maria altinha

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Literatura Portuguesa II 2008-2009 Agrupamento de Escolas do Cerco _____________________________________________________________________________ 1 Maria Altinha, de Manuel da Fonseca Todos os anos, mulheres que vivem lá para o sul, ao pé do mar, atravessam as serras e espalham-se pela planície, para a monda e para o trabalho dos arrozais. Trazem cantigas alegres e falas rumorosas, e o povo das vilas junta-se nos largos para as ver passar a caminho das herdades. Nos primeiros dias da faina, a hora em que o manajeiro tem as palavras mais desejadas para os que andam curvados entre as espigas ou enterrados no lodo das várzeas, quando o sol desaparece e cigarras e ralos arrastam um traquinar que se perde pelos longes, as mulheres de ao pé do mar cantam coisas novas e coloridas. Em volta do lume, malteses e ganhões calam as vozes pesadas e ficam-se a ouvi-las, com os olhos parados na noite, pensando nas terras da beira-mar, lá de onde elas vieram. Que as cantigas das moças do Sul tem o brilho das águas e a vivacidade das ondas. E as suas gargalhadas são naturais como um pincho de água trespassado de sol, saltando numa rocha. Elas trazem a frescura do mar para a charneca desolada. Por isso o povo das vilas se junta nos largos para as ver passar, e malteses e ganhões ficam calados a ouvi-las, depois da faina, quando a noite se derrama de estrelas, pela terra. Maria Altinha pela primeira vez saiu da aldeia e a longa viagem foi uma coisa nova para ela. Ficaram para trás as serras e amendoeiras e caminhos murados e hortas de terra solta com árvores carregadas de frutos. E os laranjais e as casinhas brancas e as noras chiando pelas encostas. E o sussurro azul embalador do mar e o cheiro do mar que o vento trazia até a janela do seu quarto. E a mãe fazendo cestinhos de palma, a porta da casa, e os irmãozinhos vendendo-os pelas vilas — tudo, tudo ficou para trás, lá para longe... Agora, era aquele descampado raso e poeirento, com grandes montados de onde em onde, e sempre raso, bravio e deserto. Mas que importava? Depois, voltaria para a aldeia com o dinheiro ganho no seu novo trabalho, e nem a mãe nem os irmãozitos passariam fome quando viessem os frios do Inverno. Logo que chegasse a casa, a mãe abraçá-la-ia chorando, e ela, com um sorriso rasgado, havia de mostrar o seu saquito de chita cheiinho de dinheiro. E, pela calada da noite, com a chuva batendo na telha e o vento correndo Iá por fora, em volta da lareira ouvi-la-iam contar das coisas daquelas terras; os irmãos fazendo perguntas e olhando-a de olhos brilhantes, admirados das respostas. Depois, o mais novinho, vencido pelo sono, tombaria a cabecita para o seu colo e o outro logo a seguir também. Só o mais velho teimaria em ouvir até chegar aquele peso maior que as suas forças e puxar-lhe as pestanas e fechar-lhe os olhos. Ela e a mãe iriam deitá-los e deitar-se. E a chuva e o vento não fariam medo porque, com um ou outro trabalho que aparecesse, as economias levadas da planície chegariam para todo o Inverno, sem que a fome entrasse na casa. Por isso a sua voz clara transbordava de alegria quando cantava e os malteses quedavam-se a ouvi-la até o sono vir. Valdanim, mal engolia o naco duro, arrastava-se para o pé da casa pegada ao celeiro onde dormiam as mulheres. Para ali ficava, de cigarro apagado, a olhar Maria Altinha e a sorrir-lhe; uns dentes enormes debaixo do bigode, os braços pousados sobre os joelhos.

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Manuel da Fonseca, Aldeia Nova, conto

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Page 1: Maria Altinha

Literatura Portuguesa II

2008-2009

Agrupamento de Escolas do Cerco

_____________________________________________________________________________

1

Maria Altinha,

de Manuel da Fonseca

Todos os anos, mulheres que vivem lá para o sul, ao pé do mar, atravessam as serras e

espalham-se pela planície, para a monda e para o trabalho dos arrozais. Trazem cantigas

alegres e falas rumorosas, e o povo das vilas junta-se nos largos para as ver passar a caminho

das herdades. Nos primeiros dias da faina, a hora em que o manajeiro tem as palavras mais

desejadas para os que andam curvados entre as espigas ou enterrados no lodo das várzeas,

quando o sol desaparece e cigarras e ralos arrastam um traquinar que se perde pelos longes,

as mulheres de ao pé do mar cantam coisas novas e coloridas.

Em volta do lume, malteses e ganhões calam as vozes pesadas e ficam-se a ouvi-las,

com os olhos parados na noite, pensando nas terras da beira-mar, lá de onde elas vieram. Que

as cantigas das moças do Sul tem o brilho das águas e a vivacidade das ondas. E as suas

gargalhadas são naturais como um pincho de água trespassado de sol, saltando numa rocha.

Elas trazem a frescura do mar para a charneca desolada.

