marcos josegrei da silva
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Marcos Josegrei da Silva
O Direito Penal Econômico e o artigo 17 da Lei nº 7.492/86 Análise de suas elementares, circunstâncias e
conseqüências jurídico-penais
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada como requisito final para a obtenção do título de mestre em Direito Econômico e Social pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná.
Orientador: Prof. Dr. Rodrigo Sánchez Ríos
CURITIBA Agosto de 2006
Marcos Josegrei da Silva
O Direito Penal Econômico e o artigo 17 da Lei nº 7.492/86 Análise de suas elementares, circunstâncias e
conseqüências jurídico-penais
Dissertação apresentada como requisito final para a obtenção do título de mestre em Direito Econômico e Social pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná.
Prof. Dr. Rodrigo Sánchez Ríos Orientador
Prof. Dr. Vladimir Passos de Freitas Membro
Prof. Dr. Luiz Antônio Câmara Convidado
Curitiba, 29 de agosto de 2006
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor e do orientador.
Marcos Josegrei da Silva
Graduou-se em Direito na Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 1997. É Juiz Federal desde janeiro de 2000 e atualmente exerce a judicatura junto à 1ª Vara Federal Criminal da Subseção Judiciária de Foz do Iguaçu, Seção Judiciária do Paraná. Foi professor da Disciplina de Direito Penal na Faculdade de Direito de Curitiba e na Universidade Tuiuti do Paraná.
Ficha Catalográfica
Silva, Marcos Josegrei da
S586d 2006 O direito penal econômico e o artigo 17 da Lei nº
7.492/86: análise de suas elementares, circunstâncias e conseqüências jurídico-penais / Marcos Josegrei da Silva; orientador, Rodrigo Sánchez Ríos. – 2006.
135 f. ; 30 cm Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade
Católica do Paraná, Curitiba, 2006 Inclui bibliografia 1. Direito penal. 2. Direito econômico. 3. Brasil. Lei n.
7.492, de 16 de Junho de 1986. I. Sánchez Ríos, Rodrigo. II. Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Programa de Pós-Graduação em Direito. III. Título.
CDD 20. ed. – 341.5 341.378
AGRADECIMENTOS
Ao Professor Doutor Rodrigo Sánchez Ríos pelo apoio, orientação e, acima de
tudo, pela convivência respeitosa, cordial e fraterna que mais se acentuou neste
período de contato acadêmico freqüente.
A Maria Emília Loyola Ponestk, bibliotecária exemplar, pelo valoroso auxílio na
busca de obras que muito enriqueceram este trabalho, sem o que a pesquisa
certamente se ressentiria de conteúdo.
A Eva de Fátima Curelo, secretária do curso, por sua atenção e presteza ao longo
de todo o período.
Ao Programa de Aperfeiçoamento do Magistrado da Escola da Magistratura
Federal e à Corregedoria-Geral do Tribunal Regional Federal da 4ª Região pelo
apoio prestado para viabilizar a freqüência ao curso.
Especialmente, a minha dedicada e incansável esposa Bianca de Freitas Mazur,
pela compreensão, carinho, amizade, paciência e apoio em todos os momentos, a
quem aprendo a amar, respeitar e admirar cada dia mais.
Resumo
Silva, Marcos Josegrei da. O Direito Penal Econômico e o artigo 17 da
Lei nº 7.492/86 – análise de suas elementares, circunstâncias e conseqüências jurídico-penais. Curitiba, 2006. 135p. Dissertação de Mestrado – Programa de Pós-Graduação em Direito. Direito Econômico e Social. Pontifícia Universidade Católica do Paraná.
O Direito Penal Econômico e o artigo 17 da Lei nº 7.492/86 – análise de
suas elementares, circunstâncias e conseqüências jurídico-penais consiste no
estudo dos tipos contidos no citado artigo da Lei dos “crimes contra o sistema
financeiro”, que integra o Direito Penal Econômico. Este abarca bens jurídicos
merecedores de proteção penal de titularidade supra-individual, sucedendo
tradicionais dispositivos penais decorrentes do tripé vida-integridade física-
patrimônio. Desde sua entrada em vigor, os tipos contidos naquela lei,
destacando-se aquele objeto desta dissertação, ressentem-se de um estudo mais
aprofundado, devido à reduzida tradição deste em lidar com bens jurídicos de
titularidade predominantemente coletiva, bem como da historicamente pequena
abordagem destes delitos pela jurisprudência nacional. Com o incremento da
persecução criminal capitaneada pela criação de Varas Federais especializadas no
julgamento dessa espécie delitiva no país, e a instituição de núcleos específicos de
trabalho no âmbito do Ministério Público e da Advocacia, impõe-se o estudo
cientificamente orientado de seus dispositivos, à luz da teoria do Direito
Constitucional, Penal e Econômico. Assim, busca-se uma análise detalhada do
tipo em exame em face dos valores extraídos da Constituição da República,
notadamente decorrentes das garantias fundamentais e do capítulo da Ordem
Econômica, propondo-se, adiante, soluções mais consentâneas com a natureza
dessas práticas delitivas, guardada a proporcionalidade entre ação, bem jurídico e
resposta social esperada, objetivando a inserção, para além do encarceramento
celular, de outras modalidades de pena mais ajustadas aos ditames da pós-
modernidade, legitimando a atuação do Direito Penal na tutela destes bens
jurídicos em um Estado Democrático e Social de Direito.
Palavras-chave
Direito. Penal. Econômico. Financeiro. Constituição. Garantias. Vedações.
Estado. Legitimidade. Penas.
Abstract
Silva, Marcos Josegrei da. Penal Economic Law and the article 17 of Law
7492/86 – analysis of its legal-penal basis, circumstances and consequences. Curitiba, 2006. 135p. MSc Dissertation – Programa de Pós-Graduação em Direito. Direito Econômico e Social. Pontifícia Universidade Católica do Paraná.
Penal Economic Law and the Article 17 of Law 7492/86 – analysis of its
legal-penal basis, circumstances and consequences, consisting of the study of the
types contained in above-mentioned article of Law about “crimes against the
financial system”, which integrates the Economic Penal Law. The latter includes
legal assets which merit penal protection of supraindividual titleship, succeeding
traditional penal devices resulting from the life-physical integrity-patrimony
tripod. Since it came into force, the types contained in that law, with emphasis
given to the one which is the object to this dissertation, resent a deeper study, due
to the reduced tradition for dealing with legal assets of predominantly collective
titleship, as well as the historically limited extent to which these crimes are
addressed by national jurisprudence. With the increase of criminal persecution
headed by the creation of Federal Jurisdictions specialized in judging that type of
crime in the country, and the establishment of specific work nuclei in the area of
the Department of Justice and of the Practice of Law, the need arises for a
scientifically oriented study of its mechanisms, in the light of the theory of
Constitutional, Penal and Economic Law. In this way, we seek a detailed analysis
of the crime studied in view of values extracted from the Constitution of the
Republic, notably resulting from fundamental rights and from the chapter on
Economic Order, proposing, further on, solutions more suitable to the nature of
those criminal practices, with a proportionality maintained between action, legal
asset and expected social response, having as an objective the implantation,
beyond the cellular imprisonment, of other modalities of penalties more
appropriate to post-modern principles, legitimating the performance of Criminal
Law in the tutelage of these legal assets in a Democratic and Social State of Law .
Keywords
Law. Penal. Economic. Financial. Constitution. Rights. Prohibition. State.
Legitimacy. Penalties.
Sumário
Introdução................................................................................................................10
1. Constituição, Economia e Bem Jurídico ...........................................................13
1.1 O Direito Fundamental ao Desenvolvimento, a Constituição
Federal e a Tutela da Ordem Econômica .........................................................13
1.2 O Direito Econômico, Monetário e o Sistema Financeiro Nacional.............19
1.3 O Bem Jurídico como Objeto de Tutela Penal e a Constituição
Federal..............................................................................................................26
1.4 A Economia como Bem Jurídico Penalmente Protegido: o Direito
Penal Econômico ..............................................................................................32
2. O Direito Penal Econômico ................................................................................39
2.1 Origem e Desenvolvimento Histórico..........................................................39
2.2 Âmbito de Abrangência e Limites ...............................................................45
2.3 Os Crimes contra o Sistema Financeiro: Generalidades ............................53
3. O Artigo 17, caput e parágrafo único, I, da Lei de Crimes contra o
Sistema Financeiro Nacional..................................................................................59
3.1 Antecedentes Históricos e o Âmbito de Incidência do Tipo ........................59
3.2 Os Sujeitos Ativos do Crime e o Artigo 25 da Lei nº 7.492/86 .................. 71
3.3 O Princípio da Lesividade e o Crime Capitulado no Artigo 17 da
Lei: a Aplicação do Princípio da Insignificância e o Caso das
Administradoras de Consórcio ........................................................................ 77
4. Direito Penal Econômico, Crimes contra o Sistema Financeiro e
(re)Legitimação do Direito Penal: atualidades e perspectivas .......................... 90
4.1 Um Novo Paradigma para o Direito Penal? .............................................. 90
4.2 As Respostas Criminais Adequadas para os Crimes contra o
Sistema Financeiro ......................................................................................... 98
4.3 A Neocriminalização, a Intervenção Penal Econômica e a
(re)Legitimação Social do Direito Penal na Pós-Modernidade........................112
Conclusão ..............................................................................................................119
Referências Bibliográficas ...................................................................................126
INTRODUÇÃO
A escolha do tema em questão decorre de sua atual importância no âmbito
do Direito Penal, em um dos seus ramos denominado Direito Penal Econômico,
sobretudo em um momento histórico em que se vislumbra um incremento da
persecução criminal envolvendo a prática de delitos dessa espécie, com a
especialização de Varas Federais e o conseqüente despertar da comunidade
acadêmica e dos operadores do direito em geral para a necessidade de um maior
aprofundamento dos estudos em torno das particularidades que cercam os
elementos e institutos contidos nos chamados crimes econômicos, dentre os quais
avultam os denominados ‘crimes de colarinho branco’.
Nesse passo, verifica-se que o adequado estudo dos preceitos e tipos penais
insculpidos na Lei nº 7.492/86, em particular no seu artigo 17 e inciso I,1 à luz dos
dispositivos constitucionais contidos na Carta de 1988, viabiliza a sua correta
aplicação, auxiliando na construção de modernos paradigmas de justificação,
interpretação e resposta jurídica por parte do Direito Penal nacional, ao tempo em
que se contribui para a superação de modelos criminais convertidos em
verdadeiros dogmas, dentre os quais o manejo exacerbado da pena de privação de
liberdade como resposta social à prática delitiva, o que é, na maior parte dos
casos, incompatível com a natureza e lesividade das condutas perpetradas nos
crimes econômicos, em especial aquelas contidas no artigo 17 da Lei nº 7.492/86.
Demais disso, a análise aprofundada dos tipos penais em questão faz-se
indispensável para que se busque verdadeira relegitimação do Direito Penal
perante a coletividade e a comunidade acadêmica, respondendo assim às
modernas demandas sociais decorrentes de novos tipos penais que reclamam
1 Art. 17. Tomar ou receber, qualquer das pessoas mencionadas no art. 25 desta lei, direta ou indiretamente, empréstimo ou adiantamento, ou deferi-lo a controlador, a administrador, a membro de conselho estatutário, aos respectivos cônjuges, aos ascendentes ou descendentes, a parentes na linha colateral até o 2º grau, consangüíneos ou afins, ou a sociedade cujo controle seja por ela exercido, direta ou indiretamente, ou por qualquer dessas pessoas: Pena - Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem: I - em nome próprio, como controlador ou na condição de administrador da sociedade, conceder ou receber adiantamento de honorários, remuneração, salário ou qualquer outro pagamento, nas condições referidas neste artigo; II – omissis.
11
apreciação por uma ótica ainda pouco desenvolvida desse ramo do direito,2
efetivando uma leitura constitucional dos delitos em espécie, evitando-se, assim, a
perpetuação de injustiças decorrentes da incorreta aplicação de suas disposições,
tanto pela violação da cláusula de proibição de excesso quanto da de proibição de
proteção insuficiente, como implicação do próprio Estado Democrático e Social
de Direito, suas funções e configuração, em face da ausência de estudo
aprofundado acerca das elementares e circunstâncias que envolvem essas espécies
delitivas.
A Lei nº 7.492/86 instituiu os “crimes contra o Sistema Financeiro
Nacional” (também conhecidos como “crimes do colarinho branco”) e situa-se no
campo do chamado Direito Penal Econômico, que se vem desenvolvendo com
maior ênfase ao longo das últimas três décadas no Brasil. Este traz consigo uma
nova geração de bens jurídicos elencados como merecedores de proteção jurídico-
penal, de viés supra-individual, sucedendo os tradicionais dispositivos assentados
no tripé vida-integridade física-patrimônio, seguidos de outros de nítida titulação
individual.
Sem o objetivo de reduzir a importância desses últimos, os preceitos
decorrentes do Direito Penal Econômico vêm a eles se agregar, inaugurando, por
assim dizer, uma outra geração de bens objeto de alcance penal. Ocorre que, desde
sua entrada em vigor, os tipos contidos naquela lei, destacando-se aqueles que são
objeto desta dissertação, ressentem-se de um estudo mais aprofundado, o que se
pode facilmente verificar em face da escassa bibliografia nacional existente a
respeito. A origem dessa circunstância está, de um lado, na reduzida tradição de o
Direito Penal em lidar com bens jurídicos fluidos, de titularidade cuja
identificação é predominantemente coletiva e, de outro lado, na pequena
repercussão até hoje que estes delitos tiveram na jurisprudência nacional, tendo
2 A legitimidade do Direito Penal como meio de expressão e controle social de há muito vem sendo objeto de questionamento por parte dos estudiosos e operadores jurídicos. Boa parte dessas interrogações decorrem dos efeitos maléficos oriundos da aplicação da pena de privação da liberdade ao condenado. A par disso, questiona-se a forma de seleção dos bens jurídicos que são objeto de tutela desse ramo do Direito – como já se disse usualmente expressa por valores de titularidade individual –, que historicamente suscita discussões acerca de sua real importância e credibilidade no seio social, uma vez que, segundo alguns autores, tem servido exclusivamente para a opressão das classes menos favorecidas e em favor da manutenção do status quo vigente. Nessas condições, muito se discute sobre aquele que seria o verdadeiro assim chamado ‘público-alvo’ do Direito Penal em seu pólo passivo, composto majoritariamente de indivíduos de reduzida capacidade econômica, recrutados na base da pirâmide social. Nesse sentido, dentre outros: BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. p. 175-196.
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surgido alguns precedentes somente em meados da década de 1990. Com isso,
renova-se o desafio de se decomporem, cientificamente, tipos penais introduzidos
na legislação de regência no último quarto de século, que, como já se disse,
contemplam bens jurídicos de viés econômico supra-individual, potencialmente
ofendidos por indivíduos que se encontram no topo, ou bem próximo dele, da
pirâmide social.
Assim, estudam-se inicialmente a conformação constitucional da Ordem
Econômica e do Sistema Financeiro e do próprio Estado Democrático e Social de
Direito para, adiante, se reconhecer a importância do bem jurídico para o Direito
Penal e a sua correta identificação nas normas jurídicas criminais. Esgotada esta
fase, examina-se o Direito Penal Econômico, suas características, histórico e bens
objeto de tutela, identificando-se dentre eles o Sistema Financeiro Nacional, no
bojo do qual se localiza o artigo 17 e parágrafo único, I da Lei nº 7.492/86, objeto
de acurado estudo neste trabalho.
Após a análise, portanto, de todas as elementares e circunstâncias do
mencionado artigo, expondo-se as divergências doutrinárias existentes sobre a
própria viabilidade teórica da existência de delitos desta natureza, propõem-se
soluções para uma contradição evidenciada em uma duplicidade de postura do
legislador que, de um lado, contempla novas condutas incriminadas e, de outro,
propõe soluções e respostas a estas condutas de há muito superadas no âmbito do
pensamento jurídico nacional e internacional, evidenciadas no recrudescimento da
pena de encarceramento, em absoluto descompasso, muitas vezes, com os
princípios constitucionais da proporcionalidade, da necessidade e da suficiência.
Isso contribui para a deslegitimação social desse ramo do Direito, gastando
preciosa oportunidade de se resgatá-la e, mesmo, reconstruí-la à luz dos anseios
da comunidade acadêmica e da sociedade em geral.
Em síntese, examina-se, a partir da revisão da bibliografia disponível, o tipo
em face dos valores constitucionais extraídos da Constituição da República de
1988, notadamente aqueles insertos nas garantias fundamentais e no capítulo da
Ordem Econômica, propondo-se, ao fim, soluções mais consentâneas com a
natureza das práticas delitivas em apreço, guardada a proporcionalidade entre
ação, resultado e resposta social esperada.
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1 CONSTITUIÇÃO, ECONOMIA E BEM JURÍDICO
1.1. O DIREITO FUNDAMENTAL AO DESENVOLVIMENTO, A CONSTITUIÇÃO FEDERAL E A TUTELA DA ORDEM ECONÔMICA
A partir da constituição da ONU em 1945 inaugura-se a história de sua
preocupação com as questões referentes ao desenvolvimento, como parte dos
direitos humanos. Inicia com a Carta de São Francisco e a Declaração Universal
dos Direitos do Homem de 1948. Até a década de 1960 os termos
‘desenvolvimento’ e ‘crescimento econômico’ eram considerados sinônimos. A
partir de então, passa-se a observar uma sensível modificação em seu conteúdo,
impulsionado por movimentos multilaterais capitaneados pela Organização das
Nações Unidas. Exemplos disso são a instituição, em 1961, do 1º Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento, reconhecendo o subdesenvolvimento
como um problema global, que exige a solidariedade internacional para sua
solução; a adoção do Pacto Internacional relativo aos Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais (1966), em que surgem como conceitos-chave a
autodeterminação dos povos e o direito das pessoas a uma condição de vida
adequada; e a proclamação pela ONU da Declaração sobre o Progresso e o
Desenvolvimento no Campo Social (1969), em que se reafirma a responsabilidade
internacional quanto ao desenvolvimento global. Durante a 2ª Década das Nações
Unidas para o Desenvolvimento (1971-1980) continua a se modificar o conceito
de desenvolvimento, aliando-se a necessidade de crescimento econômico à de
desenvolvimento cultural e social no plano nacional e internacional para defini-lo,
o que é, por fim, complementado na 4ª Década das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (1991-2000), em que, a partir dos postulados da Declaração
sobre Cooperação Econômica Internacional de 1990, se evidencia a relevância de
um clima econômico internacional favorável, de políticas nacionais apropriadas e
da valorização dos recursos humanos para se atingir o desenvolvimento.3
3 PERRONE-MOISÉS, Cláudia. Direitos Humanos e Desenvolvimento: a contribuição das Nações. In AMARAL JR., Alberto; et alli. O Cinqüentenário da Declaração Universal dos Direitos do Homem, p. 179-196.
14
Seguindo esta linha evolutiva, percebe-se que o termo ‘desenvolvimento’
adquire, na Comunidade Internacional, um novo significado, ultrapassando o
puramente econômico para ganhar outras conotações, pressupondo uma
aproximação integrada (econômica e social) e uma ação global. O direito ao
desenvolvimento, pois, compreende-se como um dos direitos fundamentais do
Homem, ultrapassando a mera petição de princípios que, de forma passiva,
norteava os Estados, para se concretizar em uma atividade fundada no conceito de
solidariedade e de justiça econômica distributiva. É tido, desde então, como um
direito de crédito, oponível contra terceiros. É visto como um meio a serviço de
uma finalidade que é o desenvolvimento humano. O direito ao desenvolvimento
inclui-se entre os direitos humanos e liberdades fundamentais, somente se
justificando nesse contexto. A idéia de desenvolvimento passa a se centrar na de
desenvolvimento social, focado no ser humano.4
No Brasil, o art. 174 da CF/88 caracteriza a passagem de um Estado ausente
para um Estado presente no setor econômico.5 Esta presença é reforçada pelo art.
3º da mesma Carta. O direito ao desenvolvimento econômico é, pois, direito
fundamental. Os fins da República delimitam a interpretação dos dispositivos da
Constituição, evidenciando a opção por um verdadeiro Estado Social e
Democrático de Direito, cuja característica diferenciadora do mero Estado
Democrático de Direito reside no fato de que aquele é “positivamente atuante para
ensejar o desenvolvimento (não o mero crescimento, mas a elevação do nível
cultural e a mudança social) e a realização de justiça social (é dizer, a extinção das
injustiças na divisão do produto econômico)”.6
A produção da riqueza se orienta pelo princípio distributivo da ação
interventiva do Estado na ordem econômica, observado o princípio do
desenvolvimento nacional. O Estado, por sua atuação, materializa os princípios e
organiza a produção, neutralizando tensões inerentes ao processo produtivo entre
o público e o privado, entre democracia e capitalismo. Nesse sentido é que se
investiga a função do Estado dentro da realidade social concreta, no bojo do que o
desenvolvimento econômico é garantia de um melhor nível de vida coordenada
4 Ibid., p. 179-196. 5 Nada obstante a Constituição Federal de 1967, com a redação da Emenda Constitucional nº 1 de 1969, disciplinasse a questão da Ordem Econômica em quatorze artigos, sem entretanto alterar a sistemática constitucional adotada no Brasil desde 1934, marcada pela ausência estatal na regulação e planificação econômicas em termos de normatividade constitucional.
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com um equilíbrio na distribuição de renda e de condições de vida mais saudáveis.
O desenvolvimento, por seu turno, tem de estar relacionado com a melhora da
vida e das liberdades e não somente com o aumento da riqueza produzida. É o
crescimento a serviço do homem, já que multiplicidade de bens sem divisão justa
ou possibilidade razoável de adquiri-los não é fator de paz social.7
Esse modo de enxergar o desenvolvimento é permitido pela interpretação
dos princípios da ordem econômica constitucional, concluindo-se que o art. 174
da nossa Constituição Federal assenta-se em: apresentação de um direito
fundamental ao desenvolvimento nacional planejado e descrição de um dever do
Estado em promover o desenvolvimento econômico nacional, com qualidade de
vida para cada cidadão. Isso é feito por intermédio do que se convencionou
denominar em direito como política pública, que é o planejamento qualificado no
mencionado art. 174 da CF. Nesse passo, o termo ‘desenvolvimento nacional’ é
mais do que indicativo e menos do que cogente, é determinante. Encerra conteúdo
de dirigir, coordenar, impor a relevância de determinadas condições e aspectos
essenciais com vistas ao desenvolvimento nacional, condicionando o econômico
ao jurídico.8
Tem-se a possibilidade de controle da ação estatal sob a égide deste
mandamento nuclear. Volta-se à melhoria das condições sociais que repercutirão
sobre todos, sem exclusão, e tem em conta, além do progresso econômico, a
elevação de níveis educacionais, culturais e tecnológicos, diminuição de desníveis
sociais e solução de problemas de saúde, como superação daquela concepção cujo
auge se deu no curso do século XIX, até as primeiras três décadas do século XX,
em que o mercado auto-regulável era considerado instituto natural, surgido a
partir das realizações espontâneas dos homens, em que reinava o entendimento
segundo o qual a apropriação privada – e a atividade econômico-empresarial em
geral – caracterizava um fim em si mesma, marcada pela pura e simples
acumulação de ativos, visto que uma sociedade assim seria o objetivo de todo o
progresso, porque se fundamentava nas características imutáveis da raça humana.
Assim, o sistema econômico deixa de organizar a lei da sociedade, garantindo-se
o primado desta sobre aquele. O mercado deixa de ser auto-regulável, uma vez
6 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público, p. 55. 7 SILVA, Guilherme A. C. Direito ao Desenvolvimento, p. 62-66. 8 Ibid., p. 66-67.
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que dele se retira o trabalho, a renda e o dinheiro, os quais passam a ter controle e
regulação social. A retirada desses fatores das mãos da auto-regulação do mercado
implica o reconhecimento de que eles não mais se enquadram no conceito de
‘mercadoria’ em que até então estavam situados.9
Nesse contexto histórico ainda atual, o constituinte, a par de estabelecer a
execução de políticas públicas, dotou o Estado de inúmeros instrumentos capazes
de implementá-las, a saber, dentre outros: o art. 5º, XXIX (proteção da criação
industrial e obra intelectual); art. 21, IX (planos nacionais e regionais de
ordenação do território e desenvolvimento econômico e social); art. 21, XX
(diretrizes para desenvolvimento urbano e redução de desigualdades regionais);
art. 43 (obrigatoriedade dos mandatários de apontar o desenvolvimento nacional
orientado e racional, superando, inclusive, os óbices decorrentes do pacto
federativo); art. 151 (tributação e seus critérios); art. 159, I, c (transferência de
recursos tributários para superação de desigualdades regionais); art. 23, § único
(cooperação entre entes federados para equilíbrio no desenvolvimento e bem-estar
nacional); art. 35, III (intervenção nos casos de descumprimento de aplicação
constitucional de verbas); art. 48 (competência do Congresso Nacional para
programas de desenvolvimento); art. 170, VI (defesa do meio ambiente); art. 171
(benefícios fiscais para empresas nacionais de atividade estratégica e
desenvolvimento de tecnologias); art. 174 (planejamento econômico para o
desenvolvimento nacional equilibrado); art. 180 (estímulo ao turismo); art. 182
(desenvolvimento urbano para desenvolvimento nacional); art. 192 (sistema
financeiro nacional para servir aos interesses da coletividade e ao
desenvolvimento nacional); art. 219 (mercado interno como patrimônio nacional a
ser estimulado); art. 239 (repartição do PIS para financiamento de projetos de
desenvolvimento); art. 34, § 11, do ADCT (Banco de Desenvolvimento do
Centro-Oeste para cumprir os arts. 159, I, c e 192, § segundo, da CF).10
9 POLANYI, Karl. A Grande Transformação, p. 289-301. 10 Merece registro a circunstância de que efetivamente a Constituição Federal de 1988 inovou significativamente quanto ao destaque (é a primeira vez em que o ‘Título’ Ordem Econômica dividiu-se em quatro ‘capítulos’, distribuindo-se em vinte e dois artigos a tratar do tema), relevância e instrumentos de que dotou o Estado com relação à atividade econômica, comparativamente às Cartas que a antecederam. Entretanto, convém ressaltar que todas as Constituições brasileiras, desde 1934, seguindo a evolução histórica experimentada mundialmente pelas razões ora destacadas, trataram da chamada ‘ordem econômica’, atribuindo em maior ou menor escala relevância estatal no planejamento econômico nacional e sua implementação. Para um panorama mais detalhado acerca da matéria veja-se: SOUZA, Washington Peluso Albino de. A
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Portanto, as políticas públicas, tais como as acima mencionadas, são normas
cogentes e diretivas, voltadas ao Poder Público, cabendo a este implementá-las,
com publicidade, transparência e objetividade, motivadamente, transmutando-se,
por isso, de questão política em questão jurídica, podendo ser contrastadas perante
o Poder Judiciário, seja por ação errada, seja por omissão indevida.11 É por meio
delas que o Estado tem a obrigação de direcionar, organizar e regular a atividade
empresarial que, como toda e qualquer atividade exercida no País, deve estar
conforme a Carta Magna, os objetivos nacionais e a implementação dos direitos
humanos, sem que isso implique desprezo ao que se entende por liberdade e ao
exercício dos poderes inerentes à propriedade, em uma verdadeira compreensão
da ação econômica como meio e não como fim, consentânea com o entendimento
que se vem consolidando desde o fim da primeira quadra do século XX. Afinal, “a
Constituição de 1988 consagrou sistema capitalista, fundado na propriedade
privada dos meios de produção e no livre exercício das atividades econômicas.
Mas foi atribuída ao Estado a competência para intervir no domínio econômico”.12
Nesse contexto merece destaque a noção de política econômica – uma das
políticas públicas – que tal como se conhece atualmente remonta ao pós Primeira
Guerra, intensificando-se a partir da crise de 1929 nos Estados Unidos, sendo
conseqüência direta da concentração de empresas e relacionamento de massas, “a
exigir a interferência de um intermediário a influir no direcionamento e condução
da economia”.13 Surgiram, então, medidas de política econômica adotadas pelos
Estados. Estas passaram a interessar ao Direito, à vista do conjunto sistemático de
normas destinadas a reger a economia, emanadas pelo ente estatal. Daí, então, o
Direito Econômico, que deriva dos princípios constitucionais insertos na Ordem
Econômica de nossa Carta Magna,14 dos quais destacam-se, além dos
expressamente dispostos no Título VII, sobretudo em seu art. 170, os seguintes:
dignidade da pessoa humana; soberania nacional; propriedade privada; função
social da propriedade; valores sociais do trabalho e livre iniciativa; garantia do
desenvolvimento nacional; livre concorrência; defesa do consumidor; defesa do
meio ambiente; construção de uma sociedade livre, justa e solidária; redução das
experiência brasileira de Constituição Econômica, in Revista de Informação Legislativa nº 102, p. 21-49. 11 SILVA, G. A. C., Ob. cit., p. 121-128. 12 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo, p. 466. 13 FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Direito Econômico, p. 24.
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desigualdades regionais e sociais; pleno emprego; tratamento favorecido para
empresas brasileiras de pequeno porte; proteção da empresa nacional; garantia do
direito de greve; erradicação da pobreza.
A esse propósito, as palavras de GRAU:
A ordem econômica (mundo do dever-ser) produzida pela Constituição de 1988 consubstancia um meio para construção do Estado Democrático de Direito que, segundo o artigo 1º do texto, o Brasil constitui. Não o afirma como Estado de Direito Social – é certo – mas a consagração dos princípios da participação e da soberania popular, associada ao quanto se depreende da interpretação, no contexto funcional, da totalidade dos princípios que a conformam (a ordem econômica), aponta no sentido dele.15
Atualmente, considerando-se, pois, o Estado de Direito Democrático e
Social em que se vive, impõe-se a observância, por parte das autoridades que
exercem os poderes econômico e monetário, dos princípios constitucionais
descritos, calcados nos valores da livre iniciativa, da dignidade da pessoa e da
promoção do bem comum, o que, como já se teve ocasião de mencionar, justifica
a própria intervenção estatal indireta (ou normativa) e direta16 neste ramo das
relações sociais. De todo modo, evidentemente, esta deve respeitar as diretrizes da
necessidade e da proporcionalidade, com vista a que se logre o atingimento dos
objetivos sociais contidos em nossa Constituição visto que, como disse Jean Paul
VEIGA DA ROCHA, “em todos esses casos, são criadas pesadas restrições a
princípios jurídicos constitucionais, como a autonomia da vontade, liberdade
14 GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988, p. 24. 15 Ibid., p. 274. Anote-se que, conquanto não se possa de fato considerar que nossa Carta Constitucional expressamente assume o Estado brasileiro como um Estado Social, os preceitos descritos efetivamente apontam para que se perceba nítida e efetiva conformação política desta natureza, conforme se deduz do que até agora foi apresentado. Daí, pois, o entendimento adotado neste trabalho de que se tem no Brasil atual verdadeiro Estado Democrático de Direito e Social, em face da opção constitucional adotada em 1988, nada obstante ainda se esteja intentando a concretização de boa parte dos direitos reconhecidos na Constituição Federal vigente. A propósito da dificuldade desta concretização, relevante é o trabalho de STRECK, Lênio em seu ‘A concretização de direitos e a validade da tese da Constituição dirigente em países de modernidade tardia’ in NUNES, Antônio José Avelãs; COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Org.). Diálogos Constitucionais: Brasil/Portugal, p. 301-371. 16 A distinção nos é fornecida por JUSTEN FILHO (ob. cit.) que cita como fundamento da intervenção indireta o art. 174 da CF/88 e da intervenção direta os arts. 173 e 175, ambos da CF/88.
19
contratual, propriedade privada, livre iniciativa, livre concorrência e mesmo ao
princípio federativo”.17
1.2. O DIREITO ECONÔMICO, MONETÁRIO E O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL
Dessa matriz constitucional é que deriva a noção de Direito Econômico que,
de acordo com Fábio Konder COMPARATO, pode ser definido como “o conjunto
das técnicas jurídicas de que lança mão o Estado contemporâneo na realização de
sua política econômica”.18 Acorde com Washington Peluso Albino de SOUZA,
este é “o ramo do Direito, composto por um conjunto de normas de conteúdo
econômico e que tem por objeto regulamentar as medidas de política econômica
referentes às relações e interesses individuais e coletivos, harmonizando-as – pelo
princípio da ‘economicidade’ – com a ideologia adotada na ordem jurídica”.19
Ainda, merecem relevo as palavras de Celso BASTOS, para quem:
O Direito Econômico surgiu a partir do desenvolvimento de um ordenamento jurídico destinado a regular a intervenção do Estado na Economia. Esse desenvolvimento se deu precipuamente a partir da noção de ‘Estado do Bem-Estar Social’ (Welfare State), é dizer, após a Primeira Guerra Mundial. Pode-se conceituar o Direito Econômico como sendo o ramo autônomo do direito que se destina a normatizar as medidas adotadas pela Política Econômica através de uma ordenação jurídica, é dizer, a normatizar as regras econômicas, bem como a intervenção do Estado na economia.20
Na mesma ordem de idéias Geraldo de Camargo VIDIGAL afirma que:
O Direito Econômico é a disciplina jurídica de atividades desenvolvidas nos mercados, visando a organizá-los sob a inspiração dominante do interesse social. Seu objeto não exaure as relações de mercado, que, enquanto prevalentemente inspiradas nas soluções da autonomia de vontade, desenvolvem-se no plano do Direito Comercial. Orientado o Direito Econômico teleologicamente pelos ideais do Desenvolvimento e do Bem-Estar, marcado pelos métodos nascidos na macroanálise da evolução dos mercados, preocupado com a disciplina de variáveis comportamentais e instrumentais, seu objeto reclama consideração minuciosa.21
17 ROCHA, Jean Paul C. Veiga da. O Controle de Constitucionalidade da Capacidade Normativa de Conjuntura do Conselho Monetário Nacional e do Banco Central: O Caso do Fundo Garantidor de Créditos (FGC), Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, p. 118-119. 18 COMPARATO, Fábio Konder. O Indispensável Direito Econômico,Revista dos Tribunais, v.353, p.22. 19 SOUZA, Washington Peluso Albino de. Direito Econômico, p. 3. 20 BASTOS, Celso. Curso de Direito Econômico, p. 51. 21 VIDIGAL, Geraldo de Camargo. Teoria Geral do Direito Econômico, p. 44.
20
Evidentemente, outras definições há acerca do real significado do Direito
Econômico como ramo da ciência jurídica, destacando-se a discussão existente
sobre a própria denominação da disciplina, travada a partir da alegada distinção
conceitual existente entre aquele e o chamado Direito da Economia, acirrando-se a
divergência intelectual sobretudo entre franceses e italianos, com estes, em regra,
entendendo ser de melhor técnica a segunda denominação e aqueles optando pela
primeira. Enfim, atualmente, a questão parece estar melhor definida, concluindo-
se que o chamado Direito Econômico se caracterizaria pelo seu objeto e o Direito
da Economia pela especificidade das normas que produz, não havendo, dessa
forma, contraposição conceitual relevante entre um e outro.22
Claro está que os autores citados adotam um conceito restrito de Direito
Econômico, uma vez que o entendem destinado a solucionar questões postas pela
intervenção do Estado nas relações econômicas, não acolhendo em sua obra o
chamado conceito amplo, que reconhece a existência deste ramo jurídico em toda
a regra que tenha sido editada para reger relações humanas de índole econômica.23
De qualquer modo, adotando-se seja o conceito amplo, seja o conceito restrito, o
Direito Econômico compreende também o chamado direito monetário, que
representa o conjunto de normas aplicáveis à moeda, entendida esta tanto como
instrumento de pagamento, abrangendo o curso legal e o curso forçado (moeda de
liquidação), quanto como denominador comum de valores (unidade de conta),
abrangendo os índices ou indexadores24. Este passou, a partir da década de 1920, a
ser tratado na doutrina estrangeira “com os trabalhos de Arthur Nussbaum, na
Alemanha, e Tullio Ascarelli, na Itália, mas só começou a preocupar os juristas
brasileiros a partir da década de 1950, quando se admitiu a existência, por parte do
Estado, de um verdadeiro poder monetário”.25
O Estado, a partir do reconhecimento da inexistência de uma moeda estável
e, por conseqüência, da ocorrência da inflação, passou a interferir nas relações
patrimoniais, antes desenvolvidas apenas entre o credor e o devedor, fixando o
valor da moeda e o índice e redimensionando as prestações das partes.
22 FONSECA, J. B. L. da. Ob. cit., p. 12-13. 23 Ibid., p. 13. 24 WALD, Arnoldo. O Novo Direito Monetário: Os Planos Econômicos, o FGTS e a Justiça, p. 35-36. 25 Ibid., p. 35-36.
21
Imprescindível, pois, a atuação do direito monetário, afirmando-se que “os limites
entre os interesses individuais e o aparente interesse geral, entre o patrimônio
individual, que deve ser resguardado, e a necessidade de combater a inflação e de
garantir a paz social é tarefa difícil, tornando-se o calvário, não só dos credores,
mas também dos juristas, dos advogados e, especialmente, dos juízes”.26
Com relação especificamente à chamada política monetária pode-se afirmar
que ela se insere em um grupo de quatro políticas que se devem identificar com a
política econômica global de um determinado Estado, a saber: política fiscal,
cambial e de rendas, além, é claro, da própria política monetária. A política
econômica global deve estar de acordo com os objetivos desse Estado.27 Tais
objetivos independem de uma ou outra corrente ideológica que,
momentaneamente, ocupe a posição de governo, pois, como vimos, têm eles
assento constitucional.28 Assim, devem sempre consistir “em promover o
desenvolvimento econômico, garantir o pleno emprego e sua estabilidade,
equilibrar o volume financeiro das transações econômicas com o exterior,
estabilidade de preço e controle da inflação, promover a distribuição da riqueza e
das rendas”.29
A política monetária pode ser definida “como o controle da oferta da moeda
e das taxas de juros que garantam a liquidez ideal de cada momento
econômico”.30 Segundo Henrique MARINHO “é, sem dúvida, um importante
instrumento por intermédio do qual as autoridades governamentais procuram atuar
com a finalidade de promover a estabilidade econômica do país. Quanto mais
desenvolvido é o sistema financeiro, mais eficiente se torna a utilização de
instrumentos tradicionais de controle monetário”.31
A respeito dos mencionados instrumentos podem eles ser elencados na
seguinte ordem: recolhimentos compulsórios (depósitos compulsórios),
redesconto (empréstimo de liquidez ou assistência financeira de liquidez),
26 Ibid., p. 35-36. 27 No ponto, ao abordar a importância da noção de política econômica, após defini-la, José Nabantino RAMOS afirma que “contrariamente ao que se tem afirmado, não são as forças econômicas que governam a sociedade, mas a Política, que por intermédio do Direito domina o econômico”, aduzindo ainda que “para realizar a sua Política Econômica é que o Estado dirige a Economia, com os poderes absolutos de que dispõe”. Sistema Brasileiro de Direito Econômico, p. 96. 28 Relembre-se, a propósito, o disposto no art. 3º da Constituição Federal de 1988. 29 FORTUNA, Eduardo. Mercado Financeiro: Produtos e Serviços, p. 33. 30 Ibid., p. 33. 31 MARINHO, Henrique. Política Monetária no Brasil, p. 37.
