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VALDEMAR CARLOS DE DEUS
MECANISMOS SINTÁTICO-DISCURSIVOS DA ARGUMENTAÇÃO EM SENTENÇA JUDICIAL
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras como parte dos requisitos para a obtenção do grau de Mestre em Língua Portuguesa, elaborada sob a orientação do Prof. Dr. Milton do Nascimento.
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
BELO HORIZONTE 2004
D486m Deus, Valdemar Carlos de 2004
Mecanismos sintático-discursivos da argumentação em sentença judicial / Valdemar Carlos de Deus. – Belo Horizonte: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, 2004.
161 f. Dissertação (Mestrado em Língua Portuguesa). PUC Minas. 1. Lingüística – Análise do discurso. 2. Linguagem e
processamento discursivo. 3. Lingüística estrutural. 4. Textos judiciais - Argumentação. I. Título.
CDD: 415
Dissertação defendida publicamente no Programa de Pós-Graduação em Letras da
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e aprovada pela seguinte Comissão
Examinadora:
Profª. Drª. Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva – UFMG
Profª. Drª. Vanda de Oliveira Bittencourt – PUC Minas
Orientador: Prof. Dr. Milton do Nascimento – PUC Minas
Belo Horizonte, 28 de maio de 2004
Profª. Drª. Ivete Lara Camargos Walty
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras
PUC Minas
DEDICATÓRIA Nunca te chamei meu bem; chamei-te Chica. Nunca te chamei meu amor; chamei-te Chica. Nunca te chamei minha vida; chamei-te Chica: maneira gostosa de dizer meu bem, meu amor, minha vida.
A você, Sônia, esposa, amiga, companheira, que, mesmo nos momentos mais difíceis,
quando o caminho parecia cada vez mais longo, e a caminhada parecia não ter fim, sempre
acreditou e fez-me acreditar na concretização desta vitória.
A meus filhos, Luciano, Patrícia e Leandro, pelo apoio e pela preocupação que sempre
demonstraram em relação ao sucesso deste trabalho, que espero possa servir de exemplo para
que eles jamais se afastem do caminho do estudo e do saber.
À memória de meus Pais, Sô João Marceneiro, bonachão, alegre, amigo, e Dona Rita,
verdadeiro pilar da família, mãe coruja, sempre orgulhosa de minhas pequenas vitórias de
estudante.
A meus sogros, Cordeiro e Neusa, meus segundos pais, pessoas por quem tenho uma
amizade e um carinho especiais.
Aos todos os meus irmãos, que não tiveram as mesmas oportunidades de estudo que a vida me proporcionou .
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Letras, pela paciência, pela dedicação e pela maneira fácil como nos conduziram para a pesquisa lingüística.
Ao pessoal da Secretaria: Vera, Marieta, Berenice, pelo modo atencioso e solícito
como sempre nos atenderam.
Aos colegas de sala e de cantina, em especial a Maria Regina, pela companhia alegre nos momentos de folga e pelo apoio e incentivo nos árduos momentos de labuta.
AGRADECIMENTO ESPECIAL
Mais que um agradecimento,
uma profissão de admiração e de amizade:
Milton
Você sabe de sua importância na realização deste
trabalho. Mas, você não sabe quanto ele contribuiu
para tornar mais larga a admiração que sempre tive
por você e para tornar mais estreita esta amizade que
vi surgir de nossa breve convivência e da qual
espero continuar sendo merecedor.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO....................................................................................... 10
2 TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO.......................................................... 17
2.1 Por uma Concepção de Argumentação...........................................................................17
2.1.1 A intencionalidade na atividade da linguagem...........................................................20
2.1.2 Níveis de significação do discurso ................................................................................20
2.1.3 As relações textuais ........................................................................................................24
2.1.4 Conclusão: o conceito de argumentação adotado .......................................................27
3 UM MODELO DE PROCESSAMENTO DISCURSIVO ....................... 29
3.1 Por uma Concepção de Linguagem.................................................................................29
3.2 Uma Teoria Modular.......................................................................................................32
3.3 A Noção de Instância de Enunciação ..............................................................................36
3.3.1 As pessoas da enunciação ..............................................................................................38
3.3.2 As noções de tempo / espaço .........................................................................................39
3.3.3 A referência ....................................................................................................................40
3.4 A Construção de Instâncias de Enunciação ...................................................................43
3.4.1 A situação default e as formas de dizer......................................................................43
3.4.2 Instância de Enunciação criada por verbo dicendi .....................................................48
3.4.3 Instância de enunciação criada por verbo não-dicendi ..............................................48
3.4.4 Instância de Enunciação criada por nome deverbal correlato de verbo dicendi .....49
3.4.5 Instância de Enunciação criada por termo de elocução..............................................50
3.5 Instâncias de Enunciação como Espaços Referenciais Básicos no Processamento da Referenciação ....................................................................................................................51
3.5.1 O Processo de Referenciação ........................................................................................53 3.5.1.1 A Teoria dos Espaços Mentais ...................................................................................56 3.5.1.1.1 A construção de Espaços Mentais pelo uso de “introdutores” ou “construtores de
espaço” ......................................................................................................................58 3.5.1.1.2 A construção de Espaços Mentais pela construção de Instâncias de Enunciação ...61 3.5.1.1.3 Espaços Mentais e Integração Conceitual ................................................................64 3.5.1.1.4 Espaços Mentais hipotético-contrafactuais e contrafactualidade ............................67 3.5.1.1.5 A articulação de Espaços Referenciais e a produção de inferências.......................77
3.5.1.1.6 Os operadores discursivos e a articulação de Espaços Referenciais ...................83
3.6 Síntese e Conclusão do Capítulo com a Apresentação de um Modelo de Processamento Discursivo................................................................................................88
3.6.1 Apresentação e experimentação do modelo proposto ................................................91
4 ANÁLISE: A CONSTRUÇÃO E INTEGRAÇÂO DE ESPAÇOS REFERENCIAIS NA PRODUÇÃO DE SENTENÇA JUDICIAL........ 98
4.1. A Apresentação do Corpus .............................................................................................98
4.2 Esclarecimentos Iniciais .................................................................................................114
4.3 Análise: A Construção e Integração de Espaços Referenciais....................................116
4.3.1 Na justificativa do recebimento da Ação de Separação Judicial.............................116
4.3.2 Na justificativa do recebimento da Ação de Anulação de Casamento, em reconvenção ..................................................................................................................119
4.3.3 No julgamento da legalidade das ações e no julgamento das alegações..................121 4.3.3.1 No julgamento da legalidade das ações...................................................................122 4.3.3.2 No julgamento das alegações da ré -reconvinte ......................................................124 4.3.3.2.1 Da alegação de violência sexual .............................................................................124 4.3.3.2.2 Da alegação de contágio .........................................................................................129 4.3.3.2.3 Da alegação de prodigalidade ................................................................................132 4.3.3.2.4 Da alegação de erro essencial sobre a pessoa........................................................133
4.3.4 Na avaliação de indícios e presunções........................................................................134 4.3.4.1 Na construção do caráter da ré-reconvinte ............................................................136 4.3.4.2 Na construção do caráter da testemunha ...............................................................138 4.3.4.3 Na construção do caráter do autor-reconvindo .....................................................139
4.3.5 Na fundamentação da decisão ....................................................................................141 4.3.5.1 Quanto à alegada tentativa de coito anal................................................................141 4.3.5.2 Quanto à alegação de estupro ..................................................................................142 4.3.5.3 Quanto à alegação de prodigalidade .......................................................................144 4.3.5.4 Quanto à alegação de contágio ................................................................................145 4.3.5.5 Na decisão das duas ações........................................................................................147
4.3.6 No proferimento da Sentença .....................................................................................150
5 CONCLUSÕES..................................................................................... 153
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................... 158
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
FIGURA 1- Processamento discursivo segundo a Teoria Modular .........................................34
FIGURA 2 - Representação Gráfica de Instância de Enunciação ............................................37
FIGURA 3 - Texto 06 - A Criação e Articulação de Instâncias Enunciativas ........................46
FIGURA 4 - Texto 24: A construção de Espaços Mentais pela construção de Instâncias
Enunciativas......................................................................................................................62
FIGURA 5 - Texto 24a: Hierarquização de Espaços Mentais..................................................63
FIGURA 6 - Rede Conceitual Integrada ..................................................................................65
FIGURA 7 - Texto 31: Integração de Espaços Referenciais ....................................................74
FIGURA 8 - Texto 32: Integração de Espaços Referenciais. ...................................................75
FIGURA 9 - Texto: 59: Referenciação no Domínio Único de Referência Integrado ..............92
FIGURA 10 - Texto 60: Referenciação no Domínio Único de Referência Integrado .............93
FIGURA 11 - Texto 61: Referenciação no Domínio Único de Referência Integrado .............97
FIGURA 12 -Texto 64: Justificativa de recebimento de Ação de Anulação de Casamento em
Reconvenção. ..................................................................................................................121
FIGURA 13 - Texto 66: Julgamento de alegação de violência sexual...................................127
FIGURA 14 - Texto 67: Comprovação de violência sexual. ..................................................129
FIGURA 15 - Texto 68: Julgamento da alegação de contágio ...............................................131
RESUMO
Argumentar é articular falas e outros Espaços Referenciais constituídos, ou
delimitados, por Instâncias de Enunciação. Essa é a hipótese em torno da qual se desenvolve
este trabalho e que foi confirmada pela análise do corpus, constituído de um texto
argumentativo jurídico do gênero sentença judicial. Na abordagem do objeto de estudo
delimitado, foi adotado um modelo de processamento discursivo configurado por alguns
pressupostos fornecidos por várias teorias lingüísticas que tratam o discurso do ponto de vista
de seu processamento e que constituem o quadro teórico que serviu de suporte para este
trabalho. A Teoria da Enunciação, a Teoria dos Espaços Mentais, a Teoria Modular são
algumas dessas teorias.
LINHA DE PESQUISA: Gramática e Textualização
PALAVRAS-CHAVE: Argumentação, Processamento Discursivo, Integração de Espaços
Referenciais.
10
1 INTRODUÇÃO
No desenvolvimento do meu trabalho como professor de Língua Portuguesa e
Redação, tanto no Ensino Médio quanto no Ensino Superior tenho percebido que, observadas
as diferenças de grau, as dificuldades demonstradas pelos alunos na produção / recepção de
textos escritos são sempre as mesmas. Essas dificuldades parecem ser decorrentes de uma
outra dificuldade, situada na base do problema: de modo geral, os alunos demonstram
enfrentar problemas sérios na percepção da articulação e das “relações lógicas existentes entre
as várias partes de um texto”. A produção de textos sem uma estrutura adequada, sem
organização e sem coesão é uma constante em qualquer nível de escolaridade. Essa
constatação, que não é só minha, tem motivado a elaboração de muitos trabalhos que
objetivam contribuir para a amenização do problema. Várias publicações têm surgido com
novas propostas, novos métodos, novas estratégias, no intuito de levar o aluno a melhorar sua
competência na produção / recepção de textos escritos.
A respeito desse problema, pode-se dizer também que a dificuldade demonstrada pelos
alunos é maior quando se trata de textos ditos argumentativos. É comum, por exemplo, nas
atividades em que se propõe a redação de um texto argumentativo, o aluno produzir um texto
claramente narrativo. Embora não se pretenda, aqui, discutir as causas do problema, vale fazer
essa referência por se tratar de um fato que, certamente, já foi observado por todos os
professores que lidam com a prática da produção e interpretação de textos.
Em sua dissertação de mestrado, Costa Val (1999, p.121), na análise do corpus,
constituído por redações elaboradas por candidatos ao Curso de Letras, no vestibular de 1983
da UFMG, constatou que
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As falhas que se mostraram mais relevantes, dos pontos de vista quantitativo e qualitativo, dizem respeito à informatividade e a dois requisitos de coerência (a não-contradição externa e a articulação) e têm a ver, mais propriamente, com os aspectos cognitivos da macroestrutura.
Entre os fatores considerados por Costa Val (1999), a informatividade parece ser o
único que ainda não mereceu um estudo mais cuidadoso, que fornecesse subsídios para um
trabalho destinado a melhorar a competência do falante como produtor de textos escritos. O
trabalho que aqui se propõe não busca, em primeiro lugar, apresentar nenhuma contribuição
específica nesse sentido. Entretanto, por entender que o que se chama de informatividade deve
ser avaliado de maneiras diferentes conforme o gênero textual e, mesmo, conforme o tipo de
texto, entendo também que, de certa forma, o estudo dos mecanismos lingüísticos envolvidos
no processamento do texto argumentativo, objetivo deste trabalho, poderá trazer alguma
contribuição para o assunto, fornecendo subsídios que possibilitem ao aluno perceber o jogo
de relações e articulações que compõem o texto argumentativo.
Ao se propor delimitar o objeto de estudo no âmbito dos mecanismos envolvidos no
processamento do texto argumentativo, não se pretende simplesmente apontar marcas da
argumentação no texto. A preocupação não é o texto, ou o tipo de texto, como um simples
produto, mas como um dos fatores constituintes de seu processamento discursivo. O que se
pretende, de fato, é tentar explicitar a maneira como se implementam e se integram os
mecanismos lingüísticos básicos da argumentação na produção / recepção de textos
argumentativos. Em outras palavras: a partir da análise de textos argumentativos judiciais, o
que se pretende é tentar uma descrição sistematizada dos mecanismos sintático-discursivos
básicos envolvidos no processamento de textos ditos argumentativos. A intenção é apresentar
um trabalho que possa contribuir, ainda que modestamente, para a prática da produção e
recepção de textos argumentativos em geral.
A decisão de se trabalhar aqui com o texto dito argumentativo se deve, em grande
parte, ao fato de que esse tipo de texto tem sido, nos últimos anos, muito prestigiado nos
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vários níveis de ensino, desde o Fundamental até o Superior. Além disso, em quase todo
concurso público e praticamente em todo vestibular realizado no País, vem sendo cobrada a
redação de texto argumentativo. Ainda que assim não fosse, a verdade é que, na prática do
dia-a-dia, saber argumentar é um trunfo importante para qualquer pessoa. Assim, como
professor de Língua Portuguesa em um Curso de Letras e em um Curso de Direito e sabendo
o que pode significar para a vida profissional de um professor ou de um advogado a
competência argumentativa, entendo ser minha obrigação buscar subsídios para ajudar os
alunos a melhorar sua capacidade de produzir e interpretar textos argumentativos.
Sabendo que a maior dificuldade demonstrada pelos alunos na produção de textos é o
baixo nível de informatividade que seus textos apresentam, acho necessário fazer algumas
considerações sobre o problema. Em primeiro lugar, é importante dizer que o desempenho do
aluno nesse quesito varia bastante conforme esteja desenvolvendo um texto narrativo,
descritivo ou argumentativo. No texto narrativo, que, na maioria das vezes, baseia-se apenas
em fatos fictícios, o aluno tem muito o que dizer, já que sua imaginação possibilita criar
situações, fatos, argumentos, eventos, e, assim, alimenta a capacidade informativa do aluno.
No texto dissertativo ou argumentativo, porém, a informatividade vai resultar do
conhecimento sobre o assunto, da opinião a ser defendida e da sua competência para construir
e desenvolver argumentos capazes de provocar a adesão à sua tese. Por isso, a
informatividade nesses tipos de textos é geralmente baixa. Somente com um certo
conhecimento prévio do assunto, um conhecimento geral satisfatório, uma vivência
significativa, aliados a uma razoável competência textual, pode-se conseguir um texto
argumentativo com um bom nível de informatividade. Aliás, neste trabalho, entende-se que
informatividade não é o termo mais adequado quando se trata de texto dissertativo ou
argumentativo. Principalmente quando se trata deste último, o termo mais apropriado seria
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argumentatividade, já que a finalidade do texto argumentativo não é, primordialmente,
informar, mas convencer, persuadir, pela argumentação.
Em segundo lugar, é importante lembrar também o seguinte: mesmo quando o aluno
tem muita coisa a dizer, ou seja, quando a informatividade poderia ser alta, é comum ouvir-se
do aluno um lamento do tipo “Professor, eu sei o assunto, mas não sei como passar para o
papel”. De fato, esse é um problema real vivido por alunos e professores. Na verdade, a
produção de qualquer gênero ou tipo de texto esbarra em duas grandes dificuldades: o que
dizer e como dizer. Como se afirmou anteriormente, o grau de informatividade varia
conforme o tipo de texto. Nos textos narrativos, tem-se muito mais o que dizer do que nos
textos argumentativos. A dificuldade, porém, na produção do texto continua, uma vez que o
como dizer é outro sério desafio a ser enfrentado. Em se tratando de textos argumentativos,
não basta dizer. Nesse tipo de texto adquire importância fundamental o como dizer. A
informatividade em um texto argumentativo está em tornar forte um argumento
aparentemente fraco. Na argumentação, é preciso levar o alocutário a enxergar um outro
aspecto do assunto, aquele aspecto cujo valor se quer que seja tido como decisivo para a
aceitação do argumento. Conseguir isso, entretanto, exige muita habilidade na articulação dos
argumentos que sustentam o texto. Muitas vezes, o falante pensa em desenvolver certos
argumentos e não consegue tecê- los de forma a conduzir o alocutário a perceber a importância
que possam ter para o assunto. Se essa dificuldade já é enorme em qualquer tipo de
argumentação, na argumentação jurídica ela é muito maior. Talvez seja nos textos
argumentativos jurídicos que mais se faz necessária uma articulação eficiente dos mecanismos
enunciativos responsáveis pela “argumentatividade”. Dessa habilidade pode advir a criação, a
modificação ou a extinção de direitos. Uma petição mal feita, uma lei mal redigida, uma
sentença mal fundamentada ou confusa podem trazer transtornos às vezes irreparáveis. Assim,
entendo que, com este trabalho, talvez possa trazer alguma contribuição para o assunto.
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O quadro teórico que será adotado na abordagem do objeto de estudo delimitado se
constituirá a partir de presssupostos que configurem um modelo de processamento discursivo.
Um desses pressupostos é que os Espaços Mentais (FAUCONNIER, 1994,1997) são
domínios semânticos necessariamente constitutivos e constituídos do / no processamento
discursivo. Um segundo pressuposto é que tais Espaços, segundo postula Cavalcante (2002),
constituem-se, necessária e primordialmente, de Instâncias de Enunciação - Espaços
Referenciais Básicos, segundo a autora. Um terceiro pressuposto com que se trabalhará,
também defendido por Cavalcante (2002), é que outros espaços referenciais são constituídos,
sempre, no interior de espaços básicos. (Instâncias de Enunciação).
A partir disso, com base, também, nos trabalhos de Lopes (1998): O processamento
dêitico na constituição da polifonia; Magalhães (1998): a construção de instâncias
enunciativas em textos escritos no português culto do Brasil; Martins (2000): Dêixis,
discursivização e espaços mentais – o papel da dêixis na construção de espaços mentais no
processamento discursivo; Vieira (2003): A contrafactualidade e a integração de espaços
referenciais na instauração da polifonia; Nascimento; Oliveira (2002): Referenciação, Texto e
Hipertexto, e adotando alguns pressupostos fornecidos pelas seguintes teorias lingüísticas, que
tratam o discurso do ponto de vista de seu processamento: Teoria da Enunciação, segundo
Benveniste (1970/1989), Bakhtin (1929/1995), Ducrot (1987); Teoria Modular, de Ataliba
Teixeira de Castilho (1998); Teoria dos Espaços Mentais, de Gilles Fauconnier (1984, 1994,
1996, 1997) e Fauconnier; Turner (2002), sem deixar de contar também com algumas
contribuições de Koch (1999), e outros, para uma Teoria da Argumentação, pretende-se
proceder à análise do corpus, constituído por texto argumentativo jurídico do gênero sentença
judicial, em busca da confirmação da hipótese em que se funda o trabalho proposto, segundo a
qual um dos mecanismos básicos da construção de textos argumentativos constitui-se pela
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criação e articulação de Espaços Referenciais constituídos ou delimitados por Instâncias de
Enunciação.
Pelo que se expôs acima, vê-se que este trabalho tem como objeto de estudo a criação
e articulação de espaços referenciais constituídos ou delimitados por Instâncias de Enunciação
no processamento de textos de caráter argumentativo.
Pretende-se demonstrar que, embora sejam necessariamente constitutivos de todo e
qualquer tipo de texto, esses mecanismos sintático-discursivos são utilizados de maneira
específica na produção da argumentação. Pretende-se demonstrar também que, na
argumentação, isso acontece de uma maneira tal que, em sua maneira de acontecer, pode ser
tomado como característica básica do texto argumentativo judicial, que compõe o corpus
deste trabalho. Em suma, pretende-se demonstrar que, no texto argumentativo judicial,
argumenta-se, predominantemente, jogando com falas (Instâncias Enunciativas) e outros
Espaços Referenciais criados no processo de argumentar, no interior de tais Instâncias.
Acredita-se que, a demonstração dessa hipótese não deixará de ser uma contribuição para o
estudo dos mecanismos sintático-discursivos básicos da argumentação.
Em busca dos resultados pretendidos, deverão ser adotados os seguintes
procedimentos:
1. Apresentação de resenha crítica de textos ou obras sobre o assunto, visando a
contextualizar o trabalho no quadro de abordagens do tema “argumentação”.
2. Definição de um quadro de referência teórico que permita uma explicitação
do modelo de processamento discur sivo a ser adotado na condução do trabalho proposto.
3. Construção do corpus , constituído de texto argumentativo jurídico do gênero
sentença judicial. Trata-se de decisão judicial proferida em processo real e apresentada por
Nunes (1999, p.109-126) como exemplo prático de redação de Sentença judicial. É texto que,
por sua natureza essencialmente argumentativa e pela recorrência de determinados
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mecanismos de argumentação que apresenta em seu processamento, é bastante adequado ao
tipo de estudo pretendido.
4. Análise: Definido o corpus, será processada a análise dos dados visando à
confirmação, ou não, da hipótese aventada.
Nessa análise, será examinada a técnica argumentativa do Juiz à luz do modelo de
processamento discursivo construído a partir do quadro de referência teórico estabelecido,
investigando-se se, de fato, a técnica argumentativa empregada nas sentenças judiciais
envolve, necessariamente, a criação e integração de Instâncias de Enunciação e de outros
Espaços Referenciais criados em seu interior.
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2 TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO
2.1 Por uma Concepção de Argumentação
Em Argumentação e linguagem, Koch (1999, p.19) afirma que
como ser dotado de razão e vontade, o homem, constantemente, avalia, julga, critica, isto é, forma juízos de valor. Por outro lado, por meio do discurso – ação verbal dotada de intencionalidade – tenta influir sobre o comportamento do outro ou fazer com que compartilhe determinadas de suas opiniões. É por esta razão que se pode afirmar que o ato de argumentar, isto é, de orientar o discurso no sentido de determinadas conclusões, constitui o ato lingüístico fundamental, pois a todo e qualquer discurso subjaz uma ideologia, na acepção mais ampla do termo. A neutralidade é apenas um mito: discurso que se pretende “neutro”, ingênuo, contém também uma ideologia – a da sua própria objetividade.
De acordo com Koch (1999), a aceitação desse postulado invalida a distinção que
normalmente se faz entre dissertação e argumentação, segundo a qual a primeira teria de
limitar-se à exposição de idéias alheias. Para Koch (1999), a simples seleção das opiniões a
serem reproduzidas já se caracteriza como tomada de posição. Isso, sem dúvida, já
caracterizaria uma atitude argumentativa. Segundo a autora, a argumentatividade se faz
presente em maior ou menor grau nos textos considerados narrativos e descritivos. Em
Argumentação e linguagem (1999), a autora utiliza os termos argumentação e retórica quase
como sinônimos e postula que tanto uma quanto outra estão presentes, em maior ou menor
grau, em todo e qualquer tipo de discurso.
Marcuschi, ao prefaciar essa obra, chama a atenção para o fato de que a autora inverte
a noção de que a função comunicativa é a mais importante função da linguagem, ao conceber
a língua como forma de interação social e considerar que o ato lingüístico fundamental é o ato
de enunciar. Para Marcuschi, “isto significa que comunicar não é agir na explicitude
lingüística e sim montar o discurso envolvendo as intenções em modos de dizer cuja ação
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discursiva se realiza nos diversos atos argumentativos construídos na tríade do falar, dizer e
mostrar”.
Para Koch, (1999) o surgimento da Pragmática fez com que o estudo do discurso e,
conseqüentemente, o da argumentação ou retórica passassem a ocupar um lugar central nas
pesquisas sobre a linguagem. Para a autora, isso ocorreu a partir do momento em que se
passou a incorporar o estudo da enunciação ao estudo dos enunciados lingüísticos, dando-se
origem à Teoria da Enunciação.
A autora aponta a participação dos filósofos de Oxford, com destaque para Austin, e
também dos Estados Unidos, principalmente Searle, que se dedicaram ao estudo dos atos de
linguagem, “postulando a existência de atos ilocucionários, que encerram a ‘força’ com que
os enunciados são produzidos, e de atos perlocucionários, que dizem respeito aos efeitos
visados pelo uso da linguagem, entre os quais o de convencer e de persuadir”. (KOCH,
1999, p.20).
Citando Perelman (1970), a autora (1999, p.20) afirma que “a argumentação visa a
provocar ou a incrementar a ‘adesão dos espíritos’, às teses apresentadas ao seu assentimento,
caracterizando-se, portanto como um ato de persuasão”.
Faz a distinção entre o ato de convencer e o ato de persuadir. Com base, ainda, em
Perelman (1970), a autora diz que
o ato de convencer se dirige unicamente à razão, através de um raciocínio estritamente lógico e por meio de provas objetivas, sendo, assim, capaz de atingir um ‘auditório universal’, possuindo caráter puramente demonstrativo e atemporal (as conclusões decorrem naturalmente das premissas, como ocorre no raciocínio matemático), o ato de persuadir, por sua vez, procura atingir a vontade, o sentimento do(s) interlocutor(es), por meio de argumentos plausíveis ou verossímeis e tem caráter ideológico, subjetivo, temporal, dirigindo-se, pois, a um auditório particular: o primeiro conduz a certeza, ao passo que o segundo leva a inferências que podem levar esse auditório – ou por parte dele – à adesão aos argumentos apresentados.(KOCH,1999, p.20).
19
Para Koch (1999, p.21), os estudos de Perelman deram um impulso importante aos
estudos sobre a argumentação, uma vez que buscaram elaborar uma “Nova Retórica”,
tentando unir os principais elementos da Retórica de Aristóteles a uma visão atualizada do
assunto, e, a partir daí, o discurso foi-se tornando objeto de variadas tendências da lingüística
moderna, como a Análise do Discurso, a Teoria do Texto e a Semântica Argumentativa. Esta,
segundo Koch (1999, p.21),
preocupada com a construção de uma macrossintaxe do discurso, postula uma pragmática integrada à descrição lingüística, isto é, como um nível intermediário entre sintático e o semântico, considerando, portanto, os três níveis como indissoluvelmente interligados.
Para Koch (1999), a argumentatividade está inscrita no nível fundamental da língua.
Koch (1999, p.21) afirma também que, “se a frase é uma unidade sintático–semântica,
o discurso constitui uma unidade pragmática, atividade capaz de produzir reações, ou, como,
diz Benveniste (1974) ‘a língua assumida como exercício pelo indivíduo’”.
Assumindo as idéias de Benveniste, Koch (1999, p.21) lembra que, ao se apropriar da
língua para produzir um discurso, o homem não pensa apenas em comunicar algo, mas
principalmente em interagir socialmente. Nessa interação, ele institui-se como um eu e,
simultaneamente, constitui um outro como interlocutor, que por sua vez, é constitutivo do
próprio eu, no jogo de representações e de imagens recíprocas, que se estabelecem entre eles.
A acepção de discurso com que trabalha Koch (1999), em Argumentação e
Linguagem, não é a mesma deste trabalho. Em Koch (1999), o termo discurso tem a acepção
de texto como produto da atividade de linguagem, enquanto, aqui, esse termo é empregado
como a própria atividade de linguagem, como ação, como atividade de interação, como
processo, como enunciação.
Para Koch (1999), a argumentação é uma atividade estruturante de todo e qualquer
discurso. Isso porque, segundo ela, a progressão de um discurso se dá pelas articulações
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argumentativas. Para a autora, a orientação argumentativa dos enunciados de um texto é um
fator básico não só de coesão mas principalmente de coerência textual.
2.1.1 A intencionalidade na atividade da linguagem
Koch (1999), ao tratar da intencionalidade na atividade de linguagem, baseando-se em
Vogt (1980), afirma que, em todo enunciado, ocorre o dizer e o modo de dizer. Isso significa
que, ao dizer, o enunciado indicia, por meio de determinadas marcas explícitas, o modo como
é dito. Isso implica que a atividade de interpretação tem de levar em consideração que quem
fala tem certas intenções ao comunicar-se e que compreender uma enunciação é apreender
essas intenções. Para Koch (1999, p.24),
o sentido de um enunciado se constitui, também, pelas relações interpessoais que se estabelecem no momento da enunciação, pela estrutura desse jogo de representações em que entram o locutor e o alocutário, quando na e pela enunciação atualizam suas intenções persuasivas.
Com base em Koch (1999), pode-se dizer, então, que a apreensão do sentido, ou
melhor, a construção do sentido, a referenciação do texto, é feita pragamaticamente. Koch
(1999) considera a Pragmática como o estudo da interatividade que se estabelece
necessariamente em qualquer operação discursiva.
Para Koch (1999), a ideologia na linguagem é percebida na distinção entre dizer e
mostrar e que a enunciação pode ser percebida no enunciado por uma série de marcas
lingüísticas através das quais se pode chegar à macrossintaxe do discurso, que é o objetivo da
Semântica Argumentativa.
2.1.2 Níveis de significação do discurso
21
Koch (1999, p.25), comentando o que Ducrot (1978b) chama de estratificação do
dizer, deixa claro que, em qualquer discurso, não basta saber o que a pessoa disse, mas em
que nível ela disse. Para ela, o sentido literal não existe, pois nada mais é do que um efeito de
sentido entre outros. Comentando a noção tradicional de sentido literal, Koch (1999, p.26) diz
que:
O valor semântico de uma frase – a sua significação – não é objeto de qualquer comunicação possível, pois ele consiste num conjunto de instruções para a sua interpretação, que comporta uma série de vazios a serem preenchidos por modificações que apenas a situação de discurso pode fornecer. Além disso, pelo fato de cometer marcas de atos ilocucionários, que só têm realidade quando a frase é objeto de uma enunciação, a frase só se torna inteligível uma vez que é anunciada. Nessa acepção, o sentido literal não existe.
Para ela, o sentido “explícito” de um texto é apenas um nível do sentido do texto, já
que, subjacentes a ele, podem estar outros níveis de significação “implícitos”. Distinguem-se
dois tipos de implícito: o implícito absoluto, que se introduz por si mesmo no discurso, dito
pelo locutor de forma intencional, e o implícito relativo, interno àquilo que o locutor “quer
dizer”. Conforme já se afirmou, a atividade de interpretação baseia-se na suposição de quem
fala tem determinadas intenções e que cabe ao alocutário captar essas intenções. Isso pode
levar a uma pluralidade de interpretações. Para Koch (1999, p.26), o querer dizer deve ser
compreendido como o querer fazer. Por isso, todas as intenções de ação, considerados por ela
como atos ilocucionários, fazem parte do sentido, já que é preciso admitir que o locutor
deseja, de algum modo, fazer conhecer essa intenção.
Quanto à sinceridade de quem fala, Koch (1999) lembra que, às vezes, a comunicação
não é feita com a única intenção de informar e que a alusão, a ironia e o “blefe” ocorrem com
freqüência. Devem, portanto, ser explicitados em termos de atos de fala derivados e
considerados como aspectos constitutivos do uso normal da linguagem. Segundo Koch
22
(1999), no subtendido, o locutor apresenta seus atos de linguagem como um enigma a ser
decifrado, orientando a interpretação para uma certa leitura.
Com base em Anscombre (1980), reconhece quatro classes de atos de fala: os
primitivos, os derivados marcados, os derivados não marcados ou alusivos e os
perlocucionários. Os três primeiros são atos ilocucionários.
De acordo com essa classificação, seria primitivo o ato de linguagem realizado por
meio de uma frase destinada a produzir um efeito de sentido que se pode considerar como
literal. Imagine-se a frase “João estuda muito”, em duas situações diferentes. Dita numa
situação em que o que se pretende é apenas fazer um comentário a respeito da dedicação de
João aos estudos, essa frase, interpretada semanticamente, pode ser considerada como um ato
de linguagem primitivo. Imagine-se, porém, um contexto em que estivesse sendo prometida
uma recompensa a alguém que, comprovadamente, estudasse muito. Dita nesse contexto, essa
frase poderia ser interpretada, pragmática e entimematicamente, como “João merece a
recompensa”. Nesse caso, poderia ser considerada um ato de linguagem derivado.