Por isso o povo das vilas se junta nos largos para as ver passar, e malteses e ganhões

ficam calados a ouvi-las, depois da faina, quando a noite se derrama de estrelas, pela terra.

Maria Altinha pela primeira vez saiu da aldeia e a longa viagem foi uma coisa nova para ela.

Ficaram para trás as serras e amendoeiras e caminhos murados e hortas de terra solta

com árvores carregadas de frutos. E os laranjais e as casinhas brancas e as noras chiando pelas

encostas. E o sussurro azul embalador do mar e o cheiro do mar que o vento trazia até a janela

do seu quarto. E a mãe fazendo cestinhos de palma, a porta da casa, e os irmãozinhos

vendendo-os pelas vilas — tudo, tudo ficou para trás, lá para longe... Agora, era aquele

descampado raso e poeirento, com grandes montados de onde em onde, e sempre raso,

bravio e deserto.

Mas que importava? Depois, voltaria para a aldeia com o dinheiro ganho no seu novo

trabalho, e nem a mãe nem os irmãozitos passariam fome quando viessem os frios do Inverno.

Logo que chegasse a casa, a mãe abraçá-la-ia chorando, e ela, com um sorriso rasgado,

havia de mostrar o seu saquito de chita cheiinho de dinheiro. E, pela calada da noite, com a

chuva batendo na telha e o vento correndo Iá por fora, em volta da lareira ouvi-la-iam contar

das coisas daquelas terras; os irmãos fazendo perguntas e olhando-a de olhos brilhantes,

admirados das respostas.

Depois, o mais novinho, vencido pelo sono, tombaria a cabecita para o seu colo e o

outro logo a seguir também. Só o mais velho teimaria em ouvir até chegar aquele peso maior

que as suas forças e puxar-lhe as pestanas e fechar-lhe os olhos. Ela e a mãe iriam deitá-los e

deitar-se. E a chuva e o vento não fariam medo porque, com um ou outro trabalho que

aparecesse, as economias levadas da planície chegariam para todo o Inverno, sem que a fome

entrasse na casa.

Por isso a sua voz clara transbordava de alegria quando cantava e os malteses

quedavam-se a ouvi-la até o sono vir.

Valdanim, mal engolia o naco duro, arrastava-se para o pé da casa pegada ao celeiro

onde dormiam as mulheres. Para ali ficava, de cigarro apagado, a olhar Maria Altinha e a

sorrir-lhe; uns dentes enormes debaixo do bigode, os braços pousados sobre os joelhos.

Page 2: Maria Altinha

Literatura Portuguesa II

2008-2009

Agrupamento de Escolas do Cerco

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Vinham as cantigas, risos as mulheres do Sul venciam os homens da planície naqueles

primeiros dias.

Mas, agora, tudo mudava a pouco e pouco. Já a malta arrastava um coro pesado pelas

quebradas e a voz das mulheres esmorecia. Começavam a sentir na carne a faina dolorosa,

desde a manhã a noite, debaixo de um sol abrasador. O ar escaldante da planície secara a

frescura do mar. Só as cantigas dolentes soavam pela calada da noite.

Valdanim tomava fôlego deitando a cabeça para trás, os olhos fitos em Maria Altinha

como se cantasse só para ela, embora a sua voz se perdesse na toada igual das outras vozes da

malta. Embora. Valdanim cantava para ela e, já quando a via, não era só aquele sorriso parado

— uns dentes enormes debaixo do bigode —, era também uma frase atrevida:

Maria Altinha, uma noite destas hei-de falar-te a preceito!...

Mas a moça não respondia e Valdanim enrolava-se na manta, pensando que um caso

daqueles não queria conversas, mas sim uns braços bem fortes em volta da cintura de Maria

Altinha. Um torpor tornava o corpo do homem; parecia afundar-se. Puxava a manta para a

cabeça, os olhos voltados para o céu fechavam-se lentamente. Num momento era só Maria

Altinha em todos os sentidos. E adormecia. Um sono toda a noite, sem pesadelos nem sonhos.

Lá pela madrugada, aquele despertar doloroso, o corpo torcendo-se todo numa ânsia

revoltada. Mal acordado ainda, toca a andar com a malta a caminho da várzea. Era a água fria

do charco, subindo pelas pernas, que os acordava a todos de vez.

Pareciam condenados.

O céu baixo limitava, em volta, o horizonte escurecido. Outeiros e cabeços nus, onde

em onde um sobreiro engelhado com os ramos torcidos, solitário. No meio da várzea, pernas

enterradas até as coxas, cintura dobrada, em fila, as mulheres metiam os braços na água

remexendo no fundo. Aqui e além um homem.

Desde que o sol vinha, desfazendo os véus húmidos da madrugada e depois

queimando como lume, até que se ia embora, as mulheres, de saias repuxadas entre as

pernas, mangas arregaçadas, chapinhavam no pântano mondando o arroz.