22
operações de mercado aberto e controle e seleção de crédito. O primeiro regula o
multiplicador bancário, imobilizando uma parte maior ou menor dos depósitos,
restringindo ou alimentando o processo de expansão dos meios de pagamento; o
segundo é o socorro que o órgão de centralização bancária oficial fornece aos
bancos para atender a suas necessidades momentâneas de caixa, fazendo com que
os meios de pagamento sejam reduzidos ou expandidos; o terceiro é o mais ágil
deles e, por seu intermédio, são permanentemente reguladas a oferta monetária e o
custo primário do dinheiro na economia, manipulando as taxas de juros de curto
prazo e garantindo a liquidez dos títulos públicos, por meio da negociação do
mercado de tais títulos; o quarto constitui um instrumento de restrição ao livre
funcionamento das forças de mercado, controlando o volume e o destino do
crédito, taxas de juros, bem como limites e condições de créditos.32
No Brasil, até 1964 não existia controle monetário rigoroso, limitando-se a
política respectiva à arrecadação de encaixes compulsórios e concessão de
redescontos aos bancos por parte do Banco do Brasil. Segundo Henrique
MARINHO:
Apesar disso, a base monetária fugia ao seu controle, já que as decisões de programação orçamentária estavam sob responsabilidade do governo federal, enquanto a política cambial era controlada pelo Ministério da Fazenda, tornando ineficiente qualquer tentativa de estabelecimento de metas de controle orçamentário, uma vez que não havia interdependência de objetivos.33
Esclareça-se que no âmbito daquele Ministério da Fazenda criara-se a
Superintendência da Moeda e do Crédito (SUMOC), por meio do Decreto n.º
293/45, objetivando exercer o controle monetário, atuando como órgão
consultivo, cujo poder de decisão era na prática bastante reduzido, incumbindo,
como se citou, ao Banco do Brasil a execução do rudimento de política monetária
até então existente. Somente a partir daquele ano, com o advento da Lei nº
4.595/64, que instituiu o Sistema Financeiro Nacional, é que se passou a adotar as
políticas descritas.
A partir daí, portanto, se inaugura uma nova fase na história do Direito
Econômico e do Direito Monetário no Brasil, com a criação das chamadas
autoridades monetárias e a definição de suas competências legais.
32 FORTUNA, E. Ob. Cit., p. 33-34. 33 MARINHO, H. Ob. Cit., p. 38.
23
Nas palavras de Henrique MARINHO:
O Sistema Financeiro Nacional é composto por dois principais grupos institucionais: as autoridades monetárias, que são responsáveis pelo funcionamento do sistema, fiscalizando-o e regulando sua atuação através de normas de interesse da Economia Nacional, e as instituições financeiras, que são responsáveis pela intermediação entre os que poupam e investem, operando no sistema em conformidade com as orientações traçadas pelas autoridades monetárias. A Lei n.º 4.595, de 31.12.64, estruturou o atual Sistema Financeiro, delimitando áreas de atuação das instituições componentes do Sistema Financeiro, limitando-o quanto à captação e aplicação de recursos específicos, de modo que umas não interfiram nas operações das outras. As autoridades monetárias são o Banco Central do Brasil e o Conselho Monetário Nacional. São consideradas autoridades de apoio a Comissão de Valores Mobiliários, o Banco do Brasil, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), e a Caixa Econômica Federal. As instituições financeiras são os bancos comerciais, demais bancos de desenvolvimento, cooperativas de crédito, sociedades de crédito, financeiras, DTVM, corretoras, sociedades de arrendamento mercantil, de crédito mobiliário, dentre outras.34
As competências de cada um desses órgãos são fixadas originariamente no
diploma legislativo já mencionado (também conhecido como “Lei da Reforma
Bancária”), com as alterações que posteriormente lhe foram introduzidas,
especificamente a Lei n.º 4.728/65, a Lei n.º 6.024/74, a Lei n.º 6.045/74, a Lei n.º
6.385/76, a Lei n.º 6.404/76 e a Lei n.º 7.450/85.
Nesse passo, o Conselho Monetário Nacional é o órgão máximo do sistema,
competindo-lhe traçar normas de política monetária e fixar as diretrizes de política
monetária creditícia e cambial no país. Não lhe cabem funções executivas, tendo
se transformado num verdadeiro conselho de política econômica. É ele quem
adapta o volume interno dos meios de pagamento às necessidades da economia,
objetivando prevenir surtos inflacionários, orienta a aplicação de recursos das
instituições financeiras, vela pelo equilíbrio do balanço de pagamentos e zela pela
liquidez e solvência das instituições financeiras. Igualmente, autoriza as emissões
de papel-moeda até um limite restrito, disciplina o crédito, determina taxas de
recolhimento compulsório, estabelece normas para transações com títulos
públicos, regulamenta as operações de redesconto e fixa diretrizes da política
cambial.
Por seu turno, o Banco Central do Brasil é uma autarquia federal, sucedeu a
SUMOC, sendo o órgão executivo central do sistema, detendo a responsabilidade
de cumprir e fazer cumprir as disposições que regulam o seu funcionamento e as
24
normas expedidas pelo Conselho Monetário Nacional. Nesse contexto, cabe-lhe a
emissão de papel-moeda autorizado pelo CMN ou pelo Poder Legislativo, receber
os recolhimentos compulsórios dos bancos comerciais, realizar operações de
redesconto e empréstimo às instituições financeiras, regular o serviço de
compensação de cheques, instrumentalizar a política monetária por meio da
compra e venda de títulos públicos federais, exercer o controle do crédito e a
fiscalização das instituições financeiras, autorizando-lhes o funcionamento, vigiar
a interferência de outras empresas nos mercados financeiros e de capitais e
controlar o fluxo de capitais estrangeiros no mercado cambial. Ele, então,
funciona como “banco dos bancos”, gestor do sistema financeiro, executor da
política monetária, banco emissor e financiador do Tesouro Nacional,
administrando a dívida pública.
Nas palavras de FORTUNA:
É por meio do Banco Central que o Estado intervém diretamente no Sistema Financeiro e, indiretamente, na economia. Em países como Alemanha, Japão e Estados Unidos, o Banco Central é independente, ou seja, seus diretores são designados pelo Congresso, eleitos com um mandato fixo de oito a quatorze anos. Não há subordinação ao Tesouro. Ele atua como um verdadeiro guardião da moeda nacional, garantindo a pujança e o equilíbrio do mercado financeiro e da economia, protegendo seu valor, impedindo que os gastos do governo sejam bancados pela emissão de dinheiro, fator de desvalorização da moeda. É um quarto poder, além do Executivo, Legislativo e Judiciário. Os tesouros desses governos emitem títulos federais para se endividarem, enquanto os Bancos Centrais lançam papéis para garantir a liquidez do sistema. Se a inflação sobe, o Banco Central local vende mais papéis, aumentando a taxa de juros para recolher dinheiro do mercado e controlar a demanda da população, reduzindo o ritmo de alta dos preços.35
Por fim, quanto às autoridades de apoio, cabe mencionar que a Comissão de
Valores Mobiliários é o órgão normativo do sistema, voltado para a disciplina e
fiscalização do mercado de valores mobiliários não emitidos pelo Sistema
Financeiro e pelo Tesouro, ou seja, para o mercado de debêntures e ações.
Objetiva o fortalecimento deste mercado. O Banco do Brasil, até janeiro de 1986,
era considerado co-responsável pela emissão de moeda, ocasião em que o CMN
suprimiu essa sua condição, tendo-se tornado um banco múltiplo tradicional, com
a particularidade de operar como agente financeiro do governo, sobretudo na
execução do crédito rural, e nele funcionar a Câmara de Compensação de
34 FORTUNA, E. Ob. Cit., p. 13-18. 35 Ibid., p. 16.
25
Cheques. O BNDES, criado em 1952, é a instituição responsável pela política de
investimentos de longo prazo da União, sendo a principal instituição financeira de
fomentos do país, voltada para fortalecer o setor empresarial, atenuar
desequilíbrios regionais, desenvolver exportações e, sobretudo, impulsionar o
desenvolvimento econômico-social do país. Por fim, a Caixa Econômica Federal é
a responsável, como instituição financeira, por operacionalizar as políticas da
União para habitação popular e saneamento básico, sendo um banco de apoio ao
trabalhador de menor renda, captando a economia popular e concedendo
empréstimos de caráter assistencial sócio-econômico.
Como se viu, a política monetária nacional, ditada pela União, é
implementada pelas autoridades monetárias e, em um segundo momento, por
aquelas que lhes prestam apoio, de acordo com a discriminação de competências
funcionais anteriormente mencionadas. A questão que se pretende perquirir nesta
ocasião diz com as limitações jurídicas decorrentes do ordenamento constitucional
no âmbito de atuação estatal no exercício do seu poder monetário.
Nesse contexto, de acordo com WALD:
O exercício do poder monetário, que tem os seus fundamentos na Constituição e na lei, deve resguardar o valor da moeda e ser exercido no interesse do desenvolvimento do país. Assim, cabe ao Estado, e, de modo específico, aos seus órgãos de política monetária, atuar como guardião da moeda, assegurando não somente o seu curso legal e forçado e a sua função de instrumento de pagamento, mas também a permanência e a constância do seu valor, a função que a moeda exerce de unidade de conta e de reserva de valor.36
Então, reconhecendo-se o acerto da afirmação acima, há de se concluir que
toda a formulação de política monetária possui assento constitucional, derivando
indiscutivelmente dos princípios inseridos na Carta de 1988. Esses princípios, já
antes mencionados, possuem entre si a característica de identificar o modelo
econômico pelo qual o constituinte optou, marcadamente o capitalista. Por outro
lado, os mesmos princípios, ao tempo em que demonstram a adoção do
capitalismo, também reconhecem a superação da ordem econômica liberal em
favor de uma ordem econômica intervencionista.37
Afinal, como reconhece WALD:
36 WALD, A. Ob. Cit., p. 28. 37 GRAU, E. R. Ob. Cit., p. 273.
26
A União Federal exerce o poder monetário dentro dos limites de sua competência e atendendo às normas constitucionais vigentes, não se tratando, todavia, de um poder discricionário, mas de uma atribuição condicionada pelo espírito e pelo sistema da própria Constituição e que encontra, assim, limites nos direitos individuais. O abuso ou desvio de poder, tanto na área monetária quanto na área tributária ou administrativa, não encontra amparo na Constituição e na lei, sendo condenado o exercício do poder arbitrário ou desarrazoado, conforme tem entendido o Supremo Tribunal Federal. 38
1.3. O BEM JURÍDICO COMO OBJETO DE TUTELA PENAL E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL
O ordenamento jurídico-penal está dirigido para a proteção de algo e esse
algo se chama bem jurídico, que pode ser definido sinteticamente como toda a
situação social desejada que o direito quer garantir contra lesões, ou, nas palavras
de Francisco de Assis TOLEDO, “valores ético-sociais que o direito seleciona,
com o objetivo de assegurar a paz social, e coloca sob sua proteção para que não
sejam expostos a perigo de ataque ou a lesões efetivas”.39 Ainda segundo o
mesmo autor, o conceito resultou de elaboração doutrinária lenta na busca de um
conteúdo para o injusto penal, tendo, primeiramente, se procurado identificá-lo
com a lesão ou exposição a perigo de direitos subjetivos; depois, na lesão ou
exposição a perigo de interesses vitais; e, por fim, na lesão ou exposição a perigo
de um bem jurídico.40
De acordo com Nilo BATISTA:
O espaço teórico para o conceito de bem jurídico surgiu quando, na primeira metade do século XIX, contestou-se a concepção clássica corrente do crime como ofensa de um direito subjetivo, em favor de uma concepção do crime como ofensa a bens (Birnbaum). A partir daí, inúmeras teorias foram elaboradas para a compreensão do bem jurídico ofendido pelo crime: ora se retornava aos direitos subjetivos, ora se propunha um direito público subjetivo do estado, aqui o próprio direito objetivo, ali uma obrigação jurídica, logo os interesses, adiante os valores.
E depois afirma que as dificuldades para a sua definição:
Estão ligadas à diversidade categorial dos bens jurídicos, que podem ser uma pessoa, uma conduta, uma coisa, um atributo jurídico ou social da pessoa, da
38 WALD, A. Ob. Cit., p. 29. 39 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal, p. 16. 40 Ibid., p. 17.
27
conduta ou da coisa, uma relação vital, uma relação jurídica, um estado de fato, um valor, um sentimento, etc.
E conclui:
O bem jurídico põe-se como sinal da lesividade (exterioridade e alteridade) do crime que o nega, ‘revelando’ e demarcando a ofensa. Essa materialização da ofensa, de um lado, contribui para a limitação legal da intervenção penal, e de outro a legitima.41
Na mesma ordem de idéias, Luiz LUISI assegura que:
Os bens jurídicos estão na base da criação dos tipos penais. Esta resulta da necessidade de proteção daqueles bens indispensáveis ao convívio ordenado dos homens. O legislador, ao plasmar os tipos, descreve condutas e fatos que, em tese, são antijurídicos porque atentam contra bens e interesses a eles vinculados, que a sociedade reconhece da mais alta valia e significação.42
Por seu turno, após reconhecer, na linha da doutrina estrangeira, a
dificuldade de se obter uma definição única acerca do conceito de bem jurídico43,
procurando sintetizar as diversas conceituações existentes, a partir das concepções
de Roxin, Von Liszt e Navarrete, Ângelo SILVA o define como “o bem valorado
como essencial à convivência social de certa comunidade, em dado momento
histórico, e por isso tutelado pela norma penal”.44
Afirmada, portanto, a definição de bem jurídico, é correto dizer, com Juarez
TAVARES, que:
Na verdade, a questão do conceito de bem jurídico, como fundamento da incriminação, não pode deixar de ser um resultado de uma escolha política, ingênua ou comprometida, acerca do que se pretende com a sua proteção. Embora, no âmbito de um direito penal democrático, o que realmente se exija seja a absoluta transparência do objeto lesado, como forma de comunicação normativa, independentemente do engajamento político do seu intérprete, o conceito de bem jurídico ou, pelo menos, sua delimitação, por meio de argumentos compatíveis ao panorama da linguagem ordinária, deve ser levado a sério, porque nele reside todo o processo de legitimação da norma penal.45
41 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro, p. 94-95. 42 LUISI, Luiz. O tipo penal, a teoria finalista e a nova legislação penal, p. 50. 43 Neste sentido aponta com precisão Günther STRATENWERTH (Derecho Penal: Parte General I, p. 65) ao afirmar que “apesar dos múltiplos esforços, até hoje não se logrou esclarecer o conceito de bem jurídico, nem sequer de modo aproximado”. 44 SILVA, Ângelo Roberto Ilha da. Dos crimes de perigo abstrato em face da Constituição, p. 38. 45 TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal, p. 181.
28
A partir, pois, desse entendimento é que se torna válida a assertiva de Hans
WELZEL de que “a missão do Direito Penal é proteger os valores elementares da
vida em comunidade” e deve ser definido como:
Aquela parte do ordenamento jurídico que determina as características da ação delituosa e impõe penas ou medidas de segurança. Missão da ciência penal é desenvolver e explicar o conteúdo destas regras jurídicas e sua conexão interna, é dizer, ‘sistematicamente’. Como ciência sistemática estabelece a base para uma administração de justiça igualitária e justa.46
Em realidade, o Direito Penal não se restringe unicamente à mera proteção
de bens jurídicos, devendo também preservar valores ético-sociais. De acordo
com WESSELS47 é bastante discutível a matéria referente às funções do Direito
Penal. Dentre as orientações existentes, há três grupos principais: a) dos que
entendem que sua tarefa consiste, primeiramente, em proteger os valores ético-
sociais da ação e apenas secundariamente os bens jurídicos concretos; b) dos que
se fixam exclusivamente (ou quase exclusivamente) na proteção dos bens
jurídicos; c) dos que vinculam a proteção aos bens jurídicos com outros fins ou
mais propriamente com a paz jurídica ou social.
Para Von LISZT, “se o direito tem como missão principal o amparo dos
interesses da vida humana, o direito penal tem como missão peculiar a defesa
mais enérgica dos interesses especialmente dignos e necessitados de proteção por
meio da ameaça e execução da pena, considerada como um mal contra o réu”.48
Por isso que se diz que nem todo o bem é um bem jurídico e nem todo bem
jurídico merece tutela penal, dado o caráter limitado e fragmentário do Direito
Penal, que elege condutas específicas e pinçadas da realidade social para que o
integrem. O bem jurídico penal é aquele que exige uma proteção especial, por se
revelarem insuficientes as garantias oferecidas pelo ordenamento jurídico para ele
em outras áreas extrapenais e, mesmo em relação aos bens jurídicos penalmente
protegidos, restringe o direito penal sua tutela a certas espécies e formas de lesão,
real ou potencial – as mais graves e fundamentais à coexistência social. Protegem-
se penalmente certos bens jurídicos e, ainda assim, contra determinadas formas de
46 WELZEL, Hans. Derecho penal alemán, p. 11. 47 WESSELS, Johannes. Direito Penal: Parte geral, p. 3. 48 LISZT, Franz von. Tratado de Derecho Penal, p. 9.
29
agressão.49 A forma de proteção se dá pela seleção das situações de risco e das
formas de agressão que se quer evitar, transformando-as em tipos delitivos (os
crimes previstos na legislação de regência). Portanto, ao fundo de cada tipo penal
há um bem jurídico que se pretende proteger por meio da incriminação prevista,
que tem como objetivo a prevenção geral (que, pela intimidação, não se cometa o
fato delituoso) e, secundariamente, a prevenção especial (que, se cometido, haja
uma resposta do sistema penal, juridicamente prevista). As penas previstas variam
com a intensidade da lesão ou da exposição a perigo, o bem jurídico objeto de
tutela e a forma como a lesão ou exposição à lesão se deu, observados os
princípios da proporcionalidade e a própria importância social do bem objeto de
proteção jurídica.50
O bem jurídico tem inúmeras funções na seara criminal, destacando-se:
garantia ou limitação do direito de punir do Estado; teleológica ou interpretativa;
individualizadora; e sistemática. De acordo com Luiz Régis PRADO, “a função
limitadora opera uma restrição na tarefa própria do legislador, a função
teleológico-sistemática busca reduzir a seus devidos limites a matéria de proibição
e a função individualizadora diz respeito à mensuração da pena/gravidade da lesão
ao bem jurídico”.51
Enfim, pode-se dizer com Claus ROXIN que “o direito penal deve garantir
os pressupostos de uma convivência pacífica, livre e igualitária entre os homens,
na medida em que isso não seja possível através de outras medidas de controle
sócio-políticas menos gravosas”. Afinal:
São chamados bens jurídicos todos os dados que são pressupostos de um convívio pacífico entre os homens, fundado na liberdade e na igualdade; e subsidiariedade significa a preferência a medidas sócio-políticas menos gravosas. De maneira substancialmente análoga diz-se também que o direito penal tem a finalidade de impedir danos sociais, que não podem ser evitados com outros meios, menos gravosos. Proteção de bens jurídicos significa, assim, impedir danos sociais.52
49 TOLEDO, F. de A. Ob. cit., p. 17. 50 Sobre a missão do Direito Penal, suas características e os princípios da subsidiariedade lógica, política e social e fragmentariedade, destaca-se o trabalho de Paulo de Souza QUEIROZ, intitulado “Do Caráter Subsidiário do Direito Penal”, particularmente nas p. 55-70, em que explora as questões mencionadas no parágrafo em referência. 51 PRADO, Luiz Régis. Bem Jurídico-Penal e Constituição, p. 48-49. 52 ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal, p. 32 e 35
30
Efetuadas essas considerações e entendido o bem jurídico como fundamento
e legitimação do próprio Direito Penal53 mostra-se necessário esclarecer que o
legislador, ao erigir determinada conduta como crime, não está livre para fazê-lo
da forma e como bem entender, a pretexto de que ela ofende um suposto bem
jurídico fundamental. A questão que, todavia, exsurge é se esclarecer quais os
parâmetros jurídicos que definem e limitam a atuação do legislador penal ao
estabelecer um agir ilícito como um ilícito penal.
No ponto, uníssono é o entendimento de que o bem jurídico penal deve ser
buscado na sociedade, daí se concluindo, com Janaína PASCHOAL, que:
É a Constituição que reflete os referidos bens, ou seja, tendo-se em vista o fato de a Constituição ser o documento que alberga os valores mais caros para uma dada sociedade, é nela que o legislador deverá se pautar quando da escolha dos bens a serem protegidos pelo Direito Penal. Pode-se deduzir que, enquanto o constituinte busca os bens jurídicos penais na sociedade, o legislador os retira da Constituição.54
Afinal:
O desenvolvimento de uma ótica de exclusiva proteção de bens jurídicos faz crer ser absolutamente necessária a definição não só do conceito de bem jurídico como também das suas fontes de legitimação, e, a partir daí, definir-se quais bens devem ser tutelados penalmente. Desta forma, temos que, para que seja legítima a intervenção criminalizadora do Estado, é preciso que sejam considerados bens jurídicos fundamentais apenas aqueles que tenham suporte constitucional, mais ainda, apenas aqueles representativos de valores que tenham a capacidade de relativizar os princípios da liberdade e da dignidade da pessoa humana.55
Em outras palavras, se está a dizer que não é dado ao legislador ordinário
criminalizar condutas que, por detrás, não violem um bem jurídico merecedor da
53 No ponto, merece destaque a posição dissonante de Günther JAKOBS que, sem abdicar totalmente da importância da presença do bem jurídico no Direito Penal, não o coloca como primordial no exercício das suas funções, e propõe como seu fundamento principal a idéia de ‘asseguramento de expectativas’, que justificaria a legitimidade da intervenção penal, particularmente em situações tais em que a presença do bem jurídico tutelado não seria mais do que um mero exercício retórico do doutrinador, como no caso dos chamados crimes contra a ‘paz pública’, em que, conquanto se considere válida a intervenção penal nestes casos, não haveria efetivamente um bem jurídico fundamental protegido, justificando-se a legitimidade do Direito Penal em face da necessidade de reforçamento da própria legislação penal incriminadora tendo em consideração as expectativas dos integrantes daquele dado agrupamento social. O entendimento, todavia, é absolutamente minoritário, porquanto a presença do bem jurídico fundamental em todos os casos citados pelo autor em seus trabalhos é reconhecida pela doutrina com sólidos fundamentos, conforme se exporá ao longo desta pesquisa. Sobre as idéias de JAKOBS, veja-se especialmente Fundamentos do Direito Penal, p. 108-144. 54 PASCHOAL, Janaína Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal Mínimo, p. 49.
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proteção penal, havendo essa constatação de ser buscada no ordenamento
constitucional.
Assim:
O pensamento jurídico moderno reconhece que o escopo imediato e primordial do Direito Penal radica na proteção de bens jurídicos – essenciais ao indivíduo e à comunidade –, norteada pelos princípios fundamentais da personalidade e individualização da pena; da humanidade; da insignificância; da culpabilidade; da intervenção penal legalizada; da intervenção mínima e da fragmentariedade.56
E também:
Em um Estado de Direito democrático e social, a tutela penal não pode vir dissociada do pressuposto do bem jurídico, sendo considerada legítima, sob a ótica constitucional, quando socialmente necessária. Isto vale dizer: quando imprescindível para assegurar as condições de vida, o desenvolvimento e a paz social, tendo em vista o postulado maior da liberdade.57
Nesse contexto, ainda segundo PRADO, “a noção de bem jurídico implica a
realização de um juízo positivo de valor acerca de determinado objeto ou situação
social e de sua relevância para o desenvolvimento do ser humano”,58 para adiante
referir que “em uma concepção democrática, o ponto de partida do Direito Penal é
dado pelo conceito de pessoa. O cidadão, o indivíduo, considerado como pessoa, é
o protagonista da política e da história e, portanto, do direito”,59 concluindo que “a
liberdade, a dignidade pessoal do homem – qualidades que lhe são inerentes – e a
possibilidade de desenvolver-se livremente constituem um limite infranqueável ao
Estado”.60
Enfim, com Jorge de Figueiredo DIAS pode-se dizer que:
(...)Se deve concluir que um bem jurídico político-criminalmente vinculante existe ali – e só ali – onde se encontre refletido num valor jurídico-constitucionalmente reconhecido em nome do sistema social total e que, deste modo, se pode afirmar que ‘preexiste’ ao ordenamento jurídico-penal. O que por sua vez significa que entre a ordem axiológica jurídico-constitucional e a ordem legal – jurídico-penal – dos bens jurídicos tem por força de se verificar uma qualquer relação de mútua referência. Relação que não será de ‘identidade’, ou mesmo só de ‘recíproca cobertura’, mas de analogia material, fundada numa essencial correspondência de
55 COELHO, Yuri Carneiro. Bem jurídico-penal, p. 105 56 PRADO, L. R. Bem Jurídico..., p. 54. 57 Ibid., p. 59-60. 58 Ibid., p. 63-64. 59 Ibid., p. 64. 60 Ibid., p. 65.
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sentido e – do ponto de vista da sua tutela – de fins. Correspondência que deriva, ainda ela, de a ordem jurídico-constitucional constituir o quadro obrigatório de referência e, ao mesmo tempo, o critério regulativo da atividade punitiva do Estado. É nesta acepção, e só nela, que os bens jurídicos protegidos pelo direito penal se devem considerar concretizações dos valores constitucionais expressa ou implicitamente ligados aos direitos e deveres fundamentais. É por esta via – e só por ela em definitivo – que os bens jurídicos se ‘transformam’ em bens jurídicos dignos de tutela penal ou com dignidade jurídico-penal.61
Nesse contexto, a matriz constitucional da qual deriva a determinação dos
bens jurídicos considerados fundamentais passíveis de intervenção do Direito
Penal impõe a conclusão de que “dignos ou merecedores de tutela penal são
aqueles bens que integram a ordem constitucional por terem sido reconhecidos em
uma dada sociedade como relevantes para sua conservação, observando-se que
essa dignidade não é suficiente para justificar a criminalização, fazendo-se ainda
mister verificar, no caso concreto, se existe a necessidade da tutela de natureza
penal”62 em face dos já citados princípios fundamentais da personalidade e
individualização da pena, da humanidade, da insignificância, da culpabilidade, da
intervenção penal legalizada, da intervenção mínima e da fragmentariedade.
Acolhe-se, assim, o entendimento de que a Constituição atua não somente como
limite negativo ao Direito Penal – segundo o qual o Estado pode instituir crimes
abarcando qualquer bem jurídico, desde que não fira valores constitucionais –,
mas como verdadeiro limite positivo ao Direito Penal – significando que pode o
legislador ordinário tipificar apenas as condutas que caracterizem lesão a bens
jurídicos reconhecidos pela Constituição como caros em uma dada coletividade.63
1.4. A ECONOMIA COMO BEM JURÍDICO PENALMENTE PROTEGIDO: O DIREITO PENAL ECONÔMICO
Assentadas essas premissas, reconhecida a ordem econômica como valor
constitucional do qual deriva a noção de Direito Econômico, bem como a
relevância transcendental do bem jurídico como instrumento legitimador e
fundante do Direito Penal, é chegada a hora de se analisar a incidência dos
pressupostos do direito penal na proteção do bem jurídico atividade econômica.
61 DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais do Direito Penal revisitadas, p. 67. 62 PASCHOAL, J. da C., Ob. Cit., p. 51.
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Enfim, seria o bem jurídico economia passível de proteção penal, podendo-se
deduzir da Constituição Federal a sua condição de valor fundamental capaz de
conferir-lhe dignidade jurídico-penal?
Inicialmente, com o fim de se responder às questões postas, convém
reforçar, com Jorge Figueiredo DIAS, que “os bens jurídicos protegidos pelo
direito penal devem considerar-se concretizações dos valores constitucionais
expressa ou implicitamente ligados aos direitos e deveres fundamentais”.64 Ou
seja, para que um bem jurídico possa ser considerado de tal relevância que faça
incidir a tutela penal sobre ele é necessário que esteja ligado aos direitos e deveres
fundamentais contidos na Carta Constitucional e a exata compreensão disso deve
ser buscada nos valores albergados pela Constituição, que variam de acordo com a
concepção de Estado adotada em certo momento histórico em uma dada
coletividade, o que se reflete nos bens jurídicos tidos como capazes de serem
penalmente tutelados.
Em um Estado Democrático e Social de Direito os abismos sociais e as
desigualdades devem ser, tanto quanto possível, corrigidos, incumbindo ao poder
público promover as condições para que a liberdade e a igualdade sejam efetivas.
É nesse contexto, pois, que ocorre a transformação do catálogo de bens jurídicos
passíveis de proteção penal, reconhecendo-se a inserção do homem no universo da
vida econômica como uma garantia constitucional fundamental, repousando aí a
lei penal econômica.65
Na mesma ordem de idéias afirma Renato de Mello Jorge SILVEIRA:
O Estado liberal democrático, sem dúvida, impôs uma preocupação exacerbada quanto a bens jurídicos orbitantes à pessoa. Isso, porém, não implica uma desconsideração quanto a outros bens, tais como: a fé pública, a administração da Justiça, ou mesmo a saúde pública. Todavia, e sempre com os olhos num liberalismo democrático à pessoa, não se vislumbra a necessidade de intervenção nos processos sociais e econômicos. Assim, ao lado desses bens de cunho clássico (de caráter individual ou mesmo supra-individual), formatam-se, no momento e criação das sociedades de risco pós-industriais, novos bens jurídicos, supra-individuais.66
Este é, como se disse, o momento atual na quadra da História.
63 Ibid., p. 55-68. 64 DIAS, J. de F., Temas Básicos da Doutrina Penal, p. 47-48. 65 ARAÚJO Jr., João Marcello de. O Direito Penal Econômico. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 25, p. 142-156. 66 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Supra-Individual, p. 56-57.
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Afinal, “o direito penal não é senão um dos muitos instrumentos de política
social de que se vale o Estado para a realização dos fins que lhe são
constitucionalmente assinalados (CF, arts. 1º a 5º)”,67 caracterizando uma opção
política de reafirmação dos valores constitucionais fundamentais.
No ponto deve-se ressaltar que os direitos econômicos e o direito ao
desenvolvimento são efetivamente reconhecidos pela doutrina como direitos
fundamentais de segunda e terceira dimensões respectivamente,68 sendo os
primeiros decorrentes do impacto da industrialização e dos graves problemas
sociais e econômicos que a acompanharam, impondo um comportamento ativo do
Estado na realização da justiça social, materializado nas Constituições do segundo
pós-Guerra, e tendo os segundos como característica fundamental o fato de
possuírem titularidade coletiva, decorrendo dos efeitos do avanço tecnológico e do
processo de descolonização, também após o fim da Segunda Guerra Mundial. Não
se cuida mais unicamente, no dizer de Ingo SARLET, “de liberdade do e perante o
Estado, e sim de liberdade por intermédio do Estado”,69 que assume um papel de
agente positivo na concretização desses direitos.
A esse respeito, pode-se dizer, com Lênio STRECK:
Não pode restar qualquer dúvida no sentido de que o bem jurídico tem estrita relação com a materialidade constitucional, representado pelos preceitos e princípios que encerram a noção de Estado Democrático e Social de Direito. Não há dúvida, pois, que as baterias do direito penal do Estado Democrático de Direito devem ser direcionadas para o combate dos crimes que impedem a concretização dos direitos fundamentais nas suas diversas dimensões. Neste ponto, aliás, entendo
67 QUEIRÓZ, Paulo. Funções do Direito Penal, p. 116. 68 De acordo com Ingo Wolfgang SARLET (A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p. 54-61) reconhece-se pacificamente na doutrina hoje a existência de direitos fundamentais de três dimensões (ou gerações). Os de primeira dimensão são relacionados ao pensamento liberal-burguês do século XVIII, de cunho marcadamente individualista, de afirmação do sujeito perante o Estado, ditos direitos de defesa, notadamente os direitos à vida, à liberdade, à propriedade e à igualdade perante a lei, sendo secundados pelas liberdades de expressão, imprensa, manifestação, reunião e associação, bem como os direitos de participação política. São os chamados direitos civis e políticos. Os de segunda dimensão decorrem do impacto da industrialização e dos graves problemas sociais e econômicos daí decorrentes e têm sua gênese já no decorrer do século XIX, a exigir um comportamento ativo do Estado na realização da justiça social, se intensificando no segundo pós-Guerra já no século XX, consistindo nos direitos à assistência social, saúde, educação, trabalho e direitos fundamentais dos trabalhadores. Ainda são direitos titularizados individualmente pelas pessoas. Os de terceira dimensão são os direitos de solidariedade e fraternidade e têm como nota distintiva o fato de que se destinam a proteção de grupos humanos (família, povo, nação), caracterizando-se como direitos de titularidade coletiva ou difusa. Enquadram-se nesta categoria os direitos à paz, à autodeterminação dos povos, ao desenvolvimento, ao meio ambiente e qualidade de vida, conservação e utilização do patrimônio histórico e cultural e o direito de comunicação. 69 Ibid., p. 57.
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que é neste espaço que reside até mesmo uma obrigação implícita de criminalização, ao lado dos deveres explícitos de criminalizar constantes no texto constitucional.70
Evidentemente, ao lado dos direitos fundamentais mencionados, dentre os
quais reside a economia e o desenvolvimento, há os valores constitucionais da
liberdade, da mínima intervenção, da subsidiariedade, da fragmentariedade e da
lesividade,71 a nortearem a atuação do Direito Penal, evitando-se, assim, que se
converta o postulado do Direito Penal mínimo, garantia conquistada por todos os
indivíduos a partir das idéias do Iluminismo, em um Direito Penal máximo, uma
vez que, dada a ampliação crescente do rol de Direitos Fundamentais,72 haveria a
possibilidade de praticamente se criminalizar qualquer conduta com fundamento
em tais valores contidos na Constituição se não observados adequadamente os
princípios acima referidos. Logo, deve-se buscar na própria Constituição uma
função de dupla garantia e fundamento para a incriminação, consubstanciada, por
um lado, na necessidade de se abarcarem bens jurídicos de viés constitucional
fundamental para se viabilizar a atuação do Direito Penal (operando como
fundamento legitimador da incriminação) e, por outro, atentar-se fortemente aos
postulados da liberdade, da mínima intervenção, da subsidiariedade, da
fragmentariedade e da lesividade (operando como limite à incriminação).73
70 STRECK, Lênio Luiz. Bem jurídico e Constituição: da proibição de excesso (ubermabverbot) à proibição de proteção deficiente (untermbverbot) ou de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, LXXX, p.311. 71 O princípio da intervenção mínima não está legalmente previsto e decorre do próprio Estado Democrático de Direito e seus princípios políticos. Já a fragmentariedade e a subsidiariedade advêm dos princípios da legalidade (Art. 5º, XXXIX, da CF/88) e da intervenção mínima e têm como fundamento o fato segundo o qual somente as condutas mais graves e mais perigosas praticadas contra bens jurídicos relevantes carecem dos rigores do direito penal e ainda assim somente por meio de algumas formas de ação. Já a lesividade determina que somente seja considerada criminosa a conduta que efetivamente lese ou exponha a perigo relevante o bem jurídico objeto de proteção penal. A respeito do tema, veja-se, por todos, CERNICCHIARO, Luiz Vicente e COSTA Jr., Paulo José da. Direito Penal na Constituição, 3.ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. 72 Começa-se hoje já a se reconhecerem os chamados Direitos Fundamentais de Quarta Dimensão, notadamente o direito à democracia, à informação e ao pluralismo, cf. SARLET, Ob. cit., p. 60-61. 73 No ponto, vale a lição de RÍOS, ao afirmar que “ao passo que a lei ordinária é a fonte principal do Direito Penal, a ordem valorativa constitucional do Estado Democrático de Direito possui a função de contornar a sua aplicabilidade e interpretação. Assim, a doutrina, a jurisprudência e o poder legislativo, ao estabelecer a definição de uma política criminal, devem adotar as devidas reservas no que diz respeito ao princípio democrático, a adequação ao princípio da proporcionalidade (que se traduz na disponibilidade de meios e fins perseguidos) e a observação da proteção específica frente a outros meios preventivos, além de guiar-se por critérios materiais de justiça e igualdade”. RÍOS, Rodrigo Sánchez. Reflexões sobre o princípio da legalidade no Direito Penal e o Estado Democrático de Direito, Revista dos Tribunais, v. 847, p. 414.
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Somente atendidos estes requisitos é que estará o legislador autorizado a prever
certas ações como criminosas, infligindo-lhes as penas respectivas.74
É em vista desta realidade que, considerando-se o direito ao
desenvolvimento como garantia fundamental, na construção de uma sociedade
justa, solidária e voltada ao bem-estar de todos em um Estado Democrático e
Social de Direito, o que se realiza por meio da ordenação das políticas econômicas
e monetárias implementadas pelo Estado,75 que se reconhece a economia como
bem jurídico hábil a exigir a intervenção penal para garantir a eficácia deste
direito fundamental que, antes de ser uma prerrogativa do Estado, caracteriza
verdadeiro dever, decorrente da proibição de proteção jurídica deficiente.76
Reconhecem-se, assim, os valores constitucionais simultaneamente como limite e
como fundamento para incriminação de condutas, na concreção dos ditames
sociais neles contidos.
A esse propósito, Luciano FELDENS, após longamente demonstrar a
indispensabilidade do agir estatal, inclusive em seara criminal, no que diz com a
efetividade dos direitos fundamentais dispostos na Constituição, exigindo-se do
Estado, para a sua consecução, duas formas de atuação, uma omissiva
(relativamente aos direitos individuais, como a liberdade) e outra comissiva
(relativamente aos direitos sociais, como a segurança), conclui que “exemplos
eloqüentes de bens jurídicos de relevo social inequívoco são – além da vida e da
dignidade da pessoa humana, em toda sua ampla dimensão conceitual – a ordem
econômico-tributária, a higidez do sistema financeiro e a probidade na
administração pública”77 a exigir a intervenção do sistema penal em tais casos.
Nesse ponto vale dizer com Rodrigo Sánchez RÍOS:
O Direito Penal não tem apenas um caráter limitativo, no sentido de negativo e proibido, mas também um caráter prospectivo, no sentido de concretizar ou efetivar os valores ou as normas da Constituição, servindo de instrumento para a sua realização efetiva. Ao se espraiar pelas mais diversas áreas e interesses novos que surgem na sociedade (como, por exemplo, aqueles atinentes à ordem econômica), o Direito Penal cumpre uma função de efetivação de todos os valores da CF/88 e imprime as condições de possibilidade para que o sistema repressivo seja igual para todos (atingindo o ideal do princípio isonômico do art. 5.º, caput).
74 A propósito do tema, veja-se interessante trabalho de PASCHOAL, J. da C. Ob. cit., p. 59-78. 75 Assim sustentamos ao longo das seções 1 e 2 supra. 76 STRECK, L. L. Ob. cit., p. 303-345. 77 FELDENS, Luciano. Tutela penal de interesses difusos e crimes do colarinho branco, p. 98.
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Por outro lado, na medida em que a atuação penal do Estado abrange algo além das meras proibições/punições ao direito à vida, à propriedade, etc – visto que geralmente tais noções estão presas a concepções liberais individualistas próprias da época da “Constituição Garantia, e não da Constituição Dirigente” – poderá se verificar a seletividade do sistema penal clássico que afasta o ideal de justiça que deveria ser aplicado de modo isonômico a todos.78
Reconhecida, portanto, a economia como um valor constitucional capaz de
ser protegido na esfera penal, impositivo se faz definir o que se entende pelo
chamado Direito Penal Econômico.