Em suma, pode-se dizer que os atos de linguagem primitivos são aque les interpretados
semanticamente, e os derivados marcados são os que exigem uma interpretação pragmática.
Outro exemplo bem marcante é uma frase do tipo “Mamãe tá com uma sede!” dita pela mãe
para o filhinho, esperando, com isso, que ele lhe trouxesse um pouco de água. Nesse caso
também, ocorreria um ato de linguagem derivado, e a interpretação seria pragmática.
Os derivados não marcados ou alusivos seriam aqueles em que a possibilidade de
derivação não está indicada na frase. Resultam de um cálculo do locutor ou do alocutário e,
por isso, podem ser recusados. São bastante utilizados na estratégia do subentendido e da
insinuação. Um exemplo de ato derivado não marcado ou alusivo é o realizado pela
interrogação “João parou de beber?”, em que, ao se perguntar, já se assevera que João tinha o
hábito de beber.
23
Os perlocucionários são usados para produzir certos efeitos de sentido como humilhar,
ofender, aterrorizar, gabar, etc.
Koch (1999) lembra que reconhecer a significação explícita faz parte da competência
lingüística e que aí é importante o papel do dicionário. Chama a atenção, porém, para o fato
de que apenas o enunciado de uma frase é que pode ser considerado verdadeiro ou falso, uma
vez que uma mesma frase, enunciada em momentos diferentes, pode ser contraditória. Cita,
como exemplo, a frase “O dia está chuvoso”.
Sobre a significação implícita, diz que “há enunciados cujo sentido literal nada (ou
quase nada) tem a ver com o sentido que lhes está sendo atribuído naquela situação”. Com
base em Ducrot (1972), aponta três formas de implícito:
a) implícito baseado na enunciação (subentendido)
Ex.: Está calor aqui dentro. (A intenção implícita é que abram a janela, ou liguem o ar,
etc.)
b) implícito baseado no enunciado (inferência)
Ex.: João veio me procurar, logo deve estar em situação difícil.
c) implícito do enunciado (pressuposição lingüística de Ducrot ou pensamento de
Frege:1982) – algo intermediário entre o dizer e o não dizer, uma forma de significação
implícita no enunciado ( pressuposto), em oposição àquilo que é posto.
Koch (1999) diz que é o modo do mostrar, do indicar e do implicitar que constituem a
forma do enunciado. Para ela, a significação se dá de dois modos distintos: o da mostração
(implícito) e o da representação (explícito), o que corresponde, segundo ela, à diferença entre
o mostrar e o dizer.
24
Afirmando que “a estrutura de um texto e o real se articulam pelo fato de ser possível
construir uma estrutura de mediação, de representação, de interação verbal” (KOCH, 1999, p.
30), a autora conclui que cada ato de linguagem é constituído pelo falar, pelo dizer e pelo
mostrar.
Para ela, o falar é o nível gramatical, de Benveniste (1966), correspondente ao ato
locucionário de Austin (1962), e consiste na produção de frases em decorrência da capacidade
do falante de produzir determinados sons de acordo com determinadas regras gramaticais.
O dizer consistiria em produzir enunciados (unidades semânticas) e estabelecer relação
entre uma seqüência de sons e um estado de coisas do mundo.
O mostrar estaria ligado à enunciação. Segundo Koch (1999, p.30), “é no processo de
enunciação que o enunciado passa a ter sentido, que incorpora o processo de significação e
mostra a direção para a qual o enunciado aponta, o seu futuro discursivo”.
De todas essas considerações a respeito dos níveis de significado do texto, esta última
é a que mais diretamente se relaciona com a perspectiva teórico-metodológica assumida na
abordagem do objeto deste trabalho. A concepção de linguagem com que se trabalha aqui,
conforme se verá no capítulo seguinte, baseia-se no princípio de que as palavras não portam o
sentido; este é construído na e pela enunciação. Assim, de tudo quanto se falou até aqui sobre
argumentação, são as estratégias discursivas que caracterizam o que Koch (1999) chama de
mostrar que serão levadas em consideração na construção de um modelo de processamento
discursivo a ser adotado na comprovação da hipótese deste trabalho.
2.1.3 As relações textuais
25
Koch (1999, p.31), ao abordar o que ela chama de graus de complexidade das relações
textuais, diz que os diversos tipos de relações intertextuais só podem ser explicitados
adequadamente por uma teoria lingüística que leve em conta o evento da enunciação.
Aponta dois importantes tipos de relações que se estabelecem no texto do ponto de
vista da enunciação: a) as lógicas ou semânticas em sentido estrito e b) as paralógicas,
discursivas ou pragmáticas. As primeiras englobariam as relações lógicas de conjunção,
disjunção, equivalência, implicação, bicondicionalidade, causalidade, etc, de caráter
predominantemente objetivo. As chamadas paralógicas, discursivas ou pragmáticas
abrangeriam várias espécies e graus diversos de complexidade. Relações morfossintáticas,
relações fonológicas ou supra-segmentais; relações sintático–semânticas de causa,
conseqüência, meio, finalidade, condicionalidade ou hipótese, etc; relações responsáveis pela
coesão do texto: referência, substituição, elipse, coesão textual, conjunção, conexão.
Koch (1999, p.32) destaca as relações discursivas que se estabelecem entre enunciado
e enunciação, denominadas de ideológicas ou argumentativas, que, segundo ela:
englobam todos os aspectos relacionados à intencionalidade do falante, à sua atitude perante o discurso que produz, aos pressupostos, ao jogo das imagens recíprocas que fazem os interlocutores um do outro e do tema tratado, enfim, todos os fatores implícitos que deixam, no texto, marcas lingüísticas relativas ao modo como é produzido e que constituem as diversas modalidades da enunciação.
Afirmando que as relações que se estabelecem entre o enunciado e a enunciação são
de caráter pragmático, “paralógico” ou ideológico (em sentido amplo), a autora conclui que a
maioria das relações existentes entre os enunciados de um texto só podem ser detectados por
meio de uma gramática textual ou macrossintaxe do discurso.
Koch (1999) ressalta, ainda, a diversidade dos papéis que, segundo ela, se constituem
no e pelo discurso. De acordo com a autora, trata-se de um tipo especial de relações textuais
que vão dar origem às categorias lingüísticas de locutor / alocutário e enunciador (ou
26
destinatário). Por esse tipo de relações, segundo ela, várias vozes se fazem ouvir no discurso,
constituindo-se o que Ducrot chama de polifonia.
Entre as relações estabelecidas entre o texto e a enunciação, Koch (1999, p.36) destaca
as seguintes:
1 - as pressuposições; 2- as marcas das intenções, explícitas ou veladas; 3- os modalizadores, que revelam a atitude do falante perante o enunciado que produz (através de certos advérbios, dos tempos e modos verbais, ou expressões do tipo : “ é claro, “é provável”, “ é certo”, etc.); 4- os operadores argumentativos, responsáveis pelo encadeamento dos enunciados, estruturando-os em textos e determinando a sua orientação discursiva; 5- as imagens recíprocas que se estabelecem entre interlocutores e as máscaras, por eles assumidas no jogo de representações ou, como diz Carlos Vogt, “nas pequenas cenas dramáticas que constituem os atos de fala.
De acordo com Koch (1999, p. 36), “todos esses elementos citados inscrevem-se no
discurso através de marcas lingüísticas, fazendo com que ele se apresente como um
verdadeiro retrato de sua enunciação”.
Alguns aspectos abordados por Koch (1999) interessam bastante para o
desenvolvimento da proposta desta dis sertação, ou seja, para o desenvolvimento de uma teoria
que explique os mecanismos lingüísticos da argumentação e que pretenda demonstrar a
condição de imprescindibilidade da criação e articulação de instâncias enunciativas no
processo de argumentação. Não se trata, aqui, de apontar, no texto, as marcas lingüísticas da
argumentação, mas de mostrar quais mecanismos lingüísticos são acionados pelo locutor em
sua interatividade discursiva com o alocutário pela enunciação tipicamente argumentativa, no
sentido estrito desta. Muitas dessas marcas lingüísticas da argumentação de Koch (1999)
podem ser explicadas em termos de criação e integração de Instâncias de Enunciação e de
outros Espaços Referenciais, condição primeira para a produção / recepção de textos
argumentativos. Assim, durante a análise do corpus, constituído por um texto essencialmente
argumentativo do gênero sentença judicial, algumas das marcas lingüísticas da argumentação
27
de Koch (1999) poderão / deverão ser, direta ou indiretamente, analisadas, mas sempre como
parte da estratégia de articulação de Espaços Referenciais criados ou delimitados por
Instâncias de Enunciação. Isso significa dizer que essas marcas lingüísticas de Koch (1999)
serão tratadas aqui não pelo seu valor como produto, mas como parte dependente de um
mecanismo lingüístico de processamento discursivo.
2.1.4 Conclusão: o conceito de argumentação adotado
A inclusão, neste trabalho, de um capítulo sobre a Teoria da Argumentação foi
motivada pela necessidade e o desejo de fazer uma breve apresentação do posicionamento de
alguns autores a respeito do processo de argumentar. O objetivo era buscar, nesses autores,
pressupostos que pudessem ser adotados como fundamento para a defesa de uma nova
concepção de argumentação. Pode-se dizer que, de certo modo, esse propósito foi alcançado.
Alguns aspectos abordados por Koch (1999) interessam bastante para o desenvolvimento
deste trabalho: a concepção de língua como atividade de interação social; a concepção de que
o ato lingüístico fundamental é o ato de argumentar e de que a argumentação é uma atividade
estruturante de todo e qualquer discurso; o entendimento de que a enunciação pode ser
percebida no enunciado por uma série de marcas lingüísticas e que é por meio delas que se
poderá chegar à macrossintaxe do discurso; o pressuposto de que é no processo de enunciação
que o enunciado passa a ter sentido, que incorpora o processo de significação e mostra a
direção para a qual o enunciado aponta, o seu futuro discursivo.
Além disso, o conceito de argumentação de Koch (1999), segundo o qual argumentar é
orientar o discurso no sentido de determinadas conclusões e o de Perelman (1970), segundo o
qual a argumentação visa a provocar ou incrementar a adesão dos espíritos às teses
28
apresentadas ao seu assentimento, são perfeitamente compatíveis com o conceito de
argumentação proposto neste trabalho: o de que argumentar é fundamentalmente articular
falas e outros Espaços Referenciais constituídos, ou delimitados, por Instâncias de
Enunciação. Na verdade, mais que um conceito, esse entendimento constitui a hipótese deste
trabalho.
Conceituada dessa forma a argumentação, torna-se necessário explicitar a noção de
argumentatividade. Neste trabalho, a argumentatividade é considerada como uma
propriedade, ora mais ora menos detectável, de determinados itens ou expressões lexicais,
assim como de determinados tipos de operações léxico-semântico-gramaticais que, na e pela
enunciação, indiciam a criação e / ou promovem a articulação de espaços referenciais e
orientam o processo de referenciação, dando pistas para a apreensão da intenção do falante.
Consideradas sob esse ponto de vista, as marcas lingüísticas da argumentação de Koch
(1999), uma vez que indiciem não só a criação mas também a articulação de espaços
referenciais, promovendo, assim, o processo de referenciação do discurso, interessam bastante
para este trabalho. Esclarece-se, também, que as noções de argumentatividade e de força
argumentativa serão usadas como sinônimas neste trabalho.
No capítulo 3, a seguir, buscar-se-á a construção de um modelo de processamento
discursivo a ser usado na análise do corpus em busca da comprovação da hipótese deste
trabalho.
29
3 UM MODELO DE PROCESSAMENTO DISCURSIVO
3.1 Por uma Concepção de Linguagem
Conforme se antecipou, buscar-se-á, neste capítulo, um modelo de processamento
discursivo que possa ser usado na comprovação da hipótese de que argumentar é,
fundamentalmente, articular falas e outros espaços discursivos criados ou delimitados por
Instâncias de Enunciação. A construção desse modelo exige que se defina inicialmente a
concepção de linguagem a ser adotada. Assim, tendo em vista que a aceitação dessa hipótese
implica admitir a existência de mais de uma voz e de mais de um espaço discursivo no
processamento do discurso, é importante que se adote uma concepção de linguagem que
englobe operações como as responsáveis pela criação e articulação de Instâncias de
Enunciação. Dessa forma, o termo linguagem não deve ser entendido, neste trabalho, como
produto, mas como processo, como discurso, como enunciação, como processamento
discursivo, como gramática no sentido amplo, enfim, como atividade de interação social.
Nesse caso, os termos texto e enunciado, quando usados neste trabalho, devem ser entendidos
como o resultado, como o produto da atividade discursiva, um produto que, evidentemente, é
também um dos fatores constituintes do processamento discursivo. Esse esclarecimento se faz
necessário pelo fato de que o termo texto é empregado pelos lingüistas com diversas acepções
diferentes, aparecendo ora como produto do discurso ora como a própria atividade discursiva.
Trabalhar com essa concepção de linguagem é assumir com Bronckart (1999, p.34)
que
a linguagem humana se apresenta, inicialmente, como uma produção interativa associada às atividades sociais, sendo ela o instrumento pelo qual os interactantes, intencionalmente, emitem pretensões à validade relativas às propriedades do meio em que essa atividade se desenvolve. A linguagem é, portanto, primariamente, uma
30
característica da atividade social humana, cuja função maior é de ordem comunicativa ou pragmática.
É adotar o pensamento de Bakhtin (1995), para o qual a linguagem deve ser vista
como processo de interação verbal e deve ser estudada não na imobilidade, mas na atividade
entre sujeitos, em ligação com as condições concretas em que essa atividade se realiza. É,
também, argumentar com base em Koch (1999, p.21), que sustenta ser o discurso, em se
tratando de linguagem verbal, uma “atividade comunicativa de um locutor, numa situação de
comunicação determinada, englobando não só o conjunto de enunciados por ele produzidos
em tal situação – ou os seus e os de seu interlocutor, no caso do diálogo – como também o
evento de sua enunciação”. É, ainda, seguir a orientação de Possenti (1993, p.49), que vê o
discurso como “colocação em funcionamento de recursos expressivos de uma língua para um
certo fim, através de uma atividade que ocorre sempre em uma instância concreta entre
interlocutores”. É, mais ainda, caminhar com Nascimento (1993), segundo o qual a língua é
atividade, é forma de ação, que resulta em um texto, onde se manifesta em toda a sua
amplitude. Enfim, trabalhar com essa concepção de linguagem é poder afirmar que não se
separam as noções de discurso e enunciação, já que não há discurso sem enunciação, assim
como não há enunciação sem discurso.
Isso leva à necessidade de se explicitar o que se entende por enunciação. Dubois et al.
(1998) vêem a enunciação como uma ação, uma atividade, um ato individual de utilização da
língua, com a conseqüente produção de um enunciado. Dessa forma, o enunciado é entendido
por esses lingüistas como produto do ato enunciativo, como resultado da atividade
interlocutiva, concepção que se adota neste trabalho, conforme já se antecipou. Para
Maingueneau (1998, p.52), “ela [a enunciação] opõe-se, assim, ao enunciado como o ato
distingue-se de seu produto”. Benveniste, em “O aparelho formal da enunciação”
(1970/1989), afirma que o emprego da língua diz respeito a um mecanismo total e constante
que afeta a língua inteira. Esse mecanismo seria, no caso, a enunciação, que, segundo
31
Benveniste (1970/1989), consiste em colocar a língua em funcionamento por um ato
individual de sua realização. Ducrot (1987) vê a enunciação como um acontecimento do qual
surge um enunciado.
Leva à necessidade também de adotar uma concepção discursiva de polifonia. Para
Bakhtin (1998, 2000), a palavra não é monológica, uma vez que o dialogismo está presente na
concepção de linguagem e é uma condição constitutiva de sentido e uma propriedade
intrínseca do discurso. Para ele, todo discurso é dialógico, pois encontra em seu trajeto o
discurso de outrem e juntos participam de uma interação viva e intensa. Segundo Bakhtin
(1998), todo discurso é influenciado por discursos alheios, já que concentra uma pluralidade
de vozes multidiscursivas. Afirmando que, em se tratando de linguagem, ninguém pode ser
considerado um Adão bíblico, dono do primeiro discurso, de um discurso que não traga em si
o discurso de outrem, Bakhtin (1998) afirma que, na construção do discurso, o locutor não só
leva em conta um discurso anterior, um já-dito, mas também orienta o alocutário para um
discurso resposta que ainda vai ser proferido. Para Bakhtin (1998), o diálogo é apenas uma
das formas da manifestação da dialogicidade do discurso. Em Bakhtin, polifonia corresponde
a dialogicidade, a interação discursiva, a interdiscurso, ao “eu” coletivo da 3ª fase da Análise
do Discurso.
Embora bastante interessante, não é essa a concepção de polifonia adotada neste
trabalho. Aqui, assume-se, com Lopes (1998), que a polifonia não está restrita à quantidade de
vozes no texto. Para ela, a polifonia discursiva se caracteriza pela construção e articulação de
Instâncias Enunciativas no texto. Esse entendimento permite a análise da polifonia como
processo, não como produto. O processo de construção e articulação de Instâncias
Enunciativas será explicitado adiante.
32
Definida, assim, a concepção de linguagem com que se trabalhará, torna-se necessário
construir um modelo de processamento discursivo que seja capaz de refletir fielmente essa
concepção e suas implicações no processo de argumentar.
A construção desse modelo só será possível mediante uma interface entre algumas das
várias teorias lingüísticas que estudam a linguagem como ação, como processo, como
atividade de interação discursiva. É o que se tentará a seguir, ao se apresentar, inicialmente,
uma síntese da Teoria Modular.
3.2 Uma Teoria Modular
Qualquer estudo que tenha como fundamento a concepção de língua como atividade,
como ação verbal, há de considerar a indiscutível contribuição trazida pela Teoria Modular à
tarefa de explicar o funcionamento de uma língua. A inclusão dessa teoria no quadro teórico
que fundamenta esta pesquisa justifica-se pelo fato de que elaborar uma teoria sobre os
mecanismos sintático-discursivos da argumentação, proposta deste trabalho, significa
trabalhar com a criação e articulação de Instâncias de Enunciação e de outros Espaços
referenciais (Mentais), tarefa praticamente impossível se não se levar em conta que a
atividade discursiva se dá pelas operações de discursivização nos módulos discursivo,
semântico e gramatical mediados pelo léxico. Esse entendimento, embora não se possa deixar
de ressaltar a importância de Morris e Roulet no desenvolvimento de uma teoria modular da
língua, fundamenta-se em Castilho (1998), que apresenta uma versão definitiva (pelo menos
para este trabalho) dessa teoria. É essa versão que será adotada como ponto de partida para a
construção do modelo de processamento discursivo com que se passará a trabalhar.
33
Reelaborando a Teoria Modular apresentada por Morris, Castilho (1998) apresenta sua
versão da teoria modular da linguagem, com base na qual se processou o trabalho de análise
da língua falada desenvolvido no Projeto Gramática do Português Falado. Na elaboração de
sua Teoria Modular, Castilho (1998) considera os seguintes princípios, extraídos de
Nascimento (1993):
1 - A língua é uma atividade, uma forma de ação que se manifesta em toda a sua amplitude no texto. 2- Para pôr em ação a língua, o falante/ouvinte opera sobre os módulos discursivo, semântico e gramatical, mediados pelo léxico. 3- No coração da capacidade lingüística está alojado um programa computacional, pré-verbal, alimentado pela continuada análise da situação discursiva em que o ouvinte/falante está operando. (CASTILHO, 199, p.37)
Para Castilho (1998), o falante adquire recursos lingüísticos que se dispõem em
módulos: o discursivo, o semântico e o gramatical. Esses três módulos são mediados pelo
léxico. É pela ativação desses recursos lingüísticos que o falante produz textos. É importante
esclarecer que, em Castilho (1998), o texto é entendido como produto de uma interação
discursiva, qualquer que seja a forma como se dá essa interação: pela fala ou pela escrita.
Segundo Castilho (1998, p.9-10),
o módulo discursivo abriga as negociações intersubjetivas que se encadeiam no momento da enunciação: é a constituição do locutor e do interlocutor, a seleção e a elaboração de um tópico conversacional e as rotinas da conversação. Da conversação resultam os textos. O módulo semântico se define como diferentes processos de criação de sentidos lexicais (denotação, conotação, sinonímia, antonímia, hiperonímia, etc.) dos significados componenciais (referenciação, predicação, dêixis, foricidade, etc.). O módulo gramatical se ocupa das classes, das relações que podemos estabelecer entre elas e das funções que as classes desempenham no enunciado. Esse módulo compreende a Fonologia, a Morfologia e a Sintaxe. O fonema, o morfema, o sintagma e a sentença, como a unidade de cada um desses subsistemas, dispõem cada um de propriedades descritivas.
A interligação desses três módulos é feita pelo léxico, “conjunto de itens lexicais
dotados de propriedades semânticas e gramaticais alternadas ou confirmadas no momento da
interação discursiva”, no dizer de Castilho (1998, p.37). Esses itens lexicais, armazenados na
34
memória e acionados na atividade discursiva, especificam regras, funções e relações nos três
módulos. Conforme observa Castilho (1998), o léxico está sujeito a transformações ao longo
do tempo, tanto no aspecto semântico quanto no aspecto gramatical, uma vez que a língua é
dinâmica e está em constante mudança pela atividade discursiva. Para Castilho (1998, p.38),
esses três módulos funcionam como “um programa computacional, pré-verbal, alimentado por
uma continuada análise da situação discursiva em que o falante / ouvinte está operando”.
Pelas operações de discursivização, evidenciadas através de decisões sobre o módulo
lexical, são realizadas operações nos módulos semântico e gramatical, conforme mostra a
figura a seguir:
FIGURA 1 - Processamento discursivo segundo a Teoria Modular
Pela figura, percebe-se que o texto resulta das operações de discursivização,
semantização, lexicalização e gramaticalização, que interligam o sistema lexical e os três
módulos que compõem o sistema computacional numa atividade discursiva.
Numa síntese assumidamente simplista do que se disse acima, pode-se dizer que a
Teoria Modular de Castilho (1998) consiste no seguinte: ao enunciar, ou seja, ao abrir a boca
para realizar um ato de fala, o locutor realiza obrigatoriamente operações de discursivização
(operações no módulo discursivo), uma vez que não se separam as noções de enunciação e
35
discurso, conforme se demonstrou anteriormente. Para realizar as operações de
discursivização, ou seja, de fala, o locutor tem de utilizar palavras, (o léxico), que são
buscadas entre aquelas que estão arquivadas, armazenadas, em sua mente, como em um
programa computacional, organizado de acordo com o seu conhecimento prévio, com sua
experiência de vida. O locutor realiza, assim, operações de lexicalização. Acontece que essas
palavras não podem ser usadas aleatoriamente, não podem ser jogadas ao vento, não podem
ser usadas sem nada que as interligue, que as teça, enfim, que as articule para formar um todo.
É necessário, então, que sejam realizadas as operações de gramaticalização (operações no
módulo gramatical). Afinal, as palavras sozinhas nada significam. Elas não portam o sentido,
que tem de ser construído na e pela interação discursiva. Isso só é possível através das
operações de semantização (operações no módulo semântico). Assim, a referenciação de um
texto se dá, obrigatoriamente, por todas essas operações de discursivização, que ocorrem de
forma simultânea.
Conforme se demonstrará adiante, as operações de discursivização, que envolvem os
três módulos da língua mediados pelo léxico, são as mesmas pelas quais se criam e se
articulam instâncias de enunciação e outros espaços referenciais criados no interior de
instâncias de enunciação. Daí, a importância da Teoria Modular para o desenvolvimento deste
trabalho.
Mas, afinal, em que consistem as operações de semantização, responsáveis pela
referenciação do texto? Como a mente humana constrói o significado? Qual sua importância
no processamento de textos argumentativos escritos? As respostas a essas perguntas serão
buscadas a seguir, quando se tentará a interface entre a Teoria Modular de Castilho (1998) e
outras teorias lingüísticas que estudam a linguagem na atividade de interação discursiva,
como se afirmou no início deste capítulo. Assim, no item a seguir, serão desenvolvidos alguns
36
comentários através dos quais se buscará explicar o que vem a ser Instância de Enunciação e
como se dá a sua construção no processamento do discurso.
3.3 A Noção de Instância de Enunciação
Como já se frisou, adota-se nesta pesquisa a concepção de que a linguagem é uma
atividade sócio-cognitiva essencial à interação humana. É na e pela linguagem que os seres
humanos buscam alcançar objetivos. É na e pela linguagem que eles constroem a realidade e a
si mesmos. Para isso é necessário que se pratiquem atos de linguagem, que se ponha em
funcionamento a língua, que se transforme a língua em discurso, ou seja, que se instaure,
através de operações de discursivização, uma instância de enunciação básica que abrigará as
demais instâncias articuladas em seu interior. Nessa perspectiva, a noção de Instância
Enunciativa postulada por Benveniste (1988/1989) será essencial à construção do quadro
teórico.
Dá-se o nome de Instância Enunciativa a um modelo de organização dialógica que
especifica o processo de construção de relações entre enunciador(es) e enunciatário(s),
situados em um determinado tempo e espaço discursivos como fatores constituintes da
referência discursiva. Acredita-se que esse modelo seja parte essencial da competência
lingüística dos falantes de qualquer língua e que, portanto, deve ser levado em conta em
qualquer descrição de linguagem, enunciação ou discurso.
Esse modelo a que se refere Benveniste é o que ele chama de Aparelho Formal da
Enunciação. Esse aparelho é representado na figura de um triângulo como apresentado
abaixo, em que a relação Enunciador (E) / Enunciatário (Ea) se institui num Tempo (T) e num
Espaço (L) discursivos, em que se constrói a Referência (R):
37
FIGURA 2 - Representação Gráfica de Instância de Enunciação
Essa representação possibilita visualizar os fatores necessariamente envolvidos na
instanciação do Aparelho formal da Enunciação, na implementação do processamento
discursivo: um locutor (L), que se institui como enunciador (E) na e pela atividade lingüística;
um alocutário (A), co- instituído na e pela atividade lingüística como enunciatário (Ea); uma
referência (R), que se constitui a partir da necessidade do locutor e do alocutário de falarem
sobre um determinado assunto, ou seja, de co-referirem no e pelo discurso, e, finalmente, a
criação e articulação de outras “entidades lingüísticas” para a especificação e/ou modalização
de categorias envolvidas no processamento de textos (tempo, lugar, modalidade, etc.).
É importante notar que a relação eu/tu (E/Ea) é uma condição necessária para que se
dê a implementação do processamento discursivo, pois ela constitui o sistema de referências
pessoais, necessário à instituição e articulação de Instâncias de Enunciação. É importante
notar, também, que esse sistema de referências indicia-se no processamento discursivo através
da implementação de certas estratégias responsáveis pela construção do enunciador (E), do
enunciatário (Ea) e da inter-relação entre eles.
38
3.3.1 As pessoas da enunciação
Segundo Benveniste (1988), é pela linguagem que o homem se constitui como sujeito.
A essa capacidade do locutor para se propor como sujeito através da linguagem Benveniste
(1988) chama de subjetividade. Essa subjetividade se manifesta na materialidade do texto
pelas marcas “eu” e “tu” ou através de elementos dêiticos, como morfemas verbais,
demonstrativos, advérbios, expressões que remetem à idéia de tempo, lugar, objeto
mostrado,etc.
Em “A natureza dos pronomes” (1988), Benveniste apresenta os pronomes como um
fato de linguagem. Segundo ele, os pronomes não constituem uma classe unitária, mas
diferentes espécies, segundo o modo de linguagem do qual são os signos. Uns pertencem à
sintaxe da língua; outros são característicos do que ele chama de instâncias do discurso.
Em suas considerações sobre os pronomes, Benveniste (1988), ao abordar os
pronomes pessoais, afirma que a noção de pessoa é própria apenas de eu e tu. Isso deixa fora
o ele. Afirma que as instâncias de emprego de eu, ao contrário do que ocorre com um nome,
não constituem uma classe de referência, por não haver um “objeto” definível como eu ao
qual se possam remeter essas instâncias. Cada eu tem sua referência própria e corresponde, a
cada vez, a um ser único, proposto como tal no processamento discursivo.
Para Benveniste (1988), determinados elementos dos enunciados de discurso, apesar
de sua natureza individual, fogem à condição de pessoa, já que remetem não a eles mesmos
mas a uma situação objetiva. É o domínio do que se costuma chamar de “terceira pessoa”.
Para Benveniste (1998), a terceira pessoa representa o membro não marcado da correlação de
pessoa. Benveniste chama essa terceira pessoa de não-pessoa, que, segundo ele, é totalmente
distinta, pela sua natureza e pela sua função, de eu e tu. O autor afirma que
39
o que caracteriza a terceira pessoa é a propriedade de se combinar com qualquer referência de objeto; de não ser jamais reflexiva de instância de discurso; de comportar um número às vezes bastante grande de variantes pronominais ou demonstrativos; e de não ser compatível com os paradigmas dos termos referenciais como aqui, agora, etc. (BENVENISTE, 1988, p.283).
3.3.2 As noções de tempo / espaço
Outra série de termos apontados por Benveniste (1988) como importantes na
enunciação é constituída pelo paradigma inteiro das formas temporais, que se determinam em
relação a EGO, centro da enunciação. Essas formas temporais incluem os tempos verbais, que
têm no presente a sua forma axial, que coincide com o presente da enunciação. Segundo
Benveniste (1988), a temporalidade é produzida na e pela enunciação, da enunciação instaura-
se a categoria do presente, e da categoria do presente nasce a categoria do tempo. O presente,
então, seria propriamente a origem do tempo.
Chamando a atenção para o fato de que o sistema temporal de uma língua não
reproduz a natureza do tempo objetivo, Benveniste (1988) destaca duas noções distintas de
tempo: o tempo físico do mundo, contínuo uniforme, infinito, linear, segmentável à vontade,
com o seu correlato tempo psíquico do homem, de duração variável, medido pelo grau de
emoções e pelo ritmo de vida de cada indivíduo, e o tempo crônico, o tempo dos
acontecimentos, o qual engloba nossa própria vida enquanto seqüência de acontecimentos.
Segundo Benveniste (1988), o tempo crônico só existe por ser marcado
lingüísticamente por pontos de referênc ia aos quais ligamos nosso passado/futuro. Esses
pontos de referência são acontecimentos a partir dos quais cada um de nós pode se guiar no
tempo em duas direções opostas: do passado ao presente ou do presente ao passado.
Benveniste (1988), fazendo uma distinção entre tempo crônico e tempo lingüístico, diz
que o tempo lingüístico está ligado ao exercício da fala e se organiza como função do discurso
40
que, em função dele se organiza. Diz também que o centro gerador e axial do tempo
lingüístico é o presente da instância da fala e que a linguagem não dispõe de nenhuma outra
expressão temporal a não ser o presente. Para Benveniste (1988), a língua tem que ordenar o
tempo a partir de um eixo, e esse é sempre e somente a instância do discurso.
Não há como separar a noção de tempo da de espaço, ambas construídas na e pela
enunciação. Ao agora, tempo presente da enunciação, está atrelado o aqui. Toda e qualquer
enunciação se dá sempre no aqui/agora, espaço da realidade do locutor.
3.3.3 A referência
Alguns lingüistas costumam dividir os vocábulos de uma língua em dois grupos:
palavras plenas e palavras-forma. Para Gonçalves (1987), essa dicotomia, que se baseia
obviamente num fundamento semântico, remonta a Aristóteles e aparece sob várias
denominações entre os lingüistas modernos. Gonçalves (1987, p.27), citando Stephen
Ullmann, diz que “palavras plenas são auto-semânticas, significativas por si próprias.
Palavras-forma são sinsemânticas, significativas apenas quando acompanhadas por outras
palavras”. Palavras plenas seriam, em princípio, os nomes e os verbos; palavras-forma seriam
os artigos, as preposições, as conjunções, os pronomes e os advérbios, e ainda o sistema de
flexões.
Essa distinção está relacionada com os conceitos de significação externa, significação
interna e outros. Com base nesses conceitos, os vocábulos de uma língua fazem parte de dois
grupos distintos: vocábulos lexicais e vocábulos gramaticais. Os lexicais, de significação
externa, são chamados de significativos, nocionais, semantemas. Citando J.G. Herculano de
41
Carvalho, em Teoria da Linguagem, Gonçalves (1987, p.28) aponta como lexicais aqueles que
se referem à
representação lingüística dos objetos que constituem o mundo da realidade, tanto exterior como interior, materiais ou imateriais, reais ou ideais, concretos ou abstratos, objetos considerados em si mesmos e apreendidos quer como substâncias, quer como processos, quer como propriedades e qualidades (inerentes estas às substâncias ou aos processos).
