
similar ao da Reforma Protestante quando chegaram para as primeiras ações
evangelísticas. Evidentemente, no tocante à música, o modelo trazido era justamente
o que fora aplicado em todos os países do continente europeu e na América do Norte,
as canções e a liturgia dos países de origem dos missionários, muitas melodias
extraídas de cantos populares e folclóricos dessas localidades, ou das composições
exclusivamente realizadas para os hinos europeus que em nada se aproximavam da
cultura musical brasileira.
A forma musical que se desenvolveu nas igrejas protestantes do Brasil, de
maneira a pormenorizar este impacto de culturas entre brasileiros e europeus, foi o
hino. Gostaria de me apropriar da definição de hino de Edmund Keith, que está em
seu livro Hinódia Cristã. Ele define os hinos evangélicos como os cânticos citados por
Paulo em Efésios 5:19: “Falando entre vós em salmos, e hinos, e cânticos espirituais;
cantando e salmodiando ao Senhor no vosso coração”. Para esse especialista o termo
“cântico espiritual” corresponde a uma hinódia folclórica. Como a hinódia brasileira se
projeta como desdobramento exato do pensamento e execuções musicais praticadas
nas igrejas protestantes, inicialmente na Europa e posteriormente nos Estados
Unidos, constata-se dois aspectos relevantes e fundamentais para a abordagem da
hinódia desenvolvida nas igrejas protestantes brasileiras: o primeiro, da hinódia
evangélica europeia ligada aos cânticos populares, desenvolvida de forma mais
84
expressiva nas igrejas dos Estados Unidos e o segundo, da hinódia evangélica
europeia e norte-americana que foi o modelo inserido integralmente na cultura musical
das igrejas tradicionais reformadas no Brasil.
Portanto, a hinódia evangélica brasileira tem as suas raízes nos movimentos
avivalistas do século XVIII e XIX. São movimentos não preocupados com uma
identidade das igrejas, mas sim, apresentavam um ímpeto grandioso para o
crescimento das igrejas e tratavam de desenvolver um culto extremamente
sentimental e isso foi visto como reflexo em toda a produção musical das igrejas de
tradição reformada. A música servia de apoio para um texto apelativo, com o objetivo
de ser conquistador, de modo que se concluir que as formas tradicionais de música
não foram excluídas, mas sim desenvolvido outro tipo de música com esta finalidade.
Havia nesta época material musical neste contexto protestante. Porém, ainda que
houvesse o desejo de criar a coletânea de salmos e hinos brasileiros, optou-se por
traduzir para o português e adaptar as músicas dos hinários europeus e americanos
para uso no Brasil. Não houve preocupações com a originalidade musical ou com a
contextualização cultural brasileira, isso porque quando o protestantismo foi instalado
no Brasil, a maioria da população era de católicos, e os hinos no formato que estavam
já eram demasiadamente diferentes dos utilizados nas missas da igreja romana.
É de fato importante traçar esse paralelo entre a hinódia brasileira e os hinos
tradicionais porque a conversão ao protestantismo do quilombo do Mel da Pedreira,
ocorreu e se estruturou sobre esses dois tão distintos platôs. Aliás, como ainda
veremos mais detalhadamente no decorrer deste capítulo, a identidade musical
quilombola do Mel absorveu e permitiu conviver perfeitamente a música protestante
histórica com a pentecostal acrescentadas de toda herança ancestral africana.
A partir da década de 1900, gradativamente as ações evangelísticas foram
ganhando força, digamos de ordem tecnológica, com as primeiras gravações de
discos com hinos evangélicos e programas de rádio. Salvador de Sousa, em seu livro
História da Música Evangélica no Brasil, nos conta (Sousa, 2011, p.26):
“ A primeira gravação de uma música evangélica ocorreu no ano
de 1901, em São Paulo. Um irmão chamado José Celestino de
Aguiar reuniu seus familiares e os do reverendo Bellarmino
85
Ferraz e formou um coral a quatro vozes que gravou o hino “Se
nos cega o sol ardente”, do Salmos e Hinos, primeiro hinário
evangélico brasileiro, cuja primeira edição surgiu em 1861. Outro
irmão chamado José D´Araújo Coutinho Junior, morador de São
Paulo dos Agudos – SP, que possuía um fonógrafo, raspou a
cera de um cilindro usado e gravou a música do coral. Não ficou
um som perfeito, mas deu para ouvir. Vale ressaltar que, no meio
secular, a primeira gravação brasileira ocorreu no ano de 1902,
feita em cilindro também. (...) Dia 26 de maio de 1929 ocorreu a
primeira transmissão de um programa evangélico, através da
Rádio Club do Brasil, Rio de Janeiro. O reverendo Rodolfo
Hasse, da Igreja Luterana, conseguiu meia hora por semana
para pregar o evangelho. Entretanto, foi só a partir de 1931 que
houve um grande crescimento dos programas de rádio
evangélicos. Neles tanto se transmitiam pregações quanto se
tocava hinos, sejam cantados ao vivo ou tocados em discos de
78 rotações. ”
Zé Miguel, neto do patriarca do quilombo do Mel da Pedreira, já citado anteriormente
– mais precisamente no capítulo um -, também narra o quanto foram influenciados
pelo rádio, não somente pelos programas evangélicos, mas por toda a programação
convencional, como mais adiante vamos verificar.
3.2. A Primeira Fase Musical: Festas de Batuque, Marabaixo, Rituais de Pajelança e
Influência do Rádio
Era muito comum e bastante frequente no quilombo do Mel da Pedreira
as festas de Batuque e Marabaixo que ocorriam na casa do Seu Bráulio, patriarca
dessa comunidade. Estamos no início da década 1960. As festas eram promovidas
num grande salão anexo à cozinha da casa do patriarca e seguiam rigorosamente as
tradições africanas descritas no capítulo dois deste trabalho, desde as indumentárias
para homens e mulheres, a comida, os símbolos, a dança e claro, a música. Tais
86
festas ocorriam não somente nos domínios do quilombo do Mel da Pedreira, mas em
conjunto com as demais comunidades de remanescentes de negros escravizados,
principalmente oriundos do quilombo São Pedro dos Bois e do Ambé.
Até este momento, no quilombo do Mel da Pedreira, não havia sido
inserido nenhum outro instrumento harmônico nessas festas. Somente os
membrafones típicos do batuque e marabaixo eram utilizados. Mas ainda que as
festas mantivessem restritamente a tradição ancestral e no quilombo do Mel, todavia
não haviam sido aportados outros instrumentos que não os convencionais para esta
finalidade, alguns membros do quilombo já se aventuravam a provar de outros
instrumentos e com grande sucesso, haja vista a musicalidade exuberante introjetada
na comunidade. Em reuniões familiares de final do dia, após a labuta cotidiana,
cercando uma fogueira, se reuniam para ouvir os violonistas da família como nos faz
saber Zé Miguel, ao narrar suas memórias de infância. Neste depoimento, podemos
confirmar a influência de dois gêneros musicais genuinamente brasileiros que já
faziam parte do cotidiano dos quilombolas do Mel e que seguramente adentraram a
comunidade via rádio: a Bossa Nova e o Chorinho:
O violão entrou na comunidade pelo meu tio Zé, que já era
evangélico. Engraçado! Dos outros tios, eu tenho uma referência
anterior. Eu me lembro do [Tio] Souza, construindo os carros, os
caminhões (...). Eu era muito ligado a ele. Eu tenho essa
memória dele. E tem o mais novo, que era peralta e dava muita
dor de cabeça para minha vó, e o tio Zé eu já lembro dele adulto,
tocando violão... ele canhoto, né? E ele tocava aquele violão que
meu pai chamava de ponteado, solado, com baixaria
[características do chorinho] e eu ficava impressionado com
aquilo e dizia: isso aí que eu quero ser quando crescer! Mas ele
já era evangélico. (...). Havia dois violonistas na família. Havia o
tio Zé, que era filho do meu avô, e havia o outro (...) que era
irmão da minha avó (...) tio Feliciano. (...) O tio Zé era mais essa
coisa do violão de choro, aí quando eu fui ver o Tatá [tio
Feliciano] tocar violão, aí eu vi ele aplicando uns acordes
diferentes, dissonantes, e eu não sabia nada, mas achei a
sonoridade do violão do Tatá mais legal, já era uma coisa mais
87
minha mesmo. (...). Isso aí é década de 1960. O Tatá já tinha um
violão, um jeito de tocar diferente, que já era influência da Bossa
Nova. (...). Meu avô ouvia muito uma rádio que se chamava
Trans Mundial [Rádio Evangélica] (...). Eu tenho recordações
frescas do meu avô tentando sintonizar a rádio, ouço aquele
chiado. (...). Ela não era uma rádio fácil de sintonizar. Meu avô
dizia que era uma rádio muito boa que ele gostava de ouvir. Por
essa rádio vinha tudo. Era a única ferramenta que a gente tinha
de comunicação, de ligação.
Neste depoimento também fica claro como a música evangélica já nos
primórdios do quilombo fazia parte ao menos do repertório apreciado pelo patriarca e
sua família através do rádio, fato que pode ter contribuído consideravelmente para
sua conversão ao protestantismo. Na década de 1960, a produção fonográfica
evangélica brasileira cresceu muito e, consequentemente muitas emissoras de rádio
passaram a transmitir programas desta categoria. Naturalmente, a comunidade do Mel
desfrutou desta diversidade fonográfica produzida que era bastante eclética, de
duplas sertanejas como Curió & Canarinho, Irmãs Andrade, a Feliciano Amaral e Luiz
de Carvalho que cantavam um repertório mais próximo as canções americanas
semelhantes ao estilo de Frank Sinatra, além de outros cantores como Carlos René
Egg, Antonio Bicudo, Otoniel o Oziel, e de gravações corais como o da Igreja
Evangélica Fluminense, Caravana Evangélica Musical (CEM), Primeira Igreja
Presbiteriana do Rio. (Salvador de Sousa, 2011).