Manoel Pedro PIMENTEL afirma que o Direito Penal Econômico é:
Um sistema de normas que defende a política econômica do Estado, permitindo que esta encontre os meios para a sua realização. São, portanto, a segurança e a regularidade da realização dessa política que constituem precipuamente o objeto do Direito penal econômico. Além do patrimônio de indefinido número de pessoas, são também objeto da proteção legal o patrimônio público, o comércio em geral, a troca de moedas, a fé pública, e a administração pública, em certo sentido.79
Na mesma balada, Roberto Santiago Ferreira GULLO aduz que:
É o conjunto de normas que tem por objeto sancionar, com as penas que lhe são próprias, as condutas que, no âmbito das relações econômicas, ofendam ou ponham em perigo bens ou interesses juridicamente relevantes. O Direito Penal Econômico tem por finalidade proteger os bens e os interesses humanos relacionados com a economia.80
Raul Peña CABRERA entende o Direito Penal Econômico como “um
direito interdisciplinar punitivo que protege a ordem econômica como última
ratio”, e que “as graves disfunções e crises socioeconômicas justificam a
intervenção do Estado na matéria econômica, que recorre ao Direito Penal para
resolvê-los e assegurar o bem estar comum”.81
Enfim, René Ariel DOTTI o define com agudeza sustentando que o Direito
Penal Econômico resguarda através da pena criminal os bens jurídicos de caráter
supra-individual ou social, distintos do patrimônio, embora possa alcançar o
interesse dos particulares, consumidores ou competidores.82
78 RÍOS, R. Reflexões sobre o Delito Econômico e a sua Delimitação, Revista dos Tribunais, v. 775, p. 437-438. 79 PIMENTEL, Manoel Pedro. Direito Penal Econômico, p. 21. 80 GULLO, Roberto Santiago Ferreira. Direito Penal Econômico, p. 02. 81 CABRERA, Raul Pena. El bien jurídico en los delitos econômicos (com referencia al Código Penal peruano), Revista Brasileira de Ciências Criminais, n.11, p. 36-49. 82 DOTTI, René Ariel. A criminalidade econômica. Revista do Advogado da Associação dos Advogados de São Paulo, n. 24, p. 39.
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Em todas as definições citadas o traço comum que caracteriza uma norma
como integrante do Direito Penal Econômico é o reconhecimento de que se está a
proteger criminalmente a economia enquanto bem jurídico supra-individual, como
meio para a realização dos objetivos sociais de um determinado Estado e não
enquanto bem passível de titularização e apropriação particular por parte de cada
integrante de uma dada sociedade em um certo momento histórico. Assim, é de se
considerar que a delinqüência econômica causa dano à sociedade como um todo,
ofendendo a coletividade e não apenas os indivíduos isoladamente considerados,
porquanto nesta modalidade a inserção do homem é bastante mais ampla,
abrangendo todos os quadrantes da vida dos cidadãos.83
Assim, reconhece-se a existência de um verdadeiro direito penal econômico,
lastreado no entendimento de que, para além da utilização da atividade econômica
como simples expressão da liberdade e da propriedade privada com objetivo único
de lucro para seus investidores, deve ela estar comprometida com um projeto
nacional e supranacional encartado na Constituição, bem assim que violações
mais sérias ao bem jurídico que se extrai do ordenamento constitucional
referentemente à economia merecem a tutela deste ramo do direito penal.
83 JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O contrabando, uma revisão de seus fundamentos teóricos, p. 14.
39
2. O DIREITO PENAL ECONÔMICO
2.1. ORIGEM E DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO
O Direito Penal Econômico ganha força como conseqüência do
reconhecimento da necessidade da intervenção do Estado no domínio econômico
a partir da compreensão, incrementada ao fim do primeiro quartel do século XX,
de que o mercado auto-regulável não era perfeito e acabado nem tampouco
propiciava inata e irremediavelmente a plenitude da realização humana.84 Nada
obstante, é necessário se reconhecer que ele já dava mostras embrionárias de
existência nos Direitos Romano e Grego, em que se consideravam crimes
infrações relacionadas aos preços de víveres, monopólio, usura e falsificação de
pesos e medidas, o que evidencia que, em certa medida, a tutela de bens jurídicos
supra-individuais relacionados à economia não é propriamente fenômeno tão
recente quanto se imaginaria em uma primeira aproximação, embora sequer se
cogitasse, à época, acerca da existência em termos teóricos de um assim chamado
“Direito Penal Econômico”.85 O crescimento do liberalismo econômico no século
XVIII pelas mãos de Adam Smith e John Locke, entretanto, acarretou a retirada
gradativa da intervenção estatal neste campo e, por conseqüência, o
desaparecimento da proteção penal dos bens jurídicos que, já em Roma e na
Grécia, caracterizavam uma espécie de Direito Penal a incidir sobre elementos
típicos da ordem econômica.
Em sua conformação atual, atribui-se o nascimento do chamado Direito
Penal Econômico ao pós Primeira Guerra Mundial – seja pela necessidade de
orientação na alocação de recursos econômicos e industriais na Europa para fazer
frente à escassez decorrente dos efeitos da Guerra, seja pelo destaque obtido na
América com a queda da Bolsa de Valores de Nova Iorque em 1929 –,
consolidando-se a denominação por ocasião do VI Congresso de Direito Penal da
Associação Internacional de Direito Penal ocorrido em Roma em 1953,
84 Sobre a evolução desses conceitos e o próprio surgimento da necessidade de intervenção estatal na economia, veja-se o contido na Seção 1 do Capítulo 1 acima. 85 GULLO, R. S. F. Ob. cit., p. 16-17.
40
denominado ‘o direito penal social econômico’,86 em que se atribuiu à época ao
Direito Penal Econômico a missão de tutelar tanto as atividades econômicas
regulamentadas pelo Estado como também por associações profissionais que
visassem o aumento e a justa distribuição de bens na comunidade.87
Para se ter uma idéia, objetivando apenas evitar a especulação financeira na
Alemanha, foram publicadas, durante a Primeira Grande Guerra, cerca de
quarenta mil disposições penais, cujas vigências foram prolongadas na forma de
leis reguladoras de preços, reconhecendo-se, após a promulgação da Constituição
de Weimar, o caráter dirigista daquele país relativamente à economia – a
Alemanha que, com a assinatura do Tratado de Versalhes em 1919, se viu
obrigada a arcar com uma indenização equivalente a trinta e três bilhões de
dólares, percebia os efeitos da hiperinflação de tal forma que, em agosto de 1923,
um dólar valia quatro bilhões e duzentos milhões de marcos –, originando
verdadeira hipertrofia das disposições penais envolvendo esta matéria, que foram
consolidadas na ‘lei penal da economia’ de 1949, que desde então sofreu diversas
modificações – a última das quais em 1975 – e que se encontra em vigor até hoje
naquele país.88
Em paralelo, e no mesmo momento e contexto históricos, Edwin H.
Sutherland cunhou a expressão ‘white-collar criminality’ referindo-se à
criminalidade típica dos setores econômicos mais abastados,89 durante o encontro
anual da Sociedade Americana de Sociologia, no Natal de 1939,90 definindo-o
como um crime cometido por pessoas respeitáveis, com elevado ‘status’ social, no
exercício da sua profissão, constituindo, normalmente, uma violação de confiança.
Essa definição teve, como se vê, como pontos de apoio a condição pessoal do
autor do fato e a relação da atividade delituosa com a sua profissão, em uma
perspectiva nitidamente subjetivo-profissional.91
O fato é que, a partir da definição inicial de Sutherland, a doutrina se
encarregou de enriquecer o seu conteúdo, tornando expressões sinônimas tanto a
86 CABRERA, R. P. Ob. cit., p. 41. 87 SILVEIRA, R. de M. J. Ob. cit., p. 142-143. 88 DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa. Problemática Geral das Infracções contra a Ordem Econômica Nacional, in PODVAL, Roberto (Org). Temas de Direito Penal Econômico, p. 71-72. 89 Ainda hoje se costuma, nos Estados Unidos da América, denominar os empresários e detentores de cargos diretivos e gerenciais de ‘white collar workers’ e os trabalhadores da base da pirâmide, normalmente exercendo atividades típicas do operariado, de ‘blue collar workers’. 90 JAPIASSÚ, C. E. A. Ob. cit., p. 06-07.
41
chamada criminalidade de ‘colarinho branco’ quanto a chamada ‘criminalidade
econômica’, gradativamente afastando-a do seu aspecto puramente subjetivo que
fazia assentar a definição no sujeito ativo da prática delitiva para fixá-la em seu
objeto, acorde com o momento histórico vivido. Afinal, a complexidade das
relações da vida moderna na sociedade pós-industrial passou a demandar certas
proteções até então inexistentes, elegendo-se, em um juízo político-criminal,
novas condutas dignas de sanção penal, e a economia, ante a quantidade de
fraudes e prejuízos causados pela criminalidade econômica, violando o dever de
confiança que se deve manter nas instituições desta natureza, passou a integrar
uma nova classe de delitos previstos nas legislações penais mundo afora: a
criminalidade econômica, ou criminalidade de ‘colarinho branco’.92
A partir destas matrizes desenvolveu-se toda a evolução histórica do Direito
Penal Econômico ao longo do século XX tanto na Europa quanto nas Américas,
sendo relevante registrar o seu conteúdo marcadamente histórico e evolutivo,
relacionado às características de cada Estado em um dado momento de sua
trajetória, fosse ele capitalista, fosse ele socialista, respeitadas ainda, em cada um
desses modelos, as circunstâncias nacionais específicas que os particulariza.93
Em um momento inicial, durante o primeiro quartel do século XX e o
período que mediou as duas Grandes Guerras, adotou-se um conceito amplo de
Direito Penal Econômico, centrando-o em uma visão pragmática, agrupando os
tipos que tinham significação econômica, fosse protegendo bens jurídicos
individuais, fosse tutelando bens jurídicos coletivos, a partir da regulação jurídica,
em sentido lato, da produção, distribuição e consumo de bens e serviços em um
determinado Estado, tendo como norte também os autores das práticas delitivas,
como derivação da concepção inicial de ‘crimes de colarinho branco’. Adiante,
sobretudo após o término da Segunda Guerra Mundial, evoluiu-se para uma
concepção restrita do Direito Penal Econômico para se considerar como delito
desta natureza apenas aqueles que tutelavam interesses supra-individuais,
entendendo-se a ordem econômica como a regulação jurídica do intervencionismo
estatal da economia.94
91 FELDENS, L. Ob. cit., p. 115-116. 92 DEODATO, Felipe Augusto Forte de Negreiros. Direito Penal Econômico, p. 46-47. 93 DIAS, J. de F.; ANDRADE, M. da C., Ob. cit., p. 79. 94 RIGHI, Esteban. Los Delitos Econômicos, p. 93-118.
42
Atualmente, sobretudo nas últimas três décadas, pode-se dizer que a
delimitação do que seja o delito econômico se nutre tanto dos elementos
constantes na concepção ampla, quanto na concepção restrita, não sendo
recomendável concluir-se, simplesmente, pela adoção no presente momento de
uma ou outra das teorias em sua pureza originária.95 Assim, os traços distintivos
desta espécie de criminalidade que permitem a sua correta identificação pela
doutrina residem nos fatos de tutelarem bens jurídicos supra-individuais
relacionados à preservação e implementação dos valores da Ordem Econômica
(sendo possível também a preservação, mediata ou imediata, de bens jurídicos
individuais simultaneamente), de envolverem em seu pólo ativo pessoas de
elevado estatuto social, e de serem um meio para a realização dos objetivos
delineados pelo chamado Estado Democrático e Social de Direito
consubstanciados na intervenção do Estado na economia para propiciar o
desenvolvimento das potencialidades de cada integrante da coletividade e a
redução das desigualdades sociais, que é chamado a atuar também como um meio
de preservação da confiança das pessoas nas instituições econômicas em sentido
amplo (nestas compreendidas as chamadas ‘instituições financeiras’).96
No Brasil, a exemplo do que ocorrera primeiramente na Europa e adiante
nas Américas, o surgimento de tipos penais que têm como objeto a tutela da
Ordem Econômica acompanhou a evolução da compreensão de Estado exposta
nas Constituições Federais que foram vigendo ao longo de sua História.
Assim, impõe-se registrar que as Constituições de 1824 e de 1891 nada
referiram acerca da chamada Ordem Econômica, não deixando qualquer espaço
para que houvesse uma intervenção penal que a detivesse como bem jurídico
objeto de tutela, seguindo a ideologia liberal em termos de política econômica,
nada obstante alguns autores visualizem a existência de rudimentos do Direito
Penal Econômico no artigo 223 (que criminalizava a conduta de exercer o
comércio por parte de detentores de alguns cargos públicos, como a magistratura)
e no artigo 340, § 3º (criminalizava a ação de se promover falsa cotação das ações
por parte de administradores de empresas), ambos do Código Penal de 1890, além
do Decreto-lei nº 22.626, de 07/04/1933 (que previa o crime de usura),97 o que, se
95 Ibid., p. 93-118. 96 OLIVEIRA, William Terra de. Algumas questões em torno do novo Direito Penal Econômico, Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 11, p. 235. 97 GULLO, R. S. F. Ob. cit., p. 34-35.
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vale como registro histórico, em nosso entendimento não se coaduna com o
moderno entendimento do que seja o Direito Penal Econômico, que possui caráter
de concretização dos valores fundamentais contidos na Magna Carta do país,
relacionados à tutela de interesses supra-individuais com vista à realização do
desenvolvimento e da justiça social.
Por seu turno, a Carta de 1934, em seu artigo 115, já inspirada nas
constituições européias do pós-Guerra, mencionava a necessidade de incidência
dos princípios da justiça e atenção aos interesses da vida nacional quando tratou
da Ordem Econômica e Social, deixando, todavia, de referir ao abuso do poder
econômico.
No Estado Novo, por meio da Constituição de 1937 (art. 135), atrelou-se
uma vez mais a atividade econômica individual aos interesses nacionais,
prevendo-se, por seu turno, expressamente a possibilidade de intervenção estatal
no domínio econômico para se conciliar o bem coletivo aos direitos individuais,
sendo de se considerar, todavia, que a maior parte de seus ditames permaneceram
como letra morta, porquanto o que se passou não foi além de uma ditadura pura e
simples, com concentração de poder nas mãos do Presidente da República, que
governava por meio de Decretos-lei. Em termos de legislação penal econômica,
destaca-se o advento do Decreto-lei nº 869, de 18/11/1938 (crimes contra a
economia popular, como manipulação dos mercados e eliminação da
concorrência), em que pela vez primeira se criminaliza claramente uma conduta
atentatória ao bem jurídico economia. De seu turno, deve-se atentar para o fato de
que o Código Penal de 1940 não previu um título em sua Parte Especial que
tratasse especificamente dos crimes econômicos, mas há delitos que, por suas
características, podem ser entendidos como protetivos do bem jurídico economia,
a saber os dos artigos 187 a 196 (privilégios de invenção, marcas da indústria e
comércio e concorrência desleal); artigo 172 (duplicata simulada); artigo 175
(fraude no comércio); artigo 177 (fraudes e abusos na fundação ou administração
de sociedades por ações); artigos 272, 273, 274 e 279 (adulteração ou falsificação
de substâncias alimentícias ou medicinais e venda de substância alimentícia
avariada ou em desacordo com as normas sanitárias). De outra parte, o Decreto-lei
nº 7.661, de 21/06/1945, previu crimes falimentares em seus artigos 186 a 199 que
também têm como bem jurídico tutelado a economia.
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Já a Constituição Federal de 1946, ao tratar da Ordem Econômica e Social,
seguiu essa linha evolutiva e previu expressamente a repressão ao abuso do poder
econômico, que veio a ser penalmente prevista na Lei nº 4.137, de 10/09/1962,
podendo-se ainda citar, na vigência desta Constituição, o advento de dispositivos
penais em vista da prática de violações a Ordem Econômica na Lei nº 1.521, de
26/12/1951 (Economia Popular), na Lei nº 4.591, de 16/12/1964 (Incorporação e
vendas Imobiliárias), na Lei nº 4.595, de 31/12/1964 (Instituições Financeiras), na
Lei nº 4.728, de 14/07/1965 (Mercado de Capitais) e na Lei nº 4.729, de
14/07/1965 (Sonegação Fiscal).
Por sua vez, a Constituição Federal de 1967 – assim como também a
Emenda Constitucional nº 1 de 1969 – e a atual Constituição Federal de 1988
trilharam a mesma linha evolutiva de suas antecessoras desde 1934, destacando-
se a concepção de que a ordem econômica deve ter por fim a realização da justiça
social e o desenvolvimento nacional, com a particularidade de a Constituição
Federal promulgada em 1988 ser mais analítica e tratar mais pormenorizadamente
das possibilidades de intervenção estatal no campo da ordem econômica,
definindo formas e estabelecendo regras substancialmente mais claras para este
fim.98 99
É sob a égide dessas últimas duas Constituições que se visualiza a
proliferação de normas de direito penal econômico no Brasil, incrementando-se a
produção legislativa – exemplificativamente: a Lei nº 5.741, de 01/02/1971
(Esbulho Possessório de Imóvel Financiado pelo Sistema Financeiro da
Habitação), a Lei nº 6.453, de 17/10/1977 (Exploração e Utilização de Energia
Nuclear), a Lei nº 6.766, de 19/12/1979 (Parcelamento Irregular do Solo Urbano),
Lei nº 7.646, de 18/12/1987 (Proteção Intelectual sobre Programas de
Computador), a Lei nº 8078, de 11/09/1990 (Defesa do Consumidor) e a Lei nº
8.212, de 24/07/1991 (Seguridade Social)100 –, em face sobretudo dos valores da
igualdade e da solidariedade vigentes em tempos atuais, que necessitam de outros
meios para se firmarem, aliados ao desequilíbrio entre as forças econômicas e a
98 PRADO, L. R. Direito Penal Econômico, p. 28-34. 99 NUNES, Simone Lahorgue. Os fundamentos e os Limites do Poder Regulamentar no Âmbito do Mercado Financeiro, p. 10-24. 100 CASTILHO, Ela Wiecko V. de. O Controle Penal nos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, p. 110-116.
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crise pela qual passou a economia mundial nos anos oitenta e noventa do século
passado.101
Nesse contexto, releva destacar especialmente, com as palavras de Renato
SILVEIRA, que:
Quanto às leis extravagantes, são de se mencionar, em termos penais, a Lei 7.492/86, que define os crimes contra o sistema financeiro nacional, a Lei 8.137/90, a qual estabelece crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo, a Lei 8.176/91, em que são previstos crimes contra a ordem econômica e cria o sistema de Estoques de Combustíveis, bem como a Lei 9.613/98, que dispõe sobre os crimes de ‘lavagem’ ou ocultação de bens, direitos e valores e a prevenção da utilização do sistema financeiro para fins ilícitos, além de dar outras providências.102
Diante disso, a relação intrínseca existente, como se viu, ao longo da
História entre o Direito Penal Econômico e o Direito Econômico, cujos contornos
surgem da previsão constitucional de regulação da Ordem Econômica, conduziu
originariamente ao entendimento de que aquele seria um ramo deste e, portanto,
dele fazia parte103, o que, todavia, não se coaduna com o entendimento ora
vigente, que o coloca adequadamente como ramo do Direito Penal. A esse
propósito, aliás, João Marcello de ARAÚJO Jr assim se manifesta:
Podemos afirmar que existe um ramo do Direito Penal, que ainda denominamos de Direito Penal Econômico, que, embora esteja, em sua origem, vinculada ao Direito Econômico, é direito Penal, sujeito aos princípios liberais e garantias deste, a despeito de possuir, por se tratar de um Direito prático, destinado a garantir e fazer funcionar a política econômica, algumas características próprias.104
2.2. ÂMBITO DE ABRANGÊNCIA E LIMITES
Assentadas todas essas premissas, mostra-se viável se concluir que o Direito
Penal Econômico é um ramo do Direito Penal e, para mais além, em vista dos
bens jurídicos que tutela, integra o chamado Direito Penal Administrativo,
101 SILVEIRA, R. de M. J. Ob. cit., p. 143. 102 Ibid., p. 144. 103 A este propósito, René DOTTI (A Criminalidade Econômica..., p. 39) entende, a nosso ver de maneira equivocada, que o Direito Penal Econômico “vem a ser um ramo específico do chamado Direito Econômico”. 104 ARAÚJO Jr., J. M. de, O Direito Penal..., RBCCrim, p. 149.
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Secundário ou Extravagante, ao lado do denominado Direito Penal de Justiça,
Clássico ou Primário.
A esse propósito, aliás, afirma Jorge de Figueiredo DIAS que:
Enquanto os crimes do direito penal de justiça se relacionam em último termo, direta ou indiretamente, com a ordenação jurídico-constitucional relativa aos direitos, liberdades e garantias das pessoas, já os do direito penal secundário – e de que se encontram exemplos por excelência no direito penal econômico (da empresa, do mercado de trabalho, da segurança social...), financeiro, fiscal, aduaneiro, etc – se relacionam primariamente com a ordenação jurídico-constitucional relativa aos direitos sociais e à organização econômica. Diferença que radica, por sua vez, na existência de duas zonas relativamente autônomas na atividade tutelar do Estado: uma que visa proteger a esfera de atuação especificamente pessoal (embora não necessariamente ‘individual’) do homem: do homem ‘como este homem’; a outra que visa proteger a sua esfera de atuação social: do homem ‘como membro da comunidade’.105
No ponto, vê-se clara a correlação existente entre o que o autor chama de
Direito Penal Secundário (Administrativo ou Extravagante) e os direitos
fundamentais de segunda e terceira dimensões consagrados nas Constituições do
século XX, particularmente no pós Guerra, e o Direito Penal de Justiça (Clássico
ou Primário) e os direitos fundamentais de primeira dimensão, típicos do
Iluminismo e do Liberalismo-burguês abraçados a partir do século XVIII.106
Assim, reconhece-se a existência de duas categorias distintas de bens
jurídicos objeto de tutela por parte da norma penal (teoria dualista do bem
jurídico), a caracterizar, para fins dogmáticos, as duas distintas espécies de Direito
Penal citadas, conquanto se reconheça que haja divergência doutrinária acerca da
admissibilidade da classificação exposta, dado que, para os adeptos da teoria
monista do bem jurídico, seria verdadeiramente impossível o reconhecimento de
duas classes de bens jurídicos, porquanto os bens jurídicos somente possuem
validez como fundamento legitimador de incriminação quando examinados de um
ponto de vista individual, pessoal.107 108 109
105 DIAS, J. de F. Questões Fundamentais..., p. 67-68. 106 A este respeito, veja-se novamente a nota 68 supra. 107 Para um panorama histórico sobre ambas as correntes, veja-se SCHÜNEMANN, Bernd. Consideraciones críticas sobre la situación espiritual de la ciencia jurídico-penal alemana, p. 11-41. 108 FELDENS, L. Ob. cit., p. 55. 109 No ponto, destaca-se a posição de Winfried HASSEMER, que rechaça fortemente a possibilidade da chamada intervenção penal secundária, entendendo que para os casos de criminalidade econômica bastaria a intervenção dos regulamentos do que se denomina na Alemanha de ‘Direito Penal Administrativo’ (que atua quando se verifica alguma das infrações
47
A rigor, o reconhecimento da existência de um Direito Penal Secundário
com as bases mencionadas é mesmo corolário do término de uma sociedade
industrial em que os riscos para a existência provinham de acontecimentos
naturais ou de ações humanas definidas e próximas, para o que bastava a tutela
penal de bens jurídicos de nítida feição individual. Ocorre que, mais uma vez nas
palavras de Figueiredo DIAS:
O fim desta sociedade e a sua substituição por uma sociedade exasperadamente tecnológica, massificada e global, onde a ação humana, as mais das vezes anônima, se revela susceptível de produzir riscos também eles globais ou tendendo para tal, susceptíveis de serem produzidos em tempo e em lugar largamente distanciados da ação que os originou ou para eles contribuiu e de poderem ter como conseqüência, pura e simplesmente, a extinção da vida.110 Isso impõe a necessidade de que o Direito Penal, relativamente a essas
formas de ataque a uma nova gama de bens jurídicos fundamentais a exigir efetiva
tutela jurídica, assuma “uma função promocional e propulsora de valores
orientadores da ação humana na vida comunitária: eis a única via que se revelaria
adequada aos desafios formidáveis da ‘sociedade do risco’”.111 112
previstas nas chamadas ‘Ordnungswidrigkeiten’), em que se atribui competência à Administração para infligir penas pecuniárias de caráter não-criminal aos delitos econômicos, sem a intervenção do Juiz Penal. Sustenta o autor, ao criticar a inclusão do denominado Direito Penal Secundário na Ciência Penal, que “a proteção de bens jurídicos modernos é a proteção de bens jurídicos universais descritos do modo mais diverso possível. Os âmbitos nos quais o legislador atua, protegendo, invocando as fortes e atuais ameaças – isto é, onde ele não só modifica o mecanismo das antigas regras, como também procura encontrar novas exigências – aceitam bens jurídicos individuais somente no campo preliminar da lesão do bem jurídico e tratam, ao contrário, de interesses públicos, do sistema social. (...)Atualmente é difícil dizer o que se deve manter deste desenvolvimento. O que merece saudação é a tentativa de manter o contato teórico do Direito Penal com as modernas explicações do desenvolvimento social que ocorre em nossa volta e conosco. Mas seria precipitado o contentamento com o aumento de tarefas e significados com que se tem carregado o Direito Penal. Principalmente a vinculação às normas e aos princípios que marca o Direito Penal, impede a sua transformação em um instrumento eficaz flexível e superficial de orientação social global. O Direito Penal deve esperar que a violação ao Direito ocorra e não pode criminalizar profilaticamente (princípio do ‘Direito Penal do ato’); de acordo com o princípio da imputação individual, ele deve poder apontar um indivíduo concreto como o causador responsável pelos ‘transtornos’, antes de intervir; ele deve mensurar as suas intervenções de acordo com os critérios da proporcionalidade e não deve intervir se o caso em conflito é duvidoso (‘in dúbio pro reo’). Deve reparar no fato de que o sistema jurídico-penal pode preservar as vinculações clássicas mesmo sob a pressão da modernização, sem as quais pode se tornar perigoso com os seus instrumentos severos principalmente para uma sociedade moderna”. Introdução aos Fundamentos do Direito penal, p. 359-362. 110 DIAS, J. de F. Temas Básicos..., p. 158. 111 Ibid., p. 160. 112 De acordo com os ensinamentos de Ulrich BECK, os riscos da sociedade pós-industrial são globais, sistemáticos, invisíveis e, no mais das vezes, irreversíveis, freqüentemente escapando da percepção humana imediata. Decorrem do processo da industrialização e podem mesmo comprometer a própria existência das futuras gerações. Baseiam-se em decisões humanas calcadas freqüentemente na obtenção de vantagens econômicas mediatas ou imediatas. O autor cita como
48
Assim, embora se reconheça a existência de vozes dissonantes que apontam
para uma controvérsia doutrinária acerca da própria viabilidade técnico-jurídica de
utilização do Direito Penal para um tal fim,113 decorrente das diferentes
perspectivas da funcionalidade deste instituto, o fato é que a existência de um
Direito Penal Econômico é hoje amplamente aceita e tem como fundamento
teórico a concepção de um Estado Democrático e Social de Direito – conforme
largamente demonstrado acima – que, em uma sociedade de risco, adota uma
feição clara de ação positiva para a efetivação dos direitos fundamentais,
examinando-se o garantismo penal não somente pelo viés negativo, mas também
como garantismo positivo, consubstanciado no dever de proteção de determinados
bens fundamentais por meio do Direito Penal.114
A questão que a partir daí agora se coloca diz com os limites e as formas de
incriminação do Direito Penal Econômico.
Primeiramente, impõe-se reconhecer que em tais crimes, dada a natureza do
bem jurídico objeto de proteção, de titularidade supra-individual, tutela-se não
unicamente o dano experimentado por uma pessoa ou certo grupo de pessoas a
partir da ação, mas também e principalmente o perigo que dela decorre para a
coletividade,115 mediante a formulação de tipos de perigo concreto e, mais ainda,
exemplo clássico o despertar para a existência do que chama de sociedade de risco a tragédia radioativa experimentada em Chernobil que atingira a todos indistintamente, independentemente das fronteiras geográficas e da condição pessoal de cada sujeito passivo. La Sociedade del Riesgo, p. 11-13 e 25-56. 113 Vide nota 109 supra e a Seção 1 do Capítulo 4 infra. 114 STRECK, L. Ob. cit.,p. 308-311. 115 Usou-se a advertência de que o Direito Penal Econômico não tutela ‘unicamente o dano experimentado por uma pessoa ou grupo de pessoas’ porque não se pode excluir a possibilidade de um delito econômico vir a afetar ou pôr em perigo o patrimônio de certos indivíduos, considerados particularmente, sem, contudo, descaracterizar a sua natureza, ou seja, a circunstância de, prioritariamente, colocar em risco a correta ordenação econômica do país, no todo ou em parte dela. No ponto, vale ressaltar, com BUJAN PÉREZ, que também fazem parte do Direito Penal Econômico os crimes em que se “tutelam diretamente um bem jurídico individual de conteúdo econômico, mas com a particularidade de que se orientam a proteção de um bem jurídico mediato supra-individual, ou se se prefere, se caracterizam pelo fato de que entre os motivos ou razões que influíram na decisão do legislador de outorgar-lhes viés penal se conta a existência de interesses coletivos ou supra-individuais necessários para um correto funcionamento do sistema econômico em vigor”. Excluem-se desta categoria, ainda de acordo com o mesmo autor, os delitos patrimoniais clássicos (apropriação indébita, falências, estelionato) e aqueles que, ainda que possuindo indiscutível conteúdo econômico, orientam-se à proteção de outros bens jurídicos, como nos crimes envolvendo servidores públicos e malversação de fundos públicos. PÉREZ, Carlos Martínez-Buján. Derecho Penal: Parte General, p. 59-65. No mesmo sentido, Pablo Galain PALERMO sustenta que “o bem jurídico é um dos critérios diferenciadores desta classe de delitos, que os torna um grupo homogêneo, com similares características e problemas de interpretação distintos dos delitos clássicos. Estes delitos afetam diretamente um bem jurídico coletivo ou supra-
49
tipos de perigo abstrato, sendo, nas palavras de Klaus TIEDEMANN, “forçoso
concluir que o delito de perigo abstrato constitui a forma típica da infração,
ajustada em essência aos bens jurídicos supra-individuais tutelados”.116 São
considerados de perigo aqueles crimes que se contentam com a probabilidade de
dano ao bem jurídico objeto de tutela, sendo a divisão entre crimes de perigo
abstrato e de perigo concreto ainda bastante dissonante na doutrina, dizendo-se
usualmente que os primeiros contentam-se com a presunção legal de atuação
perigosa e os segundos exigem a demonstração da objetiva e real exposição a
perigo do bem jurídico tutelado.117 Em outras palavras: nos crimes de perigo
concreto o que se exige é que, com a ação, seja provável uma lesão que não possa
ser evitada, porque se criou, assim, uma acentuada desproteção ao bem jurídico,
enquanto nos crimes de perigo abstrato se vêem afetadas, com a ação por si só,
determinadas condições de segurança que são indispensáveis para que o titular do
bem jurídico possa desfrutar dele de forma despreocupada.118
Assim Rodrigo Sanchez RÍOS:
Na elaboração de um tipo penal que tutela bens jurídicos tradicionais, o legislador não tem dificuldades em delimitar a conduta do agente e a objetividade jurídica. A vida, a integridade física, a liberdade individual, entre outros, são bens jurídicos facilmente perceptíveis. O contrário ocorre na tutela dos bens jurídicos relacionados com a ordem econômico-financeira, posto que quando o autor sonega o Fisco, ou quando efetua operação de câmbio não-autorizada com o fim de promover evasão de divisas do país, a lesão ao bem jurídico não é de fácil percepção, pois afeta a sociedade em geral. Por exemplo, se se verificar que o auxílio prestado pelo Banco Central a determinados bancos pequenos mediante informação privilegiada, pelo qual se comprove que houve efetivo benefício patrimonial por meios ilícitos para um número restrito de pessoas, a percepção desta lesão aos cofres públicos não é imediata, pois não é o Banco Central a única e principal vítima; é a coletividade como um todo que é lesada. Vale dizer, quando o Governo por falta deste recurso deixa de investir em saúde, e em educação, por exemplo. Por isso a denominação bem jurídico coletivo ou supraindividual.
individual, de conteúdo econômico, conferindo deste modo a infração a qualidade de sócio-econômica. Também se incluem nesta categoria os delitos que tutelam de forma direta um bem jurídico individual de conteúdo econômico que se orienta a proteção de um mediato supra-individual (por ex: delitos contra a propriedade industrial, de concorrência desleal, delitos societários, etc). Por isso, se excluem da categoria dos delitos sócio-econômicos aqueles que protegem bens jurídicos patrimoniais clássicos que não incluem em seus elementos básicos uma afetação a ordem econômica”. RESTUTIA, Dardo Preza, ADRIASOLA, Gabriel e PALERMO, Pablo Galain. Delitos Econômicos, p. 106. Assim também TIEDEMANN, Klaus. Lecciones de Derecho Economico (comunitario, español, alemán), p. 30-33. 116 TIEDEMANN, Klaus, apud CABRERA, R. P. Ob. cit., p. 46. 117 NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal, v. 1, p. 110-111. 118 RIGHI, E., Ob. cit., p. 118.
50
Se a intervenção do Estado na Economia é inquestionável, ela vai se dar através de diversos órgãos estatais que controlem a atuação dos agentes econômicos, o funcionamento do sistema financeiro, previdenciário etc. E estas atividades funcionais configuram-se na doutrina penal moderna como verdadeiros bens jurídicos a serem tutelados. Dessume-se, portanto, que o controle penal não estará direcionado apenas a prever e reprimir a lesão objetiva da conduta, mas também a inobservância de normas de organização na qual esteja inserida a finalidade pública da atividade funcional. Perante estes objetos de tutela – uma vez identificado o objeto – a preferência da técnica de tipificação será pela modalidade dos tipos de perigo e as normas penais em branco.119
Muito se discute acerca da validade da utilização de tais técnicas legislativas
– normas penais em branco120 e tipos de perigo – na construção de tipos penais,
particularmente a que diz respeito à possibilidade de incriminação de ações que
impliquem a exposição do bem jurídico a mero perigo abstrato,121 em face dos
postulados constitucionais garantistas que orientam o Direito Penal, dentre os
quais se destaca o princípio da lesividade,122 que vedaria a estipulação de uma tal
espécie delitiva. Todavia, bem examinada a questão, temos que a objeção não tem
razão de ser, relevando-se considerar, no ponto, o que diz Ângelo Roberto Ilha da
SILVA:
O princípio da lesividade ou da ofensividade é, portanto, observado, sempre que o tipo penal tiver por finalidade proteger bens jurídicos, sendo que alguns, por suas características, tais como o meio ambiente, a ordem econômica, a fé pública e a saúde pública, entre outros, só podem ser, em certos casos, eficazmente tutelados de forma antecipada mediante tipos de perigo abstrato, seja em razão dos resultados catastróficos que um dano efetivo traria, seja pela irreversibilidade do bem ao estado anterior, seja pelo fato de não se poder mensurar o perigo imposto em certas circunstâncias, ou a inviabilidade de estabelecer o entrelaçamento entre
119
RÍOS, R. S. Reflexões sobre o Delito Econômico..., p. 439. 120 “Normas penais em branco são normas de tipo incompleto, normas em que a descrição das circunstâncias elementares do fato tem de ser completada por outra disposição legal, já existente ou futura. Nelas a enunciação do tipo mantém deliberadamente uma lacuna, que outro dispositivo legal virá integrar. Nessas leis existe sempre um comando ou uma proibição, mas enunciados, em geral, de maneira genérica, a que só a disposição integradora dará a configuração específica. A norma integradora estabelece, então, as condições ou circunstâncias que completam o enunciado do tipo da lei em branco. Traz para a lei em branco um complemento necessário, mas na lei penal é que se encontra, embora insuficientemente definido, o preceito principal”. BRUNO, Aníbal. Direito Penal, p. 190. 121 Sustentam a inconstitucionalidade dos crimes de perigo abstrato com presunção absoluta de lesão ao bem jurídico, dentre outros, FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón; ZAFFARONI, Eugênio Raul. Manual de Derecho Penal; SANTOS, Juzarez Cirino. A Moderna Teoria do Fato Punível; BIANCHINI, Alice. Pressupostos Materiais Mínimos da Tutela Penal. 122 De acordo com Nilo BATISTA este princípio possui quatro funções, a saber: proibir a incriminação de uma atitude interna; proibir a incriminação de uma conduta que não exceda o âmbito do próprio autor; proibir a incriminação de simples estados ou condições existenciais; e proibir a incriminação de condutas desviadas que não afetem qualquer bem jurídico. Introdução...., p. 91-97.