Esses vocábulos seriam os substantivos, os verbos, os adjetivos e os advérbios de
modo. Os gramaticais, desprovidos de significação externa e possuidores de significação
apenas interna, são chamados de relacionais, morfemas, de ligação. Segundo Gonçalves
(1987), estes expressam situações e conceitos puramente lingüísticos, exprimindo as relações
entre as palavras de significação objetiva. Para o autor, com exceção do nome e do verbo,
todas as demais classes são gramaticais. Ele inclui, ainda, na significação interna, as formas
presas designativas de morfemas categóricos ou lexicais. Os morfemas categóricos são,
segundo o autor, os elementos indicativos das flexões de gênero, número, pessoa, tempo e
modo; os lexicais, os afixos normalmente usados no processo de derivação prefixal e de
derivação sufixal. Afirma, ainda, que os verbos auxiliares, por acrescentarem apenas uma
categoria gramatical de tempo, modo ou aspecto, e os verbos de ligação, por exercerem uma
função puramente conectiva na relação sujeito / predicado, fazem parte do sistema de
significação interna da língua.
Entretanto, é preciso que se diga que mesmo as ditas palavras lexicais, que remetem a
referentes situacionais, têm sua referência determinada na e pela enunciação. Tome-se como
exemplo o elemento grifado nas frases abaixo:
(01) Alguns católicos fogem do pecado como o capeta foge da cruz.
42
(02) O menino corria, gritava, xingava o dia inteiro. O capeta não parava um
minuto sequer.
Embora capeta pertença ao quadro das chamadas palavras lexicais, já que, remetendo
a um referente extratextual, pode ser considerada “significativa por si própria”, percebe-se
que o sentido que se deve atribuir a ela em cada frase não é o mesmo. Enquanto que em (01) o
alocutário deve buscar no contexto extratextual a referência da palavra capeta, (diabo,
demônio, pemba, etc.), em (02) essa referência é construída, pela enunciação, no próprio
contexto intratextual, já que remete a menino e funciona como substituto desse referente
textual.
Enfim, o que é mais importante em tudo isso é que se deve ter em mente que a
referência decorre de uma situação de enunciação. A propósito, Benveniste, ao descrever o
Aparelho Formal da Enunciação, assim se manifesta a respeito da referência:
Por fim, na enunciação, a língua se acha empregada para a expressão de uma certa relação com o mundo. A condição dessa mesma mobilização e dessa apropriação da língua é, para o locutor, a necessidade de referir pelo discurso e, para o outro, a possibilidade de co-referir identicamente, no consenso pragmático que faz de cada locutor um co-locutor. A referência é parte integrante da enunciação. (BENVENISTE, 1989, p.84)
Para Martins (2000, p.49),
A referência constitui-se através da estruturação de um discurso, que implica um processo de elocução, construído por “um jogo de formas específicas” que permite dar à referência um valor único, singular, a cada vez que ela é engendrada em uma nova instância de discurso, reconhecida como “um centro de referência interno”. Nessa perspectiva, a referência pode ser considerada em função da dinâmica do discurso, opondo-se, portanto, à visão que a marca como denominação pura de um referente.
Como se vê, a referência é co-construída no/pelo discurso. Ela não está contida, pronta
e acabada, na forma lingüística. Ela não é imanente ao texto. A mente humana recria o real,
43
reelabora a realidade, através de operações de discursivização. Dessa forma, o significado é
co-construído no curso de uma interação.
Ponto fundamental para o desenvolvimento deste trabalho, a referenciação é um tema
obrigatório, a que se voltará quando se apresentar uma síntese do Processo de Referenciação,
a partir de alguns pressupostos defendidos por Oliveira & Nascimento (2002) e de outras
contribuições importantes sobre o assunto.
3.4 A Construção de Instâncias de Enunciação
3.4.1 A situação default e as formas de dizer
Quando alguém enuncia, isto é, quando alguém se apropria da língua e inicia uma
operação de discursivização, institui-se como enunciador e ativa uma instância de enunciação.
Essa instância corresponde a todo o discurso, ou seja, inicia-se com a entrada da fala do
locutor e encerra-se com o fim dessa fala, com o fim do discurso. Fica fácil perceber, então,
que qualquer texto verbal, considerado como produto do processamento discursivo,
independentemente de sua extensão, constitui (é constituído por) uma instância de enunciação
básica, que funciona como plano base para todo o discurso e que aqui será chamada de
Instância de Enunciação Zero, IE0. Essa denominação se justifica pelo fato de essa instância
de enunciação ocorrer sempre no presente, que é considerado o tempo zero da enunciação. A
IE0 corresponde à “voz” do locutor e é construída no e pelo ato de o locutor, constituindo-se
como enunciador, aqui chamado de Enunciador Zero, E0, pegar a palavra e dirigir-se a um
alocutário, constituído como enunciatário, aqui chamado de Enunciatário Zero, Ea0. O
44
tempo/espaço dessa IE0 é sempre o aqui/agora da realidade do locutor/enunciador. A
referência é construída na interação discursiva entre os interlocutores. Isso acontece em
qualquer enunciação, portanto não é possível processar um discurso sem se construir pelo
menos uma instância de enunciação, a Instância de Enunciação Zero.
A construção dessa instância se dá sempre em “default”, entrada súbita da voz do
locutor, que se institui como Enunciador Zero, ao iniciar a enunciação. A situação “default”
é, portanto, uma forma de dizer, noção que será explicada adiante. O exemplo abaixo ilustra o
que se chama de Instância de Enunciação Zero ou plano base e como é instaurada no e pelo
processamento discursivo.
(03) IE0/E0{O novo governo merece crédito.}IE0/Ea0
A IE0{ }IE0, Instância de Enunciação Zero ou plano base, corresponde a toda a fala
do E0 e foi iniciada quando este iniciou a enunciação. A essa forma de iniciar uma instância
enunciativa dá-se o nome de situação “default”, considerada por Magalhães (1998) como
uma forma de dizer, por constituir a forma como a “voz” do locutor se introduz no discurso.
Na situação “default”, a instauração da instância enunciativa não se faz pela ativação de
nenhum item lexical específico, de nenhum elemento dicendi materialmente expresso. O
próprio ato de o locutor assumir a palavra para enunciar já é considerado uma forma de dizer.
É pela situação “default” que se inicia qualquer enunciação.
Importante dizer que, ao pegar a palavra, instituindo-se como E0, o locutor pode
modalizar o seu discurso, pessoalizando ou impessoalizando sua fala, ao indiciar um maior ou
menor envolvimento em relação àquilo que enuncia. Comparem-se os exemplos (04) e (05):
(04) IE0/E0{Acho que o novo governo merece crédito}IE0/E0
45
(05) IE0{O novo governo merece crédito}IE0
Em (04), o locutor está marcadamente presente no texto pela ativação do verbo achar
na 1ª pessoa. Em (05), a presença do locutor não se dá de forma tão ostensiva, embora se
perceba ser dele a responsabilidade pelo que se assevera no texto.
Como se disse anteriormente, a IE0 funciona como plano base. Isso significa que a
IE0 serve de base para a instauração de outras Instâncias de Enunciação. De fato, a criação e
articulação de Instâncias de Enunciação é condição necessária para que se dê o processamento
discursivo. Assim, na fala de E0, ou seja, na Instância de Enunciação Zero, podem ser criadas
outras Instâncias de Enunciação, que correspondem às diversas vozes que se articulam entre si
e se integram à Instância de Enunciação Zero, tecendo-se, dessa forma, a polifonia discursiva,
em razão da qual se processa a referenciação. É o que acontece no exemplo (06), abaixo:
(06) IE0/E0{Os governistas IE1/E1[dizem que Lula apresenta um ótimo
desempenho;]IE1/E1 a oposição IE2/E2[afirma que o desempenho de Lula é
péssimo.]IE2/E2}IE0/E0
Costuma-se representar o processo de criação e articulação de instâncias enunciativas
e a hierarquização de planos enunciativos no texto por meio de gráficos concebidos com base
na abordagem feita por Benveniste (1988/1989). Dessa forma, o texto acima pode ser
representado pela seguinte figura:
46
FIGURA 3 - Texto 06 - A Criação e Articulação de Instâncias Enunciativas
Observe-se que, no interior da IE0, foram criadas duas outras instâncias de
enunciação: a IE1, correspondente à voz dos governistas, e a IE2, correspondente à voz da
oposição. Como se pode ver, as duas apresentam afirmações contraditórias, o que poderia
tornar complicada a interpretação do texto se, na referenciação, se levasse em consideração
somente cada uma dessas duas instâncias isoladamente. Acontece que tais instâncias, ao ser
criadas, integram-se instantaneamente à IE0, formando um todo, um espaço único. É nesse
espaço que deve ser referenciado o texto. A referenciação de um texto como um todo se dá
sempre na Instância de Enunciação Zero.
Mas como identificar, na materialidade do texto, as vozes que o compõem? Como
reconhecer que uma nova instância enunciativa foi criada? Isso só é possível se se
compreender o que aqui se considera como formas de dizer. Deve-se ter em mente que toda
Instância de Enunciação é introduzida por uma forma de dizer. A situação “default”é uma
47
delas e, como já se demonstrou, é a forma como se dá a entrada da voz do locutor ao iniciar o
processamento discursivo. No caso, porém, de Instâncias de Enunciação criadas no interior da
Instância de Enunciação Zero, outras formas de dizer são ativadas. Além da situação
“default”, Magalhães (1998) relaciona como formas de dizer os seguintes recursos
discursivos:
a) verbos dicendi;
b) alguns verbos não-dicendi;
c) nomes deverbais de verbos dicendi;
d) “termos de elocução”
e) recursos da escrita (parênteses, aspas e travessão).1
Apresentam-se, a seguir, alguns exemplos de instâncias enunciativas criadas a partir
dessas formas de dizer. Na análise que se fará das Instâncias de Enunciação, a IE0 será
sempre apresentada entre chaves de acordo com a seguinte representação: IE0{...}IE0. Pode
ser também que, em vez de se indicar a Instância de Enunciação, seja indicado o enunciador a
quem se atribui a instância enunciativa. Nesse caso, a representação será E0{...}E0, em que
E0 corresponde ao Enunciador Zero, responsável pela Instância de Enunciação Zero.
Quaisquer outras instâncias enunciativas, que só poderão ocorrer no interior da IE0, serão
indicadas entre colchetes, de acordo com estas representações: IE1[...]IE1, IE2[...]IE2,
IE3[...]IE3, etc. Também nesse caso, pode ser que se indiquem os enunciadores: E1[...]E1,
E2[...]E2, E3[...]E3, em vez de se indicarem as respectivas instâncias enunciativas.
1 Neste trabalho, não estão sendo considerados como construtores de instâncias de enunciação os parênteses, as aspas e o travessão. Na verdade, esses recursos gráficos são apenas indiciadores de instauração de instâncias
de enunciação. A elocução que vem entre aspas, entre parênteses ou indiciada por travessão é sempre introduzida por um item lexical dicendi, quase sempre explícito, embora possa vir, às vezes, implícito na
situação default. Esta, como diz a própria Magalhães (1998, p.121), pode ocorrer no plano base ou em planos subalternos. Por esse motivo, embora se adotem neste trabalho os estudos de Magalhães (1998) sobre o
assunto, não se considerarão aqui tais recursos como formas de dizer.
48
3.4.2 Instância de Enunciação criada por verbo dicendi
Assume-se com Magalhães (1998) que dicendi é todo verbo que, diretamente,
referencia uma elocução. Nesse caso, verbos como afirmar, citar, comentar, explicar, expor,
pronunciar, falar, nomear, chamar, denominar, designar, determinar, advertir, fixar, postular,
notificar, avisar, aventar, murmurar, sussurrar, resmungar e outros com sentido equivalente
são tão dicendi quanto o verbo dizer. Observe-se o exemplo abaixo:
(07) IE0{IE1[“Dirceu fica no ministério”, disse Lula]IE1}IE0
Nesse texto, foi criada, no interior da IE0, a instância de enunciação, IE1, pela
ativação do item lexical disse, que é um verbo dicendi por excelência. Ao ser criada, essa
instância enunciativa integrou-se simultaneamente à IE0.
3.4.3 Instância de enunciação criada por verbo não-dicendi
Alguns verbos, embora não sejam de elocução, são utilizados como introdutores de
discurso, já que podem expressar um ato ou um comportamento do falante simultaneamente
ao ato de falar. Esses verbos são chamados de não-elocutários. Segundo Fiorin (1996, p.80),
pertencem a esse tipo os verbos que expressam, pela fala, uma ação que, fisicamente, é
realizada com o uso de algum tipo de arma ou instrumento. São exemplos os verbos atacar,
ferir, agredir, machucar, etc, que instrumentalizam o dictum, no dizer do autor. Veja-se um
exemplo.
49
(08) IE0{“O tempo todo, os torcedores IE1[agrediam o árbitro: ‘Ladrão! Vagabundo!
Safado!’]IE1}IE0
Nesse exemplo, o verbo agrediam cria, no interior da Instância de Enunciação Zero,
IE0, uma nova Instância de Enunciação, a IE1, que referencia a voz dos torcedores. Ao ser
criada, essa Instância de Enunciação integra-se, automaticamente, à IE0.
Além desses verbos, Fiorin (1996) aponta outros, como inclinar-se, debruçar-se,
aproximar-se, cochichar, sussurrar, aplaudir, acenar, etc.,. São os verbos circunstanciais,
que descrevem uma atitude do falante simultânea ao ato de fala realizado por ele. O
enunciado (09), pode ser apontado como exemplo:
(09) IE0{Ao final do espetáculo, o público IE1[aplaudia entusiasmado:
‘Bravo!’]IE1}IE0.
Nesse exemplo, uma nova Instância de Enunciação, a IE1, que referencia a voz do
público, é criada pelo verbo aplaudir no interior da Instância de Enunciação Zero, IE0. Ao ser
criada, a IE1 integra-se simultaneamente à IE0.
3.4.4 Instância de Enunciação criada por nome deverbal 2 correlato de verbo dicendi
Aqui são considerados como dicendi nomes como os seguintes: conversa, declaração,
diálogo, sussurro, escritor, escrito, escrita, promessa, desabafo, confissão, acusação,
afirmação, etc., que derivam dos verbos correspondentes e funcionam como criadores de
2 A noção de deverbal com que trabalha Magalhães não é a mesma defendida pela Gramática Tradicional, para a qual deverbais são os substantivos abstratos derivados de verbos por derivação regressiva.
50
Instâncias de Enunciação. Nos exemplos abaixo, as palavras em negrito, derivadas de verbos
dicendi, criam, no interior da Instância de Enunciação Zero, outras Instâncias de Enunciação,
que a ela se integram simultaneamente.
(10) IE0{“As IE1[declarações do ministro de Minas e Energia]IE1 mostram isto,
sem dúvida”.}IE0
(11) IE0{Palocci IE1[convocou Leão e Rachid para uma IE2[conversa em seu
gabinete IE2]IE1}IE0
3.4.5 Instância de Enunciação criada por termo de elocução
Diferentemente dos nomes deverbais, os termos de elocução, geralmente, constituídos
por substantivos, formalizam uma elocução, mas não são derivados de verbos. Nomes como
tese, lei, cláusula, lição, texto, palavra, plebiscito, lei, concepção, clamor, autor, e outros
nomes análogos atuam como formas de dizer. Nesse mesmo grupo, incluem-se também as
“expressões de elocução” (segundo, de acordo com, em relação a, etc.) e os “sintagmas
especiais de elocução” (virulência verbal, contestação discursiva, costura de alianças, etc),
que no discurso evidenc iam a ativação de uma nova Instância de Enunciação.
Observem-se os exemplos abaixo:
(12) IE0{IE1[“Segundo este mesmo IE2[autor]IE2, as unidades complementares ou
as relações de redundância são as catálises]IE1, representadas no IE3[texto de Sérgio
Milliet]IE3 por IE4[argumentos que corroboram a IE5[tese defendida pelo
crítico”.]IE5]IE4}IE0 (GUIMARÃES,1992, p.24)
51
(13) IE0{“A IE1[palavra usada no Planalto é ‘parabéns’...”]IE1}IE0.
A criação de Instâncias de Enunciação pela ativação de termos de elocução é uma
constante nos textos argumentativos. Isso ficará ainda mais evidente no capítulo em que se
fará a análise do corpus.
3.5 Instâncias de Enunciação como Espaços Referenciais Básicos no Processamento da Referenciação
Considerar Instâncias de Enunciação como Espaços Referenciais exige que se
explicite o que se entende aqui como referenciação. Para tanto, retoma-se o conceito de
Instância de Enunciação: modelo de organização dialógica que especifica o processo de
construção de relações entre enunciador(es) e enunciatário(s), situados em um determinado
tempo e espaço discursivos como fatores constituintes da referência discursiva. Assim, é
importante ficar atento ao seguinte: na perspectiva teórico-metodológica adotada neste
trabalho, quando se fala de Instância de Enunciação a primeira imagem a ser construída pela
mente, na perspectiva do produto, tem de ser a do texto como um todo. Considerando-se, por
exemplo, um livro como um texto, a totalidade desse texto corresponderá à atualização de
uma única Ins tância de Enunciação. Da mesma forma, uma simples placa de trânsito, como,
por exemplo, uma com o dizer PARE, também deve ser considerada como a concreção de
uma única Instância de Enunciação. O que se quer dizer é que todo texto, não importando sua
extensão, corresponde a uma Instância de Enunciação.
De acordo com o conceito de Instância de Enunciação, o locutor, ao enunciar,
constitui-se como enunciador e dirige-se a um alocutário, constituído simultaneamente como
52
enunciatário, para co-referirem sobre um assunto. Assumir tal conceito implica assumir
também que o texto, embora referenciado como sendo a voz do locutor, que se institui como
enunciador E0 na Instância de Enunciação Zero e que se responsabiliza ou que é tido como
responsável pela sua produção, não resulta da ação desse locutor apenas. Sem dúvida, o
alocutário é parte ativa do processo, e nada há de estranho nisso. No ato de enunciar, o locutor
produz um determinado enunciado sobre uma determinada referência. Cabe ao enunciatário
exercer seu papel de interactante, atribuindo ao enunciado a significação pretendida pelo
enunciador. O alocutário, como enunciatário, trabalha virtualmente com o autor na construção
do texto/sentido, na medida em que o leitor modelo trabalha com o produtor do texto, na
leitura. Assim, o texto nunca é resultante apenas da ação do locutor, uma vez que conta
sempre com a participação do alocutário, sem a qual perderia seu estatuto de texto. Isso
significa que locutor e alocutário devem construir, na e pela enunciação, o significado do
texto. Em outras palavras, devem “trabalhar” conjuntamente na referenciação do texto.
É mais ou menos esse o pensamento expresso por Eco (1986, p.39), quando afirma
que “O texto é um produto cujo destino interpretativo deve fazer parte do próprio mecanismo
gerativo. Gerar um texto significa executar uma estratégia de que fazem parte as previsões dos
movimentos dos outros”.
Enfim, o que se está querendo demonstrar é que um texto corresponde, em sua
totalidade, a uma Instância de Enunciação com todos os elementos constituintes de
(constituídos por) uma Instância de Enunciação, inclusive a referência. Por isso, no processo
de referenciação tem de se levar em conta essa Instância de Enunciação correspondente ao
texto como um todo.
O fato de o texto, em sua totalidade, corresponder a uma Instância de Enunciação não
significa, porém, que essa instância seja a única que pode ser indiciada no texto. Na verdade,
no processamento discursivo, outras instâncias são criadas e articuladas no interior dessa
53
instância e a ela se integram instantânea e automaticamente. É por isso que se diz que a
criação e articulação de Instâncias de Enunciação constituem uma propriedade fundamental
do processamento discursivo.
Embora a referenciação só possa ser efetivada se se considerar o texto todo como uma
Instância de Enunciação, é necessário lembrar que cada Instância de Enunciação
implementada, e indiciada, no seu processo de produção de um texto constitui um centro de
referência interno e, por isso, cada uma dessas instâncias, uma vez referenciada no
processamento discursivo, delimita, na tessitura do texto, os limites em que se interpretam os
enunciados. Cada uma delas fornece informações que, no entrelaçamento responsável pela
tessitura do texto, contribuem para a referenciação de todo o texto.
Entender como se processa a referenciação do texto é fundamental para um trabalho
que, como este, busca explicitar os mecanismos sintático-discursivos da argumentação.
Assim, no intuito de dar ao assunto um embasamento teórico pertinente, serão apresentados a
seguir alguns pressupostos com que trabalham alguns autores, quando argumentam a favor de
uma determinada visão do Processo de Referenciação.
3.5.1 O Processo de Referenciação
Como se tem enfatizado, a referenciação, ou, simplificando, o trabalho de produzir
sentido para/com um texto, faz-se no e pelo processamento discursivo. Aceitar isso significa
admitir que as formas lingüísticas não portam, em si, o sentido, que tem de ser construído na
interação discursiva. A construção do sentido do texto, isto é, sua referenciação, é feita com
base em determinados procedimentos discursivos que autorizam argumentar a favor de um
Processo de Referenciação.
54
Para Nascimento; Oliveira (2002), o Processo de Referenciação se baseia nos
seguintes pressupostos, entre outros:
(14) a) a dialogia é uma propriedade constitutiva da linguagem e, conseqüentemente, do
processo de referenciação, de produção de texto/sentido;
b) o processo de referenciação, dialógico por natureza, só se implementa pela criação
e integração de Instâncias de Enunciação num espaço referencial básico único,
integral, que constitui o domínio de interpretação do texto como um todo;
c) tal integração das instâncias de enunciação, necessariamente indiciadas como
unidades textuais na materialidade dos enunciados do texto, dá-se por uma
configuração hierárquica e recursivamente instituída no/pelo processamento
discursivo;
d) considerada em sua manifestação na materialidade dos enunciados, a integração
hierárquica e recursiva das instâncias de enunciação decorre do caráter dialógico,
heterogêneo, hipertextual da linguagem;
e) processualmente considerada, esta integração hierárquica e recursiva de instâncias
de enunciação - unidades textuais - faz com que cada texto se configure como um
hipertexto;
f) processualmente consideradas, noções como “heterogeneidade textual”,
“polifonia” e “hipertextualidade” podem ser vistas como atributos de um mesmo e
único processo: a integração hierárquica e recursiva de instâncias de enunciação
no processo de referenciação.
Adotar esses pressupostos é assumir que o Processo de Referenciação está
condicionado à criação e articulação de Instâncias de Enunciação. Não há como produzir o
55
sentido de um texto sem a criação e articulação de Instâncias de Enunciação, que se instituem
como domínios cognitivos em que enunciados são interpretados.
Martins (2000) destaca que o processo de referenciação se dá em planos enunciativos.
Isso significa que outros planos, correspondentes a outras instâncias enunciativas, são
articulados no interior de um plano maior, que corresponde à IE0 e que engloba a totalidade
da referenciação. Cada um desses planos tem o seu domínio de referência, e, juntos, eles
levam à produção de sentido do texto. Recorde-se que, para Martins (2000), cada instância
enunciativa é um plano enunciativo. Isso significa que referenciação se dá pela criação e
articulação de Instâncias de Enunciação.
Não se pode pensar em um Processo de Referenciação sem se levarem em
consideração pressupostos de uma outra teoria que se torna fundamental quando se quer
considerar como Espaços Referenciais as Instâncias de Enunciação: a Teoria dos Espaços
Mentais. Essa teoria tem como objetivo demonstrar como a mente humana constrói o
significado, portanto é fundamental para uma compreensão do Processo de Referenciação. Em
razão disso, será apresentada, a seguir, uma síntese dos pressupostos básicos em que a Teoria
dos Espaços Mentais vem se baseando desde os seus primeiros momentos.
Adotando-se tais pressupostos da Teoria dos Espaços Mentais, pretende-se demonstrar
como a mente humana constrói o significado, quais as operações que a mente realiza no
processamento da referenciação, enfim, como se concretiza o processamento discursivo. A
inclusão dessa teoria na busca de um modelo de processamento discursivo justifica-se pelo
fato de que, neste trabalho, pretende-se demonstrar que o processo de argumentar se dá pela
construção e integração de Espaços Referenciais (Mentais) criados ou delimitados por
Instâncias de Enunciação.
56
3.5.1.1 A Teoria dos Espaços Mentais
A partir de teorias lingüísticas desenvolvidas ao longo do século XX, que concebem a
língua como interação e atividade discursiva, os estudos da linguagem passaram a se
preocupar com o processo pelo qual o homem constrói o sentido de um texto. É o momento
dos cognitivistas, entre os quais se destaca o grupo de San Diego, formado por Fauconnier,
Mark Turner, Langacker e outros; e o grupo de Berkeley, formado por Lakoff, Eve Sweetser,
Fillmore e outros. Adeptos da teoria de que o sentido não está no texto, mas é construído
discursivamente na interação comunicativa, os cognitivistas vêem o texto como a
manifestação externa dos mecanismos cognitivos envolvidos no processamento discursivo e,
conseqüentemente, como material concreto para as investigações dos processos mentais.
Para esses cognitivistas, a compreensão de um enunciado se faz com base em um
conjunto de configurações que são sobredeterminadas por elementos do contexto discursivo e
envolvem fatores não estruturais como conhecimento prévio, experiência de mundo, valores
de uso de expressões figuradas. Enfim, para eles a compreensão de um enunciado não é feita
com base em valores predeterminados das formas lingüísticas; é construída pelo uso da
linguagem com base também na vivência e conhecimentos adquiridos pelo falante ao longo da
vida. Para esses cognitivistas, existe uma organização conceitual na base da estrutura da
linguagem que emerge da experiência humana do mundo, por isso passam a pesquisar alguns
fatores do processamento discursivo que envolvem aspectos cognitivos: projeções
metafóricas, “frames”, papéis e valores, construções contrafactuais, pressuposições, etc.
Surge, a partir daí, uma nova teoria que propõe uma outra visão sobre os estudos das
formas e dos significados: a Teoria dos Espaços Mentais, de Fauconnier (1984,
1994,1996,1997) e Fauconnier e Turner (2002). De acordo com essa teoria, o processamento
discursivo resulta de operações mentais que se indiciam na materialidade do texto. Essa
57
perspectiva põe em relevo não só a importância da palavra, mas também o contexto de sua
produção e de outras informações processadas cognitivamente no processamento discursivo.
Para Fauconnier, a noção de Espaços Mentais ultrapassa as operações no domínio léxico-
gramatical.
Mas afinal, o que são Espaços Mentais? De acordo com Fauconnier (1994), Espaços
Mentais são constructos que, distintos das estruturas lingüísticas, são mentalmente
construídos em qualquer tipo de discurso, de acordo com as pistas oferecidas pelas expressões
lingüísticas. Afirmando que o sentido não está nas palavras e que estas servem apenas de guia
para o sentido, Fauconnier (1996) considera os Espaços Mentais um caminho importante para
a identificação e a compreensão dos múltiplos sentidos que uma forma lingüística possibilita
criar, já que são configurações mentais construídas necessariamente no processamento
discursivo. A Teoria dos Espaços mentais busca compreender e explicar as operações que a
mente humana realiza ao fazer a conexão entre semântica e cognição. Fauconnier e Sweetser
(1996) consideram fundamental para a pesquisa sobre a produção do sentido a ênfase dada, a
partir da década de 70, às construções cognitivas identificáveis, no processamento discursivo,
a partir de uma sentença.
Embasada numa concepção cognitivista de linguagem, a Teoria dos Espaços Mentais
desenvolve-se apoiada na premissa de que as expressões lingüísticas não são portadoras do
sentido, mas apenas orientam o falante em sua tarefa de atribuir sentido a tais expressões.
Assim, os Espaços Mentais são construídos no discurso de acordo com as indicações
fornecidas pelas expressões lingüísticas.
Para Fauconnier, o discurso materializa e, ao mesmo tempo, esconde estratégias e
estruturas cognitivas responsáveis pela produção de sentido. O autor afirma que, à medida que
o discurso acontece, vários outros acontecimentos se desenvolvem juntamente com o
discurso: novos domínios se estabelecem, conexões são forjadas, mapas abstratos são
58
operados, estruturas internas emergem e diferentes pontos de vista são acionados. Para
identificar e mapear esses acontecimentos, é necessário identificar estruturas, operações e
estratégias cognitivas responsáveis pela construção dos Espaços Mentais, que, segundo o
autor, são configurações mentais necessariamente construídas no processamento discursivo.
Por isso, é importante observar como se dá o acionamento dessas configurações, que envolve
a escolha do léxico, das construções gramaticais e de outros processos de produção de
sentido.
3.5.1.1.1 A construção de Espaços Mentais pelo uso de “introdutores” ou “construtores de espaço”
Segundo Fauconnier (1984, 1994, 1996 e 1997), Espaços Mentais são criados quando
se acionam, no processamento discursivo, determinadas formas lingüísticas a que se deu o
nome de “introdutores” ou “construtores de espaço”, ou “Space Builders”. De acordo com
Fauconnier (1984, 1994, 1996 e 1997), funcionam como construtores de Espaços Mentais, por
exemplo, os seguintes tipos de expressões lingüísticas:
a) expressões lingüísticas de tempo: (Naquela época..., No próximo
ano...,Antigamente...,Ontem....; etc);
(15) Na infância, aquela mulher de pele escura tinha pele clara.
b) expressões lingüísticas de lugar: (No filme..., No livro..., Na França..., Na
novela..., Na cidade..., Em alguns lugares...,etc);
59
(16) No filme, aquela mulher de pele escura tem pele clara.
c) construções formadas por SN sujeito + verbo epistêmico, indicativo de crença,
desejo, imaginação e expectativa: (crer, imaginar,, desejar, sonhar., etc.);
(17) Muita gente pensa que aquela mulher de pele escura tem a pele clara.
d) construções condicionais ou hipotéticas: Se...(então)...; Caso...(então)...; No caso
de...(então)...; Na hipótese de...(então)..., etc.
(18) Se não ficasse tão exposta ao sol, (então) aquela mulher de pele escura, teria a
pele clara.
A respeito dos introdutores de espaço, é importante fazer as seguintes observações:
1) Eles orientam o alocutário no processamento da referenciação, ao indiciar em que
espaço a informação deve ser processada. A ausência deles nos exemplos acima acarretaria
uma referenciação contraditória.
2) Todos eles, inclusive determinadas expressões de tempo e determinadas expressões
de lugar, podem criar mundos possíveis, hipotéticos, imaginados, sonhados, ou desejados. A
respeito daqueles em que se ativam itens lexicais de natureza epistêmica, há de se destacar
que não são apenas verbos a realizar essa função; há também nomes de natureza epistêmica.
Além de verbos como crer, acreditar, querer, imaginar, pensar desejar, etc, tradicionalmente
apontados como epistêmicos por indicarem atitudes proposicionais, nomes e expressões como
60
crença, imaginação, desejo, pensamento, esperança, sonho, intenção, hipótese, suposição, na
mente de, na imaginação de, na cabeça de, etc, possuem natureza epistêmica e atuam como
construtores de Espaços Mentais.
A título de ilustração, observem-se os exemplos abaixo:
(19) “Os franceses pensam que calcinha e biquíni fio-dental são coisa de
brasileira”.
Nesse enunciado, a forma verbal epistêmica pensam cria um Espaço Mental
imagético, contrafactual, que se opõe ao Espaço-R, o espaço da realidade do falante. Esse
espaço, criado dentro do espaço base, a este se integra e, juntos, formam um terceiro espaço,
onde se dá a referenciação do enunciado como um todo. Note-se que a forma verbal
epistêmica ativada poderia ser substituída por outras formas nominais epistêmicas,
acionadoras também de Espaço Mental, como se pode ver pelas variações abaixo:
(20) “No pensamento dos franceses, calcinha e fio-dental são coisas de brasileira.”
(21) “Na mente dos franceses, calcinha e biquíni fio-dental são coisas de brasileira”.
(22) “Na imaginação dos franceses, calcinha e biquíni fio-dental são coisas de
brasileira”.
(23) “Na cabeça dos franceses, calcinha e biquíni fio-dental são coisas de
brasileira”.
3) As construções condicionais ou hipotéticas, pelas quais se acionam os Espaços
Mentais ditos hipotético-contrafactuais, serão objeto de maiores considerações adiante,
61
quando se procurará explicitar o que se entende por contrafactualidade e qual sua importância
na construção de Espaços Mentais.