Neste período, que antecedeu a conversão ao protestantismo, e que o
rádio abriu os portais de uma influência musical dantes não experimentada pela
comunidade, evidentemente por não fazer parte da cultura de raiz desses
remanescentes de negros escravizados, com exceção das reuniões familiares
anteriormente citadas em torno da fogueira e do violão, a comunidade do Mel não
produzia nenhum outro tipo de música que não fosse estritamente concatenada a
algum ato religioso, como veremos mais uma modalidade desta prática a seguir.
Antes, porém, ainda sobre a influência do rádio na música do quilombo do Mel,
identificamos tanto na fala do Seu Alexandre, quanto na do Seu Benedito, uma
elevada apreciação pela música caipira [assim por eles rotulada]. O crescimento dos
88
programas de rádio, e o acesso a essas informações musicais também influenciou a
musicalidade do quilombo do Mel da Pedreira, como nos diz, Seu Alexandre:
(...). Vem o rádio, a moda caipira, de sorte que a gente mescla e
até hoje a gente também está fazendo um mesclado e o povo
está gostando.
E muitos também foram os artistas seculares que inspiraram uma memória vocal e
estética (no que tange à distribuição harmônica das vozes), que estavam em alta nas
audiências da época, bastante presente na música atual do quilombo, a saber: Tonico
e Tinoco, Tião Carreiro e Pardinho, Cascatinha e Inhana, entre outros.
Outra prática musical anterior à conversão, mas que nem sempre era
para todos como executantes, mas sim como apreciadores e/ou praticantes da fé,
estava vinculada aos rituais de pajelança em função da vocação sensitiva de Seu
Bráulio, o patriarca da família. O interessante da música produzida nesses rituais, no
caso da comunidade do Mel, é que eram totalmente estruturadas de forma diferente
da música de origem africana Batuque e Marabaixo. Eram entoadas, sem nenhum
instrumento rítmico ou harmônico, totalmente acappella. Os rituais de pajelança
partiam do princípio da evocação de espíritos (encantados), denominados pelos
quilombolas como mensageiros. Segundo os relatos de Seu Alexandre, havia vários
mensageiros e que a família de Seu Bráulio tinha um exclusivo, considerado guardião
familiar:
Era diretamente assim acappella. Ele [pajé] cantava, a gente
ajudava. Não tinha nada [instrumentos, marcação rítmica ou
palmas] era tudo ali sereno. (...). Mas existia as músicas sim. (...)
Era assim, quando eles baixavam, cada um tinha a sua cantoria.
(...). Tinha “uns” [em outro idioma ou dialeto] que a gente não
sabia nada. (...). Tinha um mensageiro que era indígena.
Cantava e ninguém compreendia coisa nenhuma! Tinha
manifestação de espírito, e os encantados vinham do fundo do
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mar, cada um com sua música. Eles cantavam e quando eles
baixavam de novo, a gente já podia ajudar a cantar.
Uma marca sempre constante na música do quilombo é sua ligação
quase que por completa à manifestação religiosa. A exceção são as supracitadas
reuniões familiares com o violão, e algumas tentativas de aulas de violão para os
garotos da época, entre eles o Zé Miguel. Algo que, nesta última fase, inaugurada nos
últimos anos e vamos discorrer sobre mais à frente, se transformou, é a grande
preocupação artística no quilombo atual. Muitas ações de promoção da arte musical
do Mel da Pedreira nos meandros da cultura negra no estado do Amapá e do
protestantismo têm constantemente ocorrido, o que nos sugere que a nova identidade
étnica não somente necessita de afirmação, mas também de difusão. Talvez, a própria
difusão seja uma das manifestações de autoafirmação dessa identidade quilombola
protestante perante as demais comunidades de negros escravizados que constituem
as cercanias da localidade. Este entendimento sobre a necessidade de propagação
da nova identidade quilombola protestante, - nova porque até pouco tempo atrás,
apesar das raízes negras inegáveis não se manifestavam culturalmente como
quilombolas em função do tolhimento artístico imposto pelo protestantismo tradicional
-, é primordial nesta nova fase desta comunidade, - algo que vamos analisar ainda
mais adiante -, porque ao longo de décadas no protestantismo tradicional, os
quilombolas do Mel da Pedreira deixaram de se manifestar com sua própria cultura.
Outras marcas musicais do quilombo pré-protestantismo estão
atreladas às ladainhas. As ladainhas são parte de reuniões cúlticas distintas. É comum
no catolicismo popular, também presente no Batuque amapaense, na capoeira. Trata-
se de uma oração estruturada de forma responsorial37.
37 Canto Responsorial é um tipo de canto coletivo onde uma voz (muitas vezes, um solista) introduz uma melodia
e aguarda a resposta das outras vozes. Ou seja, uma voz entra com o tema inicial e é seguida pouco tempo depois
por uma resposta das outras vozes, geralmente com uma melodia com imitação variada. Na sua acepção litúrgica,
considera-se que o canto responsorial tenha origem na tradição das sinagogas e que seja a forma mais antiga de
canto da Igreja Católica. Nestes casos, trata-se geralmente de um salmo, cuja parte principal é cantada por um
solista ou por um coro, seguida após cada versículo ou grupo de versículos por uma resposta iterativa da
assembleia. Na tradição católica, o canto responsorial surge ligado ao canto gregoriano, mas sua influência musical
estendeu-se a outras manifestações do canto coral como cantatas e oratórios da música de concerto do período
90
Geralmente trata-se de canções musicalmente muito simples, de frases
bastante curtas, com poucas notas e poucos intervalos tonais (utilizando-se mais de
tons vizinhos, escalas diatônicas, ou de escalas pentatônicas). Também,
originalmente são cantadas acappella. Mas há variações de ladainhas acompanhadas
por diversos instrumentos ou introduzidas em outras formas religiosas como no
Batuque. A ladainha se inicia aproximadamente no século IV na Antioquia. Mas esta
estrutura responsorial é muito mais antiga e, bastante presente desde os salmos
bíblicos. Seu Alexandre, nosso orador mais detalhista, enfatiza a habilidade de Seu
Bráulio como dirigente cantador de ladainha:
Meu pai era muito procurado como curandeiro [pajé] e como
rezador. (...), nessa área de cantoria para ladainha.
Por fim como última modalidade de música ou de performance musical
no quilombo do Mel da Pedreira anterior a conversão ao protestantismo, Seu
Alexandre confirma o depoimento do sobrinho Zé Miguel quanto as memórias
musicais da infância de outros tios tocando violão em serenatas. Faz-se importante
esclarecer que as serenatas têm um caráter musical mais voltado ao chorinho,
bastante aproximado ao samba canção, e então notamos a inserção de mais alguns
instrumentos atípicos a cultura quilombola, mas que encontraram guarida na
comunidade do Mel, como por exemplo o cavaquinho:
A música popular na época, quando eu me entendi por gente -,
porque quando eu me converti eu estava com 22 anos, desde a
minha infância até os 22 anos estava fora (...). Começamos com:
meu pai tocava violão, - por isso que “tá” na veia da família a
música, os instrumentos -, meu pai também tocava viola e cada
um de nós, eu e meus irmãos cada um aprendeu umas notinhas
na viola. Aí depois surgiu o violão. O meu irmão que é antes de
barroco e posteriores. Mais tarde passou a ser utilizado em óperas e em diversos estilos da música de concerto
dos séculos XX e XXI.
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mim, que é o Zé Ramos – o outro pretinho-, ele aprendeu tão
bem o violão que ele não precisava da letra. Ele precisava da
melodia. Ele escutava a melodia e já sabia tocar. Ele ponteava
todinho [o violão]. E eu tocava num cavaquinho. E a gente fazia
as serenatas a noite toda.
Seu Alexandre nos explica que a serenata executada por eles, não era
para dedicação especial de alguém, ou debaixo de uma janela em função de uma
homenagem como nos sugere de imediato ao pensarmos sobre as serenatas. Mas na
realidade, as serenatas do quilombo do Mel da Pedreira se enquadravam mais no
significado do tocar durante toda a noite ao ar livre, como uma das poucas, ou talvez
única forma desfrutar do período de ócio.
3.3. A Segunda Fase: A música do quilombo do Mel após a conversão ao
protestantismo
1968. O ano que revolucionaria o quilombo do Mel da Pedreira. A partir
da conversão coletiva narrada no capítulo um deste trabalho, inicia-se reuniões
sistemáticas de culto. Gradativamente, a comunidade se enxerga como protestante
presbiteriana, vendo surgir uma igreja ou congregação que provocaria mudanças na
forma de pensar, ou se não diretamente na forma de pensar, mas consistentemente
na maneira de agir e se expressar como povo, como etnia. A dinâmica religiosa que
outrora transitava entre os rituais de pajelança com curandeiro, rezas e cantoria de
ladainha, festas de batuque e marabaixo dedicada a padroeiros e santos, cujas
direções místicas advinham dos vários encantados que baixavam no pajé ao virem do
fundo do mar e do Esmeraldo, guardião específico da família do patriarca Seu Bráulio
– que segundo relatos do Seu Alexandre e Seu Biló, chegou a prever esta ruptura
espiritual -, a partir de então passa a ser construída de forma totalmente diferente,
com ausência total dos diversos rituais anteriores, das oferendas. Já não há mais o
pajé e/ou o curandeiro para as consultas, tão pouco os encantados. A forma cúltica
92
havia se transformado. As manifestações místicas haviam cessado e as reuniões
religiosas circundavam apenas a leitura da bíblia, reflexões sobre os textos lidos e
algumas canções.
Sim! As canções! Que anteriormente continham diversas variações
estilísticas, que poderiam ser desde acappella (em sistema responsorial nas
ladainhas, que dependendo do encantado que baixasse poderia ocorrer em outros
dialetos) até serem entoadas sob o ritmo forte e marcante dos tambores do marabaixo
e do batuque, regadas a muita dança e coreografia, fora totalmente substituída por
canções de origem europeia traduzidas para o português. Configurava-se um grande
confronto cultural.