51
múltiplas ações e um determinado resultado danoso nos moldes rigorosos do processo penal. Em suma, os crimes de perigo abstrato não afrontam o princípio da lesividade sempre que estiverem a tutelar determinados bens que requeiram uma tal forma de proteção antecipada, ou seja, quando a infração penal não configure uma mera violação de dever de obediência, e, para tanto, é mister uma rigorosa técnica de tipificação, bem como uma precisa e taxativa descrição do modelo incriminador.123
Então, não se pode, a priori, descartar, por vício de inconstitucionalidade, a
utilização dessas técnicas de incriminação de condutas relativamente aos delitos
abarcados pelo Direito Penal Econômico,124 devendo, todavia, o legislador atentar,
ao erigir certas condutas que atentem contra a ordem econômica ao status de
infração penal, aos princípios que norteiam a intervenção penal em geral, a saber,
a lesividade, proporcionalidade,125 intervenção penal mínima e culpabilidade,126
desde que, mesmo se reconhecendo as particularidades do Direito Penal
Econômico como integrante de um Direito Penal Secundário, permanece ele se
sujeitando aos postulados constitucionais explícitos e implícitos que presidem a
elaboração dos tipos penais. Tudo isso observado, cumpridos estarão os requisitos
necessários à constitucionalidade da norma em questão, seja ela de dano ou de
perigo, concreto ou abstrato, seja ela mediante uma norma penal em branco.127 128
123 SILVA, Â. R. I. da., Ob. cit., p. 101. 124 O XIII Congresso da Associação Internacional de Direito Penal, que versou sobre ‘o conceito e os princípios fundamentais do direito penal econômico e da empresa’, ocorrido no Cairo em 1984, por meio da sua 9ª Recomendação estabeleceu que “o emprego de tipos delitivos de perigo abstrato é um meio válido para a luta contra a delinqüência econômica e da empresa, sempre e quando a conduta proibida pelo legislador venha especificada com precisão e a proibição se refira diretamente a bens jurídicos claramente determinados. A criação de delitos de perigo abstrato não está justificada quando obedeça exclusivamente o propósito de facilitar a prova dos delitos”. Referentemente à normas penais em branco, embora de maneira mais comedida, as admitiu por meio da 8ª Recomendação, recomendando, todavia, prudência em sua utilização: “em relação à descrição dos delitos, o emprego de técnicas de remissão a instâncias normativas fora do direito penal, para determinar quais são as condutas que se incriminam, pode conduzir ao perigo da imprecisão e falta de clareza, assim como ao excesso de delegação do poder legislativo para a Administração. A conduta ou o resultado proibidos devem estar especificados, tanto quanto possível, no próprio preceito penal”. VALLEJO, Manuel Jaén. Cuestiones Actuales Del Derecho Penal Econômico, p. 28 e 37. 125 No ponto, adquire relevância a utilização da técnica legislativa da norma penal em branco. LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. O princípio da proporcionalidade no Direito Penal Econômico. Temas de Direito Penal Econômico, p. 278-318. 126 Ibid., p. 83-146. 127 O Tribunal Constitucional Espanhol vem reconhecendo a constitucionalidade dos tipos de perigo concreto e de perigo abstrato reiteradamente. Assim, os acórdãos (‘sentencias’) 145/1985, 42/1999, 111/1999 e 02/2003. Da mesma forma o acórdão prolatado pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Espanhol, de 14/02/2002, ao tratar de um delito alimentar, estabeleceu que “quando existe uma proibição formal desta natureza, baseada no princípio da precaução, a realização do tipo não depende de um perigo concreto”. VALLEJO, M. J., Ob. cit., p. 29-33. 128 Assim também entendeu o Supremo Tribunal Federal recentemente, no julgamento do RHC 81.057-SP, Rel. Min. Ellen Gracie, ao rechaçar a tese da inconstitucionalidade da existência no
52
Assim, entende-se que não há regras específicas a incidirem sobre o Direito
Penal Econômico relativamente às garantias constitucionalmente asseguradas aos
indivíduos, em termos penais ou processuais, não havendo qualquer razão para
não se aplicarem os dispositivos a tanto referentes existentes desde o
Iluminismo,129 conforme mencionado por Rodrigo RÍOS, para quem a função de:
(...) efetivação dos valores impregnados na CF de 1988, e do ideal de justiça a ser cumprido pelo Direito Penal num Estado de Direito democrático e social, deve ser alcançada dentro – e no fiel respeito – dos princípios penais de garantia. Isso inclui a observância do princípio da intervenção mínima. Se estamos convencidos de que a finalidade do sistema penal é tutelar bens jurídicos essenciais ao indivíduo e à coletividade, a intervenção deste na ordem econômica é legítima e necessária dentro dos limites válidos para o Direito Penal clássico.130
No mesmo sentido se pronuncia Manoel Pedro PIMENTEL aduzindo
conclusivamente que o Direito Penal Econômico não é autônomo e, por isso, a ele
se aplicam todos os princípios fundamentais da doutrina consagrados pelo Direito
positivo penal.131
Quanto ao âmbito de abrangência, o Direito Penal Econômico abarca todos
os delitos que atentem contra a segurança e a regularidade da boa execução da
política econômica do Estado, dentre o que se colocam, por exemplo, a exata
aplicação das rendas públicas e arrecadação dos tributos (Direito Penal Financeiro
e Direito Penal Tributário),132 além dos crimes contra o sistema financeiro
nacional, que, nas palavras de PIMENTEL, “se refere muito mais à ordem
ordenamento jurídico-penal pátrio de crimes de perigo abstrato, reconhecendo, porém, que, mesmo nestes, deve sempre ser aquilatado quanto à lesividade potencial ao bem jurídico objeto de tutela referenciada ao caso concretamente sujeito a exame pelo juiz. RTJ 193, p. 984-985. 129 Em entendimento contrário se manifesta Jesús-Maria Silva SANCHEZ (A Expansão do Direito Penal, RT, 2002), que propõe, diante da inevitabilidade do que chama de Expansionismo Penal, e após criticá-lo, a criação de um direito penal de duas velocidades, que se baseia fundamentalmente na sanção que, por força do tipo penal, se haveria de aplicar às novas condutas objeto de incriminação, reservando-se as garantias previstas aos acusados somente aos casos em que a sanção prevista no tipo fosse a de privação da liberdade, impondo-se relativizá-las quando a apenação cominada consistisse em penas outras que não implicassem aquela. Tal entendimento não vem tendo boa acolhida por parte da doutrina, sobretudo porque significa um retrocesso na evolução da ciência penal em, ao menos, dois séculos, afora a circunstância de que propugnar a existência de dois sistemas de garantias completamente distintos no mesmo ramo do conhecimento jurídico implica, por certo, no futuro a sobreposição de um sobre o outro, havendo razões históricas para se crer que o segundo acabará por suplantar o primeiro. Em razão das críticas que assolam a Teoria em exame, não foi ela acolhida no presente trabalho. Veja-se mais detalhadamente sobre a questão na nota 287 adiante. 130 RÍOS, R. S., Reflexões sobre o Delito Econômico..., p. 438. 131 PIMENTEL, M. P., Direito Penal..., p. 111. 132 Ibid., p. 109-110.
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econômica do que à ordem financeira”,133 porquanto os crimes contra a ordem
financeira dizem respeito a algo bem diverso, que é a política financeira do
Estado, nesta compreendidos o emprego irregular de verba, o excesso de exação, a
violação de sigilo de proposta de concorrência pública, a fraude em concorrência
pública, os contratos irregulares de serviços ou de obras públicas e outros, vistos
no Código Penal como crimes contra a Administração.134
Especificamente, podem-se considerar crimes contra a ordem econômica e,
portanto, integrantes do Direito Penal Econômico, acorde com o disposto nos
artigos 3º e 170 da Constituição Federal do Brasil, as seguintes espécies delitivas,
seguindo-se a divisão proposta pelo anteprojeto da nova Parte Especial do Código
Penal de 1984/87, posteriormente substituído pelo esboço de nova Parte Geral de
1994: crimes contra a dignidade, liberdade, segurança e higiene do trabalho;
crimes de abuso do poder econômico e contra a livre concorrência, a economia
popular e as relações de consumo; crimes falimentares; crimes contra o
ordenamento urbano; crimes contra o sistema de tratamento automático de dados;
crimes contra o sistema financeiro nacional; crimes contra o sistema tributário;
crimes cambiais e aduaneiros.135
2.3. OS CRIMES CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO: GENERALIDADES
A Lei nº 7.492, de 16/06/1986, é composta por trinta e cinco artigos e
resulta da aprovação do anteprojeto de lei apresentado em 1983 pelo então
Deputado Federal Nilson Gibson, com as alterações contidas no Substitutivo
apresentado pelo Senador José Lins, transformado no projeto de lei nº 273. Foi
antecedido por diversos trabalhos que, embora não tenham sido aprovados, de
alguma forma colaboraram para a construção das idéias que vingaram na lei
aprovada, destacando-se o anteprojeto apresentado pelo Grupo de Trabalho do
Banco Central, formado em 1977; o anteprojeto da nova Parte Especial do Código
Penal, apresentado em 1984, que contemplava a matéria; o anteprojeto
apresentado pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional; e o anteprojeto
apresentado pela comissão instituída pelo Decreto nº 91.159, de 18/03/1985, e seu
133 Id., Crimes contra a Ordem Econômica, Financeira e Tributária. Revista dos Tribunais, v. 633, p. 251. 134 Ibid., p. 251.
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substitutivo elaborado por comissão formada no âmbito da OAB/RJ, dentre
outros.136 É fruto da experiência surgida após a aprovação da Lei nº 6.024, de
13/03/1974, que dispôs sobre a intervenção e a liquidação extrajudicial de
instituições financeiras, oferecendo meios para que o Banco Central interviesse
nas instituições financeiras privadas e públicas não federais, bem assim nas
cooperativas de crédito, quando isso se tornasse necessário, de acordo com as
prescrições contidas na mesma lei que, todavia, não previa qualquer hipótese de
responsabilização criminal para os responsáveis pelas entidades submetidas à
intervenção ou liquidação extrajudicial, deixando de tipificar as condutas que
pudessem acarretar as situações tais que conduzissem a instituição financeira à
situação em que se encontrava quando da necessária ação estatal.137
O fato é que, a partir de 1974, em face da entrada em vigor da Lei nº 6.024,
veio à lume uma série de quebras e escândalos envolvendo instituições que
compunham o Sistema Financeiro Nacional, sendo de se registrar que, entre
13/03/1974 e 31/12/1986, o sistema de dados do Banco Central registrou 316
(trezentas e dezesseis) empresas submetidas a regime especial de intervenção ou
liquidação, com destaque para os casos Halles, Áurea, Ipiranga, Lume, Tieppo,
Delfin, Capemi, Coroa-Brastel, Haspa, Letra, Sulbrasileiro, Habitasul,
Brasilinvest, Comind, Auxiliar e Maisonnave. Nesse contexto, diante da situação
verificada e da ausência de qualquer previsão de tipo legal de crime envolvendo
os administradores destas entidades, é que se logrou aprovar a Lei nº 7.492/86, 138
em absoluto acordo com o disposto nos artigos 157 e 163 da Constituição Federal
de 1967 então em vigor, que, embora não previsse expressamente o Sistema
Financeiro Nacional,139 dispunha de forma clara sobre a Ordem Econômica e
Social e os deveres relacionados ao exercício das atividades a tanto relativas,
dentre as quais se inclui, como vimos anteriormente, a regularidade de exercício
do mencionado sistema.
De acordo com Rodolfo Tigre MAIA, a lei federal em referência:
135 ARAÚJO Jr., J. M. de, O Direito Penal..., RBCCrim., p. 145-146. 136 CASTILHO, E. W. V. de, Ob. cit., p. 128-129. 137 PIMENTEL, M. P., Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional..., p. 13-24. 138 Ibid., p. 125. 139 Ao contrário, a atual Constituição Federal o prevê expressamente em seu art. 192 nos seguintes termos: “o sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram”.
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(...) tem por escopo assegurar na esfera do Direito Penal a proteção ao Sistema Financeiro Nacional. Ainda que com nuanças e especificidades marcantes, que emergem dos diversos tipos penais que a conformam, o bem jurídico que fundamenta e valida globalmente sua existência é o Sistema Financeiro Nacional. Assim, são criminalizadas aquelas ações ou omissões humanas, praticadas ou não por agentes institucionalmente ligados ao sistema, dirigidas a lesionar ou colocar em perigo o SFN, enquanto estrutura jurídico-econômica global valiosa para o Estado brasileiro, bem como as instituições que dele participam, e o patrimônio dos indivíduos que nele investem suas poupanças privadas.140
Nas palavras de João Marcello de ARAÚJO Jr.:
Os delitos financeiros se destinam a punir as condutas intoleráveis, que importem em manobras lucrativas em prejuízo geral, mediante o aproveitamento da estrutura e organização do sistema financeiro, no qual se incluem as empresas de capital aberto. Assim sendo, o delito financeiro expressa uma disfunção do sistema financeiro e o seu conteúdo está limitado pelo bem jurídico a ser protegido.141
A rigor, analisando-se o objeto e a forma de tutela das normas penais
contidas na Lei em apreço, adquire especial relevância o aspecto da confiança no
mercado financeiro que os investidores e o próprio Estado devem ter quanto ao
bom funcionamento das instituições,142 sobretudo quando se está a referir ao
investimento de capitais para guarda e depósito, uma vez que o investidor confia,
além da liquidez da instituição em que aplica seus recursos econômicos, na
organização, estrutura e eficiência de controle do mercado em que aquela se
insere, daí, pois, também a justificativa para a criminalização de certas condutas
que atentem contra esse sistema.143
O sistema financeiro, reprise-se, foi estruturado com o advento da Lei nº
4.595/64, que instituiu o chamado Sistema Financeiro Nacional. O seu órgão
máximo é o Conselho Monetário Nacional, que dita as regras gerais, secundado
pelo Banco Central, entidade executiva, e este pelas autoridades de apoio, que são
a Comissão de Valores Mobiliários, o Banco do Brasil, o Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), e a Caixa Econômica Federal.
Na base do sistema estão as instituições financeiras (bancos comerciais, demais
140 MAIA, Rodolfo Tigre. Dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, p. 15. 141 ARAÚJO Jr., J. M. de, Os crimes contra o Sistema Financeiro no Esboço de Nova Parte Especial do Código Penal de 1994. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 11, p. 148. 142 No ponto, veja-se o contido na Seção 1, Capítulo 2 supra. 143 MAZLOUM, Ali. Crimes do Colarinho Branco, p. 42-43.
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bancos de desenvolvimento, cooperativas de crédito, sociedades de crédito,
financeiras, distribuidoras de títulos e valores mobiliários, corretoras e sociedades
de arrendamento mercantil e de crédito mobiliário, bolsas de valores e fundos de
investimentos) a quem incumbe a responsabilidade pela intermediação entre os
que poupam e os que investem, operando em conformidade com as orientações
traçadas pelas autoridades monetárias (CMN e BACEN). Referentemente ao
Banco do Brasil e à Caixa Econômica Federal merece registro o fato de serem
considerados, a um só tempo, autoridades de apoio – o Banco do Brasil porque é
agente financeiro do Tesouro Nacional e porque nele funciona a câmara de
compensação de cheques, entre outras atribuições,144 e a Caixa Econômica
Federal por ser a responsável pela execução das políticas financeiras da União
relacionadas à habitação popular, saneamento básico e concessão de empréstimos
a baixo custo a certos setores da atividade econômica145 – e também instituições
financeiras, por atuarem igualmente como bancos comerciais.146
O mercado financeiro pode ser subdividido em Mercado Monetário, em que
se transacionam haveres de curto e curtíssimo prazo, financiando-se necessidades
imediatas de caixa de bancos comerciais e do Tesouro Nacional, dele participando
o Banco Central em conjunto com o sistema financeiro; do Mercado de Crédito,
em que se atendem às necessidades de curto e médio prazos, como o
financiamento de bens duráveis aos consumidores e de capital de giro às
empresas, atuando nele os intermediários financeiros bancários; Mercado de
Capitais, em que se realizam operações de médio e longo prazos para o
financiamento de capital fixo das empresas, por meio de operações em Bolsa de
Valores; e Mercado Cambial, em que se realizam as operações de compra e venda
de moeda estrangeira por instituições financeiras devidamente autorizadas pelo
Banco Central.147
Para os fins de incidência da Lei de Crimes contra o Sistema Financeiro
Nacional – também conhecida como Lei de Crimes do Colarinho Branco – o
conceito de instituição financeira é alargado e não coincide totalmente com aquele
144 Veja-se a respeito o art. 19 da Lei nº 4.595/64. 145 Conforme estabelece o art. 22 da Lei nº 4.595/64. 146 Veja-se a propósito da estrutura do Sistema Financeiro Nacional o contido na Seção 2, Capítulo 1 supra. 147 HILLBRECHT, Ronald. Economia Monetária, p.22.
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ofertado pelo art. 17 da Lei nº 4.595/64148 para que, assim, não escape qualquer
conduta lesiva, de dano ou de perigo, contra o sistema financeiro praticada por
qualquer pessoa jurídica ou física que nele interfira, sendo fruto da experiência do
Banco Central na identificação e trato das diversas entidades que lidavam com
recursos de terceiros ou com títulos ou valores mobiliários.149 No mesmo sentido
– evidenciando mais uma vez a crescente importância social e jurídica do Sistema
Financeiro Nacional e a necessidade de sua regulação, em quaisquer de suas
modalidades de expressão, acompanhando aquelas que surgiram ou foram
incrementadas no final do século XX em razão das mudanças do mercado –,
convém se atentar para a abrangente definição de instituição financeira prevista na
Lei Complementar nº 105/2001, que, ao dispor sobre a questão do sigilo das
operações financeiras, evidencia a tendência contemporânea de alargamento de
seu âmbito de abrangência não só na esfera do Direito Penal, tal como já
preconizava a mencionada Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro, mas
também em outros ramos do Direito, como aquele de que se ocupa a novel
disposição legal.150
Assim, considera-se, de acordo com o art. 1º, da Lei nº 7.492/86, instituição
financeira, para efeitos penais, a pessoa jurídica de direito público ou privado que
148 “Art. 17. Consideram-se instituições financeiras, para os efeitos da legislação em vigor, as pessoas jurídicas públicas ou privadas, que tenham como atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia de valor de propriedade de terceiros. Parágrafo único. Para os efeitos desta lei e da legislação em vigor, equiparam-se às instituições financeiras as pessoas físicas que exerçam qualquer das atividades referidas neste artigo, de forma permanente ou eventual.” 149 PIMENTEL, M. P., Crimes contra o Sistema Financeiro..., p. 25-32. 150 LC 105/2001. Art. 1o As instituições financeiras conservarão sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados. § 1o São consideradas instituições financeiras, para os efeitos desta Lei Complementar: I – os bancos de qualquer espécie; II – distribuidoras de valores mobiliários; III – corretoras de câmbio e de valores mobiliários; IV – sociedades de crédito, financiamento e investimentos; V – sociedades de crédito imobiliário; VI – administradoras de cartões de crédito; VII – sociedades de arrendamento mercantil; VIII – administradoras de mercado de balcão organizado; IX – cooperativas de crédito; X – associações de poupança e empréstimo; XI – bolsas de valores e de mercadorias e futuros; XII – entidades de liquidação e compensação; XIII – outras sociedades que, em razão da natureza de suas operações, assim venham a ser consideradas pelo Conselho Monetário Nacional. § 2o As empresas de fomento comercial ou factoring, para os efeitos desta Lei Complementar, obedecerão às normas aplicáveis às instituições financeiras previstas no § 1o.
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tenha como atividade principal ou acessória, cumulativamente ou não, a captação,
intermediação ou aplicação de recursos financeiros de terceiros, em moeda
nacional ou estrangeira, ou a custódia, emissão, distribuição, negociação,
intermediação ou administração de valores mobiliários,151 sendo considerada
instituição financeira por equiparação a pessoa jurídica que capte ou administre
seguros, câmbio, consórcio, capitalização ou qualquer tipo de poupança, ou
recursos de terceiros, bem como a pessoa natural que exerça qualquer das
atividades referidas no artigo de lei em questão, ainda que de maneira eventual.
Percebe-se claramente que a amplitude do conceito de instituição financeira
para fins criminais, destacando-se as chamadas ‘instituições financeiras por
equiparação’, teve como norte “a preocupação do legislador em tutelar todas as
atividades que envolvam recursos financeiros de terceiros e a credibilidade do
Sistema Financeiro em geral. Em última instância: a proteção do patrimônio e da
ordem pública”,152 nesta compreendida, obviamente, a ordem econômica, como se
viu. Independe, portanto, da formatação jurídica de que reveste o ente que exerce
a função, nem da sua habitualidade, nem da existência de prévia autorização ou
não emitida pelo ente público para seu funcionamento, sendo relevante para o fim
de incidência da norma penal a espécie de atividade desenvolvida, principal ou
acessoriamente.153
É, pois, com essa perspectiva que se passa, doravante, a analisar a prática
delitiva prevista no artigo 17, caput e parágrafo único, I, da lei em comento,
relevando-se para outra oportunidade a análise do tipo constante no seu inciso II,
dada a sua distinção ontológica do contido na cabeça do artigo.
151 Os valores mobiliários são os documentos emitidos por empresas para captação de recursos financeiros de terceiros no mercado, materializados na emissão e negociação de ações no chamado mercado financeiro, em especial no mercado de capitais (bolsas de valores e mercado de balcão), na forma da regulamentação existente na Lei nº 4.728/65. 152 COSTA Jr., Paulo José da, et alli. Crimes do Colarinho Branco, p. 65. 153 SILVA, Antônio Carlos Rodrigues da. Crimes do Colarinho Branco: Lei nº 7.492/86, p. 26-27.
59
3. O ART. 17, CAPUT, E PARÁGRAFO ÚNICO, I, DA LEI DE CRIMES CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL
3.1. ANTECEDENTES HISTÓRICOS E O ÂMBITO DE INCIDÊNCIA DO TIPO
Assim dispõe o art. 17 da Lei nº 7.492/86:
Art. 17. Tomar ou receber, qualquer das pessoas mencionadas no art. 25 desta lei, direta ou indiretamente, empréstimo ou adiantamento, ou deferi-lo a controlador, a administrador, a membro de conselho estatutário, aos respectivos cônjuges, aos ascendentes ou descendentes, a parentes na linha colateral até o 2º grau, consangüíneos ou afins, ou a sociedade cujo controle seja por ela exercido, direta ou indiretamente, ou por qualquer dessas pessoas: Pena - Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem: I - em nome próprio, como controlador ou na condição de administrador da sociedade, conceder ou receber adiantamento de honorários, remuneração, salário ou qualquer outro pagamento, nas condições referidas neste artigo; II – omissis.
Por seu turno o art. 25 da mesma Lei assim prevê:
Art. 25. São penalmente responsáveis, nos termos desta lei, o controlador e os administradores de instituição financeira, assim considerados os diretores, gerentes (Vetado). § 1º Equiparam-se aos administradores de instituição financeira (Vetado) o interventor, o liqüidante ou o síndico.
Remotamente o antecedente legislativo penal brasileiro relacionado a este
crime é o artigo 177, III, §1º, do Código Penal,154 do qual derivou por
especialização o artigo 34, I e § 1º, da Lei nº 4.595/64,155 que acabou por ser
154 Art. 177 - Promover a fundação de sociedade por ações, fazendo, em prospecto ou em comunicação ao público ou à assembléia, afirmação falsa sobre a constituição da sociedade, ou ocultando fraudulentamente fato a ela relativo: Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa, se o fato não constitui crime contra a economia popular. § 1º - Incorrem na mesma pena, se o fato não constitui crime contra a economia popular: III - o diretor ou o gerente que toma empréstimo à sociedade ou usa, em proveito próprio ou de terceiro, dos bens ou haveres sociais, sem prévia autorização da assembléia geral. 155 Art. 34. É vedado às instituições financeiras conceder empréstimos ou adiantamentos: I - A seus diretores e membros dos conselhos consultivos ou administrativo, fiscais e semelhantes, bem como aos respectivos cônjuges; II - Aos parentes, até o 2º grau, das pessoas a que se refere o inciso anterior;
60
sucedido pelo mencionado artigo 17 da Lei dos Crimes contra o Sistema
Financeiro Nacional que revogou o anterior exclusivamente com relação às suas
disposições criminais, em vista do princípio segundo o qual a lei posterior que
disciplina a matéria revoga a anteriormente em vigor, mantendo-se vigente o
artigo da Lei da Reforma Bancária em seus cinco incisos no que diz com as
prescrições de caráter administrativo.156
Trata-se de crime pluriofensivo, pois tem várias objetividades jurídicas
passíveis de lesão ou de colocação em perigo, sendo a principal a boa execução da
política econômica do Estado e, secundariamente, a fé pública, em especial na
hipótese prevista no inciso II do parágrafo único do artigo e o patrimônio de
terceiros, nestes compreendidos os sócios e os credores da instituição financeira. É
crime doloso, podendo ser direto ou eventual,157 próprio,158 de mera conduta159 e
de perigo presumido,160 constituído de tipos anormais,161 pela presença de
III - As pessoas físicas ou jurídicas que participem de seu capital, com mais de 10% (dez por cento), salvo autorização específica do Banco Central da República do Brasil, em cada caso, quando se tratar de operações lastreadas por efeitos comerciais resultantes de transações de compra e venda ou penhor de mercadorias, em limites que forem fixados pelo Conselho Monetário Nacional, em caráter geral; IV - As pessoas jurídicas de cujo capital participem, com mais de 10% (dez por cento); V - Às pessoas jurídicas de cujo capital participem com mais de 10% (dez por cento), quaisquer dos diretores ou administradores da própria instituição financeira, bem como seus cônjuges e respectivos parentes, até o 2º grau. § 1º A infração ao disposto no inciso I, deste artigo, constitui crime e sujeitará os responsáveis pela transgressão à pena de reclusão de um a quatro anos, aplicando-se, no que couber, o Código Penal e o Código de Processo Penal. § 2º ‘omissis’. 156 PAULIN, Luiz Alfredo. Dos empréstimos e adiantamentos de instituições financeiras a pessoas ligadas. Disciplina em face do art. 17 da Lei 7.492, de 16.06.1986. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, n. 2, p.76. 157 Não se admite sua realização na forma culposa e o dolo é o chamado ‘dolo de perigo’, que, ao contrário do ‘dolo de dano’, mesmo eventual ou da culpa consciente, se caracteriza por necessitar exclusivamente que o agente esteja “ciente de sua conduta, do resultado potencialmente lesivo, ou seja, da exposição de perigo ao bem penalmente tutelado e do liame de causalidade entre aquela e este. Deve, pois, ter conhecimento da possibilidade do implemento do dano, sem que este seja perseguido ou mesmo admitido por ele”. SILVA, Â. R. I. da., Ob. cit., p. 61. Igualmente, admite-se o dolo eventual, como aliás ocorre com a maioria dos delitos econômicos. Assim, PÉREZ, C. M.B., Ob. Cit., p. 166-176. 158 Também chamados de ‘crimes especiais’ são aqueles em que “o círculo de agentes possíveis fica reduzido àquelas pessoas designadas pelo legislador (exemplo: funcionário público, no peculato; militar, nos crimes militares). Nestes, quem não possuir a característica prevista no tipo só pode ser considerado co-autor ou partícipe, jamais autor do crime”. TOLEDO, F. de A., Ob. cit., p. 142. 159 Nos delitos de mera atividade não é necessário que a ação seja seguida da causação de um resultado separável espaço-temporalmente da conduta. MIR PUIG, Santiago. Derecho Penal, Parte General, p. 225. 160 A figura do crime de perigo presumido, na definição de Francesco Antolisei, cunhada em 1914, se identifica, para a doutrina moderna, com o delito de perigo abstrato, referido na Seção 2, Capítulo 2. Assim: BATISTA, N., Empréstimos Ilícitos na Lei nº 7.492/86, Revista Forense, v. 352, p. 143-144.
61
elementos normativos162 tais como aqueles designados pelas expressões
‘empréstimo’, ‘adiantamento’, ‘controlador’, ‘administrador’, ‘conselho
estatutário’, etc.163
Inicialmente, impõe-se examinar, a partir do reconhecimento da natureza do
crime em referência e dos bens jurídicos que procura tutelar, a razão que presidiu
a incriminação das condutas em exame, a partir da vedação da realização do
mútuo entre as pessoas listadas no tipo e a instituição financeira, tendo em conta a
estrutura dos entes que compõem um sistema financeiro e sua função
desempenhada na coletividade.
A rigor, o sistema financeiro é composto por intermediários financeiros que
captam depósitos ou fundos de terceiros e, a seguir, os emprestam a outras
pessoas. Nas palavras de Luiz Alfredo PAULIN:
As instituições financeiras intermediam moeda. E, com isso, desempenham um papel de relevância ímpar para a sociedade como um todo, a saber: otimizam a atividade econômica alocando capitais de espera ou superavitários para empreendimentos que gerarão renda e emprego.164
Ou seja, com os valores obtidos por meio dos depósitos realizados nas
instituições financeiras por quem possui disponibilidade para guarda ou
investimento, decorrente de sobra de ativos, esta financia, mediante empréstimos a
terceiros, as atividades daqueles que necessitam destes recursos para realizar
alguma atividade econômica e deles não dispõem momentaneamente, fazendo
com que haja maior crédito em circulação e, com isso, seja a economia
alavancada. É pressuposto do sistema que haja certos indivíduos com
161 Tipos anormais são aqueles que retiram do tipo sua característica puramente objetiva e descritiva e nele inserem elementos subjetivos e normativos do injusto que passam a integrar a descrição da conduta incriminada. NORONHA, E. M., Ob. cit., p. 99-100. 162 Os elementos normativos do tipo só podem ser determinados mediante especial valoração jurídica ou cultural. São exemplos os casos em que o tipo se refere a elementos cujo conhecimento exige por parte do juiz recurso a valores éticos no meio cultural e que são, em última análise, valores culturais. Os elementos normativos enfraquecem a função de garantia do tipo, introduzindo certa indeterminação no conteúdo da conduta punível. A valoração realizada pelo juiz deve ser objetiva, ou seja, segundo os padrões vigentes, e não conforme o entendimento peculiar do julgador (FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal, p. 194-195). Para Luiz LUISI (Ob. cit., p. 58), os elementos normativos se dividem em tipos normativos propriamente ditos e tipos axiológicos, sendo os primeiros aqueles elementos do tipo já valorizados, isto é, de aplicações de valorações já realizadas pelo ordenamento jurídico. São conceitos já expressos em normas jurídicos, e com significações consagradas. Exemplos de juízos normativos propriamente ditos são as expressões ‘funcionário público’, ‘estrangeiro’, ‘poder publico’, etc. 163 PIMENTEL, M. P., Crimes contra o sistema financeiro..., p. 133. 164 PAULIN, L. A., Ob. cit., p. 78.
62
disponibilidade financeira superior às suas necessidades e outros com
disponibilidade financeira inferior às suas, pois somente neste contexto é que
ingressam os intermediários que farão com que ocorra, mediante a aplicação das
regras de um mercado capitalista, a redistribuição circunstancial desses haveres.
Tendo em consideração, portanto, a natureza sensível dessa atividade é que
se exige, para o seu exercício, autorização especial por parte da autoridade pública
responsável pelo controle da atividade.165 Só a partir de então é que se poderá
efetuar a captação da poupança popular e:
A autorização estatal está vinculada ao cumprimento pelo interessado de suas obrigações, a saber: a de servir como intermediária. Ou seja, deve ele possibilitar que capitais de setores superavitários que, em princípio ficariam estéreis, sejam direcionados para setores deficitários, que só não iniciaram novos empreendimentos por falta de recursos. Com isto ganham a economia e a sociedade como um todo, já que a poupança popular é direcionada para a geração de desenvolvimento econômico.166
Nesse contexto é que a instituição financeira que toma recursos do público e
os alcança a si mesma, seus colaboradores ou coligados não cumpre a sua função
dentro do sistema do qual faz parte, pois não está intermediando recursos, mas
efetivamente fazendo parte dessa relação que se propõe a figurar como terceira.
Demais, outra razão se impõe considerar, que é o mau gerenciamento dos
riscos, uma vez que, ao mutuar os valores que formalmente são seus – mas que, na
verdade, pertencem aos investidores em geral que lhe confiaram a guarda e
podem, quando necessário, efetuar seu resgate – a pessoas com as quais possui
estreito grau de ligação, a instituição financeira não atende aos ditames da
prudência que devem reger as relações financeiras, porquanto dificilmente haverá
imparcialidade na análise da concessão de um tal crédito por parte do
empreendimento e, assim, se estará elevando os riscos de inadimplemento
demasiadamente para além do razoável, criando um clima de desconfiança
relativamente ao sistema em geral por parte dos poupadores, que se sentirão
menos predispostos a depositar e investir seus haveres em qualquer ente que dele
faça parte. Daí advêm sérios riscos para o sistema econômico, referentemente à
165 Art. 18, da Lei nº 4.595/64. 166 PAULIN, L. A., Ob. cit., p. 79.
63
concessão de linhas de crédito para quem delas necessita, em face da escassez dos
depósitos existentes e disponíveis para realocação.
Por tudo isso, sintetizando as questões postas, Nilo BATISTA afirma que o
tipo em referência se inscreve na classe dos ‘delitos de infidelidade’, entendida
esta como especial modo de execução,167 a partir da administração desleal, no
abuso de confiança. No caso particular dos crimes contra o sistema financeiro,
havendo a conduta tipificada no artigo 17 da Lei, ocorre o chamado ‘abuso de
crédito’.168
Nas palavras de José Carlos TÓRTIMA:
A norma sub examen coíbe a indevida locupletação dos diretores e sócios da instituição financeira e dos seus parentes às custas do patrimônio desta, através de empréstimos ou adiantamentos que, aliás, freqüentemente não passam de operações fictícias, montadas com o único fim de desviar os recursos da empresa para as contas de particulares.169
De uma primeira leitura do tipo é imperioso se concordar com o que disse
Fábio Konder COMPARATO ao afirmar que:
Decididamente, a definição criminal constante do art. 17 da Lei 7.492, de 16.06.1986, pela sua sofrível redação, continua a suscitar extravios interpretativos. O legislador violou aí, com efeito, a regra elementar de boa técnica, consistente em não encambulhar várias figuras delitivas na mesma unidade normativa, encadeando orações em um período espichado, com uma multiplicidade de intercalações e retrorreferências.170
Exemplo disso é que existem vários comportamentos que podem constituir
os elementos objetivos do tipo, havendo, na cabeça do artigo, os verbos ‘tomar’,
‘receber’ e ‘deferir’, enquanto no inciso I do parágrafo único são eles ‘conceder’ e
167 O autor adverte para “um risco teórico que espreita todo esforço de reconstrução dogmática de qualquer delito de infidelidade. Uma coisa é considerar a infidelidade da perspectiva de especial modo de execução, certamente menos estudado do que, por exemplo, a violência ou a fraude, porém com identidade própria e importantes funções a desempenhar na economia do tipo objetivo, do tipo subjetivo, do erro etc. Outra coisa é tomar a infidelidade como conteúdo substancial do injusto, fundante de sua própria punibilidade. (...) Cabe, contudo, advertir veementemente para o risco que operadores jurídicos afrontam ao se debruçarem sobre um delito que contém um modo de execução infidelidade: o risco de repetirem, no microcosmo teórico do delito em questão, o gravíssimo desvio do direito penal nazista, convertendo a infidelidade no eixo material do injusto e menosprezando a sempre indispensável ofensa ao bem jurídico tutelado”. BATISTA, N., Empréstimos Ilícitos..., Revista Forense, p. 141-142. 168 Ibid., p. 140-141. 169 TÓRTIMA, José Carlos. Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, p. 111. 170 COMPARATO, F. K., Crime contra a ordem econômica. Interpretação do art. 17 da Lei 7.492/86, Revista dos Tribunais, v. 749, p.555.
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‘receber’, e no inciso II do mesmo parágrafo são ‘promover’ e ‘receber’, sendo
diversos também os objetos materiais, destacando-se no ‘caput’ e no inciso I do
parágrafo o ‘empréstimo’, o ‘adiantamento’, os ‘honorários’, a ‘remuneração’, o
‘salário’, ou ‘qualquer outro pagamento’, e no inciso II o ‘lucro’, desde que
distribuído de forma disfarçada.171
Examinemo-los quanto ao que é objeto específico deste estudo.
As primeiras figuras típicas previstas e que constituem objeto do presente
estudo são as de ‘tomar’ ou ‘receber’, as pessoas dispostas no art. 25 da Lei, direta
ou indiretamente, empréstimo ou adiantamento, devendo-se compreender que o
verbo ‘tomar’ tem por objeto material ‘empréstimo’ e o verbo ‘receber’ tem por
objeto material o adiantamento,172 bem como deferi-lo – melhor teria sido dizer
‘deferi-los’173 – a controlador, a administrador, a membro de conselho estatutário,
aos respectivos cônjuges, aos ascendentes ou descendentes, a parentes na linha
colateral até o 2º grau, consangüíneos ou afins, ou a sociedade cujo controle seja
por ela exercido, direta ou indiretamente, ou por qualquer dessas pessoas.
De início, a questão que se coloca diz com o exato significado dos
vocábulos ‘empréstimo’ e ‘adiantamento’, que são entendidos como elementos
normativos do tipo, tanto quanto das palavras ‘controlador’ e ‘administrador’.
Nesse sentido, impositivo se mostra pesquisar o significado destas expressões em
face da legislação pátria.
Assim, deve-se buscar a definição de ‘empréstimo’, que é uma espécie de
contrato, prevista no Código Civil pátrio, particularmente nos artigos 579174 e
586,175 que tratam respectivamente do comodato e do mútuo.176 Pesquisando-se na
doutrina, por seu turno, obtém-se um conceito único para o instituto: de acordo
com Orlando GOMES, “é o empréstimo o contrato em que uma das partes recebe,
para uso ou utilização, uma coisa que, depois de certo tempo, deve restituir ou dar
171 PIMENTEL, M. P., Crimes contra o Sistema Financeiro..., p. 134. 172 MAIA, R. T., Ob. cit., p. 111. 173 TÓRTIMA, J. C., Ob. cit., p. 108. 174 Art. 579. O comodato é o empréstimo gratuito de coisas não fungíveis. Perfaz-se com a tradição do objeto. 175 Art. 586. O mútuo é o empréstimo de coisas fungíveis. O mutuário é obrigado a restituir ao mutuante o que dele recebeu em coisa do mesmo gênero, qualidade e quantidade. 176 “O mútuo é empréstimo de consumo. No comodato, a coisa é cedida para uso; no mútuo, para consumo, material ou jurídico. Essa destinação decorre da qualidade das coisas que podem ser mutuadas”. No mútuo a propriedade é transferida ao mutuário e no comodato ela permanece com o comodante. GOMES, Orlando, Contratos, p. 319.
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outra do mesmo gênero, quantidade e qualidade”.177 O empréstimo, tanto na
modalidade de comodato quanto na de mútuo, é um contrato real e, portanto,
depende, para a sua realização, da tradição da coisa e, enquanto não ocorrer a
transferência da posse do bem, o contrato não se aperfeiçoa.178
Ante o princípio da lesividade, por seu turno, entende-se que a modalidade
delituosa em apreço não se aperfeiçoa se o empréstimo se der sob a forma de
comodato, uma vez que, neste caso, não ofende o bem jurídico objeto de tutela o
simples uso de bens ou haveres sociais, visto que não coloca sob risco o bem
objeto de proteção criminal,179 desimportando, no caso, o fato de se tratar de tipo
incriminado de perigo presumido,180 sendo de relevo registrar, com Nilo
BATISTA, que “situações nas quais a ofensa ao bem jurídico tutelado pela norma
se apresenta impossível – negando cabalmente o caráter perigoso da conduta – são
afastadas da incidência penal”,181 sendo evidentemente esta a hipótese quando se
toma ou recebe empréstimo sob a forma de comodato. Na mesma balada vai a
lição de Manoel Pedro PIMENTEL ao dizer que “ao contrário do que dispõe o CP
(art. 177, §1º, III) relativamente às sociedades anônimas, a lei ora examinada não
prevê o uso dos bens ou haveres sociais. Portanto, o objeto material não alcança o
acervo social, quanto ao simples uso”.182 Luiz Alfredo PAULIN endossa estas
palavras com sólidos argumentos e assevera que:
Somente seria possível, em se tratando de instituição financeira, se falar em assumir riscos ‘contra si mesmo’ na medida em que o empréstimo fosse de valores, bem sabidamente fungível. Não haveria, obviamente, risco, no sentido aqui utilizado, em uma instituição emprestar a uma coligada veículos, por exemplo. Haveria, isto sim, risco no empréstimo de coisas fungíveis, como, por exemplo, dinheiro. Também não se poderia falar que a instituição estaria deixando de cumprir sua função básica, qual seja, de direcionar poupança de setores superavitários para setores deficitários, exceto na hipótese de empréstimo de coisa fungível, especialmente dinheiro. Portanto, não pode subsistir dúvida que o empréstimo a que se refere o art. 17, na verdade, é o mútuo. É que na linguagem bancária utiliza-se deste termo como mútuo.183
177 Ibid., p. 314. 178 WALD, A. Obrigações e Contratos, p. 377. 179 Na mesma ordem de idéias têm-se as palavras de Rodolfo Tigre MAIA, Ob. cit., p 111, e DOTTI, René Ariel, Crime contra o Sistema Financeiro Nacional, Revista dos Tribunais, ano 84, v. 718, p. 366-370. 180 Neste sentido, veja-se a posição do Supremo Tribunal Federal exposta em RTJ 193, p. 984-985, cujo julgado restou sintetizado neste trabalho na nota 128 supra. 181 BATISTA, N., Empréstimos Ilícitos..., Revista Forense, p. 143. 182 PIMENTEL, M. P., Crimes contra o Sistema Financeiro..., p. 134.
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O objeto do empréstimo – exclusivamente na modalidade de mútuo – pode
ser dinheiro ou qualquer outra coisa fungível, nos precisos termos do disposto no
art. 586 do Código Civil, desde que possua valor econômico e esteja vinculado à
instituição financeira.
De sua vez, entende-se por ‘adiantamento’, na precisa lição de Rodolfo
Tigre MAIA, “a percepção antecipada de valores pertinentes a honorários,
comissões, salários, pro labore, produtividade, participação nos lucros ou
qualquer outra forma de remuneração por realização de serviços”184 ou ainda
qualquer antecipação em dinheiro referente a honorários, salários ou outra
remuneração eventualmente devida.185 A rigor, merece registro que o
‘adiantamento’ pode se dar sob a forma de recebimento a título de antecipação de
qualquer vantagem que possua caráter econômico, não se traduzindo
necessariamente na percepção de dinheiro em espécie.186
Assim, o tipo se perfaz, quanto às primeiras figuras mencionadas, toda a vez
que alguma das pessoas referidas no art. 25 da Lei tomar empréstimo ou receber
adiantamento de alguma das instituições financeiras elencadas no artigo 1º da Lei
dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional em que figure como
administrador, nos termos da lei, ainda que por interposta pessoa (também
conhecido por ‘testa de ferro’). É fundamental para a realização da conduta típica
que o empréstimo ou adiantamento tenha como destino final uma das pessoas
referidas no art. 25 da Lei em questão, uma vez que o que o tipo pretende evitar é
que o administrador, ao conceder um empréstimo, contrate consigo mesmo,
desempenhando os papéis de representante legal da sociedade e de terceiro
contratante187 e, ao receber adiantamento, considere que ‘a empresa sou eu’, em
um rompante de megalomania,188 auferindo assim benefícios potencialmente
indevidos em prejuízo da saúde financeira da instituição.