4) Além das formas lingüísticas apontadas acima como construtoras de Espaços
Mentais, as formas de dizer, construtoras de Instâncias de Enunciação, são também
construtoras de Espaços Mentais, uma vez que, neste trabalho, assume-se com Martins (2000)
que toda Instância de Enunciação é também um Espaço Mental. É o que se demonstrará a
seguir.
3.5.1.1.2 A construção de Espaços Mentais pela construção de Instâncias de Enunciação
Observe-se o exemplo abaixo, emprestado de Martins (2000, p.140):
(24) IE0{O presidente da República tinha acabado de IE1[discursar]IE1 quando
recebi a IE2[notícia]IE2 de minha morte. Eu estava na cerimônia de inauguração do Instinto
Moreira Sales e vi Marcos Sá Correa vindo em minha direção com o cabelo molhado de quem
saiu do banho às pressas e a cara de quem estava vendo fantasma. De fato, eram as duas
coisas. Viera correndo de casa, ali perto, para me IE3[avisar]IE3 que infelizmente eu tinha
morrido. Acho que cheguei a esboçar um ar compungido ao ouvir o IE4[relato]IE4 e devo ter
IE5[ dito]IE5 que o falecido era um cara legal.}IE0
Nesse texto, o autor, instituído como E0, na instância IE0, aparece no discurso pela
presença de determinadas categorias gramaticais que o mostram como o eu, que assume a
palavra. Essas categorias que marcam o E0 no texto são formalizados através dos itens
lexicais grifados que se referem à 1a pessoa do discurso (verbos, pronomes pessoais e
pronomes possessivos). Esses itens lexicais lexicalizam-se /gramaticalizam-se / semantizam-
se no processamento discursivo, para a instauração da situação “default”.
62
As outras instâncias de enunciação (IE1,IE2,IE3,IE4 e IE5) são introduzidas no
discurso pela ativação de itens lexicais advindos de diversas categorias gramaticais que,
quando gramaticalizados / semantizados, disponibilizam-se como formas de dizer. É por isso
que se ativam como instâncias enunciativas, no exemplo acima, os termos colocados entre
colchetes [discursar], [notícia], [avisar], [relato], [dito] .
O processo de criação e articulação de instâncias enunciativas e a hierarquização de
planos enunciativos no texto acima podem ser representados por meio da figura abaixo,
concebida com base na abordagem feita por Benveniste (1970/1989).
FIGURA 4 - Texto 24: A construção de Espaços Mentais pela construção de Instâncias Enunciativas
Para Martins (2000), Instâncias de Enunciação são também Espaços Mentais,
entendimento que faz das “formas de dizer”, criadoras e articuladoras de Instâncias de
Enunciação, criadoras e articuladoras, também, de Espaços Mentais. Com base nisso, Martins
63
(2000) se serve do constructo teórico de Fauconnier (1984, 1994, 1996, 1997) para a
representação de Espaços Mentais e representa, pela figura abaixo, a hierarquização dos
Espaços Mentais do texto (24), retomado a seguir:
(24a) IE0{O presidente da República tinha acabado de IE1[discursar]IE1 quando
recebi a IE2[notícia]IE2 de minha morte. Eu estava na cerimônia de inauguração do Instinto
Moreira Sales e vi Marcos Sá Correa vindo em minha direção com o cabelo molhado de quem
saiu do banho às pressas e a cara de quem estava vendo fantasma. De fato, eram as duas
coisas. Viera correndo de casa, ali perto, para me IE3[avisar]IE3 que infelizmente eu tinha
morrido. Acho que cheguei a esboçar um ar compungido ao ouvir o IE4[relato]IE4 e devo ter
IE5[dito]IE5 que o falecido era um cara legal.}IE0
FIGURA 5 - Texto 24a: Hierarquização de Espaços Mentais
A representação idealizada por Martins difere da de Fauconnier, já que a apresentada
por aquela organiza os Espaços Mentais em planos conceptuais estabelecidos a partir de
Instâncias de Enunciação. Para Martins, cada domínio cognitivo tem o seu Espaço R, mas
64
articulado ao Espaço R superior, designado pela “situação default”, que instaura o autor como
enunciador na situação discursiva.
Fica fácil entender, então, que somente no contexto discursivo é possível construir o
sentido para os enunciados de um texto. Exemplos como os apresentados acima só fazem
reforçar a concepção de linguagem com que se desenvolve este trabalho: a concepção
segundo a qual o sentido não se encontra no texto, mas é construído na e pela linguagem, ou
seja, na atividade de interação discursiva.
3.5.1.1.3 Espaços Mentais e Integração Conceitual
Com a obra The Way We Think: conceptual blending and he mind’s hidden
complexities Fauconnier e Turner (2002), reformulando alguns pressupostos, apresentam uma
nova Teoria dos Espaços Mentais, que trata de forma diferente o assunto e enfatiza a
integração de espaços no processamento discursivo. Para eles, a mente humana constrói o
sentido através de operações complexas e quase sempre inconscientes, conhecidas como “Os
Três Is da Mente – Identificação, Integração e Imaginação”. A primeira realiza operações de
reconhecimento de identidades, igualdades, semelhanças, diferenças, contrastes, etc., entre
dois domínios cognitivos indiciados pelo item lexical ativado. A segunda realiza a conexão
entre esses dois domínios, em busca de algum tipo de relação que justifique a escolha desse
item lexical. A terceira – Imaginação – simultaneamente às outras duas, realiza, com base na
conexão entre os dois domínios cognitivos, operações de inferência do sentido pretendido
pelo locutor em sua interação discursiva com o alocutário.
Ao realizar essas operações, o ser humano aciona, simultânea e inevitavelmente,
espaços mentais diversos, faz a conexão entre eles e constrói o sentido. Ao fazer isso, realiza
uma operação chamada Integração Conceitual (Blending) ou Processo de Mesclagem.
65
Segundo Fauconnier ; Turner (2002), resulta desse processo uma “Rede Conceitual
Integrada”, que apresenta, em sua forma menos complexa, quatro espaços 3 referenciais: o
Espaço de Entrada 1 (Espaço Input 1), o Espaço de Entrada 2 (Espaço Input 2), o Espaço
Genérico e o Espaço Integrado (Blended). Dessa integração, surge o Significado Emergente.
Em situações mais complexas, a integração conceitual pode operar, em grande parte,
com redes mais amplas de significados conceituais, produzindo um novo espaço referencial
que, embora distinto daqueles que o originaram, apresenta semelhança com eles.
Pela figura abaixo, pode-se ter uma idéia do que Fauconnier e Turner (2002) chamam
de Rede Conceitual Integrada.
FIGURA 6 - Rede Conceitual Integrada
Nessa figura, os círculos representam os quatro espaços mentais que formam a rede: o
Espaço Genérico, os Espaços de Entrada (Espaços Input) e o Espaço Integrado (Blend). As
linhas contínuas mostram a conexão entre os Espaços de Entrada (Input 1 e Input 2). Essas
3 Apesar de se trabalhar aqui com a noção de Rede Conceitual Integrada proposta por Fauconnier e Turner (2002), não se considerará a existência do chamado Espaço Genérico, que coincide com o Espaço R ou Espaço
Integrado. Assim, neste trabalho, entende-se que a Rede Conceitual Integrada contém, em sua forma menos complexa, três espaços referenciais, não quatro.
66
entradas constituem a parte e a contraparte. As linhas pontilhadas mostram as conexões entre
os Espaços de Entrada e os demais espaços. O quadrado no interior do Espaço Integrado ou
Mesclado (Blend) representa as estruturas emergentes.
O Espaço Genérico (ver nota de rodapé da página anterior), segundo Fauconnier e
Turner (2002), é o espaço onde se conectam as informações gerais comuns aos dois espaços
de entrada ou domínios cognitivos diferenciados. Os Espaços de Entrada (Espaços Input)
constituem domínios cognitivos diferenciados e funcionam como parte e contraparte. Sem
eles, não pode ocorrer formação da mescla. A correlação entre os Espaços de Entrada é
realizada pelas Associações e conexões contrapartes, por meio de um mapeamento desses
espaços. Essa correlação se dá por conexões metafóricas, conexões metonímicas, conexões
analógicas, conexões de identidade ou transformações, etc. O Espaço Integrado (Blend), local
onde se dá a referenciação, contém estruturas genéricas captadas no Espaço Genérico, mas
também pode conter estruturas mais específicas oriundas das entradas ou ainda desenvolver
estruturas não provenientes das entradas denominadas estruturas emergentes.
O texto abaixo pode ser dado como exemplo de uma Rede Conceitual Integrada:
(25) IE0{A moça feia sonhou que era linda}IE0.
Nesse exemplo, o Espaço-R, espaço básico, integra dois espaços referenciais: o espaço
de entrada 1: espaço factual, real, em que a moça é feia; e o espaço de entrada 2: espaço
contrafactual, irreal, sonhado, em que a moça era linda. A referenciação se dá no Espaço-R,
espaço integrado, a IE0, Domínio Único de Referência Integrado, como será chamado
adiante.Todos esses espaços, criados no/pelo processamento discursivo, se integram
hierarquicamente, formando a Rede Conceitual Integrada.
67
Na Integração Conceitual, segundo Fauconnier e Turner (2002), a mente humana põe
em ação sua habilidade para “comprimir” Relações Vitais, no espaço integrado. Para eles, as
Relações Vitais são relações conceituais constitutivas da estrutura interna dos espaços mentais
Input e, ao mesmo tempo, são responsáveis pela conexão entre espaços mentais de natureza
distinta, razão pela qual exercem um papel essencial na construção da Rede de Espaços
Mentais. De acordo com Fauconnier e Turner (2002), na Integração Conceitual são de
fundamental importância, entre outras, as Relações Vitais de variação/mudança, identidade,
tempo, espaço, causa/efeito, parte/todo, representação, papel/valor, analogia, propriedade,
similaridade, categoria, intencionalidade, contrafactualidade, etc.
3.5.1.1.4 Espaços Mentais hipotético-contrafactuais e contrafactualidade
Assim como a polifonia, a contrafactualidade é uma propriedade definitória da
linguagem. Segundo Vieira (2003:92), “a contrafactua lidade é uma propriedade básica das
operações de identificação, integração e imaginação que caracterizam o modo de
funcionamento da mente e, conseqüentemente, do processo de Discursivização”.
Considerando-se que qualquer operação de discursivização envolve sempre essas três
operações básicas, entende-se que a contrafactualidade, assim como a polifonia, é uma
propriedade definitória da linguagem. A integração de espaços, no interior do Espaço R, já é
uma das manifestações da contrafactualidade da linguagem: todos os espaços integrados em R
contrapõem-se a R, e a outros espaços no interior de R.
Isso pode levar a pensar-se que seja quase redundante falar em Espaços hipotético-
contrafactuais. Na realidade, não é bem assim: em determinados casos, a construção de
espaços referenciais se dá pelo emprego de recursos específicos fornecidos pela língua para a
68
concreção da contrafactualidade. É nesse caso que ocorrem os chamados Espaços hipotético-
contrafactuais (os contrafactuais, propriamente ditos).
A constituição desses Espaços se faz, geralmente, pela ativação de determinadas
construções condicionais ou hipotéticas do tipo Se..(então)... ou E se... Desse modo,
costumam-se dar como contrafactuais os Espaços Referenciais (mentais) suscitados por
expressões desse tipo. Observem-se os exemplos abaixo:
(26) E0{Se dependesse do José Dirceu, seu colega Cristovam Buarque, da
Educação, seria candidato à fila dos desempregados.} E0
Nesse exemplo, a implementação do espaço hipotético se dá pela ativação do item
lexical se, que constrói um Espaço Mental que se contrapõe ao Espaço-R, o espaço da
realidade do enunciador E0, constituído no Espaço-R. A constituição do Espaço Mental
hipotético / contrafactual é assinalada, ainda, pelo uso do imperfeito do subjuntivo “Se
dependesse, estrutura sintática com valor hipotético / contrafactual, e pela ativação simultânea
do verbo ser no futuro do pretérito: seria.
Observem-se outros exemplos, onde se ativam itens lexicais com função semelhante:
(27) “Caso o presidente tivesse optado pela aventura, um forte aliado teria sido Ciro
Gomes, o atual ministro da Integração Nacional”
(28) “No caso da opção do presidente pela aventura,um forte aliado teria sido Ciro
Gomes, atual ministro da Integração Nacional”.
69
(29) “Na hipótese da opção do presidente pela aventura, um grande aliado teria sido
Ciro Gomes, atual ministro da Integração Nacional”.
Não se deve esquecer, entretanto, que o pensamento contrafactual não se dá apenas
com esse tipo de construção, já que pode ser expresso independentemente da presença de tais
expressões.
Fauconnier e Turner (2002) consideram a contrafactualidade uma relação Vital. Para
eles, a contrafactualidade consiste na habilidade humana para operar mentalmente com o
“irreal”. Ora, operar mentalmente com o irreal significa criar, não só pela imaginação, crença,
suposição, hipótese, sonho, desejo, esperança, fuga no tempo ou no espaço, mas também pelas
relações de variação/mudança, identidade, causa/efeito, parte/todo, papel/valor, analogia,
propriedade, similaridade, categoria, intencionalidade, etc, situações que se contrapõem às da
realidade, ao Espaço-R. Enfim, significa criar um mundo imagético, contrafactual, contraparte
do mundo da realidade discursiva do falante.
Isso implica dizer que as operações mentais de Identificação, Integração e Imaginação,
através das quais, segundo Fauconnier e Turner (2002), a mente humana constrói o sentido,
envolvem necessariamente a contrafactualidade.
Toda vez que o homem põe em ação essa sua habilidade, ele constrói um mundo
irreal, contrafactual, contraparte do mundo de sua realidade. Mas, enquanto essa criação da
mente existir apenas intelectualmente, ou seja, enquanto existir apenas na mente de quem a
criou, não há como alguém tomar conhecimento de sua existênc ia, pois não terá havido
enunciação. É necessário que ela seja expressa em palavras que indiciem ter a mente criado
um mundo que se contraponha ao da realidade. É no processamento discursivo, pelas
operações léxico-semântico/pragmático-gramaticais, que essa habilidade se concretiza para o
outro. A este caberá, pelas operações de Identificação, Integração e Imaginação, reconhecer a
70
ligação entre esses tais mundos. Isso só é possível em razão da capacidade do homem de
realizar, mentalmente, operações de Integração Conceitual.
Observe-se o seguinte exemplo:
(30) Às vezes, eu fico sonhando com um mundo sem violência, sem medo, sem
fome.
Nesse exemplo, o item lexical grifado é uma forma verbal epistêmica que remete a um
mundo irreal, uma vez que se contrapõe ao Espaço-R, caracterizando-se como um mundo
sonhado pelo falante. Não é por acaso que o verbo sonhar é tido como verbo criador de
espaços referenciais. Esse espaço, com o qual o falante sonha, contrapõe-se ao Espaço-R, no
qual não se vêem as qualidades sonhadas pelo falante. Pela integração dos dois espaços de
entrada, chega-se ao Espaço Único Integrado, onde se dá a referenciação do texto, ou seja,
onde ele é interpretado.
Para Vieira (2003, p. 75), citando Fauconnier; Turner (2002),
Compreender a contrafactualidade é partir do princípio de que quando os seres humanos, cognitivamente modernos, mentem, fingem, imitam, fantasiam, enganam, simulam situações, propõem hipóteses, etc, na verdade estão ativando habilidades complexas que lhes possibilitarão operar mentalmente com espaços imagéticos que envolvem a construção de um mundo alternativo ao real, ou seja, um mundo possível, não real.
De tudo isso, chega-se ao seguinte:
a) Em qualquer situação de integração conceitual, haverá a ocorrência de, no
mínimo, dois espaços: o espaço real, correspondente ao da realidade do falante, e um espaço
contrafactual criado pelas operações de mesclagem.
b) A integração de tais espaços envolverá sempre algum tipo de Relação Vital:
conexão metafórica, conexão metonímica, causa/efeito, tempo, espaço, parte/todo, hipótese,
71
etc. Como essa integração envolve, sempre e necessariamente, a contrafactualidade, parece
possível afirmar-se que, qualquer que seja o tipo de Relação Vital envolvida, ela será sempre
uma relação de contrafactualidade.
c) É a contrafactualidade que possibilita ao homem realizar a integração
conceitual e proceder à referenciação; portanto, a contrafactualidade é uma propriedade
básica do processo de Discursivização.
Para Vieira (2002, p.81), a criação e articulação de espaços referenciais é a operação
de discursivização elementar no processo de referenciação, uma vez que:
a) não há processamento discursivo sem que se crie, no mínimo, uma instância de enunciação, um espaço referencial básico; b) no processamento discursivo qualquer instância de enunciação que for referenciada constituirá um novo espaço enunciativo hierarquicamente integrado ao espaço referencial básico; c) todo espaço referencial que não seja uma Instância de Enunciação é criado/integrado necessariamente no interior de uma Instância de Enunciação; d) as operações de Discursivização responsáveis pela articulação de espaços referenciais na integralidade de um espaço referencial básico envolvem necessariamente a mesclagem (blending). e) a mesclagem de espaços referenciais na produção de texto/sentido configura o processamento de textos não como linear, mas como multidimensional, polifônico, hipertextual.
Também Cavalcante (2002) presta uma importante contribuição para a compreensão
de como se dá a referenciação do texto. Procurando explicitar os princípios e os mecanismos
sintático-discursivos responsáveis pela produção / recepção de metáforas, que é o mesmo que
explicitar os princípios e os mecanismos sintático-discursivos responsáveis pela construção de
sentido do texto, Cavalcante argumenta a favor de uma “Teoria do Processo de
Referenciação”, na qual, mutatis mutandis, postula, em síntese, o seguinte:
72
I. o Processo de Discursivização decorrente do acionamento pluridimensional e
simultâneo dos sub-processos de Lexicalização, Gramaticalização e Semantização visa a
implementar o Processo de Referenciação, de produção de texto / sentido;
II. as operações lingüísticas cognitivas básicas que pressupõem o processo de
produção de texto / sentido são Identificação, Integração e Imaginação;
III. todo e qualquer texto é constituído a partir de uma instância de enunciação
básica, a Instância de Enunciação Zero;
IV. toda instância de enunciação é um espaço mental; assim, a Instância de
Enunciação Zero é também o Espaço Mental Zero;
VI. no interior da Instância de Enunciação Zero podem criar-se e articular-se
outros espaços mentais constituídos ou não por instâncias de enunciação;
VII. no Processo de Referenciação, todos os Espaços Mentais passam a ser
denominados Espaços ou Domínios Referenciais;
VIII. o domínio básico do processo de Referenciação configura-se em termos da
Instância de Enunciação Zero, em função da qual todos os demais Domínios Referenciais
serão construídos e articulados. Esse domínio deve ser compreendido como um espaço
imagético, construído, discursivamente, como “real”, como um Espaço da Realidade
Enunciativa, o Espaço ou Domínio R;
IX. alguns textos são constituídos por apenas um espaço ou domínio referencial, o
Espaço R, ou Espaço de Referência Único; outros são constituídos por mais de um espaço
referencial, que constituem o Espaço ou Domínio Único de Referência Integrado, o Espaço
? ;
X. se o texto for constituído por apenas um espaço ou domínio referencial, sua
Referenciação, ou seja, sua interpretação, ocorrerá no Domínio Único de Referência, o
73
Espaço R; se for constituído por mais de um espaço ou domínio referencial, a Referenciação
ocorrerá no Domínio Único de Referência Integrado, o Espaço ? ;
XI. a identificação / integração dos diferentes Domínios de Referência, operações
que determinam a criação do Domínio Referencial Imagético ? , ativa, simultaneamente,
diferentes Relações Vitais na complexa rede pluridimensional da qual resulta o texto, produto
material do Processo de Discursivização.
Em seu modelo discursivo, Cavalcante (2002) distingue dois tipos de Espaços
Referenciais: aqueles constituídos por Instâncias de Enunciação, que ela representa,
pictoricamente, por triângulos, e aqueles não constituídos por Instâncias de Enunciação, que
ele representa, também pictoricamente, por círculos construídos com traços descontínuos. A
intenção é representar a simultânea e integrada dinâmica com que se operam esses processos
lingüístico-cognitivos na mente humana.
A análise do exemplo (31), abaixo, mostra como funciona o modelo proposto por ela:
(31) E0 {Está chovendo.}E0
Com base no modelo proposto, a interpretação desse enunciado como verdadeiro ou
falso é feita no Espaço Referencial R. Esse Espaço é construído com base na identificação e
integração dos elementos que constituem a Instância de Enunciação Zero (um enunciador que
fala para um enunciatário, no tempo e espaço “aqui / agora” do discurso, ED). Assim, esse
espaço, constituído na referenciação da relação E0 / Ea0, configura-se como E, um Domínio
Único de Referência.
Observe-se que, no exemplo analisado, não há referência explícita nem a tempo nem a
espaço, mas, como não pode haver enunciação sem as Relações Vitais de tempo /espaço, é
74
claro que a enunciação que resultou no enunciado analisado só pode ter ocorrido no aqui /
agora de E0. Assim, no exemplo acima, existe um Espaço Referencial que é constituído por
uma Instância de Enunciação, a Instância de Enunciação Zero. Vê-se, assim, que a
interpretação de um enunciado depende fundamentalmente das Relações Vitais de
tempo/espaço. O exemplo analisado é representado pela Figura seguinte:
FIGURA 7 - Texto 31: Integração de Espaços Referenciais
Observe-se, agora, o exemplo 32:
(32) A criança imagina que está chovendo, mas não está.
Nesse exemplo, a interpretação se dá no Domínio de Referência Único Integrado, que
engloba os dois Espaços Referenciais implementados na construção do enunciado. Ou seja, é
nesse domínio referencial que se dá a referenciação do enunciado, que integra os dois espaços
75
input, o Espaço-R e o espaço implementado pelo epistêmico “imagina”, num terceiro espaço,
o Espaço-R0.
A Figura seguinte representa a integração dos vários Espaços Referenciais no exemplo
(32).
FIGURA 8 - Texto 32: Integração de Espaços Referenciais.
Com base nesses exemplos, duas constatações hão de ser destacadas:
1. Em qualquer enunciação, há, pelo menos, um Espaço Referencial ativado por
Instância de Enunciação, uma vez que toda Instância de Enunciação corresponde a um Espaço
Referencial (Mental). Assim, todo construtor de Instância de Enunciação, que é sempre uma
forma de dizer, é também construtor de Espaço Referencial (Mental).
76
2. Todo Espaço Referencial (Mental) é acionado ou pela ativação de uma forma
de dizer e, nesse caso, é constituído por uma Instância de Enunciação, ou pela ativação de
qualquer outro item lexical que, por não se caracterizar como forma de dizer, não instaura
uma Instância de Enunciação. Nesse caso, porém, apesar de não ser uma Instância de
Enunciação, o Espaço Referencial (Mental) é, necessariamente, construído no interior de uma.
Observem-se os exemplos a seguir:
(33) E0{A menina é loura.}E0
(34) E0{O policial E1[afirma que a menina é loura.]E1}E0
(35) E0{Na foto, a menina é loura.}E0
Em (33), ocorre o Espaço Referencial que corresponde à Instância de Enunciação
Zero, em que o locutor constitui-se como enunciador, E0, e se dirige a um alocutário,
constituindo-o como enunciatário, Ea0, no tempo / espaço da realidade do discurso. Nesse
caso, o Espaço Referencial é constituído por uma instância de enunciação, a Instância de
Enunciação Zero, e configura-se como Espaço-R0.
Em (34), integram-se dois Espaços Referenciais constituídos por instâncias de
enunciação, já que foram, ambos, ativados por uma forma de dizer. O primeiro foi acionado
pela situação default, que instaura a Instância de Enunciação Zero, correspondente à alusão ao
policial e ao que se diz da menina. O segundo foi acionado pelo verbo dicendi afirma, que
instaura uma nova instância de enunciação, a E1. Esses dois Espaços Referenciais integram-
se, formando um terceiro, o Espaço Referencial-R0, domínio imagético, em que se dá a
referenciação do enunciado.
77
Em (35), ativam-se também dois Espaços Referenciais, que se integram para formar
um terceiro, o Espaço Único Integrado, domínio único de referência, onde se dá a
referenciação do enunciado. O processamento de (35) envolve
a) um Espaço R, que corresponde ao da realidade do falante, em que se referencia
um enunciador, constituído como E0 na relação com um enunciatário Ea0, e as informações
relativas ao domínio de construção de Referência: “A menina é loura”;
b) um Espaço X, ativado pela expressão dêitica, construtora de Espaço
Referencial, “Na foto”;
c) o Espaço Único Integrado, Domínio Único de Referência Integrado, resultante
da integração dos dois outros Espaços Referenciais, R e X. No Espaço Único Integrado,
Espaço-R0, é que se interpreta o enunciado “Na foto, a menina é loura”, de forma imagética
e integral.
Os exemplos analisados demonstram que uma Instância de Enunciação será sempre
um Espaço Referencial, seja o Espaço-R, correspondente a uma única Instância de
Enunciação; seja um Espaço-R constituído pela integração de mais de uma Instância de
Enunciação, X,Y,Z, etc, construídos no interior da Instância de Enunciação Zero, pela
ativação de uma forma de dizer.
3.5.1.1.5 A articulação de Espaços Referenciais e a produção de inferências
De tudo quanto se disse a respeito do processo de referenciação, fica evidente que a
produção de inferência de um texto só pode ocorrer como conseqüência das operações de
identificação, integração e imaginação. Entre as operações discursivas que tornam possíveis
essas três operações, está a Lexicalização. De acordo com a concepção de linguagem adotada
78
neste trabalho, embora as formas lingüísticas não portem o sentido, elas orientam a mente na
construção do sentido quando ativadas nas e pelas operações de discursivização. Não há como
promover o processamento discursivo sem a ativação de formas lingüísticas lexicais. São as
propriedades semânticas e/ou gramaticais desses itens que levam a mente humana a efetuar as
operações de Identificação, Integração e Imaginação, responsáveis pela produção do
significado, seja porque indiciam a ativação de Espaços Referenciais, seja porque promovem
a articulação entre eles, possibilitando, assim, a produção de inferências. Dessa forma, a
Lexicalização é uma operação elementar na produção de sentido.
Se, em qualquer tipo de texto, a produção de inferências decorre da ativação de
determinadas propriedades de certos tipos de itens lexicais que promovem a integração de
Espaços Referenciais, no caso da argumentação, isso fica ainda mais evidente. Ao orientar o
discurso no sentido de determinadas conclusões na tentativa de persuadir o alocutário a aderir
aos argumentos apresentados, o locutor utiliza os recursos que a língua coloca a sua
disposição e que ele, de acordo com sua competência discursiva, administra em busca de seu
objetivo. Como já foi dito, a atividade de interpretação de um texto baseia-se na suposição de
que quem fala tem certas intenções a comunicar e que compreender uma enunciação é
apreender essas intenções. Sem dúvida, a apreensão das intenções do falante implica detectar
e interpretar as marcas lingüísticas através das quais a enunciação se faz presente no
enunciado.
Para Vogt (1980), citado por Koch (1999, p.24), um enunciado não só diz alguma
coisa mas também o diz de um certo modo e, ao dizer, mostra, por meio de marcas
lingüísticas, o modo como é dito. Apreender esse modo é inferir dessas marcas lingüísticas a
intenção do locutor. A intencionalidade é um dos fatores de textualidade apontados por
Beaugrande; Dressler (1983), citados por Costa Val (1999, p.5).
79
É fácil perceber que a intencionalidade está centrada no locutor. Assim, em qualquer
tipo de texto, pode-se perceber a presença do locutor. Às vezes, essa presença é bem nítida e
se manifesta através de uma diversidade de marcas facilmente identificáveis na materialidade
do texto. Essa manifestação da presença do locutor no texto se dá, entre outras formas, através
de operações discursivas conhecidas como modalização. Bronckart (1999, p.330) sustenta que
“as modalizações têm como finalidade geral traduzir, a partir de qualquer voz enunciativa,
os diversos comentários ou avaliações formuladas a respeito de alguns elementos do
conteúdo temático”. Segundo o autor, é possível identificar, no plano dos significados,
diversas funções de modalização e, no plano dos significantes, os subconjuntos de unidades
ou de estruturas lingüísticas que podem expressar essas diversas funções.
Para Magalhães (1998, p.130),
a modalização pode ser estudada do ponto de vista discursivo como uma estratégia de que se valem os autores de textos na construção do seu discurso. Nesse sentido, a modalização implica o agenciamento de recursos, utilizados por esses autores na gramaticalização e semantização de “indivíduos lingüísticos”4, visando à construção de seus pontos de vista, seu maior ou menor distanciamento em relação aos conteúdos referenciados.
Koch (1999) dedica um especial enfoque à descrição das relações pragmáticas,
ideológicas ou argumentativas, que, segundo ela, se estabelecem entre o enunciado e a
enunciação. Destaca as seguintes entre aquelas que afirma constituírem as principais
características do texto argumentativo em seu sentido estrito:
1.as pressuposições; 2.as marcas das intenções, explícitas ou veladas, que o texto veicula; 3.os modalizadores, que revelam sua atitude perante o enunciado que produz (através de certos advérbios, dos tempos e modos verbais, de expressões do tipo: “é claro”, “é provável”, “é certo”, etc.);
4 A expressão “indivíduos lingüísticos” foi criada por Benveniste (1989) para se referir “as formas tradicionalmente conhecidas como “pronomes pessoais” e “demonstrativos”, que, segundo Benveniste, “remetem sempre a ‘indivíduos’, quer se trate de pessoas, de momentos, de lugares, e que se opõem aos
termos nominais, que remetem sempre a conceitos”
80
4.os operadores argumentativos, responsáveis pelo encadeamento dos enunciados, estruturando-os em textos e determinando a sua orientação discursiva; 5.as imagens recíprocas que se estabelecem entre os interlocutores e as máscaras por eles assumidas no jogo de representações ou, como diz CarlosVogt, nas pequenas cenas dramáticas que constituem os atos de fala.
Não se desenvolverão aqui comentários sobre cada uma dessas relações. Entretanto, é
importante ressaltar o fato de que todas elas parecem indiciar, em maior ou menor grau,
aspectos modalizantes da relação enunciador/enunciatário a serem levadas em conta pelos
interlocutores. Se isso é verdade, pode-se dizer que a modalização, embora ocorra em
qualquer tipo de texto, é uma característica essencial e indispensável do texto argumentativo.
É óbvio, então, que a modalização é uma característica essencial e indispensável da
criação e articulação de instâncias de enunciação e de outros tipos de espaços referenciais e
que faz parte da estratégia do ato de convencer e / ou de persuadir.
Perelman (1970) sustenta que a argumentação se caracteriza como um ato de
persuasão, já que tem como finalidade provocar a “adesão dos espíritos” às teses
apresentadas. Fazendo distinção entre convencer e persuadir, diz que o ato de convencer se
dirige à razão, através de um raciocínio lógico e por meio de provas objetivas, enquanto o ato
de persuadir procura atingir a vontade, por meio de argumentos plausíveis ou verossímeis. No
primeiro, investe-se mais na produção de certezas; no segundo, na produção de inferências e
no “gerenciamento” de atitudes que podem levar à adesão aos argumentos apresentados. E os
mecanismos de modalização têm papéis específicos nos dois tipos de “atos”, uma vez que, na
perspectiva da noção de linguagem/discurso adotada aqui, não se separa, a não ser para fins de
análise, o “dizer” do “modo de dizer”.
Por exemplo, quando o Juiz, numa sentença, argumenta como faz em (36), seu
discurso indicia aspectos que o caracterizam como um ato de convencer, ao passo que, em
(37), estaria mais caracterizado o ato de persuasão. Observe-se.
81
(36) “E0{E1[Consoante a prova carreada para os E2[ autos]E2]E1, A.D.G. e T.A.D.
casaram-se no dia 19 de abril de 1986, pelo regime de comunhão de bens.}E0”
(37) E0{“Tenho em mim que, in caso, a E1[ palavra da ré-reconvinte deve merecer
crédito]E1, quando E2[alega que o marido quis obrigá- la à prática do coito anal]E2. Assim
entendo porque uma mulher nas suas condições, uma solteirona criada na zona rural E3[não
inventaria esse fato]E3, expondo-se à humilhação deE4[ tratar o assunto]E4 na justiça...”}EO
Veja-se que, em (36), o Juiz modalizou sua fala amparando-se na prova de que A.D.G.
e T.A.D. eram casados. Sem dúvida, a modalização baseada em provas torna o discurso mais
crível e mais fácil de aceitar. Já, em (37), a aceitação do argumento apresentado pelo Juiz não
é tão tranqüila, uma vez que pode ser facilmente contestada. Isso porque o Juiz não dispõe de
provas que possam embasar sua argumentação. Nesse caso, ele conta apenas com o seu poder
de persuasão para justificar sua crença na palavra da mulher.