Mosquitos zumbindo riscavam a água barrenta, um fedor acre entupia as narinas e

parecia entrar por todos os poros da pele. Com o meter das mãos para o fundo, pequeninas

ondulações partiam, concêntricas, ao redor dos braços, e bolhas de ar vinham gorgolejando e

rebentavam a superfície, avivando o fedor, mesmo por baixo do nariz. Porque o rosto das

mulheres quase roçava no lodo, quando davam um passo em frente, farrapos de madeixas

caídas sobre a testa oscilavam pingando. E as mulheres acamavam os cabelos e coçavam as

babas dos mosquitos com os dedos engelhados.

O capataz, na vala, olhava duro, mandando. Aqui e além, um homem. O sol de brasa

pegado nas costas, o horizonte escurecido. Pareciam condenados.

Por um anoitecer pesado de tristeza, campos fora só se ouvia o ralhar das cigarras e

grilos, Maria Altinha sentiu as primeiras febres. Esteve dez dias sem ir a várzea. Dez dias

sozinha, tremendo de frio e suores em cima da saca, tapada com a manta, a um canto da casa

da arrumação. Vinha o carreiro da vila com a caixinha redonda cheia de hóstias e Maria Altinha

sem ir a monda. Sem ganhar a jorna.

Um dia fez como os outros: meteu-se no arrozal amarelinha de sezões. Quando

começavam a bater-lhe os dentes, sala da água e deitava-se na terra, a tremer dos pés a

cabeça. Era um quartel perdido. O capataz lá estava traçando o risco no papel.

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Literatura Portuguesa II

2008-2009

Agrupamento de Escolas do Cerco

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Ao chegar sábado, aquela semana tivera só três dias para ela.

Valdanim, uma tarde, saiu da várzea muito antes do sol-posto. «Que não podia, que

tinha uma dor.» O capataz consentiu a má cara, riscando o papel.

Valdanim, coxeando, tomou o caminho do monte. Mas passada a encosta deixou de

coxear e acelerou o passo.

Nuvens escuras de trovoada toldavam o céu. Um bafo morno tocava na pele da malta

da monda, arrepiando-a de suores frios. Valdanim corria para o monte. Para trás, cada vez

mais para trás, ficavam homens e mulheres enterrados no arrozal, dobrados, com as mãos

remexendo no fundo.

Pareciam condenados.

Deitada sobre a saca, Maria Altinha dir-se-ia adormecida.

Nesse dia nem se levantara para ir ao trabalho. Viera aquele tremor brusco e, sozinha

no monte, lutara tentando cerrar os dentes, crispando os dedos no fato. Um frio de morte

tomava-lhe os membros e os dentes batiam acompanhados pelo gemido estrangulado que lhe

vinha do peito. Em vão, numa luta dolorosa, o corpo retesado forçava por dominar os

movimentos desordenados e contínuos. E sozinha: longe era a casa e longe era a mãe!...

Depois o frio desapareceu lentamente e com ele o tremor. Ficou extenuada, o corpo

quebrado, a cabeça latejante como se ardessem dentro labaredas de uma fornalha. E aquele

calor foi descendo para o corpo. Ardia. O suor repassava, envolvia-a toda numa calda

pegajosa. Pesadelos, um ruído colossal ia e vinha, ora intenso, insuportável, ora brando e

canicioso, adormecedor. Falava gesticulando, chorava, ria. Os olhos escancarados tentavam

ver, mas, no escuro, só passavam coisas disformes e rápidas, alucinantes. Lá vinha o ruído

crescendo, crescendo até estalar como um trovão dentro do cérebro. E passava esvaído num

sussurro longínquo. Também o calor se fora e os pesadelos terminavam. Ficaram aquelas

camarinhas de suor e o corpo sem forças para nada. Agora, Maria Altinha dir-se-ia adormecida.

Mal ouviu uns passos cautelosos que se aproximavam e uma voz que lhe soprava perto

dos ouvidos. Mãos acariciavam-lhe os cabelos, o rosto, os seios. Mãos enormes. Tudo vago,

embalador como um sonho. Depois aquela dor aguda no ventre uma punhalada rasgando-a!

Maria Altinha gritou, mas uns lábios grossos amachucaram-lhe a boca numa ânsia brutal.

Agora, o povo das vilas nem conhece as mulheres que voltam das searas e dos arrozais

quando as vê passar, no largo, de jornada para o sul. Vão sequinhas e amarelas como se

fossem velhas, sem uma fala, sem um sorriso, o rosto parado debaixo da barra do lenço.

E aquela moça que tanto cantava, para ali vai, murcha, calada como uma sombra. Só lá

por dentro os pensamentos se enrodilhavam numa amargura sem fim. «Virá o Inverno com

chuvas e ventos e virá a fome para aquela casinha humilde da aldeia. E o irmãozito mais novo

há-de tossir toda a noite e a mãe há-de chorar pelos cantos e nada, nada ela poderá fazer!. ..»

E as outras mulheres parecem pensar o mesmo tão caladas e sumidas nos Lenços que

mal se lhes vê a cara.

Por isso o povo das vilas sai dos largos desiludido, e costuma dizer daquela gente que

vem do sul lá de ao pé do mar:

— E todos os anos o mesmo. Vêm cantando e voltam chorando!...