Adiante, tipificam-se as condutas consistentes no deferimento tanto de
adiantamento quanto de empréstimo a controlador, administrador, membro de
conselho estatutário da instituição financeira, aos respectivos cônjuges, aos
ascendentes ou descendentes, a parentes na linha colateral até o segundo grau,
183 PAULIN, L. A., Ob. cit., p. 88. 184 MAIA, R. T., Ob. Cit., p. 111. 185 TÓRTIMA, J. C., Ob. cit., p. 111. 186 MAZLOUM, A., Ob. cit., p. 104. 187 COSTA Jr., P. J., et alli., Ob. cit, p. 120.
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consangüíneos ou afins, ou a sociedade cujo controle seja por ela exercido, direta
ou indiretamente, ou por qualquer dessas pessoas.
No ponto, observe-se que as definições dos elementos normativos do tipo do
empréstimo e do adiantamento devem ser rigorosamente as mesmas já acima
mencionadas, restando se analisarem as demais elementares constantes no tipo em
referência.
Assim, considera-se controlador – nos termos da Lei nº 6.404/76 que prevê
esta figura – a pessoa, natural ou jurídica, ou o grupo de pessoas vinculadas por
acordo de voto, ou sob controle comum, que seja titular de direitos de sócio que
assegurem, de modo permanente, a maioria dos votos nas deliberações da
assembléia-geral e o poder de eleger a maioria dos administradores da companhia
e que, de conseqüência, use efetivamente seu poder para dirigir as atividades
sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia.189 Já o administrador
é o efetivo gestor da empresa e se personifica, conforme dispuser o estatuto, no
conselho de administração e na diretoria, ou somente na diretoria.190. Por sua vez,
o membro do conselho estatutário é a pessoa que integra este órgão colegiado,
formado de acordo com o previsto no contrato social, no bojo das empresas que o
detiverem, conforme faculta a lei comercial, à semelhança do conselho fiscal, de
existência obrigatória.191 192
188 MAIA, R. T., Ob. Cit., p. 111. 189 Lei nº 6.404/76. Art. 116. Entende-se por acionista controlador a pessoa, natural ou jurídica, ou o grupo de pessoas vinculadas por acordo de voto, ou sob controle comum, que: a) é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, a maioria dos votos nas deliberações da assembléia-geral e o poder de eleger a maioria dos administradores da companhia; e b) usa efetivamente seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia. Parágrafo único. O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender. 190 Lei nº 6.404/76. Art. 138. A administração da companhia competirá, conforme dispuser o estatuto, ao conselho de administração e à diretoria, ou somente à diretoria. § 1º O conselho de administração é órgão de deliberação colegiada, sendo a representação da companhia privativa dos diretores. § 2º As companhias abertas e as de capital autorizado terão, obrigatoriamente, conselho de administração. Art. 139. As atribuições e poderes conferidos por lei aos órgãos de administração não podem ser outorgados a outro órgão, criado por lei ou pelo estatuto. 191 Lei nº 6.404/76. Art. 161. A companhia terá um conselho fiscal e o estatuto disporá sobre seu funcionamento, de modo permanente ou nos exercícios sociais em que for instalado a pedido de acionistas. 192 No ponto, vale dizer, com Paulo José da COSTA Jr. et allii (Ob. cit., p. 151), que “embora a definição de controlador decorra da Lei das Sociedades Anônimas, o conceito pode ser aplicado
68
A vedação se estende aos cônjuges, aos ascendentes ou descendentes, a
parentes na linha colateral até o segundo grau, consangüíneos ou afins, das
pessoas mencionadas acima. O conceito de cônjuge deve ser interpretado
restritivamente, como convém a um tipo penal, em razão da aplicação do princípio
da legalidade estrita, segundo o qual se veda a incriminação de qualquer conduta a
partir do uso da analogia,193 não se estendendo aos companheiros que vivam em
união estável, compreendendo, portanto, apenas as pessoas que sejam legalmente
casadas.194 São considerados ascendentes aqueles que compõem a linha reta195 que
se observa dos filhos196 para os genitores, ou seja, da geração às anteriores, como
por exemplo, pai, avô, bisavô, etc e descendentes os integrantes da linha reta
descendente, vindo da geração remota às mais próximas, ou seja, bisavô, avô, pai,
filho, neto, etc.197De seu turno, consideram-se parentes na linha colateral198 até o
segundo grau199 consangüíneos o irmão, a irmã e os tios e tias, tanto maternos
também às sociedades por cotas de responsabilidade limitada”, podendo-se dizer o mesmo com relação às demais definições constantes na Lei nº 6.404/76. 193 MAIA, R. T., Ob. cit., p. 112. 194 Código Civil. Art. 1.514. O casamento se realiza no momento em que o homem e a mulher manifestam, perante o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal, e o juiz os declara casados. Art. 1.515. O casamento religioso, que atender às exigências da lei para a validade do casamento civil, equipara-se a este, desde que registrado no registro próprio, produzindo efeitos a partir da data de sua celebração. Art. 1.516. O registro do casamento religioso submete-se aos mesmos requisitos exigidos para o casamento civil. § 1o O registro civil do casamento religioso deverá ser promovido dentro de noventa dias de sua realização, mediante comunicação do celebrante ao ofício competente, ou por iniciativa de qualquer interessado, desde que haja sido homologada previamente a habilitação regulada neste Código. Após o referido prazo, o registro dependerá de nova habilitação. § 2o O casamento religioso, celebrado sem as formalidades exigidas neste Código, terá efeitos civis se, a requerimento do casal, for registrado, a qualquer tempo, no registro civil, mediante prévia habilitação perante a autoridade competente e observado o prazo do art. 1.532. 195 Código Civil. Art. 1.591. São parentes em linha reta as pessoas que estão umas para com as outras na relação de ascendentes e descendentes. 196 Incluem-se nesta categoria os filhos adotivos, a teor do disposto no art. 227, § 6º da CF/88, do art. 1.596 do Código Civil e do art. 20 da Lei nº 8.069/90, observando-se que, a teor do disposto no art. 1.626 do Código Civil, o adotado desliga-se completamente dos vínculos de seus pais e parentes consangüíneos, salvo quanto aos impedimentos para o casamento, uma vez que a adoção lhe atribui a situação de filho de forma plena, estabelecendo, a partir do trânsito em julgado da sentença de adoção, relações de parentesco com toda a família do adotante, para todos os fins. Assim o Código Civil: “Art. 1.628. Os efeitos da adoção começam a partir do trânsito em julgado da sentença, exceto se o adotante vier a falecer no curso do procedimento, caso em que terá força retroativa à data do óbito. As relações de parentesco se estabelecem não só entre o adotante e o adotado, como também entre aquele e os descendentes deste e entre o adotado e todos os parentes do adotante”. 197 MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado, tomo 9, p. 33. 198 Código Civil. Art. 1.592. São parentes em linha colateral ou transversal, até o quarto grau, as pessoas provenientes de um só tronco, sem descenderem uma da outra. 199 Para Pontes de MIRANDA (Ob. cit., p. 33-34), “grau é a distância que existe entre dois parentes. Na linha reta, contam-se os graus de parentesco pelas gerações. Os parentes em linha
69
quanto paternos, e afins200 são o cunhado, a cunhada, o marido da tia e a esposa do
tio. Observe-se que o tipo penal não vedou o deferimento de empréstimo ou
adiantamento aos parentes na linha reta afim em qualquer grau, que incluem, mais
proximamente, o sogro, o genro, a sogra e a nora que, assim, não são impedidos
de figurarem como beneficiários de qualquer destas operações.
Por fim, a cabeça do artigo em apreço estipula a mesma conduta delituosa
quando se defere empréstimo ou adiantamento a sociedade cujo controle seja
exercido pela instituição financeira,201 direta ou indiretamente ou por qualquer das
pessoas listadas no artigo, nestas incluídas todas aquelas referidas no artigo 25 da
Lei, além daquelas acima mencionadas. 202 203
A figura típica do inciso I do parágrafo único do artigo de lei em comento
não merece qualquer apreciação específica visto que simplesmente repete, com
relação à prática do adiantamento, o que já fora previsto na cabeça do artigo 17 da
Lei nº 7.492/86, uma vez que menciona as condutas já compreendidas no corpo do
‘caput’204, com a diferença de que, agora, esclarece que o adiantamento se refere a
transversal não descendem uns dos outros, mas de tronco comum, de modo que, para se medir a distância que separa dois parentes colaterais, se têm de considerar duas linhas distintas, que possuam o seu ponto de convergência no autor comum”(...) “O traço de união existente entre dois parentes colaterais é o autor comum; de modo que, para se calcular a distância existente entre eles, ou, melhor, para se contarem os graus de parentesco, se devem somar as distâncias que vão de cada um deles ao autor comum, ou desse a cada um deles. Assim, dois irmãos são parentes no segundo grau, porque de um deles ao pai vai um grau, ou distância, e, do pai ao outro, vai outro grau”. 200 Código Civil. Art. 1.595. Cada cônjuge ou companheiro é aliado aos parentes do outro pelo vínculo da afinidade. § 1o O parentesco por afinidade limita-se aos ascendentes, aos descendentes e aos irmãos do cônjuge ou companheiro. § 2o Na linha reta, a afinidade não se extingue com a dissolução do casamento ou da união estável. 201 Observe-se que o tipo penal não abarca as chamadas ‘empresas coligadas’, assim entendidas, nos termos do art. 243, § 1º, da Lei nº 6.404/76, as sociedades em que uma participa, com 10% (dez por cento) ou mais, do capital da outra, sem controlá-la. 202 Lei nº 6.404/76. Art. 243, § 2º Considera-se controlada a sociedade na qual a controladora, diretamente ou através de outras controladas, é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, preponderância nas deliberações sociais e o poder de eleger a maioria dos administradores. 203 Nilo BATISTA entende que o tipo neste ponto desatende ao princípio da legalidade, uma vez que não permite a compreensão adequada do âmbito da conduta incriminada sem que se viole a taxatividade do modelo de conduta incriminada, uma vez que o pronome ‘ela’ constante na parte final do tipo somente poderia se referir a ‘lei’ ou ‘sociedade’ – com o que, aliás, perderia completamente o sentido – e jamais à ‘instituição financeira’. O autor cita José Carlos TÓRTIMA e Antônio Carlos Rodrigues da SILVA como autores que perfilham de idêntico entendimento. Ob. cit., p. 146-147. Com isso não concordamos e, no ponto, entende-se que o pronome ‘ela’ se refere claramente a ‘instituição financeira’, não restando violado qualquer preceito garantista decorrente dos princípios que presidem a tipicidade, na linha do pensamento de Manoel Pedro PIMENTEL, Rodolfo Tigre MAIA, René Ariel DOTTI, Paulo José da COSTA Jr., Ali MAZLOUM e Maria Carolina de Almeida DUARTE, nas obras destes doutrinadores citadas ao longo desta dissertação. 204 MAIA, R. T., Ob. cit., p. 111.
70
‘honorários, remuneração, salário ou qualquer outro pagamento’, de forma
completamente tautológica e desnecessária.205 Isso já foi objeto de estudo acima.
A consumação do crime se realiza, em todos os casos, com o efetivo
recebimento do dinheiro ou da vantagem econômica – seja mediante a entrega em
espécie em mãos do receptor, seja com a efetiva disponibilização em conta
bancária de sua movimentação, em nome próprio, ou de interposta pessoa –, e não
somente com o simples ajuste ou acordo de vontades, sendo, aliás, mesmo
dispensável a existência de prévia solicitação das operações de mútuo ou
adiantamento.206 Assim é tanto porque, quanto ao empréstimo, se trata de contrato
real, e que, por isso, se aperfeiçoa apenas com a tradição da coisa, quanto porque,
de qualquer forma, em ambos os casos, o tipo de crime exige o efetivo
recebimento do valor ou benefício econômico – no caso do adiantamento a
irregularidade consiste no fato de ser ele alcançado de forma antecipada – para
que seja atendido o princípio da lesividade, porquanto, sem isto, não estaria
efetivamente exposto o sistema financeiro ao risco na forma como o exige a Lei,
mesmo que presumido. Admite-se, todavia, a tentativa, uma vez que – por poder
se tratar, em muitos casos, de verdadeira ação criminosa complexa, composta de
vários atos entre a concessão da operação e a efetiva disponibilização da
vantagem –, iniciada a execução com o ato concessivo do empréstimo ou do
adiantamento, poderá ela não se aperfeiçoar por completo, desde que, entre a
abertura de crédito e o efetivo recebimento do numerário, poderá haver uma
fiscalização do ente regulador que impeça a concretização do ato ou pela
incidência, de outra forma, do disposto no art. 14, II, do Código Penal.207 Por fim,
consigne-se que desimporta a destinação emprestada à coisa adiantada ou
mutuada, bem como se houve efetivo prejuízo à instituição financeira, bastando,
para a completa execução do tipo, porquanto se trata de crime de mera conduta e
de risco presumido, conforme se viu, a realização da operação vedada.208
A pena prevista para o tipo em referência varia de 02 (dois) a 06 (seis) anos
de reclusão, e multa. A pena privativa de liberdade poderá ser cumprida em
205 TÓRTIMA, J. C., Ob. cit., p. 140. 206 PIMENTEL, M. P., Crimes contra o Sistema Financeiro..., p. 135. 207 Assim: SILVA, A. C. R. da, Ob. cit., p. 134; MAIA, R. T., Ob. cit., p. 115; TÓRTIMA, J. C., Ob. cit., p. 116. Contrariamente: PIMENTEL, M. P., Crimes contra o Sistema Financeiro..., p. 135. 208 Observar a questão da lesividade e da ofensa ao bem jurídico objeto de estudo na Seção 3 deste Capítulo.
71
quaisquer dos três regimes de execução previstos no artigo 33 do Código Penal
(aberto, semi-aberto e fechado), cabendo ainda, de acordo com a quantidade de
pena fixada na hipótese concreta, a substituição da reprimenda corporal por
restritivas de direitos em quaisquer das modalidades dispostas no artigo 43 do
Código Penal, desde que atendidos os preceptivos do artigo 44 do mesmo
Diploma e, ainda, não sendo cabível esta (artigo 77, III, do Código Penal), a
aplicação da suspensão condicional da pena, se a condenação não ultrapassar o
patamar mínimo previsto no tipo (artigo 77 do Código Penal). Quanto à multa,
deverá ser fixada em vista dos parâmetros do artigo 49 do Código Penal observada
a possibilidade de extensão do limite até o décuplo do montante previsto no artigo
49, §1º, do Código Penal, de acordo com a previsão inserta no artigo 33 da Lei nº
7.492/86.
A competência para processo e julgamento do crime será, sempre, da Justiça
Federal, a teor do disposto no artigo 109, VI, da Constituição Federal209 e do
artigo 26 da Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro.210
3.2. OS SUJEITOS ATIVOS DO CRIME E O ARTIGO 25 DA LEI Nº 7.492/86
De acordo com o artigo 25 da Lei nº 7.492/86 são penalmente responsáveis
o controlador e os administradores de instituição financeira, assim considerados os
diretores e gerentes, para, adiante, equiparar aos administradores o interventor, o
liquidante ou o síndico. Considerando que a primeira parte do tipo inserto no
artigo 17 da mesma Lei àquele remete de forma expressa, se incorporam a ele
todas as definições que se podem extrair do artigo objeto de remissão, devendo-se
dessumir do artigo 25 quem são as pessoas que, atuando em nome da instituição
financeira ou na condição de instituição financeira, não poderão, dentre outras
condutas, receber empréstimos ou adiantamentos ou deferi-los aos indivíduos
listados na segunda parte do artigo 17 em questão, sob pena de responsabilização
penal. Esses é que haverão de ser considerados os autores do crime que, como se
viu, classifica-se como crime próprio.
209 Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar: VI - os crimes contra a organização do trabalho e, nos casos determinados por lei, contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira. 210 Art. 26. A ação penal, nos crimes previstos nesta lei, será promovida pelo Ministério Público Federal, perante a Justiça Federal.
72
Inicialmente, registre-se que o artigo 25 da lei em exame pretendeu, em
virtude da relativa complexidade e sofisticação dos crimes praticados por
intermédio das instituições financeiras e suas repercussões na coletividade, em
que os agentes poderiam se valer das facilidades que permitiriam encobrir seus
atos por detrás da figura da ficção da pessoa jurídica para lograr a impunidade,
apontar quem, na hipótese de cometimento de um crime previsto na Lei, haveria
de ser responsabilizado.
Em termos de antecedentes históricos na legislação pátria de uma tal
formulação, com pequenas variações, podem-se citar o artigo 44, §7º, da Lei nº
4.595/64,211 o artigo 73, § 2º, da Lei nº 4.728/65212 e o artigo 6º da Lei nº
4.729/65.213
A doutrina unanimemente214 afirma que, tanto no vigente artigo quanto em
seus antecessores, deve-se considerar o postulado maior presente em nosso Direito
Penal da responsabilidade pessoal consagrado no artigo 5º, XLV, da Constituição
Federal em vigor,215 a mitigar, regra geral, os rigores que, em uma primeira
leitura, deles derivam, devendo ser entendida a lista de agentes como apenas um
mero indicativo, ora a permitir que outros que dela não tomem parte figurem
como acusados da prática de crimes contra o sistema financeiro, ora a determinar
211 Art. 44. As infrações aos dispositivos desta lei sujeitam as instituições financeiras, seus diretores, membros de conselhos administrativos, fiscais e semelhantes, e gerentes, às seguintes penalidades, sem prejuízo de outras estabelecidas na legislação vigente: § 7º Quaisquer pessoas físicas ou jurídicas que atuem como instituição financeira, sem estar devidamente autorizadas pelo Banco Central da Republica do Brasil, ficam sujeitas à multa referida neste artigo e detenção de 1 a 2 anos, ficando a esta sujeitos, quando pessoa jurídica, seus diretores e administradores. 212 Art. 73. Ninguém poderá fazer, imprimir ou fabricar ações de sociedades anônimas, ou cautelas que as representem, sem autorização escrita e assinada pela respectiva representação legal da sociedade, com firmas reconhecidas. § 2º A violação de qualquer dos dispositivos constituirá crime de ação pública, punido com pena de 1 a 3 anos de detenção, recaindo a responsabilidade, quando se tratar de pessoa jurídica, em todos os seus diretores. 213 Art 6º Quando se trata de pessoa jurídica, a responsabilidade penal pelas infrações previstas nesta Lei será de todos os que, direta ou indiretamente ligados à mesma, de modo permanente ou eventual, tenham praticado ou concorrido para a prática da sonegação fiscal. 214 Destaquem-se, dentre outros, COSTA Jr., P. J. et alli, Ob.cit., p. 148-150; DOTTI, R. A., A Criminalidade Econômica…, p 368; BETTI, Francisco de Assis. Aspectos dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, p. 72-74; SILVA, A. C. R. da, Ob.cit., p. 170-174; PIMENTEL, M. P., Crimes contra o Sistema Financeiro..., p. 171-177. 215 Art. 5º, XLV. Nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação de perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendida aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido.
73
que, não obstante a sua condição ostentada no empreendimento, não respondam
criminalmente por todas as condutas delituosas praticadas no bojo da empresa.216
A questão, todavia, que se impõe analisar no que diz com o delito capitulado
no art. 17 da Lei nº 7.492/86 é distinta e, neste ponto, não valem as ponderações
doutrinárias mencionadas. Afinal, no caso, a descrição das pessoas referidas no
art. 25 da mesma lei deve ser entendida como exaustiva, não admitindo qualquer
acréscimo, uma vez que integra o próprio tipo fundamental de crime, por expressa
remissão. Assim, admitir a sua relativização, nestes termos, significaria negar
vigência ao princípio da tipicidade estrita,217 que decorre do princípio da
legalidade, que tem assento constitucional expresso.218
Logo, para o fim de se verificar especificamente quem são efetivamente as
pessoas que não podem, sob pena de responsabilização criminal, tomar
empréstimo ou receber adiantamento ou, ainda, deferi-los a controlador,
administrador, membro de conselho estatutário e respectivos cônjuges e parentes,
bem como a sociedade que seja controlada tanto pela instituição financeira que
realiza a operação quanto por aquelas primeiras pessoas individualmente
consideradas, deve-se recorrer ao artigo 25 da Lei, observado rigorosamente, sem
a utilização de qualquer recurso que implique a alteração de seus precisos termos.
Assim, podem figurar como autores do crime em referência exclusivamente
o controlador e os administradores da instituição financeira, assim considerados os
diretores e gerentes e, por equiparação legal, também o interventor, o liquidante e
o síndico (hoje denominado de ‘administrador judicial’). Estes, a exemplo do que
já se disse alhures, quando da análise do tipo legal de crime do artigo 17 na seção
anterior, são elementos normativos do tipo e devem ter sua significação buscada
no direito, em quaisquer de seus ramos, porquanto se tratam de definições
essencialmente jurídicas, não havendo falar em valoração cultural de outra
natureza, no caso posto.
Dessa forma, considera-se, como já se abordou na seção anterior,
controlador a pessoa, natural ou jurídica, ou o grupo de pessoas vinculadas por
216 MAIA, R. T., Ob. cit., p. 143-144. 217 Consiste na “proibição da fundamentação ou do agravamento da punibilidade pela analogia”. TOLEDO, F. de A., Ob. cit., p. 22. 218 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.
74
acordo de voto, ou sob controle comum, que seja titular de direitos de sócio que
assegurem, de modo permanente, a maioria dos votos nas deliberações da
assembléia-geral e o poder de eleger a maioria dos administradores da companhia
e que, de conseqüência, use efetivamente seu poder para dirigir as atividades
sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia. Já os
administradores são os efetivos gestores da empresa e se personificam, de acordo
com a expressa disposição do artigo em comento, exclusivamente na figura do
diretor ou do gerente, diferindo nesta parte da definição estipulada nos artigos 138
e 139 da Lei nº 6.404/76 – que estende esta condição ao conselho de
administração –, podendo-se defini-los como a pessoa ou grupo de pessoas a
quem se comete a direção ou gerência de qualquer negócio ou serviço, a quem se
confia uma gestão do negócio, devendo-se ressaltar particularmente que o
‘gerente’ a que alude o artigo de lei é quem administra ou dirige um
estabelecimento em nome e por conta do empresário, podendo ser sócio-gerente
ou gerente contratado. No ponto, objetivando esclarecer quem deve ser
considerado como diretor ou gerente para efeitos penais, valiosas são as palavras
de Manoel Pedro PIMENTEL, para quem:
O sujeito ativo do crime em questão será o mandatário da instituição financeira que tenha poderes para conceder empréstimos ou fazer adiantamentos, podendo ser uma só, ou diversos, caso mais de um deles participarem da deliberação que autorize a operação vedada, atendendo-se sempre ao princípio da responsabilidade subjetiva.(...) Os meros executores da deliberação ou da ordem não serão considerados co-autores, desde que funcionem apenas como instrumentos inocentes, no cumprimento das obrigações de rotina, tais como o preenchimento ou assinatura autorizada do cheque, a entrega do numerário ou outro comportamento semelhante.219
Assim, o diretor e o gerente a que alude o artigo de lei devem ser entendidos
apenas no contexto em que as funções exercidas caracterizem sua condição de
administradores da empresa, assim considerados os detentores de parcelas de
gestão, com razoável grau de autonomia e poder de deliberação, possuindo, no
caso dos diretores, controle sobre todas as etapas da administração em uma certa
área de abrangência ou em todas elas e, no caso dos gerentes, uma parcela menor
e mais setorizada de gestão, observada a existência de um grau de autonomia tal
que os qualifique efetivamente como responsáveis por parte da administração da
219 PIMENTEL, M. P., Crimes contra o Sistema Financeiro..., p. 136.
75
instituição. São, pois, aqueles que detêm de fato a capacidade de decisão e
representação da instituição financeira durante a realização de alguma das
mencionadas operações, no que tange à prática delitiva prevista no art. 17 da Lei
nº 7.492/86 consistente no seu deferimento, o que somente pode ser aferido no
exame das particularidades do caso concreto, não se estendendo, quanto às demais
figuras delitivas do artigo 17 da Lei – tomar empréstimo ou receber adiantamento
– àquele que, conquanto cognominado diretor ou gerente, seja de que área
administrativa for e não apenas aquela relacionada à concessão de créditos, atua
no empreendimento sem qualquer poder decisório e apenas, intitulando-se gerente
ou diretor em razão de denominação adotada no seio da empresa, apõe sua
assinatura em documentos com valor legal por força de obrigação de contrato
trabalhista ou de qualquer relação de subordinação, somente cumprindo o que já
restou deliberado em instâncias superiores da organização.220
Quanto aos administradores por equiparação define-se o interventor como
sendo o administrador temporário investido nessa função, por designação do
220 No ponto, divergimos dos autores que, de antemão, consideram que o art. 25 da Lei não se aplica a gerentes empregados ou administradores locais do empreendimento, em particular de bancos, sem poder de deliberação sobre os rumos das operações da instituição globalmente considerada, porquanto entendemos que o efetivo ‘poder de gestão’ de um diretor ou gerente deve ser sopesado tendo em consideração as operações que realiza e a sua condição no transcorrer da realização delas, evidenciando a existência ou não de poder de mando e autonomia, de acordo com o objeto social da empresa e sua estruturação interna. A não ser assim, em face da cada vez maior pulverização de funções nos empreendimentos, entendendo-se que quem possui apenas parte da autonomia da empresa não estaria abrangido pela norma do art. 17 c/c art. 25 da Lei, por certo se exporia a risco o bem jurídico tutelado um sem-número de vezes cotidianamente, em centenas de agências bancárias e filias de instituições financeiras no país, já que somente estaria excluído da disposição o reduzidíssimo grupo integrante da cúpula de uma entidade centralizada em uma sede com ramificações expressivas no país inteiro, em franco atingimento do princípio da lesividade, que obriga à proteção penal, e não só a faculta, como já se viu neste trabalho. Em sentido contrário Sérgio de Morais PITOMBO (em conferência realizada em 1987 em São Paulo), apud Francisco de Assis BETTI (Ob. cit., p. 74-75), para quem “a interpretação lógica e sistemática da Lei 7.492 leva a crer que seu art. 25 chamou gerentes apenas a determinadas pessoas, de posição equivalente, em certas instituições financeiras, às que ocupam em outras os ‘diretores’. De fato, instituições financeiras estrangeiras, com agências em nosso país, não possuem, freqüentemente, no Brasil, diretores, mas somente gerentes. A mais alta responsabilidade administrativa no Brasil, nesses casos, cabe a funcionários que têm a denominação de ‘gerentes’, mas que possuem responsabilidade administrativa equivalente à dos diretores das instituições financeiras. (...)Todas essas considerações convergem para a conclusão de que ‘gerentes’, na Lei 7.492, não são os funcionários competentes para atos específicos de ‘gerência’, recebam ou não funcionalmente essa denominação de ‘gerentes’, mas sim os gerentes de instituição financeira de estabelecimento no Brasil, responsáveis por toda a administração da instituição no país, ou sócios-gerentes de instituições financeiras que funcionem ou venham a funcionar em regime de sociedade limitada”. Também assim se pronuncia PIMENTEL afirmando que “o gerente de uma agência bancária, que está ligado à empresa por laços empregatícios, na verdade não dirige a instituição financeira – no caso, um banco – mas apenas administra uma pequena parcela do todo, como preposto, executando a política traçada pelos seus superiores e cumprindo as tarefas subalternas que lhe são confiadas e aos seus subordinados”. PIMENTEL, M. P., Crimes contra o Sistema Financeiro..., p. 132.
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Banco Central, em vista do disposto no art. 5º da Lei nº 6.024/74.221 Liquidante é
o administrador ad hoc designado também pelo Banco Central no caso de
liquidação extrajudicial de instituição financeira, na forma do art. 16 da Lei nº
6.024/74222. Síndico (denominado na atualidade de Administrador Judicial) é o
administrador da massa falida, designado pelo juízo processante, na forma do art.
21 da Lei nº 11.101/05.223 224 Quanto a este último ponto, esclarece-se que a mera
alteração da denominação efetuada pela nova lei não impõe a conclusão de que o
tipo penal em exame, em razão da aplicação do princípio da legalidade, não
alcança o agora nominado ‘administrador judicial’, porquanto as funções e
encargos permanecem os mesmos, e a simples modificação do ‘nomen juris’ em
nada modifica sua condição. A única ressalva que se deve realizar é a de que a
disposição em referência aplica-se somente ao administrador judicial pessoa
física, e, sendo este ‘pessoa jurídica especializada’, conforme faculta o
mencionado artigo da Lei de Recuperação e Falências, inaplicável a disposição
em estudo da Lei nº 7.492/86, pois este diploma legislativo não prevê
expressamente penas compatíveis com a natureza jurídica de um ente desta
condição, sendo inviável a responsabilização penal do empreendimento em si no
caso de se realizarem as operações vedadas com relação a ele, sob pena de, então,
haver violação ao princípio da legalidade estrita.
Esclarecidas as definições, por fim impõe-se acrescer que, também, é
possível o concurso de pessoas e freqüentemente ele ocorre, pois, de regra, haverá
concerto prévio de vontades de quem, sabendo que não poderia receber o
adiantamento ou empréstimo, o faz assim mesmo, figurando como co-autor da
ação.225 Igualmente, é cabível também a participação de outras pessoas –
normalmente na condição de interpostas para emprestar uma aparência de
legalidade à operação vedada – que não ostentem quaisquer das condições
previstas no artigo 17 da Lei e que, nada obstante se tratar de crime próprio, por
221 Art . 5º A intervenção será executada por interventor nomeado pelo Banco Central do Brasil, com planos poderes de gestão. 222 Art . 16. A liquidação extrajudicial será executada por liquidante nomeado pelo Banco Central do Brasil, com amplos poderes de administração e liquidação, especialmente os de verificação e classificação dos créditos, podendo nomear e demitir funcionários, fixando-lhes os vencimentos, outorgar e cassar mandatos, propor ações e representar a massa em Juízo ou fora dele. 223 Art. 21. O administrador judicial será profissional idôneo, preferencialmente advogado, economista, administrador de empresas ou contador, ou pessoa jurídica especializada. 224 SILVA, A. C. R. da, Ob. cit., p. 174. 225 PIMENTEL, M. P., Crimes contra o Sistema Financeiro..., p. 135.
77
ele também respondem, na forma do artigo 29 do Código Penal,226 como co-
autoras ou partícipes, nas modalidades de induzimento, instigação ou auxílio.227
3.3. O PRINCÍPIO DA LESIVIDADE E O CRIME CAPITULADO NO ARTIGO 17 DA LEI: A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA E O CASO DAS ADMINISTRADORAS DE CONSÓRCIO
Questão delicada a ser examinada e que merece apreciação específica diz
com a realização das operações incriminadas no tipo do artigo 17 da Lei nº
7.492/86 e o princípio da lesividade.
Como já se teve ocasião de apreciar no corpo deste estudo o tipo penal
mencionado encerra um crime de mera conduta e de perigo abstrato ou presumido,
ou seja, se insere dentre aqueles que não exigem resultado para sua completa
execução, em que, nas palavras de Juarez TAVARES, “a infração à norma se
satisfaz exclusivamente com o desvalor do ato, quando a conduta já se tenha
postado de modo perigoso ao bem jurídico”,228 e, por se tratar de delito de perigo
abstrato, de acordo com Juarez Cirino dos SANTOS, “a típica ou presumida
perigosidade da ação para o objeto de proteção é suficiente para sua penalização,
independente da produção real de perigo para o bem jurídico protegido”.229 No
caso, por ser um crime pluriofensivo, identificam-se como bens jurídicos passíveis
de ofensa a boa execução da política econômica do Estado, a fé pública e,
secundariamente, o patrimônio de terceiros, assim considerados os investidores e
mesmo sócios da instituição.
Assim entendido, reconhecendo-se a natureza do delito em exame e o bem
jurídico como fundamento e legitimação do direito penal, consoante entende a
quase unanimidade da doutrina,230 cabe perquirir se, toda a vez que se verificar a
ocorrência de alguma das condutas descritas no modelo incriminador referido,
haverá de forçosamente se entendê-la como típica ou se, ao contrário, em vista do
226 Neste sentido já decidiu o STF, HC 84.238-BA, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJU 10/09/2004. 227 SILVA, A. C. R. da, Ob. cit., p. 134. 228 TAVARES, J., Ob. cit., p. 298-299. 229 SANTOS, Juarez Cirino dos. A Moderna Teoria do Fato Punível, p. 41. 230 No ponto, vejam-se as considerações contidas na Seção 3 do Capítulo 1 supra, assim como, em particular, a posição dissonante de JAKOBS referida na nota de rodapé 53.
78
princípio da lesividade, de alguma forma se haverá de apreciar mais detidamente a
ação executada e suas condicionantes para se poder chegar a esta conclusão.231
Para se obter uma resposta, primeiramente, incumbe se apreciar a questão
com relação às características dos chamados crimes de perigo e a questão da
respectiva exposição dos bens jurídicos por eles tutelados.
No ponto, subdividem-se os delitos em de ‘perigo concreto’ e de ‘perigo
abstrato’ (ou presumido). Crime de perigo concreto é aquele em que, para que o
tipo se aperfeiçoe, exige-se a verificação efetiva da presença do perigo,
examinando-se esta ocorrência caso a caso. O perigo, neste modelo de conduta
incriminada, é um elemento do tipo explícita ou implicitamente colocado, sendo,
pois, indispensável que se demonstre, ‘a posteriori’, para a completa realização do
delito, a efetiva exposição a ele do bem jurídico tutelado.232 Caso isso não se
verifique, a conduta é atípica.233
No de ‘perigo abstrato’, conforme já se adiantou, este está contido, ‘a
priori’, na conduta, sendo presumido, de acordo com a doutrina majoritária, juris
et de jure. O perigo não é elemento do tipo, mas é a motivação da sua existência
como abstração jurídica. Daí as palavras de Ângelo Roberto Ilha da SILVA, para
quem:
Deve-se atender, na técnica de tipificação dos crimes de perigo abstrato, a uma necessidade decorrente da natureza das coisas, ou seja, as figuras delituosas assim tipificadas devem atender ao reclamo de tutela baseado na lesividade que a ação encerra, em razão da inerência do perigo que guarda em si. Esse perigo deverá ser próprio da conduta, inerente a ela, deve, no momento da construção legal, ser calcado na experiência, no real.234
231 Evidentemente, sempre se haverá de, independentemente da natureza intrínseca do tipo, avaliar se não se trata de crime impossível, por ‘ineficácia absoluta do meio’ ou ‘absoluta impropriedade do objeto’, o que, obviamente, não se confunde com a necessidade, ou não, de avaliação da exposição efetiva ou potencial a perigo do bem jurídico tutelado, uma vez que a análise da eficácia do meio ou propriedade do objeto é requisito que precede a todo e qualquer reconhecimento de tipicidade de uma conduta, constituindo um ‘prius’ sempre necessário, esteja como estiver o tipo construído, seja ele de mera conduta ou resultado, seja ele de dano ou perigo concreto ou abstrato. Somente após a constatação de que não se está diante de um crime impossível, juridicamente falando (art. 17 do Código Penal), é que se passa a apreciar a questão da exposição do bem jurídico a lesão efetiva ou potencial, já pela ótica das características do tipo em análise. Portanto, não há confundir os institutos e as respectivas análises que se devem realizar em vista disso. 232 São exemplos de crimes de perigo concreto o delito capitulado no art. 250 do Código Penal (“causar incêndio, expondo a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de outrem”) e o delito previsto no art. 4º da Lei nº 7.492/86 (“gerir fraudulentamente instituição financeira”). 233 SILVEIRA, R. de M. J., Ob. cit., p. 95. 234 SILVA, Â. R. I. da., Ob. cit., p. 73.
79
No caso tais condicionantes estariam perfeitamente delineadas nas hipóteses
de concessão ou obtenção de empréstimos ou adiantamentos por certas pessoas
físicas ou jurídicas ligadas à instituição financeira, porquanto isso consistiria em
verdadeira situação de risco não permitida pela legislação aplicável.
Logo, em uma primeira análise, admitida a constitucionalidade da
construção de tipos de perigo abstrato e a sua legitimidade para a proteção de bens
jurídicos supra-individuais, em particular o da Ordem Econômica,235 verificada a
subsunção da ação à tipificação legal, não restaria outra alternativa que não o
reconhecimento da tipicidade da conduta.
Entretanto, a questão merece análise mais acurada.
Conquanto se reconheça que, efetivamente, a situação de perigo é a
motivação da existência do crime previsto no artigo 17 da Lei nº 7.492/86 e não o
seu conteúdo, sendo ela presumida, também é fato que não se pode olvidar,
jamais, do plexo de bens jurídicos que são tutelados pelo tipo em referência, assim
entendidas principalmente a regularidade da política econômica – consistente no
exercício da função precípua de uma instituição financeira, que é a de servir como
intermediário de haveres monetários e não monetários entre terceiros e não para si
mesma ou seus administradores e parentes – e a fé pública – decorrente da certeza
de que os valores guardados pela instituição estão sendo bem empregados e que
serão restituídos quando necessários – e, secundariamente, o patrimônio dos
sócios e investidores – que não pode ser dilapidado ou transferido aleatoriamente
a um determinado número de apaniguados da empresa sob a capa de uma aparente
regularidade formal. Em outras palavras, como disse Nilo BATISTA:
As importantes funções interpretativas e metodológicas que o bem jurídico desempenha devem ser referidas, na análise do tipo do art. 17 da Lei nº 7.492/86, a alguma ofensa ao regular funcionamento do sistema financeiro nacional, ao patrimônio social da instituição administrada, e aos interesses dos acionistas e investidores.236
Não pode o estudioso do Direito Penal, em um Estado Democrático e Social
de Direito, jamais, se demitir da função de confrontar a conduta com a
possibilidade de ofensa ao bem jurídico objeto de tutela, esteja ela
235 A propósito da constitucionalidade desta construção típica, veja-se o que já se escreveu no Seção 2 do Capítulo 2 supra, e em especial nas notas de rodapé 124, 127 e 128. 236 BATISTA, N., Empréstimos Ilícitos..., Revista Forense, p. 142-143.