Como o quilombo havia se convertido ao protestantismo tradicional, da
Igreja Presbiteriana, naturalmente o pastor que mensalmente vinha de Macapá adotou
e ensinou um sistema de culto muito semelhante a liturgia convencional das igrejas
desta denominação, que salvo mui pequenas variações era organizado da seguinte
forma: iniciado por uma oração de petição da presença de Deus; entoação de uma
canção (Salmos e Hinos); leitura bíblica oficial; oração de intercessão e súplica; outra
canção (Salmos e Hinos); pregação; outra oração e canção – geralmente referentes
à pregação (Salmos e Hinos) e benção final. No tocante às canções especificamente,
outro aspecto que acentuou o confronto cultural foi que, de imediato nenhum
instrumento harmônico foi adotado para os cultos. Me refiro aos harmônicos (violão
ou viola) porque os tambores usados para as festas de batuque e marabaixo foram
proibidos de serem utilizados nos cultos, como conta Seu Alexandre:
É assim: a igreja [Presbiteriana] achava que aquilo era oferta
para idolatria, e o foco era só por causa disso. Não considerava
a cultura, né? E a gente se afastou.
Considero que não foram utilizados por duas razões: primeiramente em razão da
igreja presbiteriana não permitir a utilização nos cultos de acordo com o que nos fora
informado e, em segundo lugar, porque não havia ainda familiaridade com o repertório
– e como os músicos do Mel não tem formação ou leitura de partituras – dependeriam
93
de um tempo maior de convivência para acostumarem os ouvidos com todas as
cadências harmônicas por mais simples que fossem de serem tocadas. Outro ponto
importante neste âmbito a ser destacado é que nas igrejas presbiterianas nesta época
somente eram utilizados piano ou órgão para acompanhamento do canto
congregacional. Vejamos o que nos disse Seu Alexandre:
Foi um choque cultural. A maioria pela graça de Deus
perseverou. Como diz lá Atos, né? Na doutrina, na comunhão,
no partir do pão, nas orações.... Alguns, se afastaram. Não
resistiram aquele desejo de voltar. Alguns né? Bem poucos. Mas
a maioria permaneceu.
Este cenário de confronto cultural, promoveu uma certa dissidência no grupo
protestante do Mel da Pedreira. As questões que envolvem esta divergência não têm
relação alguma com a nova fé em si, mas tão somente com o quadro cultural. Alguns
por não se sentirem confortáveis com o total tolhimento de suas manifestações
artísticas e culturais abandonaram a nova fé, já outros, extremamente envolvidos na
nova crença, mas buscando encontrar maneiras de se extravasarem religiosamente
de forma mais aproximada do que eram identitariamente, foram encontrando meios
de cultuar mais condizentes com a etnicidade quilombola. Nesta busca, dois
elementos foram decisivos para que a congregação presbiteriana do Mel da Pedreira
encontrasse um meio mais próximo de cultuar: as rádios evangélicas e o grande
crescimento da diversidade musical – como apontei anteriormente -, e uma relação
bastante estreita com fiéis da igreja Assembleia de Deus38. Leiamos Seu Alexandre:
Esse negócio de mesclar [está se referindo a utilização de
gêneros musicais e de canções que não são do Salmos e Hinos]
a gente começou lá do início. Porque meu irmão, tinha se
38 Assembleia de Deus no Brasil inicia-se com a chegada dos missionários suecos Daniel Berg e Gunnar Vingren
no dia 19 de novembro de 1910 na cidade do Pará. Igreja pentecostal oriunda dos movimentos avivalistas
presentes na Europa e especialmente nos Estados Unidos da América entre o final do século XIX e início do século
XX.
94
convertido na Assembleia [de Deus] e ele aprendeu a tocar
violão e tocava muito! A gente fazia as serenatas, festas, não é?
E ele trouxe o violão para dentro da igreja e que na nossa Igreja
Presbiteriana de Macapá na época não tinha, era só piano e
órgão. Não tinha. Aí foi um “impactozinho” lá, mas também eles
não proibiram. Mas aí a gente já tinha deixado tudo [Marabaixo
e Batuque].
Esta igreja pentecostal – oriunda dos movimentos avivalistas americanos -, tem uma
liturgia de culto menos rígida e permite que seus fiéis extravasem suas emoções em
voz alta e mantém em seu repertório música festiva. Nesta época essencialmente, os
estilos regionais permeavam o cancioneiro desta igreja, e eram acompanhados por
instrumentos como pandeiro, acordeom, violão, viola, cavaquinho, rabeca entre
outros. Também na esfera litúrgica, a Assembleia de Deus permite que membros
tenham oportunidades avulsas públicas com o poder da palavra no palanque principal
da igreja, para contarem experiências de milagres ocorridos, fazerem pedidos de
oração e cantarem hinos. Geralmente esses hinos não pertencem a quaisquer
hinários. São músicas compostas espontaneamente por membros da igreja, não
necessariamente músicos formados ou teólogos ou que detenham domínio sobre as
histórias bíblicas, mas que de acordo com um prisma pessoal desenvolvem temas e
compartilham com a igreja. Estes temas musicais costumam ser altamente populares
e exaustivamente cantados e repetidos.
Foi então que os membros da congregação presbiteriana do Mel da Pedreira,
ainda adotando somente o Salmos e Hinos para os momentos de louvor, introduziram
o uso do violão no culto. Adaptaram essas canções para o estilo de música sertaneja
e assim voltaram a sentirem uma liberdade maior, já que estavam tão acostumados a
consumir tal estilo musical via rádio. Os hinos mais cantados nos cultos iniciais no
quilombo do Mel da Pedreira foram, “Pendão Real39” e “Quem Ouvir as Novas”:
39 Hino Oficial. A Igreja Presbiteriana Independente do Brasil, adotou como hino oficial: “Um Pendão Real” cuja
letra nos inspira ao cumprimento da missão que o Senhor Jesus nos confiou. E como lema a expressão: “Pela
Coroa Real do Salvador”, revelando fidelidade a Jesus nosso Deus Salvador, Senhor e Rei.
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96
97
Com o passar do tempo, já provavelmente na década de 1980, – os
entrevistados não souberam precisar exatamente a partir de qual data -, as canções
avulsas similares as da Assembleia de Deus cuja referência fiz há pouco, também
foram introduzidas nos cultos da comunidade. É neste momento que a liturgia passa
por algumas adaptações, permitindo as participações de fiéis cantando, ou contando
seus testemunhos. Aliás, o culto se manteve com um ambiente caseiro por longo
tempo e, eram comuns algumas interrupções, confirmações, perguntas entre outras
manifestações evidentemente de maneira respeitosa, solene e reverente. Este foi o
período em que o rádio teve a maior influência no repertório musical dos cultos do
quilombo do Mel da Pedreira. As canções do Salmos e Hinos permaneceram como
assim o é até os dias de hoje – e veremos no decorrer deste capítulo -, porém dividindo
espaço com outros tipos de música.
Com a tradição musical bastante presente na comunidade desde o patriarca,
as habilidades artísticas estão por todos os lados no quilombo do Mel. É muito comum
encontrar instrumentistas e compositores das mais variadas idades. Como sabemos,
a paixão da família de Seu Bráulio pela música, pelos instrumentos, pelo violão
perdurou-se e multiplicou-se nas gerações seguintes. Ainda que com o tolhimento do
direito de se expressarem artisticamente enquanto quilombolas, remanescentes de
negros escravizados, a música é tão parte desta comunidade, que em nome da nova
religião, eles se reinventaram e continuaram produzindo arte. Em todos os oradores
que tive oportunidade de conversar se pode notar um misto de sentimentos que
envolve uma certa tristeza, e uma grande alegria quando comentam o período que
tiveram que ficar sem tocar Batuque e Marabaixo. A tristeza refere-se ao tempo em
que estiveram afastados de sua cultura por conta da religião. E a alegria por terem
entendido que detêm o direito de se manifestar artisticamente com esta ancestralidade
africana sem que firam sua nova fé. Mas é nesse período de obscuridade, por estarem
tão afastados de sua própria identidade, que como disse, se renovam, se adaptam e
se lançam novamente a música por outros caminhos. Nesses intentos, o
protestantismo permitiu que adentrassem e que pudessem se expressar nos cultos a
fé através da música, a moda sertaneja, os violões, canções em dupla nortearam a
comunidade.
Neste novo tempo de adaptações culturais, surge a compositora Dona
Minervina, 66 anos, filha do patriarca Seu Bráulio. Apesar de ter se mudado para
98
Macapá ainda muito jovem, com aproximadamente 15 anos, nunca perdeu seu vínculo
com o quilombo do Mel e foi presença garantida nos cultos durante muitos anos. Sua
ida para a capital se deu somente por conta da busca por condições melhores de
estudo para os filhos, mas sempre teve o desejo de retornar a viver na comunidade,
o que já faz há quatro anos. Dona Minervina, é uma compositora de “mão cheia”. Suas
melodias não são simplórias e em alguns casos chegam a ser consideravelmente
ornamentadas, o que é um fator interessante se levarmos em conta que não toca
nenhum tipo de instrumento.
Em sua obra, as canções são essencialmente modas sertanejas. É claro que
se nota um fundo ritmado, de veras percussivo em seu repertório, de sua inegável
herança afrodescendente e de sua infância totalmente envolvida nas festas de
Marabaixo e Batuque, porém com melodias sertanejas, o que mais uma vez confirma
a influência do rádio sobre o repertório. Encontra-se também em seu repertório obras
batucadas. Com a fé protestante bastante consolidada, esta artista expressa em suas
músicas uma mescla dos episódios bíblicos com convites a conversão e sua própria
perspectiva ou experiência espiritual pessoal. Tais canções, abraçadas pela
comunidade, foram utilizadas nos cultos e ainda são populares entre a geração de
pessoas mais maduras.