Em termos de criação e integração de espaços referenciais e, conseqüentemente, em
termos de referenciação, essas especificidades no uso de mecanismos léxico-sintático-
discursivos que implementam o processo de modalização podem ser percebidas,
principalmente, na escolha das formas lexicais responsáveis não só pela criação mas também
pela articulação desses espaços. Na perspectiva teórico-metodológica adotada aqui, os
procedimentos de Lexicalização têm um papel fundamental no processo de referenciação do
texto, uma vez que as operações dos módulos sintático e semântico são mediadas,
implementadas, pelo Léxico.
Entre as formas de dizer, introdutoras de “vozes” no processamento do discurso e,
portanto, criadoras de espaços referenciais, destacam-se, pela importância que representam
para a argumentação, os verbos e/ou expressões dicendi. A opção por uma ou por outra forma
82
verbal dicendi nunca é aleatória nem desprovida de intenção. Quem argumenta sabe muito
bem que a escolha de um verbo ou de outro pode fazer a diferença no julgamento do seu
interlocutor.
Magalhães (1998), refazendo, sob a perspectiva da modalização, a classificação dos
verbos dicendi de Kerbat-Orecchioni (1980) e Fiorin (1996), divide os verbos dicendi em dois
grupos: no primeiro, inclui os verbos ilocucionários e os não- ilocucionários, que seriam
aqueles que fornecem as características da enunciação sem trazer para a cena enunciativa as
informações que explicitam o julgamento do seu enunciador. No segundo grupo, inclui os
verbos modalizadores, que, segundo ela, têm uma dupla função: descrevem o processo de
enunciação e, ao mesmo tempo, indicam os julgamentos atribuídos a seus enunciadores.
Observe-se como, para indiciar a fala da personagem, a escolha de um ou de outro
verbo dicendi deixa transparecer para o alocutário a intenção do locutor de correlacionar o
comportamento da personagem com o que possivelmente ela estava sentindo.
(38) E0{E1[- Não fui eu que quebrei a vidraça, balbuciou a criança]E1}E0.
(39) E0{E1[- Não fui eu que quebrei a vidraça, choramingou a criança.]E1}E0
(40) E0{E1[- Não fui eu que quebrei a vidraça, revoltou-se a criança.]E1}E0
(41) E0{E1[- Não fui eu que quebrei a vidraça, gritou a criança.]E1}E0
(42) E0{E1[- Não fui eu que quebrei a vidraça, berrou a criança.]E1}E0
Quando esse procedimento discursivo que se baseia na escolha de uma ou de outra
forma de dizer é utilizado pelo locutor para atribuir a um enunciador estranho uma asserção
cuja responsabilidade não assume diretamente, ocorre o que Ducrot chama de argumento por
autoridade, que é uma das formas da manifestação da polifonia do discurso. Para Ducrot
(1980) e também para Vogt (1979), citados por Koch (1999, p.145), esse recurso é constante
no processamento do discurso e oferece ao locutor a possibilidade de tirar de uma asserção
83
atribuída a outrem as conseqüências que lhe interessam. É o que acontece, por exemplo, em
uma decisão judicial quando o Juiz argumenta com verbos desse tipo ou com operadores
argumentativos modalizadores como os que se vêem nos exemplos abaixo:
(43) E0{“Ensina o mestre ainda que deve ter-se em mente que...”}E0
(44) E0{E1[“Segundo a testemunha H.E.I.N., ... A. desviou mesmo o adubo em
questão...”]E1}E0
(45) E0{“Realmente,E1[ noticia a médica, a testemunha Drª T. A. C. R.,E2[na
declaração de fls....”27]E2]E1}E0
(46) E0{“Aliás, a testemunha A.D.S. (f. 143) E1[conta que, de certa feita...”]E1}E0
No texto argumentativo, a construção de Instâncias de Enunciação pela ativação de
verbo dicendi +tipo de modalizante é tão recorrente, que se torna inconcebível imaginar a
ocorrência de qualquer forma de argumentação sem se recorrer a esse procedimento,
principalmente quando se trata da argumentação na área jurídica. Pode-se mesmo dizer que,
no texto argumentativo, a criação e articulação de Instâncias de Enunciação constituem um
procedimento discursivo por meio do qual o locutor procura dar credibilidade à própria voz,
articulando-a com outras em busca do convencimento ou da persuasão do alocutário.
3.5.1.1.6 Os operadores discursivos e a articulação de Espaços Referenciais
Além das formas de dizer, também os chamados operadores discursivos têm um papel
fundamental no processo de referenciação e, conseqüentemente, na produção de inferências.
Na materialidade do texto, a construção e articulação de instâncias de enunciação e de outros
84
espaços referenciais são indiciadas pela ativação de determinadas propriedades gramaticais
dos itens lexicais selecionados. Uma dessas propriedades é a recursividade: “Termo usado na
Gramática Gerativa para indicar regras capazes de ser aplicadas repetidamente ao se gerar
uma sentença e também às estruturas geradas dessa forma”. (Crystal, 1998, p.220). A noção
de recursividade se baseia no princípio de que as regras recursivas constituem a principal
maneira formal de explicar a criatividade da língua. Segundo Perini (1985, p.156), a
recursividade é uma propriedade que possibilita a geração de um conjunto ilimitado de
sentenças a partir de um conjunto limitado de regras, promovendo o encaixe de estruturas
dentro de outras estruturas da mesma classe. Magalhães (1998, p.158) destaca que a ativação
de planos subalternos no interior do plano base caracteriza-se pela ativação de itens lexicais
com propriedades recursivas, que possibilitam o encaixe de uma instância de enunciação em
outra e, conseqüentemente, de outros planos enunciativos dentro do plano base. Assim, as
propriedades dos itens que instituem as instâncias de enunciação sinalizam não só a
construção mas também a articulação dessas instâncias no plano base.
Lopes (1998, p.133) diz que a recursividade, no módulo semântico, e a articulação
hierárquica das Instâncias de Enunciação, no módulo gramatical, produzem a hierarquia da
rede de instâncias enunciativas no discurso. Ressalta a importância da conjunção integrante
que como um dos recursos mais usados para encaixar uma enunciação em outra.
Além dos pronomes relativos e das conjunções, outros itens lexicais mostram-se
importantes na função de articuladores de instâncias enunciativas e de outros tipos de espaços
referenciais. Essa função é definida com base no processamento discursivo, por isso pode ser
exercida por diferentes categorias de recursos gramaticais. Incluem-se, entre esses
articuladores, outros elementos coesivos como os advérbios e outros itens que, na
referenciação do texto, indiciam a ligação entre espaços referenciais distintos, ou seja,
indiciam que a referenciação de um espaço referencial deve ser feita a partir de seu
85
relacionamento com outro ou outros. Observe-se o seguinte exemplo apresentado por
Magalhães (1998, p.159):
(47) “Temos, ainda, a questão da enxurrada de medidas provisórias. Mas a
enxurrada flui nas brechas de uma legislação permissiva e com o apoio ao menos tácito do
Congresso”.
Observe-se que, nesse exemplo, a palavra ainda introduz um outro argumento que
vem se somar a outros apresentados pelo falante. É assim que o alocutário deve entender a
presença desse elemento articulador no exemplo dado. A palavra Mas indicia a introdução de
um argumento que joga por terra a aparente vantagem que parecia ser possível detectar no
argumento anterior. A expressão ao menos indicia o fato de que o Congresso Nacional apóia
a enxurrada de medidas provisórias mas não o faz expressamente.
Vejam-se outros exemplos em que os itens destacados são fundamentais na
referenciação do texto, uma vez que obrigam o alocutário a fazer inferências com base na
relação entre as partes do texto interligadas por tais articuladores.
(48) “Os fazendeiros, que não são mais obstáculo, insistem no cumprimento da lei e
se sentem objeto de pressão política injustificável, pois só querem continuar a produzir e em
paz, o que, aliás, têm feito com sucesso, apesar de enormes dificuldades”.
(49) “Quanto ao Congresso, parte importante das preocupações manifestadas se
dirige, sobriamente apreciada, ao fato simples de que o presidente erigiu ampla base de apoio
parlamentar”.
86
(50) “Enquanto isto – enquanto a reforma do aparelho policial não vem - as
quadrilhas se organizam com recrutas novos ou remanescentes de outras quadrilhas
eventualmente desarticuladas”.
(51) “A Lei de Imprensa que está em discussão no Congresso pretende oficializar o
preço da honra alheia. Fui processado por um promotor e condenado a pagar- lhe 200 salários
de sua função, quase 200 mil. Depois de ter perdido nas instâncias estaduais, ganhei no STJ e
nada lhe paguei. De forma que , para não correr risco, agora só comprarei briga com quem
ganhar menos de dois salários mínimos”.
(52) “Se uma notícia ofensiva no ‘The Wall Street Journal’, por exemplo, acarreta a
falência de uma empresa do ramo financeiro, por que não pode o jornal defrontar-se com
indenizações de vulto, que reparem o dano eventualmente causado e até, como conseqüência,
possam vir a ser fator de instabilidade ou falência para a empresa de comunicação?”
Magalhães (1998, p.161) entende que a distinção entre esses operadores
argumentativos deve ser feita de acordo com a sua utilização, devendo ser levado em conta o
seguinte:
1. as conjunções relacionam entre si as Instâncias de Enunciação, principalmente as indiciadas por verbo “dicendi”, podendo, nesse caso, ocorrer no interior da IE0, ligando entre si os vários planos que formam o plano base; 2. os advérbios, segundo ela, “dêiticos por excelência”, veiculam informações que orientam o recebedor sobre a localização de tempo / espaço dos enunciadores e ainda funcionam como modalizadores do discurso; 3. os marcadores discursivos são itens lexicais sem classe gramatical definida e servem de apoio ao interlocutor. Apesar de sintaticamente independentes, são, semanticamente, muito importantes, por modalizarem o discurso ao acrescentarem informações que revelam a atitude do falante em relação ao enunciado que produz.
87
Observe-se como a escolha de um operador discursivo pode modalizar o discurso de
diferentes maneiras, conforme seja ativado, a cada vez, um operador diferente de acordo com
a intenção que se deseja atribuir ao falante. Imagine-se a seguinte asserção feita por um
político em um grande jornal:
(53) As próximas eleições não serão tão fáceis.
Compare-se, agora, com as seguintes modalizações desse mesmo enunciado:
(54) Talvez as próximas eleições não sejam tão fáceis
(55) Com certeza, as próximas eleições não serão tão fáceis.
(56) Indubitavelmente, as próximas eleições não serão tão fáceis.
(57) De fato, as próximas eleições não serão tão fáceis.
(58) Evidentemente, as próximas eleições não serão tão fáceis.
Como se vê, há tipos de operadores discursivos que desempenham um papel
fundamental na articulação de espaços referenciais e, conseqüentemente, no processamento
discursivo, principalmente no processamento de textos argumentativos. Esses mecanismos
discursivos orientam o alocutário na referenciação do texto, levando-o a perceber as conexões
realizadas pelo locutor na organização dos argumentos apresentados. O papel desempenhado
por esses operadores discursivos será mais enfatizado por ocasião da análise do corpus.
O quadro teórico apresentado neste capítulo possibilita a construção de um modelo de
processamento discursivo com que se tentará comprovar a hipótese deste trabalho, segundo a
qual o processo de argumentação envolve necessariamente a criação e articulação de espaços
88
referenciais criados ou delimitados por instâncias de enunciação. Para que se possa
compreender melhor como se poderá chegar ao modelo de que se cogita, será apresentada, a
seguir, uma síntese deste capítulo.
3.6 Síntese e Conclusão do Capítulo com a Apresentação de um Modelo de Processamento Discursivo
A busca de um modelo de processamento discursivo a ser adotado exigiu inicialmente
a definição da concepção de linguagem com que se vai trabalhar. Adotou-se, então, aquela
que considera a linguagem como atividade de interação. Isso significa que neste trabalho a
linguagem não é analisada apenas a partir das formas lingüísticas, mas passa a ser considerada
também a partir de seu funcionamento. Nessa concepção de linguagem, postula-se que o
sentido não está pronto e acabado nas formas lingüísticas, mas é construído discursivamente
na atividade de interação. Considerar a linguagem como atividade, como ação, como
processo, é considerá- la como enunciação, noção que foi explicitada com base em Benveniste
(1970, 1989), Bakhtin (1995, 1998, 2000), Ducrot (1987), Koch (1999), Oliveira &
Nascimento (1993), Maingueneau (1998), Possenti (1993), Dubois et al (1998) e Bronckart
(1999).
Com base em Benveniste (1970, 1989), explicitou-se, também, o que se entende por
instância de enunciação e quais os elementos que compõem necessariamente uma instância de
enunciação. Demonstrou-se que um desses elementos é a referência e que ela é sempre
construída pelos interlocutores na interação discursiva. Postulou-se que o processamento
discursivo é implementado pela criação e articulação de instâncias de enunciação que formam
a rede que caracteriza o discurso. Defendeu-se, também, que o discurso em sua totalidade é
89
uma instância de enunciação e que a referenciação dessa instância e, logicamente, do
discurso, também se faz discursivamente, pois resulta da integração entre essa instância e as
demais que se criam e se articulam no interior dela e a ela se integram. Adotada essa
concepção de linguagem, adotou-se também a Teoria Modular de Castilho (1998), que postula
que a linguagem, ou a enunciação, ou o processamento discursivo, se dá obrigatoriamente por
operações de discursivização, que englobam as operações de lexicalização, de
gramaticalização e de semantização. Como o processamento discursivo é implementado
necessariamente pela criação e articulação de instâncias de enunciação conforme se destacou
anteriormente, conclui-se que as operações de discursivização, postuladas por Castilho (1998)
em sua versão da Teoria Modular, como sendo as operações pelas quais se dá o
processamento discursivo, são as mesmas através das quais se criam e se articulam as
instâncias de enunciação.Isso leva à conclusão também de que a referenciação se dá por essas
operações de discursivização. Deixou-se claro que em cada instância de enunciação se
referencia uma “voz” no processamento discursivo. Assim, como se postula que o discurso
resulta da integração de instâncias de enunciação, assumiu-se, com Lopes (1998), que uma
das manifestações da polifonia se caracteriza pela criação e articulação de instâncias de
enunciação.
Ao se descrever a estrutura da instância de enunciação, apontou-se a referência como
parte integrante e indispensável dessa estrutura. Defendeu-se que a referência é sempre
construída discursivamente. Assumiu-se que cada instância de enunciação possui o seu centro
de referência interno, construído na e pela interação discursiva e que a referenciação do
discurso como um todo se faz pela integração de todas as instâncias de enunciação que
compõem o discurso. Procurou-se, então, explicitar um modelo que possa ser
operacionalmente útil no trabalho de se evidenciar como a mente humana produz o
significado. Nesta tarefa, apresentaram-se alguns pressupostos defendidos por Oliveira &
90
Nascimento (1993) a favor de um Processo de Referenciação. Recorreu-se também à Teoria
dos Espaços Mentais de Fauconnier (1994, 1996, 1997) e de Fauconnier e Turner (2002) e a
contribuições de Martins (2000), Cavalcante (2002) e Vieira (2003). Com eles assumiu-se que
instâncias de enunciação são espaços referenciais básicos necessariamente
constituintes/constituídos no processamento discursivo. Conseqüentemente, assumiu-se
também que o Processo de Referenciação se dá pela criação e integração desses espaços e que
essa integração resulta das operações de Identificação, Integração e Imaginação postuladas
por Fauconnier e Turner (2002). Com Vieira (2003), assumiu-se que essa integração
caracteriza-se sempre por manifestar a propriedade da contrafactualidade, Relação Vital
necessária no Processo de Integração Conceitual, responsável pela produção de sentido. Com
Cavalcante (2002), assumiu-se que toda instância de enunciação é um espaço referencial,
embora nem todo espaço referencial seja uma instância de enunciação. Há espaços
referenciais que, por não serem constituídos por uma forma de dizer, não são instâncias de
enunciação, mas são constituídos, inevitavelmente, no interior de uma instância de
enunciação. Assim, entende-se que um texto é formado de Espaços Referenciais constituídos,
ou delimitados, por Instâncias de Enunciação. Adotar esse entendimento significa admitir que
todo texto é formado por mais de um espaço referencial, já que a operação de Identificação
supõe operar sempre com dois espaços: o factual (Espaço-R) e o seu contrafactual. Significa
admitir também que todo texto é formado sempre por um espaço referencial integrado,
resultante das operações responsáveis pela sua própria construção, ou seja, resultante da
integração de/com os demais espaços.
91
3.6.1 Apresentação e experimentação do modelo proposto
Com fundamento em tudo isso, postula-se que o texto argumentativo resulta sempre da
integração de falas, aqui consideradas Instâncias de Enunciação, e / ou outros tipos de
Espaços Referenciais criados no interior de uma Instância de Enunciação. Isso é o que se
pretende demonstrar com a análise de alguns trechos de textos extraídos do corpus deste
trabalho. A análise será feita com base no modelo de processamento discursivo que se passa a
adotar e que será testado a seguir.
Observe-se o trecho abaixo, parte da enunciação do Juiz, constituído como E0, na qual
ele argumenta em busca da comprovação de que as pessoas referidas eram casadas de fato e
de direito:
(59) IE0/E0{...A.D.G. e T.A.D. casaram-se no dia 19 de abril de 1986, pelo regime
de comunhão de bens. Ela, solteira, 48 anos de idade; ele, também solteiro, com 36.}IE0/E0
Como não se indicia, nesse trecho, nenhuma outra instância de enunciação além da
IE0, que corresponde à “voz” do Juiz, E0, a referenciação deve ser feita no espaço referencial
dessa instância, domínio único de referência. Pela referenciação desse trecho, entende-se que
a asserção nele contida é de inteira responsabilidade do Juiz, E0.
Graficamente, esse trecho poderia ser representado da seguinte forma:
92
FIGURA 9 - Texto: 59: Referenciação no Domínio Único de Referência Integrado
Entretanto, a fala integral do Juiz, E0, a respeito da realização do casamento de A.D.G.
e T.A.D. é a seguinte:
(60) IE0/E0{E1[Consoante a prova carreada para os autos]E1, A.D.G. e T.A.D.
casaram-se no dia 19 de abril de 1986, pelo regime de comunhão de bens. Ela, solteira, 48
anos de idade; ele, também solteiro, com 36.}IE0/E0
Nesse caso, “a prova carreada para os autos”, segundo a qual A.D.G. e T.A.D.
haviam-se casado, é uma enunciação que se instancia pela ativação do item lexical “prova”,
considerado por Magalhães (1998) como expressão de elocução, e que institui um outro
espaço referencial criado na e pela enunciação do Juiz, E0. Esse espaço, ao ser criado,
integra-se instantaneamente à IE0, espaço base, onde foi criado, formando com ele um
terceiro espaço referencial, o Domínio Único de Referência Integrado, onde se dá a
93
referenciação de toda a IE0. Percebe-se, então, que o Juiz, E0, ao asseverar que A.D.G. e
T.A.D. haviam-se casado, exime-se da responsabilidade sobre a veracidade de tal asserção ao
fazê-la com base na prova carreada para os autos.
A integração de espaços referenciais nesse trecho é facilmente percebida. Um espaço
factual, representado pela asserção do Juiz, E0, a respeito da realização do casamento de
A.D.G. e T.A.D., e o espaço contrafactual criado pela forma de dizer “prova”. É com base
nesse espaço referencial contrafactual “Consoante a prova carreada para os autos” que o
Juiz se sente seguro para asseverar a respeito do estado civil de A.D.G. e T.A.D. A
referenciação da enunciação do Juiz, E0, no trecho analisado se faz pela integração dos dois
espaços, resultando no espaço integrado único, que constitui o Domínio Único de Referência
Integrado. Graficamente, esse trecho pode ser representado pela figura abaixo:
FIGURA 10 - Texto 60: Referenciação no Domínio Único de Referência Integrado
94
O desenho desse modelo, semelhante ao proposto por Cavalcante (2002), busca
representar a integração de espaços referenciais, que caracteriza o texto argumentativo. Nesse
modelo, as instâncias de enunciação são representadas por triângulos enquanto os espaços
referenciais não constituídos por instâncias de enunciação são representados por círculos.
A análise desse trecho encerra quase tudo quanto se disse sobre o modo como se dá o
processamento discursivo em geral e o processamento discursivo do texto argumentativo em
particular. Conforme se viu, o processamento discursivo do trecho analisado se dá por
operações de discursivização que envolvem a criação e articulação de Instâncias de
Enunciação, através das operações de lexicalização, ativação de itens lexicais, sem a qual não
se dá a enunciação; através também das operações de gramaticalização, ativação das
propriedades gramaticais dos itens lexicais ativados, que permitem o arranjo sintático desses
itens na tessitura do texto; através ainda das operações de semantização, pelas quais se busca
a produção de sentido do texto. São operações simultâneas e coincidentes com as operações
de identificação, integração e imaginação, através das quais a mente produz o significado, de
acordo com Fauconnier e Turner (2002).
A discursivização do trecho analisado iniciou-se pela criação em default da Instância
de Enunciação Zero, a IE0, correspondente à voz do Juiz, constituído como E0. No interior
dessa instância enunciativa, foi criada uma outra, a IE1, que corresponde à prova da
realização do casamento entre os dois litigantes. Ao ser criada, ela se integrou, automática e
instantaneamente, à IE0. Cada uma das instâncias de enunciação desse trecho constitui um
espaço referencial, cada um com o seu centro de referência interno. A integração dos dois
espaços criou um terceiro, o Espaço Único Integrado, o Domínio Único de Referência
Integrado. É nesse espaço que é feita a referenciação do trecho como um todo. A forma de
dizer “prova”, com o auxílio do operador argumentativo “consoante”, é responsável, nesse
trecho, não só pela indiciação de uma nova instância de enunciação mas também pela
95
articulação entre esta e a IE0. A expressão “consoante a prova” funciona também como
elemento de modalização, uma vez que a instância de enunciação ativada por ela é usada
como uma espécie de argumento de autoridade, com o qual o Juiz procura dar credibilidade à
sua afirmação de que A.D.G. e T.A.D. eram casados.
A análise do trecho a seguir pretende demonstrar que o Espaço Único Integrado do
texto argumentativo pode resultar da integração não só de Instâncias de Enunciação mas
também de outros tipos de Espaços Referenciais criados no interior de Instâncias de
Enunciação.
(61) IE0/E0{ E1[Sustenta, por fim, que EM1( se soubesse previamente desta
identidade do autor-reconvindo, o que torna a vida insuportável com ele, não se teria casado
de forma alguma)EM1]E1}IE0/E0.
No processamento discursivo desse trecho, integram-se três espaços referenciais na
formação do Espaço Único Integrado: o espaço delimitado pela instânc ia de enunciação zero,
correspondente ao “espaço-origo” da realidade de {E0}; o espaço criado pela instauração da
instância enunciativa de [E1], ativada pela forma verbal dicendi sustenta; e o espaço
referencial hipotético / contrafactual, (EM1), construído pela ativação do imperfeito do
subjuntivo em “...se soubesse previamente desta identidade do autor-reconvindo...”, que
leva à ativação simultânea do futuro do pretérito composto em “...não se teria casado de
forma alguma.”
Embora a contrafactualidade seja uma propriedade básica na criação e integração de
qualquer tipo de espaço referencial, costuma-se chamar de hipotético / contrafactual o espaço
mental criado pela fórmula se ...( então)..., conforme já se destacou anteriormente. No trecho
acima, o se...(então)..., que corresponde ao segmento em negrito, criou um espaço referencial
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imagético, contrafactual. No aqui/agora desse espaço referencial contrafactual, o locutor
constituído como [E1] não conhecia a identidade do autor-reconvindo, já que o aqui/agora
desse espaço é anterior ao do espaço factual da realidade discursiva de [E1]. Criado no
interior da instância de enunciação IE1, espaço factual da realidade discursiva de [E1], o
espaço referencial contrafactual (EM1) integra-se instantaneamente a essa instância, e ambos,
também instantaneamente, integram-se à instância de enunciação zero, a IE0, formando um
outro espaço referencial, o Espaço Único Integrado ou Domínio Único de Referência
Integrado, onde se dá a referenciação de todo o trecho analisado.
O Espaço Único Integrado desse trecho, como se vê, resulta da integração de espaços
referenciais criados pelas instâncias de enunciação IE0 e IE1 e de um espaço referencial
hipotético-contrafactual, EM1, criado não por uma instância de enunciação, mas pela fórmula
construtora de espaço mental se...(então)... com ativação do imperfeito do subjuntivo.
Graficamente, o trecho analisado pode ser representado da seguinte forma:
97
FIGURA 11 - Texto 61: Referenciação no Domínio Único de Referência Integrado
Tendo-se demonstrado, pela análise dos trechos acima, como funciona o modelo de
processamento discursivo proposto, será demonstrado, a seguir, como esse modelo pode
explicar o objeto de estudo deste trabalho.
98
4 ANÁLISE: A CONSTRUÇÃO E INTEGRAÇÂO DE ESPAÇOS REFERENCIAIS NA PRODUÇÃO DE SENTENÇA JUDICIAL JURÍDICOS
4.1. A Apresentação do Corpus
O texto a seguir, texto-base constitutivo do corpus deste trabalho, encontra-se em
Nunes (1997, p.109-130), que o apresenta como sendo a íntegra de uma sentença judicial
proferida em Ação de Separação Judicial acumulada com Ação de Anulação de Casamento
em Reconvenção, em uma comarca de Minas Gerais. É pela análise desse texto que se
pretende buscar a confirmação ou a negação da hipótese deste trabalho.
62) Sentença Judicial que anula casamento (em reconvenção)5
Autos n. 7.570
Autor-reconvindo: A.D.G.
Ré-reconvinte: T.A.D.
Ação: Separação Judicial
Reconvenção: Anulatória de Casamento
Vistos, etc.
5 “Reconvenção é, na clássica definição de João mo nteiro, ‘a ação do réu contra o autor, proposta no mesmo feito em que está sendo demandado’. [...] Segundo tradição que remonta ao Direito Romano, com ela se
formam duas ações mútuas num só processo: ‘a originária, que os jurisconsultos romanos chamavam conventio, e a segunda, oposta àquela pelo réu, reconventio.” (THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de
direito processual civil. Rio de Janeiro:Forense, 1998. 1 v. p.390)
99
A.D.G., qualificado nos autos, ajuizou uma ação de separação judicial contra sua
mulher T.A.D., também qualificada, alegando, em resumo, que se casou com a ré no dia 19 de
abril de 1986, pelo regime da comunhão de bens; que o matrimônio foi procedido de uma
certa forma de sedução, por parte da ré, que desde muitos anos cercava o autor com esse
objetivo, mesmo tendo-se em conta a grande diferença de idade entre ambos, “fato que o
Requerente esperava atenuar com sua dedicação ao lar, ao trabalho, e às coisas comuns do
interesse de ambos”; que, no entanto, de pessoa afável, que o incentivava e lhe prometia uma
vida de plena felicidade, no início do casamento, a ré, todavia, com o passar dos meses,
revelou sua verdadeira personalidade, “de mulher egoísta, irasciva, sovina, calculista,
argentária, possessiva”, demonstrando atitudes inaceitáveis, ofendendo-o moralmente,
publicamente, notadamente quando ele, autor, estava com amigos ou conhecidos,
oportunidades em que a ré o chamava de “sem-vergonha”, “explorador” e “desgraçado”,
chegando ao cúmulo de dirigir correspondência ao Banco do Brasil, agência local, impedindo-
o de fazer financiamento, “fato que o desmoralizou completamente”, chegando, mesmo, a ré a
despedir empregados contratados pelo marido, para as lidas na fazenda, ao argumento de que
ele não prestava e em nada mandava; que, por fim, difundiu pela cidade que o autor estava
“roubando” o seu gado para vender, e passou a dormir com uma faca sob o travesseiro, em
franca ameaça ativa ao marido.
Assevera, mais, o autor, que ocorreram fatos estarrecedores na vida do casal, e que em
todos eles a ré visava a desmoralizá- lo, levando-o ao desespero, de forma a fazer germinar em
sua cabeça pensamentos suicidas.
Sustenta, por fim, “que o comportamento agressivo da Requerida jamais poderia ser
rotulado de um desequilíbrio passageiro, ou mesmo de uma síndrome resgatável; seus
familiares sempre a conheceram como uma pessoa difícil, intratável, que encasulou seu gênio
até o casamento, para depois abrir as comportas exasperativas contra aquele que teve a
100
infelicidade de desposá-la e sem nenhuma responsabilidade no fato de trazer esta uma
verdadeira idiotia de caráter hereditário, irreversível pela própria origem.”
Alegando, como fundamento do pedido, o revogado art.317 do Código Civil, e
também o art.5º da Lei n.6.515/77, sustenta o autor que foi ofendido em sua honra e em sua
dignidade, o que leva à insuportabilidade da vida em comum.
Pede-se, no final a procedência da ação, com a declaração da ré como cônjuge
culpado, com a decorrência de direito.
Veio a inicia l com os documentos de f.8 e 9 ( instrumento de procuração e fotocópia
de certidão do termo de casamento).
A tempo, após frustrada tentativa de reconciliação do casal em face da ausência da ré
( f.16), contestou ela a ação, alegando, em suma, que é infundada a alegação do autor, de que
foi levado ao casamento por insistência da mulher, uma vez que não era ele ingênuo, eis que
contava 36 anos naquela época, sendo um homem “vivido e experiente”; que a dedicação ao
lar, ao trabalho e às coisas do interesse do casal, mencionada pelo autor, nunca passou, por
parte dele, de “simples declarações de intenções”; que “vida a dois”, como alega ele, jamais
existiu, mesmo porque, antes do casamento – sabe-se agora-, anunciou ele que somente se
casaria pelo regime de comunhão universal de bens com o indiscutível propósito de adquirir
os bens da ré, tanto que, já no dia do casamento, no início da viagem de núpcias, passou a
falar em “seus bens” e a apresentar as dívidas contraídas antes, revelando-se outra pessoa; que
desde o retorno da viagem de núpcias, de posse de um automóvel da mulher, “não encontrou
mais tempo” o autor para permanecer em casa, inventando viagens e mais viagens, alegando
que tinha negócios a resolver, sem esclarecer, todavia, que negócios eram esses; que, além de
agressivo para com a esposa, o autor somente falava de um único assunto: é minha fazenda,
meu gado, meu dinheiro, meus negócios e minhas dívidas”, e, para as misteriosas viagens, o
autor vendeu, inúmeras vezes, gado da mulher, além de tomar- lhe dinheiro; que a propalada
101
“faca debaixo do travesseiro” jamais existiu, e muito menos existiram as ofensas e injúrias de
que se diz vítima o autor; que o marido; “sempre desesperado por dinheiro”, contraiu um
empréstimo no Banco do Brasil S.A, para o custeio de uma lavoura, mas, em vez de aplicar na
mesma o adubo adquirido com tais recursos, vendeu-o o autor a terceiros, de forma que a
lavoura em questão nada produziu; que, se pediu ao Banco do Brasil para não mais emprestar
dinheiro ao autor, fê-lo porque tem o direito e o dever de preservar o seu patrimônio; e,
finalmente, alega que a propalada idiotia de que seria portadora “é o próprio fato de a
Contestante ter acreditado em suas promessas e, por isso mesmo, ter sido induzida em erro
quanto à sua pessoa.”
Veio a resposta com o instrumento de procuração de f.21.
Dentro do prazo destinado à contestação, ofereceu a ré reconvenção ao autor,
objetivando a anulação do casamento (F.22/25).
Alega a ré-reconvinte que, durante o período de namoro e de noivado, que durou
aproximadamente um ano, o autor-reconvindo demonstrava ser uma pessoa de
comportamento normal e prometia, além do mais, “ser marido ideal” para ela; que, no
entanto, a caminho do balneário de Caldas Novas, no Estado de Goiás, quando o casal
pernoitou na cidade de Morrinhos, também no referido Estado, teve início a sua desdita, uma
vez que “sentiu e viu de perto o começo de uma tragédia”, já que conheceu a “outra face” do
homem em quem depositava toda a sua esperança; que, de fato, o autor-reconvindo, no
primeiro contato íntimo com a esposa, quis com ela praticar, de modo agressivo, “coito anal”,
dizendo-lhe, naquele instante, que a mulher casada não era dona de seu corpo e que tem ela a
obrigação de submeter-se à vontade do marido; que, ante a recusa em permitir o coito anal,
expondo-se à tara do marido, este, irritado, “estuprou-a”, causando-lhe, em face do violento
ato, grave lesão no seu órgão genital, bem como hemorragia e as piores dores de sua vida,
estado que a impediu, durante muitos dias , de locomover-se normalmente”; que procurou
102
tratamento médico na vizinha cidade de Uberlândia, em razão desse fato, conforme atestado
médico anexo; que, durante o desastrado período em que viveu com o réu-reconvindo, com
ele manteve relação sexual apenas cinco vezes.