80
consubstanciada no desvalor da ação ou do resultado, de perigosidade concreta ou
abstrata. Nesse contexto, sobrevém a necessária confrontação do tipo em apreço
com o princípio da lesividade, segundo o qual apenas é penalmente relevante
aquele comportamento que lese ou exponha a perigo direitos de outrem e que não
seja apenas um comportamento imoral. Aquelas condutas que digam respeito a
características individuais dos cidadãos, que possam ser consideradas imorais,
pecaminosas ou escandalosas, mas que não afetem nenhum bem jurídico tutelado
pelo Estado, não possuem a lesividade necessária para legitimar a intervenção
penal, uma vez que o direito penal só pode ser utilizado se afetar bens jurídicos
relevantes, ou seja, o fato deve causar uma lesividade tal que legitime a
intervenção penal,237 evitando assim que se castigue a mera desobediência ou a
violação formal da lei por parte de uma ação inócua em si mesma.238 Afinal,
seguindo uma vez mais a advertência de Nilo BATISTA, “o bem jurídico põe-se
como sinal de lesividade (exterioridade e alteridade) do crime que o nega,
‘revelando’ e demarcando a ofensa. Essa materialização da ofensa, de um lado,
contribui para a limitação legal da intervenção penal, e, de outro a legitima”.239
Com isso, rechaça-se uma simples concepção formal de tipo, em que a tipicidade
é vista como mera correspondência entre uma conduta da vida real e o tipo legal
de crime,240 de modo que se procura atribuir ao tipo penal também um caráter
material, que veja nele algo dotado de conteúdo valorativo, verdadeiro modelo de
conduta proibida, não apenas pura imagem formal, diretiva.241
É, portanto, tendo sempre como norte a questão do bem jurídico que se quer
proteger com o tipo erigido em uma lei que se deve analisar os delitos de perigo
abstrato e, particularmente, aquele que é objeto do presente trabalho,
reconstruindo a noção segundo a qual nestes delitos a presunção de dano é,
sempre e invariavelmente, ‘juris et de jure’, para concluir-se pela existência de
duas espécies de crimes de perigo abstrato: uma em que a presunção de
perigosidade é absoluta e outra em que esta é relativa.242
237 LOPES, M. A. R. Alternativas para o Direito Penal e o Princípio da Intervenção Mínima. Revista dos Tribunais, n. 757, p. 84-85. 238 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón, p. 479. 239 BATISTA, N., Introdução...., p. 95. 240 MAÑAS, Carlos Vico. O princípio da insignificância como excludente da tipicidade no direito penal, p 52. 241 TOLEDO, F. de A. Ob. cit., p. 129. 242 Este é o entendimento de MESTIERI, João. Manual de Direito Penal, Parte Geral, v. 1, p. 242.
81
Nesse contexto, inserem-se na primeira categoria os crimes de rixa,243 de
falsificação de moeda244 e de tráfico de substâncias entorpecentes,245 porquanto
nestes os bens jurídicos tutelados estão em completo acordo com a técnica
utilizada para a incriminação das condutas, atendendo-se perfeitamente ao
princípio da lesividade, não se admitindo, sequer, prova de que, pelas especiais
condições da ação ou do objeto material do crime, não houve atingimento ao bem
objeto de proteção, o que poderia ensejar a aplicação, inclusive, do princípio da
insignificância que, à vista dessas características dos tipos citados, resta inviável.
Nestes, verificada a realização da ação incriminada, preenchido estará o requisito
da tipicidade.
Na segunda categoria podem-se citar os delitos de abandono de incapaz,246
maus tratos247 e o crime capitulado no artigo 17 da Lei nº 7.492/86, objeto da
presente pesquisa, tendo em vista que, embora possuam como técnica de redação
a de um tipo de perigo abstrato, ajustando-se formalmente a esta categoria, a
análise dos bens jurídicos tutelados, interpretados em conformidade com o
princípio da lesividade, permitem a conclusão de que, observadas as
particularidades de certas formas de realização da conduta, se pode afastar a
presunção de exposição a perigo do bem jurídico, concluindo-se pela sua
243 Código Penal. Art. 137 - Participar de rixa, salvo para separar os contendores: Pena - detenção, de quinze dias a dois meses, ou multa. 244 Código Penal. Art. 289 - Falsificar, fabricando-a ou alterando-a, moeda metálica ou papel-moeda de curso legal no país ou no estrangeiro: Pena - reclusão, de três a doze anos, e multa. § 1º - Nas mesmas penas incorre quem, por conta própria ou alheia, importa ou exporta, adquire, vende, troca, cede, empresta, guarda ou introduz na circulação moeda falsa. § 2º - Quem, tendo recebido de boa-fé, como verdadeira, moeda falsa ou alterada, a restitui à circulação, depois de conhecer a falsidade, é punido com detenção, de seis meses a dois anos, e multa. § 3º - ‘omissis’ § 4º - ‘omissis’ 245 Lei nº 6.368/76. Art. 12. Importar ou exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda ou oferecer, fornecer ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar ou entregar, de qualquer forma, a consumo substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena - Reclusão, de 3 (três) a 15 (quinze) anos, e pagamento de 50 (cinqüenta) a 360 (trezentos e sessenta) dias-multa. 246 Código Penal. Art. 133 - Abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono: Pena - detenção, de seis meses a três anos. 247 Código Penal. Art. 136 - Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina: Pena - detenção, de dois meses a um ano, ou multa.
82
inocorrência, conquanto a verificação objetiva da ação descrita no modelo legal de
incriminação. Tal é permitido toda vez que, analisado o bem jurídico objeto de
proteção em consonância com o princípio da lesividade, se concluir que “o
legislador, de forma equivocada, empreende uma tipificação sem atender ao bom
senso e à natureza da ação criando um modelo de perigo abstrato de forma
artificial(...)noutras palavras, o delito se ajustaria a um modelo de perigo concreto
em que o perigo poderá ocorrer ao desencadear a conduta, mas não
necessariamente”.248
Como não se pode transformar um tipo de perigo abstrato em concreto,
viável é a possibilidade de, em vista das diretrizes informadas, reconhecê-lo como
de perigosidade presumida relativa (juris tantum), esclarecendo-se que,
ressalvadas estas hipóteses particulares e específicas, em regra os delitos de perigo
abstrato trazem consigo uma tal presunção absoluta (juris et de jure).
Aquela é a hipótese ocorrente no artigo 17 da Lei dos Crimes de Colarinho
Branco, porquanto não há considerar, em face dos bens jurídicos objeto de tutela
insertos na norma penal incriminadora em apreciação, que o só fato da realização
de alguma das condutas nele descritas traz consigo a conclusão no sentido da
lesão ao bem jurídico tutelado, permitindo-se verificar se, com o agir, houve a sua
exposição de perigo, sendo de se presumir, em princípio, a sua ocorrência.
Casos interessantes e que demonstram efetivamente a existência da
possibilidade de afastamento da incidência do tipo em certas condições, ainda que
reconhecida a realização da conduta efetivamente, dizem com a aplicação do
princípio da insignificância e com a realização de operação de empréstimo a
pessoas ligadas às empresas administradoras de consórcio, valendo-se de recursos
obtidos com o pagamento das taxas de administração.
Referentemente à insignificância, esse princípio foi introduzido no direito
penal por Claus Roxin, a partir dos estudos desenvolvidos por Hans WELZEL em
sua teoria da adequação social, cujo fundamento está na constatação de que os
tipos só assinalam as condutas proibidas socialmente relevantes, inadequadas a
uma vida ordenada, de modo que “ficam excluídas dos tipos penais as ações
socialmente adequadas, ainda que pudessem ser subsumidas a estes de acordo
com sua dicção literal”.249 Diferencia-se o princípio da insignificância, todavia, na
248 SILVA, A. R. I. da, Ob. Cit., p. 78. 249 WELZEL, Hans. El Nuevo Sistema Del Derecho Penal, p. 88.
83
medida em que, enquanto a adequação social pressupõe a aprovação do
comportamento pela coletividade – ou seja, a conduta é socialmente tolerável –,
aquele leva em conta a tolerância do grupo em relação a determinada conduta de
escassa gravidade – ou seja, ela é desconsiderada por se tratar de lesão
insignificante ao bem jurídico.250 Seu correlato na doutrina italiana se encontra na
formulação da concepção realística do crime, expressa na exigência da necessária
“ofensividade” do delito,251 que sugere sejam os conceitos de bem jurídico e de
evento típico repensados, de modo que a “ofensa ao interesse tutelado pela
norma” seja elevada a requisito autônomo do tipo (princípio da ofensividade).252
Segundo essa concepção, não configura crime a conduta que se revela inofensiva
e, portanto, inidônea para lesar o interesse protegido,253 não obstante formalmente
típica.254
Os tribunais brasileiros acolhem amplamente a aplicação desse princípio255
em todos os crimes, exceção feita àqueles classificados como de perigo abstrato
revestido de presunção absoluta, como são os casos, por exemplo, do delito
envolvendo a falsificação de moeda corrente256 257 e do tráfico de
250 SANGUINÉ, Odone. Observações sobre o princípio da insignificância, in: Fascículos de Ciências Penais, v. 3, n. 1, p. 38. Sobre o princípio da insignificância, escreve Claus ROXIN: “... hacen falta principios como el introducido por Welzel, de la adecuación social, que no es una característica del tipo, pero sí un auxiliar interpretativo para restringir el tenor literal que acoge también formas de conductas socialmente admisibles. A esto pertenece además el llamado principio de la insignificancia, que permite en la mayoría de los tipos excluir desde un principio daños de poca importancia: maltrato no es cualquier tipo de daño de la integridad corporal, sino solamente uno relevante; análogamente deshonesto en el sentido del Código Penal es sólo la acción sexual de una cierta importancia, injuriosa en una forma delictiva es sólo la lesión grave a la pretensión social de respeto. Como ‘fuerza’ debe considerarse únicamente un obstáculo de cierta importancia. Igualmente también la amenaza debe ser ‘sensibile’ para pasar el umbral de la criminalidad. Si con estos planteamientos se organizara de nuevo consecuentemente la instrumentación de nuestra interpretación del tipo, se lograría, además de una mejor interpretación, una importante aportación para reducir la criminalidad en nuestro país” (in Política criminal y sistema del derecho penal, Trad. Francisco Muñoz Conde e Diego-Manuel Luzon Peña, p. 53). 251 Ibid., p. 39. 252 MAÑAS, C. V., Ob. cit., p. 34. 253 O princípio da ofensividade equivale ao princípio da lesividade citado, sendo expressões sinônimas. Assim: BIANCHINI, Alice. Pressupostos Materiais Mínimos da Tutela Penal, p. 54-56. 254 SANGUINÉ, O., Ob. cit., p. 39. 255 Por todos, Supremo Tribunal Federal: HC 84.424/SP, Rel. Min. Carlos Britto, DJU 07/10/2005, p. 26. 256 Assim decidem ambas turmas criminais do TRF 4ª Região: Acr. 2004.72.00.0150629/SC, 8ª T. Rel. Élcio Pinheiro de Castro, DJU 14/09/2005, p. 963; Acr. 1999.71.02.0044215/RS, 7ª T., Rel. Maria de Fátima Labarrere, DJU 14/07/2004, p. 549, dentre outros inúmeros julgados. 257 Em sentido aparentemente contrário manifestou-se o Supremo Tribunal Federal no julgamento do HC 83.526-CE, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJU 07/05/2004, p. 25, em que, na ementa, constou ter havido absolvição da prática do delito de introdução em circulação de moeda falsa pela aplicação do princípio da insignificância quando, na verdade, a absolvição se deu porque a cédula
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entorpecentes.258 O Supremo Tribunal Federal o acolheu expressamente pela
primeira vez em julho de 1988, por votação unânime da Segunda Turma, no RHC
n.º 66.869-1. Na época assentou-se que uma “equimose de três centímetros de
diâmetro, decorrente de um acidente automobilístico, escapa ao interesse punitivo
do Estado em virtude do princípio da insignificância”, sustentando-se que o
prosseguimento da ação penal não atingiria resultado algum, apenas
sobrecarregaria mais os serviços da Justiça e incomodaria inutilmente a vítima.259
Especificamente com relação ao delito previsto no artigo 17 da Lei nº
7.492/86, conquanto sejam muito reduzidos os casos até o momento levados a
julgamento nos tribunais brasileiros e, via de conseqüência, poucos os precedentes
existentes, pode-se dizer que a jurisprudência nacional acolhe concretamente a
possibilidade de aplicação do princípio da insignificância, desde que os valores
objeto de adiantamento ou empréstimo sejam de tal monta reduzidos que não
coloquem em risco sequer minimamente os bens jurídicos tutelados.260
Mas não é só.
Sendo certo que não há como se estabelecer um limite objetivo para
caracterizar a insignificância nos crimes contra o sistema financeiro, fica ao
prudente exame do magistrado essa quantificação, sempre tendo em conta que se
trata de crime pluriofensivo e que, tendo como uma das objetividades jurídicas a
tutela da confiança no sistema, deve-se analisar a conduta levada a cabo em vista
era de tal grosseira falsificação, a ponto de não caracterizar nem mesmo o delito de estelionato, a teor do disposto na Súmula 73/STJ. Assim, vê-se que, a rigor, o que houve foi a má redação da ementa. 258 Assim entende o Supremo Tribunal Federal, de que é exemplo o HC 83.191-DF, Rel. Min. Nelson Jobim, DJU 13/02/2004, p. 18; no mesmo sentido as duas turmas criminais do Superior Tribunal de Justiça, unanimemente: RHC 15.422-RJ, 5ª Turma, Rel. Min. Laurita Vaz, DJU 01/08/2005, p. 472; REsp 550.653-MG, 6ª Turma, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJU 09/02/2004, p. 218, dentre vários outros julgados. 259 SANGUINÉ, O., Ob. cit., p. 36-50. 260 Assim: TRF 2ª R., Acr 1962/RJ (Proc. 99.02.00247-1), 2ª Turma, Rel. Paulo Espírito Santo, DJU 28/11/2000, p. 78-112, em que restou assentado expressamente que “nenhuma ameaça à liquidez da distribuidora, ou à estabilidade do mercado financeiro era possível resultar da conduta dos apelados. É certo que, nos crimes de perigo abstrato, não há que se indagar se efetivamente houve o risco. Mas, é indispensável que haja, ao menos, a possibilidade de vir, a conduta, a colocar a empresa em perigo. Se não há a possibilidade de dano, ainda que meramente hipotética, não haverá perigo algum, abstrato ou concreto.(...)Não me parece que tenha gravidade suficiente para escapar ao Princípio da Insignificância a atitude de diretores de uma instituição financeira que, tendo como empresa controlada um haras, adiantem pequenas quantias que, obviamente, serão restituídas (pois também é óbvio que, como pessoas físicas, as reporiam, se fosse o caso) para pagar a instalação de uma bomba d´água (R$ 78,05), a taxa de manutenção do Jokey Club (R$ 427,82), um remédio veterinário (R$ 9,18). Quando se fala em ‘crimes contra o sistema financeiro’, se pensa, naturalmente, em centenas de milhares de Reais, quando não milhões, e não 50, 100, 200, ou, vá lá que seja, 1.000 ou 2.000!”
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da situação particular da instituição e também da representatividade que a
operação pode ter relativamente ao abalo à confiabilidade do sistema, seja pelo
perigo de sua repetição pelos demais integrantes dele, seja pelo porte, objeto
social e clientela daquela instituição objetivamente considerada, seja também pelo
montante econômico envolvido.261 Logo, não se haverá de, somente, considerar
objetivamente o valor da operação cuja realização é proibida pela norma, sendo
este apenas um dos elementos a serem considerados, uma vez que, em uma certa
conjuntura, examinada a operação de forma isolada, pode não representar, à
primeira vista, ofensa ao bem jurídico tutelado, mas, no conjunto das instituições
que englobam o sistema financeiro, pode auxiliar decisivamente, ao lado de uma
infinidade de condutas análogas perpetradas por outros integrantes dele, a própria
quebra de confiança que lança o sistema à bancarrota, com prejuízos a toda a
coletividade, indistintamente.
Na mesma ordem de idéias e pelas mesmas razões decorrentes da aplicação
do princípio da lesividade discute-se se o empréstimo realizado com violação à
norma que decorre do artigo 17 da Lei nº 7.492/86 com valores pertencentes à
própria administradora de consórcios ofende os bens jurídicos tutelados pelo tipo
em referência.
No ponto, vale transcrever o entendimento exposto por René Ariel DOTTI,
que, ao analisar as particularidades distintivas das administradoras de consórcios
das demais instituições financeiras assim consideradas, afirma que:
No sistema de consórcios existem, assim, duas espécies de patrimônio: a) o formado com os recursos injetados pelos integrantes dos grupos e destinado à aquisição de bens; b) o pertencente à administradora como contrapartida pelo capital e mão de obra postos à disposição do objetivo do Consórcio. Os recursos coletados dos consorciados são, por expressa disposição legal, depositados em conta bancária própria cuja movimentação somente se dá para atender aos objetivos do contrato de Consórcio. Assim, os diretores, gerentes, sócios e prepostos com função de gestão na empresa administradora são depositários, para todos os efeitos, das quantias que a empresa receber dos consorciados, até o cumprimento da obrigação assumida.
261 Abordando parte desse plexo de valores que merecem ser sopesados na análise da conduta destaca-se julgado do TRF 4ª R., Acr. 2001.70.01.0474229/RS 8ª Turma, Rel. Volkmer de Castilho, DJU 11/06/2003, em cuja ementa se afirmou: “caso em que as transferências de valores entre empresas coligadas mantendo saldos devedores em contas clientes por curtíssimos prazos e alguns valores inexpressivos, não podem ser tomadas como empréstimos para o fim do art. 17 da Lei 7492/86”. O julgado restou confirmado pelo Superior Tribunal de Justiça ao apreciar o REsp 607.931-RS, 5ª Turma, Rel. Min. Laurita Vaz, DJU 21/02/2005.
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Adiante, afirma categoricamente o supracitado autor que:
não se incluem no tipo as atividades que importem na aplicação de recursos próprios, ainda que essa tenha sido a vontade do projeto de lei.(...)Assim, evidentemente, não podem, de modo algum, ser equiparadas a instituição financeira as empresas que realizarem a aplicação de recursos próprios.262
Diante disso, entendendo que, durante a realização de tais operações com
recursos próprios, não se ofendem os bens jurídicos tutelados, porque nessa
condição a administradora não estaria atuando como verdadeira instituição
financeira – entendida como intermediadora de haveres –, o que somente se daria
se ela adiantasse ou emprestasse valores pertencentes aos grupos de consórcio, o
autor sustenta não ocorrer o crime, porquanto a aplicação do conceito de
instituição financeira por equiparação prevista no artigo 1º, parágrafo único, I, da
Lei nº 7.492/86 somente é cabível quando os entes ali descritos atuem
efetivamente como instituição financeira.
Em sentido oposto, aduz-se que as operações realizadas no mercado
envolvem certo grau de risco e, vedando-se a realização de empréstimos e
adiantamentos entre certas pessoas ligadas à empresa, evitar mesmo também a sua
‘autoconcentração’, fazendo com que o desempenho necessário para que a dívida
fosse saldada dependesse do próprio ente mutuante, ainda que indiretamente263 e,
no caso, independentemente de se tratar de valores pertencentes a terceiros em
depósito na instituição ou alcançados por terceiros a ela como contrapartida
econômica devida pela remuneração da intermediação, ainda assim, a conduta de
emprestar ou adiantar o valor a certas pessoas estaria revestida de lesividade.
Efetivamente, embora se reconheçam inegáveis méritos jurídicos aos
primeiros argumentos no sentido da não-caracterização do crime nas
circunstâncias mencionadas, temos que, em face dos bens jurídicos objeto de
tutela do tipo, razão está com a segunda corrente, uma vez que a proteção da
regularidade da política econômica e da fé pública e conseqüente credibilidade do
sistema financeiro impõe que as instituições que dele fazem parte se abstenham de
realizarem as condutas incriminadas em exame, independentemente da origem dos
recursos nela depositados. Afinal, a garantia da intangibilidade do patrimônio dos
262 DOTTI, R. A., Crime contra o Sistema Financeiro Nacional. Consórcio – Empresa administradora – Empréstimo em dinheiro para empresas do mesmo grupo – Caracterização, Revista dos Tribunais, v. 718, p. 361-362.
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investidores caracteriza somente uma das objetividades jurídicas contidas no
modelo legal delitivo, e ainda assim secundariamente, não esgotando em si toda a
sua potencialidade lesiva.
O fato, por seu turno, de se ter de escriturarem os valores recebidos pelas
empresas deste ramo de atividade a título de taxa de administração e de cotas dos
consorciados em partidas separadas264 em nada altera a situação e, aliás, tem como
fim atender ao ditame legal que estabelece que os diretores, sócios, gerentes e
prepostos da administradora são considerados depositários dessas quantias até a
entrega dos bens consorciados,265 individualizando o montante destes valores para
fins de fiscalização e eventual mensuração de responsabilidades que não aquelas
previstas no artigo 17 da Lei. Afinal, desarrazoado e contra toda e qualquer lógica
de lesividade e isonomia seria fazer repousar a distinção entre as demais
instituições mencionadas no artigo 1º e parágrafo único da Lei dos Crimes contra
o Sistema Financeiro e as administradoras de consórcio nessa circunstância
escritural, pois, seguindo-se esta linha de raciocínio, seria impositivo concluir que,
exclusivamente devido à ausência de uma tal obrigação imposta, por exemplo, a
um banco múltiplo, é que não se reconheceria a atipicidade da conduta de um
administrador deste que, alegando ter-se utilizado de valores obtidos com o
pagamento de tarifas de manutenção de contas ou de utilização de serviços
bancários pelos clientes, realizasse operações de empréstimos ou adiantamentos
vedadas. Ou, contrariamente, então seria o caso de se considerar que,
comprovando-se cabalmente que a operação bancária vedada fora realizada com
recursos provenientes desta origem, não se teria aperfeiçoado o tipo?
Evidentemente que este entendimento não se mostraria correto, sob aspecto algum
e ninguém se atreveria a sustentá-lo.
263 MAZLOUM, A., Ob. cit., p. 107 264 Circular Bacen nº 2.381, de 18.11.1993. 265 Lei nº 5.768/71. Art. 11. Os diretores, gerentes, sócios e prepostos com função de gestão na empresa que realizar operações referidas no artigo 7º: I - serão considerados depositários, para todos os efeitos, das quantias que a empresa receber dos prestamistas na sua gestão, até o cumprimento da obrigação assumida; II - responderão solidariamente pelas obrigações da empresa com o prestamista, contraídas na sua gestão. Parágrafo único. O disposto neste artigo aplica-se também aos administradores da operação mencionada no item I do artigo 7º. Art 7º Dependerão, igualmente, de prévia autorização do Ministério da Fazenda, na forma desta lei, e nos termos e condições gerais que forem fixados em regulamento, quando não sujeitas à de outra autoridade ou órgãos públicos federais:
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Em verdade, a saúde financeira das instituições referidas na Lei é elemento
primordial para a proteção dos bens jurídicos tutelados pela norma e esta saúde se
compõe de todos os ativos nela existentes, independentemente de sua origem e
forma, tudo porque efetivamente todas as empresas listadas no artigo 1º da Lei nº
7.492/86, em maior ou menor grau, com maior ou menor freqüência, captam a
poupança popular, que é o fundamento mediato da proteção decorrente do tipo
examinado neste trabalho, devendo-se cercar de todos os cuidados para que a
integridade e confiabilidade deste sistema não seja abalada sob pena de sua ruína,
com conseqüências verdadeiramente catastróficas para toda a coletividade. Daí,
pois, a conclusão de que as administradoras de consórcio atuam também como
intermediários financeiros entre todos os consorciados, que, isoladamente, não
possuem capitais superavitários para efetuar a aquisição dos bens, organizando-os
de forma tal que façam com que a economia siga uma dinâmica construtiva na
sociedade, injetando os haveres no mercado. Isso torna falsa toda a premissa que
fundamenta a tese da inaplicabilidade do tipo aos casos em que se realiza a
operação com haveres próprios da entidade.
Daí, pois, entendermos que não se pode excluir da incidência do tipo em
exame as operações realizadas pelas administradoras de consórcios com recursos
próprios, provenientes dos valores recebidos a título de remuneração por serviços
prestados ou de qualquer outra origem análoga – e, por extensão, por quaisquer
das entidades listadas no artigo 1º da Lei – que objetivamente se enquadrem na
disposição do artigo 17 da Lei nº 7.492/86.
De todo modo, a questão está ainda longe de ser pacificada tanto na esfera
doutrinária quanto na jurisprudencial, embora atualmente se venham os tribunais
inclinando no sentido de reconhecer a ocorrência do delito em tais casos266 e a
controvérsia doutrinária vale menos pela resposta em si e muito pelo fundamento
que está por detrás dela, que é rigorosamente idêntico àquele que permite a
aplicação do princípio da insignificância da conduta, a saber: a necessidade de se
I - as operações conhecidas como Consórcio, Fundo Mútuo e outras formas associativas assemelhadas, que objetivem a aquisição de bens de qualquer natureza (...). 266 No sentido da ocorrência do delito: STJ, REsp 328.913-SP, 5ª Turma, Rel. Min. Laurita Vaz, DJU 13/12/2004; RHC 15.792-RS, 5ª Turma, Rel. Min. Gilson Dipp, DJU 01/07/2004; REsp 331.393-SP, 6ª Turma, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJU 02/02/2004; HC 5.582-SP, 5ª Turma, Rel. Min. Felix Fischer, DJU 23/03/1998; TRF 3ª R., ACr. 95.03.038357-9/SP, 2ª Turma, Rel. Eva Regina, DJU 31/01/1996; TRF 4ª R., ACr. 1999.04.01.062188-6/SC, 1ª Turma, Rel. Amir Sarti, DJU 09/02/2000. No sentido da inexistência do crime: TRF 3ª R., ACr 97.03.060448-0, 1ª Turma, Rel. Casem Mazloum, DJU 27/10/1998.
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analisar a existência de lesividade da conduta perpetrada que, formalmente, se
amolda ao tipo em apreciação, ainda que este seja caracterizado doutrinariamente
como de mera conduta e perigo abstrato. Afinal, não fosse esta possibilidade, a
partir do reconhecimento da construção doutrinária acima mencionada, não
haveria espaço teórico para uma discussão jurídica em tal nível de argumentação e
controvérsia, a ponto de existirem doutrinadores de grande relevância advogando
uma ou outra corrente, indo, na mesma balada, os precedentes jurisprudenciais.
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4. DIREITO PENAL ECONÔMICO, CRIMES CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO E (RE)LEGITIMAÇÃO DO DIREITO PENAL: ATUALIDADES E PERSPECTIVAS
4.1. UM NOVO PARADIGMA PARA O DIREITO PENAL?
A grande questão que aflige o Direito Penal no alvorecer do século XXI diz
com a necessidade de se identificar qual o papel que lhe estará reservado para as
próximas gerações, o que implica necessariamente analisar a sua aptidão para a
tutela de novos bens jurídicos supra-individuais – como é o caso do meio
ambiente e, particularmente, da ordem econômica – ou, se, ao contrário, uma
neocriminalização nestes termos confronta com a estruturação principiológica de
um direito penal liberal da pós-modernidade e simplesmente não pode ser aceita,
sob pena de sua completa e absoluta violação.
Em verdade, toda a discussão que se coloca envolvendo essas questões tem
como ponto fulcral a compreensão da função exercida pelo bem jurídico no
âmbito da ciência criminal: se como limite negativo para a criação de tipos penais
ou se como limite negativo e também limite positivo para a atividade legiferante
penal. A partir da concepção adotada a esse respeito é que se aceitará, ou não, a
validade de construções de novos tipos penais como aqueles envolvendo a ordem
econômica.
A primeira concepção entende que o Direito Penal deve ser visto como uma
limitação à política criminal, que tem como função o combate à criminalidade
mediante a seleção de comportamentos socialmente perigosos ou danosos,
competindo àquele a função liberal-garantística de assegurar a uniformidade da
aplicação do direito e a liberdade individual em face da voracidade do Estado
“Leviatã”.267 Winfried HASSEMER esclarece que o chamado Direito Penal
Clássico surgiu a partir do reconhecimento da inexistência – ou da
impossibilidade de comprovação concreta – do direito natural, não sendo mais
invocado como fonte dos mandatos e proibições jurídicas, passando a derivar
então do chamado Contrato Social, por meio do qual a coletividade cede certas
liberdades em favor do Estado para que este garanta juridicamente a coexistência
267 LISZT, Franz Von apud ROXIN, C., Política Criminal e Sistema Jurídico-Penal, p. 02-03.
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dos contratantes. Nesse contexto, o Direito Penal cumpre uma função
estabilizadora das condições do contrato social, evitando lesões às liberdades
individuais para além da parcela de que se abriu mão, igualitária e
reciprocamente, vedando, conseqüentemente, o domínio de uns sobre outros.
Somente, pois, a lesão das liberdades asseguradas no Contrato Social se considera
delito, sendo o bem jurídico um critério negativo que impede a criminalização
ilegítima pois, onde não há lesão de bem jurídico, não há crime. O Direito Penal é
a mais enérgica proteção dos direitos individuais, um instrumento de garantia da
liberdade cidadã.268
A segunda concepção entende que em um Estado Democrático de Direito
tanto o Estado quanto o Direito adquirem uma função transformadora, daí advindo
a conclusão de que uma série de valores constitucionais coletivos necessitam de
proteção penal, devendo o Direito Penal Moderno ser concebido, além da função
de limite negativo, evitando assim a criminalização injustificada, também a partir
de um garantismo positivo (limite positivo), pois há um verdadeiro dever de
proteção penal destes bens fundamentais assim extraídos da Constituição, sendo
cabível, inclusive, a utilização da cláusula de ‘proibição de proteção deficiente’
para obrigar o legislador a fazê-lo,269 porquanto pode-se considerar a existência de
um direito fundamental a uma tutela penal, decorrente do direito à proteção como
prestação positiva do Estado, em torno de um núcleo essencial de bens
relacionados à proteção da dignidade da pessoa humana, categoria que informa o
Estado Democrático de Direito.270 Afinal, na atualidade, a originária função
garantista negativa não basta à realização dos fins de um Estado que atua de forma
positiva para a concretização dos direitos fundamentais (“administração
prestadora”) e não mais unicamente na modalidade de atuação negativa
(“administração de intervenção”). Nas palavras de Claus ROXIN, “o próprio
princípio nullum-crimen possui, ao lado de sua função liberal de proteção, a
finalidade de fornecer diretrizes de comportamento; através disto, torna-se ele um
significativo instrumento de regulação social”.271
Em síntese: a compreensão do bem jurídico exclusivamente como limite (ou
garantia) negativo ou, ao lado dele, também como limite positivo determina o
268 HASSEMER, W., Persona, Mundo y Responsabilidad, p. 43-46. 269 STRECK, L., Ob. cit., p.308-310. 270 FELDENS, L., Ob. cit., p. 91-92. 271 ROXIN, C., Política-Criminal…, p. 13-15.
92
âmbito de abrangência do Direito Penal e, via de conseqüência, a possibilidade ou
não de criminalização de ofensas à ordem econômica.
Adota a primeira concepção a Escola de Frankfurt (destacando-se:
HASSEMER, HERZOG, NAUCKE, ALBRECHT), cujo discurso, sintetizado por
Rodrigo RÍOS:
Tem criticado severamente a decisão de que o Direito Penal estenda seu objeto para além dos seus limites – que tradicionalmente tem sido a proteção dos bens jurídicos clássicos – e acabe convertendo-se num Direito Penal meramente funcionalista, orientado exclusivamente à finalidade de lograr uma defesa da sociedade o mais eficaz possível diante dos riscos derivados das disfunções do moderno sistema social.272
Em sentido contrário, grande parte da doutrina considera perfeitamente
possível e necessária a intervenção penal para além dos bens jurídicos individuais
historicamente tutelados (exemplificativamente: DIAS, STRATENWERTH,
ROXIN, TIEDEMANN, MIR PUIG, BOTTKE273). Nesse sentido, destaquem-se
as palavras de Günther STRATENWERTH, para quem:
A restrição da idéia de bem jurídico às condições de existência e desenvolvimento do indivíduo na comunidade ou ainda às especiais condições de liberdade externa dos demais ignoram que cada grupo humano conhece (e necessita!) múltiplas normas de conduta assimiladas culturalmente, que não caracterizam ‘bens’ mais ou menos concretos.(...) Esforçando-se por fazer voltar atrás a roda da história e voltar a restringir o Direito Penal a um ‘âmbito nuclear’ definido de modo mais ou menos estreito, que corresponde aos modelos ‘clássicos’ do século XIX.274
Portanto, o nó da questão está em se aderir a uma ou a outra corrente. No
presente trabalho muito já se expôs acerca da possibilidade de intervenção penal
para a proteção dos bens jurídicos supra-individuais, em particular aqueles
protetivos da ordem econômica e, nesta, do sistema financeiro nacional,
evidenciando a que linha de pensamento o autor se filia.
Resta, todavia, enfrentar a questão que diz com a necessidade de obediência
aos princípios do Direito Penal Clássico no âmbito do chamado Direito Penal
272 RÍOS, R. S., Reflexões sobre o Delito Econômico..., p. 435. 273 Registre-se que este autor admite também a existência de um Direito Penal Econômico, fundamentando esta possibilidade, diferentemente dos demais e das idéias sustentadas nesta dissertação, em que a tutela da Ordem Econômica se dá pela soma dos interesses das atividades dos sujeitos econômicos concretamente considerados, e não pela proteção da Ordem Econômica considerada como um todo, abstratamente. Assim: PÉREZ, C. M. B., Ob. Cit., p. 102-107. 274 STRATENWERTH, G., Ob. cit., p. 66-68.
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Moderno275 ou se seria indispensável uma profunda e completa reordenação dos
postulados do Direito Penal no âmbito deste .
São considerados princípios legitimadores do sistema penal a legalidade,276
a intervenção mínima,277 a humanidade,278 a culpabilidade,279 a pessoalidade,280 a
adequação social281 e a insignificância,282 entre outros que derivam de seus
desdobramentos.283
Para a Escola de Frankfurt o chamado Direito Penal Moderno abandona os
postulados do Direito Penal Clássico, sendo com ele incompatível,
particularmente no que diz com a necessidade de lesão a bens jurídicos, a partir da
constatação de que se vale fundamentalmente da construção de tipos de perigo
abstrato, desprezando os princípios da legalidade, na medida em que não descreve
as condutas suficientemente, da culpabilidade como limite da responsabilidade e
da pena e da intervenção mínima, uma vez que se presta à utilização política
extremada por meio de uma excessiva funcionalização comunicativa do Direito
275 As denominações são utilizadas por HASSEMER para se referir, respectivamente, ao Direito Penal atuante sobre bens jurídicos individuais, historicamente objeto de proteção, e sobre bens jurídicos supra-individuais como o ambiente e a economia. Assim: HASSEMER, W., Ob. cit., p. 39-51. 276 O princípio da legalidade insere a máxima “nullum crimen, nulla poena, sine lege”, construída por Feuerbach, no começo do século XIX. Segundo ele, nenhum fato pode ser considerado crime e nenhuma pena criminal pode ser aplicada sem que antes tenham sido instituídos por lei. Está no art. 5º, XXXIX, da CF/88. 277 O princípio da intervenção mínima, por sua vez, tem o intuito de limitar ou eliminar o arbítrio do legislador, haja vista que o princípio da legalidade apenas impõe limites ao arbítrio judicial. Visa restringir a incidência das normas incriminadoras aos casos de ofensas aos bens jurídicos fundamentais. O direito penal só deve intervir nos casos de ataques graves aos bens jurídicos mais importantes Dele decorrem os princípios da fragmentariedade e da subsidiaridade. 278 Este princípio atua na cominação, na aplicação e na execução da pena, exigindo dela uma racionalidade e uma proporcionalidade, pois não pode olvidar que o réu é uma pessoa humana e nem objetiva infligi-lo suplícios. 279 Impede a responsabilidade objetiva da pessoa, exigindo a perquirição da existência de dolo ou, nos casos previstos em lei, da culpa, e funciona como medida da reprovabilidade social da conduta, fundamentando e limitando a pena. 280 Nenhuma pena passará da pessoa do condenado. Somente o causador da ação ou omissão penalmente reprovada poderá responder por ela. Está previsto no art. 5º, XLV, da CF/88. 281 É um princípio geral de hermenêutica, pois a ação socialmente adequada está desde o início excluída do tipo, não sendo objeto de reprovação social. 282 Leva em conta a tolerância do grupo em relação à determinada conduta de escassa gravidade, ou seja, ela é desconsiderada por se tratar de bem jurídico insignificante. 283 Como o da proporcionalidade, que ganha especial relevância nos casos de delitos de bagatela, em que haveria desproporção entre a ação e a pena aplicada, por mínima que fosse, pois sua inobservância se afastaria da idéia de finalidade de um direito penal comprometido com um Estado Social e Democrático de Direito; o da lesividade ou alteridade, segundo o qual só pode ser penalizado aquele comportamento que lese ou efetivamente exponha a perigo um bem jurídico, excluindo de sua incidência as condutas que digam respeito a características individuais das pessoas, que possam ser consideradas imorais, pecaminosas ou escandalosas, mas que não afetem nenhum bem jurídico tutelado, violando simples deveres de obediência a um ‘standard’ social ou mesmo legal.
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Penal, supervalorizando as suas possibilidades como meio de controle social.284
Daí, pois, entendendo-se incabível na moldura desse ramo do Direito as situações
por ele abarcadas, propõe-se a criação do chamado “Direito de Intervenção” que
se colocaria entre o direito penal e o direito sancionatório administrativo, entre o
direito civil e o direito público, com um nível de garantias e formalidades
processuais inferior ao do direito penal, mas também com menos intensidade nas
sanções que poderiam impor-se aos indivíduos.285 286
Jesus-Maria SILVA SANCHEZ, após reconhecer a indispensabilidade da
expansão do Direito Penal na direção da proteção dos bens jurídicos supra-
individuais, entende, todavia, também ser incompatível, com relação a estes, a
aplicação em sua inteireza dos princípios que o regem, propugnando, então, um
‘Direito Penal de duas velocidades’, em que se deveriam observar todos os
rigores, princípios e garantias apenas ao núcleo tradicional desse ramo do Direito,
que efetivamente lesasse ou colocasse em perigo real bens individuais e que
previsse a pena de privação de liberdade, reservando ao Direito Penal
Socioeconômico, porque utiliza a técnica da incriminação por meio de tipos de
perigo presumido e protege bens coletivos, a flexibilização dos postulados penais
clássicos, como os critérios da imputação (responsabilidade pessoal), legalidade e
culpabilidade. A condição que estabelece para tanto é que, nestes últimos, não seja
cominada a pena de privação da liberdade, mas somente a restritiva de direitos ou
a pecuniária, ressalvando que, ainda que o crime se enquadre dentre aqueles do
Direito Penal Moderno, deverão ser observados todos os rigores do Direito Penal
Clássico quando no tipo se cominar a pena privativa de liberdade.287
Para outros, porém, deve-se mesmo admitir a extremada funcionalização do
Direito Penal em uma sociedade de risco pós-industrial, acatando-se as teses
acima, sem contudo retirá-las do núcleo existencial do Direito Penal, modificando
sumamente o seu perfil, por meio da supressão do Parlamento da tarefa exclusiva
da produção legislativa penal, passando-a também ao Poder Executivo; da
antecipação da tutela penal para estados prévios da lesão ao interesse socialmente
significativo, de modo que somente remotamente se vislumbre a ofensa ao bem
284 ALBRECHT, Peter-Alexis. El Derecho Penal em la Intervencion de La Política Populista, in CASABONA, Carlos Maria Romeu (dir.), La Insostenible Situacion del Derecho Penal, p. 473-480. 285 HASSEMER, W. Persona, Mundo...., p. 70-73. 286 Id., Três Temas de Direito Penal, p. 83-97.
95
jurídico; da redução da incidência do princípio da responsabilidade pessoal; e da
extensão tal do âmbito da incidência penal de forma que reste superado o
princípio da intervenção mínima.288
A partir daí se constrói a idéia recorrente de que ao “Direito Penal
Moderno” carece legitimidade, uma vez que se mostra incompatível, pela sua
natureza, com os princípios orientadores do Direito Penal. Essa é a base do
raciocínio da Escola de Frankfurt, da posição de SILVA SANCHEZ e mesmo de
parte dos doutrinadores que reconhecem a necessidade de incriminação a partir da
concepção de um Direito Penal do Risco, sendo mesmo indispensável a
relativização dos princípios e garantias do Direito Penal Clássico.