Em seu cancioneiro existem inúmeras composições. Infelizmente, por não
utilizar de recursos eletrônicos para registro de suas obras, boa parte se perdeu, em
anotações de caderninhos que não foram mais localizados. Ainda assim, nos mostrou
um caderno com várias canções escritas e das tais compartilho:
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Embora as canções de Dona Minerva mencionar histórias bíblicas, observa-se
em todo o conteúdo de suas obras um enredo de convite para conversão religiosa. A
forma apresentada nessas composições utiliza-se da primeira parte da música
contando a história bíblica e a segunda parte incitando ao ouvinte uma reflexão da
aplicabilidade da história em sua própria vida pessoal e como desfecho sempre havia
algum verso dedicado àqueles que não haviam sido convertidos.
É bem provável que o rádio tenha também influenciado Dona Minervina em
suas composições para estruturar suas canções, como descrevemos anteriormente.
Vejamos o que ela declarou:
Não me espelhei em ninguém “pra” compor. São ideias minhas
mesmo e a bíblia. Escutava as músicas no rádio e isso me
ajudou.
Considerando este relato, e de outras pessoas com quem pude conversar no
quilombo sobre esse tema, podemos verificar que os programas evangélicos de rádio
foram ao menos mais um fator que contribuiu notoriamente para que além dessas
composições, outras canções típicas das igrejas pentecostais tivessem penetração na
congregação presbiteriana do Mel, haja vista, que diuturnamente os programas
evangélicos eram ouvidos pela comunidade, inclusive pelo desejo de seguirem
ouvindo sermões e de não terem um pastor em todos os cultos. O pastor os visitava
apenas uma vez por mês, quando ministrava a Santa Ceia para o quilombo do Mel.
Encontramos na canção de Otoniel e Oziel, - gravada em 1971 e grande sucesso nas
rádios evangélicas da época -, muitas semelhanças com a música “Quem me tocou”
de Dona Minervina, não somente no texto bíblico central utilizado, mas também na
estrutura do discurso musical (história bíblica + aplicabilidade do texto a vida pessoal
+ convite a conversão). Vejamos as semelhanças constantes na letra a seguir:
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Casa de Jairo
Para casa de Jairo ia Jesus
Uma grande multidão ia atrás dele.
Uma pobre mulher cheia de fé
Se esqueceu da multidão, e o tocou.
Refrão
Faz tu qual a mulher que foi tocou
Na orla do vestido de Jesus.
Virtude logo saiu e a curou
Se nele tocas tu saras também.
O Senhor perguntou quem me tocou?
Pois de mim saiu virtude eu o senti.
A mulher se levantou e confessou
Fui eu Senhor quem te tocou perdoa-me.
Se quiseres acercar-te ao Salvador
Com tuas cargas de pecados como estás.
Faze hoje qual a mulher que foi tocou
De seus vestidos para ti sairá virtude.
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Este repertório poderia ser inserido com tranquilidade nos cultos da
comunidade do Mel. Eram músicas bastante simples, que para serem executadas
como ouviam no rádio, ou ao menos bem próximo disso, os recursos necessários, a
comunidade tinha à disposição: violão, cavaquinho, viola e pandeiro. Apesar disso, os
próprios membros da congregação não as utilizavam diretamente nos cultos. As
cantavam nas reuniões familiares, nas serenatas, nos encontros informais. Nos cultos,
por longo tempo, somente foi adotado o hinário. Posteriormente – e infelizmente não
há precisão de a partir de quando – a congregação presbiteriana do Mel foi aderente
as canções avulsas nos cultos o que também possibilitou a utilização de outros
instrumentos: guitarra, teclado, contrabaixo e bateria.
3.3.1 A música gospel no quilombo
O grande tsunami musical que produziu muitas mudanças na adoração coletiva
das igrejas através da música também é um agente influenciador da produção sonora
do quilombo do Mel da Pedreira. A música gospel – rótulo inserido para identificar a
abertura das igrejas neopentecostais para movimentos musicais de rock´n´roll, blues,
pop rock, hard rock, white metal, entre outros foi o meio utilizado para aproximar a
música da igreja a música produzida secularmente. O intuito principal era que através
da agregação desses gêneros musicais ao ambiente da igreja, o evangelho se tornaria
mais popular, visto com menos preconceitos e os rebanhos dessas comunidades
cresceriam (Freddi Junior, 2002, p. 56). Gradativamente a música gospel foi
abarcando muitos outros gêneros musicais até que alcançou o ponto atual de
significar música produzida por evangélicos independente do estilo.
Musicais atuais do repertório gospel é parte recorrente dos cultos da
comunidade presbiteriana do Mel. Nos cultos que participei, pude ouvir músicas de
cantores conhecidos: Fernandinho, Eyshila, André Valadão, Matos Nascimento,
Kleber Lucas, Fernanda Brum, Davi Sacer, Aline Barros. Em algumas ocasiões,
principalmente quando as canções são entoadas pelo grupo de crianças essas
músicas sofrem severas adaptações. Em muitas delas são feitos arranjos para o
acompanhamento dos tambores do marabaixo e do batuque.
105
A música gospel é tão popular entre os quilombolas do Mel, que em alguns
cultos de família, em lares, que tive a oportunidade de estar presente para pesquisas,
não foram utilizados os hinos do Salmos e Hinos, somente músicas gospel. Outro fato
importante, um outro registro sobre a presença da música gospel na comunidade foi
em minha visita à escola. Na apresentação que os alunos fizeram para mim, cantaram
música gospel da Fernanda Brum, acompanhado pelo ritmo do marabaixo.
3.4 A fase musical atual: A reinserção do Batuque e do Marabaixo no quilombo do Mel
da Pedreira
Com o reconhecimento da comunidade como remanescentes de negros
escravizados, com a titulação das terras para o quilombo do Mel da Pedreira no ano
de 2007, reacende o sentido de etnicidade e identidade que por algumas décadas
permaneceu adormecido em função do protestantismo. O processo de
reconhecimento da comunidade como vimos no capítulo primeiro não foi nada fácil.
Em vários momentos, muitos senões eram argumentados pelos antropólogos do
INCRA acenando para o não reconhecimento como quilombolas, principalmente por
causa da opção religiosa da comunidade. Seguramente, tais adversidades
fortaleceram o senso comunitário do grupo e despertou o paulatino reintegrar das
manifestações culturais de matriz africanas no grupo.
Curiosamente, o primeiro local que passou a experimentar dos elementos
rítmicos africanos na música foi a própria igreja, os próprios cultos. No começo, por
ainda certos de que não deveriam tocar o Marabaixo e o Batuque nos cultos – haviam
aprendido que se tratavam de oferendas aos espíritos e que não deveriam mais usar
esses gêneros musicais -, inseriram tambores de diversas qualidades, alguns mais
presentes nas rodas de samba, e arranjaram todas as canções para um tipo de
batucada genérica. A música na congregação presbiteriana do Mel começa a trazer
de volta suas origens artísticas, o que fez com a comunidade ganhasse um novo
ânimo de fé e de expressão religiosa. Nessa articulação de retomada, alguns
personagens foram bastante importantes, porque lideram musicalmente este
movimento: Néia - a filha de Seu Biló, Seu Alexandre, Dionatan Souza, Elizeu e irmão
106
João – líder do louvor. Como líderes da comunidade na área de música envolveram
todos os instrumentistas e cantores nesse novo projeto e todo o quilombo de imediato
aprovou tal medida. A princípio, continuaram usando os hinos, as canções
evangélicas de modo geral, especialmente as de origem pentecostal, e além da
guitarra, contrabaixo, guitarra e bateria, foram adicionados os tambores.
Durante os longos anos sem participar das festas de Marabaixo e Batuque, sem
sequer tocar os ritmos ou promoverem tais festas com outra finalidade que não de
idolatria aos santos e aos espíritos, o contato indireto com as festas e a música foi
uma constante. Apenas o lago separa o quilombo do Mel do quilombo de São Pedro
dos Bois. A distância de três quilômetros, - apesar de não ser tão pequena -, permite
ouvir claramente o som dos tambores das festas do quilombo vizinho. Néia disse que
sempre ouviam as festas e a música. E paravam para ouvir e gostavam de ouvir. Mas
que estavam conscientes de que não poderiam mais tocar, apesar de ter nascido no
período pós conversão ao protestantismo:
A gente tinha assim um pouco de barreira pelo fato de “ser”
evangélicos. (...). Mas, a gente tinha medo de ser discriminado
pelos irmãos se “fosse” tocar esses ritmos. (...). Eu achava
interessante o ritmo.
Nesta declaração percebemos que a ruptura com a cultura ocorreu no âmbito
prático – a conversão ao presbiterianismo os fez pensar que a sua cultura ancestral
não poderia ser um meio de manifestação da nova fé, haja vista a absoluta convicção
de que tudo que envolvia as festas de Batuque e Marabaixo eram oferendas aos
santos -, mas não se deu no aspecto étnico e identitário. A ligação com a cultura dos
remanescentes de negros escravizados não havia sido rompida e, de fato, é algo
pertencente a forma de ser dos quilombolas ainda que queiram professar uma fé
contraditória as crendices de matrizes africanas. O indivíduo da comunidade do Mel
da Pedreira se apresenta como quilombola protestante, por crer absolutamente na
possibilidade de transitar entre sua cultura de origem afro-brasileira e sua crença
evangélica protestante. E, no intuito de manifestar sua fé, sentem-se plenamente
107
confortáveis ao fazerem através do ritmo alegre, contagiante, dançante do Batuque e
do Marabaixo. Como comenta seu Alexandre:
Antes eu fazia [dançava e cantava] para os santos, hoje não
posso fazer para Deus? Eu sempre fui “chegado” numa festa!
Mas agora, quando eu danço eu faço assim, ó [olhe – apontando
o dedo para cima como quem diz: é para Deus].
Com a titulação das terras oficializada, os líderes do quilombo do Mel, se veem
inseridos no contexto das lideranças do movimento negro no estado do Amapá.