Assevera, mais, a ré-reconvinte, que mal convalescia da lesão, teve sua saúde afetada
novamente, cerca de vinte dias depois do casamento, vez que fora acometida por uma
“blenorragia” que lhe fora transmitida pelo autor-reconvindo, sendo ela então obrigada a
submeter-se a tratamento médico com o Dr. P.B, médico em Uberlândia, ocasião em que
constatou a moléstia, por meio de exame laboratorial, também no varão.
Sustenta, mais, que depois da viagem de núpcias, o autor-reconvindo praticamente não
ficava na fazenda, na companhia da esposa, passando a maior parte do tempo em suas
intermináveis viagens e, quando com a mulher conversava, falava apenas sobre “minha
fazenda, meu gado, meu dinheiro, meus negócios e minhas dívidas”, sendo que ditas viagens
misteriosas eram feitas sempre às expensas da mulher, que chegou a pagar dívidas dele,
contraídas antes do casamento, inclusive o “terno do casamento” e o álbum de fotografias.
Alega, por fim, a ré-reconvinte, que o autor-reconvindo, não estando satisfeito com o
dinheiro que lhe dava a esposa e com o dinheiro conseguido com a venda de gado bovino,
passou a vender objetos de uso pessoal, o próprio anel nupcial, uma “capota” e dois tapetes de
carro, além de vender adubo destinado à lavoura, e que fora adquirido com financiamento do
Banco do Brasil, revelando, com isso, uma manifesta prodigalidade.
Sustenta, em resumo, que a tentativa de “coito anal” seguida de “estupro”, a
“blenorragia” e a “prodigalidade” são fatos reveladores da verdadeira identidade civil e
psicossocial do reconvindo, antes do casamento, sendo indiscutível que foi induzida a erro e,
por isso, tornou-se insuportável a vida em comum.
Pede, no final, que seja julgada procedente a reconvenção, decretando-se a anulação
do casamento.
103
Veio a reconvenção com os documentos de f.26 usque 33.
Contestando a reconvenção, nega o autor-reconvindo a alegada tentativa de praticar
coito anal com a esposa, asseverando que o homem, no casamento, ao ter a mulher para o
primeiro ato sexual é conduzido pelos impulsos da “himenolatria”. Indaga, aliás, o autor-
reconvindo: “Será que, no caso, não existia razão para a busca da virgindade?”
Nega, também, o alegado, estupro, dizendo ser essa uma afirmação “vulnerável, uma
vez que somente depois de um ano vem a ser feita pela ré-reconvinte, pois o silêncio, no
tempo, determina o consentimento, mesmo com a realidade dos fatos, fatos estes, nascidos da
inteligência, da busca desenfreada dos recursos anulatórios do casamento.”
Sustenta que o documento médico noticiador da “dilaceração perineal” não fala em
“dilaceração anal” e que inexiste prova de que tenha sido ele, autor-reconvindo, que
contaminou a mulher com “blenorragia”, eis que, se ambos estavam contaminados, após o
casamento, é possível imaginar o autor da contaminação? Por que ele e não ela?
Contesta o autor-reconvindo, finalmente, a alegada prodigalidade, asseverando que
esta se dá quando se dilapidam bens, se dissipam haveres e quando a pessoa é gastador
inconseqüente, e que a venda a cinto e chapéu não a caracteriza.
Pede, por fim, a improcedência da reconvenção.
Oficiou no eito, pela vez primeira, o Ministério Público (f.43 v.)
Nomeado Curador ao Vínculo, em razão da reconvenção, manifestou-se ele pela
improcedência do pedido reconvencional (f.48/49).
Despacho saneador irrecorrido (f.54 v.), no qual deferi o exame médico-pericial na
pessoa do autor-reconvindo, destinado à prova da prodigalidade.
Compromissado o perito (f.59), apresentados quesitos por parte da ré-reconvinte
(f.61), designada a data para a realização do exame (f.63v.), o autor-reconvindo não foi
encontrado pelo Oficial de Justiça, que certificou estar ele em lugar incerto e não sabido
104
(f.70v.). Intimado seu douto procurador para fornecer o novo endereço, não o fez S.Exa.
pedindo, no entanto, que nova data fosse designada para o exame, comprometendo-se a
permitir a realização do mesmo (f.75). Finalmente, às f.116, o nobre procurador do autor-
reconvindo informou desconhecer o seu real endereço.
Designei, então, nova data para a realização do exame, determinando a intimação do
autor-reconvindo por edital (f.119), o que foi feito (f.122/124). O exame não se realizou,
porém, porque a pessoa que deveria ser examinada (o autor-reconvindo) não compareceu no
dia e hora designados, conforme informações do perito (f.126).
Designada nova data para a audiência de instrução e julgamento, que fora adiada em
razão do exame pericial frustrado, intimou-se o autor-reconvindo, ainda por edital, para
comparecer ao ato (f.132/134).
Realizada a audiência, sem a presença do autor-reconvindo (f.136/143), fizeram as
partes, o Curador ao Vínculo e o DD. Representante do Ministério Público, suas alegações
finais por meio de memoriais.
Pede o autor-reconvindo a procedência da ação de separação a improcedência da
reconvenção. Sustenta que a ré-reconvinte, na contestação, confessa que deu mesmo ordens
ao Banco do Brasil para não entregar dinheiro ao marido, para proteger seu patrimônio,
configurando esse fato “injúria grave” capaz de ditar a dissolução do casamento (sic).
Assevera, quanto à anulação do casamento, que inexiste a prodigalidade porque foram
vendidos objetos de pequeno valor, de uso pessoal, e que inexiste prova da venda do anel
nupcial. Continua negando a tentativa de coito anal. Sustenta, por fim, que se verdadeira a
ocorrênc ia de doença venérea, o fato ensejaria ação judicial, mas ao invés de buscá- la,
esperou a ré-reconvinte que o marido viesse a Juízo para só então alegar o contágio, o que
importa dizer que, em caso contrário, o fato jamais seria alegado e muito menos relevado (f.
144/145 e 146/147).
105
A ré-reconvinte, por sua vez, pede a improcedência da ação de separação e a
procedência do pedido reconvencional. Alega que o autor-reconvindo não oferece prova
alguma de suas alegações quanto ao pedido de separação judicial. Sustenta que foi feita a
prova da tentativa do coito anal, bem como do “estupro”, e também da transmissão de doença
venérea. Assevera, por fim, que é manifesta a prodigalidade, e se soubesse que seria exposta à
tara sexual de seu marido, e se soubesse de sua prodigalidade, certamente com ele não se teria
casado (f.148 e 149/151).
O digno Curador ao Vínculo, Dr. I. P. S., advogado militante nesta comarca, pugna
pela improcedência da reconvenção, asseverando que a ré-reconvinte, segundo a prova,
conhecia o autor-reconvindo de longa data, de forma que não se pode aceitar a alegação de
erro essencial, mesmo porque a mulher não é uma criança ou adolescente, que pudesse ser
facilmente levada pela “lábia” do homem. Sustenta, quanto ao coito anal, que, somente em
caso de consumação, seria ele motivo para anulação do casamento, o que não é a hipótese dos
autos, e mesmo porque o autor-reconvindo não foi ouvido no feito, de forma a confirmar ou
desmentir as afirmações da esposa. Garante, finalmente, o Curador ao Vínculo que a
prodigalidade não está provada, não a caracterizando a venda de objetos de pequena monta
(f.152/154).
O nobre Representante do Ministério Público, por seu turno, opina pela procedência da
ação de separação judicial e pela improcedência da reconvenção. Alega que, realmente,
segundo a prova, o autor-reconvindo deixou o lar conjugal, após um mês de união com a ré-
reconvinte, mas que a injúria alegada por ele na inicial não restou provada. Sustenta,
outrossim, que os termos da reconvenção, quanto ao erro essencial, não parece digno de
acatamento, uma vez que o conhecimento entre o marido e a mulher, antes do matrimônio, era
antigo. Assevera, quanto ao alegado coito anal, que, se verdadeira a alegação, o fato foi
perdoado pela mulher, já que houve, posteriormente, outras relações sexuais. No tocante à
106
transmissão de doença venérea e à prodigalidade, entende o digno representante do Ministério
Público que essas alegações não merecem acatamento. Sugere, S. Exa., enfim, que seja
julgada procedente a ação de separação, reconhecida a culpa recíproca (f. 155/157).
Eis em resumo o relatório do processo.
Vistos e bem examinados os autos, passo a decidir.
Funda-se a ação de separação judicial no art.5, caput. da Lei n. 6.515/77, sob alegação
de que a ré-reconvinte praticou injúria grave, que constitui conduta desonrosa,
consubstanciada no fato de, publicamente, ofender a mulher ao marido, chamando-o de “sem-
vergonha”, “explorador”, e “desgraçado”, bem como no fato de dirigir a mesma uma carta ao
Banco do Brasil, dando ordens para que não fosse ao autor-reconvindo concedido um
financiamento, e ainda por haver a mulher despedido empregados contratados por ele e,
finalmente, por difundir que o marido estava roubando seu gado, e bem assim por passar ela a
dormir com uma faca sob o travesseiro.
Funda-se a reconvenção, outrossim, nos incisos I e III, do art. 219 do Código Civil,
sob alegação da reconvinte de que foi induzida em erro quanto à pessoa de seu marido, que
revelou, logo na noite de núpcias, sua verdadeira face, tentando obrigá- la à pratica do coito
anal, seguindo-se o estupro; de que o autor-reconvindo sofria de “blenorragia”, antes do
casamento, moléstia que transmitiu à esposa; e, finalmente, sob alegação de que o marido é
pródigo, tanto que passou a vender objetos de uso pessoal e do casal, vendendo até o anel
nupcial.
Consoante a prova carregada para os autos, A. D. G. e T. A. D. casaram-se no dia 19
de abril de 1986, pelo regime de comunhão de bens. Ela, solteira, com 48 anos de idade; ele,
também solteiro, com 36.
Relata a ré-reconvinte que, já na noite de núpcias, na cidade de Morrinhos, no Estado
de Goiás, a caminho do balneário de Caldas Novas, também naquele estado, começou a viver
107
uma tragédia, vez que foi aí que o autor-reconvindo revelou sua outra face. Tentou ele, de
modo grosseiro, obrigá- la a praticar o coito anal, asseverando que mulher casada não é dona
de seu corpo, devendo submeter-se à vontade do marido. Como ela se recusasse a expor-se à
tara do marido, este, irritado, “estuprou-a”, causando- lhe grave lesão no órgão genital, tanto
que, posteriormente, foi obrigada a fazer um tratamento médico com a Dra. T. A. C. R. na
cidade de Uberlândia.
De fato, a referida médica declara, no documento de f. 27, corroborado, com as
formalidades do contraditório, por meio do depoimento de f.112, haver examinado a ré-
reconvinte no dia 28 de abril de 1986, nove dias após o casamento, ocasião em que constatou
“Grande laceração na região perineal, com dor e sangramento no local”, “laceração” aliás,
quer dizer “ferimento” e “rasgão”.
Ainda segundo a ré-reconvinte, mal convalescia ela das lesões causadas pelo
“estupro”, que a impediram de locomover-se normalmente durante muitos dias, veio a
verificar que fora acometida por uma doença venérea, mais precisamente uma “blenorragia”,
moléstia que a fora transmitida pelo marido, obrigando-a mais uma vez, a procurar tratamento
médico na cidade de Uberlândia, dessa vez com o Dr. P. C.
Realmente, noticia a médica, a testemunha Dra. T. A. C. R., na declaração de f.27,
digo, no depoimento de f.112, que voltou a examinar s ré-reconvinte no dia 15 de maio de
1986, quando constatou que esteve ela com uma infecção genital intensa, quando foram
realizados exames laboratoriais, detectando-se trichaomaníase, que normalmente é originária
de relacionamento sexual. Os resultados dos exames a que se submeteu a ré-reconvinte estão
estampados às f.30 a 32, sendo certo que também o autor–reconvindo submeteu-se a este tipo
de exame, quando se constatou que também ele era portador da moléstia venérea. Aliás, no
atestado de f.33, corroborado pelo depoimento de f.113, o mencionado médico R. B. confirma
108
que a ré-reconvinte foi contaminada, afirmando que tratou-a no período de 13 de maio a 9 de
junho de 1986, de uma Uretrite Gonococica.
Finalmente, alega a ré-reconvinte que o autor-reconvindo é pródigo, uma vez que, sem
dinheiro, passou a vender objetos de uso pessoal, vendendo também uma “capota” do veículo
dela, bem como dois tapetes do carro e um adubo que seria destinado a uma lavoura, além do
anel nupcial.
Sustenta, por fim, que se soubesse previamente desta identidade do autor-reconvindo,
o que torna a vida insuportável com ele, não se teria casado de forma alguma.
O que se passa na alcova, entre quatro paredes, na intimidade de um casal, muito
raramente é testemunhado. No caso sub judice, a tentativa de coito anal e o alegado “estupro”
são fatos negados pelo marido. Assim, ante a ausência de prova direta, deve o juiz valer-se de
indícios e presunções.
A ré-reconvinte, visivelmente envergonhada na audiência de instrução e julgamento,
na presença do juiz, do escrivão, dos dois advogados, do curador ao vínculo, e do
representante do Ministério Público, não conseguiu descrever os fatos. Trata-se de uma
mulher criada numa pequena cidade do interior, na zona rural, proprietária de uma pequena
fazenda, produto de herança. Era o que se chama de “solteirona” e, segundo a prova, até o
casamento não tivera qualquer contato com homem. Aliás, o próprio autor-reconvindo
afirma que sua esposa chegou virgem ao casamento, quando asseverou, na contestação à
reconvenção, que não tentou o coito anal, porque “o homem, no casamento, ao ter a fêmea
para o primeiro ato carnal, tem ambições maiores, é conduzido pelos impulsos da
himenolatria” indagando, em seguida, verbis: “Será que no caso não teria razão para esta
busca da virgindade?”
No entanto, a testemunha H. E. I. N. (f. 140/142), que é sobrinho da ré-reconvinte,
relata que sua tia lhe contou que, na primeira noite, o marido quis obrigá- la a praticar o coito
109
anal. A testemunha, também visivelmente envergonhada, na audiência, somente a muito custo
conseguiu dizer que “A. chegou a dizer que naquela noite queria ter relações com ela pelo
cu”, relatando, ainda, que a primeira relação do casal, ainda naquela noite foi violenta,
“procedendo o marido como um animal, sem nenhum carinho, e tanto isso é verdade que ao
chegar de volta, T. teve que procurar tratamento médico para se curar”.
De outro passo, é fato que, depois de comparecer à audiência destinada à reconciliação
do casal conforme se vê às f.16, e tomando conhecimento dos termos da reconvenção, o
autor-reconvindo não mais compareceu aos atos do processo, estando em lugar incerto e não
sabido, segundo seu próprio procurador. Com isso, chegou mesmo a furtar-se à prova pericial
destinada à comprovação de sua prodigalidade.
A jurisprudência criminal já assentou, com razão, que, nos crimes contra costumes,
deve a palavra da ofendida prevalecer sobre a negativa da autoria, desde que essa palavra seja
harmônica e não seja contrariada por circunstâncias de relevo. Confira-se, verbis:
“Sendo o crime contra os costumes, crime qui clam committi solent, sem testemunhas,
portanto, e por necessidade de seu próprio êxito, não se deve deixar de emprestar valor
probatório às declarações da ofendida, desde que a elas se juntem outros elementos de
convicção, mesmo indiciários, sendo corriqueira a negativa da autoria em delitos sexuais”
(Ap. Criminal julgada pelo Egrégio TJMG, DOMG de 13/6/76).
Tenho em mim que, in casu, a palavra da ré-reconvinte deve merecer crédito, quando
alega que o marido quis obrigá-la à prática do coito anal. Assim, entendo por causa de sua
personalidade e pelo fato de que uma mulher nas suas condições, uma solteirona criada na
zona rural não inventaria esse fato, expondo-se a humilhação de tratar o assunto na justiça,
mesmo que este seja do conhecimento de um reduzido grupo de pessoas. Ademais como deve
ter sido penoso relatar o fato a pessoas da família, inclusive a um sobrinho.
110
Pela mesma forma, deve merecer crédito a palavra da ré-reconvinte, quando alega que
seu marido, irritado com a sua recusa de participar do sexo anal, possuiu-a brutalmente,
“estuprando-a”, mesmo porque, na espécie, provadas restaram as leões corporais na região
perineal, segundo a médica que a tratou.
Ora, se a palavra da vítima deve ser crida, porque, in casu, realmente, merece fé; se
existe prova da violência com que o marido a possuiu pela primeira vez consubstanciada no
atestado médico de f.27, corroborado em Juízo; e se o autor-reconvindo desapareceu,
negando-se a prestar depoimento pessoal, outra alternativa não resta senão ter como provadas
as alegações da mulher, de que A. quis obrigá-la à prática do sexo anal e de que, revelando
sua verdadeira personalidade, possuiu-a com violência, causando- lhe ditas lesões.
No tocante à alegada prodigalidade, tenho-a também como provada.
Com efeito, segundo a testemunha S. R. S. (f.138/139), o autor-reconvindo, homem de
“cabeça muito pequena”, sempre gostou mesmo de farrear, “inclusive na zona boêmia”, e
nunca foi “chegado” ao trabalho. Casando-se com T., A., que nenhum bem material possuía,
passou a viver na fazenda da esposa, dando sua sogra a ele um gado para “desfrutar o leite”,
“mas o mesmo não deu conta do serviço”, preferindo deixar o casamento.
Segundo essa testemunha, durante o pouco tempo em que durou o casamento, ou
melhor, a vida em comum, A. chegou a vender gado da mulher, gastando o dinheiro nas
farras, “e só retornava ao lar quando o dinheiro acabava”, mas a verdade é que o autor-
reconvindo não parava na fazenda, porque estava sempre a passear num automóvel de
propriedade da esposa, adquirido por ela antes do casamento.
Relata S., por fim, que A. chegou a fazer um financiamento no Banco do Brasil, com a
finalidade de plantar uma lavoura, mas, irresponsavelmente, desviou o adubo adquirido com o
dinheiro correspondente, gastando-o em suas farras, e assim dita lavoura nada produziu,
obrigando a mulher a vender o gado para pagar a dívida.
111
Segundo a testemunha H. E. I. N., o dito sobrinho da ré-reconvinte, e que nem por isso
deixou de falar a verdade, a meu ver, A. desviou mesmo o adubo em questão, e chegou a
vender realmente o anel nupcial, fato que lhe fora dito pelo próprio autor-reconvindo.
Demais disso, tendo frustrado o autor-reconvindo a realização do exame pericial
destinado a provar sua prodigalidade, o fato é que essa alegação adquire foros de veracidade.
Finalmente, quanto à terceira alegação contida na reconvenção, tenho que nenhuma
dúvida existe a esse respeito.
Realmente o próprio autor-reconvindo reconheceu, na contestação, que a mulher
chegou virgem ao casamento, conforme destaquei alhures. Se assim é, passa a não ter
consistência sua alegação de que a doença venérea lhe teria sido transmitida por ela.
De qualquer forma, sendo a mulher virgem e honesta, como restou provado, antes do
casamento, essa alegação de A. chega a ser hilariante, devendo prevalecer a palavra da ré-
reconvinte, que chegou a humilhação de ver-se contaminada pelo marido. Afinal, era ele,
segundo a prova, quem vivia na zona boêmia, tendo diversas parceiras sexuais.
Vale destacar, aqui, que é desnecessário, em face da lei, que a doença grave seja
efetivamente transmitida ao outro cônjuge, para que se configure a hipótese mencionada no
art. 219, III, do Código Civil. No caso dos autos, porém, a doença venérea, que é grave,
chegou a ser transmitida à mulher conforme se colhe da irrespondível prova.
Por fim, detectando-se a dita “blenorragia”, dias depois do casamento, já no dia 15 de
maio de 1986, menos de um mês após, é de presumir-se que o autor-reconvindo dela já era
portador ao tempo do casamento, sendo certo que a mulher dele não sabia.
Por derradeiro, colhe-se da prova que o autor-reconvindo, então com 36 anos de idade,
antes do casamento já dizia que sua intenção era dar o “golpe do baú”, vez que sendo um pé-
de-chinelo, sentiu aí a oportunidade de enganar a pobre solteirona, que viu nele, quem sabe, a
oportunidade última de dar fim a sua solidão. Aliás, a testemunha A. D. S., (f. 143) conta que,
112
de certa feita, no posto de gasolina do KAVO, nesta cidade, o autor-reconvindo, em resposta a
A., empregado do estabelecimento, que dizia estar tendo ele, A., uma boa vida, respondeu que
havia casado exatamente por isso, “por causa dos trens de T”.
Enfim, provados restaram todos os termos da reconvenção.
E a separação judicial proposta pelo marido contra a mulher?
Nada provou o autor-reconvindo, que preferiu abandonar o feito, deixando de fornecer
elementos ao seu ilustre procurador.
Data venia, não vejo como pode ser entendido como “injúria grave”, capaz de ditar a
dissolução da sociedade conjugal, o fato de determinar a ré-reconvinte, ao Banco do Brasil,
que não mais entregasse dinheiro ao marido, mormente quando se viu que ela o fez diante da
manifesta prodigalidade dele. Data venia, do entendimento do DD. Representante do
Ministério Público, não vejo como possa decretar a separação do casal, por culpa recíproca, se
nada provou o autor-reconvindo.
De resto, é fato inconteste, que a prodigalidade, a tentativa do coito ana l, o estupro e a
doença grave ignorada pela mulher revelam a outra face da personalidade do autor-
reconvindo, ignorada pela ré-reconvinte, e é certo que são defeitos que esta supunha que o
então noivo não possuía, sendo mais certo ainda que se os conhecesse, não se teria casado
com A. Foi ela, induzida em erro essencial sobre a pessoa de A., que revelou uma identidade
oculta, além de ser uma pessoa desonrada. Inegável, sobretudo, que, em face da personalidade
da mulher, o conhecimento posterior dos defeitos do marido tornaram insuportável a vida em
comum.
Neste crepúsculo da decisão, cabe citar a lição dos mestres e a jurisprudência:
Impõe-se o decreto de nulidade do vínculo matrimonial quando, na hipótese de identidade civil, a prova pertinente ao erro sobre a pessoa do cônjuge culpado é
113
poderosamente reforçada pela sua excusa em submeter-se a exame psiquiátrico ou psicológico (Revista Forense, 243/166)
Se a perversão e a tara do marido somente se vieram a manifestar após o casamento, configura -se erro essencial sobre a sua identidade. E, sendo o erro essencial à pessoa de um dos cônjuges de tal natureza que torne impossível a vida em comum para o outro, é de se decretar a anulação do vínculo matrimonial. O precedente conhecimento do vínculo de embriaguez do varão e a prática sexual que antecede o casamento não constituem elementos capazes de excluir o erro essencial, pela mulher, quanto à fama e a personalidade moral do companheiro. (Acórdão proferido na Apelação Cível n.70.693 da comarca de Uberlândia, sendo relator o eminente Desembargador Guimarães Mendonça. Minas Gerais de 7/8/87).
A blenorragia é infecção grave por causa das diversas localizações do gonococo no aparelho genital e urinário da mesma. A contagiosidade da doença é uma noção pacífica. A blenorragia também é capaz de pôr em risco a saúde do outro cônjuge, pois é suscetível de complicações sérias, que podem causar até a morte. Ainda mais: a infecção materna pode causar a oftalmia do filho, se os meios preventivos não forem usados a tempo (GOMES, Hélio. Medicina legal. 19. ed., p. 306).
Ensina o mestre, ainda, que deve ter-se em mente que a lei exige apenas que a moléstia
seja capaz de pôr em risco a saúde do outro cônjuge, sendo irrelevante que a tenha posto
efetivamente em risco. E encerra: “Considero, pois, a blenorragia, moléstia grave e
transmissível por contágio, capaz de pôr em risco a saúde do outro cônjuge”.
Por todo o exposto, e por tudo mais que dos autos consta, julgo improcedente a ação
de separação judicial e procedente a reconvenção, para decretar a anulação de casamento de
A. D. E. e T. D. A., com fincas no art. 218 e 219, I e III, ambos do Código Civil.
Condeno o autor-reconvindo no pagamento das custas do processo, e bem assim dos
horários do patrono da ré-reconvinte, estes no valor de 500 cruzados novos, nos termos do §
4º do art. 20 do Código de Processo Civil.
Transitada essa decisão em julgado, espeça-se o competente mandado ao Oficial do
Registro Civil das Pessoas Naturais, para os devidos fins.
Esgotado o prazo para oposição de recurso voluntário, remetam-se os autos ao Egrégio
Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, por força do inciso I do art. 475 do Código de
Processo Civil.
114
P.R.I. Cumpra-se.
Tupaciguara, 19 de fevereiro de 1989.
Maurício Barros
Juiz de Direito
4.2 Esclarecimentos Iniciais
Trata-se, no presente caso, de um processo um pouco complexo. Na verdade são duas
ações a serem decididas no mesmo processo. Quem tomou a iniciativa da ação foi ADG, autor
de uma Ação de Separação Judicial contra TAD, sua esposa e ré na ação. Chamada para
defender-se, a ré não apenas contestou a pretensão do autor mas também, no mesmo processo,
propôs, em Reconvenção, uma Ação de Anulação de Casamento contra o autor, seu marido. É
preciso esclarecer que os efeitos decorrentes de uma ação de separação judicial são diversos
daqueles decorrentes de uma ação de anulação de casamento. Assim, a ré achou mais
vantajoso não só se defender como ré mas também atacar como autora. Para tanto, deveria,
primeiramente, defender-se, contestando todas as alegações contra ela dirigidas pelo marido
na Ação de Separação Judicial, obrigando-o, assim, a provar tudo quanto alegara, isto é,
atribuindo- lhe o ônus da prova, que, no caso, cabe a quem alega. Ao mesmo tempo, teria de
propor a Ação de Anulação de Casamento, e, nesse caso, teria de apresentar motivos outros
que, com base na lei, fossem ensejadores da anulação pretendida. É claro que não são
quaisquer motivos os capazes de fundamentar um pedido de anulação de casamento. A ré-
reconvinte tinha motivos bastantes no presente caso.
115
O trecho cuja análise se fará, a seguir, corresponde à Fundamentação e ao Dispositivo
(ou Decisão), como são chamadas por Nunes (1999) essas duas partes da Sentença, que, no
presente caso, constituem a argumentação do Juiz na apreciação e julgamento das ações de
separação judicial e de anulação de casamento, em reconvenção. Nesse trecho, a enunciação
do Juiz constitui-se de:
a) exposição dos fundamentos legais em que se baseiam as ações e das alegações das
partes envolvidas;
b) relatos de procedimentos que conduzem à comprovação, ou não, da veracidade dos
fatos alegados: exame de documentos (laudos periciais, atestados, declarações, certidões,
etc.), análise de depoimentos de testemunhas ou das partes, observação de indícios e
presunções;
c) exposição dos dispositivos legais em que se baseia a decisão: leis, doutrina,
jurisprudência, princípios gerais do direito, analogia, costumes;
d) apresentação de justificativas do acatamento ou recusa das alegações;
e) julgamento de procedência ou improcedência da ação e a conseqüente condenação
da parte vencida.
Pretende-se demonstrar, com esta análise, como isso se processa em termos de criação
e integração de Espaços Referenciais. A representação dos trechos analisados consistirá na
indicação dos mecanismos sintático-discursivos, ou seja, na indicação dos Espaços
Referenciais envolvidos na composição do texto.
Apesar da importância de todo e qualquer tipo de Espaço Referencial na produção de
sentido de um texto, nesta análise se dará ênfase àqueles que tenham maior relevância no
processamento da argumentação. Dessa forma, na representação dos trechos analisados, serão
116
indicados os Espaços Referenciais constituídos por Instâncias de Enunciação e, em algumas
oportunidades, determinados tipos de Espaços Referenciais que, mesmo não se constituindo
de Instâncias de Enunciação, apresentem um papel importante no processo de argumentação.
O Espaço Referencial correspondente à Instância de Enunciação Zero será representada entre
chaves: {IE0}; os Espaços Referenciais correspondentes às demais Instâncias de Enunciação
serão representadas entre colchetes: [IE]. Os Espaços Referenciais não constituídos por
Instâncias de Enunciação, quando se julgar necessário indicá- los, serão representados entre
parênteses: (EM).
Para se explicitar a estratégia argumentativa adotada pelo Juiz na construção da sua
decisão definitiva, a análise da Sentença será desenvolvida em tópicos elaborados com base
na divisão apresentada acima. É o que se pretende demons trar a seguir:
4.3 Análise: A Construção e Integração de Espaços Referenciais
4.3.1 Na justificativa do recebimento da Ação de Separação Judicial
Observe-se o trecho abaixo, referenciado como o domínio discursivo do Juiz, E0:
(63) E0 {“Funda-se a E1 [ação de separação judicial no E2 [art.5, caput. da Lei n.
6.515/770] E2, sob E3 [ alegação de que a ré-reconvinte E4 [ praticou injúria grave, que
constitui conduta desonrosa, consubstanciada no fato de , publicamente, ofender a mulher ao
marido,E5 [ chamando-o de “sem-vergonha”, “explorador”, e “desgraçado”] E5, bem como
no fato de E6 [ dirigir a mesma uma carta ao Banco do Brasil, E7 [ dando ordens para que
117
não fosse ao autor-reconvindo concedido um financiamento] E7, E6], e ainda por E8 [ haver a
mulher despedido empregados contratados por ele] E8 e, finalmente, por E9 [ difundir que o
marido estava roubando seu gado]E9, E4], e bem assim por passar ela a dormir com uma faca
sob o travesseiro.”] E3, E1], E0}
Analisando-se esse trecho com base na concepção de que argumentar é orientar o
discurso no sentido de determinadas conclusões, segundo Koch (1999), ou de que argumentar
é buscar a adesão dos espíritos às teses apresentadas, segundo Perelman (1970), percebe-se
que, para conseguir isso, o Juiz se vale, invariavelmente, de uma estratégia que se constitui
numa propriedade da argumentação judicial: a busca de apoio em fundamentos legais para
qualquer atitude que vier a ser tomada. Agir dessa forma é apoiar-se em argumentos de
outrem, é integrar outras vozes à sua, é constituir a polifonia do texto e dela servir-se como
estratégia argumentativa, é, enfim, modalizar, de certa forma, sua fala em busca da construção
do convencimento que ele precisa não só sentir mas também transmitir em sua
argumentação.Quando uma ação é proposta, o Juiz pode recebê- la ou não. Não se trata de
uma opção, pois qualquer decisão nesse sentido tem que se apoiar em um fundamento legal.
Assim, recebendo ou deixando de receber uma ação proposta, o Juiz tem que dizer por que o
faz.
O trecho em análise corresponde à parte da enunciação do Juiz, {E0}, em que ele
justifica o recebimento da Ação de Separação Judicial. Para fazer isso, ele se apóia em outras
vozes: a voz da lei e a voz que alega fatos em que se fundamenta a ação. Ao fazer isso, ele
está operando com a articulação de falas, está promovendo a integração de espaços
referenciais e está dizendo para o seu interlocutor que a ação é legal e pode ser apreciada pelo
Poder Judiciário. Enfim, está orientando o discurso no sentido de determinadas conclusões e,
assim, está buscando a adesão do interlocutor.