Entendemos, contudo, que o raciocínio não se mostra correto e parte de uma
premissa equivocada, incompatível com a pós-modernidade e com um Estado
Social e Democrático de Direito.289
No ponto, razão está com FIGUEIREDO DIAS290 que, após afirmar que o
paradigma do Direito Penal se assenta na política criminal, na proteção subsidiária
de bens jurídicos e na noção de prevenção geral e de prevenção especial, a partir
do que se constrói a ordenação dos princípios incidentes, reconhece a necessidade
de intervenção penal para a prevenção dos grandes riscos que assombram a
sociedade pós-industrial, que ameaçam, em muitos casos, a própria subsistência
da humanidade, entendendo, por outro lado, pela absoluta imprescindibilidade de
observância dos princípios penais construídos a partir do Iluminismo e
caracterizadores de um Direito Penal Liberal.
Assim, ao lado dos bens jurídicos individuais, há a necessidade de tutela
penal de bens jurídicos sociais, trans-individuais, trans-pessoais, coletivos, que se
apresentam:
(...) por sua própria natureza, como muito mais vagos e carentes de definição precisa, de mais duvidosa corporização ou mesmo de impossível tangibilidade. Mas nada disso impõe uma mudança ou um abrandamento na proposição penal básica segundo a qual é função exclusiva do direito penal a tutela subsidiária de bens jurídicos; porque também neste âmbito é de verdadeiros bens jurídico-penais que se trata. O que implica é que se trabalhe no aprofundamento do seu estudo, se progrida no estabelecimento dos seus contornos e se tome sempre a benefício de inventário, com o auxílio indispensável da ordem axiológica jurídico-
287 SANCHEZ, Jesús-Maria Silva. A expansão do Direito Penal, p. 136-147. 288 DIAS, J. de F., Sobre os fundamentos da Doutrina Penal, p. 167-170. 289 A esse respeito vide o contido na Seção 4 do Capítulo 1 supra. 290 DIAS, J. de F., Ob. cit., p. 155-185.
96
constitucional, a erupção de novos bens jurídicos deste tipo que apelem para a tutela penal.291
Nestes termos, a criminalização torna-se legítima na medida em que
encontra esteio na ordem constitucional (direitos sociais, econômicos, culturais e
ambientais), sendo necessária, tanto de um ponto de vista da prevenção geral
negativa, pois a punibilidade se revela suscetível de influenciar a escolha daquele
que poderia decidir infringir a norma, quanto da prevenção geral positiva,
reforçando a disposição de obediência da norma por parte do indivíduo fiel ao
direito.
Na mesma ordem de idéias, a advertência de Wilfried BOTTKE:
O Direito criminal econômico que caracteriza como criminais este tipo de comportamentos sustenta sua legitimidade na lesividade ou colocação em perigo de bens jurídicos, que motiva sua criminalização com independência de seu aspecto econômico e de outras considerações gerais desnecessárias. O Direito penal econômico em sentido amplo participa sob todos os aspectos da legitimidade de um direito penal que abarca também comportamentos que não afetam a economia. Sua legitimidade depende do cumprimento dos critérios gerais que sustentam desde qualquer ponto de vista a pretensão de validade do Direito penal e não necessita de nenhuma justificação especial.292
Com isso – o reconhecimento de que os pressupostos de um Direito Penal
assim considerado não diferem do Clássico Direito Penal quanto aos seus
paradigmas de sustentação –, afastam-se os argumentos no sentido da
ilegitimidade de tais incriminações à luz dos postulados básicos do Direito Penal,
bem como os argumentos no sentido de que esta neocriminalização, em verdade,
caracterizaria verdadeiro braço de um reprovável direito penal simbólico293 ou que
poderia permitir, em última análise o retorno a um ‘direito penal da vontade’
291 Ibid., p. 175. 292 BOTTKE, Wilfried. Sobre la legitimidad del derecho penal económico en sentido estricto y de sus descripciones típicas específicas, p. 638. 293 O Direito Penal simbólico teria por objeto situações conhecidas na criminologia como situações sociais problemáticas perfeitamente individualizáveis, vale dizer, situações sociais tipicamente características do capitalismo tardio e da vida numa sociedade pós-industrial, como as que dizem respeito à ordem econômico-financeira e ao meio ambiente e, na verdade, por detrás destas novas tipificações de condutas, em um exame mais aprofundado, se perceberia que o Estado não estaria verdadeiramente interessado em fornecer uma solução real ao problema, preferindo, portanto, apenas uma solução penal, aparentemente eficaz. A tutela penal serviria para mascarar a necessidade de o legislador socorrer-se dos instrumentos extrapenais para a efetiva tutela jurídica dos bens em questão. O Direito Penal, nestas questões, não seria utilizado para ser efetivo. Assim: BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal, p. 159-182.
97
vigente na Alemanha durante a época do nazismo nos anos 30, de triste
lembrança.294
Por fim, pode-se concluir, uma vez mais com FIGUEIREDO DIAS, que:
O novo século e o novo milênio devem, em conclusão, assistir à persistência da função do direito penal de exclusiva tutela subsidiária de bens jurídico-penais tanto individuais e pessoais, como sociais e trans-pessoais; porque essa função é exigida pela persistência do ideário personalista, pelo patrimônio irrenunciável dos direitos humanos, numa palavra, pelo quadro axiológico de valores que nos acompanha desde o século XVIII e deve ser aperfeiçoado no futuro – mesmo num futuro onde tenha mudado radicalmente a relação entre o Homem e a Natureza. O direito penal deve continuar a resguardar-se de tentativas de instrumentalização como forma de governo, de propulsão e promoção de finalidades da política estadual, ou de tutela de ordenamentos morais – porque aí mesmo abica o movimento de secularização que se apresenta como um dos fatores mais importantes de superação da razão instrumental. A dogmática deve evoluir, fornecendo ao aplicador critérios e instrumentos que não podem ser decerto os dos séculos passados como formas adequadas de resolver os problemas do século XXI; mas sem por isso ceder à tentação de ‘dogmáticas alternativas’ que podem, a todo o momento, volver-se em ‘alternativas à dogmática’ incompatíveis com a regra do Estado de Direito e, como tal, democraticamente ilegítimas. Tanto bastará, assim o cremos, para nos dar o direito de esperar que os novos e grandes perigos da sociedade pós-industrial possam ser contidos dentro de limites ainda comunitariamente suportáveis, num quadro axiológico regido pelos valores da vida, da dignidade humana e da solidariedade; e comunitariamente suportáveis tanto por nós próprios, como pelas gerações futuras que temos todos o dever indeclinável de, dentro das nossas forças e da nossa previsão, proteger.295
Assim, pode-se afirmar que não há a necessidade de criação de um
verdadeiro ‘novo paradigma do Direito Penal’ para se lidar com o Direito Penal
Moderno – dentro do qual ressai o Direito Penal Econômico –, sendo puramente
indispensável que se sigam observando os princípios que norteiam o Direito Penal
desde a Ilustração, inserindo-se a admissão da proteção jurídico-penal para os
bens jurídicos supra-individuais como corolário lógico e indispensável de um
Estado Democrático e Social de Direito, em uma sociedade que ultrapassou a era
da industrialização e ingressou na pós-modernidade, marcada pela presença de
riscos elevados e fluidos que determinam também a intervenção penal, em
algumas situações, a partir de uma leitura de um garantismo positivo e negativo.
294 Era um direito penal autoritário que dispensava a presença do princípio da lesividade, aproximando a noção de crime da noção de traição ao Estado, banindo da teoria do delito o bem jurídico e proclamando que a essência de todo e qualquer crime residia na violação de um dever de fidelidade ao mandamento estatal, sendo o braço jurídico-penal da Alemanha nazista. Sobre o tema: BATISTA, N., Empréstimos Ilícitos..., p. 140-142, e HASSEMER, W., Três Temas...., p. 09-17. 295 DIAS, J. de F., Sobre os Fundamentos..., p. 185.
98
O único paradigma realmente novo e necessário é o da imprescindibilidade
da proteção penal de bens trans-individuais, o que, como se viu, não abala os
demais fundamentos e princípios do Direito Penal liberal.
4.2 AS RESPOSTAS CRIMINAIS ADEQUADAS PARA OS CRIMES CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO
A pena criminal é comumente entendida como o mal que impõe o legislador
pela realização de um delito por parte de alguém. É a sua conseqüência. Ocorre
que uma tal definição nada esclarece acerca da natureza desse mal, por que e para
que ele é imposto. Para se chegar a uma aproximação cientificamente mais correta
sobre a questão mostra-se indispensável pesquisar sobre a justificação, o sentido e
o fim da pena no Direito Penal296 e, a partir de então, analisar-se quais suas
espécies e efetivamente quais respostas criminais se mostrariam mais adequadas
às práticas dos crimes contra a Ordem Econômica e, particularmente, contra o
Sistema Financeiro Nacional.
De acordo com MUÑOZ CONDE:
A pena se justifica por sua necessidade como meio de repressão indispensável para a convivência de pessoas de uma comunidade. Sem a pena, a convivência humana na sociedade atual seria impossível. Sua justificação não é, por conseguinte, uma questão religiosa nem filosófica, mas uma amarga necessidade em uma sociedade de seres imperfeitos como são os homens.297
Quanto às indagações relacionadas ao sentido e ao fim da pena, as respostas
variam de acordo com a concepção doutrinária que se possuir a respeito, que se
colocam nas Teorias Absolutas, Relativas e Unificadoras.
Para as Teorias Absolutas, a pena é a retribuição da culpabilidade, a partir
da conclusão de que à ação criminosa do autor deve corresponder uma imposição
de um mal correspondente, independentemente de qualquer outro objetivo,
calcada exclusivamente na retribuição da sua culpabilidade, a partir das
concepções do imperativo categórico de Kant e da pena como negação da negação
do direito – e, em conseqüência, a afirmação deste – de Hegel.298 De acordo com
296 CONDE, Francisco Muñoz. Introduccion al Derecho Penal, p. 69-70. 297 Ibid., p. 70. 298 STRATENWERTH, G., Ob. cit., p.30.
99
essa teoria, a pena não tem qualquer fim social que não seja o de servir de
instrumento para que a justiça prevaleça. Tem como grande ponto positivo o fato
de vincular a pena aplicada ao grau de culpabilidade do autor, servindo como
importante fator de limitação incidente no âmbito do Direito Penal. Por outro
lado, possui o inconveniente de determinar sua aplicação mesmo quando ela não
seja necessária para garantir a paz social ou quando os danos de sua aplicação
sejam mesmo superiores àqueles decorrentes do próprio agir delituoso;
igualmente, não oferece critério algum para que a execução penal tenha caráter
correcional, colaborando para a ocorrência da reincidência do condenado no
futuro.299
As Teorias Relativas, por sua vez, fornecem à pena a função de prevenir
delitos, por meio da proteção de certos interesses sociais. A rigor, passa-se a
reconhecer a função utilitarista da pena desde a sua cominação, fundada agora na
sua necessidade para a manutenção de certos bens sociais. A pena passa a ser
concebida não como uma resposta ao mal proporcionado pelo autor do fato, mas
como uma forma de prevenir a prática delitiva pela sua só existência e
conseqüente possibilidade de aplicação, pela sua real aplicação e também pela
efetividade de sua execução. As Teorias Relativas se dividem em duas correntes:
prevenção geral e prevenção especial.300
A primeira foi introduzida por Feuerbach (1775-1833) e entende que a
função da pena é a coação psicológica decorrente da sua própria existência,
criando no espírito do potencial criminoso um ‘contra-motivo’ de tal forma forte
que seja capaz de dissuadi-lo da prática criminosa. Assume, modernamente, para
além da sua concepção inicial, uma dupla perspectiva, subdividindo-se em
‘prevenção geral negativa’, consubstanciada na intimidação dos demais
integrantes do corpo social a partir da efetiva aplicação da pena ao criminoso,
desmotivando aqueles que decerto pretenderiam violar a norma jurídico-penal a
fazê-lo, e em ‘prevenção geral positiva’,301 assim entendida como a confiança que
a comunidade, sobretudo aquela parcela que sequer cogitava a hipótese de
cometer a ação incriminada, deve ter na validade e na força de vigência das
299 ROXIN, Claus et alli. Introduccion al Derecho Penal e al Derecho Procesal Penal, p. 25. 300 MIR PUIG, S., Ob. cit., p. 90-91. 301 DIAS, J. de F., Questões Fundamentais..., p.111.
100
normas penais, informando às pessoas sobre o que está penalmente vedado de se
fazer e, por conseqüência, estimulando uma atitude de respeito pelo Direito.302
A segunda surge no último terço do século XIX e estabelece que em
verdade a finalidade da pena criminal é a de evitar que o autor concretamente de
um delito cometa outros no futuro, operando-se tanto por meio da internação do
condenado em estabelecimento prisional por um determinado período de tempo
quanto também por meio de sua ressocialização ou socialização.303 Essa
concepção baseia-se na idéia de que a pena tem como função a prevenção da
reincidência do criminoso, concretamente considerado.
Ambas as concepções, conquanto possuam inegáveis pontos dignos de
elogios – sobretudo em vista de não entender a pena como um fim em si mesma,
mas como um meio de evitação do crime e de reinserção social do condenado –
também merecem questionamentos profundos, tais como a eventual violação da
dignidade humana nos casos em que o réu opte por não se socializar, embora sua
condenação; e também a possibilidade de instituição de um ‘direito penal do
terror’, em que, para se atender a um postulado de prevenção geral positiva e
negativa se elevem as penas cominadas de tal forma que restem violados os
princípios da proporcionalidade e da culpabilidade, dentre outros questionamentos
possíveis.
Por fim, merecem registro as Teorias Unificadoras, cuja concepção domina
hoje o Direito alemão – e o Direito brasileiro também – e decorrem da conclusão
de que nenhuma das teorias até então vigentes304 pode ser considerada satisfatória
para o fim de fundamentar suficientemente a pena criminal desde um ponto de
vista jurídico-científico. Assim, combinam-se as três idéias fundamentais para que
se aproveitem as virtudes de cada uma delas, eliminando seus aspectos negativos.
Considera-se, portanto, atualmente que a pena deve ter como limite a
culpabilidade do autor, bem como que razões de prevenção geral ou especial não
podem conduzir à imposição de uma pena de maior gravidade do que a que
302 MIR PUIG, S., Ob. cit., p. 92. 303 ROXIN, C., Política-Criminal..., p. 25. 304 Até o início dos anos 60 na Alemanha predominou exclusivamente a concepção retributiva da pena e, a partir do Projeto Alternativo do Código Penal de 1966, elaborado por quatorze professores daquele país, passou-se a dar especial destaque, doutrinariamente, às teorias da prevenção geral e especial como fim da pena, e a nova Parte Geral do Código Penal alemão, aprovada em 1969, em vigor desde 1975, procuraram equilibrar ambas correntes, adotando como ponto de partida acerca da finalidade da pena as Teorias Unificadoras, equilibrando-se entre o
101
corresponda ao fato cometido, na medida da culpabilidade do criminoso, devendo
ser, por outro lado, suficiente em seus limites mínimos e máximos para que a
prevenção geral negativa e positiva se opere adequadamente. A partir do norte da
culpabilidade é que se buscam cumprir os distintos fins da pena, assim
entendidos: retribuição pelo fato cometido, ressocialização e prevenção geral
positiva e negativa.305
Na mesma ordem de idéias é a posição de CEREZO MIR, para quem:
Uma concepção unitária da pena, que encontre sua justificação no delito cometido e na necessidade de evitar a comissão de delitos no futuro, é dizer, que considere que a pena não apenas deve ser justa, mas também necessária, satisfaz em maior medida as exigências de um Estado social e democrático de Direito, ao proporcionar um sólido fundamento à exigência de proporcionalidade entre os delitos e as penas.306
Assim compreendidas as concepções da pena, pode-se por fim dizer com
STRATENWERTH que:
Em retrospectiva histórica, o conceito de pena não apenas compreende uma multiplicidade infindável de formas externas de aparição, mas também uma quantidade igualmente ampla de significados: tanto o sacrifício do infrator do direito, marcado por concepções mágico-sacrais, como o horror das penas de morte e corporais medievais, dirigidas à mais crua das intimidações, ou a pena privativa de liberdade da Idade Moderna, orientada à ‘correção’. Por isso não se pode colocar em dúvida que, desde um ponto de vista histórico, sequer se pode falar de ‘a’ pena como um só e mesmo fenômeno. Isso não quer dizer que a pena, no momento atual, em nosso lugar histórico, possa ser dotada de qualquer sentido. Antes, sua natureza vem co-determinada, precisamente, pela história em que surge.307
Logo, é de se concluir que não há uma pena criminal típica por excelência e
essa concepção varia de acordo com o momento histórico em que se vive, com os
princípios que regem o Direito Penal e a cominação e execução das respectivas
penas.
Assentadas, pois, essas considerações sobre a natureza da pena criminal e
suas funções, cabe indagar: quais seriam as respostas que o Direito Penal poderia
mais adequadamente oferecer para uma ação que ofendesse a Ordem Econômica
novo e o velho entendimento dominantes naquele país. Assim: ROXIN, Claus. Politica Criminal y..., p. 10-33. 305 ROXIN, C., Política Criminal..., p. 27. 306 CEREZO MIR, José. Temas Fundamentales del Derecho Penal, tomo I, p. 379.
102
e, em particular, o Sistema Financeiro Nacional, tendo em vista os vetores
mencionados?
As penas criminais usualmente previstas no Direito Penal da pós-
modernidade são as privativas de liberdade e pecuniárias, secundadas pelas penas
restritivas de direitos, que podem ser acessórias ou autônomas, e muitas vezes
substituem as penas privativas de liberdade, registrando-se exemplificativamente
que assim ocorre na Alemanha,308 Itália,309 Espanha310 e Brasil311 e são fruto de
um movimento de crescente humanização das penas, que se inaugurou com o livro
‘Dos Delitos e das Penas’ escrito pelo Marquês de Beccaria em 1764, acentuando-
se com o advento das idéias Iluministas que colocaram em xeque as penas cruéis
(morte, tortura, açoites, mutilação) utilizadas até então como a resposta básica do
sistema penal para a prática de um delito.312 A partir de então – sobretudo ao
longo do século XIX –, gradativamente suprimiram-se as penas corporais, sendo
estas substituídas pela privação da liberdade e, para além, no decorrer do século
XX presenciou-se cada vez mais a diminuição da pena de morte e a restrição da
utilização da pena de privação da liberdade como resposta típica a uma violação
da norma criminal para os crimes graves, incrementando-se as penas pecuniárias e
os institutos destinados a evitar o encarceramento, em vista de ser considerado por
si uma aflição desumana e excessiva, não sendo necessário para a maior parte dos
delitos313 (suspensão condicional da pena, suspensão condicional do processo,
penas substitutivas da privação da liberdade, dentre outros).314
Para se ter uma idéia da redução do impacto prático da pena de privação de
liberdade atualmente, veja-se exemplificativamente que na Alemanha, em 1882,
76,8 por cento de todas as condenações implicavam na prática a privação de
liberdade, contra 22,2 por cento convertidas em penas pecuniárias (multa),
enquanto que, em 1990 naquele país, as penas privativas de liberdade alcançaram
efetivamente apenas 5,3 por cento das execuções penais, impondo-se, em 83,3 por
cento dos casos de condenação, uma efetiva sanção pecuniária, por outro lado.315
307 STRATENWERTH, G., Ob.cit., p. 29. 308 ROXIN, C. et allii, Ob.cit., p. 29-34. 309 FERRAJOLI, L., Ob. cit., p. 410-420. 310 MIR PUIG, S., Ob. cit., p. 657-691. 311 DOTTI, R. A., Curso de Direito Penal – Parte Geral, p. 444-447. 312 Para um panorama completo sobre o assunto: FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir, p. 30-86. 313 FERRAJOLI, E., Ob. cit., p. 419. 314 MIR PUIG, S., Ob. cit., p.657-660 315 ROXIN, C., Dogmática Penal y Política Criminal, p. 452.
103
No Brasil, as penas, atendendo a este entendimento segundo o qual a
privação da liberdade, diante dos efeitos deletérios do isolamento, deve ser
reservada apenas para delitos revestidos de especial gravidade,316 podem ser
divididas em ‘penas institucionais’ e ‘penas alternativas’, entendendo-se como as
primeiras todas aquelas que se cumprem em instituições totais como
penitenciárias, presídios, cadeias públicas e demais estabelecimento assemelhados
(em regime de reclusão, detenção e prisão simples) e como as segundas todas as
sanções diversas e menos graves do que a privação da liberdade, dentre as quais se
destacam as restritivas de direitos e pecuniárias.317
Não obstante, no sistema brasileiro, na cominação das penas prevalecem,
em regra, a privação da liberdade, cumulativamente ou não com a de multa, e,
para crimes menos graves, somente esta última em muitos casos. Às penas ditas
alternativas, observadas as particularidades da multa, que pode estar cominada no
tipo ao lado da pena privativa de liberdade, restam, de regra, as funções de
substituir autonomamente as penas privativas de liberdade, nas hipóteses previstas
no artigo 44 do Código Penal, ou, ainda, servir como parâmetro para a aplicação
do instituto da transação penal previsto no artigo 76 da Lei nº 9.099/95. Há
algumas ainda que se aplicam como pena principal, sem qualquer caráter
substitutivo, nos casos dos crimes relacionados ao Código de Trânsito. São elas:
restritivas de direitos (art. 43 do CP), multa penitenciária (art. 49 do CP), multa
reparatória (art. 297 do CTB), suspensão de permissão ou habilitação para dirigir
veículo automotor (art. 292 do CTB), proibição de se obter a habilitação para
dirigir veículo (art. 292 do CTB), suspensão de atividades (art. 8º, III, da Lei nº
9.605/98), recolhimento domiciliar (art. 8º da mesma Lei), proibição de contratar
com o poder público (art. 10 da mesma Lei), proibição de receber incentivos
316 No ponto, vale a advertência de PASSOS DE FREITAS que, ao abordar esta questão relativamente aos delitos contra o meio ambiente e as respectivas penas aplicáveis – devendo-se reconhecer que os argumentos são válidos para todos os delitos, destacando-se em particular aqueles integrantes da criminalidade econômica –, sustenta que a superpopulação carcerária e as despesas para o Poder Público conduziram à modificação do regime de cominação, aplicação e execução de penas no País, o que, aliado à necessidade de prevenção dos danos, a sua recomposição e a ressocialização do condenado, que usualmente não se mostra extremamente perigoso para o convívio social, impõem a adoção de ‘penas alternativas à pena de privação de liberdade’. FREITAS, Vladimir Passos de e FREITAS, Gilberto Passos de. Crimes contra a Natureza, p. 290-291. 317 DOTTI, R. A., Curso de Direito Penal..., p. 444.
104
fiscais e outros benefícios (art. 10 da mesma Lei), proibição de participar de
licitações (art. 10 da mesma Lei).318
Todas essas penas mencionadas possuem caráter criminal, seja porque
atendem ao requisito formal (estão previstas em uma lei penal), seja porque
atendem ao requisito material (tolhem ou restringem um bem jurídico também
objeto de tutela do sistema normativo).
Examinando-se os tipos inseridos na Lei nº 7.492/86 observa-se que as
penas previstas variam entre um mínimo de um ano de reclusão e o máximo de
oito anos de reclusão, exceto para o crime de gestão fraudulenta, em que este
patamar alcança o limite máximo de doze anos, donde se pode concluir que, em
muitos destes, em vista da pena concretizada em sentença, não se ultrapassará o
limite de quatro anos previsto no artigo 44 do Código Penal, a ensejar a
substituição da pena de privação de liberdade por algumas das restritivas de
direitos previstas no artigo 43 do mesmo Código (prestação pecuniária; perda de
bens e valores; prestação de serviço à comunidade ou a entidades públicas;
interdição temporária de direitos; e limitação de fim de semana), bem como a
aplicação, em alguns casos, da suspensão do processo, nos termos do artigo 89 da
Lei nº 9.099/95, e, naqueles em que porventura for esse patamar ultrapassado,
haverá a necessidade de cumprimento de pena de privação da liberdade em regime
aberto, semi-aberto ou fechado.
Diante disso, indaga-se se, em vista da natureza dos delitos caracterizados
como típicos da criminalidade econômica – e reprise-se: em particular nos casos
de crimes contra o Sistema Financeiro –, se estariam atendendo aos fins da pena,
seja com a aplicação das mencionadas medidas substitutivas, seja com o eventual
encarceramento do autor do fato, ou se, ao contrário, se deveriam buscar outras
formas de resposta penal a tais condutas perpetradas.
No ponto, consigne-se que é forçoso concluir, a partir das idéias de DIAS,
que existe uma medida ótima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas
comunitárias que a pena se deve propor alcançar, acima do que não pode ela ser
elevada sem violação do princípio da necessidade, reconhecendo-se ainda que,
abaixo deste ponto ideal, há outros em que a tutela ainda é efetiva e consistente
até atingir um patamar mínimo, e a sua cominação e fixação em montante a tanto
inferior coloca em xeque a função de tutela de bens jurídicos pelo Direito Penal,
318 Ibid., p. 447.
105
esvaziando-o de sentido e conteúdo material.319 Em última análise, a questão das
penas a serem aplicadas a esses casos está em se realizar verdadeiro equilíbrio
entre as chamadas ‘proibição de excesso’ e ‘proibição de insuficiência’,
reconhecendo-se a existência de verdadeira imposição constitucional de proteção
penal adequada, que não se mostre, pois, desproporcional, seja pela afetação por
demais desarrazoada dos direitos fundamentais objeto de privação como resposta
criminal, seja pela indiferença das penas cominadas e impostas, quando fixadas
abaixo dos níveis mínimos de proteção necessários em vista da lesão ou perigo de
lesão a que se sujeitou com a conduta o bem jurídico tutelado. Em verdade, trata-
se de corretamente aplicar o princípio da proporcionalidade, em sua dupla função:
positiva – enquanto dever de ação estatal na medida adequada para efetivação dos
direitos fundamentais – e negativa – enquanto dever de abstenção e limitação do
Estado também frente aos direitos fundamentais.320
Especificamente, trata-se de perquirir, enfim, onde estará a tal ‘medida
ótima’ das penas dos delitos contra o Sistema Financeiro Nacional.
A primeira questão que avulta diz com a imediata necessidade de
substituição do paradigma da pena privativa de liberdade como resposta estatal
principal nesses delitos, juntamente com a multa, em que somente se reserva a
possibilidade de substituição de sua execução por algumas das restritivas de
direito dispostas no artigo 43 do Código Penal quando a pena aplicada não supera
os quatro anos de reclusão, seja porque, ante a atual configuração destas,
dependendo da culpabilidade do agente e do dano experimentado ao bem jurídico
com a ação, isso pode ofender o princípio da proibição de insuficiência,321 seja
porque, nas hipóteses em que a pena concretamente considerada ultrapassar este
patamar ou não concorrerem todos os requisitos contidos no artigo 44 do Código
Penal,322 a privação de liberdade, a depender do caso, pode ser desproporcional,
319 DIAS, J. de F., Ob. cit., p. 131-132. 320 SARLET, Ingo. Constituição e Proporcionalidade: o Direito Penal e os direitos fundamentais entre a proibição de excesso e de insuficiência. Revista de Estudos Criminais, n. 12, p. 107. 321 STRECK, Lênio Luiz. As (novas) penas alternativas à luz da principiologia do Estado Democrático de Direito e do Controle de Constitucionalidade, p. 127-131 322 Art. 44. As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade, quando: I - aplicada pena privativa de liberdade não superior a quatro anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo; II - o réu não for reincidente em crime doloso; III - a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias indicarem que essa substituição seja suficiente § 1o (VETADO)
106
desnecessária e, ainda, desatender aos postulados de prevenção especial e de
prevenção geral positiva e negativa, tendo em consideração a natureza do
delito.323
Em verdade, efetivamente deve-se considerar que, em muitos casos, a pouca
expressividade das penas restritivas de direitos previstas em nosso Código Penal
atual contrasta com a gravidade de muitos delitos praticados contra o Sistema
Financeiro Nacional, que não raro colocam em sério e elevadíssimo risco o
sistema ou parte dele, em evidente prejuízo a uma infinidade de pessoas, a uma
coletividade inteira, que acaba por determinar a conclusão de que ‘a prática
criminosa compensa’ em uma relação custo-benefício levada a cabo pelo autor do
fato e pelo sentimento dos demais integrantes da sociedade.324
Em tais casos, não raramente, o condenado, a par de não ressarcir
objetivamente os prejuízos econômicos que eventualmente tenha causado, segue
exercendo suas funções tranqüilamente e, muitas vezes, transferindo o ‘know-
how’ de seu ‘modus operandi’ para terceiros no bojo do empreendimento, sendo
mesmo guindado a posições mais relevantes na instituição, desde que seu agir,
independentemente da conformação jurídica que tenha adotado, tenha sido
lucrativo no âmbito da empresa. Afinal, muitas vezes, a lógica de mercado não
segue a ética e os valores contemplados pelo Direito na proteção da Ordem
Econômica.325
§ 2o Na condenação igual ou inferior a um ano, a substituição pode ser feita por multa ou por uma pena restritiva de direitos; se superior a um ano, a pena privativa de liberdade pode ser substituída por uma pena restritiva de direitos e multa ou por duas restritivas de direitos § 3o Se o condenado for reincidente, o juiz poderá aplicar a substituição, desde que, em face de condenação anterior, a medida seja socialmente recomendável e a reincidência não se tenha operado em virtude da prática do mesmo crime. § 4o A pena restritiva de direitos converte-se em privativa de liberdade quando ocorrer o descumprimento injustificado da restrição imposta. No cálculo da pena privativa de liberdade a executar será deduzido o tempo cumprido da pena restritiva de direitos, respeitado o saldo mínimo de trinta dias de detenção ou reclusão. § 5o Sobrevindo condenação a pena privativa de liberdade, por outro crime, o juiz da execução penal decidirá sobre a conversão, podendo deixar de aplicá-la se for possível ao condenado cumprir a pena substitutiva anterior. 323 FERRAJOLI, L., Ob. cit., p. 418-420, em que observa a necessidade de superação da pena privativa de liberdade para casos que envolvam fraudes e crimes assemelhados. 324 O Brasil, por meio do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional do Ministério da Justiça, vem tentando repatriar cerca de quatrocentos milhões de dólares norte-americanos que foram remetidos ao exterior ilegalmente e, até o momento, logrou o retorno ao país de somente trinta e sete milhões de dólares (cerca de 8,4 por cento do total). CHRISTOFOLETTI, Lilian. País repatria menos de 10% do dinheiro da corrupção. Folha de São Paulo, p. A4. 325 PINHEIRO Jr., Gilberto José. Crimes Econômicos – As Limitações do Direito Penal, p. 85.
107
Por outro lado, a privação da liberdade, nas hipóteses em que concretamente
aplicada, ressalvadas hipóteses bastante específicas, para os crimes mais graves,
sempre medida pela culpabilidade do agente, particularmente espelhada no dano
ou na exposição a perigo concreto do bem jurídico tutelado, mostra-se em geral
demasiada, porquanto se está a tratar quase sempre de criminoso que não
apresenta transtorno grave de socialização e que, portanto, não demonstra
necessidade de segregação social total,326 que se deve reservar, conforme o
entendimento doutrinário dominante na atualidade, aos crimes gravíssimos e que
impõem, para que a pena atinja suas funções, o recolhimento celular do
condenado.327
Daí, pois, a indispensabilidade da adoção de outros paradigmas para as
penas cominadas aos crimes contra o Sistema Financeiro, mais ajustadas às
funções da reprimenda penal, acordes com a pós-modernidade e com essa espécie
de delito, que aflige o Estado Democrático e Social de Direito em suas bases mais
relevantemente. Pretender a adoção da vetusta pena de prisão como marco legal
principal para as respostas a essas condutas criminosas328 significa a negação da
evolução do Direito Penal e a sua deslegitimação como ramo do Direito, tanto
quanto o seria se este excluísse de seu âmbito de incidência esta
neocriminalização329 evidenciada no Direito Penal Econômico, renunciando a ela
indevidamente nesta quadra da História.
Assim, propugna-se a adoção, ‘de lege ferenda’, ao lado da pena privativa
de liberdade – a ser cominada e aplicada em casos específicos de especial
gravidade, sendo cabível, evidentemente, nos delitos que ofendem o Sistema
Financeiro de forma especialmente relevante – e da multa como penas principais:
326 No ponto, cabe referir a acertada crítica de CÂMARA ao demonstrar a equivocada opção do legislador pátrio ao prever medidas subcautelares de privação da liberdade aplicáveis aos delitos contra o Sistema Financeiro Nacional como forma de efetividade da jurisdição criminal econômica, evidenciadas no art. 1º, ‘o’, da Lei nº 7.960/89 (prisão temporária) e no art. 30 da Lei nº 7.492/86 (prisão preventiva calcada na ‘magnitude da lesão’). Para além da inconstitucionalidade explícita das medidas frente às garantias constitucionais, o autor esclarece com absoluta propriedade a violação clara ao princípio da proporcionalidade, à vista das características da maior parte dos delitos econômicos e dos parâmetros fixados para as penas mínimas e máximas cominadas nos tipos delitivos previstos na Lei dos Crimes contras o Sistema Financeiro Nacional. CÂMARA, Luiz Antônio. Reflexões acerca das medidas cautelares pessoais nos crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, in GEVAERD, Jair e TONIN, Marta Marília (coord.). Direito Empresarial e Cidadania: questões contemporâneas, p. 231-248. 327 FERRAJOLI, L., Ob. cit., p. 419-420. 328 Assim, a nosso sentir, de forma equivocada: FELDENS, L., Ob. cit., p. 180-190 329 A expressão se refere justamente aos ‘crimes de colarinho branco’ abarcados pelo Direito Penal mais recentemente. DIAS, J. de F. e ANDRADE, M. da C. Ob. cit., p. 434-441
108
a semiliberdade, evidenciada na restrição do exercício do seu direito de ir e vir
sem implicar o recolhimento a estabelecimento prisional, acarretando a limitação
de se afastar da sede da comarca sem prévia autorização judicial,330
comparecimento pessoal e obrigatório a Juízo periodicamente para comprovar
suas ocupações,331 acompanhamento de suas atividades;332 a perda de bens e
valores, ainda que estejam, em certas condições, já na propriedade de terceiros,333
objetivando não só a reparação integral dos danos econômicos acaso causados,334
acrescida de correção monetária e de juros, mas, também, impedir que o
criminoso usufrua do patrimônio que tenha amealhado ao longo do tempo total ou
parcialmente também como resultado da forma de condução dos negócios;335 336e
330 Medidas análogas, que serviriam como um interessante paradigma para a adoção desta modalidade de pena, já vêm sendo admitidas reiteradamente pela jurisprudência brasileira, via das quais se impõe a proibição de o réu, no curso do processo, viajar para o exterior, ora as fixando como substitutivas de decisões judiciais que decretaram prisão preventiva, ora reafirmando o acerto de decisões de caráter cautelar que impuseram uma tal restrição no direito de ir e vir (assim: TRF 4ª R., HC 2004.04.01.036199-0/RS, 8ª Turma, Rel. Élcio Pinheiro de Castro, DJU 22/09/2004; TRF 4ª R., HC 2005.04.01.023573-3/PR, 7ª Turma, Rel. Maria de Fátima Labarrere, DJU 17/08/2005). No mesmo sentido e para os mesmos fins, há diversos precedentes que determinam o depósito de passaporte em Juízo como medida acautelatória necessária e suficiente, ao invés da decretação da prisão preventiva (assim: STJ, HC 56.164-SP, Rel. Min. Gilson Dipp, decisão monocrática proferida no ‘caso Maluf’, DJU 07/04/2006; TRF 4ª R., HC 2004.04.01.017015-1/PR, 7ª Turma, Rel. José Luiz Germano da Silva, DJU 09/06/2004; : TRF 4ª R., HC 2003.04.01.049119-4/PR, 7ª Turma, Rel. Tadaaqui Hirose, DJU 26/11/2003). 331 Semelhante restrição já se encontra positivada em nosso ordenamento jurídico por meio do art. 89, IV, da Lei nº 9.099/95 em que, como condição para a suspensão condicional do processo, impõe-se o comparecimento mensal em Juízo, pessoal e obrigatório, do denunciado para justificar suas atividades. Ressalte-se que os incisos II e III do mesmo artigo de lei determinam restrições outras que também caracterizam o que se entende como regime de semiliberdade ora proposto como pena principal, a saber, proibição de freqüentar determinados lugares e proibição de se ausentar da comarca sem autorização judicial. 332 FERRAJOLI, L., Ob. cit., p. 420. 333 Essa tese é acolhida, com relação à medida de seqüestro de bens para ressarcimento de danos causados à Fazenda Pública em razão de conduta criminosa, conforme estipula o art. 4º do Decreto-lei nº 3.240/41. 334 VALLEJO, J. M., Ob. cit., p. 46-49; e ROXIN, C., Política Criminal y..., p. 29-33. 335 BARBOSA, Marcelo Fortes. O autor, após discorrer longamente sobre a importância desta pena para os ‘crimes de colarinho branco’, sustentando ser ela a mais adequada para estas práticas, estipula – com o que concordamos plenamente – como condições para o confisco: o locupletamento da pessoa; o empobrecimento de outra; o nexo de causalidade entre o enriquecimento e o empobrecimento; a inexistência de uma causa jurídica entre os dois eventos. Garantias Constitucionais de Direito Penal e de Processo penal na Constituição de 1988, p. 69-70. 336 Evidenciando a linha evolutiva do Direito Penal estrangeiro e nacional quanto à imposição da perda de bens como conseqüência do crime, pode-se observar o contido no art. 31 da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção; no art. 5º da Convenção contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas (Decreto nº 154/1991); no art. 3º da Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais (Decreto nº 3.678/2000); e no art. 12 da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Decreto nº 5.015/04). Ainda, são inúmeros os precedentes no Brasil que admitem, atualmente, a determinação de arresto dos bens e direitos dos acusados da prática de delitos contra o Sistema Financeiro Nacional, independentemente de sua origem lícita
109
a vedação para exercer cargo de administração e gerência de instituição financeira
por um certo período de tempo.337
Em verdade, vem-se observando que, gradativamente, ao longo dos últimos
anos, já no Direito brasileiro, se incrementam as medidas penais desta natureza,
para além da sua mera condição de substitutiva da privação da liberdade,
particularmente relacionadas à perda de bens e valores, como está a ocorrer com a
imposição desta como efeito secundário da sentença condenatória (artigos 46 e 48
da Lei nº 10.409/02 – crimes de tráfico de entorpecentes – e artigo 7º da Lei nº
9.613/98 – crimes de lavagem de ativos), independentemente mesmo da
comprovação da origem lícita dos bens, cabendo posteriormente ao interessado
postular no Juízo Criminal a sua restituição quando entender indevida a
decretação de perda, o que bem evidencia o movimento atual do Direito Penal em
direção ao exercício de suas funções mais ajustadas ao momento histórico que se
vive.
A questão está, agora, em se dar mais um passo rumo à adoção dessas
espécies de penas chamadas de alternativas à condição de apenamento principal,
tal como ocorre com a privação da liberdade e com a multa, o que seria de
especial relevância no caso dos crimes contra o Sistema Financeiro, como se vê.