Passam a participar de reuniões com as demais comunidades que ainda pleiteiam
suas respectivas titulações de terra e reconhecimento como quilombolas, e o que
sempre esteve vivo – a identidade étnica – começa a ganhar mais força e com grande
ímpeto permeia a comunidade despertando o desejo de voltar as raízes musicais sem
detrimento a fé. A participação ativa da liderança do quilombo do Mel na União dos
Negros do Amapá – (UNA), órgão promotor de um dos eventos mais populares do
estado e o mais popular de cultura negra do baixo amazonas, o Encontro dos
Tambores, amplia o contato com o Batuque e o Marabaixo ao ponto da comunidade
do Mel ventilar a possibilidade participar do evento. Porém, aí residia a dura dicotomia
apresentada e vivida por décadas: Batuque e Marabaixo versus Protestantismo. Dois
lados totalmente opostos no âmbito da religiosidade. Como não sabiam como lidar
com esta situação – tão pouco a quem recorrer para tomarem uma decisão -, acabam
refutando tal participação, ainda que fossem formalmente convidados para participar
como de fato aconteceu.
No ano de 2012, com a chegada do Prof. Dr. Antonio Maspoli de Araújo Gomes
ao quilombo do Mel da Pedreira, para dar início as suas pesquisas, as lideranças da
comunidade se sentem amparadas no sentido de buscarem uma orientação do que
deveriam fazer no tocante a participar ou não do Encontro de Tambores e se deveriam
ou não tocar Marabaixo e Batuque também os inserindo no contexto cúltico da
congregação presbiteriana do Mel. Seu Alexandre nos conta que a conversa com o
Dr. Maspoli na realidade foi um convite a reflexão. E que após esta reflexão toda a
liderança do Mel se reuniu e decidiu que deveriam sim voltar a viver as raízes culturais
108
ancestrais e usá-las com um meio autêntico de manifestação da fé protestante do
quilombo.
Desde então, os cultos no Mel, - que descreveremos com mais detalhes a
seguir -, têm sido organizados musicalmente falando, em torno do Batuque e do
Marabaixo. Integralmente, as canções entoadas nas reuniões estão adaptadas ao
ritmo dos tambores, sejam músicas compostas por eles, dos hinários ou avulsas do
cancioneiro evangélico.
3.5 O Batuque e o Marabaixo do Mel da Pedreira
Conforme vimos no capítulo anterior, Marabaixo e Batuque têm suas
características musicais e rituais específicas. Em função do protestantismo, tais
características rituais foram totalmente desfeitas. As festas não são promovidas pelo
quilombo do Mel. Todas as manifestações desses ritmos ocorrem nos domínios da
igreja – ou de outras igrejas que são convidados para se apresentar -, ou em locais
públicos culturais para demonstração da arte negra quilombola como no anual
Encontro dos Tambores. Os quilombolas do Mel recebem os convites de
apresentações culturais como excelentes oportunidades de expressão de fé e de
evangelismo. O rádio, a música sertaneja, a música evangélica, os hinários
influenciaram na arte quilombola do Mel de tal modo que hoje está comunidade
apresenta um tipo exclusivo de Batuque e Marabaixo. Se faz extremamente
necessário elencar as cruciais diferenças que são fruto da convergência de estilos e
ritmos das influências já citadas, bem como a propagação da doutrina da fé
protestante. Vejamos as diferenças:
3.5.1 Conteúdo Poético das Canções de Batuque e Quilombo do Mel da Pedreira
Tanto o batuque quanto o marabaixo neste quesito sofreram mudanças
consideráveis. Todos os textos poéticos das canções que nas festas tradicionais de
109
outros quilombos são dedicados aos padroeiros, aos santos, a virgem, no Mel são
dedicados a Jesus e a Deus exclusivamente.
Também são utilizados textos bíblicos e contação de histórias bíblicas para
construção poética das canções. Como num padrão estrutural das canções
evangélicas, sempre existem versos de convite a reflexão, a conversão e a proposta
por experimentar de uma relação sobrenatural com Deus relacionada à cura e a
milagres.
Existem muitas músicas cujas poesias foram compostas para propagação de
remissão de pecados e transformação de vida em Jesus sob uma perspectiva pessoal
do compositor, assim como muitas delas são abordagens pessoais sobre
Soteriologia40.
Algumas músicas são reproduções dos Salmos bíblicos, principalmente os que
exaltam a grandeza de Deus através da criação.
3.5.2 Estrutura Melódica das Canções de Marabaixo e Batuque do Quilombo do Mel
do Pedreira
As melodias passaram por mudanças consideráveis. As canções de marabaixo
e batuque tradicionais têm suas melodias confeccionadas em escalas pentatônicas,
escalas diatônicas utilizando-se de graus vizinhos e com poucos “saltos” melódicos.
Ou seja, são melodias muito simplórias muito semelhantes às usadas nas ladainhas
para que possam ser repetidas de acordo com a estrutura responsorial de canto. Já
as melodias do quilombo do Mel são compostas com uma gama maior de notas das
escalas, são consideravelmente ornamentadas e com frequência fazem uso de
apogiatura41.
40 Soteriologia. Parte da teologia que aborda a salvação do homem. 41 Appoggiatura ou apogiatura, (do italiano appogiare, apoiar) é uma nota característica de um intervalo melódico,
escrita um grau acima ou abaixo da nota que a sucede (nota principal), retirando parte do valor desta (normalmente
metade do valor, embora no tempo ternário retire apenas a terça parte). A appoggiatura é representada na pauta
como uma nota menor anexada à nota principal.
110
Frequentemente o uso estrutural responsorial nas canções são substituídos por
construções harmônicas até três vozes. Isso se dá pela influência das músicas dos
hinários, mas também porque alguns cantores do quilombo do Mel da Pedreira
participaram de corais nas Igrejas Presbiterianas da capital Macapá, principalmente
na igreja central. Também são feitos arranjos vocais que podemos chamar de
responsoriais a três vozes, quando o ladrão de marabaixo atua, porém, as respostas
vocais não são construídas em uníssono. O ladrão de marabaixo no Mel foi
preservado, porém, sem a característica de improvisação. Atua como um solista,
intermedia a participação dos demais cantores na música. Os arranjos construídos em
até três vozes distintas não são simples. Passam pelas respostas responsoriais de
frases completas, de fragmentos das frases e também são utilizadas técnicas de
acompanhamento vocal como Bocca Chiusa42. Vejamos dois exemplos de poesias de
canções:
42 Bocca chiusa é um termo em italiano, que significa cantar com a boca fechada. É uma técnica usada em
vocalizes para o "aquecimento vocal". Caracteriza-se por cantar com a boca fechada transferindo a ressonância
para a região nasal.
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Estas canções foram compostas especialmente para a primeira participação do
quilombo do Mel da Pedreira no Encontro dos Tambores promovido pela União de
Negros do Amapá – (UNA), evento em homenagem a Zumbi dos Palmares, evento
que ocorreu no Centro de Cultura Negra do Amapá – CCNA. Atualmente, o quilombo
do Mel é presença garantida nos eventos da cultura negra do estado do Amapá,
sempre representando a arte do Marabaixo e do Batuque contextualizada aos
princípios doutrinários do protestantismo presbiteriano a qual pertencem.
Ainda que militantes de uma fé diferente dos demais grupos de quilombolas
presentes no Encontro de Tambores, toda a comunidade conta que a experiência que
vivenciaram neste episódio foi inesquecível. Foram muito bem recebidos, não houve
nenhuma ocorrência de retaliação ao grupo por questões de divergências religiosas
e, mais que isso, foram muito respeitados e elogiado por tão brilhante apresentação
que fizeram. Todos os anos, a liderança musical do quilombo se organiza para
participar deste conclave de quilombos, produzindo novas canções, novos arranjos e
promovendo interação com a comunidade negra do estado do Amapá.
3.5.3 Constituição Harmônica das Canções de Marabaixo e Batuque do Mel da
Pedreira
A harmonia43 musical presente no marabaixo do Mel da Pedreira é bastante
sofisticada em relação ao convencional marabaixo. Isso ocorre em função do uso da
melodia mais ornamentada e com mais notas das escalas musicais. São usados
diversos tipos de cadências44 presentes na música sertaneja e na música gospel.
43 Harmonia é o campo que estuda as relações de encadeamento dos sons simultâneos (acordes).
Tradicionalmente, obedece a uma série de normas que se originam nos processos composicionais efetivamente
praticados pelos compositores da tradição europeia, entre o período do fim da Renascença ao fim do século XIX. 44 Cadência, na teoria musical ocidental, é uma série particular de intervalos, ou acordes (progressão de acordes
ou intervalos) que finalizam uma frase, seção ou obra musical. Cadências dão às frases um final próprio, que pode,
por exemplo, sugerir ao ouvinte se a peça continuará ou se concluiu. Uma analogia pode ser feita em relação à
pontuação, com algumas cadências mais fracas funcionando como vírgulas, indicando uma pausa ou descanso
momentâneo, enquanto que uma cadência mais forte irá atuar como o ponto, indicando o final de uma frase ou
sentença musical.
131
Nas canções de marabaixo que pude ouvir e presenciar de outros quilombos,
são utilizados geralmente três acordes, os básicos para formação mínima de um
acompanhamento harmônico. O marabaixo do Mel utiliza-se de quase todos os
acordes do campo harmônico45 do tom utilizado, como dito anteriormente em função
da melodia amplificada.
No caso do batuque do Mel, não se utiliza nenhum instrumento a não ser a
própria caixa de batuque. Ao compararmos com o batuque dos outros quilombos, é
feito uso de toda a gama de membrafones assim como de alguns instrumentos
harmônicos como violões e violas.
3.5.4 Instrumentos utilizados no Batuque e no Marabaixo do Mel da Pedreira
Como mencionamos anteriormente, no batuque do Mel da Pedreira, utilizam
apenas a caixa de batuque para acompanhamento.
Quanto ao marabaixo, são utilizados todos os membrafones convencionais,
artesanalmente construídos pelas comunidades, além dos tambores industrializados.
No Mel, utilizam: pandeiros de várias medidas, surdos, tam-tam, bongos, e a bateria
convencional completa com pratos. Além desses instrumentos, são utilizados: violão,
guitarra, contrabaixo e teclado. Violões e violas, são bastante presentes na categoria
instrumentos harmônicos nos grupos de marabaixo do Amapá. Teclado é pouco
usado. O quilombo do Mel é também um dos grupos precursores a utilizar este
instrumento.