118
Sob a ótica da construção e integração de Espaços Referenciais, o trecho pode ser
visto da seguinte maneira:
Além da voz de {E0}, que, no caso, é a do Juiz, que se institui como enunciador, na
Instância Zero do discurso, nove outras vozes (instâncias enunciativas subordinadas à
Instância Zero) se articulam e se integram no processamento discursivo do Juiz. Veja-se como
se distribuem essas vozes:
(1) A voz do Juiz, {E0}, que se institui automaticamente (situação default) como
enunciador, ao tomar a palavra e referir-se à ação de separação judicial [E1]. Ao considerar a
“ação judicial”, o Juiz assevera que ela se baseia
(2) na voz da Lei [E2] e
(3) na “alegação” [E3], que se constitui, segundo o Juiz, de um fato (passar a dormir
com uma faca sob o travesseiro) e seis interlocuções, a saber:
(4) “praticou injúria grave...” [E4]
(5) “chamando-o de ‘sem vergonha’, ‘explorador’ e ‘desgraçado’...” [E5]
(6) “dirigir a mesma uma carta ao Banco de Brasil...” [E6]
(7) “dando ordens para que não fosse ao autor concedido um financiamento...” [E7]
(8) “haver a mulher despedido empregados contratados por ele...” [E8]
(9) “difundir que o marido estava roubando seu gado.” [E9].
As instâncias enunciativas [E4], [E5], [E6], [E7], [E8] e [E9] são, pela recursividade,
sintaticamente dependentes de [E3]. Observe-se, também, que [E4], referenciada como
“prática de injúria grave”, engloba cinco dessas outras instâncias: [E5], [E6], [E7], [E8] e
[E9], que referenciam, no texto, os fatos constituintes da “injúria” alegada. As instâncias [E5],
[E6], [E8] e [E9] articulam-se diretamente com [E4] e a ela se subordinam sintaticamente pela
recursividade, através da expressão “consubstanciada no fato de”, que, ativada no interior de
[E4], articula [E5] com [E4]; através também da expressão “bem como no fato de...”, que
119
articula [E6] com [E4]; através ainda da expressão “e ainda por”, articuladora de [E8] com
[E4]; e através também ainda da expressão “e finalmente por”, que articula [E9] com [E4].
A referenciação do trecho acima deve ser feita na Instância de Enunciação Zero,
espaço da realidade de E0, que integra vários Espaços Referenciais. Observe-se que a alegada
injúria grave, que serviu de motivo para a propositura da ação de separação judicial, resulta de
cinco fatos alegados pelo autor-reconvindo. Ao enumerar esses fatos, que, no entendimento
do autor-reconvindo, “consubstanciam” a injúria alegada, o Juiz está operando com a
integração de Espaços Referenciais, que orienta a referenciação do texto. É essa seqüência
que move o Juiz e dá a ele a base para se posicionar a respeito do pedido. Em termos de
argumentação, essa vai ser uma operação constante na enunciação do Juiz. Articular falas e
outros Espaços Referenciais é estratégia argumentativa fundamental e indispensável de que se
vale o Juiz quando fundamenta qualquer de seus atos no processo judicial.
4.3.2 Na justificativa do recebimento da Ação de Anulação de Casamento, em reconvenção
A justificativa do recebimento da Ação de Anulação de Casamento, proposta pela
mulher, em reconvenção, está no texto abaixo:
(64) E0 {“Funda-se a E1[reconvenção, outrossim, nos E2 [incisos I e III, do art. 219
do Código Civil]E2 , sob E3[ alegação da reconvinte de que foi induzida em erro quanto à
pessoa de seu marido, que revelou,EM1( logo na noite de núpcias)EM1, sua verdadeira face,
tentando obrigá- la à pratica do coito anal, seguindo-se o estupro; de que o autor-reconvindo
sofria de “blenorragia”, antes do casamento, moléstia que transmitiu a esposa]E3; e,
120
finalmente, sob E4[ alegação de que o marido é pródigo, tanto que passou a vender objetos de
uso pessoal e do casal, vendendo até o anel nupcial.”]E4] E1}E0
Ao receber a ação, o Juiz deixa claro que não o faz a seu bel-prazer. Demonstra que
ela é legal, já que se funda na lei e nas alegações da ré-reconvinte. Ao fazer isso, o Juiz está,
aqui também, articulando falas; está integrando à sua própria voz a voz da lei e a voz da ré-
reconvinte, ou seja, está operando com a polifonia argumentativa, que se manifesta na
integração de espaços referenciais. Trata-se de uma estratégia argumentativa da qual não pode
abrir mão sob pena de perda de credibilidade.
Para se demonstrar como se dá a criação e integração de Espaços Referenciais no texto
acima, é importante ressaltar que, em toda a Sentença ora em análise, a Instância de
Enunciação Zero, {IE0}, deve ser referenciada sempre como a voz do Juiz, que se instituiu
como Enunciador Zero, {E0}, em situação default.
No trecho (64), acima, o Juiz, {E0}, referindo-se à ação de reconvenção, [E1], afirma
que ela se fundamenta na voz da Lei [E2] e em duas alegações: [E3] e [E4] , cada uma,
constituída por uma interlocução; isto é, cada uma delas, constituída, na verdade, por uma
Instância de Enunciação. Ambas foram criadas e articuladas no âmbito da Instância de
Enunciação Zero {IE0} e apresentadas como argumentos nessa instância, espaço básico
discursivo do Juiz. A Instância de Enunciação [E3] integra o Espaço Mental (EM1), ativado
por expressão dêitica de tempo, não constituído por instância enunciativa, mas revestido de
grande força argumentativa na fala do Juiz. Observe-se que a ativação desse espaço
referencial induz o interlocutor a prejulgar o comportamento do marido: afinal é difícil aceitar
que alguém, já na noite de núpcias, revele um comportamento capaz de ensejar um pedido de
anulação de casamento.
121
Finalmente, a Instância de Enunciação Zero, IE0, integra todos esses espaços
referenciais no Espaço Único de Referência Integrado, onde se dá a referenciação do trecho.
Graficamente, esse trecho pode ser assim representado:
FIGURA 12 -Texto 64: Justificativa de recebimento de Ação de Anulação de Casamento em Reconvenção.
4.3.3 No julgamento da legalidade das ações e no julgamento das alegações
A partir de agora, o Juiz começa a entrar no mérito da questão. Seu discurso vai ser
orientado no sentido de levar o alocutário à aceitação da decisão que pretende proferir. E, para
conseguir isso, ele trabalha com os dados disponíveis nos autos e construídos,
122
discursivamente, nas e pelas várias enunciações que compõem a rede de alegações das ações
propostas e mais aqueles cuja adoção seja legitimada pelas condições de produção do
discurso.
Ressalte-se que o Juiz, constituindo-se como E0, tem que julgar duas ações no mesmo
processo: uma Ação de Separação Judicial, proposta pelo marido, o autor-reconvindo, e uma
Ação de Anulação de Casamento, proposta pela mulher, a ré-reconvinte, em reconvenção.
Mas ele só pode fazer isso, se trouxer para o tempo / espaço de sua enunciação outros espaços
referenciais que vão se criando e integrando na polifonia discursiva de seu texto. Toda a sua
argumentação funda-se em depoimentos, documentos, legislação, jurisprudência, presunções,
princípios, comparações e quaisquer outros recursos que julga revestirem-se de caráter legal,
o que configura Espaços Referenciais constituídos por Instâncias de Enunciação.
Para que se torne mais facilmente demonstrável a criação e integração de Espaços
Referenciais na análise que o Juiz fez das alegações das partes envolvidas no processo, este
item será subdividido em:
4.3.3.1 No julgamento da legalidade das ações
Observe-se o trecho abaixo, em que o Juiz, apoiando-se em prova concreta, argumenta
demonstrando que, de fato e de direito, o autor-reconvindo e a ré-reconvinte eram casados.
(65) E0 {E1[“Consoante a prova carreada para os autos]E1, A. D. G. e T. A. D.
casaram-se no dia 19 de abril de 1986, pelo regime de comunhão de bens. Ela, solteira, com
48 anos de idade; ele, também solteiro, com 36.”}E0
123
Repare-se que o argumento usado pelo Juiz é a voz da lei, presumivelmente, na forma
de uma certidão de casamento, ‘a prova carreada para os autos’, segundo a qual A.D.G. e
T.A.D. haviam-se casado em abril de 1986. Essa voz integra-se à voz do Juiz, e, pela
integração das duas vozes, forma-se o Espaço Único Integrado de Referência, onde se dá o
processamento da referenciação do trecho.
Mas, afinal, qual a importância dessa prova para a argumentação do Juiz? Na verdade,
ela é a mais importante de todas, pois, se não tivesse havido um casamento, não poderia haver
uma separação judicial nem uma anulação de casamento. Ela é o argumento irrefutável
utilizado pelo Juiz para justificar o recebimento das ações e demonstrar a legalidade de sua
apreciação pelo Poder Judiciário. Como se vê, aqui também a argumentação se faz pela
integração de Espaços Referenciais criados e/ou delimitados por Instâncias de Enunciação.
Esse trecho pode ser representado pela Figura 10, apresentado na p. 93 e retomado a
seguir:
FIGURA 10
124
4.3.3.2 No julgamento das alegações da ré -reconvinte
Veja-se, a seguir, como se processa a argumentação do Juiz a respeito das alegações
da ré-reconvinte na Ação de Anulação de Casamento, em reconvenção:
4.3.3.2.1 Da alegação de violência sexual
Quanto à alegação da mulher de que teria sofrido violência sexual por parte do marido,
a enunciação do Juiz se processa da seguinte forma:
(66) E0 {E1[“Relata a ré-reconvinte que, EM1(já na noite de núpcias, na cidade de
Morrinhos, no Estado de Goiás, a caminho do balneário de Caldas Novas, também naquele
estado)EM1, começou a viver uma EM2(tragédia, vez que foi aí que o autor-reconvindo
revelou sua outra face. Tentou ele, de modo grosseiro, obrigá- la a praticar o coito anal, E2[
asseverando que mulher casada não é dona de seu corpo, devendo submeter-se à vontade do
marido.]E2 Como ela se recusasse a expor-se à tara do marido, este, irritado, ‘estuprou-a’,
causando-lhe grave lesão no órgão genital, tanto que, posteriormente, foi obrigada a fazer um
tratamento médico com a Dra. T. A. C. R.. na cidade de Uberlândia”)EM2]E1}E0.
Observe-se que o Juiz não afirma que a ré-reconvinte sofreu realmente as agressões
alegadas. Afinal, ele não presenciou nenhuma dessas agressões, portanto não podia saber da
veracidade ou falsidade das alegações. Assim, ao referir-se às agressões, o Juiz não assume a
responsabilidade pela asserção feita, mas a atribui à ré-reconvinte. Ou seja, o Juiz argumenta
125
usando a voz da ré-reconvinte. Essa voz relata a ocorrência de uma tragédia, que teria
ocorrido já na noite de núpcias: a tentativa do autor-reconvindo de praticar o coito anal, e, em
seguida, o estupro. É como se o Juiz dissesse: “Não sou eu que estou dizendo; é a ré-
reconvinte”. De fato, é ela que relata o ocorrido na noite de núpcias. Nesse relato, uma outra
voz se manifesta: a voz do marido, a quem é atribuída a asserção a respeito da submissão da
mulher ao marido. Ao utilizar essa estratégia, o Juiz está operando com a integração de
espaços referenciais, já que integra à sua fala não só a fala da ré-reconvinte mas também a do
autor-reconvindo.
Em termos de criação e integração de espaços referenciais, o trecho pode ser assim
descrito:
O Juiz, constituindo-se como {E0}, já começa sua fala introduzindo a fala da ré-
reconvinte, [E1], pela ativação do verbo dicendi relata, construtor de espaço referencial.
Assim, já se integram dois espaços. Além desses, o espaço básico integra outros espaços
referenciais: (EM1), ativado pelas expressões dêiticas de tempo / espaço “já na noite de
núpcias, na cidade de Morrinhos, no Estado de Goiás, a caminho do balneário de Caldas
Novas, também naquele estado”; (EM2), ativado pelo item lexical tragédia; e, dentro deste,
outro espaço, [E2], constituído por instância de enunciação e ativado pela forma verbal
dicendi asseverando, que introduz a fala do autor-reconvindo.
Como se vê, além dos espaços constituídos por instâncias enunciativas, há outros tipos
de espaços referenciais de grande força argumentativa no trecho acima. É o que se vê, por
exemplo, no relato da ré-reconvinte, [E1], quando ela, através das expressões dêiticas de
tempo, ‘já na noite de núpcias’, e de lugar, ‘na cidade de Morrinhos, no Estado de Goiás, a
caminho do balneário de Caldas Novas, também naquele estado’, que evidenciam um eu/tu-
aqui-agora distinto do eu/tu-aqui-agora da Instância de Enunciação Zero.
126
Outro Espaço Referencial estrategicamente integrado à enunciação de [E1] e,
logicamente, à enunciação de {E0}, é o que se abre, como já foi dito, pela ativação do item
lexical tragédia. Trata-se, no caso, de um espaço mental criado no e pelo processamento
discursivo e situado no domínio da ficção; diferente, portanto, do domínio de referência R da
realidade de E1. Observe-se a força argumentativa obtida com a modalização pela ativação do
item lexical tragédia. Ao ser ativado, na e pela enunciação de [E1], esse item induz o
alocutário a imaginar a ré-reconvinte como personagem em uma situação bastante aflitiva,
condizente com uma situação vivida somente em um mundo irreal e inconcebível no mundo
real.
Também nesse trecho, como se vê, é pela integração de espaços referenciais que o Juiz
vai preparando o espírito do alocutário para acatar uma determinada decisão, ou seja, vai
orientando o discurso no sentido de determinada conclusão.
A integração de espaços referenciais no trecho referente às alegações da ré-reconvinte
pode ser representada pela figura abaixo :
127
FIGURA 13 - Texto 66: Julgamento de alegação de violência sexual
No trecho abaixo, entretanto, o Juiz argumenta com o intuito de demonstrar ter sido
provada a violência sexual alegada pela mulher.Também aqui, o Juiz opera com a integração
de Espaços Referenciais como estratégia de argumentação, o que caracteriza o discurso do
Juiz, também nessa parte, como polifônico. Observe-se o trecho em questão:
(67) E0{“De fato, a referida médica E1[declara, no E2[documento de f. 27,
corroborado, com as formalidades do E3[contraditório, por meio doE4[depoimento de
f.112]E4]E3]E2, haver examinado a ré-reconvinte no dia 28 de abril de 1986, nove dias após
128
o casamento, ocasião em que constatou “Grande laceração na região perineal, com dor e
sangramento no local”]E1, “laceração” aliás, quer dizer ‘ferimento’ e ‘rasgão’.”}E0
O relato de [E1], ré-reconvinte, integrado à fala do Juiz, {E0}, informa a ocorrência de
uma alegada violência sexual que ela teria sofrido do marido e integra uma outra instância
enunciativa, que constitui a voz atribuída a [E2], o autor-reconvindo, que teria dito que
“mulher casada não é dona de seu corpo, devendo submeter-se à vontade do marido”.
Como não pode julgar com base em alegações não comprovadas, o Juiz busca a
comprovação em outras falas, que ele integra à sua. Nesse trecho, ele vai modalizar sua fala e
dar credibilidade a ela, usando o argumento de autoridade polifônica. É pela voz de uma
profissional da medicina, a Drª T.A.C.R., que ele assevera que a ré-reconvinte apresentava
lesões características de agressão sexual. A voz da ré-reconvinte, [E1], é confrontada com a
de [E3], a médica que a examinou, e, do confronto dessas duas instâncias enunciativas, o Juiz
constrói seu argumento com vistas a uma decisão sobre os fatos alegados por uma parte e
negados pela outra.
Com base nesse confronto, o Juiz dá como comprovado pelo menos um fato: a mulher
sofrera, realmente, alguma espécie de violência sexual. O uso da expressão “De fato” como
operador argumentativo deixa isso claro. Por meio dessa expressão, o Juiz, integrando à sua
fala as várias falas da médica, dá como comprovado o fato de a ré-reconvinte ter sofrido
“laceração na região perineal”. É pela integração desses vários espaços discursivos que se
chega à comprovação de que, realmente, a ré-reconvinte apresentava as lesões alegadas.
Entretanto, se as lesões estavam comprovadas, a autoria ainda não estava. Portanto, não era
hora de decidir.
129
A integração de Espaços Referenciais nesse trecho pode ser representada graficamente
da seguinte maneira:
FIGURA 14 - Texto 67: Comprovação de violência sexual.
4.3.3.2.2 Da alegação de contágio
Quanto à alegação da ré-reconvinte de ter contraído doença venérea proveniente do
marido, mais uma vez a sua voz é confrontada com outras vozes que se integram na/pela
130
enunciação de {E0}. Para que se entenda o raciocínio em que se baseia seu convencimento, o
Juiz opera, mais uma vez, com a integração de espaços referenciais. Ou seja, em busca de
comprovação da veracidade da alegação de contágio, o Juiz se vale, mais uma vez da
polifonia discursiva, ao integrar outras vozes que confirmam ter sido a mulher infectada por
doença venérea. Observe-se como isso ocorre no trecho a seguir:
(68) E0 {“Ainda E1[segundo a ré-reconvinte, mal convalescia ela das lesões
causadas pelo ‘estupro’, que a impediram de locomover-se normalmente durante muitos dias,
veio a verificar que fora acometida por uma doença venérea, mais precisamente uma
‘blenorragia ’, moléstia que a fora transmitida pelo marido, obrigando-a mais uma vez, a
procurar tratamento médico na cidade de Uberlândia, dessa vez com o Dr. P. C.]E1
Realmente, E2[noticia a testemunha, Dra. T. A. C. R., na E3[declaração de f.27] E3,
digo, no E4[depoimento de f.112]E4, que voltou a examinar a ré-reconvinte no dia 15 de maio
de 1986, quando constatou que esteve ela com uma infecção genital intensa, quando fo ram
realizados exames laboratoriais, detectando-se trichaomaníase, que normalmente é originária
de relacionamento sexual]E2. Os resultados dos exames a que se submeteu a ré-reconvinte
estão estampados às f.30 a 32, sendo certo que também o autor–reconvindo submeteu-se a
este tipo de exame, quando se constatou que também ele era portador da moléstia venérea.
Aliás, no E5[atestado de f.33]E5, corroborado pelo E6[depoimento de f.113]E6, o
mencionado médico R.. B. E7[confirma que a ré-reconvinte foi contaminada]E7,
E8[afirmando que tratou-a no período de 13 de maio a 9 de junho de 1986, de uma Uretrite
Gonocócica”]E8}E0.
Observe-se que o Juiz, {E0}, integra à sua a fala da ré-reconvinte, [E1], que diz ter
sido infectada por doença venérea transmitida pelo marido. Pela integração da voz de [E1]
131
com as vozes de [E2], [E3], [E4], referenciadas como sendo da Drª T. A. C. R., e com as
vozes de [E5], [E6], [E7], [E8], do Dr. R. B., testemunhas no processo, o Juiz, {E0}, conduz
sua argumentação de forma a construir o fundamento da decisão que vier a tomar. As várias
instâncias enunciativas que se inserem e se articulam no espaço discursivo de {E0}
comprovam que a mulher estava infectada por doença venérea.
O trecho acima, em termos de integração de Espaços Referenciais, pode ser assim
visualizado:
FIGURA 15 - Texto 68: Julgamento da alegação de contágio
Entretanto, também quanto à doença venérea, não havia prova direta de quem era o
responsável pelo contágio, uma vez que não só a mulher mas também o marido estavam
132
infectados. Assim, ainda não era hora de decidir, mas de tecer a trama argumentativa rumo a
uma decisão.
4.3.3.2.3 Da alegação de prodigalidade
Outro ponto a ser analisado é a alegada prodigalidade do autor-reconvindo, que
completa o quadro de acusações em que se baseou a ré-reconvinte para propor a reconvenção
contra o marido. Veja-se como é feita a argumentação de E0 a partir disso.
(69) E0 {“Finalmente, E1[alega a ré-reconvinte que o autor-reconvindo é pródigo,
uma vez que, sem dinheiro, passou a vender objetos de uso pessoal, vendendo também uma
“capota” do veículo dela, bem como dois tapetes do carro e um adubo que seria destinado a
uma lavoura, além do anel nupcial”]E1}E0
Mais uma vez, a enunciação de {E0} se faz pela polifonia característica da integração
de Espaços Referenciais criados e delimitados por Instâncias de Enunciação. O espaço básico,
domínio discursivo do Juiz, integra um outro espaço discursivo, referenciado como a voz da
ré-reconvinte, [E1], e indiciado pela ativação do verbo dicendi alega, introdutor de Espaço
Referencial. Em sua argumentação, o Juiz faz um inventário das alegações que movem a
mulher a propor a anulação do casamento. O trecho acima apresenta a última das alegações
feitas.Observe-se a função do item lexical finalmente. Esse item, além de encerrar a
enumeração das alegações, funciona como elemento articulador de vozes, ou seja, funciona
como articulador de Espaços Referenciais. Apesar desses argumentos, ainda não há uma
decisão sobre a alegada prodigalidade do autor-reconvindo.
133
4.3.3.2.4 Da alegação de erro essencial sobre a pessoa
Observe-se, por último, a alegação que serve de fundamento legal para o pedido de
anulação de casamento: erro essencial quanto à pessoa.
(70) E0{ E1[“Sustenta, por fim, que se soubesse previamente desta identidade do
autor-reconvindo, o que torna a vida insuportável com ele, não se teria casado de forma
alguma”]E1}E0.
Aqui o espaço delimitado pela Instância de Enunciação Zero, correspondente ao
“espaço-origo” da realidade de {E0}, integra o Espaço Referencial criado pela instauração da
instância enunciativa de [E1], ativada pela forma verbal dicendi sustenta. Esse Espaço
Referencial integra dois outros espaços.
Ao sustentar que, “se soubesse desta identidade do autor-reconvindo, não se teria
casado de forma alguma”, a mulher está dizendo que, antes do casamento, desconhecia a
verdadeira identidade do marido. A referenciação desse trecho é um pouco complexa: no
aqui/agora da enunciação de E1 (espaço factual), a mulher já conhecia a identidade do marido
e se encontrava casada com ele. A esse espaço factual se contrapõe um espaço contrafactual,
hipotético, do tipo se...(então), em que se imagina a mulher conhecedora da identidade do
autor-reconvindo e a conseqüente recusa da ré-reconvinte de casar-se com ele. É justamente a
integração desses Espaços Referenciais que resulta no fundamento jurídico que possibilita a
propositura da Ação de Anulação de Casamento.
É fácil entender isso quando se leva em conta que o caput e os incisos I e III do Art.
219 do Código Civil da época, com base nos quais foi proposta a Ação de Anulação de
Casamento, prescreviam o seguinte:
134
Art. 219. Considera-se erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge: I. O que diz respeito à identidade do outro cônjuge, sua honra e boa fama, sendo esse erro tal, que o seu conhecimento ulterior torne insuportável a vida em comum ao cônjuge enganado. II. [...] III. A ignorância, anterior ao casamento, de defeito físico irremediável ou de moléstia grave e transmissível, por contágio ou herança, capaz de pôr em risco a saúde do outro cônjuge ou de sua descendência.” (BRASIL. Código civil. Organização dos textos notas remissivas e índices por Juarez de Oliveira, com a colaboração de Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt. 48 ed. São Paulo: Saraiva, 1997).
Como se vê, a estratégia argumentativa do Juiz é constante: a integração de vozes ou
Espaços Referenciais.
Observe-se, ainda, a modalização da Instância de Enunciação de E1 pela escolha do
verbo dicendi “sustenta”. Ao escolher esse verbo, o Juiz quis atribuir à voz da ré-reconvinte
um tom de segurança acerca daquilo que ela alegava. Se, em vez de “sustenta”, o Juiz tivesse
usado, por exemplo, “diz”, a alegação da ré-reconvinte não pareceria tão convincente. A
modalização é uma estratégia bastante empregada em textos argumentativos judiciais.
Até aqui, o Juiz analisou a legalidade das duas ações e as alegações em que elas se
fundam. A não ser o fato de considerar legais as duas ações, o que já é uma decisão, o Juiz
não tomou ainda nenhuma decisão quanto ao mérito da questão. A alegação da mulher de que
teria sido vítima de tentativa de coito anal seguida de estupro e a alegação de que o marido era
pródigo não apresentam comprovação. Os atestados e depoimentos médicos comprovam as
lesões e a infecção, mas não apontam os responsáveis por elas. Nesse caso, como o Juiz deve
proceder para decidir? É o que se verá a seguir.
4.3.4 Na avaliação de indícios e presunções
Segundo suas palavras, o Juiz, diante da complexidade da situação e na falta de prova
direta, deve valer-se de outros recursos. No caso em análise, conforme já se afirmou, existe
135
prova das lesões e do contágio de que foi vítima a mulher. O problema é saber se, de fato, eles
ocorreram por culpa do marido. Assim, como não existe prova direta da autoria, observe-se
como o Juiz pretende chegar a uma decisão.
(71) E0{“O que se passa na alcova, entre quatro paredes, na intimidade de um casal,
muito raramente é testemunhado. EM1(No caso sub judice)EM1, a tentativa de coito anal e o
E1[alegado ‘estupro’]E1 são fatos E2[ negados pelo marido.]E2 Assim ante a ausência de
prova direta, deve o juiz valer-se de indícios e presunções.”}E0
Esse trecho, referenciado como o espaço discursivo da realidade do Juiz, {E0}, integra
vários outros espaços referenciais. Observe-se a importância que assume na argumentação de
{E0} a asserção de que “o que se passa na alcova, entre quatro paredes, na intimidade de um
casal, muito raramente é testemunhado”. Ativado pelas expressões dêiticas de tempo/espaço:
“na alcova, entre quatro paredes, na intimidade de um casal”, esse espaço referencial integra-
se instantaneamente ao espaço básico. Ao apresentá- lo como argumento, o Juiz demonstra a
impossibilidade de se comprovar a violência sexual alegada pela ré-reconvinte. Como
também não havia nenhuma prova da não ocorrência do fato alegado, o Juiz se sentia
autorizado a valer-se de indícios e presunções em busca de uma decisão. O espaço referencial
em questão corresponde a um espaço discursivo que, embora hierarquicamente subordinado
ao espaço da realidade do falante, {E0}, focaliza uma situação que não corresponde a essa
realidade, mas a uma realidade entendida, na fala de {E0}, como genérica e passível de
acontecer. Como não se trata de espaço referencial criado por instância de enunciação, não
apresenta depoimentos de testemunhas, que possam servir de embasamento para uma decisão.
A expressão dêitica de tempo/espaço “No caso sub judice”, cria um espaço referencial
específico, o das ações em julgamento, em que o Juiz, {E0}, diante de duas alegações
136
controversas, referenciadas como sendo as vozes de [E1], ré-reconvinte, e de [E2], autor-
reconvindo, e “ante a ausência de prova direta”, expõe os fundamentos da decisão a tomar:
“indícios e presunções”.
4.3.4.1 Na construção do caráter da ré-reconvinte
É importante ressaltar que os indícios e presunções também decorrem da integração de
espaços referenciais. É a partir deles que o Juiz, {E0}, enfatiza o comportamento e o caráter
da ré-reconvinte e é com base nesse comportamento e nesse caráter que o Juiz constrói seu
convencimento. Observe-se o texto abaixo:
(72) E0{“A ré-reconvinte, visivelmente envergonhada EM1(na audiência de
instrução e julgamento, na presença do juiz, do escrivão, dos dois advogados, do curador ao
vínculo, e do representante do Ministério Público)EM1, não conseguiu E1[descrever os
fatos]E1. Trata-se de uma mulher EM2(criada numa pequena cidade do interior, na zona rural,
proprietária de uma pequena fazenda, produto de herança. Era o que se E2[chama de
‘solteirona’]E2)EM2 e, E3[segundo a prova, até o casamento não tivera qualquer contato com
homem”.]E3}E0
Nessa parte, o Espaço básico integra vários Espaços Referenciais. Em (72a), abaixo, as
expressões dêiticas de tempo/espaço “na audiência de ins trução e julgamento, na presença do
juiz, do escrivão, dos dois advogados, do curador ao vínculo e do representante do Ministério
Público” remetem a um tempo/espaço anterior ao da Instância de Enunciação de {E0} e
criam, dentro dessa instância, um outro espaço referencial, de nítida intenção argumentativa.
137
(72a) E0{“A ré-reconvinte, visivelmente envergonhada Em1(na audiência de
instrução e julgamento, na presença do juiz, do escrivão, dos dois advogados, do curador ao
vínculo e do representante do Ministério Público)EM1, não conseguiu E1[descrever os
fatos”]E1.}E0
Observe-se como o Juiz articula o fato de a ré-reconvinte se mostrar “visivelmente
envergonhada na presença do juiz, do escrivão, dos dois advogados, do curador ao vínculo e
do representante do Ministério Público”. O Juiz fez questão de citar cada um dos que estavam
presentes na sala de audiência. Se mais gente houvesse, mais gente seria citada. Quanto mais,
melhor! Isso é estratégia argumentativa do Juiz. Ao fazer isso, a intenção era tentar convencer
de que, numa circunstância como aquela, a ré-reconvinte não teria coragem de inventar o fato
alegado e, assim, passar por tamanho constrangimento diante de tanta gente
Em (72b), abaixo, o particípio “criada” articulado com as expressões dêiticas de
espaço, “numa pequena cidade do interior, na zona rural”, a ativação da forma verbal “era”,
no pretérito imperfeito do indicativo, e ainda a criação de uma nova instância enunciativa
indiciada pela expressão de elocução “prova” remetem a um tempo/espaço anterior ao do
casamento e, logicamente, ao da enunciação de {E0}.
(72b) E0{“Trata-se de uma mulher EM2 (criada numa pequena cidade do interior, na
zona rural, proprietária de uma pequena fazenda, produto de herança. Era o que se E1[chama
de ‘solteirona’]E1 e, E2[segundo a prova, até o casamento não tivera qualquer contato com
homem.”]E2}E0,
138
Tanto (72a) quanto (72b) se revestem de grande força argumentativa, uma vez que,
embora não apareçam como comprovação da veracidade dos fatos alegados pela ré-
reconvinte, são apresentados como indícios de que uma mulher como a ré-reconvinte, diante
daquelas circunstâncias, não poderia estar mentindo.
4.3.4.2 Na construção do caráter da testemunha
É também com base em indícios que o Juiz presume que a testemunha apresentada
pela ré-reconvinte dissera a verdade. Veja-se o trecho a seguir:
(73) E0{“No entanto, a testemunha H. E. I. N. (f.140/142), que é sobrinho da ré-
reconvinte, E1[relata que sua tia lhe E2[contou que, na primeira noite, o marido quis obrigá- la
a praticar o coito anal]E2. A testemunha, EM1(também visivelmente envergonhada, na
audiência,)EM1 somente a muito custo E3[conseguiu dizer que ‘A. E4[chegou a dizer que
naquela noite queria ter relações com ela pelo cu’]E4, E5[relatando, ainda, que a primeira
relação do casal, ainda naquela noite foi violenta, ‘procedendo o marido como um animal,
sem nenhum carinho, e tanto isso é verdade que ao chegar de volta, T. teve que procurar
tratamento médico para se curar’”.]E5 ]E3]E1}E0
Nesse trecho da enunciação do Juiz, {E0}, ocorre a integração de vários espaços
referenciais. A maioria deles ativados por instâncias enunciativas criadas e integradas na e
pela fala de [E1], sobrinho da ré-reconvinte e testemunha no processo. Apesar de nada provar,
a fala dessa testemunha integra as falas de [E2], ré-reconvinte, e de [E4], autor-reconvindo, e
essa integração demonstra que a ré-reconvinte já havia contado, anteriormente, ao sobrinho os
139
fatos que agora fundamentavam a Ação de Anulação de Casamento. Isso é tomado pelo Juiz,
{E0}, como indício de que a ré-reconvinte dizia a verdade, uma vez que não teria ela coragem
de inventar uma história dessas para o sobrinho.
Quanto à credibilidade que o depoimento do sobrinho possa merecer, o Juiz, {E0},
vale-se do mesmo tipo de indício que o levou a acreditar na ré-reconvinte: o fato de, “na
audiência”, o sobrinho ter-se apresentado “visivelmente envergonhado” e “somente a muito
custo” ter conseguido dizer tudo quanto disse.
4.3.4.3 Na construção do caráter do autor-reconvindo
Também a construção do caráter do autor-reconvindo não se fez com base em provas
concretas, mas em presunções decorrentes da integração de Espaços Referenciais. É o que se
vê no trecho abaixo:
(74) E0{“De outro passo, é fato que, depois de comparecer à audiência destinada à
reconciliação do casal E1[conforme se vê às f.16]E1, e tomando conhecimento dos
E2[termos]E2 da E3[reconvenção]E3, o autor-reconvindo não mais compareceu aos atos do
processo, estando em lugar incerto e não sabido, E4[segundo seu próprio procurador”]E4}E0.