Ou seja, seria correto que se cominassem, já no tipo fundamental, atendendo
sempre ao bem jurídico tutelado e a relevância de sua lesão ou exposição a perigo,
as penas de perda de bens e valores, de semiliberdade, de vedação imediata do
exercício de função de gerência e administração de instituição financeira por um
certo limite de tempo (advoga-se como prazos máximos os atuais limites
respectivos das penas de privação de liberdade previstos em cada tipo),
isoladamente, ou em combinação com outras destas, com a de multa ou até com a
ou ilícita, para o fim de recomposição de danos, multas e de outras obrigações devidas à Fazenda Pública. Assim: TRF 4ª R., Acr. 2003.70.00.045594-8/PR, 7ª Turma, Rel. Maria de Fátima Labarrere, DJU 21/06/2006; ACr. 2004.70.00.015248-8/PR, 7ª Turma, Rel. Néfi Cordeiro, DJU 14/06/2006; ACr. 2003.70.00.041410-7/PR, 8ª Turma, Rel. Élcio Pinheiro de Castro, DJU 14/06/2006;ACr. 2001.04.01.057892-8/PR. No mesmo sentido, há precedentes determinando a perda de bens e valores em crimes desta natureza, como efeito secundário da sentença (TRF 4ª R., ACr. 94.10.001277/RS, 7ª Turma, Rel. Vladimir Passos de Freitas, DJU 19/06/2002) e como pena substitutiva (TRF 4ª R., 1ª Turma, ACr. 94.10.001277-2/RS Rel. Amir Sarti, DJU 27/01/1999). 337 O art. 44, IV, da Lei nº 4.595/64 já a prevê como penalidade administrativa, a se aplicar quando verificada a prática de infrações graves (art. 44, §§ 4º e 5º, da mesma Lei) e o Projeto de Lei nº 3473/2000, encaminhado pelo Poder Executivo à Câmara dos Deputados em 18/8/2000 e ainda em tramitação nesta Casa, prevê a reforma da Parte Geral do Código Penal e estabelece esta como uma das penas de restrição de direitos, na modalidade de interdição em seu artigo 47, V, mantendo, contudo, seu caráter substitutivo de pena de privação da liberdade.
110
de privação de liberdade, cabendo ao juiz, no caso concreto, atendendo aos fins da
pena, eleger a pena a ser aplicada, dosando-a em seguida, sempre justificadamente
(artigo 93, IX, da Constituição Federal).338
No caso do artigo 17 da Lei nº 7.492/86 consideramos que a cominação que
melhor atenderia aos ditames da proporcionalidade seria a de vedação imediata de
exercício de função de administração e gerência pelo mesmo prazo constante no
atual tipo penal ou multa – que seria aplicável principalmente nos casos em que o
co-autor ou partícipe não ostentasse a condição prevista no art. 25 da Lei nº
7.492/86 –, acrescendo-se em um novo parágrafo que, se houvesse prejuízo
efetivo à instituição financeira em decorrência da realização das operações,
poderia o juiz aumentar a pena de um terço a um meio, impondo, ainda, a perda de
bens e valores do condenado até o montante do dano causado, acrescido de
correção monetária e juros ou a semiliberdade.
Por fim, não se trata de se entender que a chamada ‘criminalidade do
colarinho branco’ mereça tratamento privilegiado em vista das demais práticas
delitivas. Ao contrário, trata-se de, por um lado, ajustar as penas aplicáveis
justamente à natureza desses crimes e, por outro, adotar um discurso teórico de
redução da aplicação da pena privativa de liberdade como resposta criminal
principal para expressiva parcela dos crimes, nestes incluídos também a maioria
338 Em sentido radicalmente oposto – com o que, aliás, não se concorda, pelos argumentos já expostos nesta dissertação, inclusive por se entender que os princípios e fins do Direito Penal aplicáveis são os mesmos tanto para a dita ‘criminalidade tradicional’ quanto para a chamada ‘criminalidade moderna’ – está a posição de José de Faria COSTA, para quem “as penas, no campo do direito penal econômico, vivem debaixo da sigla dos três sh: sharp, short, schock. Ora, basta a enunciação de que nesse campo as penas devem ser acutilantes, curtas e chocantes para, de imediato, se perceber como se está longe de qualquer fim que classicamente (prevenção geral positiva, prevenção geral negativa, prevenção especial; ressocialização; retribuição; neo-retribuição) se possa atribuir às penas. E pergunta-se: justifica-se um tal afastamento do sentido ‘normal’ das penas? A resposta tem surgido seca, afirmativa e com argumentação fundamentada. Na verdade, aqui, está-se a lidar com agentes de infrações que não necessitam de qualquer efeito ressocializador, pois, se se quisesse ser desconstrutivista, poder-se-ia até dizer que tais agentes "sofrem" é de socialização a mais. Para além disso, nem as mais elevadas sanções pecuniárias tem qualquer efeito dessuasor, não só porque pouco desconforto provocam quando se está perante fortunas astronômicas como, em certas circunstâncias, podem ter só a conseqüência de se verem diluídas na opacidade da sua repercussão nos preços dos produtos da empresa ou empresas pertencentes ou dominadas pelo agente da infração. Daí que a pena curta de prisão, com efeito, com efeito estigmatizante, seja a que proporciona o efeito dessuasor e complexivo a que toda a pena criminal aspira. A idéia forte de que, de certa maneira, a pena de prisão é, no direito penal econômico, central pode ainda ser detectada ou percebida na imposição que resulta no artigo 5º do mencionado DL 28/84, de 20 de janeiro (legislação portuguesa). Com efeito, essa nova excepção vem, seguramente, mostrar que a intenção do legislador é a de tornar claro que a pena de prisão, mesmo que a pena curta de prisão, é o paradigma punitivo quando se está a trabalhar com o direito penal econômico”. COSTA, José de Faria. Direito Penal Econômico, Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal, n. 29, p. 67-68.
111
daqueles que compõem o chamado Direito Penal Clássico, como os de índole
patrimonial, de astúcia (e.g. estelionato) e de falso por exemplo, mantendo-a
apenas para aqueles casos revestidos de especial gravidade, em que o
encarceramento se mostre proporcional e necessário – o que, como já se disse,
pode mesmo ocorrer no âmbito também dos delitos econômicos, a depender da
ofensa ao bem jurídico verificada, em tese, quando da cominação da pena e, em
concreto, quando de sua aplicação, como pode se admitir, por exemplo, nos casos
de grandes quebras de instituições financeiras em prejuízo efetivo de todo o
sistema financeiro e do patrimônio dos investidores, de remessas ilegais de
valores estratosféricos, normalmente de origem espúria, para o exterior, dentre
outros – sempre observada a intensidade da lesão ou exposição do bem jurídico
tutelado e a culpabilidade do agente, o que ocorre muito comumente nos crimes
que atingem a vida, a liberdade sexual, a integridade física em suas formas mais
abjetas, como por meio de tortura e, por qualquer meio, contra crianças e idosos,
dentre outros.
Em conclusão, irretocáveis as palavras de FERRAJOLI que, após afirmar
que as penas pecuniárias e demais restritivas de direitos são as mais adequadas a
figurarem como conseqüência jurídico-penal da prática de delitos contra o
patrimônio, de fraudes, falsidades, corrupção e de circulação viária, dentre outros
– e aqui se propugna a inserção da maioria dos crimes contra o Sistema Financeiro
Nacional –, postulando sua elevação à categoria de penas principais, e não
meramente substitutivas, arremata dizendo:
Os tipos de penas privativas que podem se conceber como alternativa à privação da liberdade são numerosas e variadas, podendo ter por objeto singulares faculdades incluídas na liberdade pessoal ou direitos diversos e menos extensos.(...)Enfim, as penas privativas de direitos, que deverão ser previstas como penas principais para determinados delitos próprios, as quais privam ou restringem certas formas de capacidade de que o réu tenha abusado em concreto. Todas estas penas deveriam estar previstas pela lei segundo uma escala que permitisse sua graduação proporcional e sua ponderação eqüitativa conforme a gravidade dos delitos. A privação de liberdade resultaria como a sanção mais severa, reservada aos casos mais graves.339
339 FERRAJOLI, L. Ob. cit., p. 420.
112
4.3 A NEOCRIMINALIZAÇÃO, A INTERVENÇÃO PENAL ECONÔMICA E A (RE)LEGITIMAÇÃO SOCIAL DO DIREITO PENAL NA PÓS-MODERNIDADE
Partindo-se da premissa de que Claus ROXIN está correto ao afirmar que,
ao menos pelos próximos cem anos, o Direito Penal continuará a existir, uma vez
que a análise retrospectiva dos últimos três mil anos da História da Humanidade
nos conduz à conclusão de que “não é possível renunciar à proteção do indivíduo
e da sociedade, e que esta proteção, caso necessário, deve ser inclusive imposta
pela força”340 e de que “nenhuma sociedade de variedade alguma pôde renunciar
alguma vez ao Direito Penal”,341 impõe-se apreciar sobre a sua possível
conformação, em vista sobretudo do seu âmbito de incidência e da ordenação de
bens jurídicos tutelados e penas aplicáveis, que revelam sua verdadeira função na
atualidade, e a sua legitimidade no atual contexto histórico.
Um primeiro ponto que merece ser abordado diz com a necessidade de
reconhecimento de que a concepção do Direito Penal e de sua função está
intimamente relacionada com o modelo de Estado que se adota em um
determinado contexto histórico e, na atualidade, a imagem do Estado Democrático
e Social de Direito é de onde derivam as funções do Direito Penal.342 Aliem-se a
isso as características específicas da pós-industrialização e da conseqüente criação
dos grandes riscos não-mensuráveis a curto prazo, cujos danos decorrentes de seu
injustificado incremento sequer são passíveis de identificação e percepção
imediata.343 Com isso, tem-se um boa base jurídico-política a partir da qual se
podem investigar os contornos que o Direito Penal deve possuir na atualidade.
No ponto, conquanto já se tenha estudado ao longo do presente trabalho a
questão envolvendo tanto um aspecto quanto outro,344 cabe afirmar,
referentemente às características do Direito Penal em um Estado Democrático e
Social de Direito, uma importante distinção que se deve fazer, conforme
Francesco PALAZZO:
340 ROXIN, C., Dogmática Penal y..., p. 442. 341 Ibid., p. 442. 342 MIR PUIG, S., Ob. Cit., p. 144-145. 343 SOUZA, Paulo Vinícius Sporleder de. Bem Jurídico-Penal e Engenharia Genética Humana, p. 112-126.
113
(...) é a existente entre o princípio do Estado de direito (Rechtsstaatsprinzip) e o princípio do Estado social (Sozialstaatsprinzip). A influência desses princípios generalíssimos sobre o direito penal se, em certo sentido, se pode dizer mediata, enquanto tendem a incidir sobre a fisionomia do sistema, revelam os princípios de direito penal constitucional ou os valores constitucionais influentes em matéria penal, os quais, com efeito, são os primeiros a se ressentirem de uma acepção, ora em sentido Rechtsstaatsprinzip, ora em sentido Sozialstaatsprinzip. Ademais, deve-se recordar que não existe - como poderia parecer à primeira vista - uma coincidência perfeita entre o superior Rechtsstaatsprinzip e os princípios de direito penal constitucional, de um lado, e o Sozialstaatsprinzip e os valores constitucionais influentes, de outro. Existe, tão-só, uma prevalência de influência, respectivamente, do primeiro sobre os princípios de direito penal constitucional, e do segundo sobre os demais. E, inequivocamente, faz-se cristalina a prevalente matriz liberal-garantidora de princípios como os da legalidade ou da culpabilidade, tanto quanto é evidente que o Sozialstaatsprinzip faz sentir os seus efeitos sobretudo quanto ao conteúdo do direito penal.345
Em outras palavras, o aspecto social do Estado deve estar contido no
conteúdo do Direito Penal, ou seja, em quais condutas se devem criminalizar,
considerando a eleição dos bens jurídicos fundamentais a partir de uma leitura da
Constituição Federal. Por seu turno, a sua feição ‘de Direito’ diz com a forma da
incriminação e os limites a serem impostos pelo ‘jus puniendi’.
Nesse ponto, então, observada a questão pelo prisma da conformação do
Direito Penal ao seu momento histórico é que avultam as palavras de Lênio
STRECK ao asseverar que:
As baterias do Estado Democrático de Direito devem ser direcionadas preferentemente para o combate dos crimes que impedem a realização dos objetivos constitucionais do Estado. Ou seja, no Estado Democrático de Direito – instituído no art. 1º da CF/88 – devem ser combatidos os crimes que fomentam a injustiça social, o que significa afirmar que o direito penal deve ser reforçado naquilo que diz respeito aos crimes que promovem e/ou sustentam as desigualdades sociais.(...)Em outras palavras, o direito, inclusive o penal, assume novos contornos no novo modelo estabelecido pelo Estado Democrático e Social de Direito. Com efeito, enquanto no Estado Liberal o direito tinha uma função meramente ordenadora (dicotomia proibido/permitido), e no Estado Social sua função é reguladora/promovedora, no Estado Democrático (e Social) de Direito a função do direito tem um caráter transformador (o Estado Democrático de Direito estabelece uma espécie de plus normativo em relação aos estágios anteriores).346
Evidentemente, ao lado desta nova geração de bens jurídicos passíveis de
proteção penal, também seguem sendo relevantes e de criminalização necessária
aqueles de titulação individual clássica (vida, patrimônio, integridade física,
344 Ver a propósito a Seção 4 do Capítulo 1 acima. 345 PALAZZO, Francesco C., Valores Constitucionais e Direito Penal, p. 25.
114
liberdade sexual, honra, dentre outros), devendo-se, como se viu anteriormente,
cominarem penas ajustadas às características de cada um, tendo em conta as
finalidades daquelas.
Por outro lado, também legitima e justifica a intervenção penal na pós-
modernidade a inarredável conclusão da necessidade de evitação de riscos que
podem comprometer, em um horizonte mais ou menos imediato, a realização
humana com todas as suas nuances. Uma tal visão do Direito Penal surgiu a partir
dos ensinamentos de BECK em sua obra Risikogesellschaft, publicada em 1986,
em que adverte para que, “na modernidade avançada, a produção social de riqueza
vem acompanhada sistematicamente pela produção social de riscos”,
reconhecendo que “a autêntica pujança social do argumento do risco reside na
projeção de ameaças para o futuro”,347 assumindo o Estado uma verdadeira feição
política de prevenção contra esses riscos, inclusive evidenciada na criminalização
de condutas. Daí, pois, também o surgimento do chamado ‘Direito Penal do
Risco’, como elemento do Direito Penal Moderno, que pode ser bem visualizado
nas hipóteses de criminalização ambiental, de condutas ofensivas à genética
humana e de diversos tipos da criminalidade econômica, a partir da consideração
de que certas condutas que trazem consigo demasiado e injustificado incremento
de riscos ao bem jurídico fundamental tutelado, ainda que isoladamente incapazes
de efetivamente danificá-lo significativamente, devem ser criminalizadas, o que se
realiza, por essas razões, usualmente, mediante a utilização da técnica de tipos de
perigo abstrato ou de tipos penais em branco.
É, portanto, em vista dessas duas razões, atentando-se ao modelo de Estado
e de sociedade em que se vive, conforme demonstrado, é que se haverão de
examinar os influxos de neocriminalização envolvendo o chamado Direito Penal
Econômico – no bojo do que, como se viu largamente, se encontram os Crimes
contra o Sistema Financeiro Nacional. Afinal, como sustentam DIAS e COSTA
ANDRADE:
A história do direito penal é também a história de constantes e sucessivos movimentos de neocriminalização. Mesmo um período como o do racionalismo-iluminismo, tão celebrado pelo seu empenho descriminalizador, não deixou de conhecer o reflexo de um movimento de neocriminalização, alargando significativamente a área global do criminalmente relevante. Tal sucedeu, por
346 STRECK, L. L., As (novas) penas alternativas..., p. 124 e 126. 347 BECK, U., Ob. cit., p. 25 e 39.
115
exemplo, no domínio das infracções contra o patrimônio e em homenagem, segundo a interpretação de FOUCAULT, aos interesses das novas classes possidentes em vias de afirmação. Já o período seguinte - recorde-se ainda a título exemplificativo -, sob a influência cultural do romantismo e os ensinamentos da escola histórica do direito, se caracterizaria por voltar a elevar os valores religiosos, morais, etc., à categoria de bens jurídico-penais, reconvertendo as suas violações em autênticos crimes. Isto em manifesta reação contra o direito penal do iluminismo que, sob a influência da doutrina de Feuerbach, remetera tais infrações, quando muito, para o domínio do mero ilícito de polícia.348
Adiante, concluem dizendo que “a verdade é que as transformações do
mundo em que vivemos (transformações tecnológicas, econômico-sociais,
políticas e culturais) vêm reclamando um ajustamento, vale dizer, um alargamento
do espaço coberto por este específico sistema de controle social”,349 abarcando
legitimamente, como seu viu, os delitos contra a Ordem Econômica.
Enfim, pode-se dizer que, ao lado do Direito Penal dito tradicional surge,
com força política e jurídica expressiva, o chamado Direito Penal Moderno, a
abranger outras ordens de bens jurídicos, de titularidade predominantemente
supra-individual, sem que com isso se olvidem as garantias penais e os princípios
que norteiam o Estado de Direito. Nesse sentido, vale o pertinente clamor de
William Terra de OLIVEIRA:
Que o combate às novas formas de criminalidade (especialmente a especializada e a econômica) tenha fundamento num sólido aparato dogmático, de caráter hodierno, que além de encontrar as respostas tão pungentemente reclamadas pela sociedade moderna, não contribua à flexibilização de garantias criminais, verdadeiras bases de qualquer sistema jurídico-penal.350
Essa, pois, a feição do Direito Penal no Estado Democrático de Direito, em
que se reconhece, na lição de Ingo SARLET, que:
O princípio da proporcionalidade não pode deixar de ser compreendido – para além de sua função como critério de aferição da legitimidade constitucional de medidas que restringem direitos fundamentais – na sua dupla dimensão, como proibição de excesso e de insuficiência, já que ambas as facetas guardam conexão direta com as noções de necessidade e equilíbrio. A própria sobrevivência do garantismo (e com ele, do Estado Democrático – e proporcional – de Direito) está em boa parte atrelada ao adequado manejo da noção de proporcionalidade também na esfera jurídico-penal e na capacidade de dar respostas adequadas (e, portanto, sempre afinadas com os princípios superiores da ordem constitucional) aos avanços de um
348 DIAS, J de F.; ANDRADE, M. da C., Ob. Cit., p. 434-435. 349 Ibid., p. 436. 350 OLIVEIRA, W. T. de, Ob. Cit., p. 239.
116
fundamentalismo penal desagregador, do qual apenas podemos esperar a instauração do reinado da intolerância.351
Por isso que não pode prevalecer o entendimento propugnado pela Escola de
Frankfurt, que, ao postular pela recondução do Direito Penal aos delitos de
resultado, exclusivamente referentes aos bens titulados por individualidades, está,
conforme bem assevera Bernd SCHÜNEMANN, “advogando por uma negativa à
modernização do Direito Penal, negativa que necessariamente deve fracassar
quanto à finalidade deste de proteger bens jurídicos, ao ignorar as condições de
atuação da sociedade moderna”.352
Enfim, no Direito Penal da pós-modernidade, continua pleno de importância
o bem jurídico para a seleção das condutas puníveis, com a evidente interferência
da conformação social da coletividade e conseqüente delineamento constitucional
do Estado, com a observância de todos os princípios garantistas do Estado Liberal,
agora aliados àqueles do Estado Democrático. Ao lado dos crimes protetivos de
bens jurídicos fundamentais e social incumbe a tutela de novos bens jurídicos, que
são decorrência do acolhimento de imperativos éticos de solidariedade, sendo
parte da garantia das prestações públicas necessárias a uma existência em
condições de dignidade, elevando muitos dos interesses relacionados com o
intervencionismo dirigista à categoria de bens jurídicos fundamentais, donde
deriva a neocriminalização, abrangendo ilícitos em áreas como a saúde, a
segurança social e a economia.353
Acorde com este ponto de vista, Alessandro BARATTA sustenta ser
necessário recorrer:
(...) à ampliação e ao reforço da tutela penal, em áreas de interesse essencial para a vida dos indivíduos e da comunidade: a saúde, a segurança no trabalho, a integridade ecológica etc. Trata-se de dirigir os mecanismos da reação institucional para o confronto da criminalidade econômica, dos grandes desvios criminais dos órgãos e do corpo do Estado, da grande criminalidade organizada. Trata-se, ao mesmo tempo, de assegurar uma maior representação processual em favor dos interesses coletivos.354
351 SARLET, I.W., Constituição e Proporcionalidade..., p. 120. 352 SCHÜNEMANN, B., Ob. Cit., p. 33. 353 DIAS, J. de F.; ANDRADE, M. da, Ob. Cit., p. 437. 354 BARATTA, A., Ob. Cit., p. 202.
117
Na correta, balanceada e proporcional abordagem penal – tanto na
criminalização, quanto na cominação e aplicação das penas e na persecução
criminal – na proteção de bens jurídicos individuais e na proteção de bens
jurídicos coletivos reside a (re)legitimação do Direito Penal, a partir do
redimensionamento das penas quantitativa (veja-se que, por exemplo, os delitos
contra o patrimônio se encontram sobrevalorados em nosso Código Penal) e
qualitativamente, podendo-se concluir que o aprisionamento de qualquer pessoa
se deve restringir ao mínimo indispensável, circunscrevendo-se àqueles cuja
convivência social seja de tal maneira prejudicial à coletividade que determine sua
segregação, incrementando-se a restrição do exercício de direitos diversos: a perda
da disponibilidade e uso de bens e valores adquiridos, direta ou indiretamente,
com o produto do delito; a cobrança de pesadas multas que ultrapassem o valor do
proveito obtido com a prática criminosa, dentre outros são possibilidades que se
sugerem, como meio de superação, para a maioria dos crimes do encarceramento
celular.
Também a legitimidade social do Direito Penal está em se redimensionar a
importância dos bens jurídicos supra-individuais na hierarquia dos bens passíveis
de proteção criminal, pois estes atingem fortemente as bases da estrutura social,
em particular o disposto no artigo 3º da Constituição Federal,355 incrementando-se
os estudos acadêmicos e a persecução penal respectiva como forma de
reafirmação dos valores constitucionais e da própria legitimação social deste ramo
do Direito.
O Direito Penal surgiu – e existe – para preservar e incrementar valores
sociais elevados, mediante a imposição de uma grave sanção àqueles que
inobservam a mensagem que subjaz ao tipo penal. Em um dado – e prolongado –
período histórico, aqueles se limitavam aos delitos titulados individualmente e a
sanção consistia na privação da liberdade. Com base nesses postulados o Poder
Público (neste incluído o Judiciário) se aparelhou e os estudiosos do Direito se
prepararam. O momento atual, porém, é outro: aos tradicionais valores sociais a
serem preservados se agregaram outros igualmente – em alguns casos, mais –
355 Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
118
valiosos com relação aos quais – a maioria, incluindo-se boa parte dos
tradicionalmente tutelados – a privação da liberdade não é suficiente e, sequer,
adequada e necessária para que atinja seus fins.
Um tal reconhecimento deve orientar o estudo da Ciência Penal e da
aplicação do Direito Penal. Ou assim se faz, ou nada estará reservado ao Direito
Penal no novo século e, contrariando mesmo as palavras de ROXIN, na abertura
desta última seção, estará ele fadado a ser estudado pelas gerações futuras em
livros de História, em função de sua ineficácia social, como meio de prevenção de
delitos de toda ordem, decorrente de sua crescente deslegitimação perante a
coletividade, em vista da constatação de que não alberga significativa parcela dos
interesses desta no alvorecer do novo século, de vital importância na era pós-
industrial.
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
119
CONCLUSÃO
No Brasil, acorde com a conformação de Estado que adota, o direito ao
desenvolvimento econômico é considerado direito fundamental, evidenciando
uma opção constitucional (artigo 3º da CF/88) por um verdadeiro Estado Social e
Democrático de Direito, em que se entende o desenvolvimento como, além de
simples crescimento econômico, também como elevação do nível cultural e
mudança social. Com base nesses vetores, organiza-se a produção da riqueza e sua
distribuição, por meio da ação interventiva do Estado na Ordem Econômica. Uma
tal conclusão decorre da interpretação dos princípios da Ordem Econômica
constitucional contidos expressamente no artigo 174 da nossa Constituição
Federal, que sucedeu outros de viés assemelhado contidos nas Cartas anteriores.
Dessa matriz constitucional advêm diretamente o Direito Econômico, o
Direito Monetário e a organização do Sistema Financeiro Nacional,
condicionando o político ao jurídico, na medida em que se estipula o dever de
regulação e de adoção de políticas públicas voltadas à preservação e à
concretização dos valores constitucionais que possam levar ao desenvolvimento
da coletividade. Isso vincula a atuação política do legislador e do administrador,
no exercício de suas funções públicas, sendo determinante à criação legislativa
nessas áreas do conhecimento jurídico.
No mesmo contexto de supremacia dos valores constitucionais é que se deve
interpretar o bem jurídico como objeto de tutela penal, verdadeiro instrumento
legitimador e fundante do Direito Penal. Aquele expressa a indispensabilidade
deste ramo do Direito de proteger os valores sociais mais caros e indispensáveis à
coletividade, porquanto impõe, como resposta à violação de seus preceitos, as
sanções mais severas, dentre as quais se destaca a privação da liberdade. Os
elementos passíveis de proteção penal devem ser buscados na sociedade, por meio
da seleção de condutas específicas que a ofendem mais significativamente, e o
meio para se atingir este fim, em um Estado Democrático e Social de Direito, é a
sua correta extração dos valores constitucionais mais relevantes, observados todos
os princípios que devem, nesta mesma sociedade, reger a ação do legislador
criminal, destacando-se o da legalidade, da subsidiariedade, da mínima
intervenção.
120
Seguindo-se essa linha de raciocínio, mostra-se perfeitamente possível e,
mais, desejável e obrigatório mesmo que o Direito Penal, em um Estado que
possui uma tal conformação, em que cabe ao Poder Público promover as
condições para que a liberdade e a igualdade sejam concretizadas, atue sobre a
Ordem Econômica, visto que a posição integrada do homem no universo
econômico, como forma de realização efetiva do direito ao desenvolvimento na
forma como já mencionada, é elevada à condição de direito fundamental,
adquirindo vital importância nesta fase da História. Reconhece-se, assim e por
essas razões, a economia como bem jurídico hábil a determinar a intervenção: o
Direito Penal Econômico.
O Direito Penal Econômico, portanto, nasce da necessidade da intervenção
do Estado no domínio econômico, cujo surgimento, na forma como hoje se
conhece, remonta ao pós Primeira Guerra Mundial, como imperativo das
carências surgidas à época e da necessidade de reordenação dos fatores
econômicos de produção e distribuição da riqueza e, paralelamente, à queda da
Bolsa de Nova Iorque ocorrida em 1929. Na mesma época, cunhou-se a expressão
‘white-collar criminality’ para designar os crimes cometidos por pessoas dos mais
altos estamentos sociais. A fusão desses elementos resultou na disseminação do
Direito Penal Econômico, também conhecido como criminalidade de ‘colarinho
branco’. Mais recentemente, redobra-se a importância desse ramo do Direito
Penal com a conclusão de que a complexidade das relações da vida moderna na
sociedade pós-industrial exige proteções até então inexistentes, impondo-se a
escolha de novas condutas dignas de sanção penal, dentre o que se destacam
aquelas que ocorrem na vida econômica. Este, na atualidade, caracteriza-se por
tutelar bens jurídicos supra-individuais, envolvendo em seu pólo ativo pessoas de
elevado estatuto social, sendo um meio para a realização dos objetivos delineados
pelo chamado Estado Democrático e Social de Direito, e abarca todos os delitos
que atentem contra a segurança e a regularidade da boa execução da política
econômica estatal.
No Brasil, sob a égide da Constituição Federal de 1967 – e também da
Emenda Constitucional nº 1 de 1969 – e da atual Constituição Federal de 1988,
incrementaram-se sobremaneira as normas de Direito Penal Econômico no Brasil,
em face sobretudo dos valores da igualdade e da solidariedade nestas
expressamente abraçados.
121
Assim, pode-se dizer que o Direito Penal Econômico é um ramo do Direito
Penal e, em razão da natureza dos bens jurídicos que protege (direitos
fundamentais de segunda e terceira dimensões), integra o chamado Direito Penal
Administrativo, Secundário ou Extravagante, ao lado do denominado Direito
Penal de Justiça, Clássico ou Primário (direitos fundamentais de primeira
dimensão).
São crimes que integram o Direito Penal Econômico: contra a dignidade,
liberdade, segurança e higiene do trabalho; de abuso do poder econômico e contra
a livre concorrência, a economia popular e as relações de consumo; falimentares;
contra o ordenamento urbano; contra o sistema de tratamento automático de
dados; contra o sistema financeiro nacional; contra o sistema tributário; cambiais e
aduaneiros.
Os crimes contra o Sistema Financeiro Nacional estão previstos na Lei nº
7.492, de 16/06/1986, e decorrem da necessidade da preservação da confiança no
mercado financeiro que os investidores e o próprio Estado devem ter quanto ao
bom funcionamento das instituições que o integram. O Sistema Financeiro
Nacional foi estruturado com o advento da Lei nº 4.595/64, que instituiu o
chamado Sistema Financeiro Nacional, e na sua base estão as instituições
financeiras (bancos comerciais, demais bancos de desenvolvimento, cooperativas
de crédito, sociedades de crédito, financeiras, distribuidoras de títulos e valores
mobiliários, corretoras e sociedades de arrendamento mercantil e de crédito
mobiliário, bolsas de valores e fundos de investimentos) a quem incumbe a
responsabilidade pela intermediação entre os que poupam e os que investem.
Para os fins de incidência da Lei de Crimes do Colarinho Branco o conceito
de instituição financeira é alargado e não coincide totalmente com aquele ofertado
pela Lei nº 4.595/64, considerando-se, de acordo com o art. 1º, da Lei nº 7.492/86,
instituição financeira, para efeitos penais, a pessoa jurídica de direito público ou
privado que tenha como atividade principal ou acessória, cumulativamente ou
não, a captação, intermediação ou aplicação de recursos financeiros de terceiros,
em moeda nacional ou estrangeira, ou a custódia, emissão, distribuição,
negociação, intermediação ou administração de valores mobiliários, sendo ainda
considerada instituição financeira por equiparação a pessoa jurídica que capte ou
administre seguros, câmbio, consórcio, capitalização ou qualquer tipo de
poupança, ou recursos de terceiros, bem como a pessoa natural que exerça
122
qualquer das atividades referidas no artigo de lei em questão, ainda que de
maneira eventual. Isso evidencia a preocupação do legislador em tutelar todas as
atividades que envolvam recursos financeiros de terceiros e a credibilidade do
Sistema Financeiro, como espelho da Ordem Econômica nacional.
O artigo 17 e seu parágrafo único, inciso I, da Lei nº 7.492/86 engloba um
crime pluriofensivo, doloso, próprio, de mera conduta e de perigo presumido,
constituído de tipos anormais, pela presença de elementos normativos,
justificando-se a incriminação das condutas nele descritas pela vedação da
realização das operações descritas entre as pessoas listadas no tipo e a instituição
financeira, tendo em conta a estrutura dos entes que compõem um sistema
financeiro e sua função desempenhada na coletividade, que é a de servir como
intermediário entre terceiros que tenham disponibilidade financeira e aqueles que
dela não dispõem. Assim, contraria absolutamente seus fins econômicos e sociais
a instituição que toma recursos do público e os empresta a si mesma, seus
colaboradores ou coligados, gerenciando, ademais, mau os riscos ínsitos a seu
negócio, pois, mutuando assim os recursos, não atende aos ditames da prudência
que devem reger as relações financeiras, porquanto dificilmente haverá
imparcialidade na análise da concessão de crédito por parte do empreendimento, o
que pode prejudicar todo o funcionamento do sistema.
O tipo se perfaz toda a vez que alguma das pessoas referidas no art. 25 da
Lei tomar empréstimo ou receber adiantamento de alguma das instituições
financeiras elencadas no artigo 1º da Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro
Nacional em que figure como administrador, nos termos da lei, ainda que por
interposta pessoa. Da mesma forma, ocorre quando se defere adiantamento ou
empréstimo a controlador, administrador, membro de conselho estatutário da
instituição financeira, aos respectivos cônjuges, aos ascendentes ou descendentes,
a parentes na linha colateral até o segundo grau, consangüíneos ou afins, ou a
sociedade cujo controle seja por ela exercido, direta ou indiretamente, ou por
qualquer dessas pessoas. A consumação do crime se dá com o efetivo recebimento
do dinheiro ou da vantagem econômica, e não somente com o simples ajuste ou
acordo de vontades, admitindo-se a forma tentada, desimportando a destinação
emprestada à coisa adiantada ou mutuada, bem como se houve efetivo prejuízo à
instituição financeira. A pena prevista para o tipo em referência varia de 02 (dois)
123
a 06 (seis) anos de reclusão, e multa. A competência para processo e julgamento
do crime será, sempre, da Justiça Federal.
São penalmente responsáveis o controlador e os administradores de
instituição financeira, assim considerados os diretores e gerentes, bem como as
pessoas a tanto equiparadas, tais como o interventor, o liquidante ou o síndico
(atualmente denominado administrador judicial), devendo-se concluir, também,
que essas mesmas pessoas mencionadas no artigo 25 da Lei são as que, atuando
em nome da instituição financeira ou na condição de instituição financeira, não
poderão, dentre outras condutas, receber empréstimos ou adiantamentos ou deferi-
los aos indivíduos listados no artigo 17 em questão, sob pena de responsabilização
penal.
Enfim, cabe esclarecer que, embora se trate na espécie de crime de mera
conduta e de perigo presumido, é indispensável a realização da necessária
confrontação do tipo em apreço com o princípio da lesividade, sendo de se
concluir que, no caso, a presunção de lesão ao bem jurídico é relativa, permitindo-
se, pois, a aplicação do princípio da insignificância, havendo, ainda, controvérsia,
justamente por se tratar de presunção juris tantum, quanto à caracterização do
delito quando a instituição financeira efetua a operação servindo-se de recursos
que lhe são próprios, e não pertençam aos investidores e estejam sob sua guarda
somente.
Esgotadas as fases de análise da economia como bem objeto de tutela do
Direito Penal, formando o ramo do Direito Penal Econômico, e do tipo objeto de
estudo, cabe perquirir sobre qual o papel que estará reservado ao Direito Penal
para as próximas gerações, a partir do estudo de sua aptidão para a tutela de novos
bens jurídicos supra-individuais ou se um tal movimento de criminalização
moderna confronta com os postulados de um direito penal liberal e, portanto, não
pode ser aceita, ao menos sem violação de toda a estruturação principiológica do
Direito Penal.
No ponto, confrontam-se duas posições diametralmente opostas. Uma,
entendendo que o Direito Penal deve ser visto como limitação à política criminal,
sendo o bem jurídico um critério negativo que impede a criminalização ilegítima,
assim entendidos os bens jurídicos supra-individuais. Outra, sustentando que, em
um Estado Democrático de Direito, tanto o Estado quanto o Direito adquirem uma
função transformadora, daí advindo a conclusão de que uma série de valores
124
constitucionais coletivos necessitam de proteção penal, devendo o Direito Penal
Moderno ser concebido, além da função de limite negativo, evitando assim a
criminalização injustificada, também a partir de limite positivo, havendo
verdadeiro dever de proteção penal destes bens fundamentais coletivos.
Entende-se como legítima a criminalização econômica, por possuir esteio
constitucional, desde que observe todos os pressupostos do chamado Clássico
Direito Penal, não diferindo seus paradigmas de sustentação. Não há, pois, a
necessidade de criação de um verdadeiro ‘novo paradigma do Direito Penal’ para
se lidar com o Direito, sendo indispensável que se sigam observando os princípios
que norteiam o Direito Penal desde a Ilustração.
Como resposta penal mais adequada a uma tal espécie de criminalidade, e
em particular aos delitos previstos na Lei nº 7.492/86, tendo em consideração as
funções da pena (prevenção geral positiva e negativa, prevenção especial e
retribuição), e diante da proibição de excesso e proibição de proteção deficiente
que também deve nortear o Direito Penal, sustenta-se a imediata necessidade de
substituição do paradigma da pena privativa de liberdade como resposta estatal
principal por outras medidas mais ajustadas às funções da reprimenda penal,
acordes com a pós-modernidade e com essa espécie de delito – também em razão
da perda de fôlego demonstrada pela pena de prisão ao longo do último século
para todas as práticas criminosas – que aflige o Estado Democrático e Social de
Direito em suas bases mais relevantemente.
Assim, propõe-se a adoção, ao lado da pena privativa de liberdade e da
multa como penas principais, a semiliberdade, a perda de bens e valores, e a
vedação para exercer cargo de administração e gerência de instituição financeira
por um certo período de tempo, o que, de alguma forma, já se vem observando no
Direito brasileiro, na condição de penas substitutivas apenas, ou como efeito
secundário da condenação. Postula-se, no caso, entretanto, a adoção dessas
espécies de penas como apenamento principal, prevendo-as, já no tipo
fundamental, atendendo sempre ao bem jurídico tutelado e a relevância de sua
lesão ou exposição a perigo. No caso do artigo 17 da Lei nº 7.492/86, propugna-se
a cominação da vedação imediata de exercício de função de administração e
gerência pelo mesmo prazo constante no atual tipo penal, acrescendo-se em um
novo parágrafo que, se houvesse prejuízo efetivo à instituição financeira em
decorrência da realização das operações, poderia o juiz acrescer à pena de um
125
terço a um meio, impondo, ainda, a perda de bens e valores do condenado até o
montante do dano causado, acrescido de correção monetária e juros ou a
semiliberdade.
Em conclusão, em uma mirada para o futuro do Direito Penal, pode-se dizer
que, ao lado do Direito Penal dito tradicional surge, com força política e jurídica
expressiva, o chamado Direito Penal Moderno, a abranger outras ordens de bens
jurídicos, de titularidade predominantemente supra-individual, protegendo novos
bens jurídicos decorrentes do acolhimento de imperativos éticos de solidariedade,
sendo parte da garantia das prestações públicas necessárias a uma existência em
condições de dignidade, elevando muitos dos interesses relacionados com o
intervencionismo dirigista à categoria de bens jurídicos fundamentais, donde
deriva a neocriminalização, abrangendo ilícitos em áreas como a saúde, a
segurança social e a economia.
A legitimidade social do Direito Penal está também em se redimensionar a
importância dos bens jurídicos supra-individuais na hierarquia dos bens passíveis
de proteção criminal, pois estes atingem fortemente as bases da estrutura social,
em particular o disposto no artigo 3º da Constituição Federal, incrementando-se os
estudos acadêmicos e a persecução penal respectiva como forma de reafirmação
dos valores constitucionais e da própria legitimação social deste ramo do Direito.
O Direito Penal existe para a preservação e incremento de valores sociais
elevados, mediante a imposição de uma grave sanção àqueles que inobservam a
mensagem que subjaz ao tipo penal; aos tradicionais valores sociais a serem
preservados se agregaram outros igualmente ou mais valiosos com relação aos
quais a privação da liberdade não é suficiente e, sequer, adequada e necessária
para que atinja seus fins. Essa perspectiva deve conduzir o estudo da Ciência
Penal e da aplicação do Direito Penal.
Esse é o caminho que se deve trilhar para a (re)legitimação social do Direito
Penal no novo século, reconhecendo-se a relevância de sua incidência e aplicação
tanto com referência aos bens mais caros à sociedade, de viés supra-individual,
quanto com referência àqueles titulados individualmente, cuja importância
permanece presente nessa quadra da História. Na correta e proporcional
intervenção penal em ambos reside a fonte a partir da qual se legitima socialmente
este ramo do Direito em face dos destinatários da norma, renovando-se a
confiança na sua força normativa.
126
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