3.6 O Departamento de Música da Congregação Presbiteriana do Quilombo do Mel
da Pedreira
A congregação do Mel se organiza como uma igreja presbiteriana
convencional. Todavia, militam o desejo de se tornarem uma igreja por terem um bom
45 Campo Harmônico é a sequência de acordes compatíveis dentro de uma tonalidade.
132
número de membros fieis, mas ainda tal situação perpassa pela nomeação de um
pastor que possa se dedicar integralmente à comunidade. A igreja tem seus
conselheiros, liderança reconhecida pelo grupo de religiosos e dois presbíteros
titulados pela igreja presbiteriana, Sr. Alexandre e Sr. Osvaldino.
A congregação está organizada em departamentos. É dada uma grande ênfase
a Escola Bíblica Dominical que segue criteriosamente as normas estabelecidas para
as igrejas presbiterianas, bem como as demais áreas de atuação estão bem
constituídas: para crianças, adolescentes, jovens, mulheres e homens (Sousa, 2014,
p.45).
O departamento de música é liderado pelo irmão João. Como mencionamos no
capítulo um deste trabalho, Seu Bráulio, o patriarca, adquiriu as terras de seu primo,
avô do irmão João. Nascido nessas terras, após a venda para o patriarca deste
quilombo, seguiu com sua família para outra comunidade chamada “Os cavalos” que
teve o nome alterado para “Santana” posteriormente. Irmão João é de origem
protestante pentecostal. Junto com seus pais frequentava a Assembleia de Deus.
Sempre esteve ligado à música desde sua igreja anterior. Participou de diversos
grupos musicais, como de jovens, coral e se apresentava também como cantor. O tipo
de música que esses grupos faziam era essencialmente pentecostal, com gêneros
musicais que variavam entre o forró, o baião e o carimbó. Apesar de sua experiência
como cantor e participante de vários grupos vocais durante toda a vida religiosa, João
não toca instrumentos e não tem formação ou base de estudos musicais, mas, ocupa
a liderança geral deste departamento.
A liderança técnica musical fica a cargo de Néia, a filha caçula de Seu Benedito,
personagem decisivo e persuasivo na conversão de seu sogro o patriarca Seu Bráulio.
Néia estudou música na Igreja Presbiteriana Central. Estudou violão, canto e
participou do coral desta igreja por alguns anos. Néia faz parte do grupo de
compositores emergentes que tem trabalhado o marabaixo e o batuque para os cultos
da comunidade. Também, desenvolve todos os arranjos e adaptações vocais,
instrumentais, e rítmicas para adequar canções convencionais à “pegada46” dos
tambores do Mel. Apesar de deter mais conhecimentos musicais que João, Néia se
46 Pegada. Termo popular empregado para definir o sentido de pertencimento a um estilo musical.
133
submete sem maiores problemas à liderança de João e juntos articulam projetos de
música para a congregação e para toda comunidade. O departamento de música se
estrutura a saber:
Grupo Vocal e Instrumental Infantil – Além dos ensaios para execução das músicas
no culto, são dadas aulas de canto – como cantar afinado, divisão de vozes -, até as
aulas práticas nos instrumentos (violão, teclado, bateria, contrabaixo, guitarra e
tambores). Não são utilizados os meios convencionais de ensino de música como
teoria e leitura de partitura. Todo o trabalho é desenvolvido nos campos da percepção,
estimulação e repetição. A aptidão rítmica é notória no trabalho que Néia realiza com
as crianças, como por ela mesma é enfatizado:
As crianças querem aprender a tocar tudo. Mas elas têm muito
mais facilidade com os tambores porque está no sangue.
Ministério de Louvor – Este grupo abarca todos os jovens e adultos músicos e cantores
da congregação. Não existe separação de grupos por faixa etária nesse caso, em
função da dificuldade estrutural e de liderança porque são poucos os líderes
habilitados para fazer um trabalho com a parte com os jovens. Então, como são
muitos, é confeccionada uma escala de participação de músicos e cantores por culto
de domingo. Este grupo é responsável pela música de todos os cultos, celebrações e
datas festivas. Os ensaios acontecem semanalmente, aos sábados.
Coral – Grupo vocal tradicional divido em três vozes para apresentações específicas,
como Natal e datas festivas. No repertório do coral, estão canções tradicionais,
canções do hinário e músicas gospel em geral. Não são usados os tambores, e o coral
não tem ligação alguma com as manifestações de marabaixo e batuque. O coral
também se apresenta acappella e acompanhado por teclado.
134
Grupo de Coreografia – Claramente, se trata de um grupo de performances em dança.
Provavelmente não é chamado como grupo de dança em função das tradições da
igreja presbiteriana e também da igreja pentecostal de não permitir a dança na liturgia
do culto. Os grupos de coreografia surgiram nas Assembleias de Deus no final dos
anos de 1990. Tocava-se as gravações dos cânticos, enquanto um grupo de meninas
e jovens desenvolviam movimentos alusivos ao enredo musical. Evidentemente, tais
movimentos ficam mais preservados na esfera da expressão gestual que
propriamente dito dos movimentos corpóreos completos. O grupo de coreografia do
Mel, chama atenção para dois aspectos específicos: o primeiro deles, e obviamente
como não poderia deixar de ser, são os elementos das danças do marabaixo e
batuque muito presentes na montagem das coreografias e por serem acompanhados
por música ao vivo produzida pelo ministério de louvor. Todas as coreografias são
direcionadas para o ritmo dos tambores e o contágio da comunidade com a música e
a dança é imediato. Alguns chegam a ficar em pé durante a apresentação e
acompanham com a música com leves movimentos corpóreos. Assim como o coral, o
grupo de coreografia não se apresenta regularmente. Mas em todas as datas
importantes da congregação há uma coreografia nova a ser representada.
3.7 A Organização Cúltica da Congregação Presbiteriana do Mel da Pedreira
Meus estudos sobre o culto quilombola, satisfatoriamente, ocorreram após a
total integração dos elementos culturais ancestrais do batuque e do marabaixo ao
quilombo do Mel da Pedreira. Literalmente, podemos considerar que são cultos ao
som dos tambores, do início ao final. Organizacionalmente, o culto segue uma liturgia
convencional. Inicia-se com a leitura de um texto bíblico e uma oração. Os avisos e a
saudação aos visitantes ocorrem em seguida. A partir daí, começa o período chamado
de louvor e adoração. Todos se colocam de pé, e numa espécie de canto
congregacional são dirigidos pelo grupo musical que está no palanque da igreja neste
momento. Neste local de destaque estão muitos músicos e cantores: seis
percussionistas, baterista, contrabaixista, tecladista, violonista, guitarrista, cantor
principal e três vozes de fundo. São tocadas músicas diversas, que não são dos
hinários e que foram adaptadas ao ritmo do batuque e do marabaixo. O som dos
135
tambores fica em plano de destaque, ainda assim se pode ouvir agradavelmente todas
as vozes, demais instrumentos, e vozes unidas da congregação no canto. Este tempo
de adoração e louvor tem duração média de trinta minutos.
As canções estão mais voltadas para o estilo pentecostal que tradicional, não
somente pela introdução dos tambores à gama de instrumentos utilizados, mas
também por causa do conteúdo poético de cada uma delas. Além das músicas
compostas pelos quilombolas, das quais já citamos algumas, existem outras diversas
com o mesmo apelo. Após o momento de louvor, fui convidado para dar uma
saudação à congregação. Assim o fiz em poucos minutos.
Adentram ao momento das contribuições, chamado de ofertas. Enquanto os
fiéis entregam suas contribuições, é entoado uma canção do hinário totalmente
adaptada ao som dos tambores mais tocada de maneira um pouco mais contida e, na
sequência, o sermão. Após o sermão deu-se início ao ritual de comunhão, a Santa
Ceia. E durante o preparo deste momento do culto, mais uma música fora executada.
Desta vez uma canção, lenta, mais apropriada para a reflexão. Porém, alguns dos
percussionistas do ministério de louvor, seguiram tocando seus tambores numa
espécie de batuque adaptado. Ao concluir o período de Santa Ceia, o grupo de
coreografia apresentou duas músicas com o grupo de louvor. Uma delas, havia sido
composto recentemente pelo grupo. Um autêntico marabaixo do Mel! Muita dança,
coreografia, tambores e toda a comunidade em festa. O pastor impetrou a benção final
e conclusão do culto.
Toda Santa Ceia, a comunidade da congregação se organiza para um grande
almoço de comunhão. As mulheres combinam o que cozinhar, os homens saem a
caça, compram refrigerantes e sucos e promovem um banquete. Neste culto, além
dos tradicionais: arroz, feijão, macarrão, farinha, açaí, mandioca, carne de porco,
carne de boi; havia também carne de tatú. Tudo em muita fartura e compartilhado
entre todos com muita alegria. Porém, enquanto organizavam o salão social da igreja,
anexo ao templo para receber as pessoas para comer e enquanto os alimentos eram
preparados, um fato me chamou bastante atenção. Os músicos se mantiveram
tocando e cantando. Marabaixo e batuque quilombola do Mel, com poesia protestante.
E pude assistir a uma das manifestações mais espontâneas de marabaixo e batuque
em todos esses dias de pesquisa. Enquanto havia música, toda a comunidade
136
dançava. Homens, mulheres, crianças, sem exceção. Fizeram a dança do acorrentado
(dança tradicional do negro aprisionado), reconstituindo as rodas das senzalas. Era
explicito que todos envolvidos demonstravam um sentimento de profundo orgulho e
pertencimento à cultura, mas de total envolvimento com a fé protestante e tudo que
faziam dedicavam ao Deus desta fé, olhando para cima, apontando com os dedos e
mencionando palavras de exaltação e elogio para ele.