Nesse trecho, a oração temporal “depois de comparecer à audiência destinada à
reconciliação do casal” integra-se ao espaço básico como um novo espaço referencial de
grande importância. O comparecimento à audiência, comprovado pelas folhas f.16, demonstra
que o autor-reconvindo tomou conhecimento dos termos da reconvenção. Apesar disso,
segundo a enunciação de {E0}, o autor-reconvindo não mais compareceu aos atos do processo
e encontra-se em lugar incerto e não sabido. Ou seja, mesmo sabendo ser sua obrigação
140
acompanhar o andamento do processo, o autor-reconvindo abandonou-o sem nenhuma
explicação. No espaço discursivo do Juiz, {E0}, isso é mais uma evidência a favor das
alegações feitas pela ré-reconvinte e uma demonstração de que o autor-reconvindo não
merecia fé. O embasamento para se aceitar o valor probante desses indícios é dado pela
jurisprudência, como se pode ver pelo trecho abaixo:
(75) E0{“E1[A jurisprudência criminal já E2[assentou, com razão, que, nos crimes
contra os costumes, deve a E3[palavra da ofendida prevalecer sobre a E4[negativa da
autoria]E4, desde que essa E5[palavra seja harmônica e não seja contrariada por
circunstâncias de relevo”]E5]E3]E2]E1}E0
Nesse trecho, o Juiz integra, ao Espaço Referencial básico, um novo Espaço
Referencial no e pelo ato de criar uma nova instância enunciativa que apresenta a voz dos
juízes e tribunais de 2ª instância, [E1]. Essa instância foi ativada pelo sintagma nominal
“jurisprudência criminal”, aqui considerado forma de elocução, tal quais palavras como lei,
plebiscito, contestação, etc. Dentro da instância enunciativa de [E1], integram-se, ainda,
vários Espaços Referenciais, criados pelas instâncias [E2], [E3], [E4] e [E5]. Todos esses
Espaços Referenciais integram-se ao espaço discursivo de {E0} e a ele se subordinam, na
formação do Domínio Único de Referência Integrado.
O texto (75), acima, constitui uma paráfrase da ementa original, texto (76), transcrita
pelo Juiz, {E0}, em sua fundamentação:
(76) E0{Confira-se, verbis:
E1[“Sendo o crime contra os costumes, crime qui clam committi solent, sem
testemunhas, portanto, e por necessidade de seu próprio êxito, não se deve deixar de
141
emprestar valor probatório às E2[declarações da ofendida]E2, desde que a elas se juntem
outros elementos de convicção, mesmo indiciários, sendo corriqueira a E3[negativa da autoria
em delitos sexuais”]E3]E1 E4[(Ap. Criminal ]E4 E5[julgada pelo Egrégio TJMG]E5,
E6[DOMG de 13/6/76 )]E6}E0
A análise feita até aqui evidenciou que a criação e integração de Espaços Referenciais
constituídos, ou delimitados, por Instâncias de Enunciação é um procedimento básico
indispensável no processamento da argumentação do Juiz na parte em que ele analisa as
alegações, confrontando-as com as provas, indícios e evidências que povoam o processo. Esse
mesmo procedimento, como se mostrará a seguir, é essencial também na parte em que o Juiz
justifica o acatamento de umas alegações e a recusa de outras.
4.3.5 Na fundamentação da decisão
4.3.5.1 Quanto à alegada tentativa de coito anal
Observe-se o trecho em que o Juiz entende que a mulher dissera a verdade ao se dizer
vítima de tentativa de coito anal:
(77) E0{“Tenho em mim que, ‘in casu’ ,a E1[palavra da ré-reconvinte deve merecer
crédito, quando E2[alega que o marido quis obrigá- la à prática de coito anal]E2]El. Assim,
entendo por causa de sua personalidade e pelo fato de que uma mulher EM1(nas suas
condições, uma solteirona criada na zona rural não inventaria esse fato, expondo-se a
142
humilhação de tratar o assunto na justiça, mesmo que este seja do conhecimento de um
reduzido grupo de pessoas.”)EM1}E0
Esse espaço, referenciado como o espaço discursivo do Juiz, {E0}, integra outros
Espaços Referenciais. Dois deles, [E1] e [E2], são constituídos por Instâncias de Enunciação e
apresentam a voz da ré-reconvinte em suas alegações contra o marido. Veja-se que, aqui, o
Juiz já decide: julga verdadeira a alegação da mulher. Para justificar o entendimento de que a
palavra da mulher deveria merecer crédito, o Juiz, {E0}, cria, em sua enunciação, um Espaço
Referencial hipotético-contrafactual, ativado no trecho “...uma mulher nas suas condições,
uma solteirona criada na zona rural não inventaria esse fato, expondo-se à humilhação de
tratar do assunto na justiça, mesmo que este seja do conhecimento de um reduzido grupo de
pessoas”. Nesse espaço, o Juiz, pelo uso das expressões acima destacadas em negrito, induz o
alocutário a imaginar a mulher em outros momentos e lugares, que, embora distintos do
tempo / espaço da Instância de Enunciação Zero, representam uma realidade vivida de fato
pela ré-reconvinte. A esses espaços, o Juiz, E0, contrapõe, pela ativação do futuro do
pretérito, um espaço hipotético-contrafactual. Esse procedimento torna-se uma estratégia de
grande importância na enunciação do Juiz para convencer o alocutário de que, se a mulher
fosse de outro tipo e estivesse em outras condições, talvez fosse capaz de inventar ter sido
vítima de tentativa de coito anal, mas a ré-reconvinte jamais seria capaz disso.
4.3.5.2 Quanto à alegação de estupro
143
Além da alegada tentativa de coito anal, também o estupro foi considerado provado,
mesmo diante da ausência de prova direta contra o autor-reconvindo. Também aqui, o Juiz, ao
tecer sua argumentação, operou com a integração de Espaços Referenciais, entre os quais se
destacam, pela força argumentativa que apresentam, os hipotético-contrafactuais do tipo
se...(então)... Articulando fatos, indícios, evidências e presunções, o Juiz conduz sua
argumentação de modo a induzir o alocutário a entender e aceitar, com base na integração de
todos esses Espaços, sua intenção de decidir a favor da ré-reconvinte. É o que se pode ver no
trecho abaixo:
(78) E0{“Ora, EM1(se a E1[ palavra da vítima]E1 deve ser crida, porque,E2[in
casu]E2, realmente, merece fé;)EM1 EM2(se existe E3[prova da violência com que o marido
a possuiu pela primeira vez]E3 consubstanciada no E4[atestado médico de f.27,
E5[corroborado em Juízo]E5]E4;)EM2 e EM3(se o autor-reconvindo desapareceu, negando-
se a E6[prestar depoimento pessoal]E6)EM3, outra alternativa não resta senão ter como
provadas as E7[alegações da mulher, de que A. quis obrigá- la à prática do sexo anal e de que,
revelando sua verdadeira personalidade, possuiu-a com violência, causando- lhe ditas
lesões”]E7}E0.
O Espaço Referencial básico, correspondente à Instância de Enunciação do Juiz, {E0},
integra vários outros Espaços Referenciais. A credibilidade da palavra da ré-reconvinte, a
prova da violência do marido, o seu desaparecimento e a negativa de prestar depoimento
pessoal são aceitos como verdade porque resultam da integração de Espaços Referenciais
hipotético-contrafactuais, que o Juiz, estrategicamente, integra ao seu espaço discursivo.
Esses espaços, integrados aos espaços criados pelas instâncias enunciativas de [E1], [E2],
[E3], [E4] e [E5], embasam sua decisão de considerar provadas as alegações da mulher, [E1].
144
4.3.5.3 Quanto à alegação de prodigalidade
A estratégia argumentativa do Juiz não muda: é através da integração de Espaços
Referenciais que ele constrói sua argumentação. No julgamento da alegação da ré-reconvinte
de que o marido era pródigo, dez situações de elocução e um fato incidente no processo
integram-se ao espaço básico.
A instância enunciativa de [E1] referenciada como a voz da ré-reconvinte, as
instâncias enunciativas [E2], [E3] e [E4], vozes da testemunha S.R.S., e a instância
enunciativa [E5], voz da testemunha, H.E.I.N, no interior das quais se criam e se integram as
demais instâncias enunciativas, constroem o caráter do autor-reconvindo, enfatizando o seu
comportamento esbanjador e a sua pouca afeição ao trabalho. Soma-se a isso o fato de o
autor-reconvindo ter-se negado a submeter-se a ao exame pericial destinado à constatação da
prodigalidade. A construção desse quadro constitui a estratégia argumentativa do Juiz para dar
como provada a prodigalidade do autor-reconvindo.
Observe-se como o Juiz, {E0}, vai, pela integração das várias vozes das testemunhas,
enumerando fatos e circunstâncias que, ao mesmo tempo em que vão construindo o caráter do
autor-reconvindo, vão também induzindo ao reconhecimento da prodigalidade:
(79) E0{“No tocante à E1[alegada prodigalidade]E1, tenho-a também como
provada.
Com efeito, E2[segundo a testemunha S. R. S. (f.138/139), o autor-reconvindo,
homem de ‘cabeça muito pequena’, sempre gostou mesmo de farrear, ‘inclusive na zona
boêmia’, e nunca foi ‘chegado’ ao trabalho. Casando-se com T., A., que nenhum bem material
145
possuía, passou a viver na fazenda da esposa, dando sua sogra a ele um gado para ‘desfrutar o
leite’, ‘mas o mesmo não deu conta do serviço’, preferindo deixar o casamento]E2.
E3[Segundo essa testemunha, durante o pouco tempo em que durou o casamento, ou
melhor, a vida em comum, A. chegou a vender gado da mulher, gastando o dinheiro nas
farras, ‘e só retornava ao lar quando o dinheiro acabava’, mas a verdade é que o autor-
reconvindo não parava na fazenda, porque estava sempre a passear num automóvel de
propriedade da esposa, adquirido por ela antes do casamento.]E3
E4[Relata S., por fim, que A. chegou a fazer um financiamento no Banco do Brasil,
com a finalidade de plantar uma lavoura, mas, irresponsavelmente, desviou o adubo adquirido
com o dinheiro correspondente, gastando-o em suas farras, e assim E5[dita lavoura]E5 nada
produziu, obrigando a mulher a vender o gado para pagar a dívida.]E4
E6[Segundo a testemunha H. E. I. N]E6, o E7[dito sobrinho da ré-reconvinte]E7, e
que nem por isso deixou de E8[falar a verdade]E8, a meu ver, A. desviou mesmo o adubo em
questão, e chegou a vender realmente o anel nupcial, fato que lhe fora E9[dito pelo próprio
autor-reconvindo]E9.
Demais disso, tendo frustrado o autor-reconvindo a realização do exame pericial
destinado a provar sua prodigalidade, o fato é que essa E10[alegação]E10 adquire foros de
veracidade.”}E0
Veja-se que a referenciação desse trecho, que deve ser feita no espaço discursivo de
E0, o Domínio Único de Referência Integrado, leva o alocutário a aceitar a decisão do Juiz de
reconhecer a prodigalidade do autor-reconvindo.
4.3.5.4 Quanto à alegação de contágio
146
Quanto à alegação da ré-reconvinte, [E1], de ter sido contagiada por doença venérea
transmitida pelo marido, o Juiz, {E0}, baseia-se em presunções para decidir. Observe-se como
se dá sua enunciação.
(80) E0{Finalmente,quanto à terceira E1[alegação]E1 contida na
E2[reconvenção]E2, tenho que nenhuma dúvida existe a esse respeito.
Realmente o próprio autor-reconvindo E3[reconheceu, na E4[contestação]E4, que a
mulher chegou virgem ao casamento]E3, E5[conforme destaquei]E5 alhures. EM1(Se assim
é,)EM1 passa a não ter consistência a E6[alegação de que a doença venérea lhe teria sido
transmitida por ela]E6.
De qualquer forma, sendo a mulher virgem e honesta, como restou provado, antes do
casamento, essa E7[alegação de A.]E7 chega a ser hilariante, devendo prevalecer a E8[palavra
da ré-reconvinte]E8, que chegou à humilhação de ver-se contaminada pelo marido. Afinal, era
ele, E9[segundo a prova, quem vivia na zona boêmia, tendo diversas parceiras sexuais.]E9
Vale E10[destacar, aqui, que é desnecessário, em face da E11[lei]E11, que a doença
grave seja efetivamente transmitida ao outro cônjuge, para que se configure a
EM2(hipótese)EM2 E12[mencionada]E12 no E13[art. 219, III, do Código Civil]E13] E10 No
E14[caso dos autos]E14, porém, a doença venérea, que é grave, chegou a ser transmitida à
mulherE15[ conforme se colhe da irrespondível prova.]E15
Por fim, detectando-se a E16[dita “blenorragia”]E15, EM3(dias depois do casamento,
já no dia 15 de maio de 1986, menos de um mês após)EM3, é de presumir-se que o autor-
reconvindo dela já era portador ao tempo do casamento, sendo certo que a mulher dele não
sabia.}E0
147
Observe-se como, no trecho acima, a alegação do marido de que a doença venérea lhe
teria sido transmitida pela ré-reconvinte é desqualificada pela presunção, alicerçada na
integração de Espaços Referenciais, principalmente quando o Juiz joga com a
contrafactualidade manifesta no Espaço hipotético-contrafactual EM1, do tipo se... (então). O
reconhecimento do próprio autor-reconvindo de que a mulher chegara virgem ao casamento, o
fato comprovado de que o marido vivia na zona boêmia, tendo diversas parceiras sexuais e o
fato também comprovado de que a blenorragia que infectou a mulher foi detectada dias depois
do casamento levam à presunção de que o marido já era portador da doença antes do
casamento, de que esse fato era ignorado pela mulher e de que foi o marido que a contagiou.
Ao articular todos esses fatos para fundamentar sua decisão, o Juiz está operando com a
integração de Espaços Referenciais. É por meio dessa integração que ele demonstra que sua
decisão decorre de uma interpretação imparcial dos fatos constantes do processo.
4.3.5.5 Na decisão das duas ações
A partir daí, já se anuncia um desfecho para a Ação de Anulação de Casamento,
proposta em reconvenção, e, conseqüentemente, para a Ação de Separação Judicial, conforme
se vê pelo trecho abaixo:
(81) E0{Enfim, provados restaram todos os E1[termos]E1 da E2[reconvenção]E2.
E a E3[separação judicial proposta pelo marido contra a mulher?]E3 E4[Nada provou
o autor-reconvindo]E4, que preferiu abandonar o feito, deixando de fornecer elementos ao seu
ilustre procurador}E0.
148
Esse espaço básico, referenciado como o domínio discursivo do Juiz, {E0}, integra
quatro espaços referenciais criados por instâncias de enunciação: E1 e E2, referenciados como
as vozes da ré-reconvinte, e E3 e E4, referenciados como as vozes do autor-reconvindo. Como
se vê, aqui também, como em toda a sua argumentação, é pelas operações de integração de
Espaços Referenciais que o Juiz busca demonstrar o acerto de sua decisão.
Observe-se, ainda, no trecho acima, o papel de articulador de Espaços Referenciais
exercido pelo operador argumentativo “enfim”, por meio do qual o Juiz, encerrando o
julgamento das alegações em que se baseou a reconvenção, praticamente decide pela
procedência da Ação de Anulação de Casamento.
Observe-se, a seguir, como o Juiz, {E0}, organiza sua fundamentação para justificar
seu entendimento de que a mulher foi induzida em erro essencial quanto à pessoa do marido,
fato que embasou o pedido de anulação do casamento:
(82) E0{De resto, é fato inconteste, que a prodigalidade, a tentativa do coito anal, o
estupro e a doença grave ignorada pela mulher revelam a outra face da personalidade do
autor-reconvindo, ignorada pela ré-reconvinte, e é certo que são defeitos que esta
EM1(supunha que o então noivo não possuía)EM1, sendo mais certo ainda que EM2(se os
conhecesse, não se teria casado com A.)EM2 Foi ela, induzida em erro essencial sobre a
pessoa da A., que revelou uma identidade oculta, além de ser uma pessoa desonrada. Inegável,
sobretudo, que, em face da personalidade da mulher, o conhecimento posterior dos defeitos do
marido tornaram insuportável a vida em comum.}E0
Nesse trecho, as alegações em que se fundou a reconvenção e que foram consideradas
provadas ensejam a criação de um espaço hipotético-contrafactual do tipo se...(então), pela
ativação do imperfeito do subjuntivo, articulado com o futuro do pretérito, em “se os
conhecesse, não se teria casado com A.” É exatamente a integração desse espaço hipotético
149
com o espaço referencial construído pelo epistêmico “supunha” que sustenta o entendimento
de que a mulher foi induzida em erro essencial quanto à pessoa do marido.
A presença do operador argumentativo “De resto” na articulação desse espaço
discursivo com os imediatamente anteriores reflete a estratégia argumentativa do Juiz: diante
de tantos argumentos conduzindo a uma mesma conclusão, a decisão não poderia ser outra
senão a procedência da reconvenção.
Dessa forma, a decretação da nulidade do casamento torna-se uma conseqüência
natural, principalmente porque a decisão apresenta como suporte as vozes da doutrina e da
jurisprudência, como se vê a seguir:
(83) E0{Neste crepúsculo da E1[decisão]E1, cabe E2[citar a E3[lição dos mestres e a
E4[jurisprudência:
E5[“Impõe-se o E6[ decreto de nulidade do vínculo matrimonial]E6 quando, EM1(na hipótese de identidade civil,)EM1 a E7[prova pertinente ao erro sobre a pessoa do cônjuge culpado]E7 é poderosamente reforçada pela sua E8[ excusa em submeter-se a exame psiquiátrico ou psicológico.”]E8] E9[(Revista Forense)]E9 E10[“Se a perversão e a tara do marido, somente se vieram a manifestar após o casamento, configura -se erro essencial sobre a sua identidade. E, sendo o erro essencial à pessoa de um dos cônjuges de tal natureza que torne impossível a vida em comum para o outro, é de se E11[decretar a anulação do vínculo matrimonial.]E11 O precedente conhecimento do vínculo de embriaguez do varão e a prática sexual que antecede o casamento não constituem elementos capazes de excluir o erro essencial, pela mulher, quanto à fama e a personalidade moral do companheiro”.]E10 E12[ (Acórdão proferido na E13[apelação Cível n. 70.693 da comarca de Uberlândia,]E13 sendo E14[relator o eminente Desembargador Guimarães Mendonça.]E14]E12 E15[Minas Gerais de 7/8/87).]E15]E10 E16[“ A blenorragia é infecção grave por causa das diversas localizações do gonococo no aparelho genital e urinário da mesma. A contagiosidade da doença é uma noção pacífica. A blenorragia também é capaz de pôr em risco a saúde do outro cônjuge, pois é suscetível de complicações sérias, que podem causar até a morte. Ainda mais: a infecção materna pode causar a oftalmia do filho, se os meios preventivos não forem usados a tempo” ( E17[GOMES, Hélio. Medicina legal. 19. ed., p. 306).]E17]E16
150
E18[Ensina o mestre, ainda, que deve ter-se em mente que E19[a lei exige apenas que
a moléstia seja capaz de pôr em risco a saúde do outro cônjuge, sendo irrelevante que a tenha
posto efetivamente em risco]E19. E E20[encerra:“Considero, pois, a blenorragia moléstia
grave, transmissível por contágio, capaz de pôr em risco a saúde do outro
cônjuge”]E20]E18]E3]E2]E1}E0.
Esse espaço básico, Domínio Único de Referência Integrado, espaço discursivo do
Juiz, E0, integra vários Espaços Referenciais. É exatamente a integração desses espaços que
dá a sustentação para a decisão do Juiz. É nesse domínio discursivo que se dá a referenciação,
pela qual se entende o raciocínio do Juiz para chegar à decisão de que a mulher fora induzida
em erro quanto à pessoa do marido, fundamento legal em que ela se baseou para pleitear a
anulação do casamento.
4.3.6 No proferimento da Sentença
Finalmente, vem a decisão, conseqüência natural das articulações feitas durante toda a
enunciação de E0, como se constata pelo emprego do sintagma adverbial “por todo o exposto
e por tudo mais que dos autos consta”.Esse segmento, ao apontar, como justificativa para a
decisão a ser tomada, todos os fatos e argumentos expostos e constantes dos autos, articula a
Decisão com as demais partes da Sentença. A estratégia argumentativa continua sendo,
portanto, a integração de Espaços Referenciais, recorrente ao longo de todo o processo.
Observe-se o trecho abaixo:
151
(84) E0{Por todo o E1[exposto,]E1 e por tudo mais que dos E2[autos consta,]E2
julgo improcedente a E3[ação de separação judicial]E3 e procedente a E4[reconvenção,]E4
para E5[decretar a anulação de casamento de A. D. E. e T. D. A., com fincas no E6[art. 218 e
219, I e III, ambos do Código Civil]E6}E0.
A condenação final e as ordens para que se cumpram os trâmites legais seguem,
também, a mesma estrutura argumentativa: integração de Espaços Referenciais criados ou
delimitados por Instâncias de Enunciação, como se pode ver pelo trecho abaixo:
(85) E0{Condeno o autor-reconvindo no pagamento das custas do E1[processo]E1,
e bem assim dos honorários do patrono da ré-reconvinte, estes no valor de 500 cruzados
novos, nos E2[termos do § 4º do art. 20 do Código de Processo Civil.]E2
Transitada essa E3[decisão]E3 em julgado, espeça-se o competente E4[mandado]E4
ao Oficial do E5[Registro Civil das Pessoas Naturais]E5, para os devidos fins.
Esgotado o prazo para oposição de E6[recurso voluntário]E6, remetam-se os
E7[autos]E7 ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, por força do
E8[inciso I do art. 475 do Código de Processo Civil.]E8
E9[P.R.I.]E9 Cumpra-se.
Tupaciguara, 19 de fevereiro de 1989.
Maurício Barros
Juiz de Direito }E0
Em síntese, o que se pretendeu mostrar aqui é que a argumentação se faz pela
recorrência de Espaços Referenciais que se constituem e são constitutivos de vozes, às vezes
hierarquicamente organizadas, que relatam relatos de relatos de relatos, utilizando-se de
152
mecanismos de recursividade, que integram hierarquicamente vozes subordinadas, de
subordinadas, de subordinadas, a uma principal. É na articulação por encaixe, por
justaposição, por correlação, ou por outra forma qualquer de subordinação que está toda a
natureza de um processo argumentativo. Embora a aná lise feita tenha-se restringido, em razão
da enorme extensão do texto, ao exame das partes conhecidas como Fundamentação e
Dispositivo (ou Decisão), pode-se afirmar que é esse mesmo procedimento discursivo que é
empregado no Relatório da Sentença que constitui o corpus deste trabalho.
153
5 CONCLUSÕES
Este trabalho nasceu da tentativa de se apresentar uma contribuição para o
desenvolvimento da competência do educando na produção / recepção de textos
argumentativos escritos em português e foi desenvolvido com base na convicção de que uma
forma possível de conseguir isso é dotar o educando dos meios necessários para melhorar o
nível de informatividade de seus textos. Entendendo-se que, em se tratando de textos
argumentativos, a informatividade deve ser tratada como “argumentatividade”, tida, no caso,
como fator de textualidade diretamente relacionada com a habilidade na integração de espaços
referenciais, partiu-se do princípio de que o conhecimento e domínio dos mecanismos
lingüísticos responsáveis por essa integração destacam-se como qualidades indispensáveis no
processamento da argumentação.
Assim, assumindo-se com Koch (1999) que o ato lingüístico fundamental é o ato de
argumentar e que “a interação social por intermédio da língua caracteriza-se,
fundamentalmente, pela argumentatividade”, apresentaram-se algumas considerações sobre
argumentação, com ênfase em Koch e referência a contribuições de Osakabe, Perelman e
outros sobre o ato de argumentar, com base nos quais se procurou estabelecer a concepção de
argumentação e de texto argumentativo com a qual se desenvolve este trabalho. Assumiram-
se, também, algumas postulações de Lopes (1998) e Magalhães (1998), sobre a criação e
articulação de Instância de Enunciação, de Martins (2000) sobre a criação e articulação de
Espaços Mentais, de Nascimento ; Oliveira (2002) sobre o Processo de Referenciação, de
Cavalcante (2000) e Vieira (2003) sobre o Processo de Referenciação e criação e integração
de Espaços Referenciais; adotou-se a Teoria da Enunciação segundo Benveniste (1970, 1989),
a Teoria Modular de Castilho (1998) e a Teoria dos Espaços Mentais, de Fauconnier (1984,
1996, 1997) e Fauconnier ; Turner (2002).
154
A partir daí, buscou-se a construção de um quadro de referência teórico capaz de
fornecer subsídios na abordagem do objeto de estudo delimitado. Esse quadro foi constituído
a partir dos seguintes pressupostos: 1) os Espaços Referenciais são domínios semânticos
necessariamente constitutivos e constituídos do / no processamento discursivo (Fauconnier,
1994, 1997); 2) os Espaços Referenciais constituem-se necessária e primordialmente de
Instâncias de Enunciação – Espaços Referenciais Básicos (Cavalcante, 2002); 3) outros
espaços referenciais são constituídos, sempre, no interior de espaços básicos – Instâncias de
Enunciação. (Cavalcante, 2002). A partir desses princípios, procedeu-se à análise do corpus, a
respeito do qual são feitas as seguintes considerações iniciais:
O texto analisado pode ser apontado como um típico exemplo de texto argumentativo.
Talvez em nenhum outro gênero textual se possa perceber, como em uma sentença judicial, a
preocupação tão evidente do locutor com as reações e os efeitos que o texto possa provocar.
Nesse gênero de texto, o medo, o desejo ou a necessidade de ser parcial ou imparcial; a
sensibilidade ou a insensibilidade em face do problema; a vaidade, a moralidade, a ética, ou a
ideologia; o conformismo, o inconformismo ou a indiferença em relação aos aspectos sociais;
o grau de conhecimento; enfim, todo tipo de fator capaz de influenciar a produção do discurso
do magistrado é, de forma (mais ou menos) intuitiva ou racional, levado em consideração pelo
Juiz no momento de decidir. Nessa hora, não há como ignorar a repercussão que o texto
poderá provocar em quantos dele se inteirarem, principalmente naqueles que, por autorização
ou por força da Lei, puderem atacá- lo e / ou reformá-lo. Afinal, ao Juiz, assim como à mulher
de César, não basta ser justo; tem de parecer justo. A consciência disso leva-o a cercar-se de
tudo quanto, no processo, tenha contribuído para formar o seu convencimento em busca de
uma decisão justa e legal.
Procedendo-se à análise do corpus constatou-se que, na sentença judicial, ocorrem
diferentes tipos de falas, referenciadas como as diversas entidades lingüísticas que se
155
manifestam no texto. As alegações, os depoimentos, a Lei, a doutrina, a jurisprudência, os
pareceres dos representantes dos órgãos do Poder Judiciário, os atestados e as certidões são
vozes que se integram e se fazem ouvir na e pela enunciação do Juiz. No decorrer deste
trabalho, ficou demonstrado que o processamento da referenciação do texto se faz na
integração das partes que o compõem. Por isso, talvez não seja muito adequado falar de uma
importância maior ou menor de cada uma dessas partes isoladamente. Em termos de
argumentação, entretanto, não há como ignorar que procedimentos discursivos distintos
podem apresentar diferentes graus de convencimento ou de persuasão. Assim, embora todas
as vozes que integram o texto analisado sejam igualmente importantes como partes efetivas
do procedimento discursivo, pode-se dizer que elas exercem funções distintas e apresentam-se
como mais argumentativas ou como menos argumentativas. As alegações, que correspondem
às vozes das partes envolvidas, nada provam nem se destinam a esse fim. Na verdade, relatam
fatos, que só serão considerados se forem comprovados. Alguns depoimentos, os atestados e
as certidões são usados como provas na avaliação dos fatos alegados. A Lei, a doutrina, a
jurisprudência, os pareceres, apesar de nada provarem sobre a veracidade das alegações,
servem de fundamento para a decisão a ser tomada, uma vez que constituem as várias “vozes”
que sussurram ao ouvido do Juiz, orientando, instruindo, guiando-o na análise e julgamento
dos fatos submetidos à sua apreciação. A Lei constitui os parâmetros pelos quais se avalia a
legalidade do ato e a possibilidade jurídica do pedido. A doutrina, a jurisprudência e os
pareceres funcionam como uma espécie de argumentos de autoridade e conferem à decisão do
Juiz um maior poder de convencimento e, conseqüentemente, de credibilidade. Essa busca de
apoio nas palavras de outrem caracteriza-se como marca de argumentatividade e faz da
polifonia uma característica intrínseca da argumentação.
Essas reflexões acenam com a possibilidade de se pensar na elaboração de uma
classificação dos Espaços Referenciais segundo o grau de argumentatividade. Embora a
156
análise do corpus não tenha sido conduzida nessa direção, parece correto afirmar que Espaços
Referenciais constituídos de Instâncias de Enunciação apresentam um maior ou menor grau
de argumentatividade conforme constituam relatos ou argumentos de autoridade. Parece
correta, também, a constatação de que o maior ou menor grau de argumentatividade de
Espaços Referenciais não constituídos por Instâncias de Enunciação depende, entre outras
coisas, do tipo de Relação Vital envolvida na criação e articulação desses Espaços. Parece
correto afirmar, ainda, que o nível de argumentatividade de qualquer tipo de Espaço
Referencial está diretamente relacionado com a intenção do falante e que, portanto, a
modalização de Espaços Referenciais é característica básica da argumentação.
O corpus se resume em um único exemplo de Sentença Judicial. No texto analisado,
como se viu, vários tipos de vozes, integram o espaço discursivo do Juiz. Em determinados
processos judiciais, porém, podem não estar presentes as vozes de testemunhas; pode não
haver atestados, certidões; pode não se manifestar o Ministério Público, o Curador ao
Vínculo; pode não ter sido invocada a doutrina, a jurisprudência. Quando isso ocorre,
diminuem sensivelmente os recursos argumentativos de que se pode valer o Juiz no
processamento da Sentença.
Apesar de o corpus ter-se constituído de um único texto, pode-se dizer, com base na
análise realizada, que o processo de discursivização do texto argumentativo do gênero
Sentença Judicial é fundamentalmente determinado pela integração de Espaços Referenciais.
Isso significa que a referenciação de um texto argumentativo desse gênero ocorre sempre no
Domínio Único de Referência Integrado, o Espaço R, domínio discursivo do Juiz. Pode-se
dizer, também, que o Domínio Único de Referência Integrado desse gênero de texto integra
Espaços Referenciais criados somente por Instâncias de Enunciação ou Espaços Referenciais
criados por Instâncias de Enunciação e outros tipos de Espaços Referenciais. Com base em
157
tudo isso, pode-se dizer, finalmente, que a integração de Espaços Referenciais é uma
característica básica do processo de argumentar.
Parece confirmada, portanto, a hipótese em que baseou esta pesquisa. Isso, além de,
por si só, compensar o trabalho realizado, traz ainda algumas conseqüências práticas
importantes para a prática da produção / recepção de textos argumentativos.
No que se refere à pretensão de contribuir para o desenvolvimento da competência do
educando na produção e recepção de textos argumentativos escritos, considera-se que este
trabalho, à medida que conscientiza o aluno de que todo texto resulta da criação e integração
de Espaços Referenciais, contribui para que o aluno, como alocutário, seja capaz de fazer uma
interpretação semântico-pragmática adequada do texto e, como locutor, utilize, de forma
consciente, os mecanismos lingüísticos indispensáveis para a tessitura do texto argumentativo.
Além de funcionar como fator de melhoria da informatividade / argumentatividade, o
conhecimento e o domínio dos meios de criação e integração de Espaços Referenciais
contribuem sensivelmente para o desenvolvimento da competência discursiva quanto à
intencionalidade, aceitabilidade, situacionalidade, intertextualidade, coesão e coerência,
apontadas por Beaugrande; Dressler (1983) como fatores de textualidade. Quanto a isso,
espera-se que este trabalho possa, ao menos, servir de motivação para o desenvolvimento de
novos estudos sobre o assunto, ou de novas práticas na produção e recepção de textos
argumentativos escritos.
158
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ABSTRACT
Arguing is fundamentally articulating speeches and other constituted Reference
Spaces, confined by Enunciation Instances. That’s the hypothesis around which this research
evolves, confirmed by the analysis of the corpus, which is formed by an argumentative
juridical text of the judicial sentence gender. The approach to the restrict object of study
follows a model of discursive procedure presented by some presumptions found in many
linguistic theories that look to discourse from the view of its processing and constitute the
theoretical setting that supports this research. Enunciation Theory, Mental Spaces Theory and
Modular Theory are some of these theories.
Key words : Arguing, Discursive Process, Reference Spaces Integration,.