3.8 A Identidade Protestante do Quilombo do Mel da Pedreira
Ao ter vivido dias intensos com a comunidade do Mel, conhecendo a história
de constituição deste grupo, pude verificar o quanto são ligados à religiosidade
protestante. Esse período de convivência com os quilombolas, foi uma imersão nas
doutrinas protestantes, baseadas em frequentes citações bíblicas e, diversas
narrativas de experiências pessoais – milagres alcançados -, algo bastante usual entre
evangélicos. Algo que poderia soar completamente fora de esquadro, afinal estamos
numa comunidade de remanescentes de negros escravizados e supostamente a
religiosidade deste grupo deveria estar conforme suas raízes ancestrais. Esta é uma
realidade que naturalmente a maioria das pessoas pensam, quando no imaginário
formamos a imagem do que seria um quilombo. Como exposto no capítulo um deste
trabalho, este também havia sido o pensamento dos antropólogos do INCRA quando
visitaram a comunidade em meio ao processo de reconhecimento deste grupo como
remanescentes de negros escravizados e de titulação das terras. Porém, ao meu ver,
um dos fatores que dão a esta comunidade um status altamente instigante é
justamente a opção pela fé protestante, fato este que é o cerne das investigações
etnomusicológicas desta pesquisa.
O quilombo do Mel da Pedreira sempre cultivou boas relações e pleno convívio
com as demais comunidades quilombolas da circunvizinhança. Tal relação, fora
mantida ainda após a conversão ao protestantismo, especialmente com o quilombo
de São Pedro dos Bois pela proximidade geográfica e por diversas relações de
parentesco. Há muitos casamentos entre membros desses dois grupos. Ainda assim,
esta conexão não enfraqueceu a fé protestante dos quilombolas do Mel, ao contrário,
137
bastante consolidada e deveras repercutida, está fé acabou por borrifar seus
ensinamentos em São Pedro dos Bois culminando na conversão protestante de
algumas pessoas por lá (Sousa, 2014, p. 50). Este fato demonstra o quanto a
religiosidade para os quilombolas do Mel está posta inclusive acima das questões
culturais. A necessidade de respostas no âmbito religioso, de acordo com todos os
relatos, sempre foi uma busca constante tanto de Seu Bráulio quanto de Seu Benedito,
protagonistas do episódio conversão protestante. Seu Benedito em nossas conversas,
por diversas vezes mencionou a sua ávida busca por Deus, e que tentou encontrá-lo
de algumas formas. Também nos disse, que seu primeiro contato com a bíblia ocorreu
na casa de um amigo padre, quando pode pegar pela primeira vez num exemplar e
folheá-lo por poucos instantes buscando compreensão e encontrar respostas para
suas indagações pessoais. Mais tarde, novos encontros com a bíblia culminariam em
sua conversão ao protestantismo. Seu Bráulio, antes da conversão também era uma
sôfrega alma em busca de respostas para seus requerimentos. Ouvia frequentemente
programas de rádio evangélicos ainda na condição de pajé e rezador de ladainha.
Estas informações podem apontar para um cenário onde a religiosidade que melhor
completaria os hiatos da alma dos quilombolas sob a perspectiva deles, poderia
ocupar papel principal na dinâmica de vida de ambos e, pela liderança exercida sobre
os demais, as respostas encontradas por eles persuadiriam a comunidade. Como
exposto anteriormente, num quadro de persuasão, Seu Benedito convenceu o sogro
Seu Bráulio a refletir sobre a fé protestante o que se tornaria pouco tempo depois na
conversão coletiva ao protestantismo do quilombo do Mel através da decisão do
patriarca.
O ambiente no quilombo do Mel da Pedreira, por vezes se torna
inebriantemente místico. Muitos são os relatos de ocorrências sobrenaturais ocorridas
no passado, anterior à conversão, e que eventualmente são trazidos à tona, não
somente como narrativas históricas de contação de casos ocorridos com
antepassados, mas eventualmente, quilombolas de gerações mais recentes
comentam ter vivido ou saber de alguém que experimentou algo sobrenatural. Um dos
eventos sobrenaturais mais populares é a "Mulher da cabeça de fogo". De acordo com
os relatos, uma mulher quilombola estava dormindo, quando inexplicavelmente sua
cabeça se separou de seu corpo sem qualquer intervenção de outra pessoa ou
incidente. Em seguida, a cabeça apartada do corpo se transforma em uma grande
138
bola de fogo que inclusive ao se apresentar, gira e pode mudar de tamanho. A bola
de fogo retornou ao corpo da mulher, e tão misteriosamente quanto seu apartamento
do corpo, se reconectou, porém, virada para trás. Esta ocorrência fora narrada
diversas vezes para mim através de pessoas diferentes da comunidade, como
primeira ocorrência. Interessante frisar que pude ouvir relatos dos mais velhos e dos
mais jovens sobre este mesmo fenômeno, o qual é visto e transmitido como real e que
eventualmente alguns ainda veem tal fenômeno ocorrer.
Ao analisarmos tais relatos, e o comportamento em torno dessas histórias,
notamos que não somente as questões geográficas, de proximidade com as demais
comunidades quilombolas da região, mas também a tendência à credulidade religiosa,
fazem com que a comunidade do Mel permaneça vinculada as raízes ancestrais.
Neste contexto, vinculados ao local, a terra, a praticamente a mesma dinâmica de
vida, difícil seria se desconectarem totalmente deste nexo cultural.
O protestantismo que se arraigou desde muito próximo do início da comunidade
do Mel, friccionou e confrontou as práticas híbridas religiosas presentes no quilombo.
A plena conformação às doutrinas desta nova fé eliminou quaisquer práticas
relacionadas às religiões tanto de origem africana – marabaixo e batuque –, quanto à
do catolicismo popular – ladainha – e pajelança. Os quilombolas de Mel, em coro, têm
uma visão de discordância às práticas religiosas de outrora afirmando terem hoje a
liberdade de se expressarem espiritualmente à divindade sem que seja por intermédio
de rituais e oferendas.
Por outro lado, em primeira instancia, não houve adaptações do protestantismo
à cultura do quilombo do Mel, que produziu o tolhimento das práticas artísticas meio
pelo qual poderiam se expressar autenticamente no âmbito religioso, mas, o efeito
produzido fora contrário, induzindo à mortificação ainda que temporária da cultura
africana no contexto protestante.
Com o passar do tempo, a comunidade se adequou ao culto protestante
pentecostal. A configuração cúltica mais informal, as interjeições de euforia, êxtase e
alegria, as músicas executadas de acordo com os ritmos regionais, deram ao
quilombo do Mel um sentimento de pertencimento maior se comparado com a igreja
tradicional. As determinações doutrinárias calvinistas estão muito presentes na
comunidade do Mel e não sofreram nenhum efeito de incredulidade por parte dos
139
membros desse grupo. Porém, a convivência com o pentecostalismo contribuiu em
larga escala para que o quilombo do Mel pudesse configurar sua nova identidade
étnica. O pentecostalismo, de certa forma, fora a ilação, entre os resquícios das raízes
africanas - que se mantiveram presentes no inconsciente da comunidade e que cedo
ou mais tarde, tomaria grande vulto e proporção voltando à tona, já que bradava
constantemente entre os quilombolas -, e o protestantismo ideal quilombola, a nova
identidade étnica. O que fica bastante delineado, é que do movimento pentecostal, os
quilombolas querem somente a forma mais livre de culto, as canções com apelo ao
fogo do Espírito Santo e a liberdade do êxtase espiritual. Ao analisarmos estas
questões da emotividade religiosa, vemos o quão cerca podem estar alguns
movimentos pentecostais e o batuque e marabaixo. Como já dissemos anteriormente
neste capítulo, desde o início das reuniões cúlticas da congregação do Mel, a liturgia
presbiteriana fora questionada e delicadamente adaptada e atualmente, o culto é
estruturado bem diferente do tradicional. Seu Alexandre, diz que a maioria das
pessoas ainda não os compreendem bem, e são contrárias as suas manifestações
culturais nos cultos e menos formais ou mais pentecostais:
O pessoal [referindo-se à igreja presbiteriana, especialmente
aos líderes] tem preconceito. Somos vítimas de preconceito do
povo da igreja que não entende nosso jeito de adorar a Deus
com nossa cultura.
Apesar de um grande apego e respeito as doutrinas da igreja presbiteriana, a
necessidade de uma espiritualidade fenomenal marca a história dos quilombolas do
Mel da Pedreira. É provável – importante que haja maiores estudos específicos nesta
área –, que a espiritualidade com adventos sobrenaturais esteja vinculada às
emoções e a psique do quilombola, haja vista, sua condição religiosa anterior. Vale
lembrar, que a própria conversão ao protestantismo é narrada como evento fenomenal
quando da revelação de Esmeraldo, o guardião da família de Seu Bráulio, do
abandono que ele sofreria por outra opção de fé por parte desta comunidade, fato que
é narrado com grande respeito por todos e como uma resposta coerente do mundo
espiritual para a nova escolha religiosa.
140
Com o passar do tempo, a comunidade do Mel da Pedreira foi mudando a
maneira de se enxergar enquanto grupo étnico, dentro de outros demais grupos
étnicos. Também, sua visão de comunidade protestante sofreu mudanças no âmbito
das demais comunidades protestantes. Ou seja, nas comparações que o quilombola
do Mel fez de si mesmo nas duas referências ou modelos de origens formadores de
uma identidade própria para si, aparta elementos significativos para a construção de
uma nova e exclusiva identidade. Vamos analisar a canção composta para o Encontro
de Tambores:
Música: Quilombo do Mel
ʺ Somos do quilombo do Mel, do Mel da Pedreira ʺ. Se trata da autoafirmação de
sua etnicidade negra. Afirmando ser negro, tomam posse de um conjunto de
concepções que formam sua cultura. Desde sua diáspora, a escravidão, os diversos
sofrimentos dos antepassados até o presente de luta por direitos igualitários, ou a luta
pela possessão da terra.
ʺ Estamos hoje aqui para Louvar o Deus guerreiro. É nossa missão falar do amor
de Cristo. Com muita alegria louvamos ao nosso Rei! ʺ. Nestas três seguintes
frases da canção, observamos as mudanças que ocorreram no entendimento do ser
quilombola, e que ocorrem internamente, mas, precisam ser externadas para
encontrar um ponto de contraste ou confronto, com a identidade anterior, como vemos
no conceito de identidade de contraste (Oliveira, 1976, p.112):
" A identidade contrastiva parece se constituir na essência da
identidade étnica, i.e, à base da qual esta se define. Implica a
afirmação do nós diante dos outros. Quando uma pessoa ou
grupo se afirmam como tais, o fazem como meio de
diferenciação em relação a alguma pessoa ou grupo com que se
defrontam. É uma identidade que surge por oposição. Ela não
se afirma isoladamente. No caso da identidade étnica ela se
141
afirma "negando" a outra identidade, etnocentricamente por ela
visualizada. É uma identidade, que surge por oposição.ʺ
As frases acima são afirmações de negação das práticas religiosas anteriores
dedicadas aos santos, aos padroeiros e aos espíritos, que doravante são dedicados
somente ao Deus Guerreiro e a Cristo, reconhecido e chamado de Rei. As frases
seguintes, "Ele nos pôs nos lábios uma canção" e ʺCanção de gratidão que nos
livrou da escravidão! Ê Ô Ô! ʺ, tratam das práticas religiosas anteriores como
escravizadoras, pontos altos do contraste identitário.
As adaptações do protestantismo assumido como prática de fé no quilombo do
Mel da Pedreira desde o ano de 1968 são o ʺoutro lado da moedaʺ na configuração
da identidade desta comunidade e que também passou por confrontos contrastivos
através da inserção dos elementos do batuque, do marabaixo e do pentecostalismo.
Essas mudanças contribuíram para um novo entendimento identitário individual e
consequentemente de grupo. Vejamos (Oliveira, 1976, p. 119):
ʺ A identidade social surge como a atualização do processo de
identificação e envolve a noção de grupo, particularmente a de
grupo social. Porém, a identidade social não se descarta da
identidade pessoal, pois esta também de algum modo é um
reflexo daquela. ʺ
As atualizações do processo de identificação, que se refere Cardoso Oliveira,
se transformaram no novo sustentáculo da fé protestante na comunidade do quilombo
do Mel da Pedreira. A subsistência da religião, se resistisse totalmente a inserção da
cultura de matriz africana ao convívio, poderia esvaziar o sentido religioso do
protestantismo. Considero que as mudanças promovidas pela comunidade no âmbito
da identidade, desenvolveu uma espécie de identidade contrastiva bilateral, onde o
quilombola protestante se opõe simultaneamente a romper com as práticas religiosas
africanas e com o rito religioso protestante tradicional buscando um espaço autentico
de manifestação de sua identidade étnica exclusiva, e que a música pela comunidade
142
produzida traduz claramente o pensamento coletivo da comunidade: somos
quilombolas remanescentes de escravizados, cuja vida e pratica de fé não
corresponde a tradição ancestral, somos protestantes com o mesmo apego a terra, a
mesma sofreguidão negra, a mesma celebração à vida, a mesma gratidão a liberdade
e o respeito a história dos ancestrais. Tão pouco, a fé corresponde totalmente ao
protestantismo tradicional: somos quilombolas protestantes. Somos do quilombo do
Mel da Pedreira.
143
CONCLUSÃO
A história dos negros no Brasil é a narrativa de uma minoria renegada e
usurpada. O Direito à liberdade, ao trabalho para o próprio sustento, direito de pensar
e escolher o próprio futuro foram arrancados dos negros ao longo dos séculos desde
que, aprisionados foram subtraídos do continente de origem para servirem aos
interesses de outrem. Uma luta desleal que começa nos navios negreiros onde a
escassez de condições humanas ceifou a vida de muitos deles. Esta mesma luta
desleal que atravessou o oceano e chegou a diversos pontos do Brasil, alcançou
também o Amapá que traz em suas raízes marcas profundas do sofrimento dos negros
no estado. Tiveram que construir um forte, tiveram que trabalhar em troca da
sobrevivência, tiveram que se reinventar enquanto seres humanos tolhidos de todos
os direitos. Não pode haver pleno conhecimento das causas em que os negros
militam, enquanto as perspectivas residirem por si só nos âmbitos culturais e
religiosos. Mas, se, esses elementos, culturais e religiosos, forem a catapulta que nos
arremesse em pesquisas mais aprofundadas sobre a identidade, a etnicidade do
negro, nos acercaríamos da compreensão do ser negro no Brasil, em cada contexto
cultural, social, econômico com suas respectivas variantes de acordo com as diversas
regiões do país.
Este trabalho se propôs a elucidar os aspectos da identidade étnica do
quilombo protestante do Mel da Pedreira. Procuramos compreender através do
elemento música, os fundamentos principais desta identidade protestante quilombola.
Por que a música? Historicamente foi o intermédio pelo qual os negros podiam se
comunicar. Voltando a questão dos direitos tolhidos, o simples direito a comunicação
em família e/ou em comunidade fora arrancado dos negros escravizados também no
Amapá. Uma das primeiras formas que se apropriaram os negros no intuito de se
reinventar e que deu sobrevida as comunidades foi utilizar os “ladrões” de improviso
das canções de marabaixo para terem contato com a vida comum, a vida cotidiana. A
música também, veículo pelo qual os negros extravasavam o sentido devastador de
solidão, tristeza e de suas diásporas: a saudade da mãe África. A música porque
precisavam dar um sentido comunitário a vida. Precisavam tomar decisões,
precisavam se organizar. E como fazê-lo sem se comunicar? Música por causa dos
144
raríssimos momentos de descontração e alegria que o negro aprisionado precisava
produzir. E qual elemento mais propício para propor a transformação de um ambiente
deprimente, opressor e caótico em ao menos pequenos flashes prazerosos? Sim! A
música que pode suscitar subsídios claros para o entendimento de quaisquer culturas.
A música é um dos mais elevados elementos que contribuem para o entendimento de
quaisquer culturas. Ela traz consigo em sua forma de expressão sonora toda a
identidade do povo que se manifesta por meio dela. A música é o canal pelo qual
compositores, músicos e artistas da dança e da representação podem trazer à tona
tudo o que se tem preservado em suas histórias pessoais, suas emoções e
lembranças. Analisá-la, pode sim trazer um entendimento profundo sobre um povo,
uma comunidade principalmente pelo fato da música deixar sobre o indivíduo um
rastro proveniente do conceito de ethos, o ethos da música.
Para que houvesse uma compreensão plena do indivíduo quilombola do Mel
da Pedreira, fez-se necessário estudar elementos complementares à música, nos
quais encontraríamos as demais características cotidianas da comunidade que
versam desde a localização geográfica, a circunvizinhança, a constituição da
comunidade, sua organização social, manutenção financeira, ócio e lazer, o hibridismo
religioso entre o catolicismo popular, a pajelança os rituais e festas de marabaixo e
batuque, a conversão ao protestantismo e o total tolhimento da cultura africana até o
reconhecimento como quilombolas e a titulação das terras. Todos esses aspectos
foram cruciais para a constituição da identidade étnica dos quilombolas do Mel que
fora encontrada na pesquisa. Além desses aspectos citados, o capítulo primeiro deste
trabalho analisou o comportamento do quilombola em sua rotina diária, a relação com
à terra que extrapola a sensação de pertencimento ao local mais de gratidão e
conexão com suas histórias de vida e acima de tudo as relações religiosas e de fé.
O marabaixo, o batuque suas danças, música, rituais, religiosidade, contextos
históricos, construção musical e de estilo, seus símbolos, padroeiros, santos e mitos
foram analisados categoricamente no capítulo dois, para que elencadas, mais adiante,
prováveis respostas a questões como: Por que o protestantismo proibiu os
quilombolas do Mel a se envolverem nas festas ou ao menos continuarem se
expressando artística e culturalmente através do marabaixo e do batuque? Por que a
nova fé sobreviveu, cresceu e se fortaleceu ao longo das décadas exigindo que os
145
quilombolas não vivessem sua cultura ancestral? E por qual razão voltariam as
práticas culturais de matriz africana depois de convertidos ao protestantismo?
No terceiro capítulo abordamos a história da música do quilombo antes e pós
conversão. As influências musicais de fora do contexto da comunidade, das emissoras
de rádio secular, das rádios evangélicas, das canções do Salmos e Hinos, a
convergência com a música gospel, a retomada do marabaixo e do batuque na
comunidade e nos cultos e a organização do departamento de música do quilombo do
Mel da Pedreira.
Concluo o terceiro capítulo abordando a identidade étnica dos quilombolas do
Mel, me apropriando da música que atualmente é uma espécie de Ode da
comunidade. As teorias e conceitos apresentados para construção de minha
abordagem, foram desenvolvidas por Cardoso de Oliveira e João Batista Borges
Pereira. Discorro sobre uma dupla identidade quilombola, cuja a primeira, está ligada
as raízes ancestrais, a cultura, a maneira de vida, com a cor da pele, a etnia e o ser
negro, e a sensação de pertencimento ao local e àquelas terras. A outra identidade, a
protestante. Que desenvolveu uma fé antagônica a que criam anteriormente, que os
fez mais ligados as questões espirituais que outrora, de acordo com os depoimentos
de todos os entrevistados. Explico que os quilombolas desenvolveram uma identidade
contrastiva bilateral, onde absorvem alguns aspectos da cada identidade elencada,
formando uma nova identidade: quilombola protestante.
As agruras resultantes das batalhas dos negros estão longe do fim. Afinal, as
próprias lutas estão em pleno desenvolvimento. Os próprios quilombolas do Mel
relatam serem vítimas do preconceito religioso, inclusive protestante porque, ainda
muitos evangélicos não os enxergam como parte do mesmo universo de fé.
Desejo que este trabalho contribua significativamente no entendimento da
identidade étnica desta comunidade, bem como para outros trabalhos
etnomusicológicos em ciências da religião.
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